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A língua do porco-espinho

A flauta, eu a joguei
Aos peixes surdos-
Mudos do mar
João Cabral de Melo Neto

Para terminar o meu curso de graduação em Letras na UFG, escrevi uma


monografia sobre A fábula de Anfion de João Cabral de Melo Neto. Na época, o
máximo que consegui entender desse poema alegórico foi uma crítica à tradição poética
que pretendia comunicar-se com o mundo, e de outra forma uma crítica ao mundo que
já não entende mais a comunicação poética. Levei mais de vinte anos para ser capaz de
contextualizar o gesto de “jogar fora a flauta da poesia” em uma tradição mais ampla,
caracterizada como uma “crise” do literário que ao fim e ao cabo talvez seja a própria
lógica da modernidade. Na França do fim do século XIX, do ensaio ao gesto, a recusa
da linguagem poética manifestava a consciência aguda de uma transformação mais
profunda, a consciência de que a sociedade não precisava mais dos escritores de verso e
de ficção como em outros tempos. A literatura não tinha mais o que dizer sobre a
realidade. Já em Baudelaire a figura do Poeta estava amaldiçoado desde o primeiro
poema de As Flores do mal, associando-se aos párias, marginais e degenerados de toda
ordem ao longo do livro. No entanto, o senso-comum (entendam: eu e você, leitor)
demoraria um pouco mais para aceitar a marcha desse processo de desvalorização.
Outros exemplos como a novela La soirée avec M. Teste [1896] de Valery
parecem confirmar que o contexto de desvalorização do literário produz no poeta um
sentimento de impotência da linguagem, de nulidade criativa e de inutilidade da poesia.
Isso valeria também para a interpretação do mundo alegórico da “Fábula de Anfion” de
João Cabral. No começo desse longo poema, o personagem-lírico apresenta-se
completamente à vontade em um cenário de deserto que simboliza seu vocabulário – as
palavras estão como pedras soltas, sem significação, como frutos esquecidos de
amadurecer; tudo ali permanece puro porque escapa ao encharcamento da inspiração, à
fecundidade da noite e de seus onirismos, aos sentimentos que preenchem as palavras de
mundo; o sol do deserto purifica o vocabulário de Anfion, deixa-o ser o que, sugere-se,
constitui sua natureza e nisso encontra-se uma concepção de linguagem: matéria
significante. Tudo demora silencioso até que surge o Acaso e faz soar a flauta da
linguagem poética. O que antes era deserto transforma-se em cidade, o vocabulário
ganha sintaxe, a matéria ganha forma, o real confunde-se com a criação poética.
Aparentemente sem alternativa, Anfion atira a flauta aos peixes surdos-mudos
do mar. Desse gesto, interessa a ambiguidade da motivação cabralina: Anfion não sabia
como dominar a potência criadora da linguagem ou, assim como as personas de
Baudelaire, Rimbaud e Valery, não acreditava mais nela? A resposta pode ser
encontrada em outro poema, “Psicologia da composição”, em que a recusa da poesia
revela-se a recusa de uma certa concepção de poesia:

Poesia, não será esse


O sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:

flor! Não uma


flor, nem aquela
flor-virtude – em
disfarçados urinóis.)

O destaque em itálico para “uma flor” nega a especificidade da flor concreta,


nega a vontade poética de fazer a linguagem tocar a realidade, sua potência mimética:
“Flor é a palavra/flor”.
*
Se Kant formulou a tese da autonomia da obra de arte como um imperativo
categórico, Friedrich von Schlegel forjou sua imagem: “Um fragmento tem de ser como
uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e
acabado em si mesmo como um porco-espinho” – em outra tradução, o porco-espinho é
também um ouriço. Neste momento, interessa menos a teoria romântica do fragmento
do que a concepção de arte que subjaz ao termo da comparação: a obra de arte é algo
perfeito, acabado em si mesmo, isolado do mundo e hostil à realidade que o cerca. A
relação íntima entre o doce e o útil da poesia, cultivada desde Horácio até Boileau, o elo
que permitia à literatura interferir na vida real, que levava uma pessoa a buscar na
leitura uma imagem de identificação, aquilo que justificava a transmissão do poético e
garantia seu status, desmanchava-se. E não se tratava apenas de afirmar a autonomia
estética do literário, mas também de destacar a hostilidade da arte da linguagem às
coisas da vida (o porco-espinho era seu ideal).
As flores do mal foram um porco-espinho para a comunidade leitora que as
recebeu na França, bem como foram considerados espinhentos os versos de Mallarmé,
confeccionados com o rigor da técnica poética para elaborar o “nada” do conteúdo. E
ainda: os Cantos de Pound nos EUA, os poemas de Yeats para a Irlanda, Trackl na
Alemanha. Todos esses e outros diziam junto com Montale: “Não nos peças a fórmula
que te possas abrir mundos,/ E sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo”. Os
textos de Lautréamont, Proust, Joyce e Faulkner exemplificam a disposição dos
prosadores em oferecer os mesmo tipo de dificuldade ao leitor acostumado a encontrar o
mundo na literatura. Com o Curso de Linguística Geral, a criticada transparência da
linguagem foi definitivamente superada pela teoria de Ferdinand de Saussure, que
afirmava a abirtrariedade do signo, a desconexão entre linguagem e realidade. Nenhum
arranjo especial da estrutura linguísstica, morfológico ou sintático, poderia criar uma
relação de referencialidade com o mundo.
Parece haver um consenso em torno da interpretação que explica tanto a
autonomia da obra de arte quanto a consequente recusa da mímesis como partes do
processo de racionalização/laicização da vida. Sinteticamente, o pensamento ocidental
teria abandonado a perspectiva religiosa do criador divino cuja obra é um bem em si
mesmo e passado a cultivar a ideia de que o homem, quando artista, poderia ser
entendido como uma espécie de divindade criadora, permanecendo nessa virada do
teocentrismo para o antropocentrismo aquilo que Kant denominou de “finalidade sem
fim” da obra de arte. Essa concepção já aparece no Discurso sobre a dignidade do
homem [1480] de Pico Della Mirandola, e vai ganhando força com o surgimento de
sistemas descritivos como o de Leibniz, cujo fundamento reside na noção de que a
criação humana constitui um universo coerente em si mesmo e independente do mundo
existente.
No que interessa aos estudos literários, não é difícil perceber os caminhos a que
conduziram o interesse exclusivo pelas relações internas de uma obra de arte, ou para
usar o vocabulário próprio do imanentismo, ao estudo da estrutura interna do texto
literário - o que deu relevo ao exílio de Rimbaud, fazendo com que seu silêncio se
consagrasse como “modelo de subversão” para tantos poetas. O problema é que poetas,
escritores e escritoras de prosa de ficção continuaram a escrever. E o leitor continuou a
ler! Pior: aos poetas de linguagem espinhenta juntaram-se autores que desejavam narrar
e descrever a sua realidade, dando testemunho de massacres (a tradição criada pelos
relatos sobre o genocídio judeu), de opressões (os romances sobre as ditaduras latino-
americanas), de racismo, de descolonização, de violência contra as mulheres e a lista
pode ser aumentada. Quando foi que a literatura deixou de falar da vida a não ser na
teoria que defende a autonomia da obra de arte a favor de um cânone? Hoje, gosto de
pensar nesses autores de verso porco-espinho como personagens de uma grande
narrativa, um romance agonístico, chamado Modernidade.

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