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Roberta Kehdy1
Ao receber um bebê e sua mãe, o médico pediatra pode se ver diante de uma
situação complexa com demandas e angústias da mãe ou sintomas psicossomáticos do
bebê que podem ultrapassar os limites de sua atuação e se beneficiar da participação do
psicólogo perinatal para auxiliá-lo a prestar uma assistência mais adequada ao bebê e
sua família. Consideramos importante, por se tratar de uma clínica com especificidades,
que o psicólogo tenha uma formação especializada em psicologia perinatal. Este
profissional ao trabalhar os laços desde os primórdios tem mais chances de estabelecer
uma relação na qual aquele que se vê sendo cuidado, no caso a mãe, encontra mais
disponibilidade para cuidar de seu bebê. Sabemos que há um aspecto de urgência
quando se trata da constituição psíquica de um novo ser humano, porque o investimento
libidinal interfere no desenvolvimento das potencialidades somáticas do bebê e a
intervenção precoce pode evitar possíveis problemas no vínculo mãe/bebê e por
consequência no desenvolvimento global deste.
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Psicóloga Perinatal , Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae onde é supervisora do Curso Psicopatologia Psicanalítica e clínica contemporânea, Professora
e Coordenadora da Clínica Social do Instituto Gerar: psicanálise, perinatalidade e parentalidade
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Esta sensibilidade aumentada possibilita que a mãe realize bem sua função,
atendendo às necessidades do bebê quando ele precisa, mas também o desiludindo
quando é necessário. O suficientemente, do suficientemente boa, é fundamental na
medida que traz a ideia de que mãe sempre falha e que a mãe perfeita além de não
existir, seria prejudicial ao bebê, pois não contemplaria sua humanidade e as frustações
que fazem parte da realidade.
Contudo, ser mãe hoje não é nada fácil, pois vivemos um momento histórico
caracterizado pela fragilidade dos laços sociais e pelo aumento da velocidade das
comunicações que produz isolamento. Para as mulheres no ciclo gravídico-puerperal,
este isolamento pode ser ainda maior, devido às intensas mudanças na condição da
mulher nas últimas décadas. A ampliação dos métodos contraceptivos permitiu uma
vida sexual menos atribulada por uma gravidez indesejada, possibilitando que o
momento da gravidez seja percebido como uma escolha especifica. Com a entrada no
mercado de trabalho, surgiram novas maneiras de realização da feminilidade que não
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apenas a maternidade, o que muitas vezes, leva a uma postergação da mesma para uma
etapa onde o relógio biológico pode não corresponder. Assim, quando a mulher decide
ser mãe, geralmente, há uma enorme expectativa e grande idealização deste desejo.
Passados quinze dias, Márcia ligou contando que já tinha dado à luz, e mesmo
sendo este seu primeiro contato, narrou em detalhes suas preocupações e ansiedades, o
que parecia indicar uma forte ligação afetiva com a psicóloga, sugerindo a transparência
psíquica apresentada acima. Na entrevista agendada para a semana seguinte, Márcia
compareceu com o bebê de dez dias, falou sem parar, apresentando um discurso
bastante confuso que indicava intenso sofrimento psíquico.
Ela relatou que estava com medo de sair de casa, pois achava que os vizinhos
poderiam fazer mal a ela e aos filhos e também referiu estar ouvindo vozes, mas
apresentava certa crítica, identificando que eram coisas da cabeça dela. Falou-nos que
não estava conseguindo cuidar dos afazeres domésticos e que era chamada de
preguiçosa pelo marido, Pascoal.
À medida que Márcia foi melhorando, foi realizada uma mudança no enquadre, na
qual a dupla mãe-bebê/Márcia-Paulo passou a ser atendida simultaneamente por uma só
psicóloga perinatal, com o intuito de favorecer o desenvolvimento do laço entre eles.
Nas sessões, ela trazia sua percepção de como Paulo interagia mais que Pedro. Chegava
muitas vezes, encantada com a responsividade do bebê na relação com ela, o que ficava
evidente na interação entre eles na nossa presença. Ela lhe propunha jogos constituintes
como cadê-achou e também jogos simbólicos e acompanhávamos como Paulo estava se
desenvolvendo bem, tendo deixado de apresentar os sinais que nos preocuparam quando
era menor. Foi um período na qual trabalhamos, principalmente, a separação de Márcia
com o filho mais velho e também o reconhecimento das diferenças entre o bebê Paulo e
seu irmão. Ela tinha muito medo que Paulo também ficasse autista como Pedro, e já
conseguia explicitar esse medo de forma mais organizada. Foram muitas e muitas
conversas onde ela parecia precisar do aval da psicóloga tanto para se certificar de que
Paulo podia ter um destino diferente de Pedro, quanto para se tranquilizar de sua
capacidade de cuidar bem dos filhos. Era visível que apesar de sua fragilidade psíquica,
Márcia conseguia propor nas sessões: brincadeiras e conversas com Paulo, sugerindo
maternagem “suficientemente boa”. Era-nos muito gratificante reconhecer as
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possibilidades dela, que amparada por uma equipe de sua confiança, podia no segundo
pós-parto desenvolver uma relação com Paulo muito distinta da que experimentava com
Pedro.
Pensamos que Márcia não pôde contar com uma rede social que lhe desse uma
sustentação mínima ao longo da gestação e no nascimento do primeiro filho. Somado à
experiência traumática de quase morte desse seu primeiro bebê no início da vida, viveu
uma grave crise psíquica que dificultou, e muito, o estabelecimento do laço com ele.
Assim, quando nos procurou estava com muito medo que isto se repetisse no segundo
pós-parto. A possibilidade de contar com uma escuta e um acolhimento para estas
lembranças permitiu que Márcia, ao ser legitimada em sua dor, fosse se organizando
lentamente e pudesse estabelecer com Paulo um laço mais saudável e consistente. Ela
pôde ampliar os sentidos dados à primeira gestação: “fome, solidão e agressão” para
fome da comida de sua mãe, solidão por estar longe dos seus entes queridos e confiáveis
e agressão por ter perdido tanta coisa: vida estruturada, independência financeira, lugar
de caçula.
Pudemos também contar com a presença do marido que esteve próximo ao longo
de todo o processo, principalmente porque o sofrimento de Márcia pedia uma
continência robusta ao nascimento de seu segundo filho. Dessa forma, este homem pôde
funcionar como agente paterno, não somente por fazer cortes no excesso materno para
com o bebê deles, como também comparecendo sempre que solicitado nas cenas
clínicas para dar Holding a sua mulher, para que esta pudesse maternar seu novo bebê.
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Ele compôs com nossa equipe uma rede de sustentação e de acolhimento muito
continente e firme para que sua mulher fosse se sentindo mais segura e enlaçasse seu
segundo filho.
BIBLIOGRAFIA