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Prefácio
2
boa companhia certamente inspirou o autor na concepção de um todo abrangente,
atualizado e inter-relacionado.
Deixa claro, por exemplo, que aquelas geringonças desengonçadas e enormes
do pós-guerra e o mais moderno e colorido equipamento atual, apresentam ainda
muita coisa em comum: rigorosamente seguem o mesmo princípio de
funcionamento. É verdade que os computadores continuam a ganhar poder e
velocidade de forma espantosa, numa evolução sem precedentes na tecnologia.
Seguem possuindo os componentes estabelecidos por Von Neumann há meio
século, como também a sua idéia de programa armazenado, que executado
separadamente do hardware, converteu-o em uma máquina de propósito geral. No
entanto, o processamento paralelo, a engenharia de software e a evolução das
comunicações que culminaram na Internet, elevaram a tecnologia a patamares
jamais sonhados pelos fundadores.
Por outro lado, para desenvolver as postulações que fundamentaram tamanho
avanço, os criadores primevos apoiaram-se em resultados abstratos – e outros nem
tanto – de pensadores do porte de Gödel, Hilbert e Turing, para citar alguns,
devidamente creditados no decurso da obra. Antes mesmo de se construir a
primeira máquina baseada em relês, a estrada para sua concepção estava
aplainada pela contribuição destes visionários, que propuseram soluções teóricas
bem à frente de seu tempo e cuja realização parecia, então, impraticável.
Esta é a melhor contribuição do livro: demonstrar que a computação nasceu
do desejo de se compreender a capacidade que tem o homem em resolver
problemas de forma sistemática. Assim, a tentativa de reproduzir mecanicamente
estes procedimentos, muitos deles exaustivamente repetitivos, lançou as bases
para estabelecer a computação como a conhecemos hoje.
A evolução dos conceitos em informática sempre esteve intrinsecamente
ligada à da matemática. Nas universidades, a computação nasceu dentro dos
Departamentos de Matemática. Isto justifica o resumo da história da matemática,
brilhantemente apresentado segundo uma evolução de conceitos. Evitando quebrar
o ritmo e sem truncar a narrativa, dáse ao luxo de fornecer fatos curiosos e pouco
conhecidos como, só para exemplificar, a dificuldade para a aceitação dos
algarismos indo-arábicos por parte dos mercadores europeus, pois alguns símbolos
sendo parecidos, facilitaria a falsificação.
Todo o texto está tratado de forma leve e agradável, sem se afastar do
necessário rigor. A leitura flui como em um romance. Não cansa com detalhes
desnecessários. Muito ao contrário, chegamos ao final desejando mais. Os anexos
são oportunos, permitindo um aprofundamento de tópicos ligados à
fundamentação, inadequados se incluídos no corpo principal. Vale lembrar que o
primeiro deles é uma cronologia comparada, um grande esforço de compilação,
que permite contextualizar os avanços da matemática e da computação a par de
outras áreas tecnológicas.
Na história mais recente da computação, não se prende somente à evolução
do hardware, que foi fundamental para o desenvolvimento da disciplina, mas
incapaz de justificar tamanha difusão. Mostra o crescimento das linguagens de
computação – do Assembler à Java – a distinção entre os paradigmas de
programação imperativas e declarativas, os aprimoramentos na arquitetura, os
avanços do sistema operacional; enfim, a cristalização da Computação como
Ciência. Não esquece de abordar tópicos destacados como Inteligência Artificial,
Cibernética e o delicado equilíbrio entre o homem e a tecnologia.
Enfim, trata-se de uma obra surpreendentemente abrangente, dado seu
tamanho compacto. Leitura fácil e ágil, despertará interesse não só de
especialistas da área como também de pessoas afastadas do mundo dos
3
computadores. No entanto, vislumbramos ganho maior para este texto no ensino
de Computação, pois como afirma com propriedade na conclusão, “Cada conceito
tem o seu lugar, a sua importância e a sua história que é necessário ser ensinado.”
Esta perspectiva sem dúvida enriquecerá a visão dos estudantes, embasando mais
fortemente a essência do assunto, dando subsídos para se tornarem profissionais
melhores. Roberto Lins de Carvalho
Do autor
Fascinante! Ainda recordo esta palavra, dita por quem depois orientaria a
minha dissertação de mestrado, origem deste livro: somente iria para a frente na
futura tese se estivesse fascinado pelo assunto. E devo dizer que foi exatamente
isso que aconteceu.
Excetuando-se alguns círculos mais teóricos, normalmente é considerado pela
maioria das pessoas, inclusive dentro da própria Computação, que os dispositivos
computacionais, que hoje fazem parte do nosso cotidiano, surgiram, por volta da
década de 1940. O século XX teve a glória de materializar tantos artefatos, em
tantas áreas, que esquecemos que na verdade são resultado, fruto, do labor de
muitos que nos precederam. A Computação não escapa a essa lei. Nomes como
Turing, Hilbert, Church, Frege e tantos outros até chegar a Aristóteles e aos
babilônios de 4.000 a.C. misturam-se com lógica matemática, sistemas
axiomáticos, formalismo e álgebra. Ao se estudar um pouco, percebe-se que toda
essa tecnologia é fruto de um devir de séculos, uma auto-estrada de quase 2000
anos, paciente e laboriosamente pavimentada por figuras que são desconhecidas
por muitos de nós, profissionais de informática, ou só superficialmente conhecidas.
Procurar resgatar este ‘lado humano’ e teórico da computação, contribuir de
alguma forma para que outras pessoas da área ou de fora dela possam apreciar
desde outro ângulo os alicerces deste imponente edifício formado pela tecnologia
dos computadores, entusiasmar aqueles que estão entrando na área de
informática, são os objetivos principais deste livro. Não pensei nada de novo, nem
tive pretensões de originalidade. Afinal a história já foi feita! Tudo que escrevi já
estava registrado. Apenas percebi que faltavam, e ainda faltam, trabalhos em
português que tratem dos conceitos e idéias que fundamentaram a Computação.
Logicamente não esgotei nenhum tema, somente procurei traçar uma linha
coerente da evolução destes conceitos, aprofundando um pouco mais em um caso
ou outro, procurando deixar uma boa bibliografia, embora haja muitos livros que
possam ser acrescentados. Espero que este trabalho sirva como ponto de partida
para outros, pois há muita coisa a ser feita para iluminar e tornar mais acessíveis
determinados conceitos.
Gostaria de deixar constantes alguns agradecimentos. Em primeiro lugar ao
prof. Dr. Aluízio Arcela, do Departamento de Computação da UnB, orientador da
minha dissertação de mestrado e quem sugeriu e acompanhou aqueles meus
primeiros estudos, base desta obra. Ao prof. Dr. Nelson Gonçalves Gomes, do
Departamento de Filosofia da UnB, que tanta paciência teve para esclarecer
alguns conceitos lógico-matemáticos e fornecer indicações preciosas de
bibliografia. E um especial agradecimento ao prof. Dr. Roberto Lins de Carvalho
(PUC-RJ) pelo incentivo que deu e entusiasmo que transmitiu ao tomar
conhecimento do que estava fazendo, sem o que possivelmente não teria me
atrevido a escrever coisa alguma. E aos amigos e colegas que me apoiaram e
ajudaram na revisão desse trabalho, e que acabaram por lhe dar uma forma mais
‘amigável’. Cléuzio Fonseca Filho
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Índice
1 INTRODUÇÃO 7
1.1 ORDENAÇÃO DOS ASSUNTOS 7
2 UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA 8
2.1 A HISTÓRIA E SUAS INTERPRETAÇÕES 10
2.2 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA 11
2.3 ENFOQUE HISTÓRICO ADOTADO 12
3 MOTIVAÇÕES PARA SE ESTUDAR A HISTÓRIA DA COMPUTAÇÃO 13
3.1 NECESSIDADE DE DISCERNIR FUNDAMENTOS 13
3.2 INCENTIVO À EDUCAÇÃO PARA A QUALIDADE DO SOFTWARE 14
3.3 TORNAR CLAROS E LIGAR OS FATOS 16
3.4 ACOMPANHAR NOVAS TENDÊNCIAS 16
3.5 REVALORIZAR O FATOR HUMANO 17
4 EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS 17
4.1 PRIMÓRDIOS 17
4.1.1 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE NÚMERO E DA ESCRITA NUMÉRICA
29
4.1.2 DESENVOLVIMENTOS INICIAIS DA CIÊNCIA DO CÁLCULO 35
4.1.3 A LÓGICA DE ARISTÓTELES 36
4.1.4 A CONTRIBUIÇÃO DOS MEGÁRICOS E ESTÓICOS 39
4.1.5 EUCLIDES E O MÉTODO AXIOMÁTICO 40
4.1.6 DIOPHANTUS, AL-KHARAZMI E O DESENVOLVIMENTO DA
ÁLGEBRA 42
4.1.7 A AUTOMATIZAÇÃO DO RACIOCÍNIO 45
4.2 A MECANIZAÇÃO DO CÁLCULO 49
4.2.1 LEIBNIZ, O PRECURSOR DA LÓGICA MATEMÁTICA MODERNA 49
4.2.2 O PROBLEMA DA NOTAÇÃO 53
4.3 A LÓGICA MATEMÁTICA NO SÉCULO XIX 54
4.3.1 BOOLE E OS FUNDAMENTOS DA LÓGICA MATEMÁTICA E DA
COMPUTAÇÃO 56
4.3.2 A IMPORTÂNCIA DE FREGE E PEANO 58
4.4 O DESENVOLVIMENTO DA LÓGICA MATEMÁTICA 61
4.5 A CRISE DOS FUNDAMENTOS E AS TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO 62
4.5.1 A FIGURA DE DAVID HILBERT 64
4.6 KURT GÖDEL: MUITO ALÉM DA LÓGICA 68
4.6.1 UM POUCO DE HISTÓRIA 68
4.6.2 VERDADE E DEMONSTRABILIDADE 71
4.6.3 OUTRAS CONQUISTAS 73
4.7 ALAN MATHISON TURING: O BERÇO DA COMPUTAÇÃO 74
4.7.1 A MÁQUINA DE TURING 75
4.7.2 O PROBLEMA DA PARADA E O PROBLEMA DA DECISÃO 76
4.7.3 OUTRAS PARTICIPAÇÕES 77
4.7.3.1 Decifrando códigos de guerra 77
4.7.3.2 O computador ACE e inteligência artificial 78
4.7.3.3 Programação de computadores 79
4.7.4 O TRISTE FIM 80
4.8 A TESE DE CHURCH-TURING E OUTROS RESULTADOS TEÓRICOS 80
5 PRÉ-HISTÓRIA TECNOLÓGICA 85
5.1 DISPOSITIVOS MAIS ANTIGOS 85
5
5.2 LOGARITMOS E OS PRIMEIROS DISPOSITIVOS MECÂNICOS DE
CÁLCULO 85
5.3 CHARLES BABBAGE E SUAS MÁQUINAS 86
5.3.1 A MÁQUINA DE JACQUARD, INSPIRAÇÃO DE BABBAGE 89
5.3.2 UMA LADY COMO PRIMEIRA PROGRAMADORA 90
5.4 OUTRAS MÁQUINAS DIFERENCIAIS E MÁQUINAS ANALÍTICAS 91
5.5 A ÚLTIMA CONTRIBUIÇÃO DO SÉCULO XIX: HERMAN HOLLERITH 92
5.6 COMPUTADORES ANALÓGICOS 93
5.6.1 PRIMEIRAS EVOLUÇÕES: SÉCULO XV 95
5.6.2 MICHELSON E SEU ANALISADOR HARMÔNICO; I GUERRA
MUNDIAL 96
5.6.3 COMPUTADORES ANALÓGICOS ELETROMECÂNICOS 97
5.7 CIRCUITOS ELÉTRICOS E FORMALISMO LÓGICO: CLAUDE ELWOOD
SHANNON 98
6 AS PRIMEIRAS MÁQUINAS 101
6.1 OS PRIMEIROS COMPUTADORES ELETROMECÂNICOS 101
6.1.1 KONRAD ZUSE 101
6.1.2 AS MÁQUINAS DA BELL E AS MÁQUINAS DE HARVARD 102
6.1.3 A PARTICIPAÇÃO DA IBM 103
6.2 O INÍCIO DA ERA DA COMPUTAÇÃO ELETRÔNICA 103
6.2.1 ESTADOS UNIDOS: ENIAC, EDVAC E EDSAC 104
6.2.2 A CONTRIBUIÇÃO INGLESA: O COLOSSUS 105
6.2.3 OUTRAS CONTRIBUIÇÕES 105
6.3 AS PRIMEIRAS LINGUAGENS 109
6.3.1 ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS 109
6.3.2 DESENVOLVIMENTOS ANTERIORES A 1940 111
6.3.3 AS PRIMEIRAS TENTATIVAS 111
6.3.4 KONRAD ZUSE E SEU ‘PLANCALCULUS’ 112
6.3.5 O DIAGRAMA DE FLUXOS 113
6.3.6 A CONTRIBUIÇÃO DE HASKELL 115
6.4 INTERPRETADORES ALGÉBRICOS E LINGUAGENS INTERMEDIÁRIAS
116
6.5 OS PRIMEIROS ‘COMPILADORES’ 116
6.6 A FIGURA DE VON NEUMANN 117
6.6.1 O CONCEITO DE PROGRAMA ARMAZENADO 119
6.6.2 A ARQUITETURA DE VON NEUMANN 122
7 A REVOLUÇÃO DO HARDWARE E DO SOFTWARE 123
7.1 DA SEGUNDA GERAÇÃO DE GRANDES COMPUTADORES AOS DIAS DE
HOJE 123
7.2 O DESENVOLVIMENTO DAS LINGUAGENS 123
7.3 ARQUITETURAS DE COMPUTADORES E SISTEMAS OPERACIONAIS
127
7.4 UMA NOVA MENTALIDADE 130
7.5 A COMPUTAÇÃO COMO CIÊNCIA 131
7.6 A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 134
7.7 UMA NOVA DISCIPLINA: A CIBERNÉTICA 137
8 A DISSEMINAÇÃO DA CULTURA INFORMÁTICA 139
8.1 O DOMÍNIO E O CONTROLE DAS INFORMAÇÕES 139
8.2 O EQUILÍBRIO ENTRE O TOQUE HUMANO E A TECNOLOGIA 140
9 CONCLUSÃO 145
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 147
6
ANEXO – CRONOLOGIA (ATÉ O ANO 2007) 154
ANEXO – O MÉTODO AXIOMÁTICO E AS CIÊNCIAS DEDUTIVAS 174
ANEXO – DEDUÇÃO E INDUÇÃO NA MATEMÁTICA 175
ANEXO - A ARITMÉTICA DE PEANO 179
ANEXO - O MÉTODO DAS DIFERENÇAS 180
ANEXO - A CONCEPÇÃO FORMALISTA DA MATEMÁTICA 182
ANEXO - O PROBLEMA DA DECISÃO NA MATEMÁTICA 186
ANEXO - O TEOREMA DA INCOMPLETUDE DE GÖDEL 187
ANEXO - MÁQUINAS DE TURING 191
ANEXO - ASTROLÁBIO 195
ANEXO - TURING E A MÁQUINA ENIGMA 199
ÍNDICE DE FIGURAS 204
1 Introdução
7
aqueles interessados pelos aspectos teóricos que estão por detrás dessa tecnologia
que domina o cotidiano neste fim e início de milênios.
A História da Computação está marcada por interrupções repentinas, por
mudanças inesperadas e imprevistas, tornando-se difícil a visão da evolução dos
computadores mediante uma mera enumeração linear de invenções-nomes-datas.
O desejo de conhecer as vinculações que o trabalho de determinados homens
estabeleceram no tempo vem acompanhado do impulso de compreender o peso
desses atos no conjunto da História da Computação. Buscar uma compreensão dos
fatos através dos acontecimentos que o precederam é um dos principais objetivos
que estará presente neste estudo da História da Computação.
A computação é um corpo de conhecimentos formado por uma infra-estrutura
conceitual e um edifício tecnológico onde se materializam o hardware e o software.
A primeira fundamenta a segunda e a precedeu. A teoria da computação tem seu
desenvolvimento próprio e independente, em boa parte, da tecnologia. Essa teoria
baseia-se na definição e construção de máquinas abstratas, e no estudo do poder
dessas máquinas na solução de problemas. A ênfase deste livro estará nessa
dimensão teórica, procurando mostrar como os homens, através dos tempos,
buscaram elaborar métodos efetivos para a solução de diversos tipos de
problemas.
A preocupação constante de minimizar o esforço repetitivo e tedioso produziu
o desenvolvimento de máquinas que passaram a substituir os homens em
determinadas tarefas. Entre essas está o computador, que se expandiu e
preencheu rapidamente os espaços modernos pelos quais circulam as pessoas. A
partir do aparecimento da noção de número natural, passando pela notação
aritmética e pela notação mais vinculada ao cálculo algébrico, mostra-se como
apareceram regras fixas que permitiram computar com rapidez e precisão,
poupando, como dizia Leibniz, o espírito e a imaginação. “Descartes acreditava no
emprego sistemático do cálculo algébrico como um método poderoso e universal
para resolver todos os problemas. Esta crença juntou-se à de outros e surgem as
primeiras idéias sobre máquinas universais, capazes de resolver todos os
problemas. Esta era uma crença de mentes poderosas que deixaram obras
respeitáveis na Matemática e nas ciências em geral” [CO98].
Também é intenção do presente estudo procurar compreender e estabelecer
as diretrizes para uma disciplina de História da Computação, mediante a seleção
das idéias, teorias e conceitos que ajudaram os homens em sua busca da
automatização dos processos aritméticos e que conduziram à tecnologia dos
computadores. No Brasil ainda não existem livros que tratem do assunto História
da Computação, observando-se uma lacuna cultural que países do primeiro mundo
preocupam-se em preencher * já faz alguns anos. Pretende-se que este trabalho
seja uma contribuição nesse sentido e um ponto de partida para novos estudos de
História, pois são muitos os campos que poderão ser abertos.
8
• As primeiras máquinas
• A revolução do hardware e do software
• A disseminação da cultura informática e o controle das informações
• Conclusão
Primeiramente será tratado o tema da História: constatar sua existência e
necessidade, aspectos da evolução da ciência histórica e tocar particularmente o
tema da História da Ciência, que se relaciona com o presente trabalho. Logo a
seguir virá uma breve explanação de motivos que incentivam a aprofundar no
estudo do tema específico da História da Computação.
Em Evolução dos conceitos será mostrado o desenvolvimento dos conceitos
teóricos que formaram a base para o surgimento da Computação. O caminho a ser
usado será o da História da Matemática, desde os seus primórdios por volta do ano
4.200 a.C. – época provável de um calendário solar egípcio [Boy74] –, passando
pelas contribuições das culturas babilônica, hindu, chinesa, árabe e grega, pelo
ábaco, pela primeira máquina de calcular, até Boole, Hilbert, Turing e von
Neumann, entre outros, nos anos 30, 40 e 50 do século XX. A partir daí, a
Computação constrói a sua própria história, embora os laços com a matemática
continuem sempre muito estreitos.
Por Pré-História tecnológica entende-se a enumeração de alguns dispositivos
analógicos primitivos, as primeiras tentativas de se construir um dispositivo de
cálculo com Leibniz, Pascal, Babbage, Hollerith, etc., o surgimento dos dispositivos
analógicos modernos – planímetros, analisadores harmônicos, etc. – e os primeiros
'computadores' eletromecânicos por volta dos anos de 1930 e 1940. Em As
primeiras máquinas ver-se-á a construção dos primeiros dispositivos
computacionais e os primeiros passos que são dados nesse campo essencial da
Computação que são as Linguagens de Programação. Já estava formada a infra-
estrutura conceitual necessária e a tecnologia já possibilitava o desenvolvimento
de dispositivos mais poderosos e precisos para a execução de cálculos.
*Nestes últimos dez anos vários livros já foram publicados em outros idiomas.
9
Plenitude de suceder, conhecimento desse suceder, recuperação dos valores
antigos..., palavras que significam algo mais que uma mera enumeração de nomes,
lugares, datas, números, etc. Consiste antes de tudo em um debruçar-se sobre o
passado e formularlhe perguntas para se apropriar do seu legado (da “tradição”,
de traducere, entregar).
Ninguém produz por si mesmo os conhecimentos de que necessita para
sobreviver em meio à sociedade na qual nasce; a grande maioria chega como algo
adquirido, que se recebe pela interação com o meio ambiente. Desde o instante em
que o homem se dá conta do mundo e de si mesmo, percebe-se rodeado de
instituições e tradições que vive e atualiza de um modo natural, sem se dar conta
de que foi forjado nesse entorno, com atitudes e pontos de vista tão arraigados em
seu modo de ser, em sua psicologia, que nada lhe parece estranho ou
desconhecido. Somente quando o homem sai do seu entorno vital e entra em
contato com novas superfícies de valores, tradições, costumes, é que começa a
compará-los com os seus e a se perguntar reflexivamente sobre tais coisas, pelas
verdades de umas e outras.
A história é parte dessa necessidade humana de refletir: é o desejo de explicar
a origem e a verdade das próprias instituições, quem ou qual acontecimento as
estabeleceu. Para responder sobre sua existência atual e conhecer a si mesmo o
homem tem de mergulhar no seu passado, perguntando às gerações anteriores por
que fizeram essas instituições e não outras, por que surgiram esses precisos
costumes e atitudes, por que ele tem essa herança cultural, e assim por diante. Por
possuir uma herança é que cada homem é um historiador em potencial. Assim
como em cada homem há uma evolução biológica necessária, há também a
manutenção de uma identidade ao longo das várias etapas desse desenvolvimento
biológico, que nos distinguem e nos tornam únicos, sendo fator de compreensão do
modo pessoal de ser. Com a história buscamos essa nossa identidade para
compreender o momento presente. E isto pode e deve ocorrer sob pontos de vista
específicos: sociais, psicológicos, filosóficos e tecnológicos.
Paul M. Veyne fala ainda da história como compreensão, contrapondo o uso
deste termo ao uso do termo explicação. Em seu sentido mais forte explicar
significa “atribuir um fato a seu princípio ou uma teoria a outra mais geral” como
fazem as ciências ou a filosofia. Nesse caso, a história seria uma difícil conquista
porque a ciência só conhece leis, sistemas hipotéticodedutivos, e no mundo da
história reinam, lado a lado, a liberdade e o acaso, causas e fins, etc. Para Veyne a
história apresenta um caráter acientífico no sentido de que é difícil buscar
princípios universais que tornem os acontecimentos inteligíveis, ou achar
mecanismos de causa e efeito para se poder deduzir, prever. “(...) a Revolução
Francesa se explica pela subida de uma burguesia capitalista: isto significa,
simplesmente, (...) que a narração da revolução mostra como essa classe ou seus
representantes tomaram as rédeas do estado: a explicação da revolução é o
resumo desta e nada mais. Quando solicitamos uma explicação para a Revolução
Francesa, não desejamos uma teoria da revolução em geral, da qual se deduziria a
de 1789, nem um esclarecimento do conceito de revolução, mas uma análise dos
antecedentes responsáveis pela explosão desse conflito (...)”. Busca-se portanto
uma compreensão dos fatos através dos acontecimentos que o precederam*
[Vey82]. Toda verdadeira investigação edifica-se estabelecendo-se com a máxima
exatidão possível o já sabido, para depois poder perguntar com exatidão, de
maneira que se possam encontrar respostas. Só partindo da informação adquirida
podem ser feitas perguntas capazes de ter resposta, e não perguntas deslocadas,
no vazio, que nunca poderão ser respondidas. É necessário caminhar passo a
passo, um após o outro: em toda busca que se queira chegar a algo é preciso
10
estabelecer com precisão o problema, planejar possíveis linhas de ataque
conceitual e valorar as aparentes soluções.
Tal enfoque será um dos que estarão presentes neste estudo crítico da
História da Computação através de uma visão conceitual. Pode-se aplicar a essa
história a mesma afirmação que faz Thomas Khun sobre a História da Ciência: está
marcada por interrupções repentinas, por inesperadas e imprevistas mudanças,
exigindo modelos de conhecimento que supoêm alterações inesperadas no
processo do seu desenvolvimento ([RA91], vol III). Em função desse fato torna-se
difícil a visão da evolução dos computadores mediante uma mera enumeração
linear de invenções-nomes-datas †, forçando-nos a tentar compreender as forças e
tendências que, no passado, prepararam o presente. O desejo de conhecer as
vinculações que os atos de determinados homens estabeleceram no tempo vai
acompanhado do impulso de compreender o significado de tais atos no conjunto da
História da Computação.
*Se a história é ou não ciência é uma questão muito disputada entre vários autores e tema
ainda polêmico. No tratado História e Memória do medievalista francês Jacques Le Goff [Gof94],
capítulo História, item 1, desenvolve-se uma panorâmica geral dessas correntes e tendências
existentes entre historiadores e teóricos da história.
†Obviamente não se quer tirar aqui a importância da datação. Como diz Le Goff, “o historiador
deve respeitar o tempo que, de diversas formas, é condição da história e que deve fazer
corresponder os seus quadros de explicação cronológica à duração do vivido. Datar é, e sempre será,
uma das tarefas fundamentais do historiador, mas deve-se fazer acompanhar de outra manipulação
necessária da duração − a periodização − para que a datação se torne historicamente pensável”
[Gof94]. Não se dispensará este trabalho de ter uma cronologia, a partir da qual se possa situar no
tempo os homens e os fatos mais representativos de uma determinada corrente de idéias ou
descobertas. No anexo I há uma tabela da evolução conceitual e tecnológica por data.
11
• “visão de cima” no sentido de estar concentrada nos feitos dos grandes
homens;
• baseada em documentos;
• deveria perguntar mais pelas motivações individuais do que pelos
movimentos coletivos, tendências e acontecimentos;
• a história é objetiva, entendendo-se por isso a consideração do suceder
como algo externo ao historiador, suscetível de ser conhecido como objeto que se
põe diante do microscópio, almejando uma neutralidade.
Ainda no século XIX algumas vozes soaram discordantes desse paradigma
histórico. Entre outras coisas devido ao seu caráter reducionista, onde situações
históricas complexas são vistas como mero jogo de poder entre grandes homens
(ou países), e também em função daquilo que se poderia chamar a “tirania” do fato
ou do documento, importantes sem dúvida, mas que não deve levar a abdicar de
outros tipos de evidências. Como relata Peter Burke, “Michelet e Burckhardt, que
escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou menos na mesma época,
1865 e 1860 respectivamente, tinham uma visão mais ampla do que os seguidores
de Ranke. Burckhardt interpretava a história como um corpo onde interagem três
forças − Estado, Religião e Cultura − enquanto Michelet defendia o que hoje
poderíamos descrever como uma ‘história da perspectiva das classes
subalternas’(...)” [Bur92a]. Outros opositores da “história política” foram os
historiadores da evolução das sociedades sob o ponto de vista econômico e os
fundadores da nova disciplina da sociologia, que começaram a surgir na França.
Dois fatos, no entanto, ocorridos nas quatro primeiras décadas do século XX
acabariam por sacudir e arruinar a confiança nos princípios rankeanos, O primeiro
foi a rápida difusão do marxismo, que renuncia à neutralidade, afirmando que o
materialismo dialético é a única filosofia científica válida para a interpretação da
história; o segundo, a grande crise do ano de 1929, que revelou até que ponto os
fatores econômicos e sociais podem exercer uma ação decisiva.
É desse período o nascimento da revista francesa Annales, considerada uma
das mais importantes propulsoras da chamada Nova História. Nova História é um
termo que data de 1912, quando o estudioso americano James Harvey Robinson
publicou um livro com esse título. Segundo Robinson, história inclui todo traço e
vestígio de tudo o que o homem fez ou pensou desde seu primeiro aparecimento
sobre a terra. Em relação ao método, a ‘nova história’ vai servir-se de todas
aquelas descobertas que são feitas sobre a humanidade, pelos antropólogos,
economistas, psicólogos e sociólogos [Bur92b].
Surgiu a idéia de uma história total, com a qual quiseram os autores da Escola
dos Annales advertir que, frente à unilateralidade e reducionismo do materialismo
dialético, a compreensão do passado exige que todos os dados – políticos e
institucionais, ideológicos, econômicos, sociais, da mentalidade humana, etc. –
fossem fundidos e integrados para conseguir uma explicação correta. Uma tarefa
árdua, na prática quase impossível, mas que marca um ideal, uma direção, uma
meta que é preciso atingir.
Surgiram ainda outros enfoques como, por exemplo, a história do ponto de
vista quantitativo, durante certo tempo em moda na Europa e Estados Unidos, que
procura utilizar fontes quantitativas, métodos de contagem e até modelos
matemáticos na sua pesquisa histórica, ou as histórias que abrangem um
determinado campo da vida humana como a história da arte ou a história das
ciências [GN88].
O panorama atual, de acordo com os historiadores, é o de uma história
fragmentada, detectando-se alguns sinais de busca de uma síntese. Ainda se está a
uma longa distância da “história total”. Na verdade, é difícil acreditar que esse
12
objetivo possa ser facilmente alcançado – ou até que será alcançado –, mas alguns
passos já foram e estão sendo dados em sua direção.
Paralelamente a todos esses esforços, surgiram também os teóricos da
história, que se esforçaram ao longo dos séculos para introduzir grandes princípios
que pudessem fornecer linhas gerais de compreensão para a evolução histórica. A
filosofia da história é o estudo da realidade “latente”, ou melhor, do “pano de
fundo” dos fatos históricos. Qual é a natureza, por exemplo, das crises de
crescimento e decadência de uma civilização, quais foram as causas? Sendo a
história não a simples crônica que apresenta os fatos de um modo minucioso, mas
sim sua investigação, que se esforça por compreender os eventos, captar relações,
selecionar fatos, como fazer isso, qual é a estrutura essencial da realidade
histórica?
A filosofia da história – termo temido por muitos autores porque poderia supor
apriorismos, preconceitos, idealismos – responderá basicamente a duas questões
fundamentais:
• o que são os fatos históricos − historiologia morfológica;
• para qual fim se dirigem − historiologia teleológica.
13
• a História da Ciência possibilita uma maior consciência das normas
metodológicas necessárias ao trabalho de pesquisa.
Os problemas do como realizar essas funções são complexos, bastando
lembrar as diferentes escolas de história. De qualquer maneira, é a disciplina da
história que é revitalizada, despertando a capacidade do homem de assumir o seu
passado e a partir dele dar respostas criadoras aos novos problemas que
aparecem. É muito significativo que entre os sintomas da decadência de uma
cultura ou de uma ciência esteja precisamente isto: o repúdio ao passado que as
valorizava.
*Para aprofundar no assunto, em [Art94] há uma síntese das discussões e evolução das
polêmicas.
14
tecendo um fio de história, os fatos conceituais, com a mínima periodização e
datações possíveis. Por fatos conceituais entendam-se aqui as idéias e conceitos
relevantes que fundamentaram a incansável busca pela mecanização do raciocínio.
Entre estes estarão: Álgebra, Sistema Axiomático, Lógica Matemática, Sistema
Axiomático Formal, Computabilidade, Máquina de Turing, Tese de Church,
Inteligência Artificial, e outros mais.
*Se bem que em outro contexto, pois tinha uma outra linha de pensamento historiográfico,
mas que serve também para o enfoque adotado no trabalho.
15
*Pense-se na Robótica por exemplo, onde estão incluídas a Inteligência Artificial, as
Linguagens de Programação, a Computação Gráfica, etc.
†No anexo I encontra-se uma tabela cronológica dos acontecimentos conceituais e
tecnológicos, que dará uma visão mais geral da evolução da História da Computação.
16
Álgebra Lógica de George Boole, um matemático que buscando relacionar o
processo humano de raciocínio e a Lógica Matemática, desenvolveu uma
ferramenta para os futuros projetistas de computadores? Sabe-se que a revolução
da Computação começou efetivamente quando um jovem de 24 anos, chamado
Alan Mathison Turing, teve a idéia de um dispositivo teórico para buscar a
resposta a um desafio do famoso matemático David Hilbert – um dos primeiros a
falar sobre computabilidade –, e que em um ‘journal’ de matemática comentou aos
seus colegas que era possível computar na teoria dos números, por meio de uma
máquina que teria armazenadas as regras de um sistema formal? Que as pesquisas
de Turing estão relacionadas com o trabalho de Gödel – cujo Teorema que leva o
seu nome é considerado um dos mais famosos resultados do século XX, dentro da
matemática? Pode-se citar ainda a Tese de Turing-Church que possibilitou aos
cientistas passarem de uma idéia vaga e intuitiva de procedimento efetivo para
uma noção matemática bem definida e precisa do que seja um algoritmo. E antes
de todos esses, o esforço de dezenas de pensadores de diferentes culturas, para
encontrar melhores formas de usar símbolos, que viabilizou o desenvolvimento da
Ciência Matemática e Lógica, e que acabaram fundamentando toda a Computação.
17
precisão da matemática aos sistemas. A figura abaixo, conforme [Coe95], serve
como ilustração dessa idéia.
*Um método se diz formal quando o conjunto dos procedimentos e técnicas utilizadas são
formais, isto é, têm um sentido matemático preciso, sobre o qual se pode raciocinar logicamente,
obtendo-se completeza, consistência, precisão, corretude, concisão, legibilidade e reutilização das
definições abstratas.
18
técnicas de engenharia e eletrônica usadas na construção de computadores, tanto
no referente ao hardware como ao software. Como não falar de indução
matemática quando se deseja seriamente explicar a programação de
computadores? Ou falar de uma linguagem de programação sem introduzir a teoria
dos autômatos? Com o desenvolvimento de conceitos matemáticos adequados será
possível estabelecer um conjunto de procedimentos que assegure aos sistemas a
serem desenvolvidos uma manutenção gerenciável, previsível e natural, como
ocorre na engenharia.
19
Ciência da Computação, desenvolvido pela ACM (Association for Computing
Machinery) e IEEE (Institute of Electrical and Electronics Engineers) Computer
Society Joint Task Force, em 1991, módulos relativos à história em 4 áreas:
Inteligência Artificial, Sistemas Operacionais, Linguagens de Programação e
Temas Sociais, Éticos e Profissionais. Mais recentemente ainda, na 6a IFIP
(International Federation for Information Processing), evento realizado dentro da
Conferência Mundial dos Computadores na Educação, transcorrida em
Birmingham, Inglaterra, de 20 a 24 de julho de 1995, estimulou-se não só “a
preservação das peças de computadores, o registro de memórias dos pioneiros e a
análise do impacto exterior das inovações nos computadores, mas também o
desenvolvimento de módulos educacionais na História da Computação” [Lee95].
Significativo também é a introdução, nos cursos de Ciência da Computação, da
disciplina História da Computação, principalmente a partir da década de 1990, em
algumas universidades. Pode-se citar a Universidade de Stanford e o Instituto
Charles Babbage, da Universidade de Minnesota dedicado a promover o estudo da
História da Computação, EUA, o arquivo Nacional para a História da Computação
da Universidade de Manchester, Inglaterra, Universidade de Waterloo (Canadá) e
similar em Bordeaux, França, Universidade de Wales Swansea, Austrália, etc.
Também aumentaram o números de museus e instituições governamentais ou
particulares que prestam esse serviço de preservação da história da tecnologia
informática, como por exemplo o museu de Boston, os museus de instituições
militares americanas e organizações do porte do IEEE. Esta última promoveu em
1996 o lançamento de pelo menos quatro livros sobre o assunto História da
Computação, tendo construído um “site” na Internet, narrando os eventos dessa
história desde o século XVII. Na Internet proliferaram os museus de imagens e
cronologias sobre assuntos específicos como Microcomputadores, Computação
Paralela, Linguagens de Programação, etc.
20
Matemática, e mais especificamente de alguns dos seus ramos, no caso a Álgebra e
a Lógica Simbólica ou Matemática, de onde nos vieram o rigor e o método
axiomático, até chegar às noções de computabilidade e procedimento, com Turing
e Church.
4.1 Primórdios
Talvez o passo mais fundamental dado nestes primeiros tempos tenha sido a
compreensão do conceito de número, isto é, ver o número não como um meio de se
contar, mas como uma idéia abstrata. O senso numérico foi o ponto de partida.
Trata-se da sensação instintiva que o homem tem das quantidades, atributo
participado também pelos animais irracionais (a gata mia quando um dos filhotes
não está no ninho; determinados pássaros abandonam o ninho quando um dos seus
ovos foi mudado de lugar); na vida primitiva bastava esse senso numérico. Mas
com o começo da criação dos animais domésticos era necessário saber algo mais,
pois se a quantidade não fosse melhor conhecida, muitas cabeças se perderiam.
Inventou-se a contagem através do estabelecimento de uma relação entre duas ou
várias quantidades, na qual cada elemento de uma corresponde a um elemento de
outra e nenhum elemento deixa de ter o seu correspondente (por exemplo,
pedrinhas de um monte com ovelhas de um rebanho).
No entanto essa relação biunívoca se dá somente no âmbito mental (ovelhas e
pedra estão na natureza e não se dão conta um do outro). Não está registrado de
que forma ocorreu o reconhecimento, pelos nossos antepassados mais primitivos,
de que quatro pássaros caçados eram distintos de dois, assim como o passo nada
elementar de associar o número quatro, relativo a quatro pássaros, e o número
quatro, associado a quatro pedras. Essa correspondência é um pensamento que é
uma espécie de linguagem. Nessa linguagem estão envolvidas a quantidade, a
correspondência biunívoca (o número) e a sua expressão (os elementos usados
para contagem: pedras, dedos, seqüências de toques no corpo, e outras formas
mais primitivas de expressar um numeral).
A visão do número como uma qualidade de um determinado objeto é um
obstáculo ao desenvolvimento de uma verdadeira compreensão do que seja um
número. Somente quando, de acordo com um dos exemplos dados, o número
quatro foi dissociado dos pássaros ou das pedras, tornando-se uma entidade
independente de qualquer objeto – uma abstração, como diriam os filósofos –, é
que se pôde dar o primeiro passo em direção a um sistema de notação, e daí à
aritmética. Conforme Bertrand Russell, “foram necessários muitos anos para se
descobrir que um par de faisões e um par de dias eram ambos instâncias do
número dois” [Dan54].
E assim como se criaram símbolos escritos para expressar idéias, também
criou-se a escrita numérica. Os numerais escritos surgem nas civilizações antigas
(egípcia, babilônica e chinesa) e se baseiam na repetição de símbolos. No caso dos
egípcios, ao se completar o décimo elemento, tomava-se um outro símbolo para
representar o número.
21
Figura 2: Sistema numérico clássico de adição egípcio baseado em hieróglifos
[Wil97]
* Olhando-se para trás na História, parece que a invenção de um sistema numérico de posições
rígidas, e ainda de um símbolo para designar o zero, deveria ter sido um extensão óbvia de alguns
dos primeiros sistemas numéricos de posições. Essa idéia é falsa: basta pensar que escapou à
percepção de grandes autores da Antigüidade, como Arquimedes ou Apollonius de Pergam, mesmo
quando eles percebiam as limitações de seus sistemas.
22
da aritmética foi desenvolvida em um maior grau do que o necessário para o
comércio, por causa da sua importância para a religião local. Todas as três
primeiras religiões indianas (Janaísmo, Budismo e Hinduísmo) consideravam a
aritmética importante, como mostra o fato de ser exigida entre os estudos
fundamentais a serem feitos pelos candidatos ao sacerdócio.
O uso mais antigo que se tem notícia da matemática indiana está em trabalhos
escritos em forma de verso, onde complicados expedientes literários eram
utilizados para representar números, de modo a se preservar a rima e a métrica
dos poemas. Até mesmo documentos que usam numerais para denotar números
nem sempre são guias seguros para informar quando tal prática começou a
aparecer. Parece que, em alguma época no século XI, foi feita uma tentativa para
se racionalizar o sistema de propriedade da terra em partes da Índia, o que levou
muitas pessoas a produzirem documentos forjados para pedir seus vários lotes.
Das 17 inscrições conhecidas usando numerais antes do século X, todas, à exceção
de duas, mostraram ser falsificações. A mais antiga e indubitável ocorrência do
zero na inscrição escrita na Índia foi em 876 d.C., com os números 50 e 270 sendo
representados em uma versão local dos dígitos indianos.
A história do nosso sistema numérico fica muito mais clara a partir do século
IX d.C. No século VII, quando a dinastia dos Califas começou em Bagdá, o
aprendizado das culturas adjacentes foi absorvido em uma nova e expansiva
cultura árabe. Quando os árabes conquistavam um país, eles costumavam adquirir
seu modo de escrita, particularmente a notação dos numerais do povo conquistado
e procurar traços de conhecimento na literatura que sobreviveu à guerra.
Graças aos trabalhos do matemático al-Kharazmi (mais a frente se falará da
importância deste homem originário da Pérsia), o uso dos numerais hindus
rapidamente se expandiu por todo o império árabe. A eventual expansão desses
numerais pela Europa é mais facilmente explicada a partir dos contatos gerados
entre árabes e europeus pelo comércio e pelas guerras. É provável que os
comerciantes italianos conhecessem o sistema de contas de seus parceiros
comerciais, e que os soldados e sacerdotes que retornaram das cruzadas também
tivessem uma ampla oportunidade de ter contato com o sistema de notação e
aritmética árabes. O mais antigo manuscrito europeu contendo numerais hindu-
arábicos de que se tem notícia foi escrito no claustro Albeda, na Espanha em 976
d.C. Os novos numerais também foram encontrados em outro manuscrito espanhol
de 992 d.C., em um manuscrito do século X encontrado em St. Gall, e em um
documento do Vaticano de 1077 d.C. Entretanto seu uso não foi muito difundido
durante esse período inicial, e é provável que pouquíssimas pessoas tenham
entendido o sistema antes da metade do século XIII.
23
Figura 3: Mais antigo manuscrito europeu com numerais indoarábicos, cfr. [Ifr89]
A primeira grande tentativa de introduzir essa nova forma de notação foi feita
por Leonardo de Pisa (1175 a 1250), mais conhecido pelo nome de Fibonacci (que
veio de filius Bonaccio, o filho de Bonaccio), um dos melhores matemáticos
europeus da Idade Média. Durante o tempo de Fibonacci, Pisa era uma das
grandes cidades comerciais da Itália, e por isso entrou em contato com toda a área
do Mediterrâneo. O pai de Fibonacci era o chefe de uma das casas de comércio
ultramarino, em Bugia, na costa da África Norte. Bugia era um importante centro
para mercadores e estudantes da época e Fibonacci foi mandado, quando tinha 12
anos, para se juntar a seu pai, tendo uma chance de ouro para observar os
métodos árabes. Certamente obteve parte de sua educação enquanto estava em
Bugia, e a lenda diz que ele aprendeu árabe e aritmética por um mercador local.
Visitou depois o Egito, Síria, Grécia e França, onde se esforçou para se informar
sobre os sistema aritméticos locais. Ele achou todos esses sistemas numéricos tão
inferiores aos que os árabes utilizavam que, quando voltou a Pisa, escreveu um
livro para explicar o sistema árabe de numerais e cálculo. Esse livro, nomeado de
Liber Abaci (O Livro do Ábaco) foi publicado pela primeira vez em 1202, e revisto e
ampliado em 1228. Era um tomo muito grande para a época, constituído de 459
páginas divididas em 15 capítulos. Os capítulos 1 a 7 introduziam a notação árabe
e as operações fundamentais com números inteiros; os capítulos 8 a 11 tratavam
de várias aplicações, enquanto os restantes eram dedicados aos métodos de
cálculo envolvendo séries, proporções, raízes quadradas e cúbicas, e uma pequena
abordagem sobre geometria e álgebra. Foi em um desses últimos capítulos em que
ele introduziu o famoso problema do coelho e as séries de números que agora
levam seu nome.
O Liber Abaci não foi tão influente quanto deveria ser porque era muito
grande, e portanto difícil de copiar em uma época em que não havia imprensa.
Também continha material avançado que só poderia ser entendido por estudiosos,
tendo sido conhecido apenas por poucas pessoas, nenhuma das quais parecia ter
muita influência nos métodos de cálculo usado nas transações diárias.
24
Mas embora os esforços de Fibonacci tivessem pouco sucesso, a idéia dos
numerais hindu-arábicos foi gradualmente se expandindo na Europa. As principais
fontes de informação foram as várias traduções, algumas parciais, do trabalho de
al-Kharazmi. O fato de ser a língua árabe totalmente diferente de qualquer língua
européia foi uma grande barreira para a disseminação das idéias científicas
árabes. Para aprender o árabe, era geralmente necessário viajar a um país de
língua árabe, e isso era uma tarefa difícil, já que alguns árabes não eram
simpáticos aos visitantes cristãos (e vice-versa). Esse problema foi parcialmente
resolvido em 1085, quando Alphonso VI de Leon recapturou Toledo dos mouros e
uma grande população de língua árabe veio à esfera da influência européia. A
maioria das primeiras traduções, ou pelo menos as pessoas que ajudaram os
tradutores, vieram dessa população.
Os dois principais trabalhos que espalharam o conhecimento aritmético hindu-
árabe pela Europa foram o Carmen de Algorismo (o Poema do Algorismo) de
Alexander De Villa Dei por volta de 1220 e o Algorismus Vulgaris (Algorismos
Comuns), de John de Halifax, mais conhecido como Sacrobosco, por volta de 1250
d.C. Esses dois livros foram baseados, pelo menos em parte, nos trabalhos de al-
Kharazmi ou de um de seus sucessores. Foram elaborados para uso em
universidades européias e não pretendiam ser explicações completas do sistema;
preferiram dar simplesmente o básico que o professor pudesse explicar, linha a
linha, para seus alunos. O Carmen de Algorismo era particularmente difícil de ser
seguido, especialmente na discussão do cálculo de raízes, porque foi escrito em
versos hexassílabos. Apesar disso ele ficou muito popular, sendo copiado muitas
vezes no latim original e sendo até traduzido em inglês, francês e irlandês. Parte
dessa popularidade se deveu ao fato de que Alexander de Villa Dei (? a 1240), que
era nativo da Normandia e escrevia e ensinava em Paris, já era famoso por uma
gramática de latim, também em versos, que era muito utilizada nas escolas da
época. Também o fato de possuir somente 284 linhas o fazia facilmente copiável
pelos escribas, e assim, enquanto se produzia uma cópia do Liber Abaci, centenas
de cópias do Carmen podiam ser feitas e distribuídas. O mesmo acontecia com o
Algorismus Vulgaris, que tinha somente 4.000 linhas. Sacrobosco, que também
ensinava em Paris durante a primeira metade do século XIII, era conhecido por seu
trabalho em astronomia, e isso sem dúvida contribuiu para o sucesso do
Algorismus Vulgaris, que continuou a ser usado como um texto universitário em
aritmética até mesmo depois da invenção da imprensa. Edições impressas são
conhecidas a partir do fim dos séculos XV e XVI.
Uma dos primeiros tradutores do trabalho de Al-Kharazmi foi Adelard de Bath
que, por volta do ano 1120, produziu um texto em latim cujas primeiras palavras
eram Dixit Algorismi … (assim disse o algorismo…), e que resultou nessa nova
ciência que ficou conhecida como algorismo. Esse termo, e as várias corruptelas
originadas por autores diferentes, finalmente se espalhou através de todas
linguagens européias até o ponto de o processo de fazer aritmética com os
numerais hindu-arábicos ser chamado algarismo, e isso nos deu o termo algoritmo
que é tão familiar aos estudantes de Ciência da Computação. A conexão do
Algorismi com al-Kharazmi perdeu-se e muitos autores inventaram até outras
pessoas, como um que citava o ‘Rei Algor’, a quem a origem desses métodos
poderia ser atribuída...
A troca dos numerais adicionais romanos para o sistema posicional dos
hinduárabes foi lenta, durou alguns séculos. Não era fácil para os europeus
entenderem o uso do zero que, enquanto representando o nada em si, podia
magicamente fazer outros dígitos crescerem dramaticamente em valor. A palavra
hindu para o sinal do zero era sunya que, muito apropriadamente, queria dizer
25
vazio ou desocupado. Quando o sistema foi adotado pelos árabes, eles usaram sua
própria palavra para desocupado, que é geralmente escrita como sifr no nosso
alfabeto. Essa palavra árabe foi simplesmente escrita no alfabeto latino ou como
zephirum, de onde veio a nossa palavra zero, ou como cipher, de onde derivou o
antigo verbo inglês to cipher, que significava “fazer aritmética”. Parte do mistério
com que o novo sistema era considerado pode ser observado pelo fato de que a
mesma palavra para a raiz elevou termos que eram envolvidos em mágica e escrita
secreta, como calcular ou decifrar um texto em código. Esse ar de mistério foi
realçado pela atitude de algumas pessoas que, depois que conheciam o algarismo,
acharam que isso era um conhecimento para ser mantido entre um grupo secreto,
e não para ser explicado para pessoas comuns. Essa atitude é ilustrada em várias
figuras do fim da Idade Média, uma das quais mostra duas pessoas fazendo
aritmética, uma usando os métodos antigos do ábaco enquanto o outro,
escondendo seu trabalho do primeiro, estava usando o novo algarismo.
Por volta de 1375 o uso dos numerais hindu-arábicos firmou-se na Europa.
Eles começaram a aparecer em muitos documentos diferentes, embora ainda
existisse uma grande resistência para a adoção dos novos números. Em 1229, a
cidade de Florença proclamou uma lei que proibia o uso dos numerais hindu-
arábicos, pois eram fáceis de serem alterados ou forjados (por exemplo,
transformar um 0 em um 6 ou 9 deveria ser bastante fácil). Os mercadores
desenvolveram vários truques para prevenir esse tipo de coisa com os numerais
romanos; por exemplo, XII era escrito como Xij, então um i extra não poderia ser
adicionado ao fim sem gerar suspeitas e, fazendo o primeiro caracter maiúsculo,
eles evitavam que qualquer um colocasse caracteres à esquerda do número.
Passaria apenas pouco tempo para que se desenvolvessem dispositivos
semelhantes para os novos numerais, mas ainda por volta de 1594 os mercantes da
Antuérpia eram alertados para que não os usassem em contratos ou em ordens de
pagamento bancárias.
Os italianos rapidamente viram a utilidade do novo sistema para propósitos
mercantis e influenciaram toda a Europa para a adoção do sistema de valor
posicional. Algarismos já eram bem difundidos por volta de 1400, mas os
mercadores mais conservadores continuaram utilizando os numerais romanos até
por volta de 1550, e muitos monastérios e faculdades os usaram até o meio do
século XVII. Até mesmo por volta de 1681 encontram-se evidências de que o novo
sistema ainda não tinha sido completamente compreendido. Um livro publicado
naquele ano teve seus capítulos numerados como: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, X, X1, X2,
X3, X4 … XXX, XXX1, 302, 303… XXXX, 401, 402,…
Essa permanência dos métodos antigos de notação foi causado não por falta
de conhecimento sobre o novo, mas pelo medo de que, sem um entendimento
completo do sistema, alguma coisa poderia dar errado. Esse tipo de medo é visto
de vez em quando até hoje, mas dois exemplos do século XVII podem ajudar a
ilustrar o fenômeno. Willian Oughtred, que se encontrará mais a frente neste livro
ao se falar da régua de cálculo, preferia calcular ab + ac a calcular a(b+c) por
causa do medo de que algum tipo de erro poderia acontecer em um sistema
abreviado. Muitas formas diferentes de numerais foram usadas na Europa, alguma
das quais não seriam reconhecidas da maneira que elas são agora. As versões
manuscritas dos antigos trabalhos são particularmente difíceis de se ler porque o
autor e o copista usaram as formas de numerais com que eles eram mais
familiarizados. Livros produzidos em regiões próximas, ou separados por poucos
anos, usaram caracteres diferentes para pelo menos alguns dos numerais. Foi a
invenção da imprensa que os padronizou na forma em que nós os conhecemos
agora, embora até hoje as formas do 5 e do 7 variem ligeiramente entre europeus e
26
americanos. É interessante notar que, apesar do fato de que os europeus
obtiveram o sistema dos árabes, as duas culturas utilizam formas de numerais
notavelmente diferentes hoje. O turista europeu tem constantemente problemas
com o fato de que o círculo é usado nos países árabes como símbolo para o dígito
cinco e algo parecido com um ponto é usado para o símbolo do zero.
*Em um sistema axiomático parte-se de premissas aceitas como verdadeiras e de regras ditas
válidas, que irão conduzir a sentenças verdadeiras. As conclusões podem ser alcançadas
manipulando-se símbolos de acordo com conjuntos de regras. A Geometria de Euclides é um clássico
exemplo de um procedimento tornado possível por um sistema axiomático.
† “A álgebra retórica é caracterizada pela completa ausência de qualquer símbolo, exceto,
naturalmente, que as próprias palavras estão sendo usadas no seu sentido simbólico. Nos dias de
hoje esta álgebra retórica é usada em sentenças do tipo ‘a soma é independente da ordem dos
termos’, que em símbolos seria designada por ‘a+b = b+a’ ”[Dan54]. A sincopada é a notação
intermediária que antecedeu a simbólica, caracterizada pelo uso de abreviações que foram sendo
contraídas até se tornarem um símbolo [idem].
27
cálculos datam dessas épocas, como, por exemplo, o ábaco e o mecanismo
Antikythera, sobre os quais se falará mais detidamente no capítulo da Pré-História
Tecnológica.
Os gregos assimilaram os princípios empíricos dos egípcios e deram, a esse
delimitado conhecimento, o nome de Geometria, isto é, medida da terra. Mas
diferentemente daqueles, estudaram a Geometria mais sob seu aspecto teórico,
desejando compreender o assunto por ele mesmo, independentemente de sua
utilidade. Procuraram encontrar demonstrações dedutivas rigorosas das leis
acerca do espaço e mostraram um crescente interesse pelos princípios
geométricos. Pitágoras considerava que, em sua forma pura, a geometria se
aproximava bastante da religião e para ele era o arché, o princípio de tudo,
buscado tão intensamente pelos filósofos cosmológicos[Bar67]. Com a obra
Elementos, de Euclides, reúnem-se e são apresentados de modo sistemático as
principais descobertas geométricas de seus precursores, sendo considerado, até o
século XIX, não somente o livrotexto da Geometria, mas o modelo daquilo que o
pensamento científico deveria ser.
Resumindo, deve-se ver nestes tempos as tentativas de conceituação do
número, o estabelecimento das bases numéricas, o estudo da Álgebra e da
geometria e a busca de uma sistematização do raciocínio, que tanto atraíram os
antigos. Tempos de evolução lenta e, em termos de produção efetiva de
conhecimento matemático, bem abaixo da quantidade e qualidade produzida quase
que exponencialmente a partir do século XV d.C., mas não menos importantes. De
fato, para se compreender a História da Matemática na Europa é necessário
conhecer sua história na Mesopotâmia e no Egito, na Grécia antiga e na civilização
islâmica dos séculos IX a XV.
28
teoria da computabilidade, necessária para o advento do computadores.
O início da ciência da Lógica encontra-se na antiga Grécia [Kne68] [Boc66]. As
polêmicas geradas pela teoria de Parmênides e os famosos argumentos de Zenão *,
que negavam a realidade do movimento fazendo um uso indevido do princípio da
nãocontradição, contribuíram para a distinção dos conceitos, para se ver a
necessidade de argumentar com clareza, mediante demonstrações rigorosas, e
assim responder às objeções dos adversários. Mais tarde, as sutilezas dos sofistas,
que reduziam todo o saber à arte de convencer pelas palavras, levaram Sócrates a
defender o valor dos conceitos e tentar defini-los com precisão. Assim a Lógica
como ciência vai se formando pouco a pouco, principalmente com Sócrates e
Platão. Mas Platão pensava que qualquer conteúdo da mente existia tal qual na
realidade e Aristóteles reage ao seu mestre, dizendo que as idéias existem somente
na mente humana, mas correspondendo a realidades.
Com Aristóteles é que se dá o verdadeiro nascimento da Lógica como ciência
das idéias e dos processos da mente. “Até hoje não existe forma alguma concebível
de lógica, por muito distinta que seja da lógica formal, que não tenha algum tipo
de conexão com a obra aristotélica” [Sch31]. Ele foi o primeiro lógico formal da
história, tendo desenvolvido ao menos duas formas distintas de lógica formal,
elaborando algumas de suas partes de maneira praticamente completa e deixando
esboçados outros tipos de lógicas que somente na época atual foram novamente
tratadas †.
29
Figura 4: Aristóteles
30
e estóicos. Pouco conservada pela tradição, merece um melhor tratamento dos
historiadores, porque o que deles se conhece sugere que esses gregos eram
altamente inteligentes.
Os megáricos (em função de sua cidade, Mégara) interessaram-se por certos
enigmas lógicos como o conhecido “paradoxo do mentiroso”: quem diz “O que eu
afirmo agora é falso”, enuncia algo verdadeiro ou falso? Um deles, Diodoro Cronus,
que morreu por volta de 307 a.C., formulou interessante concepção modal,
relacionando possibilidade, tempo e verdade, enquanto outro megárico, de nome
Fílon, estudou proposições do tipo “Se chove então a rua está molhada”,
construída com o auxílio das expressões “se..., então...” conhecidas como
condicionais. Ele as definiu em termos extremamente polêmicos, mas que seriam
assumidos como corretos, vinte e três séculos mais tarde pelos fundadores da
Lógica Contemporânea.
Os estóicos (da chamada escola filosófica de “Stoa”, que quer dizer “pórtico”)
desenvolveram também notáveis teorias lógicas. Tinham bastante presente a
diferença que há entre um código de comunicação específico, de um lado, e o que
se pode expressar através do uso de tal código. Assim sendo, um conceito de
“proposição” análogo ao usado na atual Lógica, já estava presente, de modo
virtual, na filosofia estóica da linguagem.
Porém a mais notável contribuição estóica à Lógica foi obra de Crísipo de
Soles (280-206 a.C.), homem de vasta produção poligráfica (750 livros). Ele
estudou as sentenças condicionais e também as disjuntivas (regidas pela partícula
“ou”) e as copulativas (regidas pelo “e”), tendo também reconhecido claramente o
papel lógico desempenhado pela negação. Além disto, Crísipo foi capaz de
relacionar tais idéias com as modalidades, elaborando, então, um sistema de
princípios lógicos que, no seu campo específico, foi muito além dos poucos
resultados obtidos por Aristóteles e seu discípulo Teofrasto. Por tal razão, Crísipo é
reconhecido como o grande precursor daquilo que hoje se chama “Cálculo
Proposicional”, o primeiro capítulo da Lógica desenvolvida a partir do último
quarto do século XIX [Bri79b].
Com sua obra Elementos, o matemático grego Euclides (330 a.C. - 277 a.C.)
deu uma forma sistemática ao saber geométrico, implementando as idéias sobre
axiomatização, de Aristóteles, para uma ciência exata. No primeiro livro dos
Elementos, ele enuncia vinte e três definições, cinco postulados e algumas noções
comuns ou axiomas *. Em seguida ele deduz proposições ou teoremas, os quais
constituem o saber geométrico, como por exemplo: “se em um triângulo dois
31
ângulos são iguais entre si, também os lados opostos a esses ângulos são iguais
entre si”. Postulados, axiomas e definições constituem os pontos de partida para as
demonstrações de Euclides. Seu objetivo é mostrar todos os outros princípios
geométricos − primeiro os da Geometria Plana e depois os da Geometria Espacial
−, revelando que são decorrências necessárias dos princípios fundamentais.
Quais são os traços característicos das técnicas adotadas por Euclides? Em
primeiro lugar ele enuncia as sua leis em forma universal: não se detém em
determinada figura ou linha, mas examina as propriedade que todas as figuras e
todas as linhas de tal ou qual tipo devem ter. Formula tais leis de maneira rigorosa
e absoluta e, mais ainda, demonstra-as. Seu livro, na verdade, consiste em
demonstrações colocadas de maneira sistemática, não indutiva, mas dedutiva, por
meio das quais procura estabelecer as suas conclusões com o rigor da lógica.
Euclides visava aperfeiçoar o conhecimento acerca de pontos, linhas e figuras,
tornando mais rigorosas as demonstrações de leis já conhecidas, e procurava
aumentar esse conhecimento, demonstrando leis novas, até então desconhecidas.
Mas talvez não se esgotasse aí a motivação − ou pelo menos as conseqüências −
do que elaborou o geômetra. A colocação de axiomas e teoremas em forma
dedutiva deu à Geometria uma apresentação mais elegante e transparente,
tornando facilmente perceptíveis as interessantes conexões lógicas ali
introduzidas. A axiomatização do saber Geométrico abriu um sem fim de
perspectivas para os estudiosos das ciências exatas, que adotam as exposições
axiomáticas − e buscam axiomatizações mais elegantes e econômicas − não só
para dar rigor às suas demonstrações, mas descobrir novas conexões lógicas.
Esse é portanto o modo como Euclides ordena o conhecimento geométrico no
chamado sistema euclidiano. Durante séculos esse sistema valeu como modelo
insuperável do saber dedutivo: os termos da teoria são introduzidos depois de
terem sido definidos e as proposições não são aceitas se não forem demonstradas.
Euclides escolhia as proposições primitivas, base da cadeia sobre a qual se
desenvolvem as deduções sucessivas, de tal modo que ninguém pudesse levantar
dúvidas sobre a sua veracidade: eram auto-evidentes, portanto isentas de
demonstração. Leibniz afirmaria mais tarde que os gregos raciocinavam com toda
a exatidão possível em matemática e deixaram à humanidade modelos de arte
demonstrativa ([RA91], volume III).
Em resumo, Euclides, como já fizera Aristóteles, buscou o ideal de uma
organização axiomática, que em última instância se reduz à escolha de um
pequeno número de proposições em princípio aceitas naquele domínio do
conhecimento, e à posterior dedução de todas as outras proposições verdadeiras
desse domínio, a partir delas. Surge com Euclides e Aristóteles (estará plenamente
desenvolvida no início do século XX com a escola formalista de Hilbert) a busca de
uma economia do pensamento (um bom texto sobre o assunto pode ser encontrado
em [Wil65]). A História da Computação tem um marco significativo nesse ponto da
História: o começo da busca da automatização do raciocínio e do cálculo.
32
e no renascentista. No século XIX, Karl Friedrich Gauss (1777-1855) viu com toda
a clareza a não demonstrabilidade do quinto postulado e a possibilidade da
construção de sistemas geométricos não euclidianos. Janos Boulay (1802-1860),
húngaro, e Nicolai Ivanovic Lobacewskiy (1793-1856), russo, trabalhando
independentemente, elaboraram uma geometria na qual o postulado da paralela
não vale mais.
A conseqüência desses fatos foi a eliminação dos poderes da intuição na
fundamentação e elaboração de uma teoria geométrica: os axiomas não são mais
“verdades evidentes” que garantem a “fundação” do sistema geométrico, mas
puros e simples pontos de partida, escolhidos convencionalmente para realizar
uma construção dedutiva. Mas, se os axiomas são puros pontos de partida, quem
garantirá que, continuando-se a deduzir teoremas, não se cairá em contradição?
Esta questão crucial dos fundamentos da matemática levará aos grandes
estudos dos finais do século XIX e inícios do XX e será o ponto de partida do
projeto formalista de David Hilbert, assim como de outras tentativas de se
fundamentar a matemática na lógica e na teoria dos conjuntos, como as propostas
por Frege, Russell e Cantor. E será dessa seqüência de sucessos e fracassos que se
produzirá a base da Computação, com Turing, von Neumann, Post, Church, e
outros mais.
*Juntamente com o papiro de Moscou é uma das principais fontes de informação relativa às formas de
notação e operações aritméticas em uso durante a primeira época da civilização egípcia
33
afirmando algo mais do que a “casualidade” de terem sido gregos ou árabes seus
fundadores ou promotores. Ordinariamente tendemos a pensar que o
conhecimento científico independe de latitudes e culturas: uma fórmula química ou
um teorema de Geometria são os mesmos em inglês ou português ou chinês e,
sendo a comunicação, à primeira vista, o único problema, bastaria uma boa
tradução dos termos próprios de cada disciplina. Mas não é assim.
Na verdade a evolução da ciência está repleta de interferências histórico-
culturais, condicionando metodologias, o surgimento de novas áreas do saber, e
assim por diante. Os juristas árabes referem-se à Álgebra como “o cálculo da
herança”, segundo a lei corânica, uma problemática importante dentro do Islam, e
aí já temos um exemplo de condicionamento histórico-cultural. Não foi por mero
acaso que a Álgebra surgiu no califado abássida (“ao contrário dos Omíadas, os
Abássidas pretendem aplicar rigorosamente a lei religiosa à vida cotidiana”
[AG81]), no seio da “Casa da Sabedoria” (Bayt al-Hikma) de Bagdá, promovida pelo
califa Al-Ma’amun; uma ciência nascida em língua árabe e antagônica da ciência
grega. Embora hoje a Álgebra possa parecer objetiva e axiomática, com uma
sintaxe de estruturas operatórias e destituída de qualquer alcance semântico, ela é
o resultado da evolução da velha al’jabr, “forjada por um contexto cultural em que
não são alheios elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe à
teologia muçulmana da época” [Lau97].
Muhammad Ibn Musa Al-Khwarizmi (780 - 850), matemático e astrônomo
persa, foi membro da “Casa da Sabedoria”, a importante academia científica de
Bagdá, que alcançou seu resplendor com Al-Ma’amun (califa de 813 a 833). A ele,
Al-Khwarizmi dedicou seu AlKitab al-muhtasar fy hisab al-jabr wa al-muqabalah
(“Livro breve para o cálculo da jabr e da muqabalah”). Al-jabr, que significa força
que obriga, restabelecer ‡, precisamente porque a Álgebra é “forçar cada termo a
ocupar seu devido lugar”. Já no começo do seu Kitab, Al-Khwarizmi distingue seis
formas de equação, às quais toda equação pode ser reduzida (e, canonicamente
resolvida). Na notação atual:
*Neste sentido foi o matemático grego que maior influência teve sobre a moderna teoria dos
números. Em particular Fermat foi levado ao seu ‘último’ teorema quando procurou generalizar um
problema que tinha lido na Arithmetica de Diophantus: dividir um dado quadrado em dois
quadrados (ver F.E. Robbins, P.Mich. 620: A Series of Arithmetical Problems, Classical Philology, pg
321-329, EUA, 1929).
†Apenas sob certo aspecto isto se justificaria. Em uma visão um tanto arbitrária e simplista
poderíamos dividir o desenvolvimento da álgebra em 3 estádios: (1) primitivo, onde tudo é escrito
em palavras; (2) intermediário, em que são adotadas algumas simplificações; (3) simbólico ou final.
Neste contexto, Arithmetica deve ser colocada na segunda categoria.
‡Restabelecer, por algo no seu devido lugar, restabelecer uma normalidade. Como observa
[Lau97] a palavra tajbir significa ortopedia e jibarath significa redução, no sentido médico (por o
osso no devido lugar) e na Espanha, no tempo em que os barbeiros acumulavam funções, podia-se
ver a placa “Algebrista e Sangrador” em barbearias.
1. ax2 = bx
2. ax2 = c
3. ax = c
4. ax2 + bx = c
5. ax2 + x = ax2
6. bx + c = ax2
34
que significa estar de frente, cara a cara, confrontar. Por exemplo: em um
problema onde os dados podem ser colocados sob a forma 2x2 + 100 – 20x = 58,
Al-Khwarizmi procede do seguinte modo:
Ainda dentro do período acima estabelecido (4.200 a.C. até meados do ano
1600 d.C) iniciou-se concretização de uma antiga meta: a idéia de se reduzir todo
raciocínio a um processo mecânico, baseado em algum tipo de cálculo formal. Isto
remonta a Raimundo Lúlio. Embora negligenciado pela ciência moderna,
Raimundo Lúlio (1235 - 1316), espanhol, figura pletórica de seu tempo, em seu
trabalho Ars Magna (1305 - 1308), apresentou a primeira tentativa de um
procedimento mecânico para produzir sentenças logicamente corretas [Her69].
Lúlio acreditava que tinha encontrado um método que permitia, entre outras
coisas, tirar todo tipo de conclusões, mediante um sistema de anéis circulares
dispostos concentricamente, de diferentes tamanhos e graduáveis entre si, com
35
letras em suas bordas. Invenção única, tentará cobrir e gerar, representando com
letras − que seriam categorias do conhecimento −, todo o saber humano,
sistematizado em uma gramática lógica.
36
e depois em nossos contemporâneos: as idéias de característica e de cálculo (...).
Com a ajuda desse simbolismo, tais autores pretendem permitir que as operações
mentais, freqüentemente incertas, fossem substituídas pela segurança de
operações quase mecânicas, propostas de uma vez por todas” ([RA91], volume III).
Pode-se ver em Raimundo Lúlio os primórdios do desenvolvimento da Lógica
Matemática, isto é, de um novo tratamento da ciência da Lógica: o procurar dar-
lhe uma forma matemática. O interesse deste trabalho é caracterizar a Lógica
Matemática, sem aprofundar nas discussões filosóficas − ainda em aberto − sobre
os conceitos “lógica matemática” e “lógica simbólica”, se é uma lógica distinta da
ciência matemática ou não, pois sem dúvida alguma a Computação emergirá
dentro de um contexto da evolução deste novo tratamento da lógica.
A Lógica Matemática ergue-se a partir de duas idéias metodológicas
essencialmente diferentes. Por um lado é um cálculo, daí sua conexão com a
matemática. Por outro lado, caracteriza-se também pela idéia de uma
demonstração exata e, nesse sentido, não é uma imitação da matemática nem esta
lhe serve de modelo, mas pelo contrário, à Lógica caberá investigar os
fundamentos da matemática com métodos precisos e oferecer-lhe o instrumento
para uma demonstração rigorosa.
A palavra Álgebra voltará a aparecer com o inglês Robert Recorde(1510?-
1558), em sua obra Pathway of Knowledge(1551), que introduz o sinal de ‘=’ e
divulga os símbolos ‘+’ e ‘−‘, introduzidos por John Widmann (Arithmetica, Leipzig,
1489). Thomas Harriot(1560-1621) prosseguirá o trabalho de Recorde, inventando
os sinais ‘>’ e ‘<’. Willian Oughtred(15741621), inventor da régua de cálculo
baseada nos logaritmos de Napier, divulgou o uso do sinal ‘×’, tendo introduzido os
termos seno, coseno e tangente. Em 1659 J.H. Rahn usou o sinal ‘÷’. Todos esses
matemáticos ajudaram a dar à Álgebra sua forma mais moderna.
Figura 8: Figuras
representando
mecanismo elaborado por Lúlio para
automatizar o raciocínio
37
A álgebra árabe fora perfeitamente dominada e tinha sido aperfeiçoada, e a
trigonometria se tornara uma disciplina independente [Boy74]. O casamento de
ambas pela aplicação dos métodos algébricos no terreno da geometria foi o grande
passo e Galileu (1564 - 1642) aí tem um papel preponderante. Ele uniu o
experimental ao matemático, dando início à ciência moderna. Galileu dá uma
contribuição decisiva a uma formulação matemática das ciências físicas. A partir
de então, em resultado desse encontro da matemática com a física, a ciência tomou
um novo rumo, a um passo mais rápido, e rapidamente as descobertas de Newton
(1643 -1727) sucedem às de Galileu.
Trata-se de um período de transição por excelência, que preparou o caminho
para uma nova matemática: não já uma coleção de truques, como Diophantus
possuíra, mas uma forma de raciocinar, com uma notação clara. É o começo do
desenvolvimento da idéia de formalismo na Matemática, tão importante depois
para a fundamentação teórica da Computação *.
*Lembrando algo que já foi dito, é importante ressaltar que desde suas origens aristotélicas a
lógica havia assumido claramente alguns recursos fundamentais, como a estrutura formal, o
emprego de certo grau de simbolismo, a sistematização axiomática e o identificar-se com a tarefa de
determinar as “leis” do discurso (tomando, por exemplo, a linguagem como tema de estudo),
características que foram assumidas pela Lógica Moderna.
38
Figura 9: Leibniz
Leibniz deu-se conta de tudo isto e concebeu, também para a dedução lógica,
uma desvinculação análoga com respeito ao conteúdo semântico das proposições,
a qual além de aliviar o processo de inferência do esforço de manter presente o
significado e as condições de verdade da argumentação, pusesse a dedução a salvo
da fácil influência que sobre ela pode exercer o aspecto material das proposições.
Deste modo coube a ele a descoberta da verdadeira natureza do “cálculo” em
geral, além de aproveitar pela primeira vez a oportunidade de reduzir as regras da
dedução lógica a meras regras de cálculo, isto é, a regras cuja aplicação possa
prescindir da consideração do conteúdo semântico das expressões.
Leibniz influenciou seus contemporâneos e sucessores através de seu
ambicioso programa para a Lógica. Esse programa visava criar uma linguagem
universal baseada em um alfabeto do pensamento ou characteristica universalis,
uma espécie de cálculo universal para o raciocínio.
39
embrião da machina ratiocinatrix, a máquina de raciocinar buscada por Turing e
depois pelos pesquisadores dentro do campo da Inteligência Artificial. Leibniz,
assim como Boole, Turing, e outros – basta lembrar o ábaco, o 'computador' de
Babbage, etc. –, perceberam a possibilidade da mecanização do cálculo aritmético.
O próprio Leibniz, e Pascal um pouco antes, procuraram construir uma máquina de
calcular. Nota-se portanto que o mesmo impulso intelectual que o levou ao
desenvolvimento da Lógica Matemática o conduziu à busca da mecanização dos
processos de raciocínio.
*Quando aparecer uma controvérsia, já não haverá necessidade de uma disputa entre dois
filósofos mais do que a que há entre dois calculistas. Bastará, com efeito, tomar a pena na mão,
sentar-se à mesa (ad abacus) e (ao convite de um amigo, caso se deseje), dizer um ao outro:
Calculemos!” [Boc66]
†Deve-se observar que destas conceituações descenderam a notação da matemática e da lógica
do século XX.
40
Ainda dentro desses primeiros passos mais concretos em direção à construção
de um dispositivo para cálculo automático, não se pode deixar de falar do ilustre
francês Blaise Pascal (1623-1662), já acima citado, que foi matemático, físico,
filósofo e brilhante escritor de religião, fundador da teoria moderna das
probabilidades. Aos 17 anos já publicava ensaios de matemática que
impressionaram a comunidade do seu tempo. Antecedendo a Leibniz, montou a
primeira máquina de cálculo digital para ajudar nos negócios do pai em 1642. Iria
produzir ainda outras 49 máquinas a partir deste primeiro modelo. Estudos
posteriores em geometria, hidrodinâmica, hidrostática e pressão atmosférica o
levaram a inventar a seringa e prensa hidráulica e descobrir as famosas Leis de
Pressão de Pascal. Após intensa experiência mística, entrou em 1654 para o
convento de Port-Royal, onde escreveu pequenos opúsculos místicos. Os últimos
anos de sua vida foram dedicados à pesquisa científica [Wil97].
O símbolo não é uma mera formalidade, é a verdadeira essência da álgebra. Sem o símbolo, o
objeto é somente uma percepção humana e reflete todas as fases sob as quais os sentidos humanos
o captam; substituído por um símbolo o objeto torna-se uma completa abstração, um mero operando
sujeito a determinadas operações específicas. Tobias Dantzig
41
um momento como se resolve ax = b. Imediatamente pode ser dado como resposta
que x = b/a e haveria surpresa se alguém respondesse a = b/x. É que normalmente
se usam as últimas letras do alfabeto para representar as incógnitas e as do
começo para representar as quantidades conhecidas. Mas isso não foi sempre
assim, e somente no século XVII, a partir de Viète e com Descartes, tais
convenções começaram a ser usadas [Boy74].
Geralmente tende-se a apreciar o passado desde o sofisticado posto de
observação do tempo atual. É necessário valorizar e revalorizar este difícil e longo
passado de pequenas e grandes descobertas. Leibniz, em seu esforço no sentido de
reduzir as discussões lógicas a uma forma sistemática que pudesse ser universal,
aproximou-se da Lógica Simbólica formal: símbolos ou ideogramas deveriam ser
introduzidos para representar um pequeno número de conceitos fundamentais
necessários ao pensamento. As idéias compostas deveriam ser formadas a partir
desses “alfabetos” do pensamento humano, do mesmo modo como as fórmulas são
desenvolvidas na Matemática [Boy74]. Isso o levou, entre outras coisas, a pensar
em um sistema binário para a Aritmética e a demonstrar a vantagem de tal sistema
sobre o decimal para dispositivos mecânicos de calcular †. A idéia de uma lógica
estritamente formal – da construção de sistemas sem significado smântico,
interpretáveis a posteriori – não tinha surgido. Duzentos anos mais tarde, George
Boole formularia as regras básicas de um sistema simbólico para a lógica
matemática, refinado posteriormente por outros matemáticos e aplicado à teoria
dos conjuntos ([Bri79a], volume III). A álgebra booleana constituiu a base para o
projeto de circuitos usados nos computadores eletrônicos digitais.
42
como “Idade heróica”, na Grécia antiga, foi uma das mais revolucionárias etapas
do desenvolvimento dessa ciência, e, conseqüentemente, também da Computação.
Será particularmente objeto de estudo a evolução da Lógica Simbólica − ou Lógica
Matemática − que teve Leibniz como predecessor distante.
A partir de meados do século XIX, a lógica formal * se elabora como um
cálculo algébrico, adotando um simbolismo peculiar para as diversas operações
lógicas. Graças a esse novo método, puderam-se construir grandes sistemas
axiomáticos de lógica, de maneira parecida com a matemática, com os quais se
podem efetuar com rapidez e simplicidade raciocínios que a mente humana não
consegue espontaneamente. A Lógica Simbólica − Lógica Matemática a partir
daqui −, tem o mesmo objeto que a lógica formal tradicional: estudar e fazer
explícitas as formas de inferência, deixando de lado − por abstração − o conteúdo
de verdades que estas formas possam transmitir [San82]. Não se trata aqui de
estudar Lógica, mas de chamar a atenção para a perspectiva que se estava abrindo
com o cálculo simbólico: a automatização de algumas operações do pensamento. A
Máquina de Turing, como será visto, conceito abstrato que efetivamente deu início
à era dos computadores, baseou-se no princípio de que a simples aplicação de
regras permite passar mecanicamente de uns símbolos a outros, sistema lógico
que foi inaugurado pelo matemático George Boole.
43
Figura 13: George Boole
44
que a lógica formal, mas do ponto de vista da Matemática e da Computação, a
álgebra booleana foi importante, e só os anos fizeram ver, pois a lógica até então
era incompleta e não explicava muitos princípios de dedução empregados em
raciocínios matemáticos elementares.
*Leibniz já tinha compreendido no século XVII que há alguma semelhança entre a disjunção e
conjunção de conceitos e a adição e multiplicação de números mas foi difícil para ele formular
precisamente em que consistia essa semelhança e como usá-la depois como base para um cálculo
lógico [Kne68].
†A base do hardware sobre a qual são construídos todos os computadores digitais é formada de
dispositivos eletrônicos diminutos denominados portas lógicas. É um circuito digital no qual
somente dois valores lógicos estão presentes. Para se descrever os circuitos que podem ser
construídos pela combinação dessas portas lógicas é necessária a álgebra booleana.
Frege (1848 - 1925) e Peano (1858 - 1932) trabalharam para fornecer bases
mais sólidas à álgebra e generalizar o raciocínio matemático [Har96].
Gottlob Frege ocupa um lugar de destaque dentro da Lógica. Embora não tão
conhecido em seu tempo e bastante incompreendido, deve-se ressaltar que ainda
hoje tornase difícil descrever a quantidade de conceitos e inovações, muitos
revolucionários, que elaborou de forma exemplar pela sua sistematização e
clareza. Muitos autores comparam seu Begriffsschrift aos Primeiros Analíticos de
Aristóteles, pelos pontos de vista totalmente geniais.
Frege foi o primeiro a formular com precisão a diferença entre variável e
constante, assim como o conceito de função lógica, a idéia de uma função de vários
argumentos e o conceito de quantificador †. A ele se deve uma conceituação muito
mais exata da teoria aristotélica sobre sistema axiomático, assim como uma clara
distinção entre lei e regra, linguagem e metalinguagem. Ele é autor da teoria da
descrição e quem elaborou sistematicamente o conceito de valor. Mas isto não é
tudo, pois todas estas coisas são apenas produtos de um empreendimento muito
maior e fundamental, que o inspirou desde suas primeiras pesquisas: uma
investigação das características daquilo que o homem diz quando transmite
informação por meio de juízos.
Na verdade o que Frege chamou de Lógica – assim como seus
contemporâneos Russell e Wittgenstein – não é o que hoje é chamado Lógica, fruto
do formalismo e da teoria dos conjuntos que acabaram por predominar entre os
matemáticos, mas sim o que se denomina semântica, uma disciplina sobre o
conteúdo, natureza desse conteúdo e estrutura. Ele gastou considerável esforço na
separação de suas concepções lógicas daquelas concepções dos 'lógicos
computacionais' como Boole, Jevons e Schröeder. Estes estavam, como já foi dito,
empenhados no desenvolvimento de um cálculo do raciocínio como Leibniz
propusera, mas Frege queria algo mais ambicioso: projetar uma língua
characteristica. Dizia ele que uma das tarefas da filosofia era romper o domínio da
45
palavra sobre o espírito humano. Frege procurou usar um sistema simbólico, que
até então somente se pensava para a matemática, também para a filosofia: um
simbolismo que retratasse o que se pode dizer sobre as coisas. Ele buscava algo
que não somente descrevesse ou fosse referido a coisas pensadas, mas o próprio
pensar [Cof91].
*Jevons foi o primeiro a compreender que os métodos booleanos podem ser reduzidos às
regras do cálculo elementar, com a possibilidade, portanto, de ser mecanizados. Em 1869 conseguiu
construir uma máquina lógica apresentada no ano seguinte ao público: era um dispositivo de 21
chaves para testar a validade de inferências na lógica equacional. Algumas das características deste
dispositivo foram usadas mais tarde na implementação do computador. A máquina está conservada
no museu de História da Ciência em Oxford.
†O emprego de quantificadores para ligar variáveis, principal característica do simbolismo
lógico moderno e que o torna superior em alguns aspectos à linguagem vulgar e ao simbolismo
algébrico de Boole, está entre as maiores invenções intelectuais do século XIX [Kne68].
46
*Como já foi dito, a idéia lançada por Leibniz de uma linguagem filosófica que seria um
simbolismo através do qual o homem estaria em condições de expressar seus pensamentos com
plena clareza e dirimir dúvidas através de simples cálculos.
† Sobre número, dedução, inferência, proposições, premissas, etc.
Uma das metas dos matemáticos no final do século XIX foi a de obter um rigor
conceitual das noções do cálculo infinitesimal (limite, continuidade, infinito
matemático, etc.). Tal programa foi chamado de “aritmetização da análise”, isto é,
a busca da redução dos conceitos fundamentais da análise (a matemática que tem
como base a teoria dos números reais) aos conceitos da aritmética (a matemática
que tem como base a teoria dos número inteiros positivos, isto é, dos números
naturais e, por extensão, dos números racionais).
Por exemplo, ao invés de se tomar o número imaginário − 1 como uma
entidade um tanto misteriosa, pode-se defini-lo como um par ordenado de números
47
inteiros (0,1), sobre o qual se realizam certas operações de “adição” e
“multiplicação”. Analogamente, o número irracional 2 se definia numa certa classe
de números irracionais, cujo quadrado é menor do que 2. Dado que a Geometria
podia ser reduzida à Análise (Geometria Analítica), a Aritmética vinha a se
configurar como a base natural de todo o edifício matemático. O ponto culminante
deste processo foram os axiomas de Peano (1899), que fundamentaram toda a
Aritmética elementar posterior.
Ao mesmo tempo, matemáticos como Frege, Cantor e Russell, não
convencidos da “naturalidade” da base constituída pela aritmética. Eles
procuravam conduzir a própria aritmética a uma base mais profunda, reduzindo o
conceito de número natural ao conceito lógico de classe, ou, para recorrer a
Cantor, definir número em termos de conjunto. Deste modo, a lógica das classes
apresentava-se como a teoria mais adequada para a investigação sobre os
fundamentos da matemática. O esforço dos matemáticos foi o de dar à álgebra uma
estrutura lógica, procurando caracterizar a matemática não tanto pelo seu
conteúdo quanto pela sua forma.
Bochenski [Boc66], falando da história da Lógica Matemática, diz que a partir
de 1904, com Hilbert, inicia-se um novo período dessa ciência então emergente,
que se caracteriza pela aparição da Metalógica * (Hilbert, Löwenheim e Scholem)
e, a partir de 1930, por uma sistematização formalista dessa mesma Metalógica.
Iniciaram-se discussões sobre o valor e os limites da axiomatização, o nexo entre
Lógica e Matemática, o problema da verdade (Hilbert, Gödel, Tarski).
A Metalógica, em sua vertente sintática ocupa-se das propriedades externas
dos cálculos, como por exemplo, a consistência, a completude, a decidibilidade dos
sistemas axiomáticos e a independência dos axiomas. Hilbert, Gödel e Church são
autores nesse campo. Em sua parte semântica, a Metalógica dirige-se ao
significado dos símbolos, dos cálculos com relação a um determinado mundo de
objetos. Tarski, Carnap e Quino, entre outros se interessaram por estas questões.
Apareceram também novos sistemas lógicos: as lógicas naturais, de Gentzen e
Jaskowski, lógica polivalente de Post e Lukasiewicz, e a lógica intuicionista de
Heytings.
Complementando essas idéias cabe destacar alguns sistemas originais de
outros matemáticos como Schönfinkel (1924), Curry (1930), Kleene (1934), Rosser
(1935) e o já citado Alonzo Church (1941). Deve-se lembrar que quase todos estes
últimos, junto com o logicista inglês Alan M. Turing, acabaram por definir, antes
mesmo de existir o computador propriamente, a natureza da computação, e as
implicações e limites do pensamento humano através de uma máquina.
48
*Quando a própria Lógica Formal reflete sobre seus conteúdos.
49
Na tentativa de se resolverem os paradoxos surgiram três grandes escolas da
lógica: a Logicista * , a Intuicionista † e a Formalista.
A escola logicista rapidamente ficou exposta a fortes críticas ‡. Frege, Peano e
Russell , devido ao seu platonismo, acreditavam em um mundo objetivo, existente
por si mesmo, de entes e relações matemáticas que o pesquisador deve descobrir e
não inventar. Bertrand Russell tinha objetivos ainda maiores: utilizar o
instrumental da lógica como ponto de partida do pensamento filosófico, através da
geração de uma linguagem perfeita. Mas a matemática, enquanto perquirição
pura, independe teoricamente dessas aplicações, bastando ver as pesquisas atuais.
Deve-se, no entanto, destacar o mérito dessa escola de incrementar grandemente o
progresso da logística e confirmar a união íntima entre matemática e lógica.
O programa intuicionista sofreu também fortes críticas, principalmente a de
desfigurar a matemática, tornando-a algo subjetivo e praticamente impossível. O
próprio modo de se provar a não-contradição de uma teoria matemática, buscando
um ‘modelo’ dos axiomas dessa teoria dentro de outra teoria já existente (e que era
considerada coerente §) mostrou-se pouco confiável: como dar a certeza da não-
contraditoriedade dessa outra teoria? A maior parte dos matemáticos dos nossos
dias afastou-se dessa linha de pensamento. Positivamente falando, sua dura crítica
à matemática tradicional obrigou os especialistas nos fundamentos a
desenvolverem novos métodos para reabilitar a teoria clássica. A escola formalista
progrediu bastante através das polêmicas com os intuicionistas [Cos77].
* A tese logiscista compõe-se de duas partes: 1)Toda idéia matemática pode ser definida por
intermédio de conectivos lógicos (classe ou conjunto, implicação, etc.); 2)Todo enunciado
matematicamente verdadeiro pode ser demonstrado a partir de princípios lógicos (“não
contradição”, “terceiro excluído”, etc.), mediante raciocínios puramente matemáticos.
† Para Brower, fundador desta escola – na verdade um radicalizador das teses de Kronecker
que não aceitava a teoria dos conjuntos – o saber matemático escapa a toda e qualquer
caracterização simbólica e se forma em etapas sucessivas que não podem ser conhecidas de
antemão: a atividade do intelecto cria e dá forma a entes matemáticos, aproximando-se do
apriorismo temporal de Kant.
‡ Os logicistas tiveram de apelar a princípios extra-lógicos – axioma de Zermelo, axioma do
infinito – que ainda hoje encontram-se sujeitos a calorosos debates e fortes reparos.
§ Caminho praticado por Hilbert no seu famoso trabalho Fundamentos da Geometria (1899),
onde axiomatizou de modo rigoroso a geometria euclidiana.
50
No dia 8 de agosto de 1900, Hilbert deu uma palestra histórica no Congresso
Internacional de Matemática em Paris. Ele apresentou 23 problemas não-
resolvidos da matemática que acreditava serem de imediata importância. Alguns
problemas relacionavam-se com áreas mais gerais da matemática, mas a maioria
deles estava ligada aos fundamentos lógicos dessa ciência. Tais problemas
deveriam focalizar a atenção do mundo matemático e fornecer um programa de
pesquisas. Hilbert queria unir a comunidade para ajudá-lo a realizar sua visão de
um sistema matemático livre de dúvidas ou inconsistências[Sin99]. Todos esses
estudos denominaram-se Metamatemática ou Metalógica, pela conectividade das
duas.
Ele propôs-se a demonstrar a coerência da aritmética *, para depois estender
tal coerência aos âmbitos dos demais sistemas. Apostou na possibilidade da
criação de uma linguagem puramente sintática, sem significado, a partir da qual se
poderia falar a respeito da verdade ou falsidade dos enunciados. Tal linguagem foi
e é chamada de sistema formal, e está resumida no anexo A concepção formalista
da matemática. Isto, que fazia parte do centro da doutrina formalista, mais tarde
estimularia Turing a fazer descobertas importantes sobre as capacidades das
máquinas. Registre-se também que John von Neumann, a quem muitos atribuem a
construção do primeiro computador, era um aluno de Hilbert e um dos principais
teóricos da escola formalista †.
51
matemático ou não. Anos mais tarde, em 1928, no Congresso Internacional de
Matemáticos, realizado em Bolonha, Itália, Hilbert lançou um novo desafio, que na
verdade somente enfatizava aspectos do segundo e do décimo problema já
descritos. Hilbert queria saber se é possível provar toda assertiva matemática
verdadeira. Estava buscando algo como uma “máquina de gerar enunciados
matemáticos verdadeiros”: uma vez alimentada com um enunciado matemático,
poderia dizer se o enunciado é falso ou verdadeiro [Cas97]. É um problema que
está relacionado com o citado projeto hilbertiano da busca de um sistema formal
completo e consistente.
52
um raciocínio metamatemático informal. A partir desse propósito de construção de
uma linguagem ideal surgiu a filosofia da linguagem (Moore, Wittgenstein, Geach
em sua segunda etapa) colocando as questões lógicas sobre nova ótica [San82].
*O termo finitístico é usado por vários autores. Hilbert quis dizer que tal sistema deveria ser
construído com um número finito de axiomas e regras e toda prova dentro do sistema deveria ter um
número finito de passos.
Kurt Gödel (1906 – 1978) não desfruta do mesmo prestígio de outros cientistas
contemporâneos seus, como Albert Einstein. Possivelmente contribua para isto o
fato de que suas descobertas se produziram em um campo, o da lógica
matemática, próprio das ciências formais, e não em algum ramo da ciência que
tenha influenciado diretamente no conjunto da sociedade.
No entanto, suas grandes contribuições à lógica formal se estendem –
segundo seus biógrafos – muito além do seu estrito âmbito formal e abordam
questões tão vastas e espinhosas como a natureza da verdade, o conhecimento e a
certeza. Pode-se afirmar que, junto com a teoria da relatividade de Einstein e o
princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema da incompletude de Gödel
despertou a ciência moderna de seu “sonho dogmático”.
Nascido em Brünn (hoje Brno, na República Tcheca), Kurt Friedrich Gödel (ao
naturalizar-se norte-americano, em 1948, ele deixou o segundo nome) instala-se
em Viena em 1924. Logo se apaixona pela cidade, por sua vida universitária e
atmosfera intelectual. Requisita a nacionalidade austríaca e, em 26 de fevereiro de
1929, três dias depois da morte de seu pai, deixa oficialmente de ser tcheco.
Apesar do luto, termina sua tese de doutorado, Sobre a completude do cálculo
lógico. Nessa monografia datilografada de apenas 30 páginas, o jovem matemático,
então com 23 anos, expõe diversos resultados extremamente importantes para a
lógica. Deduz que todo sistema de axiomas de primeira ordem não-contraditório
possui um modelo. Isto é, que existe um conjunto de objetos que verificam os
axiomas do sistema.
Existem duas definições de completude:
1) Um sistema de axiomas é completo (como uma caixa de ferramentas bem
provida, que permite realizar todos os trabalhos necessários) quando todos os
teoremas verdadeiros da teoria em pauta (por exemplo, a aritmética) podem ser
deduzidos a partir dele. Esta é a completude semântica.
53
*Parte do texto que se segue, a partir do item Um pouco de história vem de maravilhoso artigo
publicado na revista Scientific American Brasil, edição Gênios da Ciência Matemática: A vanguarda
matemática e os limites da razão
54
absoluta, Gödel, ao contrário, interpreta essa mesma dificuldade como um indício
de que a matemática é inesgotável, e que é normal que ela não se deixe
circunscrever facilmente.
* Em outras palavras, busca-se uma interpretação semântica para o sistema de axiomas. Ex.:
certo sistema de axiomas dizrespeito a dois conjuntos M e N cuja natureza, inicialmente, não é
especificada. Esses axiomas são: 1) M e N têm o mesmo número de elementos; 2) Nenhum elemento
de N contém mais de 2 elementos de M; 3) Nenhum elemento de M está contido em mais de dois
elementos de N. Esse sistema é coerente, pois se pode associar a ele o seguinte modelo geométrico,
onde se verifica os três axiomas (M é o conjunto de vértices do quadrado e N o conjunto de seus
lados):
55
A idéia de Gödel não era atacar diretamente o problema da não-contradição
da análise; mas demonstrar que a análise seria coerente se e somente se a
aritmética (teoria dos números) o fosse. Uma vez obtida essa coerência relativa,
bastava demonstrar a coerência da teoria dos números, campo em que a utilização
de métodos finitos parecia mais promissora. Mesmo assim, o projeto era ousado,
pois o método de demonstração da coerência relativa nunca havia sido utilizado
fora da geometria (ele havia sido desenvolvido para demonstrar a coerência
relativa da geometria não-euclidiana em relação à geometria euclidiana). Gödel
penetra, assim, em território desconhecido.
O objetivo de Gödel não é, absolutamente, provocar a queda de todo o
programa de Hílbert. Ao contrário, ele se via como um dos matemáticos da nova
geração aos quais o grande Hilbert lançara seu apelo apenas dois anos antes, por
ocasião do Congresso de Bolonha. Aceita, portanto, a tradição de axiomatização da
aritmética para elaborar sua demonstração.
Uma axiomatização da teoria dos números havia sido oferecida pelo
matemático alemão Richard Dedekind desde 1888 (ver anexo O método axiomático
e as ciências dedutivas). No entanto, para construir seu sistema de axiomas,
Dedekind havia utilizado de maneira informal a teoria dos conjuntos. Mais
especificamente, ele colocara no mesmo nível objetos, expressões referidas a
objetos e expressões referidas a outras expressões: sua aritmética era de segunda
ordem. Deve-se ao matemático italiano Guiseppe Peano a etapa seguinte, decisiva
para a axiomatização da matemática. Em sua obra Arithmetices principia nova
methodo exposita, publicada um ano depois dos trabalhos de Dedekind, Peano
apresentou um sistema de axiomas para os números naturais que lembrava de
maneira espantosa o sistema de Dedekind, apesar de concebido de modo
independente. O matemático italiano, contudo, não construíra sua teoria dentro do
contexto conjuntista, e introduziu uma notação (que, com uma ou outra
modificação, tornou-se padrão) destinada a contornar certas ambigüidades
inerentes à linguagem natural (ver anexo A Aritmética de Peano). Seu objetivo era
captar, com o maior rigor possível, a natureza lógica do princípio de indução, ou
seja, a lógica de segunda ordem.
Em linguagem matemática, o princípio de indução é condensado na fórmula:
∀ α (α (0) ∧ ∀ x (α (x) → α (s(x))) → ∀ α (x) que se lê da seguinte
maneira: “para toda propriedade α, se α é válida para zero e se a
proposição se α é válida para um número x, é válida também para seu
sucessor´ é verdadeira, então a propriedade α é válida para todo número
natural”.
Essa frase matemática não é uma fórmula da lógica de predicados de primeira
ordem, mas de segunda ordem: com efeito, o primeiro quantificador (o primeiro
“todo”) não está aplicado a uma variável que representa indivíduos (números
naturais), mas a uma variável que representa propriedades desses indivíduos
(propriedades dos números naturais). Em seu sistema axiomático, Peano segue
exatamente essa formulação do princípio, e especifica que se trata de um axioma
de segunda ordem.
56
falar da linguagem-objeto. Da mesma maneira, existe uma metametalinguagem,
que permite falar da metalinguagem, e assim por diante. Todos esses níveis de
linguagem superpõem-se como camadas sucessivas e, para certos estudos lógicos,
torna-se essencial separar cuidadosamente cada camada. A façanha de Gödel
residirá na invenção de um meio para superar a barreira entre os diferentes níveis
de linguagem.
Gödel desejava demonstrar a não-contradição relativa da análise matemática
em relação à aritmética de Peano. Essa proposta já o conduz ao âmago do
problema verdadedemonstrabilidade: uma proposição verdadeira é sempre
demonstrável? No rascunho de uma carta do final dos anos 60, ele descreverá da
seguinte maneira seu projeto à época:
“Minha tentativa de demonstração, pela teoria dos modelos, da coerência
relativa da análise e da aritmética forneceu também a ocasião para comparar
verdade e demonstrabilidade, pois essa demonstração conduz quase
obrigatoriamente a tal comparação. Um modelo aritmético para a análise não é
nada mais, com efeito, do que uma relação ε que satisfaz ao seguinte axioma de
compreensão:
∃ N ∀ x ( x ∈ N ↔ ϕ (x) )
[Existe um conjunto N tal que, para todo número x, se x é um elemento de N,
então a propriedade ϕ (x) é verdadeira, e vice-versa.] Quando se substitui ϕ (x)' por
ϕ (x) é demonstrável', tal relação ε toma-se fácil de definir. Dessa forma, se os
termos verdade e demonstrabilidade fossem equivalentes, teríamos alcançado
nosso objetivo. Segue da correta solução para os paradoxos semânticos, porém,
que a verdade das proposições de uma linguagem não poderá jamais expressar-se
dentro dessa mesma linguagem, contrariamente à demonstrabilidade (que é uma
relação aritmética). Como conseqüência, verdadeiro ≠ demonstrável”.
Nos anos 30, o problema colocado pela formulação, em uma linguagem dada,
de uma definição da noção de verdade para essa mesma linguagem é, certamente,
uma das questões mais discutidas nas reuniões do Círculo de Viena *: é possível
definir precisamente o significado da expressão “é uma proposição verdadeira na
linguagem L”? Em fevereiro de 1930, Menger convida Tarski para uma série de
conferências, no curso das quais o matemático polonês sublinha que diversos
conceitos utilizados em lógica vêm expressos, não na linguagem-objeto, mas na
metalinguagem, e que é importante, portanto, distinguir entre esses dois tipos de
linguagem. Nessa ocasião, Gödel solicita a Menger uma conversa particular com
Tarski.
Se aceita a argumentação de Tarski acerca do conceito de verdade, Gödel
mostra-se mais reticente em relação a esse mesmo tipo de argumentação aplicado
à não-contradição e à demonstrabilidade. Tanto assim que abandona a idéia de
construir um modelo aritmético para a análise (provavelmente devido às reservas
manifestadas na época relativamente à utilização do conceito de verdade em
demonstrações) e decide provar que a demonstrabilidade e a não contradição
podem, ainda que indiretamente, ser expressas na linguagem-objeto da teoria, sem
que isso acarrete antinomias fatais.
57
formulação de símbolos, fórmulas e provas através de números, bem como mostrou
que as proposições metamatemáticas – aliás, sem isso não poderia ter realizado
sua prova – podem estar adequadamente refletidas dentro do próprio cálculo,
aritmetizando assim a própria metamatemática. No anexo O Teorema da
Incompletude de Gödel há um pequeno resumo sobre a prova de Gödel.
Gödel acabou com o sonho logicista, visto que não se pode desenvolver toda a
aritmética (e muito menos toda a matemática) num sistema que seja ao mesmo
tempo consistente e completo. Também acabou com o sonho formalista: existem
enunciados matemáticos que são verdadeiros, mas não são suscetíveis de prova,
isto é, existe um abismo entre verdade e demonstração *.
*As conclusões de Gödel não significam que seja impossível construir uma prova absoluta e
finitista da aritmética. Significam que nenhuma prova deste tipo pode ser construída dentro da
aritmética., isto é, que esteja refletida a partir de deduções formais da aritmética. Outras provas
metamatemáticas da consistência da aritmética foram construídas, em particular por Gerhard
Gentzen, da escola de Hilbert, em 1936, embora não finitistas e não representáveis dentro do
cálculo aritmético, ou seja, estão fora das condições previstas por Hilbert.
*Os resultados de Gödel têm conseqüências importantes também para a filosofia. Sabe-se,
graças a ele, ser impossível construir uma máquina que, de modo consistente, resolva todos os
problemas da matemática, com os recursos de um sistema (certos problemas, por assim dizer, “não
se deixam resolver” com os recursos do sistema apenas). Mas de fato o matemático os resolve
muitas vezes.
58
Figura 18: Alan Mathison Turing
59
elementares que são indivisíveis. Cada ação consiste na mudança do sistema
computador(a) e papel. O estado do sistema é dado pelos símbolos no papel, os
símbolos observados pelo(a) computador(a) e seu estado mental. A cada operação,
não mais de um símbolo é alterado, e apenas os observados são alterados. Além de
mudar símbolos, as operações devem mudar o foco da observação, e é razoável
que esta mudança deva ser feita para símbolos localizados a uma distância fixa dos
anteriores. [...] Algumas destas operações implicam mudanças de estado mental do
computador(a) e portanto determinam qual será a próxima ação”.
60
4.7.2 O problema da parada e o problema da decisão
* Um ano mais tarde, trabalhando independentemente, Alan Post publicou seu trabalho sobre
uma máquina semelhante à de Turing.
† Há um anexo onde se detalha um pouco mais sobre o funcionamento de uma Máquina de
Turing.
‡ Uma Máquina de Turing Universal é uma Máquina de Turing específica que lê na sua fita de
alimentação, além de dados de entrada, um programa Ρ que é uma especificação de uma Máquina
de Turing qualquer.
61
teve que abandonar suas máquinas hipotéticas com fitas telegráficas infinitas e
tempo de processamento interminável, para enfrentar problemas práticos, com
recursos finitos e um limite de tempo muito real.
Devido ao segredo que cercava o trabalho realizado por Turing e sua equipe,
em Bletchley, a imensa contribuição que prestaram ao esforço de guerra não pôde
ser reconhecida publicamente por muitos anos após o conflito. Costuma-se dizer
que a Primeira Guerra Mundial foi a guerra dos químicos e a Segunda Guerra
Mundial, a guerra dos físicos. De fato, a partir da informação revelada nas últimas
décadas, provavelmente é verdade dizer que a Segunda Guerra Mundial também
foi a guerra dos matemáticos. E no caso de uma terceira guerra mundial sua
contribuição seria ainda mais crítica.
Em toda sua carreira como decifrador de códigos, Turing nunca perdeu de
vista seus objetivos matemáticos. As máquinas hipotéticas tinham sido substituídas
por máquinas reais, mas as questões esotéricas permaneciam. Quando a guerra
terminou, Turing tinha ajudado a construir um computador, o Colossus, uma
máquina inteiramente eletrônica com 1.500 válvulas que eram muito mais rápidas
do que os relês eletromecânicos usados nas bombas *. Colossus era um
computador no sentido moderno da palavra. Com sua sofisticação e velocidade
extra, ele levou Turing a considerá-lo um cérebro primitivo. Ele tinha memória,
podia processar informação, e os estados dentro do computador se assemelhavam
aos estados da mente. Turing tinha transformado sua máquina imaginária no
primeiro computador legítimo. Depois da guerra, Turing continuou a construir
máquinas cada vez mais complexas tais como o Automatic Computing Engine.
Para maiores detalhes sobre os episódios que envolveram Turing e a Máquina
Enigma, e de como foi decifrado o código de guerra alemão, ver o anexo Turing e a
Máquina Enigma.
* A bomba (Bombe em inglês) era uma máquina eletromecânica, com vários conjuntos de
rotores, idênticos aos da máquina geradora de códigos secretos alemã chamada Enigma(ver o anexo
Turing e a Máquina Enigma). Ao contrário da Enigma, os rotores da Bombe rodavam
automaticamente para percorrer todas as configurações possíveis. Quando encontrasse uma
configuração que tornasse compatível o palavra adivinhada e o texto cifrado, a máquina parava e o
cripto-analista iria testar aquela configuração com o resto do texto cifrado numa Enigma; se o
resultado não fosse correcto, re-inicializava a bombe para continuar a procura.
62
dos novos trabalhos. Seus relatórios técnicos sobre os projetos de hardware e
software do ACE eram ambiciosos e se a máquina originalmente imaginada por ele
tivesse sido construída imediatamente, os ingleses não teriam amargado o atraso
em relação aos seus colegas do outro lado do Atlântico.
Foi também durante a temporada do ACE que Turing começou a explorar as
relações entre o computador e os processos mentais, publicando um artigo,
Computing Machinery and Intelligence (1950), sobre a possibilidade da construção
de máquinas que imitassem o funcionamento do cérebro humano. Pode uma
máquina pensar, perguntava-se em seu artigo, e além de focar no assunto
inteligência das máquinas, Turing adquiriu especial notoriedade ao tentar
introduzir, através desse artigo, um teste para decidir se realmente pode ou não
uma máquina pensar imitando o homem. Em novembro de 1991, o Museu do
Computador de Boston realizou uma competição entre 8 programas que simulavam
o Turing test, ganho por um programa chamado PC Therapist III. O problema do
teste de Turing é de natureza behaviorista, isto é, somente observa o
comportamento exterior, o que lhe dá uma caráter um tanto reducionista. Sérias
controvérsias ocorreram e ainda ocorrem sobre esse tema, que esta fora do escopo
deste livro *.
*Para uma melhor percepção, existe uma interessante literatura: R.Rucher, Mind Tools; D.
Holfstadter, Gödel, Escher, Bach: an eternal golden braid; R. Penrose, The emperor's new mind; J.
Lucas, Minds, Machines and Gödel
63
completaria em um estilo elegante sua idéia de uma linguagem de programação
mais sofisticada.
Até aqui foi mostrado como, do ponto de vista formal, surgiu a idéia de
computação. Dentro dessa dimensão formal se procurará mostrar agora que o
cume atingido, e ainda não ultrapassado, foi a Máquina de Turing. É um genial
modelo abstrato de equipamento, com capacidade de processar complicadas
linguagens e calcular o valor de funções aritméticas não-triviais. Pode ainda ser
aperfeiçoado para realizar operações mais complexas, embora em relação ao
modelo básico isto não implique um salto qualitativo, isto é, que o torne algo mais
poderoso.
Em termos computacionais pode-se dizer que as Máquinas de Turing são um
modelo exato e formal da noção intuitiva de algoritmo: nada pode ser considerado
um algoritmo se não puder ser manipulado por uma Máquina de Turing. O
princípio de que as Máquinas de Turing são versões formais de algoritmos e de
que procedimento computacional algum seja considerado um algoritmo a não ser
que possa ser instanciado por uma Máquina de Turing é conhecido como a Tese de
Church, em homenagem ao brilhante matemático americano Alonzo Church (1903
- 1995), ou ainda Tese de Church-Turing. É uma proposição, não um teorema,
porque não é um resultado matemático: simplesmente diz que um conceito
informal corresponde a um objeto matemático *.
Fazendo uma pequena retrospectiva. Após os resultados de Gödel, em 1931,
muitos lógicos matemáticos partiram em busca do que seria uma noção
formalizada de um procedimento efetivo (por efetivo entenda-se mecânico), ou
seja, o que pode ser feito seguindose diretamente um algoritmo ou conjunto de
regras (como já visto, antigo sonho de séculos, que remonta a Leibniz). Destas
buscas surgiram:
• a sistematização e desenvolvimento das funções recursivas (introduzidas nos
trabalhos de Gödel e Herbrand) por Stephen Cole Kleene (1909-1994) em sua
teoria lógica da computabilidade (parte de seu livro Introdução à Metamatemática,
um dos cumes da lógica matemática dos últimos anos);
• as Máquinas de Turing; • o cálculo-lambda (componente característico
fundamental da linguagem de programação LISP) de Alonzo Church; • a Máquina
de Post, análoga à de Turing, tornada pública um pouco depois, fruto de trabalho
independente, e seu sistema para rescrita de símbolos (cuja gramática de Chomsky
é um caso particular), de Emil L. Post (1897 - 1954).
*Teoricamente é possível que a tese de Church seja derrubada em algum futuro, caso surja um
modelo alternativo de computação que seja publicamente aceitável como algo que preenche
totalmente as exigências de executar finitamente cada passo e fazer operações não executadas por
qualquer Máquina de Turing. Até a data da confecção deste trabalho não surgiu ainda algo de
64
consistente que viesse a superar a tese de Church (o "computador quântico" − sobre o qual não há
ainda uma literatura séria disponível, para se poder falar algo dele nesse trabalho − é algo que
poderia ocasionar um abalo nesse sentido)
Com efeito, todos esses conceitos levaram à mesma conclusão e acabaram por
ter o mesmo significado, dentro do citado escopo da busca de uma definição bem
elaborada de processo efetivo. O que se desenvolverá aqui refere-se mais a Church
e Turing (Kleene fez em seu trabalho uma ampla abordagem de ambos, tirando
várias conseqüências, e Post trata do mesmo tema de Turing), para se ter uma
visão mais clara da diversificação dos estudos da década de 1930, com vistas à
fundamentação teórica de toda a Computação.
Em seu célebre teorema, Church demonstrou, em 1936, que não pode existir
um procedimento geral de decisão para todas as expressões do Cálculo de
Predicados de 1a ordem, ainda que exista tal procedimento para classes especiais
de expressões de tal cálculo. Isso pode causar certo espanto quando se observa
que o Cálculo de Predicados de 1a ordem é semanticamente completo, com o que
se diz, implicitamente, que o próprio cálculo, com seus axiomas e regras, constitui
um algoritmo capaz de enumerar uma após outra todas as suas expressões válidas.
Estas expressões são em quantidade indefinida, e, mesmo sendo enumeráveis (isto
é, elaboráveis passo a passo a partir dos axiomas), essa enumeração não tem fim.
Compreende-se então que, ao se conseguir demonstrar uma determinada fórmula
P em certo momento, isto já basta para afirmar que se trata de uma fórmula válida.
E, pelo contrário, se depois de haver deduzido mil teoremas dos axiomas, P ainda
não apareceu, não se pode afirmar nada, porque P poderia aparecer após outros
mil teoremas, permitindo-se reconhecer sua validade, ou não aparecer nunca, por
não ser válida. Mas não se poderá afirmar em qual caso se está, mesmo depois das
mil deduções.[Aga86].
A decisão, dentro desse cálculo, seria possível possuindo-se um algoritmo
capaz de enumerar as expressões não válidas. A expressão P então aparecia dentro
desse conjunto de não válidas em algum momento. O teorema de Church de que se
está tratando consiste fundamentalmente na demonstração de que não existe
algoritmo capaz de enumerar as expressões não válidas, de maneira que fica
excluído a priori todo procedimento de decisão para as expressões do Cálculo de
Predicados, em geral. Para compreender as razões de semelhante fato seria
necessário valer-se das noções técnicas relacionados com os conceitos da
matemática recursiva, que excedem amplamente os limites deste trabalho.
65
definibilidade é equivalente ao conceito de recursividade de GödelHerbrand, e,
nesse período, Church formulou sua tese, estabelecendo que a recursividade é a
própria formalização do efetivamente computável. Isso foi estabelecido, no caso
das funções dos inteiros positivos, por Church e Kleene, em 1936.
O cálculo-lambda, como sistema elaborado por Church para ajudar a
fundamentar a Matemática (1932/33) era inconsistente, como o mostraram Kleene
e Rosser (1935). Mas a parte do cálculo-lambda que tratava de funções recursivas
estava correta e teve sucesso. Usando sua teoria, Church propôs uma formalização
da noção de “efetivamente computável”, através do conceito de lambda-
definibilidade. Turing, em 1936 e 1937, ao apresentar a sua noção de
computabilidade associada a uma máquina abstrata, mostrou que a noção Turing-
computável é equivalente à lambda-definibilidade [Hur80]. O trabalho de Church e
Turing liga fundamentalmente os computadores com as MT. Os limites das MT, de
acordo com a tese de Church-Turing, também descreve os limites de todos os
computadores.
O processo que determina o valor de uma função através dos argumentos
dessa função é chamado de cálculo da função (ou computar uma função). Como foi
observado, a máquina de Turing pode ser matematicamente interpretada como um
algoritmo e, efetivamente, toda ação de uma máquina algorítmica como o
computador pode ser considerada como a de calcular o valor de uma função com
determinados argumentos. Este ‘insight’ é interessante, pois fornece uma maneira
de se medir a capacidade computacional de uma máquina. Necessita-se somente
identificar as funções que se é capaz de computar e usar esse conjunto como
medida. Uma máquina que compute mais funções que outra é mais poderosa.
A partir dos resultados de Gödel, Turing e Church, pode-se dizer que existem
funções para as quais não existe uma seqüência de passos que determinem o seu
valor, com base nos seus argumentos. Dizendo-se de outra maneira, não existem
algoritmos para a solução de determinadas funções. São as chamadas funções não
computáveis. Isso significa que para tais funções não há nem haverá capacidade
computacional suficiente para resolvê-las. Logo, descobrir as fronteiras entre
funções computáveis e não computáveis é equivalente a descobrir os limites do
computador em geral. A tese de Church-Turing representa um importante passo
nesse sentido.
A percepção de Turing foi a de que as funções computáveis por uma MT eram
as mesmas funções computáveis acima referidas. Em outras palavras, ele
conjeturou que o poder computacional das MT abarcava qualquer processo
algorítmico, ou, analogamente, o conceito da MT propicia um contexto no qual
todas as funções computáveis podem ser descritas. Em síntese: as funções
computáveis são as mesmas funções Turing-computáveis. A importância disso está
na possibilidade de se verificar o alcance e limites de um computador. Na figura
que segue pode-se visualizar como se dá a ligação entre os mundos formal,
matemático e computacional.
66
Figura 20: Relacionamento entre mundos formal, matemático e computacional (cfr. [Cas97])
5 Pré-História tecnológica
Como já foi dito, só foi possível chegar aos computadores pelas descobertas
teóricas de homens que, ao longo dos séculos, acreditaram na possibilidade de
criar ferramentas para aumentar a capacidade intelectual humana, e dispositivos
para substituir os aspectos mais mecânicos do modo de pensar do homem. E desde
sempre essa preocupação se manifestou na construção de mecanismos para ajudar
tanto nos processos de cálculo aritmético quanto nas tarefas repetitivas ou
demasiado simples, que pudessem ser substituídas por animais ou máquinas.
Neste capítulo se tratará dos dispositivos físicos que precederam o computador,
principalmente as máquinas analógicas que incentivaram a corrida final até o
aparecimento dos computadores digitais.
67
Ancient Greek Computer, pg. 66 *). A descoberta desse dispositivo, datado do
primeiro século a.C., foi uma total surpresa, provando que algum artesão do
mundo grego do mediterrâneo oeste estava pensando em termos de mecanização e
matematização do tempo (...)” [Bol84].
*Trabalho citado por Bolter, que descreve o dispositivo Antikythera, na Scientific American,
junho de 1959, pgs. 60-67.
68
produzissem os movimentos exigidos pelas engrenagens durante os cálculos
Já por volta da década de 1820 ele tinha certeza de que a informação poderia
ser manipulada por máquina, caso fosse possível antes converter a informação em
números. Tal engenho seria movido a vapor, usaria cavilhas, engrenagens, cilindros
e outros componentes mecânicos que eram as ferramentas tecnológicas
disponíveis em sua época. Para descrever os componentes de sua máquina
faltavam-lhe os termos que atualmente são usados. Chamava o processador central
de “usina” e referia-se à memória da máquina como “armazém”. Babbage
imaginava a informação sendo transformada da mesma forma que o algodão −
sendo tirada do armazém e modificada para algo diferente. Em 1822 Babbage
escrevia uma carta a Sir Humphry Davy, o então presidente da Royal Society, sobre
automatizar, como ele próprio dizia, “o intolerável trabalho e a cansativa
monotonia” das tabelas de cálculo, escrevendo um trabalho científico intitulado
“On the Theoretical Principles of the Machinery for Calculating Tables”(...) [Gol72].
Embora conhecido por seu trabalho na área de Computação, não será demais
citar que Charles Babbage foi também um excelente matemático e ao lado de
Peacock, Herschel, De Morgan, Gregory e do próprio George Boole, pode ser visto
como um dos introdutores da concepção moderna da Álgebra. Além disso foi um
dos líderes da Sociedade Real de Astronomia inglesa, tendo publicado também
pesquisas no campo da óptica, meteorologia, eletricidade e magnetismo,
funcionamento de companhias de apólices de seguros, criptologia, geologia,
metalografia, sistemas taxonômicos, máquinas a vapor, etc. Escreveu e publicou
vários livros, um deles (On the Economy of Machinery and Manufacturers)
reconhecido posteriormente como um dos trabalhos pioneiros na área chamada
Pesquisa Operacional.
Mas o que motivou esse inglês a fazer um dispositivo capaz de resolver
equações polinomiais através do cálculo de sucessivas diferenças entre conjuntos
de números (ver anexo sobre o Método das Diferenças) foi a necessidade de uma
maior precisão na elaboração de tabelas logarítmicas.
No final do século XVIII houve uma proliferação de tabelas de vários tipos.
Desde Leibniz e Newton os matemáticos estiveram preocupados com o problema
69
da produção de tabelas, tanto por meios matemáticos − como no caso das de
multiplicação, seno, coseno, logaritmos, etc. − ou por meio de medições físicas −
densidade em função da altitude, constante gravitacional em diferentes pontos da
terra, entre outras coisas. A intenção era reduzir o trabalho de cálculo, mas as
tabelas produzidas pelos especialistas tinham muitos erros. Os matemáticos
estavam cientes deles e estudos foram elaborados para se tentar melhorar a
situação. Nestas circunstâncias apareceu o projeto denominado Difference Engine
de Babbage, que lhe valeu o apoio de seus colegas da Sociedade Real e fundos do
governo britânico para iniciá-lo.
O desafio era construir um dispositivo para computar e imprimir um conjunto
de tabelas matemáticas. Babbage contratou um especialista em máquinas, montou
uma oficina e então começou a descobrir quão distante estava a tecnologia do seu
tempo daqueles mecanismos altamente precisos e de movimentos complexos
exigidos pelo seu projeto. A conclusão foi que deveria, antes de iniciar a
construção da Máquina de Diferenças, gastar parte dos seus recursos para tentar
avançar o próprio estado da arte da tecnologia vigente. Todos estes trabalhos
prolongaram-se por alguns anos, sem sucesso, até que o governo inglês desistiu do
financiamento. Em 1833 Charles Babbage parou de trabalhar em sua máquina *.
Apesar de tudo, esse teimoso inglês já vinha desenvolvendo novas idéias.
Provavelmente tentando alguma nova modificação no projeto da Máquina de
Diferenças foi que Charles Babbage concebeu um mecanismo mais complicado que
este em que falhara após vários anos de tentativas. O pensamento era simples: se é
possível construir uma máquina para executar um determinado tipo de cálculo, por
que não será possível construir outra capaz de qualquer tipo de cálculo? Ao invés
de pequenas máquinas para executar diferentes tipos de cálculos, não será
possível fazer uma máquina cujas peças possam executar diferentes operações em
diferentes tempos, bastando para isso trocar a ordem em que as peças interagem?
Era a idéia de uma máquina de cálculo universal, que virá a ser retomada em
1930 por Alan Turing, e que terá então conseqüências decisivas. Vale ressaltar que
o Analitical Engine, a Máquina Analítica − nome dado por Charles Babbage à sua
invenção − estava muito próxima conceitualmente daquilo que hoje é chamado de
computador.
A Máquina Analítica poderia seguir conjuntos mutáveis de instruções e,
portanto, servir a diferentes funções − mais tarde isso será chamado de software...
Ele percebeu que para criar estas instruções precisaria de um tipo inteiramente
novo de linguagem e a imaginou como números, flechas e outros símbolos. Ela
serviria para Babbage “programar” a Máquina Analítica, com uma longa série de
instruções condicionais, que lhe permitiriam modificar suas ações em resposta a
diferentes situações.
*Esta máquina, conforme imaginada por Babbage, foi construída e colocada em operação pelo
Museu de Ciência de Londres e mostrada com seus desenhos em 1862 durante exposição
internacional. Em 1849 Babbage entregaria ao governo britânico uma nova versão da Máquina de
Diferenças, que nem considerada foi. Em 1991 foi construida esta segunda versão [Wil97].
70
Figura 22: Máquina Diferencial de Babbage construída pelo Museu de Londres
71
repetir o processo, etc. O ponto chave da máquina de Jacquard era o uso de uma
série de cartões cujos buracos estavam configurados para descrever o modelo a
ser produzido. O sucesso foi total e em 1812 havia na França cerca de 11.000
teares de Jacquard ([Bri79b], volume V). Adaptando o tear de Jacquard, a Máquina
Analítica processava padrões algébricos da mesma maneira que o tear processava
padrões de desenhos.
*O tear de Jacquard inspirou também a Herman Hollerith, sobre quem se falará mais adiante.
Ada Augusta Byron era filha do famoso poeta Lord Byron e foi educada pelo
matemático logicista inglês Augustus De Morgan. Bem cedo demonstrou ter
grandes talentos na área. Apresentada a Babbage durante a primeira
demonstração da Máquina de Diferenças, tornou-se uma importante auxiliar em
seu trabalho, sendo, sobretudo, alguém que compreendeu o alcance das novas
invenções. Ela percebeu que, diferentemente das máquinas anteriores com
funcionamento analógico (execução de cálculos usando medidas), a Máquina de
Diferenças era digital (execução de cálculos usando fórmulas numéricas). Mais
importante ainda, deu-se conta da combinação entre funções lógicas e aritméticas
na máquina de Babbage.
Quando Charles Babbage visitou Turim a convite do amigo Giovanni Plana,
astrônomo e compilador de tabelas, ministrou uma série de palestras para distintos
públicos, incluindo Luigi F. Menabrea, futuro primeiro-ministro da Itália. Este ficou
impressionado com o trabalho de Babbage e tomou uma série de notas, publicadas
depois em 1842 pela Biblioteca da Universidade de Genebra. Lady Lovelace
traduziu para o inglês essas notas, acrescentando muitas observações pessoais
[Gol72]. Esta publicação e outro ensaio (Observations on Mr. Babbage’s Analytical
Engine) a colocam como patrona da arte e ciência da programação. Conforme
comentado por B.H. Newman, os escritos de Ada Byron “mostram como ela teve
uma total compreensão dos princípios de um computador programado, um século
antes do tempo deste” [Moo77].
Mesmo não estando a máquina construída, Ada procurou escrever seqüências
de instruções tendo descoberto conceitos que seriam largamente utilizados na
programação de computadores como subrotinas, loops e saltos.
Embora não fosse fácil, o trabalho de Babbage foi divulgado por um certo Dr.
Dionysus Lardner, que procurou descrever a máquina e seu modo geral de
operação [Wil97]. Um sueco, George Scheutz, editor de um jornal técnico de
Estocolmo, leu e ficou entusiasmado pela máquina descrita por Lardner e, sem se
comunicar com Babbage, propôsse a construir a sua Máquina de Diferenças, junto
com o filho *. Os anos de 1840, 1842 e 1843 marcaram etapas bem sucedidas no
desenvolvimento do projeto, culminando com um modelo preliminar. Em outubro
de 1854 o dispositivo de Scheutz estava completo e em funcionamento. Outros,
como por exemplo Alfred Decon, inglês, Martin Wiberg, sueco e G. B. Grant,
americano, construíram modelos derivados, e até 1931 Máquinas de Diferenças
foram construídas para produzir diferentes tipos de tabelas [Wil97]. Com relação à
Máquina Analítica, parece que o irlandês Percy Ludgate (1883-1922) projetou e
tentou construir um mecanismo similar ao de Babbage, conforme pequena
72
descrição feita em um diário científico de Dublin, em 1909.
*Em 1854, durante uma viagem a Londres, Scheutz pai e filho encontraram-se com Charles
Babbage, que aprovou a máquina por eles construída. Ambos nunca esconderam depois sua
admiração pelas idéias do inglês.
73
Figura 26: Dispositivo analógico simples
74
de física passaram a exigir uma grande quantidade de cálculos, quase impossíveis
de se resolver na prática. Os físicos começaram a desenvolver sofisticadas
ferramentas matemáticas para descrever, através de equações*, a operação de
determinados tipos de mecanismos, assim como conceber máquinas cujo
movimento era feito de acordo com equações. Uma solução foi a de se criar um
sistema físico análogo e cujo comportamento pudesse ser quantitativamente
observado. Por exemplo: o fluxo de calor é análogo ao fluxo de eletricidade, onde
temperatura corresponde a potencial elétrico. Logo, pela análise de camadas
eletricamente condutoras, dispostas de maneira a simular às características de
uma estrutura, pode-se investigar o fluxo de calor dentro dessa estrutura ([Bri79a],
volume XI). Alguém que quisesse projetar um dispositivo desse tipo deveria:
i) analisar quais operações desejaria executar;
ii) procurar um aparato físico cujas leis de operação sejam análogas àquelas
que se deseja executar;
iii) construir o aparelho;
iv) resolver o problema medindo as quantidades físicas envolvidas.
Dois nomes famosos estão diretamente ligados à efetiva produção de
dispositivos analógicos para resolução de cálculos mais complexos: James Clerk
Maxwell (1831-1879), o criador da teoria sobre a eletricidade e o magnetismo, e
James Thomson. Ambos inventaram dispositivos analógicos por volta de 1860
[Gol72].
75
seu irmão.
*Integrador é também um dispositivo analógico, que produz como resultado a integral de f(x).
Seria exaustivo e fugiria do escopo do trabalho falar sobre esses dispositivos – existem ainda os
planímetros, para medir áreas de figuras traçadas por um operador humano, etc. – que fazem parte
desses primeiros esforços em direção a sofisticados mecanismos analógicos.
A última invenção de Kelvin relevante para nossa história foi o que agora é
chamado Analisador Diferencial, um dispositivo para a solução de sistemas de
equações diferenciais ordinárias. Dos dispositivos chamados integradores é
possível obter uma integral que é o produto de duas variáveis. Uma grande gama
de sistemas de equações pode ser computada por esses componentes. Kelvin
nunca chegou a construir sua máquina por não dispor de tecnologia suficiente. A
dificuldade estava em como usar a saída de um integrador como entrada em outro.
Na explicação de Maxwell, o problema central era a saída estar medida pela
rotação de um disco ligado a uma roda. Esta roda é acionada por estar apoiada
sobre um disco que gira em torno de um eixo. O torque desse disco − sua
capacidade de girar a roda − é muito pequeno e conseqüentemente ele, de fato,
não pode fornecer uma entrada para outro integrador *. Esses problemas
permaneceram suspensos por quase 50 anos até o desenvolvimento dos
amplificadores de torque. Analisadores diferenciais mecânicos foram revitalizados
por volta de 1925 e o mais famoso destes foi o construído no Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT) por Vannevar Bush †.
76
*Outra dificuldade substancial: não é possível aumentar muito o número de termos em uma
série pois o seu dispositivo de adição de termos levava a um acúmulo de erros. Para uma longa série
de termos o resultado poderia estar completamente viciado.
† Após a Segunda Guerra Mundial, analisadores diferenciais mecânicos começaram a se tornar
obsoletos com o desenvolvimento de analisadores diferenciais eletrônicos e com o aparecimento da
Computação eletrônica digital.
77
mecanismos para resolver equações diferenciais ordinárias. Bush deve
especialmente a C. W. Niemann, engenheiro e inventor do amplificador de torque
Bethlehem, a possibilidade de ter construído seu famoso analisador diferencial,
terminado em 1931. Usando o amplificador de Niemann, Bush pôde construir uma
máquina usando exclusivamente integradores. Ainda mecânico, este dispositivo foi
aprimorado durante a II Guerra Mundial, pela substituição dos mecanismos
puramente mecânicos por corrente e voltagem, obtidas através de potenciômetros
instalados sobre os discos cuja rotação representava quantidades. As voltagens
correspondiam à soma, produto e a uma função de uma variável. Entram aqui
conceitos de servo-mecanismos e amplificadores operacionais [Ryd67].
Ainda dentro do mundo dos computadores analógicos, deve-se destacar o
trabalho do físico inglês Douglas Hartree, das universidades de Manchester e
Cambridge, que tentou resolver equações diferenciais parciais com analisadores
diferenciais, e que, ao deparar-se com cálculos altamente complexos, anteviu e
preparou o advento dos computadores eletrônicos [Gol72].
As novas descobertas da indústria e da ciência no campo da eletricidade −
proporcionando rapidez e precisão aos equipamentos − juntamente com a
limitação dos equivalentes analógicos eletromecânicos, acabaria por impor a nova
tecnologia de circuitos. Uma nova era da Computação começava a ser desvelada. É
necessário assinalar, no entanto, que novas máquinas analógicas eletromecânicas
− sucedâneas da última máquina de Bush, no MIT, em 1942 − foram construídas e
até 1960 ainda estavam em uso ([Bri79a], volume XI).
Como um grande tapete, que vai sendo tecido aos poucos por diferentes
artesãos que não têm a visão de todo o conjunto, paulatinamente avançou a teoria
e a técnica que levaram à construção do computador digital. Paralelamente aos
matemáticos, também um jovem engenheiro, Claude E. Shannon (1916 - 2001),
com a idade de 22 anos, deu uma grande contribuição à Computação: em 1937 ele
estabeleceu uma ligação entre os circuitos elétricos e o formalismo lógico. Mestre
em Engenharia Elétrica e Doutor (PhD) em Matemática pelo Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT), Cambridge, MA, em 1940, durante a Segunda
Guerra Mundial, Shannon começou a desenvolver uma descrição matemática da
informação, dando origem a um ramo de estudos conhecido como Teoria da
Informação[Gat95]. Deu ainda importantes contribuições na área da Inteligência
Artificial.
78
O que Shannon fez em 1937 foi mostrar um caminho para projetar máquinas
baseadas na lógica algébrica descrita um século antes por George Boole, aquela
em que só havia dois valores no sistema de cálculo lógico: 1 e 0. Se um valor é
verdadeiro, ele pode ser representado pelo valor 1 e, se falso, pelo 0. Nesse
sistema, uma tabela-verdade descreveria os vários estados lógicos possíveis. Uma
das características importantes da álgebra de Boole é que as operações lógicas
podem ser colocadas juntas e formar novas operações.
Claude Shannon percebeu que a mesma álgebra poderia descrever o
comportamento de circuitos elétricos chaveados. Igualmente importante foi o
modo como estas combinações entre operações lógicas e aritméticas poderiam ser
usadas para se construir uma “operação de memória”. A álgebra booleana torna
possível a construção de um dispositivo de “estado” que pode armazenar qualquer
informação específica, seja um dado ou uma operação. E se um circuito elétrico
pode executar operações matemáticas e lógicas, e pode também armazenar os
resultados de tais operações, então os computadores digitais podem ser
construídos.
Em resumo:
• lógica booleana, cujas tabelas-verdade poderiam representar as regras de
um sistema lógico formal;
• tabelas de instruções da Máquina de Turing que podem simular as
tabelasverdade de Boole;
• dispositivos como o relê – já então muito usados em telefones – para
representar “estados” de máquina.
Em breve já seria possível a construção de circuitos elétricos que simulavam
algumas operações lógicas. Shannon estava procurando um procedimento
matemático que fosse o mais adequado para se descrever o comportamento de
circuitos a relê*. Sua tese de mestrado publicada em 1937 mostrou como a álgebra
booleana poderia ser usada para descrever as operações desses complexos
circuitos.
*Um relê é uma chave ou dispositivo que abre ou fecha um circuito, permitindo ou bloqueando
o fluxo da eletricidade. É semelhante a um interruptor de luz, com a diferença de que o relê não é
ligado ou desligado por uma ação humana, mas pela passagem de uma corrente elétrica.
79
Inteligência Artificial. Em 1953, com “Computers and Automata” falou sobre
simulação, através de hardware e software, de algumas operações da mente
([Rhe85], capítulo 6).
Em 1956, mantendo seu trabalho nos laboratórios da Bell, Shannon aceitou o
cargo de professor no MIT, atividade que exerceu durante muitos anos.
Preocupava-se com os conceitos e simplificava ao máximo a simbologia. Onde
outros professores poriam símbolos e mais símbolos, índices e mais índices,
Shannon colocava duas ou três letras e incentivava os alunos a perceber as
relações matemáticas que essas letras traduziam.
Gênio matemático que combinava a intuição, a abstração e as aplicações,
Claude Shannon tinha como passatempos andar de monociclo, construir máquinas
de jogar xadrez e outras aparentemente inúteis †. Estendeu sua Teoria Matemática
de Comunicação ao campo da criptologia. Claude Shannon, tinha a doença de
Alzheimer. Faleceu no sábado, 24 de Fevereiro de 2001, no Courtyard Nursing
Care Center em Medford, Massachusetts. Ele estava com 84 anos.
6 As primeiras máquinas
80
mecânicos era guardar os resultados intermediários para depois utilizá-los nos
lugares apropriados nos passos seguintes [Zus80]. Em 1934, depois de várias
idéias e tentativas, Zuse chegou à conclusão que um calculador automático
somente necessitaria de três unidades básicas: uma controladora, uma memória e
um dispositivo de cálculo para a aritmética. Ele desenvolveu o seu Z1, em 1936,
um computador construído inteiramente com peças mecânicas e que usava uma
fita de película cinematográfica para as instruções que controlavam a máquina.
Em 1938, antes mesmo de terminar o Z1, um aluno de Zuse, Helmut Schreyer,
construiu uma parte do Z1 usando válvulas. Em função da situação de pré-guerra,
Zuse teve de abandonar essa linha de desenvolvimento – seriam necessárias 1000
válvulas, o que era impossível naquele momento – e continuou o Z2 usando
tecnologia baseada em relês.
Esses dois primeiros modelos eram somente para teste: “tinham todas as
características do computador posterior, mas não trabalhavam satisfatoriamente.
O Z3 foi terminado em 1941 e foi o primeiro modelo totalmente operacional” *
[Zus80]. O Z3, como a maioria das máquinas dessa primeira geração, usava dois
mecanismos separados para as funções aritméticas e tinha uma unidade especial
para conversão de números na notação decimal para a binária. Em termos de
velocidade podia ser comparado ao MARK I, discutido mais à frente, que foi
terminado dois anos após o Z3. O Z3 executava três a quatro adições por segundo
e multiplicava dois números em quatro ou cinco segundos. Nunca chegou a ser
usado para grandes problemas em função de possuir uma memória de tamanho
limitado. Foi destruído, junto com a casa de Zuse, por um bombardeio em 1944.
O Z4 começou a ser desenvolvido quase que simultaneamente ao final do
trabalho do Z3. Era essencialmente a mesma máquina, com maior capacidade de
memória e mais rápida. Por causa do avanço das tropas aliadas, o trabalho do Z4
foi interrompido quase ao seu final e a máquina ficou escondida em uma pequena
cidade da Bavária chamada Hinterstein Em 1950, na Suíça, Zuse reconstruiu o seu
Z4, e fundou uma empresa de computadores, absorvida depois pela Siemens. As
máquinas de Zuse tiveram pouco impacto no desenvolvimento geral da
Computação pelo absoluto desconhecimento delas até um pouco depois da guerra
[Zus80].
81
tendo estado em uso até 1961 –, e juntamente com os computadores K do Dr. Zuse
foram os primeiros computadores de código binário, baseados em relês [Sti80].
Durante os anos de 1936 a 1939, “John Vincent Atanasoff, com John Berry,
desenvolveu a máquina que agora é chamada de ABC (Atanasoff-Berry Computer),
na Universidade de Iowa, EUA, como uma máquina dedicada especialmente à
82
solução de conjuntos de equações lineares na Física. Embora sendo um dos
primeiros exemplos de calculadora eletrônica, o ABC propiciou o desenvolvimento
dos primeiros conceitos que iriam aparecer nos computadores modernos: a
unidade aritmética eletrônica e a memória de leitura e gravação” [IEEE95].
83
*Muitos dos pioneiros do desenvolvimento dos computadores acreditam que esse termo dá um
crédito exagerado ao trabalho de von Neumann, que escreveu as idéias, e muito pouco aos
engenheiros Eckert e Mauchly, que construíram as máquinas. A polêmica foi ruidosa e, em 1947,
estes dois últimos deixaram a Moore School.
84
Automatic Calculator), construído pela Remington-Rand, tornou-se o primeiro
computador comercialmente disponível que utilizava esses conceitos.
Figura 31: ENIAC, sua programação era feita com fios ("hard wired")
Figura 32:Colossus, da Inglaterra. Sua programação também era feita com fios.
Figura 33:da esquerda para a direita, Patsy Simmers, segurando uma placa do ENIAC, Gail
Taylor, segurando uma placa do EDVAC, Milly Beck, segurando uma placa do ORDVAC, Norma Stec,
segurando uma placa do BRLESC-I (atenção para o tamanho das placas)
85
Figura 34: Desenvolvimento do hardware e software nos primeiros tempos da Computação
86
I. a descrição deve ser finita;
II. parte de um certo número de dados, pertencente a conjuntos específicos
de objetos, e espera-se que produza um certo número de resultados que
mantenham relação específica com os dados;
III. supõe-se que exista um agente computacional − humano, eletrônico,
mecânico, etc. − que execute as instruções do procedimento;
IV. cada instrução deve ser bem definida;
V. as instruções devem ser tão simples que poderiam ser executadas por
alguém usando lápis e papel, em um espaço de tempo finito.
87
significa falar das características que tornam tais linguagens implementáveis em
qualquer computador, isto é, quais as características da execução do programa que
são comuns a todas as implementações. Portanto a semântica é uma entidade
abstrata: ela modela o que o programa quer causar quando é executado,
independentemente do seu uso nesse ou naquele computador. A semântica de uma
linguagem de programação é a mesma semântica de todos os programas escritos
nela [Mos92].
A evolução das linguagens de programação chegou até esses conceitos por
caminhos e esforços muitas vezes paralelos. Alguns informatas buscam caminhos
para projetar linguagens que combinem uma grande generalidade de usos
(aplicações matemáticas e científicas, gráficas, comerciais, etc.) com simplicidade
e eficiência. Isso levou ao desenvolvimento de diferentes paradigmas – estilos e
objetivos – de programação como o imperativo, o funcional, o orientado a objeto, o
lógico, etc. Outros buscaram e buscam caminhos para expressar a sintaxe e a
semântica, esta última talvez a parte mais importante dentro do assunto
linguagens de programação e que levou ao surgimento de diversas linhas: a
semântica algébrica, a denotacional, a de ações, etc.
* Qualquer linguagem em que se possa definir uma função recursiva será universal.
† Uma linguagem com somente tipos numéricos e arrays deve resolver naturalmente
problemas numéricos, por exemplo.
‡ A maioria dos livros ao falar de semântica usa a palavra behavior, de difícil tradução. Pode-
se dizer que é um conjunto de regras que determinam a ordem na qual as operações do programa
irão ser executadas, quais serão executadas primeiro e quando se encerrarão.
Mas, antes de entrar nesse mundo das linguagens, de que forma eram
anteriormente especificados os algoritmos? Os mais antigos algoritmos escritos
que se conhecem são os da velha Mesopotâmia. Eram seqüências de cálculos sobre
conjuntos particulares de dados e não uma abstração * de procedimento como
entendido na programação atual [Knu76]. Na civilização grega, vários algoritmos
não triviais foram estudados, como por exemplo o de Euclides. A descrição era
ainda informal.
A notação matemática começou a evoluir efetivamente a partir dos séculos
XIII e XIV e notações para relações funcionais tiveram um bom desenvolvimento.
Na Computação, Babbage e Lady Lovelace elaboraram, entre outros, um programa
para o cálculo dos números de Bernoulli [Mor61]. Era na verdade uma espécie de
programa em linguagem de máquina, como nos primórdios dos computadores
digitais na década de 1940.
Em 1914, Leonardo Torres e Quevedo usaram uma linguagem natural para
descrever um pequeno programa para seu autômato hipotético. Helmut Schreeyer
fez uma descrição análoga em 1939 para a máquina que construía juntamente com
Zuse.
O próprio Alan M. Turing, para tratar do problema da indecidibilidade de
Hilbert construiu uma linguagem muito primitiva para sua máquina. Nela só havia
comandos para ler, testar uma condição e escrever símbolos sobre uma fita,
movendo para a direita ou esquerda uma cabeça de leitura e gravação. Conforme
Knuth [KP80], as ‘tabelas’ de Turing (como Alan Turing chamava sua linguagem)
“representaram a notação de mais alto nível para uma descrição precisa de
algoritmo que foram desenvolvidas antes da nossa história começar – exceto talvez
pela notação-lambda de Alonzo Church (que representa um ‘approach’
inteiramente diferente para o cálculo) ”.
88
*“Uma abstração é um modo de pensar pelo qual nos concentramos em idéias gerais ao invés
das manifestações específicas destas idéias.(...) Na programação, a abstração refere-se à distinção
que fazemos entre: (a) o que um pedaço de programa faz e (b) como ele é implementado. Uma
linguagem de programação em sentido próprio consiste de construções que são (em última
instância) abstrações do código de máquina” [Wat90]. Exemplos típicos de abstrações são as
funções e procedimentos de uma linguagem de programação.
89
Em 1955 trabalhou na equipe que elaborou as primeiras especificações para uma linguagem de uso
comercial, originalmente chamada B-0, depois FLOW-MATIC, que forneceu inúmeras características
para o COBOL.
† O termo ‘alto nível’ refere-se à semelhança que a linguagem tem com uma linguagem natural
ou matemática, opondo-se a ‘baixo nível’, mais semelhante à linguagem de máquina.
Depois de salvar o Z4 das bombas dos aliados e mudar-se para a pequena vila
Hintesrtein nos Alpes, Konrad Zuse percebeu que ainda não existia uma notação
formal para a descrição de algoritmos e começou a trabalhar em uma. O resultado
foi uma linguagem chamada Plankalkül (program calculus), uma extensão do
cálculo proposicional e depredicado de Hilbert. Em uma monografia sobre o
Plankalkül, em 1945, Zuse começava dizendo: “A missão do Plancalculus é fornecer
uma descrição formal pura de qualquer procedimento computacional”. O
Plancalculus incluía alguns conceitos fundamentais da programação: tipos de
dados, estrutura de dados hierárquicos, atribuição, iteração, etc. Ele pensou
inclusive em usar o Plancalculus como base de uma linguagem de programação
que pudesse ser traduzida por uma máquina. “Pode-se resumir sua idéia dizendo
que o Plankalkül incorporou muitas idéias extremamente importantes, mas faltou-
lhe uma sintaxe amigável para expressar programas em um formato legível e
facilmente editável”. Como complementação de seu trabalho desenvolveu
algoritmos para ordenação, teste de conectividade de grafos, para aritmética de
inteiros (inclusive raiz quadrada) e até um jogo de xadrez, entre outros.
Infelizmente a maior parte destas coisas permaneceu desconhecida até 1972, a
não ser por alguns extratos aparecidos em 1948 e 1959, quando seu trabalho
chamou a atenção de alguns leitores ingleses. “É interessante especular sobre o
que teria acontecido se ele tivesse publicado tudo imediatamente; teriam as
pessoas sido capazes de entender idéias tão radicais?” [KP80].
*Uma história e análise desse manuscrito estão em um artigo feito por Knuth em 1970,
intitulado von Neumann’s First Computer Program
† Na realidade o manuscrito contém somente uma parte da codificação do método, que é a
90
parte do processo de duas sequências já em ordem)
‡Sem entrar em detalhes mais técnicos, significava que a atribuição de endereços era feita em
relação a um endereço inicial arbitrário, a ser preenchido mais tarde, conseguindo-se o efeito de
relocação manual do código, de modo a ser usado como uma subrotina aberta (outro conceito que
exige maior conhecimento técnico sobre sistemas operacionais e programação/arquitetura de
computadores
114
91
Figura 36: Computador IAS, 1952
92
descrevendo um computador hipotético e uma linguagem algébrica simples, junto
com os fluxogramas de von Neumann para o que seriam dois ‘compiladores’ * para
essa linguagem. Um para decodificar todos os loops enquanto o outro produzia
código compacto através de registradores de índice. Como o Short Code, o
programador deveria reservar manualmente as localizações de memória para
variáveis e constantes. Um trabalho semelhante apareceu na Itália, na tese de
dissertação de Corrado Böhm, que desenvolveu uma linguagem algébrica e o
primeiro compilador para ela na própria linguagem, que reconhecia precedência
de operações.
Conforme Knuth e Trabb [KP80], o termo compilador não era ainda utilizado
nessa época. Na verdade falava-se sobre programação automática. No início da
programação em linguagem de máquina foram desenvolvidas subrotinas de uso
comum para entrada e saída, para aritmética de ponto flutuante e funções
transcendentais. Junto com a idéia de um endereçamento realocável – pois tais
subrotinas seriam usadas em diferentes partes de um programa – foram criadas
rotinas de montagem para facilitar a tarefa de uso das subrotinas e de
endereçamento relativo, idéia desenvolvida por Maurice V. Wilkes. Para isso foi
inventada uma pseudo linguagem de máquina. Uma rotina interpretativa iria
processar essas instruções, emulando um computador hipotético [Gol72] [Knu69].
Esse é o sentido do termo ‘compilador’ até aqui usado.
AUTOCODE foi o primeiro ‘compilador’ real, que tomava uma declaração
algébrica e a traduzia em linguagem de máquina. Seu desconhecido autor, Alick E.
Glennie, das forças armadas da Inglaterra, declarava em Cambridge, em 1953, sua
motivação para elaborá-lo: “A dificuldade da programação tornou-se a principal
dificuldade para o uso das máquinas. Aiken expressou sua opinião dizendo que a
solução para esta dificuldade deveria ser buscada pela construção de uma máquina
especial para codificar(...) Para tornar isso fácil deve-se elaborar um código
compreensível. Tal coisa somente pode ser feita melhorando-se a notação da
programação” [KP80]. John Backus [Wex80] discute essa distinção que Knuth faz,
citando J. Halcomb Laning, Jr. e Niel Zierler como os inventores do primeiro
‘compilador’ algébrico, para o computador Whirlwind. Como esta, são muitas as
discussões ainda hoje sobre quem foi o pioneiro no assunto. De qualquer maneira
esses primeiros sistemas denominados genericamente de programação automática
(acima citada) eram muito lentos e não fizeram muito sucesso, embora tivessem
sido fundamentais para preparar a base do desenvolvimento que se seguiu.
Este veio com o A-0, agora sim o primeiro compilador propriamente dito,
desenvolvido por Grace Murray Hopper e equipe, aprimorado para A-1 e A-2
subseqüentemente. O próximo passo seria o A-3, desenvolvido em 1955, produzido
ao mesmo tempo com o tradutor algébrico AT-3, mais tarde chamado MATH-
MATIC.
Em 1952 a IBM construía o computador 701 e em 1953 foi montada uma
equipe liderada por John Backus para desenvolver um código automático que
facilitasse a programação. O resultado foi o Speedcoding. Backus tornou-se uma
das principais figuras na história da evolução das linguagens de programação,
tendo um papel fundamental no desenvolvimento dos grandes compiladores que
93
viriam a partir do ano de 1955 como o FORTRAN e o ALGOL, além do
estabelecimento da moderna notação formal para a descrição sintática de
linguagens de programação, denominada BNF, Backus Normal Form.
94
O interesse de von Neumann por computadores encaminhou-se rapidamente
por uma vertente diferente daquela seguida pelos seus colegas. Percebeu o
potencial da nova máquina para solução matemática de problemas e não somente
para elaboração de tabelas. Durante a guerra, os seus conhecimentos em
hidrodinâmica, balística, meteorologia, teoria dos jogos, e estatística, foram
colocados em uso em vários projetos. Esse trabalho levou-o a perceber que
poderiam ser usados dispositivos mecânicos para computar cálculos e, embora se
diga que seu primeiro envolvimento com um computador foi através do ENIAC, de
fato nessa época ele estava com Howard Aiken, em Harvard, no projeto do Mark I
(ASCC). Sua correspondência em 1944 mostra seu interesse não somente pelo
trabalho de Aiken, mas também com os computadores baseados em relês, de
George Stibitz, e pelas pesquisas de Jan Schilt no Watson Scientific Computing
Laboratory da Universidade de Columbia. No fim da II Guerra von Neumann
tornou-se consultor, servindo a numerosos comitês com sua prodigiosa habilidade
de rapidamente ver a solução de problemas.
Ele tinha uma grande capacidade de aglutinar ao seu redor cientistas muitas
vezes separados por causa de exigências de segredo. Movia-se confortavelmente
entre o pessoal de Los Alamos (National Laboratory e Manhattan Project) assim
como entre os engenheiros da Moore School of Electrical Engineering, da
Universidade de Pensilvânia, que estavam construindo o ENIAC. Uma combinação
de diferentes desenvolvimentos científicos conduziram à invenção do ENIAC:
novas tecnologia de válvulas, lógica booleana, as idéias de Babbage-Lovelace, as
teorias de controle via retroalimentação (feedback), etc., e von Neumann era
talvez o único que conhecia sobre todos estes temas, além de politicamente dar-se
bem com as sociedades de Princeton, Los Alamos e Washington. No projeto
Manhattan, trabalhou juntamente com Oppenheimer, Fermi, Teller, Bohr e
Lawrenceand, que, entre outros, construíram a bomba atômica. [Ula80] [Gol72].
6.6.1 O conceito de programa armazenado
95
Von Neumann tinha se unido ao grupo em meados de 1944, através do
matemático Herman H. Goldstine *, como consultor especial. Seu gênio para
questões relacionadas ao pensamento formal, sistemático e lógico foi aplicado às
propriedades daquela imensa máquina de 17.000 válvulas, 70.000 resistores e
10.000 capacitores. Os problemas relativos à ‘engenharia’ eram ainda imensos,
mas estava se tornando claro que o componente não-físico, a codificação, aquilo
que estabelecia a operação da máquina, era igualmente difícil e importante.
Até o aparecimento do transistor, o que ocorreu alguns poucos anos depois, o
ENIAC representava o limite físico daquilo que poderia ser feito através de um
grande número de chaves e conexões. Em 1945, o aprimoramento possível no
poder computacional era um melhoramento na estrutura lógica da máquina, e von
Neumann era provavelmente o único homem, a oeste da equipe inglesa de
Bletchley Park (que tinha construído o computador COLOSSUS para decifrar o
código germânico de guerra), preparado para compreender os mecanismos lógicos
subjacentes no primeiro computador digital.
*A partir desse momento deu-se o início de uma grande amizade entre os dois.
Parte da razão pela qual o ENIAC era capaz de operar rapidamente estava em
que os caminhos seguidos pelos impulsos elétricos eram estabelecidos dentro do
equipamento. Esta ‘rota eletrônica’ era a materialização das instruções de
máquina que transformavam os dados de entrada em soluções de problemas.
Diferentes tipos de equações poderiam ser resolvidas, e a performance dos
cálculos poderia ser alterada pelos resultados de subproblemas *. Mas o que era
ganho no poder de cálculo e velocidade era perdido na flexibilidade. Um sério
obstáculo consistia na necessidade da programação externa, através de painéis e
cabos de conexão para a solução de um determinado problema, um procedimento
que poderia levar vários dias †. Após a entrada de von Neumann na equipe
percebeu-se que o ENIAC não seria a última palavra em termos de máquinas
calculadoras, mas sim que era o protótipo, ainda imperfeito, de uma nova
categoria de máquinas. Antes mesmo de estar terminado, seus construtores já
estavam elaborando o projeto de seu sucessor, e von Neumann compreendeu,
daquelas discussões com seus colegas, que se estava falando de uma máquina de
uso geral.
Na mesma época, a Universidade de Pensilvânia celebrou um contrato
suplementar para a construção do EDVAC, proposta um pouco antes por Mauchly e
Eckert, cujas características eram ainda um tanto vagas. O novo projeto despertou
enorme interesse em von Neumann, que começou a participar de reuniões
relativas ao projeto, juntamente com Eckert, Mauchly, Goldstine e outros.
Conforme [Kow96], um fator decisivo para viabilizar o projeto de uma nova
máquina foi a idéia de Eckert de utilizar linhas de retardo para implementar
elementos de memória de custo muito mais baixo do que se fossem utilizadas
válvulas. Outro resultado das reuniões com a equipe do projeto e da freqüente
troca de correspondência, foi a produção de um documento descrevendo os
detalhes da organização da nova máquina. Von Neumann ficou encarregado de
escrever o First draft of a report on the EDVAC (1945), documento que nunca
passou da fase de rascunho (foi publicado na íntegra somente anos mais tarde,
com forma ligeiramente editada).
Existem controvérsias, alimentadas por nomes como Randell, Rosen, Stern e
Wilkes, sobre quem teria sido o primeiro a propor o conceito de programa
armazenado. O trabalho teórico de Turing, com o qual von Neumann estava
familiarizado, já indicava essa possibilidade. Por outro lado existem referências
96
bastante obscuras e ambíguas, em fontes anteriores ao documento de von
Neumann, além das afirmações posteriores de Eckert e Mauchly. Não há dúvida de
que a idéia de programa armazenado estava no ar, e é bastante provável que tenha
sido sugerida por mais de uma pessoa. Apesar da notoriedade dessa controvérsia,
não parece que sua importância seja mais que simbólica. Independentemente de
quem tenha sido o primeiro a sugerir a idéia de programa armazenado na
memória, o fato é que o documento redigido por von Neumann é a primeira
descrição minuciosa e quase completa da arquitetura de um computador desse
tipo, com o repertório de operações que permitiriam a utilização plena de seus
recursos. Embora resultado de várias reuniões, o fato de von Neumann ter sido
consultor no projeto e encarregado de sua redação indica o peso da sua
contribuição. Depoimentos de colaboradores indicam que o projeto lógico do
computador deve-se principalmente a ele, enquanto Eckert e Mauchly foram os
principais responsáveis pelo projeto de circuitos de alta velocidade, linhas de
retardo e outros detalhes físicos, contribuições igualmente fundamentais [Kow96].
* O ENIAC estava habilitado de acordo com a idéia de Babbage, em seu Engenho Analítico,
pela qual ele poderia serreprogramado para solucionar diferentes equações não alterando a
máquina, mas a seqüência dos cartões de entrada.
†A origem do ENIAC como um dispositivo voltado para um projeto balístico era parcialmente
responsável por esta pouca flexibilidade. Não era a intenção dos engenheiros da Moore School
construir uma máquina universal. O contrato estabelecido especificava claramente que eles
deveriam criar um novo tipo de calculador de trajetórias.
97
No entanto pode-se afirmar “(...) que a estrutura lógica introduzida nos
projetos do EDVAC e da máquina IAS constitui o princípio de funcionamento de
computadores digitais até hoje, apesar do progresso tecnológico que nos separa
daquela época. Na realidade, não parece provável que os conceitos básicos de
arquitetura de von Neumann sejam abandonados em futuro próximo. Esta é a
opinião, por exemplo, de Patterson (Patterson, D. A., in Microprocessors in 2020,
Scientific American 273, 3, 1995, p. 48-51), um dos cientistas que mais
contribuíram para a concepção de modernos circuitos integrados” [Kow96].
*A expressão usada por Backus tornou-se popular e passou a denotar, de maneira genérica, o
fato de que a eficiência de processamento das máquinas com a concepção introduzida por von
Neumann é limitada por problemas de comunicação entre a memória e as outras unidades. É
interessante notar que no documento em que descreve o EDVAC, o próprio von Neumann utiliza a
palavra gargalo quando comenta as dificuldades de projeto e funcionamento de memória [Kow96].
98
poucas exceções, o projeto de cada linguagem foi influenciado pela experiência em
linguagens anteriores. Merecem atenção especial, pelo seu pioneirismo e pelos
novos paradigmas que introduziram, as linguagens alto nível FORTRAN e LISP.
99
provar propriedades de algoritmos, sendo adequada à computação simbólica e à
inteligência artificial. Sobretudo com LISP pode-se visualizar melhor um
importante conceito na computação moderna que é o uso de estruturas de dados
como objetos abstratos. É um dos aspectos centrais dessa linguagem, comparada a
como a Matemática usa os números naturais como entidades abstratas.
*Aparece aqui novamente este termo, utilizado por Knuth [KP80] e John Backus [Wex80] e, de
acordo com este último significava naqueles primeiros tempos “para muitos simplesmente escrever
códigos mnemônicos e endereço simbólico, para outros o simples processo de acessar subrotinas de
uma biblioteca e inserir nelas os endereços dos operandos. A maior parte dos sistemas de
‘programação automática’ eram programas de montagem ou conjuntos de subrotinas ou os sistemas
interpretativos (...)”[Wex80].
100
colaterais (alteração de valores, impressão, etc.). LISP foi a ancestral das
linguagens funcionais que culminaram atualmente em linguagens como Miranda,
ML e Haskell, que tratam funções como valores de primeira classe.
*Falando de uma maneira mais técnica e bastante genérica, significa que o foco da atenção do
programador recai mais nos dados da aplicação e nos métodos para manipulá-los do que nos
estritos procedimentos.
† Em termos gerais significa o partilhamento de uma aplicação em duas. A interface do usuário
e a maioria dos programas é executada no cliente, o qual será provavelmente uma estação de
trabalho ou um PC de alta performance. Os dados da aplicação residem no servidor, provavelmente
em um banco de dados de um computador de grande porte. Desta maneira mantêm-se os dados
onde podem ser melhor protegidos, atualizados, salvos, enquanto que o poder computacional fica
distribuído diretamente pelas mesas de trabalho dos ‘clientes’.
101
Sun Microsystems formado em 1990, liderado por Patrick Naughton e James
Gosling, que buscava uma nova ferramenta de comunicação e programação
independente da arquitetura de qualquer dispositivo eletrônico. Em 1994, após o
surgimento do NCSA Mosaic e a popularização da Internet, a equipe redirecionou
os seus esforços a fim de criar uma linguagem para aplicações multimídia on line.
Conforme Linden [Lin96], Java foi inspirada por várias linguagens: tem a
concorrência da Mesa, tratamento de exceções como Modula-3, linking dinâmico
de código novo e gerenciamento automático de memória como LISP, definição de
interfaces como Objective C, e declarações ordinárias como C. Apesar dessas
qualidades, todas importantes, na verdade duas outras realmente fazem a
diferença e tornam Java extremamente atrativa: sua portabilidade e o novo
conceito de arquitetura neutra.
Portabilidade significa que Java foi projetada objetivando aplicações para
vários sistemas heterogêneos que podem compor uma rede como a Internet, por
exemplo, e as diferentes características dessa rede. Java procura obter os mesmos
resultados de processamento nas diferentes plataformas.
Por arquitetura neutra entende-se que programas em Java são compilados
para se obter um código objeto (byte code na terminologia Java) que poderá ser
executado em um Power PC que use o sistema operacional OS/2, ou em um sistema
baseado no chip Pentium debaixo do Windows 95 ou em um Macintosh usando
MacOs, ou em uma estação de trabalho Sparc rodando Unix. Ou seja, em qualquer
computador, desde que tal computador implemente o ambiente necessário para
isso, denominado conceitualmente de Máquina Virtual Java.
Com a linguagem Java se começou a superar barreira que impedia que a
Internet se tornasse um computador: a barreira que impedia o uso de um software
utilizado em um determinado lugar, executando-o em qualquer plataforma.
102
programas mantidos no computador durante todo o tempo, liberando o
programador de tarefas relacionadas diretamente com o funcionamento da
máquina), como o DOS e OS, da IBM. Estes evoluíram possibilitando novos
conceitos que melhoraram a performance das máquinas, como por exemplo os
sistemas de multiprogramação, isto é, a possibilidade de vários programas serem
executados em paralelo em uma mesma da máquina. Se um destes programas tiver
origem em um terminal remoto, tal sistema será chamado de tempo compartilhado.
Um importante marco que possibilitou esses avanços foi a introdução de
processadores de entrada e saída, também chamados de canais. Isso motivou o
aparecimento dos conceitos de concorrência, comunicação e sincronização: uma
vez que dois processadores estão operando simultaneamente, surge a necessidade
de prover mecanismos para sincronizálos e estabelecer um canal de comunicação
entre eles.
É a era das arquiteturas mainframes: o suporte às tarefas computacionais e o
desenvolvimento das aplicações são feitos numa área central, denominada centro
de computação. Terminais conectados diretamente à máquina são utilizados
somente por pessoas relacionadas às aplicações disponíveis.
Nos anos 70 surgiram os supercomputadores, máquinas que inovaram na
arquitetura. Até o momento, o crescimento da eficiência dos computadores estava
limitado pela tecnologia, mais especificamente pelo processamento escalar que
exigia que o processador central de um computador terminasse uma tarefa para
começar a realizar outra, produzindo o gargalo de von Neumann. Um avanço
significativo veio com o supercomputador Cray-1, da Cray Research *, em 1971.
Foi a primeira máquina pipeline, cujo processador executava uma instrução
dividindo-a em partes, como na linha de montagem de um carro. Enquanto a
segunda parte de uma instrução estava sendo processada, a primeira parte de
outra instrução começava a ser trabalhada. A evolução seguinte foi a denominada
máquina vetorial, ou máquina SIMD (single instruction multiple data) cujo
processador trabalhava com mais de um conjunto de dados ao mesmo tempo. Um
pouco depois surgiu a arquitetura MIMD (multiple instructions multiple data) e
apareceram máquinas com múltiplos processadores como a Connection Machine,
com 65.536 processadores †.
*Muito da história dos primeiros tempos dos supercomputadores coincide com a história
daquele que é considerado o pai dos supercomputadores, Seymour Cray (1926-1996), fundador da
Cray Research, que liderou a construção dos computadores mais rápidos do mundo durante vários
anos. Seymour Cray inventou ou contribuiu diretamente na criação de múltiplas tecnologias usadas
pela indústria dos supercomputadores, entre as quais está: a tecnologia de vetor de registradores no
CRAY-1, a tecnologia do semicondutor de gálio arsênico e a arquitetura RISC (Reduced Instruction
Set Computing).
† Deve-se observar que apesar da capacidade de execução paralela de centenas de tarefas,
dependendo de como é feita a comunicação entre os processadores, a eficiência de tais máquinas
pode ser frustrante e as pesquisas continuam em busca do aumento dessa eficiência.
103
se falará mais adiante caminha para o uso de um maior número de processadores,
dando maior velocidade ao computador pelo emprego do processamento paralelo.
Com a tecnologia VLSI (Very Large Scale Integration, quarta geração de
computadores) surgiram os minicomputadores, o que possibilitou muitas empresas
e universidades informatizarem seus departamentos. Os grandes usuários
interligavam os minicomputadores para enviar tarefas aos seus mainframes. A
arquitetura principal continuava no entanto estabelecida no centro de computação.
Do minicomputador para o computador pessoal foi somente um passo, e no início
da década de 1980 apareceram os primeiros PC’s. Ainda nos anos de 1980
apareceram as arquiteturas RISC (Reduced Instruction Set Code), com a promessa
de ganho de desempenho pela eliminação do conceito de microprograma. De
qualquer maneira essas máquinas ainda são máquinas de von Neumann
tradicionais, com todas as suas limitações, a maior delas a velocidade dos circuitos
que não pode crescer indefinidamente.
As tentativas de quebrar o gargalo de von Neumann e o início da
descentralização dos sistemas, com o surgimento das arquiteturas de rede que
possibilitaram a universalização do uso da tecnologia da Computação, fizeram
emergir e desenvolver as arquiteturas paralelas de hardware.
A idéia de incluir paralelismo nos computadores é tão antiga quanto os
próprios computadores. Trabalhos desenvolvidos por von Neumann na década de
1940 já discutiam a possibilidade de algoritmos paralelos para a solução de
equações diferenciais. O sistema Model V, desenvolvido entre 1944 e 1947 por G.
R. Stibitz e S. B. Willians nos laboratórios da Bell Telephone é um exemplo típico
de máquina paralela. Constituído por dois processadores e com três posições de
entrada e saída, esse multiprocessador primitivo tanto era capaz de executar dois
programas distintos quanto era possível que os dois processadores ficassem
alocados para um mesmo programa. Posteriormente foi desenvolvido o Illiac IV, na
década de 1960, constituído por 64 processadores. Como foi citado, a partir da
década de 1970 começaram a ser produzidos supercomputadores baseados em
arquiteturas paralelas.
Juntamente com as arquiteturas evoluíram os sistemas operacionais e a
evolução das linhas de processadores de uma empresa como a Intel servem para
refletir a evolução da indústria dos computadores em um determinado período.
Como destaque podem-se citar o MS-DOS, o OS/2 e o UNIX. Especialmente este
último, que surgiu como fruto dos trabalhos de um engenheiro da Bell Labs, Ken
Thompson, foi popularizado nos meios universitários que usavam computadores
PDP-11/45, durante a década de 1970. A palavra UNIX espalhou-se rapidamente
por todo o mundo e no início de 1980 este sistema operacional estava disponível
em mais máquinas do que qualquer outro sistema operacional da época,
continuando hoje ainda a ser amplamente utilizado.
*A velocidade de entrada/saída entre a memória principal (tecnicamente conhecida como
RAM) e os dispositivos de armazenamento é um problema que afeta todos os tipos de computadores.
Mas como os supercomputadores tem uma grande quantidade de memória principal, esse problema
pode ser resolvido facilmente com um gasto mais generoso de dinheiro.
104
7.4 Uma nova mentalidade
105
clones de diferentes tipos de máquinas que seriam capazes de executar os
programas elaborados para o padrão. A Apple continuava a fazer sucesso com sua
família Apple II, embora fracassando na introdução do Apple III e do formidável
LISA, a primeira tentativa de popularizar a combinação de mouse, janela, ícones e
interface gráfica com usuário. Mas o preço de US$10.000,00 assustou e espantou o
mercado.
O próximo passo a ser dado − sem contar a evolução e aprimoramento do
hardware sem o qual isso não seria possível − seria a gradual passagem dos
aplicativos para ambiente DOS − verdadeiro mar de produtos − para um novo
padrão de ambiente, que começava a ganhar contornos definitivos, e que
protagonizou o início de uma nova idade na história dos microcomputadores: o do
sistema operacional Windows, que tornou-se padrão dominante para os aplicativos
para PC, tornando a Microsoft líder na definição de especificações multimídia. É
importante no entanto fazer-se justiça: o padrão Windows inspirou-se no padrão
Macintosh, lançado pela Apple em 1984: um computador que era capaz de
oferecer mais de um prompt de DOS e uma interface baseada em caracteres; ele
podia ter várias janelas, menus suspensos e um mouse. Infelizmente o Macintosh
não era compatível com os programas e aplicativos já existentes e não era
expansível.
106
estruturada”. Dijkstra desenvolveu a idéia de que a definição (no estilo proposto
por Hoare) pode ser usada para a derivação (síntese) de um programa e não
apenas para sua verificação [Luc82]. A partir dessas pesquisas surgiu a
Engenharia de Software, que busca garantir a corretude na construção de
sistemas. O desenvolvimento de sistemas computacionais até então era feito de
uma maneira quase que artesanal. Não havia critério orientativo algum durante o
processo. Isso acabou sendo fatal, como o revelaram certos estudos, elaborados na
década de 1970, sobre o desenvolvimento de sistemas: ausência de corretude e
consistência, baixa qualidade, manutenção extremamente custosa em função de
problemas não detectados por ausência de uma validação de requisitos mais
rigorosa, não reaproveitamento de código, prazos de implementação não
cumpridos em conseqüência de erros detectados ao longo dessa mesma fase de
implementação, etc. Obedecendo a um grau de formalização maior, apareceram
como primeira reação a essa abordagem informal † modelos e métodos de
desenvolvimento de sistemas chamados estruturados, que na verdade são
conjuntos de normas e regras que guiam as várias fases de desenvolvimento de
sistemas e as transições entre elas. É a abordagem sistemática. Ainda aqui não
está presente um formalismo definido com regras precisas. A prototipação e a
orientação a objeto são abordagens que podem ser consideradas sistemáticas. A
abordagem rigorosa já apresenta um sistema lingüístico formal para documentar
as etapas de desenvolvimento e regras estritas para a passagem de uma etapa a
outra. Não se exige que as demonstrações de corretude das transformações
realizadas sejam feitas formalmente, bastando uma argumentação intuitiva ††. E
finalmente a abordagem puramente formal, rigorosa, com a exigência de que todas
as demonstrações necessárias para garantir a corretude do processo sejam
realizadas formalmente.
*O objetivo é escolher essas proposições de tal forma que elas sejam satisfeitas cada vez que o
fluxo de controle do programa passe pelo ponto anotado e de maneira que cada ciclo do fluxograma
seja “cortado” (anotado) por uma proposição.
† Para estabelecer uma distinção entre as várias espécies de abordagem vamos seguir uma
classificação sugerida por Bjorner [Tan92], de acordo com o grau de formalização.
†† É importante notar que a prova formal pode ser feita.
Donald E. Knuth iniciou nos fins dessa década um rigoroso tratado sobre as
bases matemáticas para a análise de algoritmos, produzindo os três conhecidos
volumes do The Art of Computer Programming [Knu69], que propiciaram a base
para o amadurecimento dos estudos da complexidade de algoritmos. Pode-se dizer
que o trabalho de Knuth é um dos grandes marcos da Computação no século XX:
107
antes de Knuth não havia um corpo sistemático do estudo da programação e dos
algoritmos.
Ainda no campo da Complexidade Computacional novos avanços se deram a
partir de 1971, com o trabalho de Steve Cook e Richard Karp sobre problemas NP-
completos † e os estudos sobre criptografia de Ronald Rivest, Adi Shamir e
Leonard Adleman. Em 1977 H.J. Bremermann desenvolveu alguns trabalhos
pioneiros dentro da teoria da complexidade, mostrando os limites físicos na
arquitetura de computadores de qualquer tipo e que estes limites físicos atuam
como fatores restritivos para a computação de determinados problemas. De acordo
com ele, existe um tempo chamado limite fundamental para a velocidade dos
computadores que não pode ser ultrapassado. Tal limite deriva-se da idéia de que a
velocidade máxima de transmissão de sinal entre os componentes internos da
máquina é limitada pela velocidade da luz. Mesmo que se pudessem construir
máquinas muito pequenas, otimizandose a trajetória de transmissão de sinais, esse
limite não pode ser ultrapassado. E ainda que se chegue a uma máquina cuja
velocidade de transmissão seja próxima à da luz, existem problemas
computacionais que são intratáveis, como por exemplo os “problemas NP”: mesmo
com a velocidade da luz tais problemas poderiam levar a idade do universo para
serem processados [Tei97].
108
físicos que poderiam representar um raciocínio lógico. A fusão das idéias de
Shannon e Boole, associadas a um tratamento simplificado do neurônio do cérebro
humano, tornou possível o trabalho de McCulloch e Pitts, que propuseram um
modelo de neurônio artificial (há um trabalho sobre este assunto em [Arb87]).
Queriam esses dois pesquisadores mostrar que se os neurônios artificiais
pudessem efetuar computações lógicas, estaria aberto o caminho para simular o
raciocínio humano.
*Como foi visto, Turing desenvolveu a Máquina de Turing, Church desenvolveu o cálculo-
lambda (que forneceu a base para a linguagem LISP, desenvolvida por McCarthy, uma das favoritas
do pessoal da IA), Kleene desenvolveu a teoria das funções recursivas, enquanto Emil Post
introduziu sistemas para reescrita de cadeias de símbolos (a gramática de Chomsky é um caso
particular disso).
† Como um dos subprodutos do trabalho de Church, ficou estabelecido que tudo aquilo que um
ser humano possa fazer manipulando símbolos, seguindo um finito e bem definido conjunto de
regras, uma máquina equipada com o conveniente programa também poderá fazê-lo.
109
Em 1952, Arthur Samuel mostrou que os computadores não fazem somente o que
se lhes pede, mas são capazes de “aprender”. Outros programas provadores de
teoremas se seguiram ao LT e em 1958, com McCarthy surgiu o LISP, que se
tornou a linguagem de programação predominante para IA a partir daí.
110
problemas intratáveis (o problema da parada na máquina de Turing por exemplo) e
funciona de maneira algorítmica (como pensa determinada corrente de estudiosos
da simulação da mente por computador), as operações mentais tem algo a mais do
que as características físicas do cérebro humano. Ou então há processamentos
mentais não algorítmicos, e se cai no problema da impossibilidade de uma
representação formal disso. São debates em aberto e que geram um saudável
intercâmbio de idéias entre a Computação e outras áreas do conhecimento humano
como a Psicologia, Biologia e Filosofia.
*Newell e Simon também inventaram a linguagem IPL, para processamento de listas, para
escrever o LT. Como não tinham compilador, traduziram manualmente para o correspondente código
de máquina.
111
máquinas a vapor, germe da automatização via feedback negativo;
• John von Neumann com sua Teoria Matemática dos Jogos.
Com a cibernética surge uma disciplina que estuda a evolução temporal
dinâmica dos sistemas com capacidade de auto-regulação e auto-manutenção ao
interagir com o meio que o circunda. De maneira breve pode-se afirmar que as
contribuições de Wiener podem resumir-se em dois pontos [Ara78]: • Sublinhou a
importância dos estudos interdisciplinares, mostrando o grande interesse que
apresentam para cada uma das disciplinas consideradas • Percebeu a presença de
processos realimentados de controle em uma ampla classe de sistemas, tanto
naturais como sociais.
Embora a cibernética como ciência não tenha como objetivo o computador –
para ela é apenas mais uma das muitas estruturas existentes no universo –, ela
criou, juntamente com a teoria da informação de Shannon, um novo caminho para
tentar entender o homem e as máquinas. Ao se ocupar das estruturas e funções
lógico-matemáticas de auto-regulação, independentemente de que estejam
inscritas e se cumpram em um organismo vivo, ou em uma população humana ou
em um computador eletrônico, acabou tomando parte indiretamente no
desenvolvimento do hardware e do software.
A idéia de informação como uma das características fundamentais do universo
levou Wiener e Shannon, separadamente, a demonstrarem que muitas coisas,
desde o movimento aleatório de partículas subatômicas até o comportamento de
redes baseadas em chaveamentos elétricos ou alguns aspectos do discurso
humano, estão relacionados de tal modo, que podem ser expressos através de
algumas equações matemáticas básicas*.
Estas equações foram úteis na construção de computadores e redes
telefônicas: muitos conceitos elaborados e delineados pela cibernética e teoria da
informação tornaram-se centrais no projeto lógico de máquinas e na criação do
software.
A cibernética não conseguiu estabelecer-se com um objeto e método
unificados na tradição acadêmica, e o termo se utilizou cada vez menos. Seus
acahados foram integrados dentro da Teoria Geral dos Sistemas †, no que se refere
aos aspectos mais teóricos. Seu lado mais prático e utilitário foram assimilados
dentro da robótica. “Somente em países europeus constituiu-se como uma ciência
amplíssima que engloba aspectos tão diversos como a teoria da informação,
comunica’~ao, computadores, sistemas de controle, robótica, modelagem
econômica, sociologia, etc. Independente da evolução acadêmica que tenha a
cibernética como disciplina, é necessário referir-se a uma série de conceitos que
com ela se puseram em andamento e são de uso comum em muitos âmbitos” ‡
[Tir2002].
* Sobre estas idéias tão sumariamente enunciadas ver o livro Cibernética, capítulo
introdutório [Wie70].
†A Teoria Geral dos Sistemas é um completo paradigma, uma forma de pensar muito fecunda
para entender a complexidade que engloba tanto os campos já citados acima que se relacionam com
a Cibernética e ainda: Teoria dos Conjuntos (Mesarovic), Teoria das Redes (Rapoport), Dinâmica de
Sistemas (Forrester), cfr. Bertalanffy, L. von Teoria Geral dos Sistemas [Tir2002]
‡ As noções de feed-back negativa ou realimentação, homostasis (permanecer igual a si
mesmo), feed-before (comportamento predictivo e por estratégia), etc.
Quando a História olhar para trás e estudar os anos do século XX, entre outras
coisas, perceberá que, do ponto de vista científico, eles estão caracterizados como
112
tempos em que se produziu uma aceleração tecnológica e um avanço nas
comunicações sem precedentes. Não é fácil encontrar situações históricas
análogas à expansão tecnológica que se assistiu nestes últimos cinqüenta anos do
século. Após as revoluções do ferro, da eletricidade, do petróleo, da química, veio a
revolução apoiada na eletrônica e no desenvolvimento dos computadores. A partir
dos anos setenta iniciou-se a integração em grande escala da televisão,
telecomunicação e informática, em um processo que tende a configurar redes
informativas integradas, com uma matriz de comunicação baseada na informação
digital, com grande capacidade de veicular dados, fotos, gráficos, palavras, sons,
imagens, difundidos em vários meios impressos e audiovisuais. Pode-se até dizer
que, em certo sentido, as mídias estão sendo suprimidas, pois tudo está se
tornando eletrônico.
A integração dos meios de comunicação gera também uma progressiva fusão
das atividades intelectuais e industriais do campo da informação. Jornalistas das
redações dos grandes jornais e agências de informação, artistas, comunidade
estudantil, pesquisadores trabalham diante de uma tela de computador. Em
algumas sociedades, como a norteamericana por exemplo, quase 50% (dados de
1955) da população economicamente ativa está dedicada a atividades industriais,
comerciais, culturais, sociais e informacionais relacionadas com coleta, tratamento
e disseminação da informação. Há um aumento da eficiência informacional a cada
dia, e se barateiam cada vez mais os custos tecnológicos. Não esquecendo que o
computador, diferentemente das outras máquinas (que manipulam, transformam
ou transportam matéria e energia) manipula, transforma e transporta um elemento
muito mais limpo e menos consumidor de energia e matéria prima. Abre-se
portanto uma porta para um crescimento da informação praticamente ilimitado.
Já que se está tratando principalmente neste livro sobre a evolução das idéias
e conceitos que levaram ao surgimento e desenvolvimento da Ciência da
Computação, pode-se falar agora de um supra-conceito maior, conseqüência que a
Computação ajudou a catalisar: o surgimento da Sociedade da Informação. Sem
querer adentrar no tema, merecedor de um trabalho exclusivo e com implicações
históricas, antropológicas, sociológicas e até psicológicas que fogem ao presente
escopo, duas considerações serão feitas: o problema do excesso de informação e o
perigo do empobrecimento que pode ser causado pelo uso indevido do computador.
113
linguagem pública, especialmente as do jornalismo, a ficção, a retórica
parlamentar e as relações internacionais, debilitam e adulteram cada vez mais as
tentativas de psique particular dse comunicar a verdade” [Ste91].
A superabundância de informação tende a mudar a natureza de cada
mensagem concreta. Às vezes, a maneira mais prática de não informar é dar uma
enxurrada de informações. Pode-se chegar até a privar de significado, ou tornar
insignificante, a própria mensagem. A informação converte-se, nessa perspectiva,
em simples ruído de fundo. Isto já ocorre, especialmente com os informes
publicitários.
É uma acumulação de dados não só pela densidade de informações bem como
pela sucessão rápida com que chega. Se no passado o problema era o de acesso e
coleta, agora está sendo o da seleção e avaliação. A possibilidade de recolher,
processar, difundir e recuperar informação de maneira quase instantânea implica
numa certa desvalorização da notícia. A informação em doses exageradas acaba
por tornar-se ruído. Por muita informática que exista, se não se tem capacidade de
tratamento que a converta em significativa é ruído: nos tornamos incapazes de
assimilar e tratar tanta abundância informativa. É necessário que se enfatize cada
vez mais a análise da informação e que se encorajem as inovações técnicas nesse
campo. Já surgem os grandes sistemas de manipulação de dados, gigantescos
depósitos de dados com seus ‘Data Minds’, softwares usando técnicas de IA que
trazem, por mecanismos de inferência, a informação desejada ou a possível
informação desejada.
As possíveis reações ante esse fenômeno da ‘poluição informativa’ ocorreriam
em três direções [Sor92]. Uma primeira via seria a seleção da informação, sem
redundâncias nem repetições, como se mencionou algumas linhas acima. A outra
seria a redução da informação, acomodando-a em função de interesses específicos
e especializados do público e a terceira via é a fuga da informação. A fuga da
informação seria o florescimento de ideologias simplificadoras, a semeadura do
irracional, o voluntarismo irreflexivo, o empobrecimento das relações sociais e o
desenvolvimento do mais passivo consumismo. É uma hipótese reducionista,
somente esboçada em determinados nichos sociais. Uma futura linha de fuga seria
a exploração através da venda e compra da informação, das mensagens
informativas, a um determinado custo (como avaliar?), orientando-se a
radiotelevisão ao volume de informação e tipo de informação que o assinante
deseja.
114
da intensidade de um determinado sentimento, o que é um empobrecimento ainda
maior. Conforme o prof. Setzer:
“É importante fazer aqui uma distinção necessária entre o armazenamento de
textos, imagens e som, que são pura e simplesmente reproduzidos, talvez com
alguma edição da sua forma (por exemplo, alinhamento de parágrafos, saliência de
contrastes em fotos, eliminação de ruídos), e o processamento de dados. Este
último é o tratamento que se dá aos dados, transformando seu conteúdo, isto é, a
semântica que se associa aos mesmos. Por exemplo, traduzir textos de uma língua
para outra, extrair características de estilo de autores em pesquisas de lingüística
computacional, gerar desenhos a partir de programas como no conhecido caso dos
fractais, etc.”.
“De onde provem o empobrecimento da informação? Do fato de que os dados
não têm nada a ver com a realidade, sendo na verdade representações simbólicas
de pensamentos abstratos formais, lógico-simbólicos, e como tal eles não precisam
ter consistência física. Aliás, é justamente a imponderabilidade dos dados e sua
alienação em relação ao físico que permitiu que os computadores fossem
construídos cada vez menores, o que não pode acontecer com todas as outras
máquinas. De fato, estas podem ser caracterizadas como máquinas concretas, ao
passo que os computadores são máquinas matemáticas, e portanto abstratas,
virtuais. Assim, todo processamento de dados deve utilizar-se exclusivamente de
pensamentos formais expressos sob a forma de um programa de computador. Esse
processamento lógico-simbólico, por ser extremamente restrito e unilateral, acaba
por restringir enormemente o espaço de tratamento das informações, que devem
ser expressas sob forma de dados; daí o empobrecimento das informações que são
representadas por esses dados. Note-se que essa restrição é até de natureza
matemática: não é possível colocar no computador as noções de infinito e de
contínuo, apenas aproximações das mesmas”.
“A caracterização do computador como máquina abstrata fica mais clara ao
notar-se que todas as linguagens de programação são estritamente formais, isto é,
passíveis de serem descritas matematicamente. O próprio funcionamento lógico do
computador pode ser descrito por formulações lógico-matemáticas. As outras
máquinas não têm essa característica, pois atuam diretamente na matéria (aí
incluída a energia), e esta escapa a uma descrição matemática”.
“Mas não são só as linguagens de programação que são formais”. Qualquer
linguagem de comandos, mesmo icônica, de um software qualquer, também é
matematicamente formal. Por exemplo, qualquer comando de um editor de textos
produz uma ação do computador que é uma função matemática sobre o texto
sendo trabalhado ou sobre o estado do computador. Portanto, para se programar
ou usar um computador, é necessário formular os pensamentos dentro de um
espaço estritamente abstrato, matemático, apesar de aparentemente não ser o
tradicional, pois os símbolos e as funções são em grande parte diferentes.
Programar ou usar um computador são funções estritamente matemáticas, como
fazer cálculos ou provar teoremas. Assim, a programação ou uso de um
computador exigem o mesmo grau de consciência e abstração que a atividade
matemática. Isso não se passa com todas as outras máquinas, que exigem uma
certa coordenação motora automática, semiconsciente (por exemplo, só se aprende
a andar de bicicleta quando não é mais necessário pensar sobre os movimentos e o
equilíbrio)”.
Como uma das conseqüências dessas afirmações, pode-se propor que o uso do
computador deva estar acompanhado de um novo tipo de educação, seja no âmbito
da família ou das escola, das universidades ou das empresas, que aponte para uma
abertura maior do entendimento humano. E esse saber vital, que faz com que um
115
homem se sinta interiormente livre − porque tem respostas às questões da vida −,
e que tenha uma visão mais ampla da realidade, é a cultura, a literatura, a filosofia,
a história, etc., ou seja, as humanidades ou artes liberais, como antes eram
chamadas algumas ciências humanas. Nas ciências técnicas e para os profissionais
da Computação isto é mais premente. O maior problema que a especialização das
ciências técnicas trouxe foi essa perda do sentido de conjunto. Continuando com as
considerações da citada palestra:
“Um empobrecimento que também pode dar-se em outro sentido que é o uso
da computação na arte. Há um elemento informal e intuitivo na arte que leva a
dizer que na criação artística deve haver um elemento inconsciente, que nunca
poderá ser conceituado totalmente. Já a criação científica deve poder ser expressa
por meio de pensamentos claros, universais e não-temporais, isto é, independentes
da particular interpretação do observador, talvez até certo ponto (dependendo da
área) formais, matemáticos. Imagine-se uma descrição do Altar de Isenheim
através dos seus pixels e seus comprimentos de onda: ele perderia totalmente o
senso estético e não produziria mais a reação interior provocada no observador
pelas cores, formas e motivos, isto é, não teria o efeito terapêutico para o qual foi
criado por Grünewald”.
“O elemento emocional foi realçado por Freud, quando afirmou em sua
‘Introdução à Psicanálise,’ Aula 23, e no ensaio ‘Além do Princípio do Prazer,’ que a
arte é emoção ou expressão subconsciente e não imitação ou comunicação (dentro
de seu típico raciocínio unilateral da teoria da sublimação da emoção e do desejo
através da arte). Comparando-se com a arte como comunicação de uma realidade
espiritual, de Kandinsky, vê-se bem o contraste entre materialismo e
espiritualismo; neste pode haver algo superior a ser comunicado”.
“Apesar de que a idéia expressa em um objeto de arte seja de conteúdo
objetivo, a sensação e emoção que ela desperta é subjetiva. Por exemplo, ouça-se
uma terça maior seguida de uma menor, ou uma sétima seguida de uma oitava.
Estamos seguros que qualquer pessoa terá sensações diferentes em cada caso, que
ficam claras pelo contraste entre cada intervalo e o seguinte. Mas provavelmente
quase todas as pessoas dirão que a terça menor é 'mais triste' e a sétima produz
uma tensão aliviada pela oitava. Cada um sente essas emoções diferentemente,
mas há claramente algo universal por detrás delas, como as sensações que temos
do amarelo limão (alegre, radiante, abrindo-se) e do azul da Prússia (triste,
introspectivo, fechando-se) ”.
“É necessário considerar também uma distinção essencial entre obra artística
e científica o fato da primeira dever sempre ter contextos temporais e espaciais
ligados à sua criação. Como contraste, uma teoria científica não depende do
tempo, desde que seja consistente e corresponda às observações, se for o caso. Um
exemplo simples é o do conceito de uma circunferência, como por exemplo o lugar
geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto. Essa definição formal não
dependeu das condições de seu descobridor. Ela é impessoal e eterna. O fato de
podermos captá-la com nosso pensamento levou Aristóteles a conjeturar, por um
raciocínio puramente lógico (precursor de nossa maneira de pensar hodierna), que
temos dentro de nós também algo de eterno, e que não poderia ter ocorrido em
Platão, pois este tinha sido um iniciado nos Mistérios (em A Escola de Atenas, de
Rafael há uma representação da diferença entre os dois *)”.
“A dependência espaço-temporal da criação artística aliada ao elemento de
expressão individual semiconsciente do artista faz com que haja sempre um
elemento de imprevisibilidade na criação. O artista deve observar sua obra durante
o processo de criação, para influir no mesmo e chegar a algo que não podia
inicialmente prever. Isso pode ser um processo puramente interior, como no caso
116
de um compositor que não precisa ouvir os sons de sua obra; no entanto, a
sensação auditiva ao ouvi-la tocada nunca é a mesma que a que pode imaginar
interiormente. Poder-se-ia argumentar que a pesquisa científica também tem
elementos de imprevisibilidade. Isso pode ocorrer até na matemática: um teorema
pode ser descoberto, e o seu autor ou outros ainda não saberem como se poderá
prová-lo (um exemplo recente foi a prova do último teorema de Fermat, formulado
no século XVII). Uma grande diferença reside no fato do resultado ser de um lado
um conceito e de outro um objeto. Além disso, uma vez estabelecido um conceito
científico, toda vez que se refizer a experiência ou a teoria correta o resultado será
o mesmo (dentro das eventuais aproximações experimentais); no caso da criação
artística, o objeto de arte deverá sempre mudar, pois a sua simples presença deve
influenciar o criador, que terá outras inspirações na hora de repetir a criação
(lembremos da frase de Freud de que simples imitação não é arte). Dá-se a esse
fator o nome de dinamismo da criação artística”.
“Portanto o uso do computador para fazer arte, sem considerar sua grande
utilidade como banco de dados das obras artísticas, pode ser empobrecedor”.
“Como instrumento passivo na criação artística, como é o caso do uso de uma
ferramenta CorelDraw, existe o problema do usuário fazer uso de um raciocínio
formal ao utilizar os comandos do computador submetendo a criação artística a
uma consciencialização e formalização e o problema da ausência do elemento
inconsciente, assim como do contato físico que desperta diferentes reações, como
por exemplo, no pintor com seu pincel, no pianista ao dedilhar o piano”.
*O autor se refere ao famoso quadro onde vários filósofos gregos aparecem, e, caminhando
lado a lado, estão Platão e Aristóteles, um apontando o dedo para cima e outro para baixo,
respectivamente, indicando o mundo das idéias e o mundo real.
117
redundante e supérfluo falar das vantagens desse instrumento de trabalho que
potencializou e impulsionou o desenvolvimento das ciências em geral. Mas é bom
lembrar que os computadores não inovam, não se relacionam, não são flexíveis e
não sabem tomar iniciativas diante de situações não prédeterminadas por
algoritmos internos. A imersão na informática traz o risco de se deixar de lado o
cultivo ou mesmo a perda de aptidões fundamentais como a leitura, a reflexão, a
criatividade, etc. Será tarefa primordial principalmente nos estabelecimentos de
ensino, onde o computador se faz cada vez mais presente, preocupar-se em dar ao
lado dos conhecimentos técnicos e informáticos, uma sólida formação humanística
que garanta o exercício integral da inteligência humana em seus vários âmbitos.
9 Conclusão
118
definitivo.
Apesar dessas dificuldades, deve-se continuar a chamar a atenção sobre a
importância de se registrar e estudar o desenvolvimento dos computadores
eletrônicos e a conseqüente evolução dos temas anexos: Linguagens de
Programação, a Teoria da Computação, estudo da Complexidade dos Algoritmos,
etc., assim como a importância decisiva do fator humano. Quando tantos se
maravilharam com a derrota do campeão mundial de xadrez Kasparov para o
computador da IBM, o Deep Blue, (abril/maio de 1997), surpreende a pouca
atenção dada à equipe de técnicos que construiu e programou a máquina, às
heurísticas utilizadas e aos objetivos que estão por detrás desse novo engenho,
como se alguém ficasse maravilhado com o quadro e os pincéis de uma obra de
arte e se esquecesse do artista. A história tem o dom de focalizar com especial
nitidez aquele que é o seu personagem principal: o homem.
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123
silogística − consiste em admitir que também na lógica é possível adotar certas
estruturas consideradas como primitivas e, depois, ‘extrair’ outras delas mediante
determinados procedimentos ou regras de transformação, que não têm por sua vez
caráter de estruturas, mas sim o de operações verificáveis sobre estruturas.
124
As leis que regem este tipo de raciocínio são antigas. Embora formuladas
sistematicamente por Aristóteles, eram já conhecidas muito antes dele. Elas são
uma espécie de espelho do intelecto humano: todo homem inteligente aplica de
algum modo essas leis para alcançar os seus objetivos no dia a dia. Sabe que para
raciocinar corretamente deve antes escolher algumas premissas sem
ambigüidades, e então seguir passo a passo uma seqüência lógica de ações. Assim
deverá chegar a uma única conseqüência, de acordo com o processo lógico
seguido. Caso não chegue, irá provavelmente rever se aplicou corretamente as
regras lógicas do processo, e se tudo foi aplicado corretamente, significará que há
algo de errado em suas premissas.
Mas não é fácil estabelecer o conjunto de premissas para um determinado
domínio de conhecimento: exige-se não só um juízo crítico apurado mas grande
habilidade também, assim como é imperativo que cada premissa seja independente
da outra e que todo o sistema esteja abrangendo a questão investigada. O campo
da matemática que lida com tais problemas é chamado de axiomática e foi
cultivado por homens do calibre de Peano, Russell e Hilbert. No anexo sobre A
concepção formalista da matemática desenvolvem-se um pouco mais estas idéias.
Por ora basta saber que esse processo acima descrito é chamado de dedutivo
e caracteriza o pensamento matemático. Ele encontrou sua completa realização na
geometria, e por esta razão a estrutura lógica da geometria tornou-se modelo das
ciências exatas.
De diferente natureza é outro método usado nas investigações científicas: a
indução. Geralmente é descrito como o método que vai do particular para o geral.
É o resultado de observações e experiências. Para se descobrir uma propriedade
de uma certa classe de objetos, repetem-se testes tantas vezes quanto possível, sob
circunstâncias semelhantes. Se uma determinada resposta tende a acontecer na
maioria das vezes, tal tendência é aceita como uma propriedade daquela classe de
objetos. Porém na matemática tal processo não pode ser utilizado, pois bastaria
uma única resposta diferente das demais para negar uma determinada assertiva *.
No entanto, algumas propriedades da aritmética, como a associativa,
comutativa, etc., podem ser demonstradas por um método dedutivo chamado de
raciocínio por recorrência, muitas vezes também denominado indução matemática
ou indução finita ou ainda indução completa. Foi introduzido na teoria dos números
pelo matemático italiano Giuseppe Peano, e desde então vem sendo vastamente
aplicado na matemática e, em particular, na teoria dos conjuntos. Abaixo segue
uma breve explicação desse procedimento, que está formalizado no anexo A
Aritmética de Peano.
125
Seja P uma propriedade de números naturais. Se 0 tem a
propriedade P, e quando n tem a propriedade P, n+1 também tem a
propriedade P, então todo natural tem a propriedade P.
126
silogístico-dedutiva. Segundo Poincaré a prova por indução completa – que ele
chamou de “dèmonstration par récurrence” − conteria uma “virtude criadora”,
capaz de possibilitar, de modo finito, a formulação de uma infinidade de juízos
matemáticos.
127
*A maior parte do texto vem de artigo publicado na revista Scientific American Brasil, edição
Gênios da Ciência Matemática: A vanguarda matemática e os limites da razão
128
polinomial.
Uma Máquina de Diferenças é simplesmente uma máquina com a capacidade
de armazenar uma série de números e executar adições com eles. Os números irão
representar os valores da função, sua primeira diferença, segunda, terceira, e
assim por diante. Em função da máquina poder adicionar as diferenças inferiores
às superiores e finalmente chegar ao valor da função, é possível gerar sucessivos
valores da função. A máquina projetada por Babbage era capaz de trabalhar com
polinomiais de grau seis [Wil97] [Gol72].
129
álgebra abstrata” [Aga86].
130
de símbolos sem significado. Especificando um pouco melhor (baseado em [CO98]):
*Na verdade, a maioria dos matemáticos desenvolve seus resultados dentro de um espírito
mais informal, intuitivo, mais geométrico do que algébrico, e quando algébrico, não muito formal.
† Quando a Matemática fala da Matemática
131
portanto a seqüência *,++,+*,*+ é uma dedução de *+ onde Γ = {}; assim{}|*+.
*Não aprofundando muito na questão, que entra na árdua teoria da recursão: um conjunto A
contido em X é recursivo se e somente se há um procedimento pelo qual, dado um x pertencente a X,
pode-se computar sobre x, pertença x a A ou não. Exemplo: o conjunto dos primos em N (o
procedimento é o crivo de Eratóstenes)[Sho71].
132
Como um sistema formal sintático se relaciona com um mundo de objetos
matemáticos aos quais estão associados significados? Esta relação se dá através da
noção de interpretação †. Desta forma todos os teoremas do sistema formal podem
ser interpretados como enunciados verdadeiros acerca desses objetos
matemáticos. O sonho de Hilbert era encontrar um sistema formal no qual todas as
verdades matemáticas fossem traduzíveis, mediante algum tipo de interpretação,
para teoremas e vice-versa. Tal sistema é denominado completo. O teorema de
Gödel veio a destruir esse sonho.
* Como se pode notar Hilbert utiliza-se da intuição, mas não como os intuicionistas no sentido
de estabelecer as propriedades de determinados entes matemáticos, mas referindo-se unicamente à
efetuação de operações muito simples, tão seguras e elementares a ponto de serem aceitas na base
de qualquer pesquisa teórica.
† Uma interpretação é a descoberta de um isomorfismo entre duas estruturas: no caso ela
confere significado aos objetos e entidades matemáticas, tais como linha, ponto, símbolos abstratos,
etc.
*Conforme [Aga86]
† Ao que parece, conforme vão se gerando maiores números primos, esses pares vão
escasseando. Mas se deixarão de aparecer não se sabe.
A numeração de Gödel
133
Para conferir à metamatemática o rigor necessário, Gödel tenta formalizá-la
por meio de uma teoria com duas características essenciais: por um lado, uma
teoria poderosa o suficiente para expressar a metateoria sintática; por outro, uma
teoria que pudesse ser construída em um número finito de etapas, de acordo com a
exigência finitista. A aritmética de Peano, que apresenta essas duas propriedades,
será essa teoria. O desafio, assim, está em traduzir os enunciados da
metalinguagem da aritmética de Peano na linguagem-objeto da aritmética. Os
objetos da linguagem-objeto são números; os da metalinguagem são afirmações
acerca dos números: Gödel precisa encontrar um modo de expressar tais
afirmações por meio dos próprios números.
Ele procede assim: a cada símbolo da aritmética de Peano, ele atribui de
maneira unívoca um número, chamado seu número de Gödel. A partir daí, é
possível atribuir, também de maneira unívoca, um número de Gödel para todas as
outras expressões da aritmética de Peano, bem como para todas as suas fórmulas e
todas as suas seqüências finitas de fórmulas. A eficácia desse método fica
garantida pelo fato de que essa aritmetização da linguagem (como o processo é
designado) acontece em duas etapas: toda função da aritmética pode ser deduzida
com auxílio de certas funções básicas chamadas de funções recursivas primitivas †,
as quais são sempre calculáveis por construção.
Por meio de uma tabela de correspondência, Gödel atribui a cada símbolo da
aritmética de Peano um número ímpar: “0” é traduzido por 1; o sucessor s por 3; a
negação por 5; o símbolo ∨ por 7; ∀ por 9; “(“ por 11; “)” por 13; e as variáveis de
tipo n por números da forma pn, em que p é um número primo superior a 13. Uma
fórmula da aritmética de Peano, que é uma seqüência desses símbolos, é levada,
portanto, em uma correspondente seqüência de números ímpares: nl, n2, ..., nk
Essa seqüência, por sua vez, é transformada em um número único m, por meio da
seguinte instrução (que é uma função recursiva primitiva):
Em que é o k-ésimo número primo (em
outras palavras, o segundo membro é a decomposição de m em fatores
primos). O número m é o número de Gödel da fórmula. Assim, n1, n2, ... nk são os
números de Gödel dos símbolos de uma fórmula da aritmética de Peano, e m é o
número de Gödel dessa fórmula. Esse processo pode ser repetido para uma
seqüência de números de Gödel associados a uma seqüência de fórmulas da
aritmética de Peano, o que resulta em um número de Gödel para essa seqüência de
fórmulas. Essa codificação para as seqüências de fórmulas é importante, pois as
demonstrações nada mais são do que seqüências finitas de fórmulas, em que cada
uma ou é um axioma, ou decorre das fórmulas precedentes.
* A maior parte do texto vem de artigo publicado na revista Scientific American Brasil, edição
Gênios da Ciência Matemática: A vanguarda matemática e os limites da razão e também tem como
base [Cas97]
† Uma função é calculável quando existe um algoritmo que, para todo argumento dado,
fornece o valor da função em um número finito de etapas. Para enfrentar a infinidade de algoritmos
imagináveis, pode-se considerar uma classe das funções calculáveis: as funções recursivas
primitivas. Elas sempre tomam números naturais por argumento, e são definidas da seguinte
maneira: certas funções simples – denominadas ´funções base´ - são declaradas, inicialmente, como
recursivas primitivas. Chamam-se recursivas primitivas depois todas as funções que possam ser
construídas, de acordo com certas regras, a partir das funções que já se saiba serem recursivas
primitivas. A demonstração do teorema da incompletude de Gödel baseia-se em uma série de
funções recursivas primitivas deduzidas umas a partir das outras.
Os teoremas da teoria dos números asseguram que a enumeração de Gödel é
unívoca, vale dizer, que a cada símbolo, fórmula ou seqüência de fórmulas
134
corresponde um único número de Gödel, que lhe é exclusivo. Em outras palavras, é
possível saber, para cada número natural, a partir da unicidade de sua
decomposição em fatores primos, se esse número é um número de Gödel e, nesse
caso, de qual elemento (seja símbolo, fórmula ou seqüência de fórmula) ele é
símbolo.
O método de Gödel (a aritmetização), apresentado aqui para as fórmulas e
demonstrações do sistema formal da aritmética de Peano, pode ser reproduzido de
maneira semelhante para não importa qual linguagem (notadamente linguagens de
programação). Atribuem-se números aos elementos básicos da linguagem (letras,
palavras, caracteres especiais) e formam-se novos números a partir das seqüências
desses números, de acordo com a instrução recursiva oferecida acima. Graças à
aritmetização, os conceitos metalingüísticos da sintaxe da aritmética de Peano
aparecem agora traduzidos como propriedades, funções ou relações entre
números. Por exemplo, o conceito “é uma fórmula” corresponde à propriedade “é
um número cujos expoentes da decomposição em fatores primos são todos
ímpares”. Analogamente (embora com um grau bem maior de dificuldade), o
conceito metateórico “x é uma fórmula demonstrável”, indicado pelo símbolo Dem
(de demonstrável), pode ser expresso com auxílio de relações aritméticas.
O Teorema de Incompletude
135
também não pode ser formalmente demonstrada no sistema. Segue daí que a
proposição F(f) é indecidível - que não pode ser deduzida. A fórmula F(f), portanto,
é ao mesmo tempo verdadeira e formalmente indecidível.
Uma vez atingido esse resultado, Gödel observa: “O método de demonstração
que foi exposto pode-se aplicar a todo sistema formal que, em primeiro lugar,
interpretado como sistema de conceitos e proposições, ofereça recursos
expressivos suficientes para definir os conceitos que aparecem no raciocínio
precedente (em particular, o conceito fórmula demonstrável), e no qual, em
segundo lugar, toda fórmula demonstrável seja verdadeira na interpretação
considerada”. Gödel chega assim a seu teorema de incompletude, que pode ser
enunciado da seguinte maneira: “Toda teoria axiomatizada suficientemente
poderosa para expressar a aritmética é incompleta”.
Em seu breve livro sobre Gödel, Jaako Hintikka sublinha que, ao contrário do
que levam a crer diversas vulgarizações desse resultado revolucionário, o primeiro
teorema de incompletude de Gödel não demonstra que “existem na aritmética (ou
em outro sistema) proposições verdadeiras, mas absolutamente indemonstráveis.
Ele mostra, antes, que todas as proposições verdadeiras da aritmética não podem
ser demonstradas por meio de um único sistema formal dado”.
Para Gödel, sistema formal e procedimento determinista e mecânico andam
juntos. Assim, convencido de que as funções recursivas primitivas não dão conta
do conceito de procedimento mecânico de maneira satisfatória, ele tenta
desenvolver uma versão generalizada da recursividade. Em 1936, o lógico
americano Alonzo Church (1903-1995) demonstrará, a partir dessas pesquisas, a
indecidibilidade da lógica de predicados de primeira ordem: é impossível obter,
para a lógica de predicados de primeira ordem, um procedimento geral de cálculo
capaz de determinar, para toda fórmula, se ela é ou não válida. Seu teorema,
conhecido atualmente como teorema de Church, responde assim negativamente ao
problema de decidibilidade proposto por Hilbert em seu programa: “Um problema
matemático dado”, pensava Hilbert, “deve admitir, obrigatoriamente, uma solução
exata, seja sob a forma de uma resposta direta a uma questão colocada, seja pela
demonstração de seu caráter insolúvel e do fracasso inevitável de toda tentativa
nesse sentido”. Baseados também nas pesquisas de Gödel, os trabalhos de Alan
Turing (1912-1954) constituirão o corolário do teorema de Church em informática
teórica.
De muitos modos o trabalho de Gödel aconteceu também em outras áreas.
Apenas quatro anos antes dele publicar o seu trabalho, o físico alemão Werner
Heisenberg descobriu o princípio da incerteza. Assim como existe um limite
fundamental nos teoremas que os matemáticos poderiam provar, Heisenberg
mostrou que havia um limite fundamental nas propriedades que os físicos
poderiam medir. Por exemplo, se eles queriam medir a posição exata de um objeto,
então só poderiam medir a velocidade do mesmo com uma precisão muito pobre.
Isto acontece porque para medir a posição do objeto seria preciso iluminá-lo com
fótons de luz, mas, para determinar a localização exata, os fótons precisariam ter
uma energia enorme. Contudo, se o objeto está sendo bombardeado com fótons de
alta energia, sua própria velocidade será afetada e se tornará inerentemente
incerta. Portanto, ao exigir o conhecimento da posição de um objeto, os físicos
teriam de desistir do conhecimento de sua velocidade.
O princípio da incerteza de Heisenberg só se revela nas escalas atômicas,
quando medidas de alta precisão se tornam críticas. Logo, uma boa parte da física
pode ser realizada sem problemas enquanto os físicos quânticos se preocupam
com as questões profundas sobre os limites do conhecimento. O mesmo acontecia
no mundo da matemática. Enquanto os lógicos se ocupavam do debate altamente
136
abstrato sobre a indecidibilidade, o resto da comunidade continuava seu trabalho
sem preocupação. Gödel tinha provado que existiam algumas afirmações – até
infinitas – que não poderiam ser provadas, mas restava uma outra quantidade que
podiam ser provadas e sua descoberta não invalidava nada que tivesse sido
demostrado no passado. Além disso, muitos matemáticos acreditavam que as
declarações de indecidibilidade de Gödel seriam encontradas nas regiões mais
extremas e obscuras da matemática e, portanto, talvez nunca tivessem de ser
enfrentadas. Afinal, Gödel só dissera que essas afirmações indecidíveis existam; ele
não pudera apontar uma. Então, em 1963, o pesadelo teórico de Gödel se tornou
uma realidade viva.
Paul Cohen, um matemático de 29 anos, da Universidade de Stanford,
desenvolvera uma técnica para testar se uma afirmação particular é indecidível. A
técnica só funcionava para certos casos muito especiais, mas, de qualquer forma,
ele foi a primeira pessoa a descobrir que havia questões de fato que eram
indecidíveis. Tendo feito sua descoberta, Cohen imediatamente voou para
Princeton, com a demonstração na mão, de modo que fosse verificada pelo próprio
Gödel. Dois dias depois de receber o trabalho, Gödel deu a Cohen sua aprovação. E
o que era particularmente dramático é que algumas dessas questões indecidíveis
estavam no centro da matemática. Ironicamente Cohen provara que uma das
perguntas que David Hilbert colocara entre os 23 problemas mais importantes da
matemática, a hipótese do continuum, era indecidível.
137
Imagine os símbolos "A" e "#"(branco). Suponha que o dispositivo possa
limpar qualquer um deles quando os lê em um quadrado ativo e trocá-lo por outro
(i.é., apagar "A" e substituir por "#" e vice-versa). Lembre-se que o dispositivo
pode mover a cabeça de leitura/gravação para a direita ou esquerda, de acordo
com instruções interpretadas pela unidade de controle. As instruções podem
limpar um símbolo, escrevê-lo ou deixá-lo como está, de acordo com o símbolo lido.
Qualquer tipo de "jogo" pode ser elaborado usando estas regras, não tendo
necessariamente algum significado. Uma das primeiras coisa que Alan Turing
demonstrou foi que alguns "jogos" construídos sob essas regras podem ser
sofisticados, em contraste com a simplicidade destas operações primitivas.
Dado um quadrado que seja uma posição inicial de uma seção da fita
preenchida por quaisquer caracteres ou brancos, o dispositivo executa ações
especificadas por uma lista de regras, seguindo-as uma por vez até chegar àquela
que force sua parada (se não há uma instrução explícita na tabela para uma
determinada configuração da fita, então não há nada que a máquina possa fazer
quando alcança aquela configuração, encerrando a execução portanto).
Cada instrução − ou regra − estabelece uma ação a ser executada se houver
determinado símbolo no quadrado ativo no tempo em que é lido. No nosso caso
vamos estabelecer 4 diferentes tipos de regra: 191
(a) Substituir #(branco) por símbolo
(b) Substituir símbolo por branco(#)
(c) Ir um quadrado para a direita
(d) Ir um quadrado para a esquerda
138
movimentar para direita(>)/esquerda(<) a cabeça de leitura/gravação).
Segue abaixo uma lista de regras − código e descrição − que dirão a uma
máquina de Turing como desenvolver um determinado "jogo":
139
Note que se houver um # no quadrado ativo quando os estados forem 1 ou 7,
ou se há um A no quadrado ativo quando o estado da máquina é 2, ela pára, pois
não saberia o que fazer.
O jogo neste caso é duplicar uma seqüência de A's que estejam na fita. Se a
fita contiver AAAA, no final conterá AAAAAAAA. Para se jogar (em termos mais
técnicos diríamos executar o programa descrito na lista de regras) é necessário
especificar uma configuração inicial na fita, qual o quadrado inicial ativo e o estado
inicial da máquina. Quando a máquina começar a executar, ela, a partir do estado
inicial e do quadrado ativo seguirá a seqüência (lógica) de regras que darão o
produto final.
Provavelmente poderá ser comentado que parecem coisas mecânicas demais,
mas era precisamente isto o que Turing estava procurando. A lista de instruções
pode ser seguida por um dispositivo mecânico.
Em sua essência, toda máquina de Turing move-se ou move símbolos, de uma
posição para outra em uma fita, da mesma maneira que no exemplo dado acima.
Nos dias de hoje estes símbolos podem ser impulsos eletrônicos em um
microcircuito e a fita uma série de endereços de memória em um chip, mas a idéia
é a mesma. Turing provou que sua hipotética máquina é uma versão automatizada
de um sistema formal especificado por uma combinação inicial de símbolos (o
conjunto de "A"s na fita no início do processo) e as regras (aquelas instruções
escritas). Os movimentos são mudanças de 'estado' da máquina que correspondem
a específicos passos de computação.
Os modernos computadores e inclusive este PC no qual está sendo escrito este
livro parecem ser bem mais complicados na sua estrutura e muito mais poderosos
computacionalmente do que uma MT. Mas não se trata de questão, pois o que
Turing demonstrou é que qualquer algoritmo (programa) executável em qualquer
computador, pode ser processado usando uma versão particular de sua máquina,
conhecida como Máquina de Turing Universal. Exceto pela velocidade, que é algo
dependente do hardware, não há procedimento computacional que qualquer
computador possa fazer que não possa ser feito por uma MTU, dados memória e
tempo adequados.
O que é uma MTU? Turing a idealizou ao compreender que além dos dados de
entrada armazenados na fita, também o próprio 'programa' − as regras do jogo −
poderia ser codificado para ser lido como uma entrada pela MTU. Com esta idéia
Turing construiu um programa que poderia simular a ação de qualquer programa
P quando P é colocado como parte da entrada. Isto é, Turing elaborou uma MTU.
Como funciona isto? Suponha que se tenha um programa P para uma máquina
de Turing. O único necessário agora é escrever este programa na fita da MTU,
junto com os dados de entrada sobre os quais atuará o programa P. Em seguida a
MTU irá simular a ação de P sobre os dados. Isto quer dizer também que durante o
processamento não haverá diferença entre o que seria rodar o programa P na sua
máquina original ou o atual processamento da MTU simulando P.
Anexo – Astrolábio
140
Figura 41: Astrolábio
Sua origem data de 200 a.C. na Grécia Clássica, e existem referências de que
Apollonius estudou os princípios da projeção estereográfica (método de
representação espacial usado no astrolábio). Contudo, quem mais influiu na teoria
da projeção espacial foi Hipparchus, nascido em Nicéia, na Ásia Menor (agora
Iznik na Turquia), aproximadamente 180 a.C. Ele, que teve grande influência no
desenvolvimento da trigonometria, redefiniu e formalizou a projeção como um
método para resolver problemas astronômicos.
As primeiras evidências do uso da projeção estereográfica em uma máquina
está na escritura do autor romano e arquiteto, Vitruvius (88 - 26 a.C.), o qual, na
obra De architectura, descreve um relógio (provavelmente de água) feito por
Ctesibius em Alexandria. Aparentemente, o relógio de Ctesibius tinha um campo
giratório de estrelas atrás de uma armação de arame que indicava a hora do dia. A
armação de arame foi construída com base na projeção estereográfica. Há
suspeitas de que o primeiro astrolábio tenha sido construído por Claudius
Ptolomeu (150 d.C.), pois em diversas partes de seus escritos deixa a impressão de
que possuía um instrumento com as características de um astrolábio. Ptolomeu
escreveu extensivamente sobre a projeção estereográfica em seu trabalho
conhecido como Planisferium. Contudo a primeira descrição de um astrolábio é
datada do século VI e foi feita por John Filoponos.
Durante muito tempo o uso do astrolábio ficou restrito aos povos persas e
islâmicos. No século XI, foi introduzido na Europa através da Espanha, e no século
XIII já se encontrava popularizado. O astrolábio só caiu em desuso a partir do
século XVII, devido à popularização de instrumentos como o relógio e o telescópio.
Funcionamento do Astrolábio
Partes do Astrolábio
141
Os astrolábios mais recentes (ver a 1a figura abaixo) possuem a parte mãe
(mater) na qual estão marcadas informações temporais, zodiacais e espaciais, esta
parte serve de suporte para todas as outras peças e funciona como um mostrador
de cálculo. Após vários ajustes, ponteiros exibem informações computadas pelo
astrolábio. Encaixados na face superior da parte mãe existem vários pratos (ver a
2a figura abaixo) que trazem a projeção estereográfica do céu para determinada
latitude durante o dia ou noite. Alguns astrolábios possuem vários pratos que
podem ser trocados de acordo com a latitude em que o observador se encontra.
Foram fabricados astrolábios com mecanismos que permitiam o ajuste da latitude,
mas estes não se tornaram populares devido ao seu custo e complexidade de uso.
Acima destes pratos estereográficos está disposto um componente chamado
rete (ver a a 3 figura baixo), que permite o ajuste do astrolábio ao movimento da
Terra, através de setas que apontam para estrelas de referências. Também
encontramos no rete a projeção do caminho do sol.
Atrás do astrolábio há uma régua, utilizada para ver a altitude do objeto
celeste. O astrolábio deve ser suspenso perpendicularmente ao solo, e a régua
posta na direção do objeto: uma escala exibe o ângulo deste com o solo. Muitos
astrolábios foram feitos com escalas trigonométricas para auxiliar os cálculos
astronômicos.
Ajuste do Astrolábio
Usos do Astrolábio
142
Sol.
4. São girados o rete e a régua até que o Sol ou ponteiro da estrela esteja na
altitude medida.
5. A régua aponta para a hora solar aparente no membro. Tempo solar
aparente é o tempo como mostrado em um relógio de sol e é diferente para cada
longitude.
Anexo - Turing e
a Máquina Enigma *
143
forças nacionalistas espanholas. Mas, fora isto, a
Enigma ainda resistia ao ataque e parecia que ia
continuar assim.
*Conforme [Sin99]
144
Figura 45: A máquina Enigma
145
palavras chaves nas mensagens. Caso acertasse, isto aceleraria enormemente a
decodificação do resto da mensagem. Por exemplo, se os decodificadores
suspeitavam de que uma mensagem continha um relatório meteorológico (um tipo
freqüente de relatório codificado), então eles supunham que a mensagem conteria
palavras como “neblina” ou “velocidade do vento”. Se estivessem certos, podiam
decifrar rapidamente a mensagem e, portanto, deduzir o ajuste da Enigma para
aquele dia em particular. E pelo resto do dia outras mensagens, mais valiosas,
seriam decifradas facilmente. Quando fracassavam na adivinhação de palavras
ligadas ao tempo, os britânicos tentavam se colocar na posição dos operadores
alemães da Enigma para deduzir outras palavras chaves. Um operador descuidado
poderia chamar o receptor pelo primeiro nome ou ele poderia desenvolver
idiossincrasias conhecidas pelos decifradores. Quando tudo o mais falhava e o
tráfego alemão de mensagens fluía sem ser decifrado, a Escola Britânica de
Códigos podia até mesmo, dizem, recorrer ao recurso extremo de pedir à RAF
(Força Aérea Britânica) para que minasse um determinado porto alemão.
Imediatamente o supervisar do porto atacado iria enviar uma mensagem codificada
que seria interceptada pelos britânicos. Os decodificadores teriam certeza então
de que a mensagem conteria palavras como "mina", “evite" e "mapa de
referências". Tendo decodificado esta mensagem, Turing teria os ajustes da
Enigma para aquele dia e quaisquer mensagens posteriores seriam vulneráveis à
rápida decodificação.
No dia 1o de fevereiro de 1942 os alemães acrescentaram uma quarta roda às
máquinas Enigma usadas para enviar mensagens particularmente importantes.
Esta foi a maior escalada no nível de codificação durante a guerra, mas finalmente
a equipe de Turing respondeu aumentando a eficiência das bombas. Graças à
Escola de Códigos, os aliados sabiam mais sobre seu inimigo do que os alemães
poderiam suspeitar. O impacto da ação dos submarinos no Atlântico foi
grandemente reduzido e os britânicos tinham um aviso prévio dos ataques da
Luftwaffe. Os decodificadores também interceptavam e decifravam a posição exata
dos navios de suprimentos alemães, permitindo que os destróiers britânicos os
encontrassem e afundassem.
Mas o tempo todo as forças aliadas tinham que ter cuidado para que suas
ações evasivas e ataques precisos não revelassem sua habilidade de decodificar as
comunicações alemãs. Se os alemães suspeitassem de que o código da Enigma fora
quebrado, eles iriam aumentar seu nível de codificação mandando os britânicos
para a estaca zero. Por isso houve ocasiões em que a Escola de Códigos informou
aos aliados sobre um ataque iminente e o comando preferiu não tomar medidas
extremas de defesa. Existem mesmo boatos de que Churchill sabia que Coventry
seria o alvo de um bombardeio devastador mas preferiu não tomar precauções
especiais para evitar que os alemães suspeitassem. Stuart Milner Barry, que
trabalhou com Turing, nega o boato. Ele diz que a mensagem relevante sobre
Coventry só foi decifrada quando já era tarde demais. Este uso contido da
informação codificada funcionou perfeitamente. Mesmo quando os britânicos
usavam as mensagens interceptadas para causar perdas pesadas no inimigo, os
alemães não suspeitaram de que o código Enigma fora quebrado. Eles pensavam
que seu nível de codificação era tão alto que seria totalmente impossível quebrar
os códigos. As perdas excepcionais eram atribuídas à ação de agentes britânicos
infiltrados.
146
usada para tentar decifrar código
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