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As Três Ignorâncias: Arrogante, Indolente, Malévola: Boaventura de Sousa Santos in JL (13

a 26 de março, 2019)

As Três Ignorâncias: Arrogante, Indolente, Malévola

por Boaventura de Sousa Santos

in Jornal de Letras (13 a 26 de março, 2019)

Escrevi há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de desconhecimentos. Para onde
quer que se orientem os objectivos, os instrumentos e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se
conhece tudo a respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta da que tivemos por
objectivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos.
Mas mesmo o conhecimento que temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode rivalizar
com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois exemplos ajudam. Numa escola diversa em
termos etno-culturais, o professor ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu
proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser. Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e
exclama: “professor, na minha comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem,
a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral
numa dada circunscrição de uma cidade europeia, onde é maioritária a população roma (vulgo, cigana), as secções de
voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em
bloco nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é colectivo porque colectiva foi a deliberação de votar num
certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autónomas em relação às do clã ou
família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e propriedade), num
caso, e de duas concepções de democracia, no outro.

O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir exclusivamente a
um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e desprezar todos os outros como
variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjectivas, superstições ou atavismos. Este modo de produção de
ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela)
tomou contacto aprofundado com culturas extra-europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A
partir do séc. XVII a ciência moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que
está para além ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi
apenas que o Modo 1 produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não sabe que há
outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua ignorância como a única
verdade.

O segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção colectiva de amnésia, de esquecimento.
Este modo de produção tem sido frequentemente activado nos últimos cinquenta anos, sobretudo em países que
passaram por longos períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram causas profundas: gravíssima
desigualdade socio-económica; apartheid baseado em discriminação etno-racial, cultural, religiosa; concentração de
terra e consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do direito à autodeterminação de territórios ancestrais ou
com forte identidade social e cultural, etc. Estes conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras prolongadas,
civis ou outras, produziram milhões de vítimas – entre mortos, desaparecidos, exilados e internamente deslocados.
Para além das partes em conflito, houve sempre outros actores internacionais presentes e interessados no desenrolar
do conflito; a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do conflito como (menos frequentemente) ao seu
término. Nalguns poucos casos houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do conflito entre o
nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser questionável se houve ou não vencedores
e vencidos, sobretudo quando a parte supostamente vencida impôs condições mais ou menos drásticas para aceitar o
fim do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que dominou o país entre 1964 e 1985).
Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país e consolidar a
paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e reconciliação, muitas vezes como
componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional e a identificação e apoio às vítimas. São disso
exemplo a Coreia do Sul, a Argentina, a Guatemala, a África do Sul, a ex-Jugoslávia, Timor-Leste, o Peru, o Ruanda, a
Serra Leoa, a Colômbia, o Chile, a Guatemala, o Brasil. Na maioria dos processos pós-conflito forças diferentes
militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse plenamente conhecida. Quer porque a verdade era
demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma profunda mudança do sistema económico ou político (desde a
redistribuição de terra ao reconhecimento da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e
político). Por qualquer destas razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à
história e à dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.

O Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção activa e consciente de ignorância por via da produção
massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O Modo 3 produz
conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual seria possível superar a
ignorância. É este o domínio das fakenews. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a ignorância não é aqui um subproduto da
produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do
aquecimento global; os imigrantes e refugiados como agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou
dos EUA; a distribuição de armas à população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de
protecção social das classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons
costumes; a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.

Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam consequências
distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é simultaneamente radical e
invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é generalizadamente aceite. As verdades que não
cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um
campo imenso para a sociologia das ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos
seus conhecimentos (passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se
satisfaz superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração que
sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade emancipadoras que
estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo menos na opinião de vastos sectores
da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma
reconciliada consigo mesma, com base em justiça social, histórica, etno-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância
malévola, corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que o ignorante é transformado em
empreendedor da sua própria ignorância. As redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação. Esta ignorância
está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração da estase, a imobilidade que estrutura a
vertigem do tempo imediato.

Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo isolado.
Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a ignorância arrogante
produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a proliferação da arrogância malévola produzida
pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa). É que uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade
científica torna-se mais vulnerável a qualquer falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos
mecanismos da fé. Por sua vez, a ignorância indolente produzida pelo Modo 2 (amnésia, esquecimento) desarma vastos
sectores da população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3. A ignorância
arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece, normaliza e
banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas em exercícios de
propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objectos de guerra. Quando a ignorância arrogante
se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-se tão invisível que é praticamente impossível
de erradicar.

O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente, embora
diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade. A ignorância
arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que outros saberes e modos de
vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento democrático; e faz com que vastos sectores
da população não se sintam representados pelos seus representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais
de raiz liberal. A ignorância indolente retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e
descolonizadora, sem as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites,
uma disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais antidemocrática
de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em factos, percepções e opiniões. Ora a
ignorância malévola priva a democracia dos factos e, ao fazê-lo, converte a boa fé dos que dela são vítimas em
figurantes ou jogadores ingénuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a
derrota.

Boaventura_As três ignorâncias_Jornal de Letras_13Março2019

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