Professor titular de Ética e de Filosofia Política na USP – possui doutorado.
No final do capítulo 15 do Leviatã, Thomas
Hobbes diz que as leis de natureza que ele andou expondo – e que determinam o advento da vida social – não são propriamente leis, mas "apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a conservação e defesa de cada um, ao passo que a lei, em sentido próprio, é a palavra daquele que tem direito de mando sobre outros". Muitos comentadores do filósofo exultam com essa passagem. Ela permite laicizar o poder. Ela permite, mais que isso, afirmar que não existe lei sem Estado – e que a obrigação de cumprir as quase vinte leis que Hobbes andou enunciando é da ordem da prudência, não da ética ou da moral.
Não há moral antes do Estado, dizem
eles, e para confirmá-lo eles se valem do cap. 13 do mesmo livro, no qual Hobbes observa que não há bem nem mal, justo nem injusto, se não houver um poder comum capaz de manter a todos em respeito. Tudo parece razoavelmente consistente, a um leitor que não exija muito.
Porque o problema é que essa citação
está truncada! Hobbes não termina o parágrafo – nem o capítulo – com ela, mas acrescenta uma frase que, esta, quase nunca é citada pelos defensores da interpretação que acabamos de mencionar: "No entanto, se considerarmos os mesmos teoremas como transmitidos pela palavra de Deus, que tem direito de mando sobre todas as coisas, nesse caso serão propriamente chamados leis".
Como entender estas últimas, e tão
omitidas, palavras? Aliás, há duas coisas a entender aqui. A primeira é por que tantos comentadores simplesmente omitem uma expressão tão clara, tão forte ("serão propriamente chamados leis").
Seria mais honesto citar o texto por
inteiro, e depois disso procurar explicá-lo – por exemplo, reduzindo o alcance da conclusão. Mas por que nem mesmo a mencionar?
Assim, a primeira dúvida diz respeito aos
comentadores, à fortuna crítica de Hobbes, ao modo pelo qual se constituiu uma imagem dele que desconsidera sua religião.
Essa imagem chegou ao ponto de dizê-lo
ateu, naquela que foi uma leitura bastante corrente do século XVII ao XIX. Hoje, há talvez um eco dessa leitura na idéia, razoavelmente difundida, de que a teoria da obrigação hobbesiana afirmaria uma obrigação fraca, apenas prudente, não ética. Deixo claro que respeito essa leitura. Em nossos dias, praticamente se abandonou a tese – sempre feita, naqueles tempos, em termos acusatórios – de que Hobbes não acreditaria em Deus. Mas manteve-se uma sua conclusão prática, o corolário de que não haveria obrigação forte na ausência do Estado.
Posso não concordar com certas teses,
mas devo reconhecer o seu duplo mérito: não só o de haver estudado com atenção este ponto, como o de ter formulado hipóteses para resolvê-lo.
Recordo os estudos de Taylor, Warrender
e Hood – os três, pouco conhecidos entre nós –, que formularam, com variantes, a idéia de que a obrigação hobbesiana é forte, tendo teor ético e base religiosa.
Discutirei, aqui, a base religiosa. Não teria
sentido eu tentar resumir o que o leitor lerá, melhor, ao longo do livro, ou seja, tudo o que diz respeito à obrigação ética.
A questão não é se Hobbes, indivíduo,
acreditava ou não em Deus ou na versão anglicana do cristianismo. O que importa saber é o papel que ele atribui a Deus e à religião em sua filosofia.
Ora, já de começo se nota que um bom
terço das suas grandes obras políticas trata da religião. As leis de natureza são, depois de provadas pelo uso da razão, confirmadas pelo recurso às Escrituras.
Mais importante que tudo isso, ele
desenvolve, em toda a terceira parte do Leviatã, uma interpretação bastante interessante do cristianismo. E dedica a quarta parte a uma crítica em regra da instituição religiosa, tal como a Igreja Católica Romana a constituiu, enquanto aparato de poder que ameaça o soberano.
Não é pouca coisa, isso. Mas poucos leram
ou lêem essas passagens. Costuma-se partir de um pressuposto, o de que Hobbes contribui decisivamente para se ter um soberano leigo, e por isso se omite tudo aquilo que possa – não digo contrariar – pelo menos complicar essa imagem esquemática. E o fato é que a teologia hobbesiana soa muito estranha.
Nosso filósofo nega que a alma seja
imortal, por exemplo. Nega que ela exista separada do corpo. Diz que ela é um sopro, e que se extingue quando morremos.
Seremos todos ressuscitados para o Juízo
Final, e então os justos terão a vida eterna (como dádiva de Deus, não como recompensa por eventuais boas ações), enquanto os maus sofrerão uma segunda e definitiva morte.
Não há inferno, portanto, a não ser como
o lugar – ou o tempo – desta última morte dos condenados. E não há vida eterna de sofrimentos, só de beatitude.
Que Hobbes não reconhecesse o
purgatório não constituiria problema, já que esse lugar intermediário entre céu e inferno só existe para os católicos; os protestantes jamais acreditaram nele. O problema está em ele suprimir o inferno como residência permanente no Além.
Além disso, Hobbes mantém uma
polêmica bastante ácida com o bispo de Derry, na Irlanda, o anglicano Bramhall, no correr da qual diz ao prelado que não acredita no livre arbítrio; o poder de Deus é tão grande que todos os nossos atos estão pré-determinados por Ele desde sempre (pré-determinados, não predestinados, expressão que não lembro nunca ter lido em Hobbes).
Entre outras exclamações de cólera, o
bispo acusa-o de tirar a justiça do céu (porque ninguém será salvo por merecimento próprio, mas apenas porque Deus o escolheu) e – pior que isso, diz ele – de extinguir o inferno.
Soa estranha essa doutrina, mas nada
nela é incompatível com o que sabemos das teologias em disputa no século 17. Overton, por exemplo, líder leveller, publicou durante a Guerra Civil Inglesa um interessante opúsculo intitulado A mortalidade do homem, sustentando teses praticamente idênticas às de Hobbes no tocante à alma.
D. P. Walker escreveu, há poucas
décadas, um livro fascinante sobre o declínio do inferno no século 17 inglês.
Quanto ao livre arbítrio, ele estava longe
de ser consensual. O que acontecia era que as idéias mais assustadoras os filósofos as guardavam para seus correspondentes mais chegados.
Assim, quanto a termos ou não livre
arbítrio, em público Hobbes responde a essa questão de maneira um tanto obscura, no começo do capítulo 21 do Leviatã. Para os leigos, portanto, umas frases algo vagas. Ele se abre, porém, no debate privado com Bramhall, para o qual foi convidado por um amigo comum. Só assim se entende a raiva que Hobbes sentirá quando o bispo mandar imprimir as cartas que trocaram. Hobbes pensava que estavam discutindo entre pensadores, em sigilo, ambos conscientes dos perigos que haveria em colocar matéria tão explosiva ao alcance de qualquer um.
Mas Bramhall sentiu que lidava com um
homem perigoso, desses que as ditaduras do século 20 chamariam de "subversivos", e considerou que era seu dever divulgar-lhe as idéias, para expô-lo à execração pública ou, talvez, a coisa pior, quem sabe, à execução como herege. Essa comédia de erros, cada um entendendo mal as intenções do outro, não nos deve impedir de notar que Hobbes dizia coisas viáveis para teólogos cristãos pouco dogmáticos.
Pois é nesse tempo que o espírito crítico
que Lorenzo Valla, duzentos anos antes, aplicara à Doação de Constantino desabrocha para a leitura da Bíblia, e temos então Hobbes, Espinosa e o padre Richard Simon estudando as Escrituras com o melhor instrumental teórico a seu alcance.
Daí se segue, no caso de nosso pensador,
uma teologia sui generis, que nos causa estranheza, hoje, mas que é plenamente consistente – como procurei mostrar em Ao leitor sem medo.
Se a teologia hobbesiana merece ser
levada a sério, como acredito ter provado, por que não o papel de Deus em sua teoria política, tema deste livro.
É claro que aqui haveria muito a discutir.
Podem alguns, por exemplo, argumentar que a comprovação das leis de natureza pela referência a passagens bíblicas não passaria de um artifício de Hobbes, para que fossem mais bem aceitas; mas, mesmo que assim fossem as coisas, não dá para sustentar que a própria existência de Deus e a validade atribuída à religião fossem uma burla dirigida à censura (e isso por duas razões:
Primeira, que Hobbes não muda as idéias
a esse respeito sequer no período sem censura à imprensa, que é o da guerra civil propriamente dita;
Segunda, que quem passou por regimes
ditatoriais sabe que esses muitas vezes suprimem a expressão das idéias que as pessoas de fato têm, mas raramente ou quase nunca as levam a dizer aquilo em que não acreditam).
Mais que isso, Hobbes afirma que um
poder irresistível, como o de Deus, é o único que pode baixar leis sem necessitar do consentimento dos súditos (veja-se o final da segunda parte do Leviatã).
Esta curta observação é importante,
porque permite contrastar Deus, que legisla sem precisar de nós, com os soberanos deste mundo, que podem legislar sem nossa aprovação a cada lei, mas cujo poder decorre de que em algum momento, imaginado pelo menos, tenha sido aceito pelos súditos o seu princípio.
Deus tem um papel no sistema teórico
hobbesiano. E não é casual ou pouco importante que o soberano seja chamado de "Deus mortal", como, aliás, Thamy analisará. Disse que não concordo necessariamente com as leituras de Thamy Pogrebinschi. E acrescento que eu concordar, ou não, importa relativamente pouco, porque o decisivo não é que estejamos de acordo, mas que o trabalho tenha qualidade – e isso ele tem.
Um dos pontos de que discordo é que
meu Hobbes, se posso assim dizer, é mais leigo que o dela. Considero relevante – e engraçado – o exame que o filósofo faz dos milagres e dos profetas (estes últimos incluem as pessoas que falam coisas sem nexo, como os distraídos e talvez os perturbados da cabeça).
Na linha por sinal da maior parte dos
teólogos protestantes, ele afirma que não há mais milagres; e dispensa a necessidade de profetas, já que a seu ver estes somente poderiam confirmar o que já foi revelado, mas jamais revelar qualquer matéria nova.
Esse exemplo ilustra um processo de
laicização do mundo, de seu desencantamento, que parece diretamente saído de Max Weber.
Também não estou convencido de que a
obrigação em Hobbes, que é o principal tema deste inteligente livro, seja tão decisivamente ética. Não tomei posição sobre o caráter central da obrigação hobbesiana em meus livros, e ainda não tenho certezas a seu respeito. Mas o importante é que nenhuma leitura da obrigação será adequada se não levar em conta a frase inteira que termina o mencionado capítulo 15 do Leviatã.
A interpretação dela como sendo apenas
prudente me parece, portanto, exagerada – mas talvez tampouco seja ela tão religiosa quanto quer nossa autora . Porém, como disse acima, minha concordancia com o conteudo das ideias de Thamy Pogrebinschi importa pouco.
Seu livro é um bom arrazoado sobre um
tema tão relevante e pouco conhecido fora dos circuitos de especialistas. Ele traz um aporte importante à ainda pequena bibliografia brasileira sobre Hobbes. E por isso tem de ser lido e discutido.
TCC - Vanessa Cristina Dasko - Yasmin Goncalves Bittar - A Etica Dos Advogados Dentro Das Redes Sociais, Destacando o TikTok, o Codigo de Etica Da OAB e Provimentos