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SÍNODO DA
AMAZÔNIA
3
A Igreja na
multiplicidade amazônica
Entrevista com
Márcia Maria de Oliveira
Osnilda Lima
15
O Sínodo da Amazônia:
grito à consciência,
memória da missão,
opção pela vida
Roque Paloschi
23
Uma Igreja
com rosto amazônico
Reuberson Ferreira
35 A santidade no mundo
de hoje: das distorções ao
43 Roteiros Homiléticos
Rita Gomes
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A Igreja na
multiplicidade
amazônica
Entrevista com
Márcia Maria de Oliveira*
Por Osnilda Lima**
3
E a Amazônia em seu silêncio, bívoros – que comem vegetação – ingerem
além-fronteiras? esses alimentos, acabam liberando nova-
Márcia Oliveira – A Amazônia é quase mí- mente no ar o carbono que tinha sido ab-
tica: um verde e vasto mundo de águas e sorvido pelas plantas. Outras parcelas do
florestas, onde as copas de árvores imensas carbono são utilizadas na decomposição
escondem o úmido nascimento, reprodu- dos seres vivos quando morrem. As quei-
ção e morte de mais de um terço das espé- madas e a utilização de combustíveis fósseis
cies que vivem sobre a Terra. Estima-se que também liberam novamente o gás carbôni-
lá crescem em torno de 2.500 espécies de co na atmosfera. Ambas causam desequilí-
árvores – ou um terço de toda brio no ambiente e contribuem
a madeira tropical do mundo “Os danos para o aquecimento global.
– e 30 mil espécies de plantas causados As estimativas situam a
– das 100 mil da América do região como a maior reserva
Sul. É o que se chama de re- pela ação de madeira tropical do mun-
gião megadiversa. humana do. Seus recursos naturais,
As espécies animais são são muitas além da madeira, incluem
contabilizadas em 4.221, mas vezes enormes estoques de borra-
se sabe que grande parte delas cha, castanha, peixe e miné-
irreversíveis”
ainda não foi descrita. A bacia rios, representando abundan-
amazônica é a maior bacia hi- te fonte de riqueza natural.
drográfica do mundo: cobre cerca de 6
milhões de quilômetros quadrados e pos- Há generosa sociobiodiversidade,
sui 1.100 afluentes. Seu principal rio, o mas qualquer interferência pode
Amazonas, atravessa a região para desa- fragilizar, não?
guar no oceano Atlântico, lançando ao Márcia Oliveira – Toda essa grandeza não
mar cerca de 175 milhões de litros d’água esconde a fragilidade do ecossistema local.
a cada segundo. Existe ainda um Amazo- A floresta vive de seu próprio material orgâ-
nas debaixo do chão, o aquífero Alter do nico, e seu delicado equilíbrio é extrema-
Chão – no noroeste do estado do Pará –, mente sensível a quaisquer interferências.
tão imenso quanto o rio de superfície. A Os danos causados pela ação humana são
evapotranspiração da floresta produz o muitas vezes irreversíveis.2
chamado rio aéreo, que leva água em for- Tão diversa em biodiversidade, relativa-
ma de vapor pela região Centro-Oeste, Sul mente à sua fauna e flora, também é diversa
e Sudeste do Brasil, transcendendo as em sociodiversidade – uma de suas princi-
fronteiras e indo até a Argentina.1 pais riquezas. A região abriga complexa di-
Além do ciclo das águas, o bioma tem versidade cultural, incluindo o conheci-
fundamental importância para o ciclo do mento tradicional sobre os usos e a forma
carbono. O ciclo do carbono começa pela de explorar esses recursos naturais sem es-
absorção do gás carbônico do ar principal- gotá-los nem destruir o hábitat natural,
nº- 327
mente pelas plantas, quando realizam a fo- numa relação de interdependência e convi-
tossíntese. Depois, quando os animais her- vência recíprocas. Os diversos povos que
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ano 60
•
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MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Amazônia. Disponível 2
OECO. O que é o bioma Amazônia. Portal de meio ambiente
Vida Pastoral
4
ocupam os campos e as cidades da Amazô- nais, consideradas como entrave e empeci-
nia sofrem drasticamente com os contrastes lho ao desenvolvimento e ao progresso capi-
sociais e econômicos ali presentes. Enquan- talista na região. Em todos os países, as po-
to alguns grupos políticos e econômicos pulações locais sofrem as mais diversas for-
centralizam as riquezas produzidas na re- mas de pressão para abrir caminho para o
gião e estendem a propriedade privada so- “desenvolvimento e o progresso”, vindos de
bre boa parte de seu território, a grande fora para “redimir” a Amazônia do “atraso”,
maioria dos povos vive em situação de mi- instaurando novo processo colonial que dá
séria nas periferias das cidades. continuidade ao colonialismo europeu.
A Amazônia já sofreu um desmatamen-
to de 700 mil quilômetros quadrados. Hou- E a multiplicidade
ve uma redução nesse processo, mas não dos povos amazônicos?
seu estancamento. Existe um limite para Márcia Oliveira – A Amazônia é uma mul-
esse desmatamento e, se ele fosse ultrapas- tiplicidade de realidades muito distintas.
sado, a consequência seria a desintegração Dadas as proporções geográficas, é uma re-
simultânea de toda a floresta, o que repre- gião gigantesca ocupada por povos e cultu-
sentaria a maior tragédia ambiental do ras diferentes que apresentam modos de
mundo e um prejuízo incalculável para o vida distintos. Os povos das águas são múl-
ciclo de carbono do planeta. tiplos. Têm em comum a relação de interde-
As políticas governamentais de incenti- pendência com os recursos das águas. Habi-
vo às hidrelétricas, à mineração e ao agrone- tam as margens ou os cursos dos lagos e rios
gócio tendem a anular as iniciativas em prol da Amazônia. Ou seja, moram em palafitas
da preservação da Amazônia, priorizando a ou casas flutuantes e deixam-se governar
exploração e o saque das suas riquezas em pelo ritmo das águas. Convivem com a na-
detrimento de seus povos que vivem no tureza de modo cooperativo e interativo.
meio urbano, com todos os problemas daí Todos os dias, retiram das águas o “peixe
derivados: miséria, ausência de saneamento nosso de cada dia”, sem excessos ou desper-
básico, aglomeração nas periferias, insalu- dícios, somente o necessário para alimentar
bridade, desemprego e outras mazelas de suas famílias com o pescado oferecido gene-
uma concentração urbana desregulada. rosamente pelas águas, que ainda o produ-
zem em abundância.
Quais os riscos de uma agenda O camponês e sua família se apropriam
integracionista para a Amazônia? e se utilizam dos recursos naturais da várzea,
Márcia Oliveira – O processo do chamado tendo como pano de fundo o contínuo e cí-
desenvolvimento da Amazônia é exemplo clico movimento dos rios – enchente, cheia,
mais que claro do modo de reprodução do vazante e seca –, numa relação de respeito,
sistema colonialista que presidiu a formação por saber que “a vida comanda o rio” e “o rio
dos países da Pan-Amazônia a partir da sua comanda a vida”. Entretanto, os ribeirinhos,
colonização no século XVI. O atual desen- pescadores da Amazônia, também conheci-
nº- 327
volvimento econômico ainda se pauta pela dos como camponeses das várzeas, sofrem
agenda do integracionismo, que ignora a com a presença dos pescadores comerciais,
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ano 60
uma infinidade de comunidades tradicio- terra firme, nas suas mais diversificadas
5
categorias – seringueiros, indígenas e qui- tados em todo o território amazônico, que
lombolas –, extrativistas e coletores por promovem a derrubada constante das flo-
excelência, sobrevivem do que a terra e a restas e a contaminação dos rios, lagos e
floresta lhes dão generosamente. São agri- igarapés, comprometendo a sobrevivência
cultores familiares, cultivam pequenas dos povos que dependem do extrativismo
porções de terra com técnicas tradicionais animal e vegetal.
ancestrais, classificadas como agroecolo-
gia familiar por corresponderem a um Quais são as maiores chagas
modo de vida de inter-relação e interde- que avançam Amazônia adentro?
pendência com a terra e a na- Márcia Oliveira – Embora ela
tureza. Esses povos cuidam “Na trilha seja uma das maiores reservas
da terra, e a terra cuida deles das migrações, de água potável do mundo,
na mesma proporção. São os cresce na um dos principais problemas
guardiões da floresta e de seus Amazônia da Amazônia é o abastecimen-
recursos. Dela retiram a casta- to de água. Os garimpos clan-
nha para sustento da família e ‘uma das mais destinos, as hidroelétricas, as
para dinamizar a economia perversas formas petroleiras e as mineradoras
com a venda do excedente; de violação transnacionais estão por toda
coletam o açaí e, alimentada a aos direitos parte, promovendo a conta-
família, vendem o pouco que minação das águas e do solo
humanos’,
sobra para comprar o caderno em proporções irreparáveis.3
e o uniforme escolar dos o tráfico de Da mesma forma, o desmata-
“curumins” (crianças), com- pessoas” mento também compromete
pletar algum item da alimen- os mananciais de água potável
tação e atender a outras necessidades bá- em toda a Pan-Amazônia. Justificado, na
sicas. Todos os alimentos coletados nos grande maioria dos casos, pelo avanço da
rios e nas florestas são saudáveis e livres fronteira agropecuária com grande predo-
de veneno. minância da criação de gado de corte, o
desmatamento abrange boa parte dos es-
Sendo a Amazônia tão tados da Pan-Amazônia, que são os princi-
abundante, quais dinâmicas pais responsáveis pela expansão pecuária
provocam a pobreza de seu povo? no Brasil e na Bolívia.
Márcia Oliveira – A pobreza produzida ao É inegável a contribuição econômica
longo da história por uma relação de subor- da produção de gado leiteiro e de corte.
dinação, de violência política e institucional, Entretanto, o que se questiona são a ex-
de exploração, em sua maioria de origem pansão dessa atividade econômica, que
externa, representa uma ferida profunda nos avança dia a dia sobre a floresta, e os im-
corpos dos diversos povos de toda a Amazô-
nia. Num modelo de desenvolvimento que
nº- 327
não respeita os direitos e a dignidade dos venezuelana, com a intensa mineração irregular mobili-
povos amazônidas, a acumulação da riqueza zando toda uma economia garimpeira que vem devastan-
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ano 60
pelos grandes projetos econômicos assen- da fome e da miséria instaladas por toda parte.
6
pactos socioambientais desse modo de
produção. O problema consiste no mode- Antropologia
lo de produção agropecuária adotado na Ousar para reinventar
Amazônia de modo extensivo, que vem a humanidade
provocando desmatamento desnecessário
Juvenal Arduini
e tornando o setor agropecuário o princi-
pal contribuinte para as emissões de gases
de efeito estufa (GEE). O desmatamento
ilegal avança sobre as Unidades de Con-
servação e sobre as terras indígenas, dei-
xando um rastro de destruição, de confli-
tos socioambientais, de trabalho escravo e
de todo tipo de violência agrária.4
4
Dados levantados e analisados por especialistas do Insti-
tuto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia – Imazon. Vendas: (11) 3789-4000
Disponíveis em: <http://imazon.org.br/slide/agropecua- 0800-164011
•
7
para com a floresta e para como todos os nova Lei de Migrações, Lei 13.445/2017,
seres que nela habitam, os quais tornam o que orienta a elaboração de políticas pú-
homem e a mulher mais dignos de Deus e blicas migratórias e determina que a au-
da sua criação. sência delas representa grave violação aos
direitos humanos por parte dos Estados
E o movimento migratório nacionais e dos governos locais. A falta de
e imigratório na região? políticas migratórias abre precedentes
Márcia Oliveira – A partir de 2010, a para a atuação de grupos especializados
Amazônia passou a figurar entre as re- na exploração de migrantes em situação
giões com maior mobilidade vulnerável, que são submeti-
interna e internacional na “É inegável dos a condições subumanas
América Latina. As novas ro- a contribuição de trabalho, muitas vezes aná-
tas migratórias, que circulam logo ao escravo. Nesse con-
dos migrantes
no sul da América Latina e texto, as rotas do tráfico hu-
passam pela Amazônia, re- para o mano têm aumentado de for-
presentam novos desloca- desenvolvimento ma exponencial na Amazônia,
mentos, oriundos especial- da Amazônia, atingindo crianças migrantes
mente do Caribe e dos países uma vez e principalmente mulheres
transfronteiriços. A esse res- para fins de exploração sexual
peito, constata-se que as
que os comercial, nas suas mais va-
fronteiras da Amazônia são deslocamentos riadas modalidades.7
vistas pelos migrantes como a de populações
entrada para o Brasil pelas fazem circular Em uma parcela da
portas dos fundos. O estado novas bases sociedade, há
de Roraima, de maneira espe- resistências à acolhida
cial, figura nesses itinerários de produção” aos imigrantes?
migratórios como lugar de Márcia Oliveira – Sim. A
entrada de grandes contingentes migra- presença mais expressiva dos migrantes
tórios oriundos da Venezuela e como lu- nas ruas das cidades de Roraima tem
gar de passagem para países vizinhos, revelado atitudes discriminatórias rela-
notadamente Guiana Francesa, Argentina cionadas ao racismo, discriminação de
e Chile.6 classe, sexismos e xenofobia. Observa-se
Essa nova conjuntura migratória na um cotidiano de relações tensas e confli-
Amazônia favorece a atualização dos estu- tuosas direta ou indiretamente influen-
dos migratórios e da sociologia dos deslo- ciadas por discursos e iniciativas de re-
camentos humanos e destaca o papel que presentantes do poder local – político
a região passa a ocupar na conjuntura in- e econômico –, que, em oposição ao que
ternacional, num processo de adaptação à estabelecem os acordos e tratados inter-
nacionais assinados pelo Estado brasilei-
nº- 327
6
Sob o título “RR é passagem para imigrantes que que-
rem chegar à Argentina”, uma matéria jornalística afir-
•
ano 60
lhabv.com.br/noticia/RR-e-passagem-para-imigrantes- emtempo.com.br/amazonas-cidades/87498/trafico-de-
Vida Pastoral
8
ro, apregoam o fechamento da fronteira
e a retirada dos venezuelanos das regiões Bento XVI, a Igreja
centrais da capital e praticam atitudes de Católica e o “espírito
completa intolerância e xenofobia.8
da modernidade”
Uma análise da visão do papa
Na dinâmica migratória, teólogo sobre o “mundo de hoje”
a fronteira tem outro sentido?
Márcia Oliveira – É inegável que os mi- Rudy Albino de Assunção
grantes são portadores de mudanças im-
portantes no modo de vida tanto das so-
ciedades de origem quanto daquelas de
destino migratório. Eles contribuem para
ampliar a visão do espaço amazônico
para além das fronteiras brasileiras e rela-
cioná-lo com a ideia de simultaneidade
de tempos e espaços. As fronteiras dão
lugar às transformações simultâneas do
espaço regional, no qual as distâncias
culturais se estreitam ou se escancaram e
as diferenças passam por um processo de
356 págs.
8
Conflitos frequentes têm ocorrido entre brasileiros e ve- SAC: (11) 5087-3625
nezuelanos, situação que revela a omissão por parte do
Estado, conforme matéria disponível em: <https://www1. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
•
folha.uol.com.br/mundo/2018/09/imigrantes-voltam-pa- paulus.com.br
Vida Pastoral
ra-a-venezuela-apos-violencia-em-roraima.shtml>. Acesso
em: 10 set. 2018.
9
econômicas. Nesse sentido, os migrantes e Se, por um lado, a cristianização pas-
refugiados, longe de se configurarem como sava pelo projeto civilizatório colonizador,
problema social, representam avanços im- o que exigiu dos primeiros missionários
portantes para a região. uma postura arbitrária e autoritária, pro-
movendo intensa desterritorialização de
E a presença da Igreja Católica na povos inteiros destinados ao trabalho ser-
Amazônia, desde a colonização? vil, por outro, a ação missionária implica-
Márcia Oliveira – A história da presença e va também abraçar a causa ameríndia, o
missão da Igreja na Amazônia confunde-se que provocou importantes rupturas com
com a história da colonização e, ao mesmo os compromissos assumidos com as Co-
tempo, difere substancialmente dela. Con- roas ibéricas. Muitos missionários foram
funde-se porque a Igreja chega junto com expulsos, exilados ou morreram em pri-
os colonizadores das Coroas espanhola e sões como preço da desobediência.11
portuguesa, imbuídos da ânsia de riqueza e
da prática saqueadora dos recursos naturais Está em processo o Sínodo para
das colônias. Simultaneamente ao projeto a Amazônia. O que isso representa?
colonizador, porém, a Igreja estabelece um Márcia Oliveira – O Sínodo para a Ama-
projeto evangelizador que representa enor- zônia representa simultaneamente um
mes divergências quanto ao que as Coroas ponto de chegada e de partida. Ponto de
esperavam dos primeiros missionários que chegada porque reconhece a trajetória da
aportaram ao largo da bacia amazônica. presença profética da Igreja nessa região.
Tendo por base os primeiros documen- Ponto de partida porque se acredita que o
tos que registram a presença e o papel da Sínodo apontará novos caminhos e novas
Igreja na Pan-Amazônia, é possível obser- direções para a caminhada da Igreja, com
var certa desobediência dos primeiros mis- novas práticas de libertação descoloniza-
sionários em relação à prática colonialista, da, profética e missionária.
de maneira especial no que se refere à ques-
tão da escravidão indígena,9 tema bastante Como vem sendo realizada
evitado pelos intelectuais da história da a escuta dos povos da Amazônia
Amazônia. A história, nessa perspectiva, em preparação ao Sínodo?
exige da Igreja atual um “ajuste de contas” Márcia Oliveira – O processo de escuta
com o passado e, no mínimo, um pedido tem mobilizado toda a Igreja da Pan-Ama-
de perdão10 para seguir adiante. zônia, que tem encontrado também mui-
tas dificuldades para realizar as consultas
9
Os principais documentos que implicam, direta ou indire- nas bases. Os encontros em pequenos gru-
tamente, a Igreja na escravidão indígena indicam o seu
papel na regulação da escravidão: Lei de 1587; Regimento pos, comunidades e paróquias têm se
de 21/2/1603; Lei de 1611; Provisão Régia de 17/10/1653;
Alvará de 28/4/1688. 11
Atuaram nisso concretamente como missionários, mas
10
O papa Francisco já iniciou esse processo em sua visita também politicamente, denunciando a brutalidade dos con-
nº- 327
ao México em 16 de fevereiro de 2016, quando pediu per- quistadores (como foi o caso dos dominicanos Montesinos e
dão em um duro pronunciamento contra “a dor, o abuso Las Casas) ou a ganância dos “encomendeiros” e “mamelu-
e a desigualdade” sofridos pelos povos indígenas. E, mais cos” paulistas (como os jesuítas Antonio Ruiz de Montoya
•
ano 60
recentemente, quando se reuniu com os povos indígenas e Samuel Fritz). Cf. MARTINS, Maria Cristina Bohn. A Amazô-
da Pan-Amazônia no dia 19 de janeiro de 2018, em Puerto nia e seus índios no Diário de Padre Fritz. IHU On-Line, São
Maldonado, Peru, onde decidiu pelo Sínodo Especial para Leopoldo, 27 jul. 2007. Disponível em: <http://www.ihu.uni-
•
10
multiplicado por toda parte, constituindo
experiências muito bonitas e profundas. Gaudete et exsultate:
Trata-se de oportunidade ímpar para escu- sobre o chamado
tar os povos da Amazônia, seus sonhos,
desejos e anseios, e para conhecer mais
à santidade no
profundamente seus sofrimentos, lutas e mundo atual
resistências. As escutas confirmam que o Exortação apostólica do
povo sabe o que quer e como quer nossa Papa Francisco
Igreja na Amazônia. Entretanto, há muitas
dificuldades que podem comprometer o
processo de escuta. As distâncias e o difícil
acesso a muitas comunidades e grupos es-
palhados pela Amazônia representam im-
portantes barreiras no processo de escuta.
Mas é louvável o esforço que as dioceses e
prelazias estão fazendo para romper essas
barreiras e levar o Sínodo aos povos e co-
munidades mais distantes. É importante
destacar o papel do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), do Conselho Indígena
88 págs.
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participação da juventude e das mulheres.
Vida Pastoral
11
os “novos caminhos da Igreja na Amazô- a partilhar com todo o mundo, de maneira
nia”, por exemplo a construção de um especial os ensinamentos de convivência
centro de formação permanente, segundo sem destruição, numa relação de recipro-
o formato e a metodologia praticados cidade que representa a tão sonhada “eco-
pelos povos indígenas, e a criação de mi- logia integral” proposta pelo papa Francis-
nistérios específicos, como diáconos per- co na Laudato Si’ (2015). O Sínodo repre-
manentes ou “presbíteros casados”, para senta importante oportunidade para
garantir maior presença da Igreja nas co- “amazonizar” o mundo, no sentido de
munidades mais longínquas, somando es- comprovar que é possível adotar outros
forços com os missionários modos de vida diante de um
sacerdotes que acompanham “O Sínodo predominante modelo de de-
a Missão Camará. representa senvolvimento que precisa
importante ser mudado.
Há resistências nesse oportunidade O Sínodo tem a responsa-
processo sinodal? bilidade de “amazonizar” tam-
para
Márcia Oliveira – Há! O pro- bém a Igreja universal, apre-
cesso sinodal tem encontrado ‘amazonizar’ sentando os resultados do
a resistência de alguns bispos o mundo, trabalho de incidência e sensi-
e sacerdotes que não aceita- no sentido de bilização para incentivar mu-
ram muito bem algumas pro- comprovar que danças profundas em toda a
postas do Sínodo. Há realida- Igreja preocupada e compro-
des em que as lideranças lo- é possível adotar metida com uma “sobrie-
cais, com destaque para as outros modos dade feliz” testemunhada pe-
pastorais sociais e para as/os de vida” los povos da Amazônia.
religiosas/os das congregações
locais, têm assumido a frente dos traba- Para você, o que o processo sinodal
lhos de escuta nas comunidades para ga- já vem evidenciando?
rantir maior participação nas assembleias Márcia Oliveira – Sinto que o processo
territoriais e fazer que “as vozes dos povos sinodal tem comprovado que precisamos
da Amazônia” sejam ouvidas e enviadas de uma Igreja mais despojada e itineran-
para as equipes de sistematização do pro- te, capaz de acompanhar os povos nas
cesso sinodal. mais diversas realidades e contextos, pro-
pondo uma teologia capaz de comparti-
É possível projetar o que o Sínodo lhar a experiência de um Deus encarnado
poderá trazer de novo à Igreja? nesta realidade12 de convivência, intera-
Márcia Oliveira – O “processo sinodal” ção, interdependência e interligação com
representa um tempo de graça para a Igre- o cosmo e com a natureza.13 Uma teolo-
ja na Amazônia. Dependendo de seus re- gia alicerçada nas múltiplas espiritualida-
sultados, poderá orientar a experiência si- des das florestas e das cidades da Amazô-
nº- 327
temos a grande oportunidade de compar- A Igreja arma sua tenda na Amazônia: 25 anos do encontro
tilhar com toda a Igreja universal e com pastoral de Santarém. Manaus: Universidade do Amazo-
nas, 2000.
•
inculturado em uma região que tem muito ba: UCB/Guadalupe/Verbo Divino, 2000.
12
nia, com especial atenção para os povos
indígenas, que representam “o mais im- Narrativas místicas
portante lugar teológico, onde podemos Antologia de textos místicos
da história do cristianismo
ouvir a voz de Deus em sua plenitude e
atualidade e descobrir os caminhos do Maria Clara Bingemer e
seguimento efetivo de Jesus”.14 Marcus Reis Pinheiro (orgs.)
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Vida Pastoral
14
PERANI, Cláudio. Espiritualidade amazônica. Revista
Convergência Brasília, n. 406, p. 471, out. 2007.
13
ecossistema do qual dependem e pela falta centralização, o que gera maior participa-
de proteção de direitos humanos funda- ção e compromisso com a causa da vida e
mentais. Isso ocorre quando, por exem- da libertação. Joênia Wapichana é exem-
plo, o desmatamento avança sem controle plo disso. Foi a primeira mulher indígena
ou quando projetos de mineração e de eleita deputada federal no país, com 8.491
agricultura intensiva são iniciados sem votos, dos quais, seguramente, boa parte
consultar, muito menos envolver, as po- veio dos “parentes étnicos” dos diversos
pulações locais da Amazônia, no respeito povos indígenas de Roraima.
à sua dignidade. A tomada de posição da Reconhecer o papel das mulheres na
Igreja em favor dos povos da Igreja da Amazônia é fazer
Amazônia confere à Igreja “A tomada justiça a todas aquelas que
universal o reconhecimento de posição da morreram em defesa dos di-
de sua presença profética e de reitos e da vida dos povos
seu compromisso com a liber- Igreja em favor dessa região, com especial
tação. Isso é ser Igreja com dos povos destaque para a irmã Doro-
“rosto amazônico”. da Amazônia thy Stang, covardemente as-
confere à sassinada em Anapu, no
A presença da mulher Pará, em 12 de fevereiro de
Igreja o
na Igreja e na sociedade 2005, e para a irmã Cleusa
amazônica, como se reconhecimento Coelho, mártir da justiça e
caracteriza? de sua presença da paz dos povos indígenas,
Márcia Oliveira – É impossí- profética e de assassinada no dia 28 de
vel falar da Igreja na Amazô- seu compromisso abril de 1985 na Prelazia de
nia sem falar da presença e Lábrea, no Amazonas.
com a libertação”
do papel das mulheres à Penso que o Sínodo acena
frente dos grupos organiza- para o reconhecimento de
dos, das comunidades e pastorais. Tam- nosso papel na Igreja e na sociedade.
bém não é possível falar de política e Prova disso é a minha participação na
movimentos sociais na Amazônia sem Comissão de “Experts”, convidada pelo
considerar a atuação das mulheres. Vaticano, por meio da Secretaria do Síno-
Elas estão à frente da organização e do, para contribuir com as reflexões pré-
animação das comunidades, das organiza- -sinodais e elaborar o Documento Prepa-
ções sociais, da educação, da saúde. Seu ratório, que tem como finalidade condu-
papel está relacionado com a herança étni- zir os trabalhos da escuta sinodal. Ser a
ca dos diversos povos ameríndios que se única mulher leiga na equipe provoca
organizam com base na orientação das certa “estranheza” num ambiente em que
mulheres em estreita relação com o sagra- a presença masculina é predominante.
do. Para a maioria das etnias, as mulheres Entretanto, o fato de compor a equipe
são portadoras da experiência do sagrado, significa certa abertura da Igreja à partici-
nº- 327
são pontes entre o humano e o transcen- pação ativa e efetiva das mulheres. Vejo
dente. São portadoras das diversas espiri- nisso um sinal de mudanças mais pro-
•
ano 60
tualidades e por isso desenvolvem papel fundas na Igreja, no sentido de uma aber-
importante também na vida política dos tura para o diálogo com as mulheres e
•
14
O Sínodo
da Amazônia:
grito à consciência,
memória da missão, opção pela vida
Roque Paloschi*
15
“assunção/redenção”), Santo Domingo as causas a ponto de acusar os “bombei-
(1992; “inculturação”) e Aparecida (2007; ros” da Amazônia de “incendiários”: “A
“Missão”). Com suas respectivas conclu- verdade é”, disse o papa, “que vós [...] sois
sões, essas Conferências do Episcopado um grito lançado à consciência de um es-
Latino-Americano e do Caribe forneceram tilo de vida que não consegue medir os
uma “cesta básica” para a prática pastoral custos do mesmo. Vós sois memória viva
e para a reflexão teológica. da missão que Deus nos confiou a todos:
Hoje, essa caminhada latino-ameri- cuidar da Casa Comum”. Ele deixa claro,
cana e caribenha é assumida e enrique- também, que, ao defender seus territó-
cida pelo carisma do papa rios, os povos da Amazônia
Francisco, que à “conversão “O Sínodo são uma “opção primordial
pastoral” (EG 25; 27; 32) in- para a pela vida dos mais indefe-
tegrou a “conversão ecológi- Amazônia sos”, porque “a defesa da ter-
ca” (LS 216ss) e deslocou o se insere ra não tem outra finalidade
centro da Igreja para as peri- senão a defesa da vida”
ferias do mundo, visando a no processo (FRANCISCO, 2018).
uma realidade social sem pe- pós-conciliar Com essas três qualifica-
riferia. As duas conversões em defesa ções e tarefas dos povos origi-
têm somente um foco: a par- da vida, nários, o papa Francisco cir-
tilha equitativa da vida entre cunscreveu também as três
que na América
tudo que foi criado e que é tarefas do Sínodo para a Ama-
dom de Deus. Latina começou zônia. Esse Sínodo haverá de
Em seu Encontro com os com Medellín” se manifestar como escuta,
Povos da Amazônia no dia 19 memória e opção:
de janeiro de 2018, em Puerto Maldona- a) como escuta do “grito à consciên-
do, no Peru, o papa Francisco lembrou cia”, porque “dificilmente se saberá escu-
que setores dominantes em nossas socie- tar os gritos da própria natureza” (LS 117);
dades e até governos nacionais e estran- b) como “memória da missão”, que, ao
geiros tratam a Amazônia como “despensa lembrar-se de seu passado e de suas amar-
inesgotável” e consideram os povos origi- ras coloniais, hoje assume árduo processo
nários um obstáculo para o desenvolvi- de descolonização. Em sentido amplo, o
mento da região. Na realidade, as culturas Sínodo foi convocado para localizar e con-
da Amazônia são sinais de vida, “além de tinuar a “viragem descolonial” que come-
constituir uma reserva da biodiversidade çou com o Vaticano II. Descolonizar a
[...], que deve ser preservada face aos no- Amazônia permitirá amparar sua biodi-
vos colonialismos” – ávidos por disputar versidade para o bem de toda a humani-
cada palmo do território amazônico com dade e para construir uma Igreja com
os habitantes originários. “A nova ideolo- “rosto amazônico”;
gia extrativa e a forte pressão de grandes c) como ação e “opção primordial pela
nº- 327
interesses econômicos cuja avidez se cen- vida dos mais indefesos”, que são os povos
tra no petróleo, gás, madeira, ouro e mo- indígenas. A esse respeito, o papa admite
•
ano 60
tou essa discriminação do território ama- çados nos seus territórios como estão ago-
Vida Pastoral
16
1. Escutar o grito à consciência
O Sínodo sobre a Amazônia, que Mercado versus
praticamente começou em Puerto Mal- direitos humanos
donado, na hora do encontro do papa
Francisco com os povos amazônidas, re- Franz J. Hinkelammert
presenta a continuação prática da Carta
Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da
Casa Comum. “Quis vir visitar-vos e es-
cutar-vos”, disse o papa naquela ocasião,
“para [...] solidarizarmo-nos com os
vossos desafios”. E seu escutar não foi
em vão.
Na Mensagem Final de um seminário
recentemente convocado pelo Conselho
Episcopal Latino-Americano (Celam) e
realizado de 5 a 9 de novembro de 2018
em Bogotá, na Colômbia, bispos e secretá-
rios das Comissões Episcopais sobre a pas-
toral entre os povos originários repercuti-
240 págs.
V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
•
1
Cf. <http://www.celam.org/Images/img_noticias/doc15bf paulus.com.br
Vida Pastoral
17
A escuta é exigência da sinodalidade, midade. “Confiamos que a Igreja, enraiza-
da solidariedade, da convivência e da ca- da em suas dimensões sinodal e missioná-
minhada comunitária. A sinodalidade vai ria, possa gerar processos de escuta (ver,
um passo além da colegialidade, que se escutar) e processos de discernimento
entende, na Igreja Católica, como consen- (julgar) capazes de responder (agir) às rea-
so doutrinal e vivencial entre os bispos – lidades concretas dos povos amazônicos”
portanto, como consenso corporativo. A (DP 64). A escuta é um ato de fé e “requer,
sinodalidade aponta para o consenso de mais que nunca, um magistério eclesial
todos os batizados, que, em seu conjunto, exercido na escuta do Espírito Santo, que
configuram o Povo de Deus. garante unidade e diversida-
Isso desde o Vaticano II, que, “Precisamos de” (DP 60).
após longa discussão, definiu nos exercitar na Escutemos os povos tradi-
em sua Constituição Dogmáti- arte de escutar, cionais que, com sua visão
ca Lumen Gentium a estrutura que é mais holística do mundo, com seu
hierárquica da Igreja e o epis- amor para com a terra e sua
do que ouvir.
copado como uma função mi- relação com os ecossistemas,
nisterial não acima, mas no Escutar, na amam o Deus criador. Nas
interior do Povo de Deus. comunicação “suas próprias dores conhe-
Assim podemos entender com o outro, cem Cristo sofredor” (EG
o apelo do papa Francisco à é a capacidade 198). Em sua compreensão da
autodeterminação dos habi- vida social como diálogo, es-
tantes da região amazônica: “É do coração que tão inspirados pelo Espírito
bom que agora sejais vós pró- torna possível a Santo. A evangelização exige
prios a autodefinir-vos e a proximidade” escuta recíproca: “É necessário
mostrar-nos a vossa identida- que todos nos deixemos
de. Precisamos vos escutar” (FRANCIS- evangelizar por eles” (EG 198) e “por suas
CO, 2018). Escutar a nova leitura históri- culturas”, que são “culturas do encontro”
ca do seu passado e a explicação antropo- na vida cotidiana, em “harmonia plurifor-
lógica de sua visão de mundo, de seus me” (EG 220) e “sobriedade feliz” (LS
costumes e de suas tradições milenares. 224s). E o papa pede, para essa evangeli-
“Precisamos nos exercitar na arte de zação, a ajuda dos povos aborígenes: “Aju-
escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, dai os vossos bispos, ajudai os vossos mis-
na comunicação com o outro, é a capaci- sionários e as vossas missionárias a faze-
dade do coração que torna possível a pro- rem-se um só convosco e assim, dialogan-
ximidade, sem a qual não existe um verda- do com todos, podeis plasmar uma Igreja
deiro encontro espiritual” (EG 171). Essa com rosto amazônico e uma Igreja com
proximidade é particularmente importan- rosto indígena” (FRANCISCO, 2018).
te numa região em que a distância geográ- Desde aquela memorável visita e escu-
fica serviu de pretexto para a distância ta do papa Francisco em Porto Maldona-
nº- 327
18
pré-sinodais, que reuniram duas ou mais
dioceses, vicariatos ou prelazias em cada História política de Israel
país amazônico na busca de “novos cami- Desde as origens até
Alexandre Magno
nhos” para a evangelização daquela região,
com seus desafios específicos. As sínteses Henri Cazelles
de todas essas escutas estão sendo prepa-
radas para configurar o Documento de
Trabalho, que se espera seja publicado até
o final do mês de junho de 2019 e vai ser-
vir como subsídio aos membros do pró-
prio Sínodo em outubro.
A escuta dos desafios dos povos ama-
zônicos, tomada a sério, obriga necessa-
riamente os padres (e madres) sinodais a
assumir decisões e ações concretas. As rei-
vindicações que escutamos nas comuni-
dades amazônicas, indígenas, ribeirinhas
e das zonas urbanas, provavelmente nem
sempre estarão em conformidade com o
256 págs.
2. Memória da missão
Imagens meramente ilustrativas.
paulus.com.br
PAPA FRANCISCO, 2018), e libertação
Vida Pastoral
19
por interesses hegemônicos. Por conse- dade teológico-pastoral é um processo
guinte, a finalidade desse Sínodo será mo- permanente, e a inculturação é a tentativa
delar uma Igreja com “rosto amazônico” de uma evangelização em chave pós-colo-
(DP 5; 63; 66; 78; 81; 82; 88; 90), quer nial. A busca do Sínodo por nova proximi-
dizer, modelar uma Igreja e um mundo dade com os povos amazônicos passa por
pós-colonial libertados de todas as formas uma Igreja vulnerável e vulnerada pelas
de neocolonialismo, que destrói a biodi- cristalizações de sua longa história, mas
versidade e impede a autodeterminação. também por uma Igreja povo de Deus,
Ainda hoje existem restos do projeto co- que nunca parou de construir o Reino a
lonizador, que demoniza as partir dos pequenos, de suas
culturas indígenas (cf. DP 24) “A Amazônia culturas, linguagens e teolo-
para destruí-las e para explo- gias. A evangelização em cha-
é uma causa
rar os sujeitos dessas culturas, ve pós-colonial reconhece a
os povos indígenas. Ao Síno- universal, alteridade de todos e a auto-
do cabe “colaborar na cons- não um nomia do pobre como bens
trução de um mundo capaz caso entre do Criador e dons do Espírito
de romper com as estruturas outros” Santo. A bandeira pós-colo-
que sacrificam a vida e com as nial insere a Igreja num movi-
mentalidades de colonização mento contra-hegemônico, no
para construir redes de solidariedade e in- qual se partilham as lutas pela preserva-
terculturalidade” (DP 4). ção da vida, o empenho pela redução do
Cabe aos padres sinodais fazer res- sofrimento e a vigilância em face da alie-
plandecer o rosto amazônico na Igreja, nação imposta pelos aliciamentos do
ou seja, “aprofundar o processo de incul- mercado e da mídia.
turação” (EG 126; DP 79) e, profetica- Hoje, a Amazônia é uma causa univer-
mente, denunciar as situações de injusti- sal, não um caso entre outros. Entre causa
ça no mundo e na região (cf. DP 66). Os universal e raiz particular ou local não
povos indígenas estão em perigo de per- existe contradição, mas polaridade. As de-
der seus territórios “por novos colonialis- cisões do Sínodo têm sua origem na Igreja
mos [...] mascarados de progresso” local, mas terão relevância universal, como
(FRANCISCO, 2018). a encarnação de Jesus de Nazaré. A Igreja
Na passagem pela sua história de dois universal não é uma entidade que paira
milênios e na convivência com sistemas acima de Igrejas locais. A Igreja universal
coloniais e imperiais, democráticos e dita- se constitui na articulação das Igrejas lo-
toriais, a Igreja não conseguiu livrar-se ra- cais. O nascimento de decisões pastorais
dicalmente de suas heranças coloniais. In- num lugar específico não afeta a unidade
culturações bem-sucedidas, às vezes, fo- universal da Igreja na fé. A helenização e a
ram impostas, em outros tempos, como romanização da Igreja, nas suas origens,
“culturas normativas” a outras regiões. As podem ser consideradas opções corretas
nº- 327
rus que permite a sobrevivência de menta- mundo. Atenas e Roma não forneceram
lidades anteriormente estruturadas nem o instrumentos “providenciais” para a inter-
•
20
fica e historicamente localizáveis. No mo- com todo o povo de Deus. A participação
mento em que se impuseram como “uni- dos povos amazônicos vai além de meras
versais”, falsificaram a identidade do cris- consultas, porque o povo de Deus é dota-
tianismo em seu pluralismo pentecostal. A do com o “instinto da fé” (sensus fidei), que
viabilidade das decisões do Sínodo para a o torna infalível em seu conjunto (EG 119;
Amazônia não pode depender de sua via- cf. LG 12; DV 10; DP 61).
bilidade cultural universal. Devemos dis-
tinguir entre um pluralismo contraditório, b) A Igreja com rosto amazônico visa
que relativiza tudo, um pluralismo com- à construção de uma Igreja descoloniza-
plementar e um pluralismo pentecostal, da, inculturada e contextualizada. Com
que nem sempre precisa ser complemen- esse pano de fundo, “urge avaliar e re-
tar. O pluralismo das línguas de Pentecos- pensar os ministérios que hoje são ne-
tes, por exemplo, não é complementar. O cessários para responder aos objetivos de
ser cristão na Amazônia e o ser cristão na ‘uma Igreja com rosto amazônico e uma
África unem a fé, e não as expressões cul- Igreja com rosto indígena’” (DP 81).
turais dessa fé. Onde já se mostra esse rosto amazônico
O Sínodo para a Amazônia vai ser um e indígena é na presença e atuação de
sínodo universal da Igreja Católica, e não mulheres e homens nas comunidades e
somente um sínodo com a participação em muitas celebrações não oficiais que
dos nove países propriamente pan-amazô- poderiam inspirar a inculturação sacra-
nicos: Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, mental. A reivindicação de avanços na
Venezuela, Suriname, Guiana, Guiana admissão de viri probati ainda é a reivin-
Francesa e Brasil. O papa admite que “ca- dicação de uma Igreja clerical de meio
minhar juntos – leigos, pastores, Bispo de século atrás. Ao falarmos de uma Igreja
Roma – é um conceito fácil de exprimir indígena descolonizada, haveremos de
em palavras, mas não é assim fácil pô-lo falar de viri probati e uxores probatae,
em prática”. de homens e mulheres que marcaram,
por longos anos, sua relevância pastoral
3. Opção sinodal na Igreja.
pelos povos indígenas
Os “novos caminhos” têm pressupos- c) Os novos caminhos se mostrarão
tos amazônicos, cultural e historicamente por meio de um novo estilo de vida de
situados e marcados por três cuidados: todos os batizados. Os “novos caminhos”
- o sujeito (os povos da Amazônia, in- não são caminhos paralelos que se en-
cluindo os seus pastores); contram na eternidade, mas caminhos
- a microrregião (rosto amazônico); dialogais e interconectados. O processo
- a macrorregião (novo estilo de vida de de evangelização não pode ser separado
toda a humanidade). do zelo pelas culturas nem do cuidado
com o território e a ecologia (cf. DP 52).
nº- 327
a) O Sínodo está sendo realizado por “‘Tudo está interligado’ (LS 16; 91; 117;
bispos, mas para e com os povos amazôni- 138; 240) é a grande insistência do papa
•
ano 60
cos (cf. DP 1), cuja vida é ameaçada e Francisco para facilitar o diálogo com as
cujos territórios são disputados (cf. DP raízes espirituais das grandes tradições
•
24). No caminhar sinodal, trata-se, por- religiosas e culturais” (DP 72). Essa inter-
Vida Pastoral
21
de vida, que una todos os humanos com gem por ocasião do encerramento da 14ª
suas culturas e a natureza, com seus bos- Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bis-
ques, terras firmes e águas, na mística de pos sobre a Família, sinodalidade “segu-
uma vida em “sobriedade feliz” (LS 224s). ramente não significa que encontramos
Interligados são a mãe Terra e toda a hu- soluções exaustivas para todas as dificul-
manidade, as religiões e os sonhos que dades e dúvidas que desafiam e ameaçam”
fazem parte da polaridade sinergética da a Amazônia. O que importa é “que colo-
vida. Ela nos permite “encontrar Deus camos tais dificuldades sob a luz da fé,
em todas as coisas”, como nos ensinaram examinamo-las cuidadosamente, aborda-
os místicos mestre Eckhart e Inácio de mo-las sem medo e sem esconder a cabe-
Loyola. ça na areia” (FRANCISCO, 2015b). Quem
esconde a cabeça na areia é o avestruz. Ele
Conclusão não sabe voar. Na hora do perigo, foge ou
Vivemos um kairós, um tempo favorá- esconde a cabeça na areia. O papa Fran-
vel para ser “Igreja em saída” (EG 20ss) e cisco, certamente, tencionava nos lembrar
caminhar juntos. Em várias ocasiões, o da nossa capacidade de voar. Cada um de
papa disse aos seus interlocutores que es- nós tem a vocação de ser condor e sabiá:
pera propostas corajosas. Aplicando em condor para voar alto e atravessar os An-
outro contexto as palavras de sua mensa- des, e sabiá para cantar.
Referências bibliográficas
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(DP) do Sínodo dos Bispos para a Assembleia Especial para a Região Pan-Amazônica. Boletim
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2018.
CONFERÊNCIA EPISCOPAL LATINO-AMERICANA. Documentos do Celam: Rio de Janeiro, Medellín,
Puebla, Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2004.
FRANCISCO. Discurso do papa Francisco no Encontro com os Povos da Amazônia, 19 jan. 2018. Dis-
ponível em: <http://www.crbnacional.org.br/site/encontro-com-os-povos-da-amazonia-discurso-
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______. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus/Loyola, 2015a.
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ber/documents/papa-francesco_20151024_sinodo-conclusione-lavori.html>. Acesso em: 28 nov.
nº- 327
2018.
______. Discurso do papa Francisco por ocasião da Comemoração do cinquentenário da Instituição do
•
speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html>.
Acesso em: 28 nov. 2018.
•
Vida Pastoral
______. Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola,
2013.
22
UMA IGREJA COM
ROSTO AMAZÔNICO
Reuberson Ferreira*
23
definido como “flor espontânea de inespe- -pastoral do autor deste texto, que, por cin-
rada primavera” (João XXIII, 1963). Tal co anos, atuou na Diocese de São Gabriel
dístico – o Concílio Vaticano II – transfor- da Cachoeira, a mais extensa e indígena do
mou-se no maior evento da Igreja no sécu- Brasil, atendendo a aldeias ribeirinhas e co-
lo XX e marcou decisivamente a fisiono- laborando na formação de comunidades
mia católica. cristãs. O texto, nesse sentido, será eivado
Salvaguardando as diferenças de con- também por uma carga testemunhal e deli-
textos e proporções, pode-se alentar pro- neado segundo a perspectiva de uma posi-
fundas esperanças em relação às “esponta- ção geográfica restrita, não abrangendo,
neidades” daqueles que che- desse modo, em minúcias toda
gam ao sólio petrino. Quiçá se “As reflexões a capilaridade do universo
avizinhe uma lufada revigo- do Sínodo pan-amazônico.
rante do Espírito Santo, capaz
de marcar outra vez a tessitura especial superam 1. Uma Igreja
eclesial, mormente aquela da o âmbito com rosto amazônico
região amazônica, aportando, estritamente A alvissareira convocação
como fez o Vaticano II com a eclesial da assembleia sinodal pelo
modernidade, a Igreja de ma- papa Francisco despertou es-
amazônico,
neira mais cirúrgica no cora- peranças, promoveu alegrias.
ção dos povos e das culturas por serem O tema eleito pelo pontífice
amazônicas. Trata-se de, como relevantes para para esse Sínodo provoca
sonha o papa Francisco, bus- a Igreja e para tácita explosão de ideias,
car e apresentar “novos cami- o futuro de todo propostas e sonhos. Trata-se
nhos para a evangelização da- de oportunidade rara de levar
o planeta”
quela porção do povo de àquela seara eclesial propostas
Deus, especialmente dos indí- que incidam numa pastoral
genas” – uma categoria que frequente- encarnada, com contornos claros e
mente é esquecida e não raro tem suas preocupações que tocam a carne real da
perspectivas de futuro defraudadas inclu- Igreja amazônica. De fato, novos cami-
sive pela “crise da floresta amazônica, pul- nhos para a Igreja e para uma ecologia in-
mão de capital importância para nosso tegral no universo (pan-)amazônico cons-
planeta” (FRANCISCO, 2017). tituem um ideal simultaneamente auda-
Assim, instados pelos apelos do papa cioso e complexo; um projeto digno de
Francisco e inquietos pela busca de novos visionários da estirpe do atual pontífice,
itinerários para a evangelização daquela secundado, certamente, por bispos que
singular parcela do povo de Deus, tentare- sentem diuturnamente as vicissitudes do
mos, neste artigo, apontar caminhos (non labor evangelizador na desafiante realida-
nova, sed nove) para a ação pastoral e evan- de amazônida.
gelizadora da Igreja neste admirável “conti- Nesse sentido, é possível, sem anteci-
nº- 327
nente amazônico”. Os argumentos que sus- par-se às discussões sinodais, tentar con-
tentarão o aceno desses caminhos brota- templar, com propostas objetivas e reais,
•
ano 60
Francisco; de outro, da experiência prático- Igreja capaz de exalar o bom odor de sua
24
gente, além de, ao mesmo tempo, amalga-
mar as necessidades concretas de seu povo Quando a fé se
e ser espelho da vivacidade ritual das cul- torna social
turas autóctones.
Antonio Spadaro
1.1. Igreja amazônica: capaz
de exalar o bom odor de sua
gente, sua cultura e sua história
No processo de preparação para a as-
sembleia a ser celebrada em outubro de
2019, a visita do papa Francisco ao Peru,
mormente seu discurso a mais de 5 mil
indígenas em Porto Maldonado, tornou-se
evento inaugural dos trabalhos sinodais,
como destacou um bispo da Amazônia
(DAMIAN, 2018). Contíguo a esse encon-
tro, naquele mesmo 19 de janeiro, um sé-
quito de mais de 30 bispos, orientados
pelo presidente da Rede Pan-Amazônica,
cardeal Hummes, e pelo secretário sino-
48 págs.
paulus.com.br
seria o exalar de um bom odor dos cris-
Vida Pastoral
25
A Igreja pan-amazônica é, congenita- forçoso admitir que esse aspecto é algo
mente, plural e superlativa. Sua pluralidade relevante para toda a Igreja. Deve, portan-
externa-se em suas expressões eclesiais, to, ser um dos bons aromas exalados, des-
em sua população e em sua geografia. De de as cercanias das comunidades ribeiri-
fato, a bacia hidrográfica da Amazônia re- nhas ou aldeias indígenas, para a Igreja
presenta uma das maiores reservas de bio- católica mundo afora. Contemplando a
diversidade de água doce e possui mais de heterogeneidade da Igreja naquela porção
um terço das florestas primárias do plane- particular do povo de Deus, cabe traçar
ta. São, segundo o documento preparató- caminhos para, na Igreja Católica, respei-
rio, mais de 7,5 milhões de tar o diverso, o múltiplo e o
quilômetros quadrados, com plural e conviver com eles,
“A Amazônia
nove países que fazem parte evitando qualquer reducionis-
desse grande bioma que é a consegue mo ou unilateralidade de mo-
Amazônia (DP 1). A diversi- conviver delo eclesial e compreenden-
dade populacional é imensa. com a do que os acurados modelos
Desde ribeirinhos até citadinos, diversidade eclesiológicos são modos, por
de aldeias voluntariamente vezes culturais, de viver uma
isoladas a tribos profunda-
e a pluralidade mesma fé.
mente ajustadas à tradição cultural, Outro aspecto típico da
ocidental, são mais de 30 religiosa Igreja amazônica que pode
milhões de habitantes. Trata- e social” ser apresentado à Igreja em
-se, como é dito por pesqui- toda orbi como bom odor da-
sadores, de várias “Amazô- quela parcela do povo de
nias” alocadas numa única pátria grande Deus é a evangélica pobreza. A rigor,
chamada Amazônia. É um universo plu- constata-se a olho nu que a região pan-
ral e grandioso que abriga imensa e di- -amazônica é empobrecida. Um estudo
versa variedade de povos, línguas, cul- do Instituto do Homem e Meio Ambiente
turas e raças. da Amazônia (Imazon) aponta que são
Nesse cenário complexo, amplo e plu- drásticas as condições sociais, econômi-
ral, mesmo não de modo homogêneo e cas e ambientais nos países amazônicos.
totalmente ordenado, a Amazônia conse- Cerca de metade da população desses pa-
gue conviver com a diversidade e a plura- íses encontra-se abaixo da linha da po-
lidade cultural, religiosa e social. Assim, é breza. Associa-se a isso a mortalidade in-
Pe. Jerônimo Gasques escreveu este livro com o objetivo de ajudar a resgatar o genuíno
devocional mariano, como as rezas mais antigas, e a compreender melhor a razão de tantas
devoções que, às vezes, cultivamos sem saber por que, trazendo à lembrança dos católicos esse
aspecto devocional reforçado pela evangelização.
•
ano 60
152 páginas
26
fantil, que na Amazônia é bem maior do
que a média nacional dos países. Na Bolí- O futuro da fé
via, ela está acima do verificado nas regi-
Harvey Cox
ões mais pobres do mundo: são 73 casos
por mil nascidos vivos. Há ainda a
questão da desnutrição, que atinge um
quarto da população infantil, sendo os
indígenas os mais vulneráveis a esse pro-
blema. Ademais, pesquisas revelam que o
analfabetismo na região está acima dos
parâmetros internacionais, atingindo na
Amazônia brasileira 11%, mais que o do-
bro em relação aos 5% definidos pela Or-
ganização das Nações Unidas para a Edu-
cação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
como critério de situação crítica. Em ter-
mos eclesiais, a Pan-Amazônia, propor-
cionalmente, é a que goza de menor
quantidade de ordenados e consagrados
a serviço das diversas comunidades, tem
296 págs.
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se a certeza de uma Igreja que busca ser
Vida Pastoral
27
nenhuma voz. Assim, ciente, como sonha dical na Amazônia, deve ser uma flâmu-
e ensina o papa, de que o serviço aos po- la apresentada à Igreja universal como
bres deve ser o critério de autenticidade critério de autenticidade do seu anúncio
do evangelho (cf. EG 195), a Igreja na do evangelho.
Amazônia tem um bom odor a exalar pe-
los seus poros para a Igreja Católica no 1.2. Igreja amazônica:
mundo inteiro: o compromisso com os atenta às necessidades concretas
pobres, com uma Igreja pobre. Um com- do povo e espelho da vivacidade
promisso congênito, próprio do seu jeito ritual autóctone
de ser Igreja. Ainda delineando as fei-
Em cinco anos que vivi na “É momento ções de uma Igreja com rosto
Amazônia, fui surpreendido, amazônico, sonha-se com
porque aprendi mais que ensi- de rever uma comunidade encarnada,
nei, ganhei mais que doei. o modelo real e sintonizada com as ale-
Aquela Igreja local ofertou de ministro grias e esperanças concretas
muito mais à minha visão da ordenado e do povo alocado na Pan-Ama-
Igreja católica, universal.
esboçar um papel zônia. Trata-se de ideal ambi-
Aprendi, convivendo com ou- cioso, pois essa região é infini-
tros religiosos, o doloroso pre- mais significativo tamente diversa, plural e múl-
ço a ser pago pela fidelidade da mulher tipla. Esse fato dispensa, por
evangélica a Deus nos pobres na Igreja do um lado, qualquer projeto
e sofredores. Acompanhei, Amazonas” monolítico de identidade
não sem sofrimento, uma reli- eclesial e, por outro, enseja a
giosa italiana da Congregação busca de elementos transver-
das Filhas de Maria Auxiliadora ser subita- sais que, adaptados às diversas situações
mente retirada de sua função e enviada ao locais, permitem construir uma identida-
continente africano após ameaças de mor- de particular. Nesse sentido, apresenta-
te, por ter denunciado ao Ministério Pú- mos três elementos que podem ser catali-
blico a exploração sexual de indígenas por sadores de uma Igreja com rosto amazôni-
um cartel de empresários da cidade. co, a saber: ministérios, defesa da natureza
Aprendi, no atendimento diário de mais e incorporação de elementos culturais à
de 18 tribos sob minha responsabilidade realidade celebrativa.
pastoral, com línguas e histórias diferen-
tes, a conviver com a singeleza e a diversi- Ministérios
dade de uma Igreja simples e plural, que Uma Igreja amazônica que se faça verda-
merece atenção e respeito. deiramente encarnada na história e assuma
Em resumo, uma Igreja com rosto o rosto do seu povo deve repensar o exercí-
amazônico, antes de qualquer coisa, tem cio dos ministérios naquela região e repro-
de oferecer à Igreja Católica no mundo por novos modelos. A rigor, tem-se ciência
nº- 327
aquilo que ela é, diríamos, ontologica- de que, dos mais de 400 mil sacerdotes no
mente. Assim, por sua própria peculiari- mundo, uma das menores parcelas de mi-
•
ano 60
dade, deve ensinar à Igreja universal a nistros ordenados católicos está no conti-
capacidade de conviver com a necessária nente americano: cerca de 30%, segundo
•
28
3.849 diáconos permanentes. Existe, ainda,
irregular distribuição do clero no país. A Globalização, gênero e
maior parte está concentrada nas regiões Sul construção da paz
(25%) e Sudeste (45%), enquanto na região O futuro do diálogo interfé
Norte, justamente onde está a parte brasilei-
Kwok Pui-Lan
ra da Pan-Amazônia, há apenas 3% do clero
nacional. Esse fato implica uma parca assis-
tência às comunidades e a privação de mui-
tos fiéis do acesso à Eucaristia dominical.
A lamentável situação eclesial à qual os
povos ribeirinhos e comunidades da Pan-
-Amazônia estão submetidos pela falta de
clero exige, no Sínodo, uma resposta au-
daciosa. É momento de rever o modelo de
ministro ordenado e esboçar um papel
mais significativo da mulher na Igreja do
Amazonas. Não se trata de oposição ao
ministério ordenado celibatário, que é um
dom e graça para a Igreja, como afirmou
dom Erwin Kräutler (BALLOUSSIER,
96 págs.
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tudo se mitigaria a dificuldade de comu-
Vida Pastoral
29
Ecologia cionamento de mais de duas dezenas de
Outra senda de uma Igreja forjada com usinas hidrelétricas, às expensas do alaga-
traços plenamente amazônicos é a mento de áreas que deveriam ser protegi-
inegociável defesa integral da natureza. A das e do remanejamento de famílias que,
Igreja cresce à sombra da diversidade bem mais que terem uma terra, se sentem
ecológica da Amazônia, respira e transpira parte da terra que habitam. Soma-se a isso
a biodiversidade dessa região. Deve-se ter o desmatamento das florestas, que, so-
claro que a Pan-Amazônia, em todo seu mente na Amazônia Legal brasileira, se-
conjunto, responde pela metade da biodi- gundo o Imazon, chegou a mais de 4 mil
versidade mundial, goza da quilômetros no último ano.
última floresta tropical, amal- “A população Não raro esse processo tem o
gama 15% da água doce no que vive na assentimento dos próprios ha-
mundo e é a maior extensão bitantes locais, que, coopta-
região – da qual
florestal nos trópicos. A popu- dos por industriais e sob o en-
lação que vive na região – da fazem parte godo do discurso de bem-es-
qual fazem parte muitos cris- muitos cristãos –, tar social, acampam as ideias
tãos –, além de habitar o lugar, além de habitar o subjacentes à prática explora-
tem uma relação umbilical lugar, tem tória e as promovem entre
inextrincável com a terra, os seus pares. Em face de tão
rios, as matas e as florestas. A
uma relação complexo cenário, colocar-se
cosmovisão dos viventes au- umbilical sobre o pálio de defesa da bio-
tóctones é eivada por essa re- inextrincável diversidade é questão pre-
lação quase mística com o am- com a terra, mente para a sociedade civil, e
biente que povoam. os rios, as matas mais ainda para a Igreja.
Essa relação espiritual, no Essa defesa da biodiversi-
entanto, é diuturnamente to- e as florestas” dade insere-se na clarividente
mada de assalto, achacada e certeza descrita pelo papa
vilipendiada. Em toda a Pan-Amazônia há Francisco como ecologia integral (cf. LS
reiteradas investidas de grandes conglo- 137). Ela repousa na plena convicção da
merados industriais para explorar suas ri- inter-relação entre todos os organismos
quezas minerais e vegetais. Milhões de vivos, considerando o mundo todo como
quilômetros da região amazônica estão ce- uma casa comum. Essa concepção con-
didos à exploração de recursos minerais. corre para a ideia de que a crise ambien-
Só na Amazônia, até 2020, prevê-se o fun- tal não é distinta da crise social (cf. LS
Atualização litúrgica 1
Associação dos Liturgistas do Brasil
Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia, temos condições de fazer uma
reflexão mais madura sobre o sentido e a identidade da liturgia assumida pelos padres
conciliares, celebrada e vivida pelas comunidades em todo o mundo. Com esta publicação, a
•
ASLI e seus membros pretendem contribuir para uma liturgia autêntica, nobre e simples.
ano 60
224 páginas
30
137) e que somente uma visão holística
da realidade possibilitará a resolução de Origem do sofrimento
tão complexa situação. Nesse espírito, do pobre
ante a crescente devastação da Pan-Ama- Teologia e antiteologia no
livro de Jó
zônia, a crítica ao modelo de desenvolvi-
mento antropocentrista e capitalista apli-
Luiz Alexandre Solano Rossi
cado à Amazônia deve ser protagonizada
pela Igreja. Esta deve inserir, no microní-
vel, em seus planos catequéticos, uma
crítica a esse sistema de desenvolvimen-
to, que oprime e mata. De igual modo, na
formação do clero local, deveria incutir,
via ementa de cursos de formação sacer-
dotal, uma sadia teologia da criação, que
torne aguda a compreensão da inter-rela-
ção entre os sistemas naturais e sociais,
dos quais o próprio ser humano é parte,
e explicite que a destruição dessa inter-
-relação implica também a do ser huma-
152 págs.
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rituais. São ritos que as comunidades
Vida Pastoral
31
e explícita, vivenciando-os e transmitin- misso com a realidade humana (cf. CE-
do-os às gerações mais novas. Comuns LAM, Medellín, “liturgia”, n. 4). Assim, é
entre muitas tribos, em diversas aldeias e um imperativo que o Sínodo possa abrir
comunidades, são os ritos que secundam espaço, não de maneira excepcional, mas
a gravidez e o nascituro, que marcam a en- institucionalizada, para que cada vez
trada na puberdade ou na vida adulta, que mais, sobretudo no que diz respeito às
acompanham a passagem da vida para a línguas mais comuns, os livros litúrgicos
morte. São ritos que se traduzem em fes- sejam vertidos para o vernáculo. Certa-
tas, em grandes comemorações religiosas mente, com o motu proprio Magnum Prin-
e espirituais. cipium, de Francisco, está
Em comunidades amazô- “Não se sendo germinada essa ideia
nidas mais moldadas pela no que tange à tradução dos
trata apenas
mentalidade ocidentalizada, textos para as línguas usual-
os ritos são vividos de manei- de concessões, mente faladas, contudo cabe
ra velada, talvez parcimonio- mas de admissão insistir para que essa posição
sa. Nesses casos, bem mais de traços seja aplicada a todos os to-
que em cerimônias rituais, da cultura mos litúrgicos que compõem
expressam-se no modo parti- os rituais católicos.
cular de entendimento do
amazônica Ademais, cabe desvelar a
mundo e de relacionamento no universo necessidade de adaptações ri-
com ele. É uma cosmovisão celebrativo, tuais à realidade de alguns
peculiar. Constata-se que é de maneira atos litúrgicos. Não se trata
uma percepção delineada pela institucional” apenas de concessões, mas de
atitude de sacralidade com re- admissão de traços da cultura
lação à natureza, aos ances- amazônica no universo cele-
trais e ao Criador. Essa condição ritual, a brativo, de maneira institucional. Tais tra-
exemplo de todas as outras culturas, é ços seriam apresentados em cantos, na
algo superlativo na cultura amazônica. apropriação justa de ritos, como os de
Trata-se de quesito do qual não se pode apresentação de nascituros (benzimentos)
prescindir na tentativa de compreender tal ou de apresentação de dons (como o que
universo, pois compõe, de maneira em- ocorre no Dabucuri, cerimônia milenar
blemática, o complexo mosaico dos povos que ocorre na região do alto rio Negro),
da Pan-Amazônia. ou na preparação do ambiente religioso.
Diante dessa constatação, parece irre- Deve-se, contudo, livrá-los de qualquer
fragável a necessidade de localizar a litur- sincretismo, mas fundi-los no espírito da
gia católica de rito latino – predominante liturgia católica, que, a rigor, não prescin-
na região amazônica – dentro dessa ritua- de da realidade concreta dos povos; antes,
lidade e festividade intrínsecas ao univer- ao contrário, faz-se carne nelas (cf. EG
so amazônico. Não se nega que o rito la- 115; 167).
nº- 327
tino seja ritual, mas deve-se admitir que À guisa de exemplo, ao longo dos
ele advogue uma ritualidade que possa anos que vivi na região amazônica, perce-
•
ano 60
32
delas, buscava sendas para esse feliz casa-
mento entre a fé e a cultura. Em sua orde- Deus e sua criação
nação episcopal, com a mitra e o báculo, Doutrina de Deus, doutrina
recebeu o cocar e o bastão indígenas, sig- da criação
nos do poder e do serviço religioso. Esse Renold Blank
gesto, excetuando a entrega da mitra, ele
repetia quando ordenava padres autócto-
nes. De igual modo, nos ritos iniciais da
missa de posse do bispo, ao som do cari-
çu (instrumento musical ritual dos indí-
genas), foi feita uma ambientação do es-
paço, com defumação e preces em língua
nativa. Igualmente, no processo catequé-
tico, há um esforço para aproximar a
dinâmica própria do Reino de valores da
cultura indígena, normalmente muito
próximos. De modo particular, em cele-
brações com grande afluência de fiéis, eu
favorecia o canto de músicas em línguas
nativas, danças rituais e a proclamação
348 págs.
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sugestões acima expostas são elucubra-
Vida Pastoral
33
ser recepcionadas, acolhidas, avaliadas e com responsabilidade evangélica e devo-
redirecionadas até se tornarem suficiente- tado amor à Igreja, a missão de estabele-
mente capazes de embeber a catolicidade cer, em suas realidades locais, aspectos
da Igreja na cultura indígena. ligados ao culto (liturgia), ao ministério
A rigor, em termos eclesiais e na pers- (homens e mulheres) e à defesa da natu-
pectiva de uma sinodalidade profunda, reza, enquanto a Roma, como primeira
julgo que a assembleia dos bispos deste entre iguais, competiria assentir e con-
ano deixará grande legado se, verdadei- firmar. Trata-se de ideal que beira à uto-
ramente, permitir aos bispos locais a li- pia; todavia, é ela que, como diria o poe-
berdade para ousar traçar caminhos, ta uruguaio Eduardo Galeano, serve de
construir novas trilhas. Nesse espírito, estímulo no horizonte para nos fazer
caberia aos prelados da Pan-Amazônia, caminhar.
Referências bibliográficas
AMAZÔNIA: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral: Documento Preparatório
(DP) do Sínodo dos Bispos para a Assembleia Especial para a Região Pan-Amazônica. Boletim da
Sala de Imprensa da Santa Sé, Vaticano, 8 jun. 2018. Disponível em: <http://press.vatican.va/con-
tent/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/06/08/0422/00914.html#po>. Acesso em: 9 ago. 2018.
BALLOUSSIER. Anna Virginia. Padres mais velhos puxam aumento de clérigos no país. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 7 maio 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/
padres-mais-velhos-puxam-aumento-de-clerigos-no-pais.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2018.
CONFERÊNCIA EPISCOPAL LATINO-AMERICANA (CELAM). Documentos do Celam: Rio de Janeiro,
Medellín, Puebla, Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2004.
DAMIAN, Edson Tasquetto. Una Chiesa dal volto amazzonico. Settimana News, Bologna, 3 Iuglio
2018. Disponível em: <http://www.settimananews.it/chiesa/chiesa-dal-volto-amazzonico/>. Acesso
em: 10 jul. 2018.
FONSECA, A. et al. Boletim do desmatamento da Amazônia Legal (dezembro de 2017). Belém: Imazon,
2017.
FRANCISCO. Ângelus. Vaticano, 15 out. 2017. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/fran-
cesco/pt/angelus/2017/documents/papa-francesco_angelus_20171015.html>. Acesso em: 9 ago.
2018.
LOBINGER, Fritz. Padres para amanhã: proposta para comunidades sem eucaristia. São Paulo: Paulus,
2008.
Virgem Maria
Mãe em plenitude
Frei Maria-Eugênio do Menino Jesus
nº- 327
neste volume nasceram de seu olhar contemplativo e filial, revelando o essencial da Virgem
ano 60
34
A santidade
no mundo de hoje:
das distorções
ao autêntico
chamado de Deus
Lino Batista de Oliveira*
*Lino Batista de Oliveira é padre da Diocese de Apucarana, inicia seu pensamento falando sobre o
doutor em Filosofia (Ética) pela Universidade Santo Tomás chamado à santidade. Destaca o papel dos
•
35
lembra que santos não são somente os dos Concepções que não nasceram em nossos
altares, pois a santidade é uma graça con- dias, mas já são conhecidas, ganhando
cedida a todos por iniciativa de Deus. apenas nova linguagem: gnosticismo e pe-
O papa faz referência a dois inimigos lagianismo. “São duas heresias que surgi-
sutis da santidade em nosso tempo: o ram nos primeiros séculos do cristianis-
gnosticismo e o pelagianismo. O gnosti- mo, mas continuam a ser de alarmante
cismo liga-se ao conhecimento como au- atualidade. Ainda hoje os corações de
tossuficiência, isto é, à ideia de que é pelo muitos cristãos, talvez inconscientemente,
conhecimento que o ser humano deve deixam-se seduzir por estas propostas en-
buscar a sua salvação. A pessoa se resume ganadoras” (FRANCISCO, 2018, n. 35).
na imanência da sua subjetividade e dos
seus sentimentos, tornando-se autorrefe- 1.1. A distorção gnóstica
rencial. Quanto ao pelagianismo, associa- Gnósticas eram algumas correntes filo-
-se à ideia de atribuir à vontade do ser hu- sóficas que se difundiram, nos primeiros
mano a causa de sua salvação, esquecendo séculos depois de Cristo, no Oriente e no
que, antes de tudo, não há “eu me salvo”, Ocidente. O gnosticismo foi uma primeira
mas sim “Deus me salva” – afinal, a salva- tentativa de filosofia cristã, feita sem rigor
ção é de pura iniciativa divina. sistemático, com a mistura de elementos
O objetivo desta reflexão é retomar o cristãos míticos, neoplatônicos e orientais.
primeiro e segundo capítulos da exortação Em geral, para os gnósticos, o conhecimen-
papal e responder às inquietações sobre a to era condição para a salvação. Os princi-
concepção de santidade no mundo con- pais gnósticos dos quais temos notícia fo-
temporâneo, principalmente no que diz ram Basílides, Carpócrates, Valentim e Bar-
respeito ao lugar que o ser humano e Deus desane, cujas doutrinas eram conhecidas
ocupam na construção do ser santo. Qual pelas refutações feitas por Clemente de Ale-
é o papel de Deus e qual é o papel do ser xandria, Irineu e Hipólito (ABBAGNANO,
humano? É com o fito de responder a essa 2000, p. 485). O gnosticismo foi combati-
questão que se refletirá sobre as distorções do por uma série de Padres gregos e latinos,
gnóstico-pelagianas e sobre a santidade desde Santo Irineu, no século II, e seus
como um chamado de Deus. contemporâneos até Agostinho de Hipona,
na obra A verdadeira religião (389).
1. O chamado à santidade O papa, no segundo capítulo da exor-
e suas distorções tação, estigmatiza o gnosticismo como um
O papa não mede esforços ao refletir dos inimigos da santidade no mundo atual.
sobre as concepções equivocadas acerca Segundo ele, o gnosticismo é a autocele-
da santidade presentes em nosso mundo. bração de “[...] uma mente sem encarna-
Quem é Maria? Muito foi dito e escrito sobre ela. Mas será a verdadeira Maria a mesma da
•
doutrina da fé? Que motivos há para que milhares de pessoas se reúnam em seus santuários
ano 60
para orar e experimentar o consolo e a ternura de Deus por meio dela? O propósito deste livro é
resgatar a figura de Maria a partir de uma releitura dos dogmas marianos.
264 páginas
•
Vida Pastoral
36
ção, incapaz de tocar a carne sofredora de que a realidade apresenta, também as so-
Cristo nos outros, engessada numa enci- bre Deus, “[...] é possível que seja um falso
clopédia de abstrações” (FRANCISCO, profeta, que usa a religião para seu benefí-
2018, n. 37). Trata-se de vaidosa superfi- cio, a serviço das próprias lucubrações
cialidade, que pretende reduzir o ensina- psicológicas e mentais” (FRANCISCO,
mento de Jesus a uma lógica fria e dura 2018, n. 41). A consequência direta, por
que procura dominar tudo. Ao desencar- se colocar como aquele que conhece e
nar o mistério, prefere “[...] um Deus sem pode explicar Deus com lógica, é pensar
Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja que por isso já se é santo, perfeito e me-
sem povo” (FRANCISCO, 2016, n. 11). lhor do que a massa ignorante. Lembra-
Além de alertar sobre um tipo de santi- -nos o papa que São Francisco preocupa-
dade baseada numa mente sem Deus e fria, va-se com a ideia de que saber de Deus
o papa afirma ser o gnosticismo uma ideolo- significava necessariamente ser de Deus –
gia que quer convencer o ser humano de portanto, santo. Ensinou São Boaventura,
que a sua visão sobre o mundo é plena e diz-nos o pontífice, que “[...] a verdadeira
perfeita. O gnóstico, “[...] ao mesmo tempo sabedoria cristã não se deve desligar da
que exalta indevidamente o conhecimento misericórdia para com o próximo” (FRAN-
ou uma determinada experiência, considera CISCO, 2018, n. 46). Não é sendo somen-
que a sua própria visão da realidade seja a te intelectuais de Deus que seremos os
perfeição” (FRANCISCO, 2018, n. 40). Tra- seus santos. Esse é o maior equívoco do
ta-se da pessoa que, pela via do conheci- gnosticismo de ontem e de hoje.
mento, quer esgotar tudo e todos ao seu eu
pensante, aprisionando a realidade aos con- 1.2. A distorção pelagiana
ceitos. Como nos lembra Lévinas (1906- Estágio importante na história do cris-
1995), em sua filosofia da alteridade, trata- tianismo, sobretudo no tratado da teologia
-se do pensamento do idêntico, que nega a da graça, foi a controvérsia pelagiana, re-
diferença, o diferente, que quer dar ao todo solvida com o Concílio de Cartago em 418
uma única identidade, transformar toda rea- (BAUMGARTNER, 1982, p. 101-105). Pe-
lidade numa “mesmeidade”. lágio, monge de origem irlandesa, asceta e
Assim como busca a redução do real diretor espiritual em Roma, ensinava que
ao racional no que se refere ao mundo das o ser humano podia cumprir os manda-
coisas, também o pretende fazer em rela- mentos de Deus por suas próprias forças,
ção ao mundo de Deus. Com efeito, o sem que para isso tivesse necessidade de
gnosticismo, “[...] por sua natureza, quer um auxílio divino interior (AGOSTINHO,
domesticar o mistério” (FRANCISCO, 1999, p. 199-317).
2015, n. 11), tanto o do mundo como o No século V, Pelágio havia debatido
do outro e o de Deus. No entanto, “Deus com Santo Agostinho sobre esse assunto.
supera-nos infinitamente, é sempre uma Agostinho sustentava que o pecado original
surpresa, e não somos nós que determina- de Adão fora herdado por toda a humani-
nº- 327
mos a circunstância histórica em que o en- dade e que, mesmo que o homem caído
contramos, já que não dependem de nós o retenha a habilidade para buscar a Deus
•
ano 60
tempo, nem o lugar, nem a modalidade do por si mesmo, ele está escravizado ao peca-
encontro” (FRANCISCO, 2018, n. 41). do e não pode não pecar. Por sua vez, Pelá-
•
Segundo o papa, alguém que arvore gio insistia que a queda de Adão afetara
Vida Pastoral
ter as respostas para todas as perguntas apenas a Adão e que, se Deus exige das
37
pessoas que vivam vidas perfeitas, ele tam- de nos ter atraído e tornado idôneos com o
bém dá a habilidade moral para que pos- seu dom” (FRANCISCO, 2018, n. 50).
sam fazê-lo. Ademais, na concepção dos O problema daqueles que caem no pe-
pelagianos, embora Adão fosse um mau lagianismo é o esquecimento dos ensina-
exemplo para a sua descendência, suas mentos da Igreja a respeito da justificação
ações não trariam consequências para ela, e do papel da graça: “A Igreja ensinou re-
tendo Jesus o papel de dar um bom exem- petidamente que não somos justificados
plo fixo para o resto da humanidade (con- pelas nossas obras ou pelos nossos esfor-
trariando assim o mau exemplo de Adão), ços, mas pela graça do Senhor que toma a
bem como proporcionar a ex- iniciativa. Os Padres da Igreja,
piação dos seus pecados, e ten- “No pelagianismo já antes de Santo Agostinho,
do a humanidade, em suma, expressavam com clareza esta
total controle das suas ações. está presente convicção primária” (FRAN-
As sentenças pronuncia- a ideia de que CISCO, 2018, n. 52).
das pelo papa Inocêncio I tudo se pode pela Os novos pelagianos que
contra tal tese acabaram por vontade humana, têm se apresentado em nossos
classificá-la como heresia. He- dias são cristãos que insistem
como
resia que sustentava basica- em trilhar outros caminhos:
mente a ideia de que todo ser se esta fosse
humano é totalmente respon- algo puro, [...] o da justificação pelas suas
sável pela própria salvação e, perfeito, próprias forças, o da adoração
portanto, não necessita da onipotente” da vontade humana e da pró-
graça divina. Segundo os pela- pria capacidade, que se traduz
gianos, toda pessoa nasce mo- numa autocomplacência ego-
ralmente neutra, sendo capaz, por si mes- cêntrica e elitista, desprovida do verda-
ma, sem qualquer influência divina, de deiro amor. Manifesta-se em muitas ati-
salvar-se quando assim o desejar. tudes aparentemente diferentes entre
No pelagianismo está presente a ideia si: a obsessão pela lei, o fascínio de exi-
de que tudo se pode pela vontade humana, bir conquistas sociais e políticas, a os-
como se esta fosse algo puro, perfeito, oni- tentação no cuidado da liturgia, da
potente, a que se acrescenta a graça. A graça doutrina e do prestígio da Igreja, a van-
aparece como acréscimo à vontade huma- glória ligada à gestão de assuntos práti-
na. No fundo, como nos faz refletir a Gau- cos, a atração pelas dinâmicas de auto-
dete et Exsultate, “a falta dum reconheci- ajuda e realização autorreferencial
mento sincero, pesaroso e orante dos nos- (FRANCISCO, 2018, n. 57).
sos limites é que impede a graça de atuar
melhor em nós, pois não lhe deixa espaço O pelagianismo assume hoje caracterís-
para provocar aquele bem possível que se ticas modernas: o individualismo da cultura
integra num caminho sincero e real de cres- (“eu sei, eu quero, eu posso, eu consigo, eu
nº- 327
de: “Com efeito, se não reconhecemos a nos- no sucesso a todo custo; a pretensão do po-
sa realidade concreta e limitada, não podere- der e do controle da mente; o interesse pelos
•
mos ver os passos reais e possíveis que o movimentos neognósticos, como o espiritis-
Vida Pastoral
Senhor nos pede em cada momento, depois mo; o planejamento controlado; a ética civil;
38
a idolatria do mercado; o mercantilismo reli-
gioso. No campo eclesial e pastoral, fazem- Igreja
-se presentes: a moral do legalismo, do ritua- Comunhão viva
lismo e do juridicismo; expressões jansenis-
Paul Lakeland
tas de rigorismo; o carreirismo e o clericalis-
mo eclesiásticos; devocionismos de tendên-
cia mágico-fundamentalista; o apelo fácil aos
exorcismos; a satanização da vida; o apego
às tradições e leis do passado; o hiperativis-
mo; a confiança nos planos e projetos huma-
nos, que fazem crer que a Igreja é resultado
da ação humana (BINGEMER; FELLER,
2003, p. 48-56).
Para evitar isso, o papa nos lembra a
existência de uma hierarquia das virtudes.
Nessa hierarquia, a primazia pertence às
virtudes teologais, que têm Deus como
objeto e motivo. E, no centro, está a cari-
dade. Segundo o papa:
280 págs.
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cês; consagrem-se e sejam santos, porque eu
Vida Pastoral
39
qualquer animal que se move rente ao chão. é a vontade de Deus, a vossa santificação’
Eu sou o Senhor que os tirou da terra do (1Ts 4,3; cf. Ef 1,4)” (LG 39).
Egito para ser o seu Deus; por isso, sejam É na esteira da história da salvação e
santos, porque eu sou santo” (Lv 11,44-45). da Igreja que o papa Francisco reflete so-
No Novo Testamento, em 1 Pedro, recorda- bre quem é chamado à santidade nos dias
-se o chamado a ser santo porque Deus é atuais. Em sua exortação apostólica sobre
santo: “Mas, assim como é santo aquele que a santidade, no capítulo primeiro, sobre o
os chamou, sejam santos vocês também em chamado à santidade, o papa lembra o im-
tudo o que fizerem, pois está escrito: ‘Sejam portante papel dos que já chegaram aos
santos, porque eu sou santo’” altares; daqueles que, já sendo
(1Pd 1,15-16). “A raiz de santos, encorajam os que
Quando se volta para a tra- toda santidade ainda estão a caminho. São os
dição da Igreja, já no século IV que já chegaram à presença de
está em Cristo,
se verifica uma preocupação Deus e mantêm conosco laços
teológica em estabelecer o real pois a missão do de amor e comunhão (FRAN-
lugar dos santos e santas de santo e da santa CISCO, 2018, n. 4).
Deus. Teólogos como Santo de Deus A santidade não se esgota
Agostinho rejeitam a ideia de os é a missão naqueles que já foram beatifica-
santos poderem ser vistos como dos e canonizados, pois o Espí-
sucessores dos deuses ou como de Cristo” rito Santo de Deus sopra sem
deuses independentes: cessar e para todos os lados,
derramando a graça da santidade. Sem bar-
Eles [mártires] não são deuses: o Deus reiras, o Espírito vai suscitando os santos e
deles é o nosso Deus. É certo que vene- santas de hoje, que se encontram, segundo o
ramos as suas “memórias” como santos papa, não necessariamente em pessoas que
homens de Deus, que até a morte com- vivem longe, mas naquelas que estão perto e
bateram pela verdade para fazerem co- são um reflexo da presença de Deus. Muitos
nhecer a verdadeira religião, provando a são santos, e o são perto de nós, vivendo,
falsidade, a mentira do paganismo trabalhando e partilhando a vida.
(AGOSTINHO, 1991, p. 788). A santidade é um chamado do Senhor
feito a cada um de maneira particular.
Decorre do pensamento de Santo Muitos são os caminhos através dos quais
Agostinho a definição de quem são os san- somos convidados a vivê-la. “Todos esta-
tos e de qual o papel e a importância deles mos chamados a ser testemunhas, mas há
no serviço da Igreja. muitas formas existenciais de testemu-
É tratando os santos não como deuses, nho” (LG 11). Lembra-nos o papa:
mas reservando-lhes um lugar bem defini-
do na história da humanidade, que o Ma- [...] uma pessoa não deve desanimar,
gistério eclesiástico afirma ser a santida- quando contempla modelos de santida-
nº- 327
de uma vocação universal dos batizados, de que lhe parecem inatingíveis. Há tes-
conforme nos fala o Concílio Vaticano II, temunhos que são úteis para nos esti-
•
ano 60
ao versar sobre a Igreja: “Todos na Igreja, mular e motivar, mas não para procu-
quer pertençam à hierarquia quer por ela rarmos copiá-los, porque isso poderia
•
sejam pastoreados, são chamados à santi- até afastar-nos do caminho, único e es-
Vida Pastoral
dade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta pecífico, que o Senhor predispôs para
40
nós. Importante é que cada crente dis-
cirna o seu próprio caminho e traga à A religião na sociedade
luz o melhor de si mesmo [...] (FRAN- urbana e pluralista
CISCO, 2018, n. 11).
Manfredo Araújo de Oliveira
paulus.com.br
são do mundo, mas nele estão para a san-
Vida Pastoral
41
sucessor de Pedro: “Cada cristão, quanto somos chamados a deixar transparecer
mais se santifica, tanto mais fecundo se torna no dia a dia da nossa vida.
para o mundo” (FRANCISCO, 2018, n. 33).
O rosto do Mestre, que devemos deixar
Conclusão transparecer no dia a dia da vida para alcan-
A santidade que o papa propõe vai na çar a santidade, passa pelo comportamento.
contracorrente do intimismo gnosiológico Para ser santo, há uma regra de comporta-
e pelagiano. Segundo Francisco (2018, n. mento, como lembra o evangelho: “Tive fome
63), ela parte de Jesus, que e destes-me de comer, tive sede e destes-me
de beber, era peregrino e recolhestes-me, es-
[...] explicou, com toda a simplicida- tava nu e destes-me que vestir, adoeci e visi-
de, o que é ser santo; fê-lo quando tastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo”
nos deixou as bem-aventuranças (Mt 25,35-36; cf. FRANCISCO, 2018, n. 95).
(cf. Mt 5,3-12; Lc 6,20-23). Estas são Ser santo não significa revirar os olhos
como que o bilhete de identidade do num suposto êxtase. Se partimos da con-
cristão. Assim, se um de nós se ques- templação de Cristo, devemos saber vê-lo
tionar sobre “como fazer para chegar a sobretudo no rosto daqueles com quem ele
ser um bom cristão”, a resposta é sim- mesmo se quis identificar. Reconhecer Cris-
ples: é necessário fazer – cada qual a to nos pobres e atribulados revela-se o pró-
seu modo – aquilo que Jesus disse no prio coração de Cristo, os seus sentimentos e
sermão das bem-aventuranças. Nelas as suas opções mais profundas, aos quais se
está delineado o rosto do Mestre, que procura conformar todo santo.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2000.
AGOSTINHO. A graça de Cristo e o pecado original. São Paulo: Paulus, 1999. (Patrística, 12).
______. Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. v. 1.
BAUMGARTNER, Ch. La gracia de Cristo. Barcelona: Herder, 1982.
BINGEMER, M. C. L.; FELLER, V. G. Deus-Amor: a graça que habita em nós. Valência: Siquem; São
Paulo: Paulinas, 2003.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium. Disponível
em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_
const_19641121_lumen-gentium_po.html>. Acesso em: 12 dez. 2018.
FRANCISCO. Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina no centenário da
Faculdade de Teologia (3 mar. 2015). L’Osservatore Romano, ed. portuguesa, 12 mar. 2015.
nº- 327
______. Evangelii Gaudium: a alegria do evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual.
São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.
•
ano 60
______. Gaudete et Exsultate. Sobre o chamado à santidade no mundo atual. Tradução de Flávia Regi-
nato. São Paulo: Paulinas, 2018.
•
Vida Pastoral
______. Homilia da Missa na Casa de Santa Marta (11 nov. 2016). L’Osservatore Romano, ed. portu-
guesa, 17 nov. 2016.
42
homiléticos
Roteiros
Rita Gomes*
Também na internet:
vidapastoral.com.br
3º Domingo da Páscoa
5 de maio
Reconhecimento e
testemunho do Ressuscitado
*Ir. Rita Maria Gomes, nj,
é natural do Ceará, onde fez seus
I. Introdução geral
estudos em Filosofia no Instituto No domingo anterior, nossa liturgia abordava a ques-
Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), tão da identificação de Jesus ressuscitado como o mesmo
atual Faculdade Católica de
Fortaleza. Possui graduação, que fora crucificado. A experiência de Tomé de tocar as
mestrado e doutorado em Teologia chagas visava precisamente afirmar que o Crucificado e o
pela Faculdade Jesuíta de Filosofia
e Teologia (Faje), onde lecionou
Ressuscitado são “um e o mesmo”. Neste domingo, conti-
Sagrada Escritura. Atualmente nuamos, em nossa celebração pascal, a reflexão a respeito
é professora na Universidade do reconhecimento do Cristo ressuscitado. Agora o ponto
Católica de Pernambuco (Unicap).
de partida é a partilha de uma refeição de Jesus com seus
nº- 327
seu Senhor.
43
Roteiros homiléticos
também, junto a esse anúncio, denun- algo também sobre os cristãos. Estes serão
ciam aquela mesma liderança por seu pa- reconhecidos pela partilha do pão, ou
•
ano 60
pel ativo no processo que desembocou seja, pela comensalidade repetida em cada
na execução de seu mestre. liturgia eucarística. Assim, o texto não tes-
•
44
Uma segunda consideração nos leva
a entender que essa experiência de en- Patologias do poder
contro com o Ressuscitado permite aos Saúde, direitos humanos e a
nova guerra contra os pobres
discípulos a ousadia e a coragem de
anunciar o Cristo e de testemunhar seus Paul Farmer
ensinamentos, ainda que sob o risco de
serem presos e torturados. Com isso,
alerta os cristãos de todos os tempos de
que seguir a Cristo e anunciá-lo com-
porta o risco do incômodo das estrutu-
ras injustas há muito estabelecidas. A
incompreensão e a perseguição podem
fazer e fazem, de tempos em tempos,
parte da “herança” dos seguidores do
Cristo. Enfim, somos chamados, como
Igreja, a unir nossa voz à dos anjos e
santos num canto de louvor ao nosso
Senhor e salvador.
504 págs.
4º Domingo da Páscoa
12 de maio
Este livro é o esforço de um
paulus.com.br
sobre a identidade de ambos: pastor e
Vida Pastoral
rebanho.
45
Roteiros homiléticos
discreta, mas na sequência se percebe rebanho, bem como da ligação entre pas-
Vida Pastoral
uma mudança radical, apontada no tex- tor e rebanho. O fio que os une é a escuta
46
ou o ouvir, para ser mais fiel ao texto. Ou-
vir é o mandamento por excelência do Deus se revela em
povo de Israel e, no evangelho, aparece gestos de solidariedade
como o critério de reconhecimento: as
Luiz Alexandre Solano Rossi
ovelhas escutam a voz do pastor e, porque
escutam, ele as conhece.
Na primeira leitura, novamente a es-
cuta aparece como critério identificador, à
diferença de que, ali, aqueles que têm por
mandamento o “ouve, Israel” se recusam a
ouvir a Palavra de Deus anunciada, en-
quanto os gentios, de quem não se exige
tal conduta, a ouvem. Essa dinâmica de
escuta e reconhecimento se completa na
segunda leitura, que traz a imagem da re-
compensa dada àqueles que ouviram a
voz do pastor e o seguiram. O Pastor-Cor-
deiro é o Cristo, divino-humano e, por
isso, salvador desse rebanho.
112 págs.
o seu povo!
Imagens meramente ilustrativas.
I. Introdução geral
A liturgia do domingo passado nos
nº- 327
paulus.com.br
do Cristo, dos apóstolos e de todos nós,
Vida Pastoral
47
Roteiros homiléticos
Deus agindo e conduzindo-nos a ele, para amar-se está alicerçado no amor com
sua maior honra e glória. E esse louvor que o Cristo os amou, e esse amor será
aparece na boca do salmista, ao dizer que também o critério para que se saiba que
o seu louvor a Deus será eterno. eles são discípulos de Cristo.
O texto continua e mostra que o Se- a leitura, a primeira coisa que João vê é
nhor, sabendo que lhe resta pouco tem- “um novo céu e uma nova terra. Pois o
•
ano 60
po com os seus, se despede deles, dei- primeiro céu e a primeira terra passa-
xando a seus filhinhos uma “herança ram, e o mar já não existe” (v. 1). Essa
•
amor. O amor com que eles deverão cimento do imaginário do mundo anti-
48
go, que concebia a criação como domí-
nio do caos primordial, sendo o mar a Outro cristianismo
imagem desse caos, que ameaçava cons- é possível
tantemente a criação. A fé em linguagem moderna
Ao dizer que “o primeiro céu e a pri-
Roger Lenaers
meira terra passaram, e o mar já não exis-
te”, o autor anuncia uma realidade total-
mente nova, que vem diretamente de Deus
e, por isso mesmo, é a realidade definitiva.
Nada mais deve nos amedrontar.
E a imagem continua: “Vi a cidade
santa, a nova Jerusalém, que descia do
céu, de junto de Deus, vestida qual espo-
sa enfeitada para seu marido” (v. 2). A
imagem diz muito. Lembra o esplendor
de uma festa de bodas. “Esta é a morada
de Deus entre os homens” (v. 3): a nova
Jerusalém representa a comunhão plena
com Deus. Por isso, já não há espaço para
264 págs.
paulus.com.br
timidade que se estabelece com o Mestre e
Vida Pastoral
49
Roteiros homiléticos
No evangelho deste dia, Jesus fala a A primeira leitura nos traz o motivo da
seus discípulos algo um tanto intrigante realização da “assembleia de Jerusalém”
•
ano 60
para nossas mentes modernas: “Se alguém (cf. At 15,3-21) e o seu resultado: a deci-
me ama, guardará a minha palavra, e o são de enviar representantes da Igreja de
•
meu pai o amará, e nós viremos e faremos Jerusalém, com Paulo e Barnabé, a Antio-
Vida Pastoral
50
de uma viagem a Jerusalém foi o ensina-
mento de alguns membros dessa Igreja a Teologia da ternura
respeito da circuncisão. Os “vindos da Um “evangelho” a descobrir
Judeia” podem legitimamente ser chama-
Carlo Rochetta
dos de “judaizantes”, porque ensinavam
que era condição de salvação para os
cristãos antioquenos, vindos da gentili-
dade, fazer-se circuncidar.
A circuncisão era exigência feita a
todo e qualquer pagão que se convertes-
se ao judaísmo, e os “vindos da Judeia”
queriam impor essa mesma condição
aos irmãos procedentes da gentilidade
que se propusessem aderir à nova fé. Se
assim fosse, antes de assumir a fé cristã,
seria necessário fazer-se judeu. Paulo e
Barnabé, com toda razão, não aceitaram
tal ensinamento, por ser desprovido de
528 págs.
paulus.com.br
a atenção: a ausência de templo e a não
Vida Pastoral
necessidade de sol.
51
Roteiros homiléticos
de e formam um único povo de Deus, ha- de que o relato sobre o qual somos cha-
bitando uma cidade que não tem outro mados a refletir se passa em dois am-
•
templo ou luz que não seja o próprio Deus bientes distintos. No início e no final, o
Vida Pastoral
52
de uma incursão fora desta cidade “até
perto de Betânia”. Migrações, refúgio e
Jerusalém tem grande importância comunidade cristã
para o evangelista, tanto que o evange-
lho da infância começa ali, mais preci- Carmem Lussi e Roberto Marinucci (orgs.)
samente no Templo; ademais, a seção
central de seu evangelho está ambien-
tada no caminho para Jerusalém e é se-
guida da última seção, que se dá na-
quela cidade; e o texto sobre o qual
agora refletimos se conclui com uma
referência ao Templo de Jerusalém.
Tudo converge para a cidade santa e,
especificamente nesse trecho, Lucas dá
a conhecer uma orientação de Jesus
ressuscitado aos seus discípulos. Nela,
Jesus faz memória de sua paixão e res-
surreição e diz que, em seu nome, a
conversão e o perdão dos pecados se-
176 págs.
paulus.com.br
bendizem a Deus continuamente no
Vida Pastoral
Templo.
53
Roteiros homiléticos
2. I leitura (At 1,1-11): deles” (v. 9). Isso quer dizer que eles
Jesus é elevado, mas voltará! viram o Senhor sendo elevado.
A primeira leitura é literalmente a Pelo fato de os apóstolos continua-
continuação do texto do evangelho, uma rem olhando para o céu, enquanto Je-
vez que inicia a segunda parte da obra sus subia, “dois homens vestidos de
lucana. Começa exatamente retomando branco” (v. 10), ou seja, dois anjos,
e resumindo o anúncio de Jesus teste- chamam a atenção deles: “por que fi-
munhado no Evangelho de Lucas, “até o cais aí, parados, olhando para o céu?”
dia em que foi elevado para o céu, de- (v. 11). Esse questionamento indica
pois de ter dado instruções pelo Espírito que é tempo de pôr as mãos à obra, tra-
Santo aos apóstolos” (v. 2). Retoma, a balhar, anunciar o Senhor, enfim, teste-
título de memória, as informações sobre munhar. E o texto se conclui com uma
as aparições do Ressuscitado e a ordem promessa: Jesus vai voltar! (cf. v. 11). O
de não se afastarem de Jerusalém, mas que aqui dizem os anjos, Jesus dissera
esperarem o cumprimento da promessa no evangelho da liturgia do domingo
do Pai de que eles seriam “batizados passado (cf. Jo 14,23-29).
com o Espírito Santo” (v. 5).
A sequência do texto revela que os 3. II leitura (Ef 1,17-23):
discípulos ainda não tinham compre- Jesus sentado à direita
endido completamente o ensinamento do Pai exerce seu poder
e a missão de Jesus, pois perguntam: soberano em favor
“Senhor, é agora que vais restaurar o da humanidade
Reino em Israel?” (v. 6). Esse questio- A segunda leitura, tirada da carta aos
namento mostra que os discípulos ain- Efésios, amplia nossa compreensão do
da pensavam o messianismo de Jesus evangelho e da primeira leitura. Como
na perspectiva da restauração do reino vimos, os relatos sobre a elevação do Se-
terreno, de uma independência política nhor, razão de ser da celebração de hoje,
para o povo de Israel. A paixão e a res- são muito sóbrios. Não existem detalhes
surreição do Cristo não foram suficien- sobre o fato, apenas se informa que o
tes para modificar as expectativas mes- Senhor foi elevado e que os discípulos
siânicas tão enraizadas em suas mentes viam essa elevação acontecendo gradu-
e corações. almente. Jesus se afastou, indo em dire-
Por isso, Jesus responde que não ção ao céu, e nada mais.
lhes cabe saber os tempos e os momen- Esse trecho da carta aos Efésios traz
tos determinados pelo Pai e acrescenta: uma reflexão sobre o lugar que o Cris-
“Mas recebereis o poder do Espírito to, uma vez ressuscitado, ocupa nos
Santo [...] para serdes minhas testemu- céus e ressalta que o exercício de seu
nhas em Jerusalém, em toda a Judeia e poder se dá em favor dos que creem.
na Samaria”. Jesus muda o foco da Tudo foi colocado “sob seus pés” (v.
nº- 327
questão, chamando-lhes a atenção para 22), ou seja, está sob seu domínio como
a missão de testemunhá-lo e prometen- o Senhor soberano que é. Tudo isso é
•
ano 60
do-lhes que receberão para isso a força projeto de Deus para nós por meio de
do Espírito. Eles serão atendidos, su- Jesus Cristo.
•
depois disso, Jesus é elevado “à vista com o resto da humanidade por sua en-
54
carnação se revela agora em sua eleva-
ção, quando a íntima união é expressa A glória de Deus é o
pela imagem do Cristo Cabeça da Igre-
homem vivo
ja. Somos um com Cristo por sua en- A profissão de fé de santo
carnação e elevação. Somos seu corpo Irineu
e ele a Cabeça que rege e governa todo
o corpo. Donna Singles
humanidade!
55
Roteiros homiléticos
mesmo dia, Jesus aparece aos seus discí- ser celebrada cinquenta dias depois do ofe-
pulos e lhes dirige, por duas vezes, a sau- recimento do primeiro feixe, donde pro-
•
ano 60
dação: “A paz esteja convosco” (v. 19.21). vém o nome Pentecostes, que também
Após a primeira saudação, mostra-lhes as identifica essa festa na versão grega do tex-
•
mãos e o lado, e isso revela que eles estão to bíblico. Após as reformas de Esdras e
Vida Pastoral
diante do que fora crucificado. Os discí- Neemias, por volta do século V a.C., a festa
56
foi ressignificada e passou a celebrar o dom
da Lei no Sinai. Era marcada pelo júbilo e Trânsitos religiosos,
pelo entusiasmo, por isso todos deviam cultura e mídia
participar dela e alegrar-se. A expansão neopentecostal
O dom do Espírito é concedido ao gru-
po de discípulos, que estavam reunidos “no Adilson José Francisco
paulus.com.br
ção entre os membros. Não é lícito a ne-
Vida Pastoral
57
Roteiros homiléticos
superior aos outros por causa do dom re- Jesus deve ser também instrumento de
cebido do Espírito, uma vez que todos são vinda desse Espírito, por meio da oração e
membros do único corpo de Cristo. Paulo da presença de Jesus em seu meio.
fundamenta esse entendimento no fato de O evangelho deste dia também nos cha-
que tanto judeus como gregos, escravos e ma a ser reconciliadores no mundo; a travar
livres foram batizados num único Espíri- uma luta a fim de que cessem os ódios, a
to. Como um é o Cristo e um é o Espírito, violência, o descaso, o abuso e a corrupção
os membros da comunidade formam um moral, social e política. A Igreja partilha a
único corpo. A unicidade do corpo está vida de Jesus quando, ao receber o seu Espí-
fundamentada no Espírito, que os anima e rito, se compromete a lutar para que o evan-
orienta no testemunho e na confissão de fé gelho saia do papel impresso e seja gravado
no Cristo Senhor. nas suas ações; quando se compromete a ser,
ela mesma, lugar e instrumento de reconci-
III. Pistas para reflexão liação interna e externa.
O evangelho desta celebração traz ao Há na Igreja pessoas diferentes, com
menos dois temas importantes em relação dons e ministérios diferentes, e isso é graça
ao dom do Espírito: a alegria e a missão. Os de Deus. A completa igualdade na Igreja ti-
discípulos, diante do Ressuscitado-Crucifi- raria seu dinamismo e beleza. Importa re-
cado, alegram-se. O Senhor sopra sobre conhecer que o Espírito Santo é quem nos
eles e lhes concede o Espírito, que os capa- faz todos membros de um mesmo corpo, o
citará para sua missão: a reconciliação da corpo de Cristo. E a missão de Cristo de
humanidade com Deus. A primeira leitura levar a humanidade à reconciliação plena
nos traz novamente o dado da alegria como com Deus agora deve ser realizada por
característica própria da festa de Pentecos- meio desse corpo. Jesus, por sua paixão e
tes ou das Semanas, assim como a temática ressurreição, reconciliou o mundo com
da superação do impedimento linguístico Deus. Nós, seus representantes e enviados,
para o anúncio dos discípulos. devemos dar a conhecer ao mundo essa re-
A segunda leitura traz um dado que a conciliação. A unidade do Espírito Santo
liga à primeira: a ação do Espírito é res- agindo na diversidade de dons e carismas é
ponsável pela superação de dificuldades sinal manifesto da presença de Deus no
de entendimento. Se, na primeira, a falta mundo por meio da Igreja, comunidade
de entendimento devia-se à diferença lin- dos seguidores e seguidoras de Jesus.
guística, na segunda, encontra-se no nível
das relações comunitárias. Ambas são su- SANTÍSSIMA TRINDADE
peradas ou devem ser superadas pela pre- 16 de junho
sença e ação do Espírito.
O dom do Espírito já não se encontra
restrito ao povo de Israel, representado Trindade: a dinâmica
pelos discípulos, mas cumpre a missão
salutar do amor
nº- 327
mas não pode ficar aprisionado nela ou lenidade da Santíssima Trindade. Somos
Vida Pastoral
58
o mistério de nossa fé: Deus uno e trino.
Como é habitual, nossa liturgia foi pre- Espiritualidade para
nunciada ou preparada pela liturgia do insatisfeitos
domingo anterior, Pentecostes. Na liturgia
do domingo passado, contemplamos e ce- José M. Castillo
lebramos o dom do Espírito, o Consola-
dor, aquele que vem ser nosso auxílio para
recordar os ensinamentos dados a nós por
Jesus e nos ensinar o que for necessário. É
dentro dessa missão do Espírito, de sua
ação na vida da Igreja, que podemos con-
fessar um Deus em três pessoas.
II. Comentários
dos textos bíblicos
1. Evangelho (Jo 16,12-15):
O Espírito da verdade
nos conduzirá à plena verdade
O evangelho traz pequeno trecho de
264 págs.
paulus.com.br
vem do Pai e do Filho. Esse trecho é clara-
Vida Pastoral
mente trinitário!
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Roteiros homiléticos
reconciliação e a paz (cf. v. 1). O texto de Mas que amor é esse? Como fazer o amor
Romanos ainda joga com as três virtudes ser verbo de ação em nossa vida? A cons-
•
ano 60
teologais: fé, esperança e caridade (amor). cientização de que, em Cristo, somos inse-
As virtudes, principalmente o amor de Deus, ridos na Trindade nos compromete a deci-
•
foram derramadas nos corações humanos dir aceitar o desafio de usufruir desse trans-
Vida Pastoral
pelo Espírito que nos foi dado (cf. v. 5). bordamento íntimo de amor e de nos por-
60
mos a caminho com nossos irmãos e irmãs, Jesus, contudo, não parece ficar satisfeito
partilhando suas dores e alegrias. com a resposta incerta do povo e direciona
sua pergunta aos discípulos: “E vós, quem
O Roteiro Homilético de Corpus Christi dizeis que eu sou?” (v. 20). Não é de uma
(20/6/19) pode ser acessado no site da multidão distante que deve vir o reconheci-
revista: vidapastoral.com.br mento de quem ele é, e sim daqueles que o
acompanham de perto e, espera-se, o co-
nhecem. Pedro responde, em nome dos ou-
12º Domingo do Tempo Comum tros discípulos e em seu próprio nome: “O
23 de junho Cristo de Deus” (v. 20). Sua resposta é sim-
ples e direta: “Tu és o Messias de Deus”, o
peito. As respostas são: João Batista, Elias rias para sermos seus discípulos. A formu-
ou um dos antigos profetas que ressusci- lação de Lucas novamente impressiona,
•
ano 60
tou (cf. v. 19). Todas as respostas apontam pois começa com um “se”, revelando a li-
para a tradição profética. Para o povo, Je- berdade de decisão para o seguimento. O
•
teza são sobre qual deles Jesus é. livre do chamado ao seguimento de Jesus.
61
Roteiros homiléticos
Quem quer que decida segui-lo terá de los habitantes de Jerusalém. A promessa
“renunciar a si mesmo e tomar a cruz” (v. final ao povo, ainda enigmática, é a de
23). A tomada da cruz exige a renúncia de uma fonte para ablução e purificação: o
si, pois quem se ocupa apenas de si não Messias padecente.
poderá nunca compreender a cruz, já que
ela é o símbolo máximo da doação e da 3. II leitura (Gl 3,26-29): No Cristo,
negação de si em vista dos outros. toda discriminação é abolida
A segunda leitura, da carta aos Gálatas,
2. I leitura (Zc 12,10-11; 13,1): fala sobre a condição daqueles que renun-
O enviado padecente, ciaram a si mesmos e abraçaram a cruz de
fonte de purificação Cristo. A afirmação paulina é clara: em
A profecia de Zacarias, aqui contem- Cristo, todos os batizados se tornam filhos
plada na primeira leitura, parece estranha de Deus. Por isso, as categorias com as
nesta celebração, mas a aparente estranhe- quais as pessoas eram classificadas e assim
za serve de alerta para que busquemos o separadas perdem todo o sentido.
essencial nesse trecho. O texto começa si- Daí o apóstolo poder dizer que já não
tuando a ação de Deus, que chega como existe nem judeu nem grego, nem escravo
promessa a um destinatário: “Derramarei nem livre, nem homem nem mulher. Ne-
sobre a casa de Davi e sobre os habitantes nhuma dessas realidades deixou de existir
de Jerusalém um espírito de graça e de de fato. A mudança se deu na valorização,
oração e eles olharão para mim” (12,10). ou não, das pessoas segundo essas distin-
Deus vai preparar os judaítas para a ções. Em Cristo, todos somos um só, e se
chegada do Messias. O enigmático do tex- somos de Cristo, somos da descendência
to, porém, é que o povo, a quem o envia- de Abraão e temos direito à herança se-
do virá, só perceberá esse enviado diante gundo a promessa de Deus a Abraão; ou
do sofrimento e da morte, e então o chora- seja, em Cristo todos somos abençoados.
rão como se chora pela perda de um pri-
mogênito. Esse texto de Zacarias parece III. Pistas para reflexão
ser devedor dos cantos do Servo de Isaías, As leituras desta celebração convergem
porque a sequência do texto aponta para na figura de Jesus Messias padecente. En-
uma esperança que advém dessa situação quanto Messias que padece, morre e ressus-
mesma de sofrimento e morte: “Naquele cita, ele é a fonte para a purificação e salva-
dia, haverá uma fonte acessível à casa de ção do povo, anunciada na profecia de Zaca-
Davi e aos habitantes de Jerusalém, para rias. Como fonte de purificação e salvação,
ablução e purificação” (13,1). ele é acessível a todos os que o buscam, uma
Esse trecho está construído de modo vez que estejam preparados pelo “espírito de
que a “a casa de Davi e os habitantes de graça e oração” para assim reconhecê-lo.
Jerusalém” apareçam no início e no fim, Por isso, Paulo pode falar do batismo
em clara inclusão. Para o profeta, a pro- como revestimento do Cristo. A fonte da
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messa da ação de Deus – entenda-se, o en- profecia de Zacarias dizia respeito à “ablu-
vio do Messias – tem um destinatário cer- ção e purificação”, ou seja, tinha o aspecto
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purificação, pois todos se revestem do
Cristo. Isso significa que Cristo é a fonte Novos desafios para o
de purificação e, portanto, de salvação. cristianismo
No momento em que vivemos a negação A contribuição de José Comblin
de tantos direitos, conquistados a duras pe-
Eduardo Hoornaert (org.)
nas, e nos assaltam os fantasmas do desres-
peito aos direitos de muitas categorias de
trabalhadores, que a máxima cristão-paulina
– “não há mais nem judeu nem grego, nem
escravo nem livre, nem homem nem mu-
lher” – ressoe em nossa mente e coração e
não nos deixe novamente manchar pelas in-
justiças institucionalizadas que não revelam
o Cristo, antes o crucificam novamente.
Deus sustenta e
176 págs.
ao anúncio do evangelho.
II. Comentários
dos textos bíblicos
1. Evangelho (Mt 16,13-19):
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paulus.com.br
nhecido como “primado de Pedro”. Nesta
Vida Pastoral
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Roteiros homiléticos
evangelho traz a versão mateana desse tex- O apóstolo parece perceber que seu fim
to. Na resposta à pergunta de Jesus sobre está próximo e testemunha sua fidelidade
quem as pessoas dizem que ele é, acrescen- ao Senhor e sua coerência de vida de fé.
ta-se aos nomes de João Batista e Elias o de Paulo expressa a confiança de que sua
Jeremias, entre as possíveis identificações vida será contada como justa e o próprio
com a pessoa de Jesus. É bem interessante Senhor atestará a justiça de sua conduta.
essa perspectiva mateana, porque Jeremias Toda essa confiança de Paulo está, po-
é considerado um profeta sofredor. rém, assentada na certeza de que o Senhor
Como nos outros evangelhos sinópti- esteve sempre ao seu lado e foi ele quem o
cos, Jesus dirige a pergunta aos discípulos fez anunciar a mensagem. A sequência do
e Pedro responde por eles: “Tu és o Mes- texto traz palavras de libertação que não
sias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Só Ma- deixam de ser também palavras de con-
teus une o título Filho de Deus ao de Mes- fiança em Deus diante do fim iminente.
sias. Nesse trecho, e só nesse evangelho,
Jesus felicita a Pedro por sua resposta, III. Pistas para reflexão
acrescentando que não é a condição hu- Pedro e Paulo são, de acordo com a tra-
mana que o faz reconhecer sua messiani- dição, as pedras fundamentais da Igreja. Os
dade, mas uma revelação de Deus. Essa é textos desta celebração vão muito além da
a razão por que o Senhor lhe confere a res- atestação de seu papel fundamental na exis-
ponsabilidade por sua Igreja. tência da Igreja; revelam a grande impor-
tância que adquiriram por seu testemunho
2. I leitura (At 12,1-11): de vida, ao se conformarem a Cristo pelo
“Levanta-te depressa!” sofrimento, perseguição e morte. A tradição
A primeira leitura, dos Atos dos Após- da Igreja afirma que Pedro foi crucificado,
tolos, atesta o aprisionamento e a liberta- mas, não se sentindo digno de morrer como
ção miraculosa de Pedro. O texto começa o Senhor, pediu para ser crucificado de ca-
e termina com uma referência ao rei Hero- beça para baixo. Independentemente da
des. Além disso, duas outras referências a exatidão desse relato, é certo que sofreu o
esse rei enquadram o v. 5, no qual se afir- martírio, como também Paulo.
ma que a Igreja rezava continuamente por Pedro e Paulo são, segundo os Atos dos
Pedro enquanto este estava encarcerado. Apóstolos, as figuras de maior destaque na
A libertação fora do comum ocorrida Igreja, embora, inicialmente, Tiago apareça
em favor de Pedro vem como resposta à como a figura maior na Igreja de Jerusalém.
oração incessante da comunidade. Isso é O livro dos Atos dos Apóstolos testemunha
um indício da importância que o apóstolo que a Paulo se deve a expansão da Igreja,
já tinha para a comunidade primitiva. Ao por seu trabalho de evangelização dos gen-
final, o próprio Pedro reconhece que o Se- tios, e a Pedro sua conservação, por seu tra-
nhor, por meio de seu anjo, é o responsá- balho de evangelização e acompanhamento
vel por sua libertação. das Igrejas judaico-cristãs. Na origem da
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“Completei a corrida, guardei a fé” cada grupo originário contasse com um re-
A segunda leitura traz o texto conheci- presentante que fosse sua coluna de susten-
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de, esse texto é verdadeira confissão de fé. colunas da Igreja: Pedro e Paulo!
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