Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
1
que? Pra quê?
Alcides Scaglia
Licenciatura em Pedagogia
1 Educação Física: Por que? Pra quê?
SCAGLIA, Alcides José. Jogo e Educação Física: por quê? Para quê?. In: Wagner
W. Moreira ; Regina Simões. (Org.). Educação Física: intervenção e conhecimento
científico: UNIMEP, 2004.
Infelizmente essa ainda não é uma resposta simples para nossa área. Muitos
autores já se debruçaram em respondê-la anteriormente, e muitos desses com muita
propriedade e consistência teórica, como Betti, Tani, Freire, Coletivo de Autores,
Daolio, Hidebrandt, entre outros1.
Contudo, atualmente não são em tão grande o número de trabalhos que
buscam responder a questão acima colocada. Arrisco dizer que isso se deu pelo fato
de que os excelentes trabalhos produzidos em momentos anteriores, não
1 BETT, 1991; TANI, 1989; FREIRE, 1989; COLETIVO DE AUTORES, 1992; DAOLIO, 1997; e HIDELBRANT, 1986 e
2001.
Educação Física: Por que? Pra quê? 1
necessariamente se concretizaram em práticas que pudessem mudar o paradigma
da Educação Física escolar.
Dario, por exemplo, mostra por meio de suas pesquisas sistematizadas o
quanto às produções teóricas ainda não transformaram de maneira significativa as
aulas de Educação Física nas escolas2.
Mas, voltando à pergunta inicial, cuja função é ser norte para este artigo, qual
seria o objetivo de se estudar por no mínimo 12 ou13 anos Educação Física na
educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio, perfazendo um total
aproximado de 1.040 aulas?
Será que poderia dizer que o seu objetivo é desenvolver habilidades
motoras? Mas como poderia sustentar esse objetivo, se as aulas de Educação
Física duram em média 45 ou 50 minutos duas vezes por semana, e as crianças,
mesmo ironicamente contra a vontade das escolas, se movimentam em outros
ambientes por meio de outros estímulos e necessidades? As crianças necessitam
das aulas de Educação Física para completar seu desenvolvimento motor? Se
pesquisas mostram que sim, seriam apenas 100 minutos por semana suficiente?
Ou as aulas de Educação Física se justificaram pelo fato de se caracterizar
como o único momento em que seria permitido às crianças se movimentarem, nas 5
horas que passam confinadas nas escolas?
Nesse sentido, seria objetivo da Educação Física apenas recrear as crianças?
Ocupando o tempo infantil com movimentos muitas vezes descontextualizados e
dirigidos por um adulto? A nobre função de professores, impregnada de
responsabilidades pedagógicas e educativas, não seria assim reduzida a de monitor/
animador, alijado de compromissos e comprometimentos com os demais
professores especializados na formação dos educandos?
Por outro lado, será que Educação Física ainda deveria guardar e marcar o
seu lugar na escola devido sua responsabilidade de selecionar talentos para
abastecer o cenário nacional olímpico com novos atletas? Seria esse o motivo de se
ensinar apenas esportes nas aulas de Educação Física? E se fosse, por que se
ensina, prioritariamente, apenas futsal, basquete, vôlei e handebol? Já que as
condições físicas e de materiais oferecidas se resumem, impreterivelmente, a uma
2 DARIDO, 1999
2 Educação Física: Por que? Pra quê?
quadras poliesportivas e bolas para o desenvolvimento das quatro modalidades
esportivas citadas acima.
Enfim, essas são algumas inquietações pedagógicas que me assolam, e que
me motivam a escrever, em parceria com João Batista Freire, o livro Educação como
prática corporal. Todavia este artigo não tem como objetivo apenas apontar
inquietações e indagações, mas contribuir sem pretensões de esgotar, com as
discussões a respeito da Educação Física escolar, a fim de que esta possa
realmente se consolidar (não apenas teoricamente) nas searas educacionais como
uma disciplina com objetivos claros, a partir de um objetivo de estudo que interaja de
maneira sistêmica com as demais disciplinas que compõem a matriz curricular das
escolas.
Utilizo o termo cultural sistematizada que até pode ser o mais adequado, para
não descartar e demonstrar ignorância antropológica, pelo fato de ter consciência de
existência de uma rica cultura fora da escola. Não é preciso ir à escola para adquirir
cultura, mas a cultura sistematizada à qual me refiro sem sombras de dúvidas é na
escola em que ela é possibilitada.
Somente assim posso entender a importância de se estudar as equações
matemáticas, as cadeias de carbonos, as regras gramaticais, os livros de Machado
de Assis, as telas de Picasso, as bactérias, as capitais mundiais, a revolução Russa,
a conjugação do verbo to be, os dodecaedros, o futebol, o badmintom, as
brincadeiras e os brinquedos folclóricos.
Ao longo de minha não tão longa história de vida, nunca vi nenhum doutor
Educação Física: Por que? Pra quê? 5
dizer que a matemática deveria sair da escola, que aprender a fórmula Báskara seria
de vital e imediata importância para a vida e perpetuação da espécie humana. Não
me recordo ter lido nenhuma crítica a respeito da importância vital de se decorar, ou
mesmo saber, em que latitude e longitude se encontra a Indonésia.
Mas foram inúmeras as indagações e críticas que estudei relativas à
Educação Física, afirmando que esta não tem conhecimento ou conteúdo para
transmitir aos alunos, servindo apenas como um momento compensatório para a
imobilidade imperante nas matrizes curriculares.
Entretanto, é obvio demais dizer o quanto se faz necessário estudar (não
apenas jogar) futebol na escola, pois seria um conhecimento talvez muito mais
utilizado, do que as equações do 2° grau.
Ninguém sai por ai resolvendo equações do 2° grau, mesmo porque na
grande maioria das escolas não se ensina como utilizá-la no dia a dia dos alunos,
mas todos assistem a jogos de futebol, e muitos não entendem seu significado em
nossa cultura, muito menos a sua lógica tática para falar de um conhecimento
prático/vivenciável, ou sua utilização como forma de manipulação e alienação das
massas para falar de um conhecimento mais teórico.
São poucas as pessoas que visitarão um dia as quatro maiores ilhas que
compõem o Japão, ou que utilizarão conscientemente um anacoluto, uma
prosopopeia, ou uma oração subordinada adverbial, mas todos assistem e
continuarão a assistir cada vez mais, filmes americanos sobre futebol americano,
beisebol, chorando e se emocionando com as cenas. Porém não compreendendo
nada, nem a lógica do jogo, muito menos seu componente ideológico. E o que é pior,
consomem bonés com o nome dos times da liga de beisebol, criam moda com as
grandes, largas e coloridas camisas dos times de hockey, compram caros tênis,
feitos especialmente para corredores de alto nível, ou jogadores de basquete na
NBA, tudo isso sem entender o jogo suas regras e lógica tática (conhecimento
prático - ficar mais inteligente de corpo inteiro), e compreender o outro jogo -
alienação, consumismo, cultura americana, jogo de poder, especialização precoce
nos esportes, lavagem de dinheiro, exploração de trabalho escravo e infantil nos
países do terceiro mundo, que produzem os tênis caros comprados nos shoppings, a
tecnologia utilizada para produzir as roupas e os equipamentos de alto performance,
6 Educação Física: Por que? Pra quê?
a indústria das bebidas energéticas, o culto ao corpo (conhecimento teórico -
ampliação dos conhecimentos relativos à nossa cultura, expressos a partir e nos
jogos).
Enfim, não quero aqui neste tópico dizer que a Educação Física é a mais
importante das disciplinas da matriz curricular, mas, sim, mostrar simplesmente, que
ela deveria ter o mesmo grau de relevância e atenção dado e distribuído às outras
disciplinas escolares, assumindo definitivamente a sua responsabilidade no
processo de formação crítica dos educandos.
Volto a frisar, parece óbvio, mas a realidade mostra exatamente o contrário.
Na maioria das escolas as aulas de Educação Física ainda se resumem ou em jogos
livres, ou então, na prática tecnicista das quatro modalidades esportivas: basquete,
vôlei, handebol e futsal.
Essa Educação Física não tem mais sentido na escola, esta Educação Física
não mais se sustenta ou se justifica. Mas, para mudar isso, é preciso mais que boa
vontade, muito mais que livros de receitas, muito mais que técnicas pedagógicas,
muito mais q novos métodos, muito mais que novas teorias. É preciso trabalho, ou
melhor, é preciso de jogo, JOGO - TRABALHADO (aliada a uma boa formação
universitária).
5 HUIZINGA, 1999
6 CAILLOIS, 1990
7 DUFLO, 1999
8 Educação Física: Por que? Pra quê?
Duflo diz que, se quisermos começar a cronologia da história do jogo,
poderíamos iniciá-la na Grécia antiga, por Heráclito, Platão ou Aristóteles, passando
pelo Império Romano, com Augusto, quando da promulgação de uma loteria pública
e dos jogos para treinamentos militares, chegando à Idade Média, momento em que
o jogo era visto como algo que permitia ao homem enganar-se a si próprio 8. Iludindo-
se pelo divertimento, o homem esquece de suas tristezas e, paradoxalmente, isso se
converte na maior de suas desgraças, pois, ao diverti-lo, impede-o de sonhar e visar
além. Seu tempo livre é ocupado pela distração advinda do jogo. Porém, todo
divertimento e alegria é avesso à condição eterna de luto imposto pela ideologia
cristã medieval, desse modo o jogo não era muito bem-visto aos olhos da igreja, na
idade média.
Contudo, irônica e paradoxalmente ao pensamento da igreja, é São Tomás de
Aquino que primeiro vislumbra qualidades no jogo.
8 DUFLO, 1999
9 Ibid p. 25
Educação Física: Por que? Pra quê? 9
O jogo não é mais considerado como uma atividade menor e para os
menores que não mereceria a atenção do homem de bom senso. Ao
contrário, o jogo deve ser estudado, porque oferece um espaço
privilegiado no qual se exerce a inteligência humana, por duas
razões diferentes e complementares. Por outro lado e, sobretudo, no
jogo, o espírito se exerce livremente, sem o constrangimento da
necessidade e do real, oferece condições puras de exercícios de
engenhosidade. (DUFLO, 1993. p. 25)
Que ela se ocupe ou se distraia, ambos são iguais para ela; seus
jogos são suas ocupações, ela não sente diferença entre eles. Ela
coloca em tudo o que faz um interesse que faz rir e uma liberdade
que agrada, mostrando ao mesmo tempo a habilidade de sua mente
e a esfera de seus conhecimentos. Não é o espetáculo dessa idade
um espetáculo charmoso o doce, ver uma linda criança olhar vivo e
alegre, ar contente e sereno, fisionomia aberta e risonha, fazer
brincando, as coisas mais sérias, ou profundamente ocupada com os
mais frívolos divertimentos? (ROUSSEAU, 1974. p. 207)
12 DUFLO, 1999. p. 57
10 Educação Física: Por que? Pra quê?
qualidades outras que o simples divertimento. Para Kant os jogos das crianças, por
exemplo, representam um insubstituível lugar de uma autoaprendizagem por si
mesma, ou seja:
Portanto, a partir desse resgate histórico posso pensar nesse embate entre o
jogo livre e o jogo funcional na Educação Física, vislumbrando a perspectiva de
construção de uma abordagem que valorize o trabalho (função educativa) e o jogo
(função lúdica).
1.4 – Embate entre jogo livre e jogo funcional para a construção do jogo-
trabalho
18 CHILLER, 1995. p. 84
14 Educação Física: Por que? Pra quê?
(1995. P. 84) Essa célebre frase escrita por Schiller vai dizer então que o homem só
é verdadeiramente homem quando joga, devido ao fato do autor encontrar no jogo o
que ele denomina impulso de jogo (ou impulso lúdico).
Esse impulso é na verdade um vetor de equilíbrio entre o impulso formal
(racional) e o impulso sensível (natural), sem a existência do jogo haveria
desequilíbrio entre os outros dois impulsos, gerando ou um ser selvagem, bárbaro e
passional (se o sensível domina) ou um ser frio, racional e calculista (se o domínio é
da razão), logo segundo o filósofo estético, nos dois exemplos, não se tem o homem
na plena acepção da palavra, pois lhe escapa o estético gerado pelo jogo.
Mas é nos estudos de Celestin Freinet que encontrei com mais detalhes uma
crítica interessante contundente sobre o uso indiscriminado do jogo 19, principalmente
pelos escolanovistas, que me permitiam vislumbrar esse equilíbrio de maneira mais
didática, possibilitando-me pensar uma intervenção pedagógica que atendessem as
necessidades mais prementes da Educação Física, ou seja, oportunizando a
idealização da abordagem do jogo-trabalhado, sem descaracterizar o jogo,
evidenciando suas qualidades complexas/sistêmicas, as quais permitem atingir
plenamente os objetivos básicos propostos para a disciplina Educação Física:
ampliar os conhecimentos relativos a nossa cultura (expressa no momento em que o
homem joga, e jogando produz e reproduz cultura) e possibilitar que os alunos saiam
das aulas mais inteligentes de corpo inteiro.
Enfim, o aluno não deve ir à escola apensa para jogar, ou aprender a brincar,
muito menos ser iludido com o jogo placebo, sendo induzido a aprender algo de
forma descontextualizada. Mas, sim necessita ir para escola trabalhar e viver
plenamente o jogo. Aprendendo com e pelo jogo; jogando com seus desejos e
vontades desencadeados por situações contextualizadas.
20 Ibid
Educação Física: Por que? Pra quê? 15
opor ao jogo livre e funcional, chamando-os de jogos de lucro e jogos-haxixes, bem
como às pedagogias que dele se utilizam, dizendo, num apanhado de ideias, no seu
livro Educação do Trabalho:
para deixar bem claro que é os dois ao mesmo tempo, que atendem
às múltiplas exigências que nos fazem comumente suportar um e
procurar outro. Certamente não é uma atividade impossível, já que
se realiza espontaneamente em certos meios, em certas
circunstâncias. Compete a nós generalizá-la e estender seus
benefícios a nosso trabalho escolar. (1998. p. 204)
22 Ibid
Educação Física: Por que? Pra quê? 19
1.7 – O jogo-trabalho e sua aplicação na prática educativa
REFERÊNCIAS
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo:
perspectiva, 1999.
LEIF & BRUNELLE. O jogo pelo jogo. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.