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Abaetê Queiroz
Bárbara Gontijo
Juliana Drummond
Larissa Mauro
Márcio Minervino
Prólogo
CLÓDIA (Márcio)
Hilda Hilst
(Apavorado)
Não me toques
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita.
Estas são as fazes da minha fúria.
Sob a janela molhada
passam guarda-chuvas
na horizontal,
como em Cherbourg,
mas não era este
o nome.
Saudade em pedaços,
estação de vidro.
Água
As cartas
não mentem jamais:
virá ver-te outra vez
um homem de outro continente.
Não me toques,
foi minha cortante resposta
sem palavras
que se digam
dentro do ouvido
num murmúrio.
E mais não quer saber
a outra, que sou eu,
do espelho em frente.
Ela instrui:
deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.
EM CELEBRAÇÃO DO MEU ÚTERO (Larissa)
Anne Sexton
TRAVELLING (Bárbara)
Ana Cristina César
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoais–lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
DO AMOR (Abaetê)
Hilda Hist
POEMA (Larissa)
Noémia De Souza
Bates-me e ameaças-me
Agora que levantei minha cabeça esclarecida
E gritei: “Basta!” (…) Condenas-me à escuridão eterna
Agora que minha alma de África se iluminou
E descobriu o ludíbrio E gritei, mil vezes gritei: _Basta!”.
Armas-me grades e queres crucificar-me
Agora que rasguei a venda cor-de-rosa
E gritei: “Basta!”
Remeta-me os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era o seu jeito
ou de propósito
mas era bom, sempre bom
e assanhava as tardes.
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.
SEDUÇÃO (Márcio)
Adélia Prado
DESEJO (Abaetê)
Tainá Lopes
O que é o desejo?
O que é o desejo? Perguntou Hilda Hilst, que respondeu na cama,
na boca de outros, na poesia, na vida; respondeu vivendo,
flexionando o infinitivo, presenteando o verbo, dizendo sim.
O que é o desejo?
Passa o dedo e lambe: não é o que, mas que gosto.
MÁRCIO
JULIANA
ABAETÊ
um dia
ela me disse
“hola, spleen”
e eu demorei mas depois
percebi que era uma
frase sobre
o tempo.
talvez
um jeito de dar
as boas-vindas,
mas a gente nunca sabe
o que vem depois.
um dia quis ler em voz alta
um poema chamado
“hola, spleen”,
mas quando chegou a hora
fiquei muito muito gripada,
e o que foi pior
o que me impediu de ler
foi que fiquei
sem voz.
se tivesse gravado
o poema antes,
podia ligar a voz
e tocar em vez de ler,
mas eu não tinha
uma voz gravada
e não havia como produzir
voz.
então, combinei
que faria a leitura outro dia
e ainda faltava um mês
para chegar a leitura que vou chamar (...)
aqui de caixa-preta
e eu não tinha ideia
de como eu estaria no dia da caixa-preta
e pensei que se este mês
seguisse o ritmo acelerado
e catastrófico deste e do último ano
tanta coisa já teria
acontecido hoje,
que me dava medo
imaginar.
BÁRBARA
assim,
esta voz que fala aqui
é a voz de uma marília de um mês atrás
é a minha voz falando a partir do passado,
é a minha voz,
mas sem controle.
ABAETÊ
talvez a gente pudesse fazer silêncio
e de repente neste silêncio
acontecer de ouvir algo por detrás
dos ruídos das máquinas voadoras que
cruzam o céu.
BÁRBARA
talvez não desse para ouvir as máquinas voadoras
neste dia,
foi o que pensei,
mas eu me enganei
porque hoje
desde cedo
os helicópteros estão voando.
ABAETÊ
— vocês estão ouvindo?
um som infernal
estrelas caindo do céu
em cima da cabeça
com as pontas viradas
para baixo.
o som está cada vez mais perto,
posso encostar a mão
se me viro vejo a sombra
em câmera lenta
sobre a cabeça.
BÁRBARA
imaginem que isso aqui é um quadrado
com drones volantes,
ou uma cena congelada
com o céu cheio de zepelins,
mas o som é um só:
barulho de máquinas
voadoras
pelo céu.
ABAETÊ
se a gente prestar atenção e fizer silêncio
— se a gente prestar atenção e fizer
silêncio —
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.
ABAETÊ
Vai embora.
ABAETÊ
Diz a pedra.
JULIANA
ABAETÊ
JULIANA
Sou de pedra
E forçosamente devo manter a seriedade
Vai embora.
Não tenho os músculos do riso.
ABAETÊ
Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Soube que há em ti grandes salas vazias,
nunca vistas, inutilmente belas,
surdas, sem ecos de quaisquer passos.
Admite que mesmo tu sabes pouco disso.
JULIANA
Salas grandes e vazias
mas nelas não há lugar.
Belas, talvez, mas para além do gosto
dos teus pobres sentidos.
Podes me reconhecer, nunca me conhecer.
Com toda a minha superfície me volto para ti
mas com todo o meu interior permaneço de costas.
ABAETÊ
Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Não busco em ti refúgio eterno.
Não sou infeliz.
Não sou uma sem-teto.
O meu mundo merece retorno.
Entro e saio de mãos vazias.
E para provar que de fato estive presente,
não apresentarei senão palavras,
a que ninguém dará crédito.
JULIANA
Não vais entrar.
Te falta o sentido da participação.
Nenhum sentido te substitui o sentido da participação.
Mesmo a vista aguçada até a onividência
de nada te adianta sem o sentido da participação.
Não vais entrar, mal tens ideia desse sentido,
mal tens o seu germe, a sua concepção.
ABAETÊ
Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Não posso esperar dois mil séculos
para estar sob teu teto.
JULIANA
Se não me acreditas,
fala com a folha, ela dirá o mesmo que eu.
Com a gota d´água, ela dirá o mesmo que a folha.
Por fim pergunta ao cabelo da tua própria cabeça.
O riso se expande em mim, o riso, um riso enorme,
eu que não sei rir.
ABAETÊ
Bato à porta da pedra.
Sou eu, me deixa entrar.
JULIANA
Não tenho porta.
RETRATO (Larissa)
Cecília Meireles
falta de sorte
fui me corrigir
errei
VIDA/TEMPO (Juliana)
Viviane Mosé
ABAETÊ - "claro que ele tinha razão, mas isso ainda não é
motivo"
LIMITE (Bárbara)
Sylvia Plath
IDENTIDADE (Márcio)
Graça Graúna
as narrativas
são em ciclo
morrem e vivem para que exista
a história
– o carro morreu
enquanto fazia a curva
e o morto caiu:
o sangue brilhava sob o sol
no asfalto
estava pensando sobre como somos sozinhos
tentando sustentar a ideia
da morte;
aprendendo a morrer
LARISSA
não falarei daquele amor
futuro
JULIANA
eu não serei um poeta
da alegria
tampouco da prova dos nove
MÁRCIO
não cantarei a voz mais bela
e doce
porque me calo frente às letras
que ainda não existem
para doer tanto
ABAETÊ
eu não me sentarei
como me acontecia
para escrever poemas
que se pretendem
lidos
porque hoje
eu sempre estarei
exausto de tantas vozes
sintetizadas
metálicas
e inaudíveis
hoje sempre
o mundo não faz silêncio
e num reflexo imediato
me calo
frente aos bombardeios
teus
à enxurrada terrível
de ações tão milimetricamente pensadas
e alegres
JULIANA
não serei um poeta (...)
que se levanta
ao tocar do despertador
porque me demoro
e insisto
no pensamento
- que se estende durante o dia todo –
de que não há mais nada
para ser vivido
LARISSA
não serei um poeta
que aponta a saída
porque em meu corpo
que envelhece mais rápido
que cada segundo
não há saída para a dor
BÁRBARA
eu não serei o poeta que
tu lerás
porque tudo o que for escrito
por essas mãos trêmulas
não achará lugar
em tua garganta
como na minha
hoje sempre