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O mito dos antropólogos é ele próprio uma transformação de mitos filosóficos mais antigos. O
discurso ganhou um novo ímpeto nas décadas de 1860 e 1870, mas ele é a continuação de
uma conversa bem mais longa, um antigo debate, de cujas pressuposições subjacentes nem
Darwin escapou completamente. Essas premissas estão encapsuladas em três palavras inglesas
ainda potentes, as quais têm sido utilizadas para descrever populações além dos limites da
civilização: bárbaros, selvagens e primítivos.
Tucídides afirmou, em sua História da guerra do Peloponeso, que Homero não chamava seus
heróis de gregos. "Ele tampouco usa o termo bárbaro", adicionou, "provavelmente porque os
helenos não haviam sído ainda separados do resto do mundo por uma designação distinta".
Um senso de unidade grega foi forjado apenas quando as cidades-Estado isoladas se juntaram
para enfrentar a ameaça apresentada pela Pérsia, sob comando de Dario e seu filho Xerxes,
nos primeiros anos do século V a.C. Os gregos adotaram então a descrição "bárbaro" para seu
inimigo comum. Eles diziam que os barbami gaguejavam como idiotas, ou que balbuciavam
como nenéns, ou grunhiam como animais - bar bar. Dai o nome. Termos mais refinados e
corteses para estrangeiros, lteterophone, "outra fala" e allogloss, "outra lingua", insistiam
igualmente na primazia dos gregos. A marca inicial dos bárbaro~ era uma deficiência de
linguagem.
Contudo, uma vez admitido que havia tipos diferentes de bárbaros, as variantes podiam ser
invocadas a fim de representar os gregos de forma mais sutil, através de um jogo mais
complexo de oposições. O mestre desta estratégia era Heródoto, um contemporâneo um
pouco mais velho de Tucídides, e o autor de outra grande narrativa das guerras persas.
Heródoto era ele próprio meio-bárbaro; sua mãe era uma cariana da Ásia Menor ocidental.
Plutarco se referiria a ele em 100 d.c. como philobarbus, amante bárbaro, e ele [Heródoto]
ofereceu relatos geralmente simpáticos sobre um número de povos bárbaros, a quem ele
atribuiu uma série de costumes. No entanto, François Hartog demonstra que Heródoto
trabalhou com dois contrastes básicos: gregos versus persas, e citas versus egípcios. O povo
mais antigo, os suaves egípcios, habitava a terra mais quente ao sul. O mais jovem, os duros
citas, viviam no norte congelante, às margens do mundo habitado.
Os egípcios tinham sua sabedoria antiga, enquanto que os citas eram ignorantes. Mesmo suas
estações do ano eram invertidas: quando é verão no sul egípcio, é inverno no norte cita, e vice-
versa.
Os citas e egípcios também mantinham relações diversas com os principais adversários dos
gregos, bárbaros arquetípicos, os persas. Os egípcios se submeteram a Dario, o rei persa. Os
citas, assim como os gregos, haviam derrotado o exército persa. Assim, gregos e citas eram
unidos enquanto lutadores pela liberdade contra a Pérsia. Porém, citas e egípcios
contrastavam, por sua vez, com os gregos. Os citas eram nômades, carregavam suas casas
consigo, enquanto que os gregos insistiam que eram autóctones·, nativos em sua pátria e
habitantes urbanos. Os egípcios viviam em um clima diverso, sobre as margens de um único
rio, e "assim eles fizeram todos os seus costumes e leis de uma forma a serem, na maior parte,
o oposto dos de todos os outros homens" .
Acima de tudo, havia uma divisão política entre os gregos e os bárbaros. Os gregos, ou ao
menos os atenienses, viviam em um Estado ideal, a polis democrática. Todos os gregos
resistiam à tirania. Os bárbaros não eram democráticos. Eles eram ou uma turba sem liderança
ou eram escravos de governantes tirânicos. Os citas eram anarquistas sem casa, sem líderes.
Em contraste com os citas, os egípcios eram urbanos e sofisticados. Porém, eles eram
governados por um rei absoluto. Os típicos bárbaros, os persas, eram o próprio modelo de
tirania real. "Há uma ligação entre barbarismo e realeza", conclui Hartog, "entre bárbaros, o
modo normal de exercício de poder tende a ser a realeza. E, reciprocamente, a realeza
possivelmente tem algo de bárbaro nela.
Esta associação dos bárbaros com a tirania provou ser uma caracterização duradoura dos anti-
gregos. "Porque os bárbaros, sendo mais servis no caráter que os helenos ... não se rebelam
contra um governo despótico", escreveu Aristóteles, um século depois de Heródoto e
Tucídides. De fato, "entre os bárbaros, nenhuma distinção é feita entre mulheres e escravos,
porque não há um governante natural entre eles: eles são uma comunidade de escravos,
mulheres e homens. Por isso os poetas dizem: 'É apropriado que os helenos tenham que
governar os bárbaros', como se pensassem que bárbaros e escravos fossem por natureza um
só". Os reinos bárbaros eram tirânicos "porque os povos são, por natureza, escravos"? Havia
escravos em Atenas, mas eles eram invariavelmente estrangeiros e, portanto, podiam ser
classificados como bárbaros: e, de acordo com a lógica de Aristóteles, como bárbaros, era da
sua natureza que fossem escravos.
Não apenas o bárbaro era incapaz de independência e destituído de valores cívicos. A ele
faltava o autocontrole emocional de um homem grego maduro. Os bárbaros representavam
no palco ateniense balbuciando em línguas estranhas, vestidos com peles, comiam carne crua,
carregavam arcos, mas não lanças, que homens corajosos utilizavam para lutar de peito, e
eram servis e emocionais. Os guerreiros se comportavam mais como mulheres do que os
homens gregos, autos confiantes e controlados. Em Os Persas, de Ésquilo, Xerxes aparece
como, um tirano efeminado.
Diametralmente opostos, tão diferentes quanto possam ser, os bárbaros eram o oposto de
nossos seres imaginados. Não poderia haver bárbaros antes que houvesse gregos, ou,
posteriormente, romanos, ou cristãos, ou europeus. Eles nos definem na medida em que os
definimos. Qualquer tentativa de subverter esta oposição implicava que a sociedade
contemporânea não era, afinal, tão diferente da dos bárbaros. Em seu ensaio "Dos Canibais",
escrito em 1578, Michel de Montaigne refletiu a respeito do que ele havia ouvido sobre os
povos do Brasil, e afirmou que ''não há nada de bárbaro e selvagem naquela nação, pelo que
me disseram, exceto que cada homem chama de bárbaro tudo o que não é sua própria prática;
porque, de fato, parece que nós não temos outra tese de verdade e razão do que o exemplo e
os padrões de opiniões e costumes do país em que vivemos"·
Isto foi, naturalmente, ironicamente proposital. Montaigne foi descrito como um relativista;
porém ele nunca duvidou que havia padrões absolutos de verdade e razão. O seu ponto era
que nem o bárbaro tampouco o francês é verdadeiramente racional. No entanto, os índios do
Brasil desfrutam vidas agradáveis e desocupadas, admiráveis em sua simplicidade, e de acordo
com sua filosofia natural. "Estas nações, então, parecem-me bárbaras neste sentido, que eles
foram moldados muito pouco pela mente humana, e ainda estão muito próximos de sua
naturalidade original. As leis da natureza ainda os governam, sendo muito pouco corrompidos
pela nossa."
Sinto muito que Licurgo e Platão não os tenha conhecido ... Isto é uma
nação, eu diria a Platão, na qual não há nenhum tipo de tráfico,
nenhum conhechimento de escrita, nenhuma ciência de números.
nenhum, nome para o magistrado ou para urna superioridade política,
nenhum costume de servidão, nem ricos nem, pobres, sem contratos,
sem sucessões, sem divisões, sem ocupações a não ser a de lazer,
nenhuma preocupação além do parentesco comum, sem roupas, sem
agricultura, sem metal, sem utilização de vinho ou trigo. As exatas
palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja,
menosprezo, perdão - nunca se ouviu. Quão longe desta perfeição ele
veria a república que ele imaginou ...
Há de se admitir que os brasileiros fizeram coisas terríveis, como por exemplo, matar e comer
seus prisioneiros, mas, em meio à memória viva, os franceses estavam torturando seus
inimigos, ou queimando-os vivos. Isto era menos terrível que comer o inimigo depois de sua
morte? Nós podemos chamar os outros de bárbaros se os julgarmos pelos padrões da razão
pura, concluiu Montaigne, mas não se os compararmos / com nós mesmos, "que os
ultlapassam em todo o tipo de barbaridade".
Montaigne sabia mais que Platão sobre os bárbaros, e não apenas porque ele estudara os
relatos de exploradores, material a respeito do qual ele era cético. Cristovão Colombo havia
retornado ao velho mundo com sete indígenas raptados, que eram amplamente exibidos, e no
século XVI os índios escravos e exibições e1·am banais na Europa. Quando Henrique II e
Catarina de Médici fizeram uma entrada cerimonial na cidade de Ruão em 1550 eles foram
recebidos por cortejos caracterizando gladiadores e elefantes, uma imitação de batalhas
marinhas, e um desfile de prisioneiros. Havia também uma reprodução, em tamanho natural,
de uma aldeia brasileira com trezentos habitantes nus, cinqüenta deles eram índios genuínos,
que tinham sido trazidos para a França por um mercador local. Eles exibiram dança e
combates." Montaigne afirmou ter encontrado alguns destes brasileiros em Ruão em 1562, e
ter conversado com um deles. O intérprete não era confiável, mas ele pôde constatar que o
índio tinha sido um líder resistente em sua terra natal. Escolhido por seu valor, seu privilégio
era marchar para a batalha à frente de seus homens. Em tempo de paz, no entanto, sua única
recompensa era "que quando ele visitava as aldeias que dependiam dele, eles lhe abriam
caminho através dos arbustos, os quais ele podia atravessar bem confortavelmente". "Tudo
isso não é de todo mal". comentou Montaigne, "mas qual é a utilidade? Eles não usam calças".
Estes exemplos chegaram facilmente a um europeu educado do século XVI, bem versado em
textos clássicos. Porém, todas as anedotas de Montaigne falam de quanto os gregos eram
forçados a reconhecer uma classe de bárbaros, os romanos, como seus iguais no campo de
batalha. Estes são certamente mitos romanos. De acordo com Gibbon, os romanos a principio
"se submeteram ao insulto, e deram a si mesmos livremente o nome de bárbaros". Mas,
eventualmente, "eles reivindicaram isenção para Itália e as províncias submetidas a ela; e
finalmente, transferiram a denominação vergonhosa para as nações hostis ou selvagens além
do limite do império". Eles chamavam a costa norte da África de Barbárie ('merecidamente',
diz Gibbon). Urbanos e polidos, de mentalidade cívica disciplinados, poderosos, os romanos se
passaram a se ver como estando lado a lado com os gregos contra os bárbaros nas fronteiras .
Consequentemente, é evidente que o Estado é uma criação da. natureza, e que o homem é,
por natureza, um animal político".
A natureza pode ser uma garantia da razão, e há uma longa tradição de preferir a natureza e
os hábitos naturais ao artifício. No entanto, as disposições naturais podem ser transcendidas
por uma razão mais sofisticada. No segundo parágrafo de De Inventione, publicado em 55 a.c.,
Cícero imaginou um tempo no qual as pessoas vagavam pelos campos como animais,
apoiando-se em sua força física e sem usar sua razão. Eles não tinham noção dos deuses, ou de
dever público; não havia casamento legítimo, não havia lei. Então um grande homem
apareceu e persuadiu um número de pessoas a viverem unidas e a juntar trabalho útil e
honroso. A princípio eles estavam resistentes, mas sua sabedoria e eloqüência os tornaram
gentis e corteses. Ainda assim, a linguagem podia ser uma faca de dois gumes. Um tirano podia
usar a retórica para enganar o povo simples. Neste mito, os bárbaros são ainda definidos em
relação à linguagem: não simplesmente à língua grega em si, mas ao discurso racional
concebido mais amplamente.
Para Prudentius, o primeiro critério que distinguiu os romanos cristãos dos bárbaros foi,
portanto, a deficiência de linguagem. (A Torre de Babel foi um monumento da barbárie).
Porém, os próprios cristãos falavam muitas línguas, e algumas vezes não conseguiam
comunicar-se uns com os outros. "Se eu desconhecer o sentido das palavras" Paulo Evangelista
advertira (em 1 Coríntios, 14.JI), "serei um estrangeiro para quem me fala e ele será também
um estrangeiro para mim". Mas nem todas as línguas são iguais. Depois de citar Paulo e
debater que língua deveria ser a da cristandade (grego? latim? hebraico?), Tomás de Aquino
insistia que a língua falada era menos útil que a língua escrita. Era o texto que tornava possível
o crescimento do conhecimento e o desenvolvimento de instrumentos legais. Aquino,
portanto, apreciou Beda por introduzir a escrita na Bretanha, elevando assim a população de
um estado de barbárie. Os argumentos de Aristóteles e Aquino sobre a linguagem e sobre a
escravidão ainda ressoaram nos jesuítas na América Espanhola no século XVI, quando a Europa
católica debatia se os índios tinham almas, e se eles estavam condenados pela sua própria
natureza a serem escravos. Os jesuítas concordavam com Aquino que era, acima de tudo, a
ausência de uma linguagem escrita que distinguiam os bárbaros.
Os bárbaros foram um objeto de fecunda reflexão por mais de dois milênios, mas as Viagens
de descobrimento do fim do século XV trouxeram na volta novidades sobre uma figura ainda
mais estranha: meio animal, meio homem, de acordo com alguns relatos. Ele foi batizado de
selvagem. O adjetivo francês sauvage significava rústico, não cultivado e não domesticado. Foi
mais tarde utilizado para descrever pessoas grossas e violentas. Ao surgir na consciência da
Europa com os primeiros relatos sobre os habitantes da América, o selvagem se misturou com
os monstros da Idade Medieval, que combinavam traços humanos e animais, e possuíam até
mesmo atributos dos demônios".
No que foi talvez sua última peça, A Tempestade, escrita cm 1610 ou 1611, aproximadamente
trinta anos após o ensaio de Montaigne sobre os canibais, Shakespeare apresentou o
personagem Caliban. Seu nome é um acróstico de canibal. Meio homem, meio animal, o único
nativo da ilha, Caliban vive em um buraco na terra. Próspero assim o descreve:
Caliban não é apenas a antítese da pessoa civilizada. Ele é contrastado com outra criatura,
Ariel, meio homem, meio espírito, que vive no ar. Caliban mal consegue falar, Ariel canta
encantadoramente. Ambos estão presos, ao serviço de Próspero, o mestre da ilha, mas
enquanto Próspero se refere a Caliban como "meu escravo", ele chama Ariel de "meu criado".
Próspero tratava Caliban a princípio com gentileza, tentando ensiná-lo, e até mesmo
compa1tilhando seus aposentos de dormir. Então Caliban tentou estuprar a filha de Próspero,
Miranda, e foi expulso. O nobre Próspero repreende Caliban por não se beneficiar da sua
instrução:
O tom político de A Tempestade parece ser bem diferente da visão cética de Montaigne a
respeito da autoridade. Os nobres são julgados de acordo com sua fidelidade ao rei
verdadeiro. Seus criados e marinheiros bêbados brigam entre si e são subjugados apenas pela
força. Os selvagens estão além do limite da sociedade. Caliban tem de apanhar e ser torturado
para ser submisso. O bom Ariel é um agente dedicado, embora Próspero tenha que lembrá-lo
(Ariel não consegue se fazer lembrar) que ele tinha sido anteriormente o escravo de uma
bruxa perversa, Sycorax, a mãe de Caliban. Porque Ariel se recusou a cumprir seus desejos
diabólicos, Sycorax o aprisionou em uma árvore, aonde ele permaneceu até Próspero libertá-
lo. Ainda assim, ambos Ariel e Caliban clamavam constantemente pela sua liberdade. Caliban
tenta escapar de Próspero para, no entanto, colocar-se à serviço de um marinheiro bêbado,
que lhe dá licor. Ariel é finalmente libertado, pelo seu agradecido mestre, para voar afora o
mundo da natureza ("Onde as abelhas sugam o mel, lá sugarei eu ... Alegremente,
alegremente vou viver/ sob os ramos da selva florescente.)
e os serviços, nenhum;
Caliban e Ariel eram escravos que podiam ser libertados pelo seu mestre, mas outros
dramaturgos representaram o selvagem como um homem livre. Um pouco mais de meio
século após Caliban, um índio herói proclama na peça de John Dryden, The Conquest of
Granada:
Sou tão livre quanto o primeiro homem feito na natureza aqui a base
das leis de servidão começaram
Porque então perdemos esta liberdade nativa? No século XVII, os filósofos se inspiraram em
Cícero e imaginaram uma alternativa à narrativa bíblica das origens humanas, que explicaria
porque homens livres deviam sacrificar sua liberdade para seguir um rei. Um plano humano,
um contrato social original, tomou o lugar de um pacto divino. Ao invés de uma queda do
paraíso, seres humanos haviam avançado de uma condição aborígene próxima àquela dos
animais em estado de natureza. Eles podiam ser livres, mas estavam desprovidos do conforto e
da segurança de uma existência social. Guiados pela luz da razão, indivíduos independentes
mas vulneráveis se juntaram, portanto, para formar uma sociedade. Thomas Hobbes, um
refugiado da guerra civil e do regicídio na Inglaterra, refletiu sobre aqueles dias anárquicos.
"Quando os homens vivem sem um poder comum para mantê-los amedrontados, eles estão
naquela condição chamada guerra." Eram desprovidos de indústria, agricultura, navegação,
construções. Eles não , "tinham conhecimento da superfície da terra; nenhum registro de
tempo; nenhuma arte; nenhuma escrita; nenhuma sociedade; e, o pior de tudo, com medo
contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, repugnante, bruta e
curta."Para homens em condições desesperadas, a sociedade oferecia segurança. Na visão de
Hobbes, foi isto que garantiu uma base racional para o poder absoluto da soberania. No
entanto, o mesmo mito poderia ser utilizado para mostrar que a autoridade legítima deve
depender do desejo do súdito. O contrato havia sido quebrado, Rosseau argumentou, o povo
traído pelos líderes a quem eles haviam confiado seus privilégios e seus bens.
Estas noções de "um estado de natureza" e um "contrato social" ' eram ' experimentos
conceituais, mas Hobbes supunha que alguns selvagens ainda viviam nessa condição original.
"Pois os povos selvagens ' em muitos lugares da América, com exceção da autoridade de
pequenas famílias, das quais a harmonia depende do desejo natural, não possuem nenhum
tipo de governo, e vivem hoje em dia daquela maneira irracional". Ao menos neste ponto, John
Locke concordava com ele. "Assim, no início, todo o mundo era a América". Os relatos
etnográficos deviam, portanto, ser incorporados em nossa própria história.\Em 1724,
Lafitau publicou seu Mouers des sauvages americams comparees aux mouers des premiers
temps, no qual ele comparou sua própria informação sobre os índios do Brasil, parcialmente
de primeira mão, com as crenças e costumes de povos separados deles por muitos séculos. E
vivendo em continentes diferentes. "O taitiano está em contato com a origem do mundo",
Denis Diderot concluiu uma geração mais tarde, “ O Europu, com o seu amadurecimento".
Quando a palavra civilisation foi difundida, o selvagem tornou-se sua antítese mais comum. A
selvageria representava a condição originar da humanidade. A civilização marcava o clímax do
progresso humano.
Mas que estágios haviam se interposto? Na visão grega, os povos antigos eram desprovidos da
instituição civil fundamental, a cidade. Cícero sugeriu que os primeiros seres humanos eram
errantes solitários. Eles foram então persuadidos a seguir um líder e formar uma sociedade.
Montesquieu identificou ainda uma outra revolução, que marcou a transição da selvageria
para a barbárie. "Há esta diferença entre as nações selvagens e as bárbaras", escreveu ele no
seu Espírito das Leis em 1748, "os primeiros são clãs dispersos, os quais, por alguma razão
particular, não podiam ser agrupados em conjunto; e os últimos eram, em geral, nações
pequenas, capazes de se unirem. Os selvagens são geralmente caçadores; os bárbaros são
criadores de gado e pastores."
O próprio Turgot havia adotado uma visão mais otimista do progresso. Os arranjos políticos e
morais melhorariam à medida que formas mais avançadas de vida econômica se
desenvolvessem. Havia também uma progressão paralela do teológico para o metafísico e,
portanto, para o raciocínio empírico. Uma geração mais tarde Augusto Comte propôs "uma
grande lei fundamental... que cada uma de nossas concepções condutoras - cada ramo de
nosso conhecimento - passa sucessivamente por três diferentes condições teóricas: a
teológica, ou fictícia; a metafisica, ou abstrata; e a científica, ou positiva."
Darwin e os selvagens
Essas eram as idéias com as quais os exploradores ingleses Viajaram no início do século XIX.
Em 1830, Robert Fitzroy, o capitão aristocrático e conservado do HMS Aduenture,
desembarcou para a Terra do Fogo e confidenciou em seu diário:
Alguns anos mais tarde, um jovem cientista que Fitzroy havia convidado para navegar com ele
a bordo do HMS Beagle, foi até mais direto. "O espanto que senti a principio observando uma
festa do povo da Terra do Fogo, em uma praia deserta e quebrada, eu nunca esquecerei"
Charles Darwin escreveu, "pois a reflexão veio imediatamente em minha mente - assim eram
nossos ancestrais".
Durante o primeiro encontro de Fitzroy com os fueguinos, houve roubos em seu navio. Fitzroy
tomou alguns nativos como reféns, prometendo soltá-los quando os bens fossem devolvidos.
A tática falhou e ele restou com três fueguinos em suas mãos. Um quarto homem foi
comprado pelo seu tio em troca de um broche de pérola e foi chamado de Jeremy (Jemmy)
Button. Fitzroy decidiu levar os fueguinos com ele em seu retorno para a Inglaterra, onde eles
seriam educados, ele decidiu, "em inglês, e as verdades mais simples do Cristianismo seriam
um primeiro objetivo; e, como segundo, o uso de ferramentas comuns, um leve conhecimento
sobre cultivo, jardinagem e mecanismos''. Em suma, eles seriam instru!dos nos elementos da
sua [Fitzroy] civilização: linguagem, religião, e tecnologia. Um deles (o favorito de Fitzroy)
morreu de varíola, mas os sobreviventes, sob a orientação do reitor de Walthamstow, foram
instruídos na religião cristã, na língua e nos costumes ingleses. Fitzroy apresentou os fueguinos
ao Rei e à Rainha. Um fundo foi lançado para financiar atividades missionárias em suas ilhas, e
um missionário se juntou à segunda expedição dó Beagle.
O Beagle retornou com os três fueguinos para suas casas, onde se esperava que eles servissem
de intermediários para o missionário. Darwin fez amizade com eles durante a viagem, mas seu
primeiro encontro direto com o que ele chamou de "indomados selvagens" fueguinos
aconteceu em uma manhã de Dezembro de 1832, e ele afirmou, em seu diário e em cartas
enviadas à casa, que o impressionou profundamente. Escrevendo do Beagle para sua irmã
Caroline, Darwin listou "os três espetáculos mais interessantes que ele havia visto desde que
deixou a Inglaterra – um selvagem fueguino - a Vegetação Tropical - e as ruínas de
Concepción". "Vendo tais homens, mal se pode acreditar que eles são criaturas semelhantes
vivendo no mesmo mundo. As casas dos fueguinos eram rudimentares; eles dormiam no chão
úmido, enrolados corno animais"; sua comida era miserável e escassa; eles estavam em guerra
com seus vizinhos disputando os meios de subsistência. "Capitão Fitzroy nunca conseguiu se
certificar se os fueguinos tinham qualquer particular crença na vida futura. Seus sentimentos
pelo lar eram medíocres. Suas imaginações não eram estimuladas, suas habilidades eram
"como o instinto dos animais", não "melhoravam com a experiência." "Embora essencialmente
as mesmas criaturas, o quão pouco deve a mente de um destes seres se assemelhar a de um
homem educado". "Que escala de avanço está compreendida entre as faculdades de um
selvagem fueguino e Sir Isaac Newton". E, ainda assim, Darwin notou que os fueguinos iam
bem em alguns testes. "Não há razão para supor que a raça dos fueguinos está
desaparecendo; nós devemos, portanto, assegurar que ele aprecie uma quota suficiente de
felicidade (seja qual for o tipo) para fazer com que a vida valha a pena. A natureza, ao fazer o
costume onipotente, adaptou os fueguinos ao clima e às produções de seu país".
Havia pouca distinção entre as ponderações do jovem Charles, Darwin e as do Capitão Fitzroy.
Ambos concordaram que os selvagens eram, de fato, muito diferentes dos ingleses vitorianos,
mas capazes, no entanto, de rápido progresso. Darwin observou que, ''em contradição com o
que havia sido afirmado constantemente, três anos seriam suficientes para transformar os
selvagens, no que concerne os hábitos, em europeus completos e voluntários". De fato, ele
expressou a preocupação de que os fueguinos não teriam condições de se reajustar às ásperas
condições da ilha. Quando o Beagle revisitou o acampamento dos fueguinos, os ingleses
notaram que Jemrny Button estava bem mais magro. No entanto, este assegurou ao capitão
que ele estava "sinceramente, senhor, melhor do que nunca" e que ele estava contente e que
não tinha vontade de alterar seu modo atual de vida. "Eu espero e tenho poucas dúvidas
[Jemmy) estará tão feliz como se ele nunca tivesse deixado seu país", Darwín escreveu em seu
diário "o que é muito mais do que eu pensara anteriormente”. Fitzroy, no entanto, foi
encorajado a supor que a civilização havia deixado sua marca. Ele descreveu o sinal de fogo de
adeus que Jemmy acendeu quando o Beagle zarpou, e comentou que a família de Jemmy
"estava se tornando consideravelmente mais humanizada que qualquer selvagem que ele
havia visto na Terra do Fogo. Um dia um marinheiro náufrago poderia ser salvo pelos filhos de
Jemmy, estes "movidos como não poderia deixar de ser, pelas tradições que eles terão ouvido
falar de homens de outras terras; e, por uma idéia, não importa quão débil, de seu dever a
Deus assim como aos seus vizinhos”
Inversamente, Darwin atribuía a sofisticação relativa dos Taitianos a sua ordem social
hierárquica. "Se o estado no qual os fueguinos vivem devesse ser fixado como ponto zero na
escala de autoridade, receio que a Nova Zelândia teria uma posição alguns níveis acima,
enquanto o Taiti, mesmo no início quando foi descoberto, ocuparia uma posição respeitável".
Isto não era mais um conceito vago, mas uma proposta genealógica precisa. Em 1862, Darwin
escreveu a um simpatizante, Charles Kingsley:
Isto é uma questão notável e quase terrível a respeito da genealogia do
homem... Não é tão terrível e difícil para mim... em parte pela
familiaridade e em parte, creio, por ter visto muitos bons bárbaros. Eu
assumo que a sensação, quando eu inicialmente vi na Terra do Fogo
um medonho selvagem nu, pintado, trêmulo, de que meus ancestrais
deviam ter sido de alguma forma seres similares, foi revoltante para
mim naquele momento; não mais revoltante que minha crença atual
de que um ancestral incomparavelmente mais remoto foi um animal
peludo. Os macacos tem francamente bons corações, ao menos às
vezes...
Uma vez que Darwin e Huxley estabeleceram que todos os humanos descenderam dos
primatas, provavelmente africanos, Darwin começou a especular sobre as relações entre os
primatas e, por exemplo, um homem como Jemmy Button. Ele se instruiu a "esquecer o uso da
língua e julgar apenas pelo que você vê. Compare os fueguinos e os orangotangos e ouse dizer
que a diferença é tão grande". Nem era uma diferença tão grande entre Jemmy e o próprio
Darwin.