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A TEORIA PURA DO DIREITO E OS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

INTERNACIONAL
DIE REINE RECHTSLEHRE UND DIE ALLGEMEINEN RECHTSPRINZIPIEN DES
VÖLKERRECHTS1
(Estudos em Inocêncio Mártires Coelho2 e Jörg Kammerhofer3).

THE PURE THEORY OF LAW AND THE GENERAL PRINCIPLES OF INTERNATIONAL


LAW

Kátia Silene Sarturi4


Sérgio Ricardo de Freitas Cruz5

Artigo publicado a convite do editor chefe

“Quem pensa o que há de mais profundo, ama o que há de mais


vivente”.
Johann Christian Friedrich Hölderlin

RESUMO
O presente artigo pretende, sob as lentes do professor Inocêncio Mártires Coelho, através do
artigo “Por que voltar a Kelsen, o jurista do século XX?”, e do professor Jörg Kammerhofer, em
artigo intitulado “Die Reine Rechtslehre die allgemeinen Rechtsprinzipien des Völkerrechts”,
apresentar uma análise da teoria daquele que foi primeiro a destacar o direito como ciência
jurídica, impondo um rigor metodológico ao seu estudo: Hans Kelsen. Através de obra
memorável e indispensável aos estudiosos do Direito – Teoria pura do Direito – Hans Kelsen,
apresenta o direito como norma jurídica, em especial a norma fundamental, estabelece a
hierarquia como critério de validade, identifica a norma como sanção, define limites à
interpretação, especialmente para casos que envolvam na sua solução o enfrentamento de
preceitos de cunho moral.
Palavras chaves: Hans Kelsen; Teoria pura do direito; Inocêncio Mártires Coelho; Jörg
Kammerhofer.

1
Texto traduzido do alemão pelo articulista Sérgio Ricardo de Freitas Cruz. O texto sofreu o crivo da revisão do
professor Messias Fernandes, professor de alemão na instituição Wizard, a quem muito agradecemos.
2 Inocêncio Mártires Coelho é Doutor, título obtido com distinção na Universidade de Brasília. Atualmente, integra,
em caráter permanente, o corpo docente do programa de pós-graduação -- mestrado e doutorado -- do UniCEUB.
Tem experiência nas áreas de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, nas quais vem orientando dissertações de
mestrado e teses de doutorado, além de publicar livros e artigos sobre esse âmbito de conhecimento do direito, em
revistas e editoras reputadas de primeira linha. CV: <http://lattes.cnpq.br/6231745536760171>
3
Jörg Kammerhofer (Mag. iur. Dr. Iur., Vienna; LL.M., Cantab) is a Senior Research Fellow and Senior Lecturer at
the Faculty of Law, University of Freiburg, Germany. He is currently working on international law with a focus on
its general, procedural and theoretical aspects, as well as on the jurisprudence of the Vienna School. As a member of
the Hans Kelsen Research Group, he is also involved in publishing the collected works edition of Hans Kelsen’s
writings. (Jörg Kammerhofer (Mag. Iur. Dr. Iur., Viena; LL.M., Cantab) Pesquisador Sênior e Professor Sênior da
Faculdade de Direito da Universidade de Freiburg, Alemanha. Atualmente, ele está trabalhando no direito
internacional com foco em seus aspectos gerais, processuais e teóricos, bem como na jurisprudência da Escola de
Viena. Como membro do Hans Kelsen Research Group, ele também está envolvido na publicação da edição de
obras coletadas dos escritos de Hans Kelsen). Nota dos tradutores.
4
Doutoranda e mestra em Direito. Procuradora Municipal do Município de Campo Grande/Mato Grosso do Sul.
Autora do livro: Poder Executivo. Independência e Harmonia. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Albatroz, 2018.
Professora Universitária. CV:< http://lattes.cnpq.br/8652246540335087 .>
5
Doutorando e mestre em Direito. Filósofo. Autor do livro: Análise Crítica do conceito de Anistia na Lei 6.
683/1979 e o conceito de perdão na ADPF 153: Hermenêutica crítica. 1ª. ed. Belo Horizonte: Edições
Superiores, 2018. Professor Universitário. Coordenador de grupo de pesquisa em Direito Constituicional
Coordenador responsável pelo sítio de internet: <www.filosofiaedireito.com.br>CV:
<http://lattes.cnpq.br/2851178104693524.>

Ab Origine – Cesut em Revista. V. 2, N. 27, jul/dez 2018 ISSN 2595-928X (on-line)


4
ABSTRACT
This article intends, under the lens of Professor Inocêncio Mártires Coelho, through the article
"Why return to Kelsen, the 20th century jurist?", And Professor Jörg Kammerhofer, in an article
entitled "Die Reine Rechtslehre die allgemeinen Rechtsprinzipien des Völkerrechts, "to present
an analysis of the theory of one who first emphasized law as a legal science, imposing
methodological rigor on his study: Hans Kelsen. Through a work that is memorable and
indispensable to legal scholars - Hans Kelsen, he presents law as a juridical norm, especially the
fundamental norm, establishes hierarchy as a criterion of validity, identifies the norm as a
sanction, defines limits to interpretation , especially for cases involving in its solution the
confrontation of moral precepts.
Key words: Hans Kelsen; Pure theory of law; Inocêncio Mártires Coelho;Jörg Kammerhofer.

INTRODUÇÃO
Hans Kelsen, indubitavelmente, é um dos maiores pensadores da história do Direito e da
Filosofia. Criticado, aplaudido, persegido por alguns e aclamado por outros, fato é que o
pensador, nascido em Praga em 11 de outubro de 1881, causou impacto decisivo no Direito do
século XX.
A teoria do Direito proposta por Hans Kelsen6 representou verdadeiro divisor de águas
na Filosofia do Direito em face da maneira pela qual ele propôs o olhar sobre o objeto Direito.
Esse olhar tinha pressupostos filosóficos da Escola neokantiana7, segundo a qual o importante
era o método (fundamento neopositivista)8. É que somente com rigor metodológico poder-se-ia
fazer ciência. Tendo em vista o caráter meramente descritivo, Hans Kelsen elegeu as normas
jurídicas como seu objeto de estudo, construindo, assim, uma teoria formal, desvinculada, pois,
do mundo da vida.
O desafio a que nos propomos é a análise da visão do professor Inocêncio Mártires
Coelho, através do artigo “Por que voltar a Kelsen, o jurista do século XX?”9, com a do
professor Jörg Kammerhofer, em artigo intitulado “Die Reine Rechtslehre die allgemeinen

6
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
7
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, vol. II. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 136-137,
assevera: “Para Kant, a determinação racional da possibilidade e limite do conhecimento puro precede ao
conhecimento do real. Da mesma forma, para Kelsen a necessidade de uma teoria pura, que delimite o objeto de
conhecimento jurídico e estabeleça as condições e possibilidades do mesmo, precede logicamente o conhecimento
das ciências jurídicas positivas. Por isso, a tarefa prioritária da teoria pura é estabelecer as categorias jurídicas
distintivas e determinantes, em última instância, do campo temático específico das ciências jurídicas, as categorias
constituintes da normatividade. Para este trabalho teórico apelaríamos para o método transcendental kantista, que
permitiria a Kelsen estabelecer a legalidade da ciência jurídica”. Na esteira, OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades.
Bobbio e a Filosofia dos Juristas. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 51.
8
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 5-
38.
9
Por que voltar a Kelsen, o jurista do século XX? In : A Teoria Jurídica de Hans Kelsen (Reflexões críticas sobre a
Teoria Pura e Diálogos com o Direito Contemporâneo”. Orgs. Ivan Cláudio e Pereira Borges. Lumens Juris, Rio de
Janeiro, 2018, p.67-105. Todas as citações do Professor Inocêncio Mártires Coelho serão tiradas desta obra.
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Rechtsprinzipien des Völkerrechts”10, considerando, nas palavras do mestre brasileiro, a
“perspectiva da moderna filosofia da existência, que rejeita verdades desligadas das suas
coordenadas de espaço e tempo... explica/compreende a pureza metodológica”11.
Nas palavras de Karl Larenz “foi Hans Kelsen quem, com admirável energia e ímprobo
rigor de pensamento” buscou no Direito “consciência metodológica” da ciência do Direito. “A
sua ‘teoria pura do Direito’ constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação de ciência do
Direito como ciência – mantendo-se embora sob o conceito positivista desta última e sofrendo
das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje conhecer”12.
Em Kelsen podemos inferir, por conseguinte, que o Direito é reduzido à norma, ao
Estado, à produção normativa deste. Há quem impute a Kelsen o fato de ter atrelado o Direito ao
Estado13, assim como Karl Marx fez em relação à Economia.
Assim, ao engendrar suas teses acerca da Teoria Pura do Direito, da Norma
Fundamental, da primazia da conduta ilícita e do monismo jurídico-estatal, além de tantas outras
de relevo para o mundo jurídico, Hans Kelsen torna-se um dos maiores juristas do século XX,
referência obrigatória e inescusável daqueles que procuram enriquecer seus conhecimentos, tanto
para os que seguem e admiram sua linha de pensamento, como aqueles que o criticam,
verdadeiro marco que representa sua obra para a Ciência do Direito.
O cenário escolhido, a saber, os artigos dos professores Inocêncio Mártires Coelho e
Jörg Kammerhofer, corroboram com a ideia do alcance do pensamento de Hans Kelsen
extrapolar o campo do Direito e alcançar a Filosofia e Sociologia. O texto do professor Jörg
Kammerhofer, foi traduzido pelos autores desse artigo e as indicações às obras de Kelsen foram
mantidas no original em alemão, inclusive, os números nas citações do professor Jörg
Kammerhofer, foram mantidos por se tratarem de algumas citações de Kelsen em obras não
traduzidas, artigos. Ainda, registre-se, todas citações gerais referentes ao professor Inocêncio
Mártires Coelho referem-se ao artigo específico do mesmo.
Empolga-nos a perspectiva de o debate convergir para o reconhecimento do alicerçado
pensamento do jurista Hans Kelsen em âmbito internacional, que causou e ainda causa debates
intelectuais acalorados e de nível, embora, ainda tenhamos que conviver na Universidade com os
que criticam Kelsen sem a diligente e concentrada leitura que a Obra do autor, Teoria Pura do

10
In: Hans Kelsen: Die Aktualität eines Grossen Rechstissenschafters und Soziologen des 20. Jarhhunderts.
Herusgegeben von: NikitasAliprantis und Thomas Olechowski. ManscheVerlags- und Universitätbuchhandlung.
Wien 2014, pp. 25-51.
11
In: Por que voltar a Kelsen, o jurista do século XX?. Publicado no livro: A Teoria Jurídica de Hans Kelsen
(Reflexões críticas sobre a Teoria Pura e Diálogos com o Direito Contemporâneo”. Orgs. Ivan Cláudio e Pereira
Borges Lumens Juris, Rio de Janeiro, 2018, p.67-105.
12
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2014. p. 92.
13
Não existiria, consequentemente, Direito na parte exterior ao Estado.
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Direito, exige.
Leitmotiv
O professor Mártires Coelho chama a atenção (p. 68) para o cenário histórico no qual
surge a Teoria Pura do Direito, a saber, ascendência do Nazismo na Alemanha, período
intermezzo entre as duas grandes guerras, crashda Bolsa de New York em 1929 e para a
instabilidade conceitual da noção de justo e injusto.
A convicção de Hans Kelsen era a abstração dos aspectos morais, sociológicos e
religiosos, bem assim a Justiça, dentre outros, propondo a discussão meramente vinculada ao
disposto nas normas jurídicas emanadas pelo Estado (monismo). Formou, destarte, o
normativismo Kelseniano, preocupado exclusivamente com a lei e as demais normas positivas,
com o escopo de purificar a ciência jurídica, então pululada por diversos fatores. Procurou - e
conseguiu - dar personalidade ao Direito, investindo-o de caráter próprio: as normas.
Diz Kammerhofer:
Apesar de alguma incerteza a respeito da exata localização e
desenvolvimento do elemento de vontade na Teoria Pura do Direito na
Literatura Secundária - por exemplo, considerando o elemento sensorial de
Kant ou a possibilidade de interpretar os últimos escritos como uma volta ao
psicologismo7), este aspecto da teoria é apenas brevemente descrito aqui.
Para Kelsen, a positividade de uma ordem normativa consiste no fato de que
o direito (mas também certas ordens morais) é positivo, isto é, o significado
de um verdadeiro ato de vontade. Mas a lei não é idêntica a esse ato de
vontade, mas é "meramente" seu significado. A segunda edição da "Teoria
Pura do Direito" contém um locus classicus:
“Uma norma estabelecida por um ato de vontade ocorrendo na realidade do
ser é uma norma positiva. Do ponto de vista de um positivismo moral ou
legal, o objeto do conhecimento é apenas positivo, i.e por atos de vontade e
por atos volitivos humanos, fixam normas em consideração. Normas
estabelecidas por atos humanos terão - no sentido literal da palavra - um
caráter arbitrário. [...] o ser-fato de ser posicionado [é] uma condição [...]
da validade de uma norma, mas não essa validade em si.) ” 14
Ainda, Kammerhofer registra: “A Teoria Pura do Direito é uma teoria normativa
positivista do direito. Numa primeira aproximação, pode-se falar da positividade do direito como
ligando à realidade, e em sua normatividade pode-se falar do fator "Sollens"”15.

14
“Trotz einiger Unsicherheit bezüglich der exakten Verortung und Entwicklung des Willenselements in der Reinen
Rechtslehre in der Sekundärliteratur – zum Beispiel bezüglich eines Kantschen Sinn-Elements oder der Möglichkeit,
die späten Schriften als Hinwendung zum Psychologismus zu deuten7) – soll dieser Aspekt der Theorie hier nur
kurz zusammengefasst werden: Für Kelsen besteht die Positivität einer Normenordnung darin, dass Recht (aber auch
gewisse Moralordnungen) positus, das heißt: der Sinn eines realen Willensaktes ist. Das Recht ist aber nicht
identisch mit diesem Willensakt, sondern ist “bloß” dessen Sinn. In der zweiten Auflage der „Reinen Rechtslehre“
findet sich ein locus classicus: Eine durch einen in der Seinswirklichkeit stattfindenden Willensakt gesetzte Norm ist
eine positive Norm. Vom Standpunkt eines Moral- oder Rechtspositivismus kommen als Gegenstand der Erkenntnis
nur positive, d.h. durch Willensakte, und zwar durch menschliche Willensakte, gesetzte Normen in Betracht.
Normen, die durch menschliche Willensakte gesetzt werden, haben – in des Wortes eigentlicher Bedeutung – einen
willkürlichen Charakter. […] die Seins-Tatsache […] des Gesetzt-Werdens [ist eine] Bedingung […] der Geltung
einer Norm, aber nicht diese Geltung selbst.8). ” Die Aktualität eines Grossen Rechstissenschafters und Soziologen
des 20. Jarhhunderts, p.27
15
Kammerhofer p. 26: “Die Reine Rechtslehre ist einepositivistisch-normativistischeRechtstheorie. In
einererstenAnnäherung kann man bei der Positivität des Rechts von dessenVerknüpfungmit der Realitätsprechen
und bei seiner Normativität von dem “Sollens”-Faktor”. Grifamos SOLLENS pelo sentido que emerge da palavra:
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O fator “Sollens”, “dever”, explicita a questão do “dever” em Immanuel Kant.
Atualmente, as proposições de Ralf Dreier, Jürgen Habermas e Robert Alexy ingressam no seleto
universo das concepções filosóficas que tentam explicar a juridicidade, por meio da teoria do
reconhecimento, segundo a qual o caráter jurídico de uma norma depende da opinião da
comunidade, ou de um processo discursivo racional ou argumentativo não institucionalizado. É a
linha filosófica alicerçada na confluência entre Kant e Weber, que vai se opor às teorias
positivistas do mandato e sanção de John Austin, com nuances diversas (na Europa continental e
América Latina) e do positivismo hartiano (Inglaterra e Estados Unidos).
Amparado pelo neokantismo, Kelsen insiste na objetividade e na pureza de sua
resistência científica anunciando a desvinculação Direito-Política e a liberação do Direito das
algemas da Moral. Quer fazer do Direito uma ciência, cuja epistemologia positivista privilegia o
empírico e o método normativo substitui a causalidade das ciências naturais pela noção de
imputabilidade. Agarra-se à distinção kantiana entre ser e dever-ser, diferenciação que, nos anos
seguintes, extremamente aprofundada, o conduzirá ao porto do irracionalismo. Anti-psicologista
propõe uma análise das relações necessárias entre os sentidos das normas, assemelhando-se à
concepção da linguagem não-empírica de Gottlob Frege16, para quem também os significados
são objetos abstratos.
Só para rememorar, Kant opera a divisão "mundo do ser (realidade) e mundo do dever-
ser (normatividade)", reservando ao primeiro o campo próprio das ciências naturais, em
particular, da matemática. Cohen aventura-se na aplicação ao campo das ciências do espírito
(Ética e Direito) do método transcendental kantiano criado para as ciências exatas. Opera um
Direito que significa a Ética em conceitos ou, para ser mais preciso, a Matemática da Ética. É
que a crítica da razão prática não observa o mesmo método da crítica da razão pura, em Kant.
Em Kelsen como em Kant, a realidade é dividida em mundo do ser e mundo do dever-
ser. Não há liame entre ambos. São mundos absolutamente estranhos, como categorias
originárias insuscetíveis de aproximação.
O mundo do ser é o dos fatos e, como tal, uma interligação causal. O mundo do dever-
ser é o das exigências de conduta, das pretensões de conformar a atividade humana. Aqui mora o
Direito, cuja gramática não diz o que acontece, mas o que deve acontecer. O universo jurídico é
o das normas que exigem determinados comportamentos. Daí que a Ciência do Direito é

DEVER. Nota do articulista: A teoria da norma jurídica, segundo Hans KELSEN, fundamenta-se na distinção
entre o sein (ser) e o sollen (dever), ou, seja, na existência do mundo físico, sujeito às leis da causalidade, e do
mundo social, sujeito às leis do espírito, as quais, sendo leis de fins, podem ser traduzidas em normas.
16
Friedrich Ludwig Gottlob Frege (Wismar, 8 de novembro de 1848 — BadKleinen, 26 de julho de 1925) foi um
matemático, lógico e filósofo alemão. Trabalhando na fronteira entre a filosofia e a matemática, Frege foi um dos
principais criadores da lógica matemática moderna.Cf. <https://www.passeidireto.com/arquivo/.../vida-e-obra-de--
friedrich-ludwig-gottlob-fre...>

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normativa (não causal) o que equivale a dizer, é o conhecimento dos conceitos e realidades
normativas.
Esta é a raiz do enfoque kelseniano. O mundo do ser é exterior; seus processos vitais
(sociológicos e psicológicos) embora constituam o conteúdo das normas ficam fora do Direito, já
que este é só forma. As considerações de ordem teleológica, também, posto que processos
psicológicos.
De fato, o conhecimento jurídico kelseniano tem por objeto normas que emprestam a
certos fatos o caráter de atos jurídicos. As normas expressam o sentido de atos de vontade, o que
deve ser.
Não é lícito ignorar que, na primeira fase de sua produção, a principal fonte filosófica é
a teoria do conhecimento de Immanuel Kant, notabilizada pela inversão da centralidade
gnosiológica do objeto para o sujeito cognoscente. Gera uma teoria pura (como teorias puras
foram denominadas as de Cohen e Stammler), empurrada pela preocupação obsessiva de conferir
caráter científico ao Direito, mediante a rígida cesura em relação à Psicologia, Sociologia,
Política e Moral. Concentrado na clássica divisão de mundos (de Kant), arremete contra os
jusnaturalistas incapazes de diferenciar o direito que é e o direito que dever-ser. Normatividade,
objetividade e recusa de qualquer sincretismo metodológico – essa é a tríade essencial do
pensamento kelseniano.
Por isso, não é todo Kant que interessa a Kelsen, mas apenas a metodologia da crítica da
razão pura. Trocando a causalidade pela imputabilidade, como critério metodológico
delimitador, define uma Ciência do Direito que repousa sobre uma categoria lógico-
transcendental: a norma fundamental hipotética. Rigorosamente, trata-se da Ciência do Direito
produzindo seu próprio objeto.
O professor Inocêncio Mártires Coelho reflete a complexa interpretação dos filósofos do
século XIX, que interpretaram Kant por um olhar “Inexato”, p.71. Continua o mestre Inocêncio
que aponta para o “cenário nebuloso” que Kelsen, “ciente da cientificidade do conhecimento
jurídico” faz no Direito, a “revolução copernicana” no “domínio cognitivo”.
Na ensinança do professor Inocêncio, vislumbra-se o “preconceito investido nos
próprios juristas” que antecedem a Teoria Pura do Direito. Nos leva ao pensamento de Gastón
Bachelard no que diz “ há vários métodos científicos, mas há um só espírito cientifico”(As
palavras grifadas, estão em itálico no original).
Falar em ciência pode significar inúmeras coisas, mas, dentre elas, é possível
estabelecer dois sentidos principais, o subjetivo e o objetivo. “A ciência entendida
subjetivamente não é senão um conhecimento sistemático”. Objetivamente, entende-se a ciência
como sabedoria, ou seja, particularidade do indivíduo. As pessoas que possuem uma ciência são

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capazes de compreender e realizar ações, desta forma, a ciência consiste em “uma aptidão
especial, naturalmente unida a um conhecimento próprio, neste caso o conhecimento de muitas
leis”. Por outro lado, a compreensão subjetiva da ciência vai além, consiste em um
“conhecimento sistemático”. Não são todos os indivíduos que têm conhecimento sobre
determinado assunto sabe disso, “mas apenas aquele que o penetrou sistematicamente e que,
além dos detalhes, conhece as conexões dos conteúdos”17.
A Norma Hipotética Fundamental de Kelsen
Uma norma nada mais é do que uma ordem de intenções que só pode ser deduzida de
outra norma - mais alta na ordem hierárquica da ordem legal. Isso leva a um recurso infinito a
uma norma pressuposta, cuja razão deve mais uma vez ter validade. Para reduzir isso a um limite
Kelsen introduz a chamada “norma fundamental”, termo criado pelo advogado austríaco Alfred
Verdross18 (1890-1980) em 1921, em seu artigo "A unidade da visão do mundo no Direito
internacional".
O padrão básico não está definido e não tem conteúdo. É necessário para completar um
sistema legal. A “norma fundamental” é, portanto, um pré-requisito lógico transcendental. Com
base nisso, um sistema legal é então definido como o conjunto de padrões que podem ser
rastreados até um padrão básico. Na primeira edição da "Teoria Pura do Direito" (1934), Kelsen
considerou sua “Norma Fundamental” como uma hipótese. Na segunda edição (1960), ele
começa a considerar o padrão básico como "ficção".19
Em suas obras, Kelsen propõe uma visão sistêmica do ordenamento jurídico. As normas
jurídicas não se encontram postas desordenadamente, mas, sim, umas em função das outras.
Hans Kelsen, que concebe, portanto, o ordenamento jurídico como um sistema escalonado e
gradativo de normas, em cujo topo deveria figurar a chamada Norma Fundamental, Norma
Ancestral ou Norma Hipotética Fundamental (Ursprungnorm). Em sentido ascensional, as
normas inferiores estão em relação de derivação com as superiores. Em sentido descensional, de
fundamentação. As normas superiores determinam a forma de produção das inferiores
autorizando sua produção e, até mesmo, determinando seu conteúdo. Todavia, este sistema
deveria ser uno e fechado, ou seja, o ordenamento jurídico é finito; há um fecho que lhe garante

17
BOCHENSKI, I. M. Los métodos actuales del pensamiento. Trad. Raimundo Drudis Baldrich. Madrid: Ediciones
Rialp, 1979. p. 29-30.
18
Alfred Verdross era filho de IgnazVerdroß von Droßberg, um Kaiserjägergeneral do exército austro-húngaro de
1911. Ele era um professor de direito internacional, escritor e filósofo jurídico. Primeiro diplomata, Verdross foi
professor em 1922 na Academia Consular, de 1924 a 1960 professor universitário na Universidade de Viena e de
1958 a 1977 juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ele também foi membro da Comissão de Direito
Internacional e do Institut de DroitInternational. In: Heribert Franz Köck: Vita ed opera del giuristaaustriaco Alfred
Verdross. In: RömischeHistorischeMitteilungen. Bd. 34/35, 1992/93, S. 299 ff. Visitado no sítio: <der
DeutschenNationalbibliothek> em junho de 2018.
19
Cf. Autobiografia de Hans Kelsen. Coleção Paulo Benevides. Tradução Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio
Coelho Mendes Neto. 4ª edição, p. 78.
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a unidade - a Norma Hipotética Fundamental.
O professor Jörg Kammerhofer, utiliza-se de Kelsen:
Eine durch einen in der Seinswirklichkeit stattfindenden Willensakt gesetzte
Norm ist eine positive Norm. Vom Standpunkt eines Moral- oder
Rechtspositivismus kommen als Gegenstand der Erkenntnis nur positive, d.h.
durch Willensakte, und zwar durch menschliche Willensakte, gesetzte
Normen in Betracht. Normen, die durch menschliche Willensakte gesetzt
werden, haben – in des Wortes eigentlicher Bedeutung – einen willkürlichen
Charakter. […] die Seins-Tatsache […] des Gesetzt-Werdens [ist eine]
Bedingung […] der Geltung einer Norm, aber nicht diese Geltung selbst.
“Uma norma estabelecida por um ato de vontade ocorrendo na realidade do
ser é uma norma positiva. Do ponto de vista de um positivismo moral ou
legal, o objeto do conhecimento é apenas positivo, i.e por atos de vontade e
por atos volitivos humanos, fixam normas em consideração. Normas
estabelecidas por atos humanos terão - no sentido literal da palavra - um
caráter arbitrário. [...] o ser-fato de [...] tornar-se posado [é] uma condição
[...] da validade de uma norma, mas não esta validade em si”.20
A discussão acerca da validade da norma jurídica traduz um importante
questionamento: a pertinência da norma ao ordenamento jurídico. Como leciona Norberto
Bobbio, saber se uma norma jurídica é válida, ou não, não é uma questão ociosa. Se uma norma
jurídica é válida significa que é obrigatório conformar-se a ela. E ser obrigatório conformar-se a
ela significa geralmente que, se não nos conformarmos, o juiz será por sua vez obrigado a
intervir, atribuindo esta ou aquela sanção".21
As normas jurídicas, diz-nos KELSEN, “brotam de haver certos casos, que, mercê de
uma outra norma, que lhes é anterior, têm o sentido de actos produtores de Direito”. Assim
sendo, “cada norma de grau inferior postula, além do acto que a produz, uma norma de grau
superior, em consequência da qual o acto que produz a primeira vem a ser visto como acto
jurídico”. Isto é, a lei considerada superior tem sua aplicação de forma que em consonância com
este fato a lei inferior será produzida. É em razão disso que a criação do direito se dá
concomitantemente à aplicação do direito22.
Nesse escopo,
O jusfilósofo HANS RYFFEL observa acertadamente que, de acordo com a
concepção de MAX WEBER, não pode a ciência produzir enunciados sobre a
justeza dos juízos de valor, nisso residindo já uma objecção à ciência do
Direito – “pois que esta se mantém e decai (no sentido rigoroso do termo), na
maneira como tradicionalmente a si se compreende, pela possibilidade de
uma abordagem assente em critérios de comprovação das questões de justeza
de valores, se bem que com recurso ao ordenamento jurídico vigente” (5). A
ciência jurídica labora – o que será pormenorizadamente explanado ao longo
deste livro – com base em modos de pensamento como a analogia,
comparação de casos, conformação de tipos e “concretização” de critérios
“abertos” de valoração, que possibilitam essa abordagem. A passagem a uma
“Jurisprudência de valoração” requer que a metodologia clarifique a

20
Jörg Kammerhofer, p. 27
21
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, 5ª ed.,
Brasília: UNB, 1982, p.61.
22
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2014. p. 104.

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especificidade destes modos de pensamento e a sua relação com os
instrumentos tradicionais de pensamento (elaboração de conceitos,
construção jurídica, subsunção)23.
Encontrar o desiderato da justiça em teorias que ignorem ou estabeleçam pouca
relevância ao estudo da norma jurídica pode ser muito inovador, mas padecem de alicerce teórico
capaz de efetivamente responder aos grandes questionamentos da ciência jurídica: “o que é o
direito? ”, “qual a diferença do direito para a moral?” e “qual a melhor maneira de resolver os
conflitos?”, posto que tudo o que conhecemos a respeito do direito e de como resolver os
conflitos que interessam ao direito tem por base a norma jurídica, seja ela, vista na posição
original e sob o véu da ignorância24, como integridade, sob argumentação25, retórica26,
jurisprudência ou de topos e topoi27.
Ser e dever-ser em Kelsen
O professor Inocêncio Mártires Coelho, chama-nos à reflexão da “separação” que Hans
Kelsen faz entre Natureza e Sociedade, chamando de “primeira depuração de Kelsen” (p. 77),
partindo em seguida para a “segunda depuração”, a saber: dever ser axiológico e o dever
neutral, puramente jurídico e por tal, cientificamente jurídico.
Com relação a segunda depuração, entendemos pela leitura o que Kelsen recomenda é
um estudo do direito como ele é no sentido de um estudo descritivo, de um exame que esclareça
o que o direito vigente é e estabelece, sem confundir-se e nem ser influenciado por avaliações
sem confundir-se e nem ser influenciado por avaliações a respeito do caráter moralmente correto
ou incorreto e politicamente útil ou nocivo dos conteúdos particulares postos pelas normas
jurídicas. Kelsen propõe, portanto, um estudo não avaliativo do direito, um estudo que possa
informar, de modo objetivo e neutro, qual o direito vigente.
Em última instância, Kelsen identifica aquilo que deve ser com aquilo que alguém quer
que seja, mais especificamente, com aquilo que alguém quer que outro alguém faça. Se alguém
quer que certa pessoa faça certa coisa, mas essa pessoa não tem nenhuma obrigação de fazer o
que a primeira quer que ela faça, então o querer da primeira pessoa significa apenas um dever ser
subjetivo, quer dizer, significa apenas que ela quer que certa pessoa faça certa coisa e que, por

23
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2014. p. 167.
24
RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção
Justiça e Direito)
25
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação
jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. (Biblioteca Forense de Direito
Internacional
26
PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. Vergínia K. Pupi. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004. p. 11-116. (Coleção Justiça e Direito)
27
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicos-
científicos. Trad. Kelly Suzane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. p. 11-116.
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12
isso, ela pensa que essa pessoa deve fazer essa certa coisa.
Para Norberto Bobbio, normas jurídicas identificarão o direito no contexto do
ordenamento jurídico e não isoladamente, assim, o que transforma a proposição em norma são a
sanção e a coação da sanção, sendo possível resolver casos difíceis a partir do estabelecimento
de uma ordem de solução, iniciando-se pela hierarquia, especialidade e, por fim, antecedência28.
As ações humanas interessam ao direito, mas nem sempre poderemos considerá-las
jurídicas, posto que somente as ações humanas reconhecidas pelas normas jurídicas são
consideradas jurídicas, sendo que, quando são impostas ou proibidas, encontram sanção no
ordenamento jurídico. Assim, quando se cumprem ou se descumprem sem que o ordenamento
jurídico interfira, vão buscar sanção no foro íntimo, no foro da consciência, até onde não chega a
força cogente do Estado.
A conduta humana (ser) só adquire uma significação jurídica quando coincide com uma
previsão normativa válida (dever ser). A conduta humana pode se conformar ou contrariar uma
norma e, dessa forma, pode ser avaliada como positiva ou negativa. Já as normas são
estabelecidas por atos de vontade humana e, por este motivo, os valores através delas
constituídos são arbitrários e relativos. Com efeito, outros atos de vontade humana poderiam
produzir outras normas, diversas das primeiras e, assim, constituir outros valores. A separação
entre "ser" e "dever-ser" permite, assim, que a teoria jurídica desenvolvida por Kelsen independa
do conteúdo material das normas jurídicas.
Depreendemos da ensinança de Kelsen que a separação entre "ser" e "dever-ser" não é,
todavia, absoluta. Embora Kelsen chame atenção para o fato de que a validade de uma norma, o
dever de se conduzir da forma como a norma determina, não pode ser forma como a norma
determina, não pode ser confundida com a eficácia da norma, ou seja, com o fato de que as
pessoas efetivamente assim se conduzem, admite que uma ordem coercitiva só possa ser
considerada válida quando seja globalmente eficaz.
As normas jurídicas gerais criadas pela via legislativa são normas conscientemente
postas, ou seja, estatuídas. Já os atos que constituem o fato legislação são atos produtores de
normas, ou também chamados atos instituidores de normas, denotando um sentido instituidor de
normas, ou seja, um sentido subjetivo de dever ser. Assim, através da constituição, o sentido
subjetivo é alçado a uma significação objetiva, o que transforme o fato legislativo como fato
produtor do direito.
A opinião prevalecente na doutrina dogmática é de que a norma jurídica é uma espécie
de imperativo despsicologizado, isto é, um comando no qual não se identifica o comandante nem

28
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Trad. Denise Agostinetti. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
(Coleção Justiça e Direito).

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13
o comandado, posto que, de um lado, a figura do legislador ou de quem quer que seja o emissor
de normas parece perder sua importância depois de posta a norma e, de outro, os destinatários da
norma não se identificam, posto que normas jurídicas são comandos genéricos e universais29
Segundo Kelsen, “a natureza consiste num complexo de fatos do ser e fenômenos reais;
e um conhecimento dirigido a esse objeto somente pode afirmar que algo é, e não que algo deve
ser”30. Com isto Kelsen distingue claramente o objeto de estudo do jurista, diferenciando-o do
objeto das ciências naturais. Ao primeiro, cabe estudar como as coisas devem ser ou acontecer;
ao outro, cabe verificar como são ou acontecem efetivamente.
O dever-ser previsto por Kelsen deve ser garantido, no entender de Bobbio, por um
elemento exterior à norma, que induza a que o ser seja efetivamente semelhante ao dever-ser.
Afirma Bobbio que norma jurídica é “aquela norma cuja execução é garantida por uma sanção
externa e institucionalizada”31.
O Direito Internacional em Kelsen
Hans Kelsen, no artigo do professor Kammerhofer, recebe apreciação quanto sua
elasticidade teórica no Direito internacional. Citamos trecho do artigo do professor deitado na
pg. 29 do artigo em alemão:
Jenseits zirkelschlüssiger Argumente lohnt es sich aber, die herrschende
Völkerrechtslehre genauer zu analysieren. Hersch Lauterpacht argumentiert
zum Beispiel, dass man die Rechtsprinzipien „mittels Vergleich,
Verallgemeinerung und Synthese von Rechtsregeln, die verschiedenen
nationalen Rechtsordnungen gemein sind“16) zumindest erkennen kann. Das
Argument tendiert sowohl bei Lauterpacht als auch bei anderen eindeutig von
Erkenntnis zu Erzeugung. Mit anderen Worten: diese Art von Völkerrecht
wird in letzter Konsequenz durch eine Analogie erzeugt, denn „der Vergleich
der Rechtsordnungen verschiedener Länder [wird] mit einer Deduktion
daraus kombiniert”.17) In solchen Aussagen zeigt sich nicht nur das Problem
Kelsens mit den allgemeinen Rechtsprinzipien, sondern auch das
Unverständnis der herrschenden Lehre für die Argumente der Reinen
Rechtslehre. Es wird nicht überraschen, dass einige antipositivistische
Völkerrechtslehrer die Präsenz dieser Prinzipien im Kanon der anerkannten
Völkerrechtsquellen als Beweis dafür ansehen, dass der Positivismus nicht
als theoretische Basis der Völkerrechtslehre taugt. Shabtai Rosenne behauptet
zum Beispiel, dass die Aufnahme von lit c in Art 38 Abs 1 hieße, dass die
allgemeinen Rechtsprinzipien „formell gleichrangig mit den zwei
positivistischen Elementen der Gewohnheit und des Vertrages“18) seien. Es
ist interessant, dass er von den „positivistischen“, nicht “positive” Elementen
qua Rechtsquellen schreibt, als ob Rechtsquellen einer rechtsphilosophischen
Schule zugehören könnten, statt dem Recht selbst.
Além da argumentação circular32, entretanto, vale a pena analisar a teoria

29
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 1994. p. 118.
30
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
1994, p 7.
31
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Apresentação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Trad. Maria
Celeste C. J. Santos. Revisão técnica de Cláudio De Cicco. 5.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p.27.
32
Raciocínio circular é um tipo de argumento falacioso que consiste em justificar a conclusão que está sendo
defendida usando a própria conclusão, com palavras um pouco diferentes. No raciocínio circular, nenhuma
informação útil é acrescentada para sustentar a conclusão. Podemos exemplificar a petição de princípio com
exemplos como “Matar não é certo, logo matar não é certo”. Mas quando ocorre realmente na argumentação é
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14
predominante do direito internacional em mais detalhes.
HerschLauterpacht33 argumenta, por exemplo, que os princípios legais
"podem pelo menos ser identificados por meio de comparação,
generalização e síntese de normas jurídicas que são comuns a diferentes
sistemas jurídicos nacionais" 16). O argumento, tanto em Lauterpacht como
em outros, tende claramente do conhecimento à geração. Em outras
palavras, esse tipo de lei internacional é gerado por uma analogia, pois "a
comparação dos sistemas jurídicos de diferentes países é combinada com
uma dedução dela" .17 Tais afirmações não só mostram o problema de
Kelsen com o geral. Princípios legais, mas também a falta de compreensão
da doutrina predominante para os argumentos da Teoria Pura. Não
surpreende que alguns professores de direito internacional antipositivistas
considerem a presença desses princípios no cânon de fontes reconhecidas do
direito internacional como prova de que o positivismo não é a base teórica
do direito internacional. ShabtaiRosenne34, por exemplo, afirma que a
inclusão do litc no artigo 38 (1) significa que os princípios gerais do direito
são "formalmente iguais aos dois elementos positivistas do hábito e do
contrato" 18). É interessante que ele escreva sobre elementos "positivistas"
em vez de "positivos" de fontes legais, como se fontes legais pudessem
pertencer a uma escola de direito, ao invés da própria lei. (Pg.29)
A obra Princípios do Direito Internacional de Hans Kelsen, publicada em 1952, teve sua
primeira tradução para a língua portuguesa publicada no Brasil pela Editora Unijuí, no ano de
201035. Nesta, o livro mantém a mesma estrutura do original, tendo seu prefácio e seus cinco
capítulos precedidos por uma apresentação e uma introdução, escritas, respectivamente, por
Arno Dal Ri Júnior e por François Rigaux. A obra teve importante repercussão no que tange ao
Direito Internacional, fundamentando a Teoria Pura do Direito no âmbito das relações
internacionais36.
Kelsen busca afirmar que a ordem jurídica mundial estabelece-se de forma unitária,
conforme a teoria monista internacionalista, compreendendo que a ordem internacional prevalece
sobre as leis elaboradas pelo Direito Nacional, visto que compreende o Direito Internacional
como Direito no verdadeiro sentido do termo. A obra de Kelsen teve grande significância na
questão que trata dos sujeitos do Direito Internacional que, na visão tradicionalista, eram
representados apenas pelos Estados. Kelsen abre margem para a inserção de outras entidades no
grupo dos sujeitos, notoriamente, para a inserção do próprio indivíduo, receptor de direitos e

frequente a conclusão apresentar algumas (por vezes consideráveis) modificações linguísticas, de forma a não
parecer uma mera repetição. Por exemplo: “Matar seres humanos não é moralmente certo; logo matar pessoas é
eticamente errado” ou “O boxe é um esporte inseguro e arriscado; logo, o boxe é
perigoso”.In:<https://filosofianaescola.com/falacias/raciocinio-circular-peticao-de-principio/>
33
Sir HerschLauterpacht QC (16 August 1897 – 8 May 1960) was a Polish-British lawyer and judge at the
International Court of Justice.
34
Shabtai Rosenne (24 November 1917 – 21 September 2010) was a Professor of International Law and an Israeli
diplomat. Rosenne was awarded the 1960 Israel Prize for Jurisprudence, the 1999 Manley O. Hudson Medal for
International Law and Jurisprudence, the 2004 Hague Prize for International Law and the 2007 Distinguished
Onassis Scholar Award. He was the leading scholar of the World Court - the PCIJ and ICJ and had a widely
recognized expertise in treaty law, state responsibility, self-defence, UNCLOS and other issues of international law.
35
KELSEN, Hans. Princípios do Direito Internacional. Tradução de Gilmar Antonio Bedin e Ulrich Dressel. Ijuí:
Editora Unijuí, 2010.
36
Também teve especial relevância para o entendimento do Direito Penal.

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15
obrigações, mesmo que indiretamente, pelas normas internacionais.
As normas jurídicas não são instruções, pois o direito prescreve, permite, confere poder
ou competência, mas não ensina. A ordem jurídica segue o princípio da imputação, não o da
causalidade, portanto, trabalha com a deontologia, o dever ser. Sob esse aspecto, um indivíduo
que comete um delito deve ser sancionado, o que não significa que efetivamente o será. Assim,
se determinada conduta é tida como delito, o indivíduo tem a obrigação jurídica de se comportar
de forma contrária àquela conduta para que não receba uma sanção.
O professor Inocêncio Mártires Coelho, ao percorrer 5(cinco) capítulos, na explanação
que segue para a compreensão metodológica do pensamento de Kelsen, torna explicito e muito
claro, no capítulo 6, com propriedade a seguinte sentença:
Em face dessas colocações, parece não restar dúvidas de que o “positivista”,
o “formalista”, o “rigoroso”, o “purista”, enfim, o ultra “dogmático” e tão
criticado Hans Kelsen, se teoricamente pretendeu excluir fatos e valores de
atividade do intérprete/aplicador do direito qua tale, em verdade só o fez
aparentemente, porque, mais do que ninguém, ele sabia que esses fatores,
sendo imanentes à experiência jurídica, se forem expulsos pela porta dos
ordenamentos-concebidos, abstratamente, como sistemas fechados- a eles os
mesmos fatos e valores retornarão pelas janelas, as quais hão de permanecer
necessariamente abertas, para que nelas penetre o sopro vivificador da
realidade, em constante transformação.(Ipsis litteris, p. 103).
Assim como no Direito Nacional, o Direito Internacional possui uma ‘Constituição’,
mas em sentido figurado. No âmbito do Direito Nacional, a Constituição é uma norma que dá as
diretrizes e encaminhamentos gerais necessários à formação do Estado. Dessa forma, a norma
que regula a criação de outras normas é hierarquicamente superior às demais, estando em
“posição privilegiada”na representaçãodo ordenamento jurídico. Devido a isso, a Constituição
de um Estado é tida como a fonte primeira do Direito daquela nação.
No que trata do Direito Internacional, entendem-se como suas principais fontes os
costumes e os tratados, que simbolizam, respectivamente, o Direito Internacional
consuetudinário geral e o Direito Internacional convencional particular, sendo ambas fontes
descentralizadas de criação de direitos. Já no Direito Nacional, fala-se em fontes centralizadas,
representadas, acima de tudo, pela legislação. O Direito consuetudinário é o Direito Internacional
geral, que é aplicado a todas as pessoas em todos os lugares, enquanto o Direito Privado é aquele
estabelecido pelos tratados, visto que se aplica apenas a alguns Estados, tendo caráter
restringente.
Sendo o Direito Internacional um Direito no verdadeiro sentido do termo, ou seja, tendo
verdadeiro caráter jurídico, equipara-se ao Direito Nacional, visto que não é possível, segundo
Kelsen, que existam dois sistemas de normas diferentes, mas igualmente válidos nos mesmos
âmbitos temporal, material, espacial e pessoal. Concordar com a existência de dois sistemas
distintos entre si e válidos da mesma forma seria concordar com a existência de duas normas

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16
simultâneas sobre o mesmo tema, sendo que uma prescreve um dever ser e a outra um não dever
ser. Assim, entender uma ordem internacional distinta da ordem nacional seria permitir as
antinomias, as contradições entre normas, porque, sendo as duas ordens aplicadas para as
mesmas pessoas, teriam os mesmos âmbitos de validade. A existência de uma ordem
internacional e uma nacional é uma proposição incompatível, visto que Kelsen entende que a
existência de conflitos insolúveis entre o Direito Internacional e o Direito Nacional é impossível.
Assim, passa-se a uma análise dos dois sistemas, que se integram através de uma relação de
coordenação ou de subordinação. A coordenação supõe que os dois ordenamentos estão em um
mesmo patamar, não havendo uma relação de superioridade/inferioridade, sendo que ambos se
subordinam à norma fundamental. Já a relação de subordinação não compreende os dois como
iguais, mas o sistema internacional seria superior ao nacional, de forma que o fundamento de
validade deste deriva daquele. Kelsen compreende que o monismo internacional é fruto dessa
relação de subordinação, na qual tanto a ordem jurídica nacional quanto a internacional seriam
igualmente válidas sob o ponto de vista do positivismo, mas reconhecer o Direito Internacional
como superior configura uma postura objetivista.
A teoria kelseniana foi fundamental para o estabelecimento da relação, por vezes
ignorada, entre o Direito Internacional e o Interno. O fato da ordem jurídica internacional ser
anárquica, portanto, descentralizada e não submetida a nenhum órgão hierarquicamente superior,
torna difícil uma equiparação à ordem jurídica nacional. Entretanto, ao alegar a subordinação da
ordem nacional à internacional, Kelsen integra com primor os dois sistemas, conferindo a um
princípio do Direito Internacional o caráter de norma fundamental. Sabe-se que o monismo
internacionalista é aceito por vários Estados, como a França, mas a teoria dualista, que encara a
ordem internacional como algo diferente da ordem nacional, não admitindo sua unicidade,
também é aplicada por outros Estados, como ocorre no Brasil.
O fato do Estado poder escolher se seu Direito Nacional tem ou não proeminência sobre
o Direito Internacional revela uma autonomia daquele, que tem a liberdade de ser ou não
soberano. Kelsen busca fazer uma teoria pura do direito, portanto, sem a interferência de
qualquer valor, para, então, atingir a cientificidade. Assim, o autor ignora o fato de poder haver
várias normas valorativas contraditórias entre si ao admitir a unidade do ordenamento. Esse
relativismo dos valores é base para toda sua doutrina, que se fundamenta ao considerar a
diversidade cultural, não sendo possível admitir a questão valorativa como âmbito de validade
para a ordem jurídica.
Jörg Kammerhofer, em seu artigo, reflete por outras técnicas e aflui para o mesmo
raciocino do professor Inocêncio.
Der wahre Feind der Rechtswissenschaft ist nicht so sehr eine philosophisch
fundierte Naturrechtslehre sondern ein unreflektierter, theoretisch seichter

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17
„Positivismus“, bei dem die Zustimmung der Staaten zur notwendigen,
apriorischen Grundlage des Völkerrechts wird. Die Reine Rechtslehre tut dies
aber nicht: 1. Zwar wird ein Willensakt zur Erzeugung von positiven Normen
verlangt, nicht jedoch (z.B. im Völkerrecht) notwendigerweise der
Willensakt von Menschen, die der juristischen Person „Staat“ zuzurechnen
sind. 2. Der reale Willensakt ist keine conditio per quam und eine conditio
sine qua non auch nur für die Positivität des Rechts. Die Bedingungen der
Rechtserzeugung und Geltungsgrundlage des erzeugten Rechts liegt nicht im
Willen eines essentialisierten, verabsolutierten Staates, sondern im Recht
selbst, in der Ermächtigungsnorm. Ein Positivismus, der das „positus“ ernst
nimmt, kann sich nicht hinter Notwendigkeiten verstecken und muss
beschreiben, was das Recht vorschreibt, auch wenn das rechtstechnisch nicht
“funktioniert”, auch wenn das Ergebnis (auch) dem Positivisten ideologisch
nicht gefällt. (p.34)
O verdadeiro inimigo da jurisprudência não é tanto uma doutrina filosófica
da lei natural como um "positivismo" superficial e superficial, no qual o
consentimento dos estados torna-se a base necessária, a priori, do direito
internacional. A Lei Pura, no entanto, não o faz: 1. Embora um ato volitivo
seja requerido para produzir normas positivas, ele não exige
necessariamente (por exemplo, no direito internacional) a volição de pessoas
pertencentes à pessoa jurídica "estado". 2. O verdadeiro ato da vontade não
é um conditio por quam e uma condição sine qua non para a positividade do
direito. As condições da produção legal e a base de validade do direito
criado não estão na vontade de um estado essencializado e absolutizado, mas
na própria lei, na norma de habilitação. Um positivismo que leva o "positus"
a sério não pode se esconder atrás das necessidades e deve descrever o que a
lei exige, mesmo que isso não "funcione" tecnicamente, mesmo que o
resultado não apele (ideologicamente) ao positivista. (p.34).
A partir da publicação das obras do autor, todos os que pretendem um estudo sério da
ciência jurídica hão de manter um permanente diálogo com Kelsen, nas palavras do jurista
espanhol Luis Legaz y Lacambra,37 tradutor de Teoria General deI Estado. De todo modo, a
despeito da dificuldade inicial de leitura de sua obra, por ser assaz minuciosa, detalhista,
repetitiva e extraordinariamente lógica - como diz Fábio Ulhôa Coelho38 além de abstrata, a
genialidade de seu pensamento recompensa o esforço de estudá-lo, ainda que, com a ajuda das
conclusões de outros autores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS (Schluss)
Algumas palavras finais para o artigo se fazem necessárias. Tanto o mestre Jörg
quanto o sábio professor Inocêncio, nos fazem pensar na importância inexorável do pensamento
de Hans Kelsen. O jurista de gênio privilegiado, não passa indelével no pensamento jusfilosófico
do século XX, essa é a conclusão que chegamos. O debate com Kelsen é inexorável e premente.
Ainda uma vez mais, em reforço, citamos o professor Inocêncio:
É precisamente esse “levar em conta” normas não jurídicas, transformando-as
em jurídicas no ato de criação do direito − sob a forma de lei ou decisão
judicial− que evidencia, a nosso ver, o quanto Hans Kelsen −“o jurista por
antonomásia” – mesmo empenhado na “purificação” da ciência jurídica,
sempre teve presente o papel da realidade da vida do direito, tanto que, para
surpresa dos críticos do seu formalismo jurídico, asseverou que não se pode
negar que uma ordem jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica

37
Apud Tércio Sampaio Ferraz Jr. in Por que ler Kelsen, hoje, publicado em O Estado de São Paulo, em 1°-11-81,
suplemento Cultura, também publicado em apêndice ao estudo já referido de Fábio Ulhôa Coelho.
38
In: Para entender Kelsen, 1995, ed. Max Limonad, anteriormente citada à guisa de prefácio.
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18
singular, perde a sua validade quando deixa de ser eficaz. 142. Afinal, se dos
fatos nasce o direito, em razão deles o direito também deixa de existir. (n.
142: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2. ed. Coimbra: A. Amado,
1962. v. 2. p. 40-42.). Texto no original: Por que voltar a Kelsen, o jurista do
século XX? Why study Kelsen, a legal writer from the XX century?
In:<https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/viewFile/279
1/pdf> (No livro base que utilizamos, p. 104.).
Kelsen nunca negou a conexão entre o direito e as outras ciências sociais; ocorre que,
para ele, esta conexão foge ao estudo do jurista, de vez que, não têm importância no estudo do
significado da norma jurídica39, O estudo científico do direito deve ser neutro, portanto.
Havia verdadeiro perigo em se confundir conceitos, se o jurista não separasse aquilo
que pertencia apenas ao direito, enquanto sistema de normas, uma vez que o jurista poderia ser
levado a significados errôneos de uma determinada norma, dadas as influências sociais e
valorativas das outras ciências.
Foi com base nesta premissa que o autor propôs o denominado princípio da
pureza(depuração) mencionado pelo professor Inocêncio, através do qual o direito deveria ter
um enfoque exclusivamente normativo, vale dizer: o direito, para o jurista, deve ser encarado
como norma (e não como fato social ou como valor transcendental), isso no tocante ao método e
ao objeto.
Kelsen, destarte, levou a efeito um estudo proeminentemente epistemológico do direito,
porquanto, um estudo voltado ao conhecimento das normas jurídicas.40 Uma visão de dentro do
direito. Reduzia-se assim, o objeto jurídico à norma em geral, não ao ordenamento positivo de
um determinado país.
O seu pensamento purista lhe custou caro e foi a fonte de inúmeras polêmicas, foi
contestado por jusnaturalistas, por realistas sociológicos e por juristas mesmos.
Na Teoria Pura do Direito, edição de 1960, Kelsen afirma, quanto à relevância, que as
normas que prescrevem a sanção são denominadas primárias, e as que prescrevem
comportamento, secundárias. As primeiras, a toda evidência, teriam maior interesse e
importância ao estudo do direito.
Para encerrar este despretensioso debate de ideias considerando dois pensadores sérios
sobre Hans Kelsen, é preciso ventilar algumas considerações a propósito de sua hermenêutica
jurídica.
As leis editadas pelo ordenamento, segundo Kelsen, podem ter margens de

39
Ferraz Jr., obra já citada.
40
Segundo o dicionário Aurélio. Epistemologia, quando voltada à filosofia, significa: O estudo crítico dos
princípios. Hipóteses e resultados das ciências já constituídas. E que visa a determinar os fundamentos lógicos. O
valor e o alcance objetivo delas; teoria da ciência. De sua sorte, em relação ao Direito. Diz Fábio Ulhôa Coelho que
A epistemologia não cuida diretamente do direito. Nem da interpretação de ordens jurídicas determinadas. Mas do
meio pelo qual se conhecem essas realidades, ou seja. Ele trata do processo de construção daquilo que no Brasil se
conhece por doutrina e em outros países se conhece como Jurisprudência (op. cit., p. 21).

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19
indeterminação, quanto ao seu significado, sendo certo que isto seria inerente à positivação de
normas jurídicas.
Para entender o conteúdo das normas, há duas espécies de interpretação: a autêntica,
desenvolvida pelo órgão com competência para editar e aplicar a norma jurídica; e a não
autêntica, levada a efeito pelos doutrinadores do direito e pelas pessoas em geral.
Posto isto, para Kelsen, a interpretação não-autêntica, realizada pela ciência do direito,
fixa os limites dos significados da norma, dos tipos normativos. Cabe à interpretação não-
autêntica encontrar as múltiplas significações possíveis e atribuíveis à norma. Todavia, para
Kelsen, a tarefa da ciência jurídica pára aí, e não pode ir além. Vale dizer: para Kelsen, é
possível a pluralidade de significações cientificamente pertinentes a cada norma jurídica. Todas
as significações possíveis da norma, dentro de sua tipicidade, têm valor igual. Deve-se, destarte,
superar a ficção de uma única interpretação correta para cada norma interpretada.
Através da compreensão do sistema jurídico idealizado por Kelsen, nota-se que ele se
manteve alheio a quaisquer ideologias, ou mesmo a qualquer pressuposto metafísico
transcendente ou jusnaturalista. Mercê de sua cientificidade, trata-se de uma teoria aberta a todos
os fins, por isto que afinalista41.
E ainda que alguns pretendam atribuir a teoria de Kelsen a pecha de “direito superado”,
“direito do passado”, sua atualidade e aplicabilidade é de uma importância tal, que nos tribunais
brasileiros, vemos inúmeros julgados, baseados nesta doutrina.
Nesta decisão o Tribunal reconhece que a estrutura hierarquizada de normas
penetrou os segmentos da jurisprudência e doutrina no Brasil:
“Com base no dogma da hierarquia normativa, cujas raízes lógicas e
axiológicas remontam aos célebres trabalhos do notável jurista austríaco
HANS KELSEN (1881-1973), os Juristas afirmam, sem discrepâncias de
tomo, que a produção normatizadora da vida jurídica e social do País se faz
por meio de autêntica escala de instrumentos reguladores, em sentido
decrescente, a partir da Constituição: as emendas constitucionais, as leis
complementares, as leis ordinárias, as medidas provisórias e dos decretos
legislativos (art. 59 da CF). (REsp 926011 / DF RECURSO ESPECIAL
2007/0032125-0. Relator (a) Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128).
Data da Publicação/Fonte DJe 09/12/2008) ”.
Nesta decisão o Tribunal reconhece que uma norma jurídica se fundamenta em outra
que lhe é imediatamente superior:
“Julgados plúrimos, do Egrégio STJ, em cuja esteira houve vários outros,
nesta Corte, no sentido de que tais portarias, que guardam menor hierarquia
no cotejo dos Decretos-Lei 2283 e 2284/1986, não poderiam ter
excepcionado a regra do citado plano econômico que visou o alcance da
estabilidade monetária. Pirâmide das normas, que Jurisprudência/STJ -
Decisões Monocráticas aqui se recorda, no precioso escólio de Hans Kelsen.
Ilegalidade manifesta, como também inconstitucionalidade, das normas de
hierarquia mais baixa, tanto à luz da Carta de 1988, quanto da que vigorava
naquele tempo; de 1967/1969 (Processo REsp 1087093. Data da Publicação

41
Reale, Miguel. Filosofia do Direito, Saraiva, 1990, p.474.
Ab Origine – Cesut em Revista. V. 2, N. 27, jul/dez 2018 ISSN 2595-928X (on-line)
20
DJe 04/03/2009).
A Corte Superior leciona nesta decisão a validade quando inserida no sistema jurídico:
“Em outros termos, o comando normativo encontra validade exclusivamente
quando apreciado como fração de sistema, relacionado a este, conforme
lecionam Hans Kelsen e Norberto Bobbio, entre outros mestres” (STJ.
Processo REsp 1095537. Data da Publicação DJe 16/12/2009)
No Recurso Especial 122108 de 03 de fevereiro de 2011 o Superior Tribunal de Justiça
fundamentou sua decisão em Hans Kelsen sustentando que:
“Cita-se, por oportuno a lição de Hans Kelsen, quanto à hierarquia de
normas, impondo a estreita abrangência da norma inferior, face ao conteúdo e
comando de norma superior, de forma a permitir a normatização harmônica
da situação jurídica que se pretenda ordenar (...)Ainda que a prestação de
serviços do nutricionista permita o enquadramento das refeições servidas aos
trabalhadores às normas de segurança alimentar e nutricional da legislação
vigente, a exigência não encontra respaldo legal, merecendo ser provido o
apelo no ponto. Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo”.
O entendimento que passa pelas páginas de pesquisa que formatam esse trabalho de
pesquisa, levam à satisfação de se aproximar do pensamento de Kelsen com menos “empecilhos”
teóricos, e o raro momento de sentar-se aos pés de um grande instrutor da Lei, que jamais será
esquecido por estes autores, que são seu alunos e discípulos.
Kelsen teve enormes méritos e talvez o maior deles tenha sido, no dizer de Miguel
Reale, o de ter buscado e alcançado o alto objetivo de assegurar a todas as correntes igual
possibilidade de manifestar-se no plano político, a salvo de qualquer solução totalitária. Em
outras palavras: um campeão da democracia sem conteúdo social e econômico determinado.42 O
Ou ainda, no dizer recente de Norberto Bobbio, visto no contexto das entre guerras: o maior
teórico da democracia daqueles anos. 43
REFERÊNCIAS:
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Tradução Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. 4ª edição, 2012.
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Soziologen des 20. Jarhhunderts. Herusgegeben von: Nikitas Aliprantis und Thomas
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MARTIRES COELHO, Inocêncio: “Por que voltar a Kelsen, o jurista do século XX?
Publicado no livro: A Teoria Jurídica de Hans Kelsen (Reflexões críticas sobre a Teoria Pura e
Diálogos com o Direito Contemporâneo”. Orgs. Ivan Cláudio e Pereira Borges Lumens Juris,
Rio de Janeiro, 2018, pp.67-105. As citações do nobre professor Doutor serão tiradas da Obra
mencionada.
Obras subsidiárias:

42
. 7 Op. Cit. p. 474.
43
In:Direita e Esquerda - Razões e significados de uma distinção política, ed. Unesp, 1995, p. 50. Bem se observa
que o consagrado autor italiano, esforçando-se por manter a dicotomia direita e esquerda viva, não ousou inserir
Kelsen entre os denominados de esquerda, ou entre os chamados de direita. Tal tarefa, essa sim, parece-nos
praticamente impossível, e estéril, dada a cientificidade da obra de Kelsen, que, do ponto de vista teórico-científico,
o levou inexoravelmente à neutralidade, ao abrigo das incursões político-ideológicas.
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