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Dora Vianna Vasconcellos

NOTAS SOBRE A CONSCIÊNCIA DAS CLASSES SUBALTERNAS


EM ALGUNS ESTUDOS BRASILEIROS

Dora Vianna Vasconcellos*

Neste artigo, destaca-se a importância de alguns estudos que se dedicaram a compreender o agir político das classes
subalternas por meio da análise do fenômeno religioso do fanatismo ou do messianismo. É o que se depreende dos
ensaios pioneiros de Nina Rodrigues e Arthur Ramos e das análises sociológicas de Roger Bastide e Maria Isaura Pe-
reira de Queiroz. Com a passagem do ensaio para a sociologia consolidou-se a explicação da crença messiânica pela
noção de mana. A partir disso, uma nova interpretação foi elaborada para os anseios políticos da classe subalterna
e para a liderança a que ela se conforma.
Palavras-chave: Consciência das classes subalternas. Messianismo. Pensamento social brasileiro. Sociologia.

A leitura dos primeiros estudos sobre se fará menção aos escritos de Nina Rodrigues
o homem negro no Brasil suscita, ainda hoje, e Arthur Ramos, autores que realizaram estu-
algumas inquietações. Embora tenham sido dos sobre a cultura africana com a intenção de
produzidas com argumentos retirados das ci- apresentar uma explicação para o fenômeno
ências médicas, muitas dessas análises obede- recorrente do fanatismo no meio rural.
ciam ao fito principal de compreender o com- A importância dessa discussão se evi-
portamento social da população de cor, daí dencia pelo fato de os estudos subsequentes
serem consideradas como estudos pioneiros das ciências sociais fazerem referência a essa
das ciências sociais no Brasil. Por meio dessa tradição intelectual para se compreender o
abordagem, formou-se a ideia de que o negro comportamento político das classes subalter-

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é dotado de uma patologia histérica, por apre- nas rurais. Faz-se referência a Roger Bastide e
sentar uma mentalidade animista-fetichista. Maria Isaura Pereira de Queiroz, intelectuais
Ainda que tal argumentação revele os pesados que superaram a argumentação médica dos
preconceitos raciais vigentes na sociedade bra- primeiros estudos dedicados ao fanatismo, ao
sileira do final do século XIX e início do século preferirem explicá-lo sociologicamente. Com
XX, nela estão esboçadas as primeiras tenta- essa abordagem mais sociológica, a ideia de
tivas de interpretação sobre o agir político da histeria, inicialmente associada à crença ani-
classe subalterna.1 É com essa perspectiva que mista-fetichista, foi paulatinamente perdendo
1
força para dar lugar a uma explicação mais
* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). empírico-descritiva, centralizada na teoria da
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em De-
senvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA). dádiva de Marcel Mauss.
Avenida Presidente Vargas, 417 – 6º ao 10º andar. Centro. Pode se dizer, então, que, por seguirem
Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil. doravianna.vas-
concellos3@gmail.com um viés mais sociológico, as análises de Roger
1
Por classe subalterna compreende-se os indivíduos que
se situam no nível mais baixo da estratificação social. No no período da escravidão, e majoritariamente de agrega-
artigo, faz-se referência a dois momentos diferentes da dos, sitiantes e posseiros, no período pós-colonial até me-
formação social brasileira em que a classe subalterna era ados da década de 1950, época em que o Brasil ainda era
composta majoritariamente de escravos e homens livres, uma sociedade majoritariamente agrária.

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.20081 149
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Bastide e Maria Isaura contribuíram decisiva- ocupação proeminente do autor era, na reali-
mente para que o fanatismo pudesse ser reco- dade, invalidar a grande contribuição deixada
nhecido como um movimento messiânico. Há por Nina Rodrigues e Arthur Ramos: a de que
de se frisar, entretanto, que foram os estudos a classe subalterna tinha um comportamen-
pioneiros de Nina Rodrigues e Arthur Ramos to político mais subversivo do que irá supor,
que indicaram, pela primeira vez, que os africa- posteriormente, o pensamento social brasileiro
nismos da mentalidade popular revelavam uma (Wegner, 2007).
atitude de questionamento das relações sociais A importância dos estudos de Nina Ro-
vigentes por parte das classes subalternas. drigues e de Arthur Ramos se revela, então,
No entanto, a despeito dessa importante com a passagem do ensaio para a sociologia,
descoberta, consolidou-se, no pensamento so- quando se passa a relacionar, por meio de Ro-
cial, a opinião de Edson Carneiro de que, ao ger Bastide e Maria Isaura, a crença messiânica
suporem uma herança africana forte na menta- à lógica da dádiva. Esse novo ponto de vista in-
lidade popular, os estudos de Nina Rodrigues dica uma aproximação do pensamento social
e Arthur Ramos caíram no erro de tratar a po- da perspectiva de Edison Carneiro, de um viés
pulação de cor como estrangeira, em função de reformista, portanto. Daí a relevância, ainda
não saberem reconhecer como o sincretismo hoje, de voltar aos estudos pioneiros das ciên-
entre as culturas africana, indígena e euroibé- cias sociais para que se desfaça essa rendição
rica vinha propiciando a integração do negro do pensamento social ao reformismo.
na sociedade nacional. Edson Carneiro chegou
mesmo a afirmar que os estudos pioneiros so-
bre fanatismo não deviam acentuar as forças A CONTRIBUIÇÃO DE NINA RODRI-
de oposição entre as classes sociais porque GUES E ARTHUR RAMOS PARA
essa orientação sociologicamente se revelava O ESTUDO DA CONSCIÊNCIA DA
errada na medida em que ela redundava em CAMADA SUBALTERNA
conflitos sociais indesejáveis que dificultavam
a inserção do negro na estrutura social.2 Em se- Em seus estudos sobre fanatismo, Nina
guida, os estudos posteriores sobre messianis- Rodrigues e Arthur Ramos fazem menção ao
mo, sobretudo os de Roger Bastide e de Maria registro da psiquiatria e da psicanálise para re-
Isaura, obedeceram ao fito de elogiar a dinâmi- gistrar fenômeno patológico da possessão, que
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ca social que integrava a população de cor no é peculiar à doença da histeria, como uma das
seio da sociedade nacional. possíveis explicações para as loucuras epidê-
Ainda que as críticas de Edison Carneiro micas que assolavam o interior do país. Não
tenham relevância, sobretudo porque visavam deixaram de revelar, portanto, o conteúdo et-
a impedir que os anseios por justiça social da nográfico que também marcava seus estudos
população de cor ganhassem um conteúdo se- quando consideram que eram os traços ani-
gregacionista,3 é necessário ressaltar que a pre- mista-fetichistas da população rural que de-
2
“Temos de convir que estes estudos não puderam escapar sencadeavam o fanatismo. Daí o interesse das
à sobrecarga emocional que qualquer das questões do ne- ciências sociais, ainda hoje, por suas reflexões.
gro naturalmente traz e, em consequência, em vez de con-
tribuir para a boa solução dos problemas do nosso povo, Vale dizer que, em O animismo fetichis-
estimularam ideias e sentimentos acientíficos e anticientí-
ficos que redundaram na produção de conflitos fictícios e ta dos negros baianos (1935), Nina Rodrigues
indesejáveis” (Carneiro, 1964, p.115).
o negro num cidadão identificado com as vicissitudes de
3
Edson Carneiro fazia alusão às organizações afro-brasilei- nossa gente. Referia-se, principalmente, às manifestações
ras que, pautadas na “precariedade” dos estudos pioneiros segregacionistas que pregavam a supremacia emocional
de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, procuravam fazer jus- do negro em função de reviverem a fórmula norte-ameri-
tiça ao negro, transformando os anseios da população de cana. “Que outra coisa se poderia esperar de quase vinte
cor em exaltação africana. Ele pontuava que, ao fazerem anos de saudosismo, de busca da África, da personalidade
isso, tais organizações dificultavam o processo iniciado cultural do negro, de porquê-me-ufano da contribuição do
com a abolição da escravatura, que vinha transformando escravo?” (Carneiro, 1964, p.116).

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chamou a atenção para o fenômeno da “ilusão popular, era inadmissível a hipótese de fingi-
da catequese”, por considerar que o animismo mento ou de simulação do êxtase.4
fetichista era a base da mentalidade popular, Embora reconhecesse o poder da suges-
sendo essa a explicação para sua propensão a tão, Nina Rodrigues não deixou de considerar
ser acometida por ataques histéricos. Daí ele o estado de possessão como uma espécie de
ter se dedicado a caracterizar as ideias animis- delírio histérico-hipnótico, de delírio monoi-
ta-fetichistas para compreender o fanatismo. deico, que cria um estado sonambúlico espe-
Nina Rodrigues fez referência a certo animis- cial, também chamado por ele de parafrônico,
mo difuso, que atribui a cada ser e a cada coi- distinto do estado sonambúlico ordinário, por-
sa um double, um fantasma, um espírito que é que nele ainda há resistências ou oposições às
independente do corpo no qual faz residência sugestões verbais.5 Isso o levou a concluir que:
momentânea. Foi assim que ele demonstrou “Esta divisão da personalidade que se manifes-
que a religiosidade na camada popular atinge ta no sonâmbulo e no médium é precisamente
quase as raias do politeísmo. o que nós chamamos de histeria porque nela
Nina Rodrigues definiu os povos feti- se encontram todos os fenômenos que se con-
chistas como aqueles para quem os objetos sideram como histéricos.” (Rodrigues, 1935,
são menos Deuses propriamente ditos do que p. 113). A histeria seria, então, decorrência de
certas coisas dotadas de uma virtude divina, uma mentalidade excessivamente supersticio-
como são os oráculos, os amuletos e os talis- sa e imaginativa. E revela também o caráter fi-
mãs preservativos. Os povos fetichistas conce- toetnográfico que orientava seus estudos quan-
beriam Deus como indivisível. Por isso, tais ob- do afirmou a histeria popular como essencial-
jetos não seriam imagens nas quais Deus gosta mente fetichista.6
de habitar e pelos quais ganharia uma forma Essa ideia se torna ainda mais evidente
material. Não seria assim porque Deus não se- em As coletividades anormais (1939), quando
ria obrigado a morar constantemente nesses Nina Rodrigues supôs ser o animismo feti-
objetos; Deus entraria e sairia deles recorren- chista também a principal explicação para os
temente. Por essa razão, para os povos fetichis- fenômenos místicos que ocorriam no interior
tas, os objetos apenas se tornam sagrados por do país. Nina Rodrigues afirmou que a história
intermédio de um sacerdote e por processos de dos cangaceiros do Nordeste repetia a história
encantação e magia. Por essa razão, o pai ou a dos negros fugitivos dos Quilombos. Em fun-

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mãe de santo seria, a um só tempo, pontífice ção disso, ele desenvolve a mesma perspectiva
e feiticeiro. Com essa caracterização, Nina Ro-
4
Em relação à possessão, Nina Rodrigues afirmava: “Do
drigues afirmava que o negro e, por conseguin- que tenho ouvido, dos casos que tenho observado, dos exa-
mes que tenho feito, sou levado a acreditar que os oráculos
te, a camada subalterna, explicava a possessão fetichistas, ou a possessão de santo, não são mais do que
como resultado de uma intervenção do fetiche. estados de sonambulismo provocado, com desdobramento
e substituição de personalidade” (Rodrigues, 1935, p. 109).
Munido do arcabouço teórico da psi- 5
Nina Rodrigues era contundente ao afirmar que a su-
quiatria, Nina Rodrigues não deixou, contudo, gestão não criava o sonambulismo, como não incorria na
anestesia, embora não refutasse a ideia de que ela podia
de supor a possessão como um fenômeno estra- modificava o aspecto exterior do êxtase. É que a prepara-
nho e anormal, como uma alienação passageira, ção moral feita pelo feiticeiro orquestrava as convulsões,
os êxtases do sonâmbulo. Este, ao cair no estado sonambú-
que é decorrente de delírios maníacos furiosos lico, em respeito às vestes, os ornatos que lhe prepararam
o filho de santo, reproduzia a personalidade de seu Deus
ou de ataques histéricos frustros orquestrados ou de seu Santo.
pelos oráculos, por meio da sugestão oral, pelas 6
“O animismo fetichista africano, diluído no fundo su-
persticioso da raça branca e reforçado pelo animismo
injunções sugestivas ou pela música sacra, ou incipiente do aborígene americano, constitui o subsolo
seja, por meio de técnicas que se assemelham ubérrimo de que brotam exuberantes todas as manifesta-
ções ocultistas e religiosas de nossa população. As crenças
com as da moderna hipnose. Interessa ressaltar católicas e as práticas espíritas, a cartomancia, etc., todas
recebem e refletem por igual o influxo da feitiçaria e da
que, para ele, assim como para o pensamento idolatria fetichista do negro” (Rodrigues, 1935, p. 167).

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que orientou suas ilações sobre a vida mística psicológica, na qual predomina o “caráter in-
do negro nos estudos dedicados às “loucuras constante” do índio e do negro, o que explica
epidêmicas” do Sertão. Tal como o negro, o a existência de um comunismo primitivo na
sertanejo era suscetível a uma endoepidemia população rural.8
que se estabelecia por contágio ou imitação. Nina Rodrigues chegou a se perguntar
Em meio às suas inferências retiradas da se não seria esse estado de multidão instalado
psiquiatria, Nina Rodrigues não deixou de re- por um hábil meneur a forma embrionária das
conhecer, entretanto, que o delírio de Antônio multidões organizadas em corporações e em
Conselheiro refletia as condições sociais do meio associações. Mas respondeu negativamente a
em que se organizou. E chegou mesmo a sugerir essa indagação, por supor que o estado gre-
que o delírio psicótico de Antônio Conselheiro gário da humanidade não brota da multidão
possuía uma orientação comunista,7 embora fos- heterogênea anônima. O estado de multidão,
se enfático em dizer que as loucuras epidêmicas que é despertado pelas epidemias de histeria,
não chegaram a dar origem a desmandos ou a seria “evidentemente um estágio de exaltação
atentados contra a propriedade privada.7 passional coletiva onde desaparece o controle
Nina Rodrigues sugeria, então, que o ani- cerebral e com ele a personalidade consciente
mismo fetichista era explicação também para e o discernimento” (Rodrigues, 1939, p. 89).
o comportamento político da camada subalter- Todavia, apesar de adotar a ideia de his-
na. Afinal, a preponderância dessa mentalida- teria para explicar o fanatismo, Nina Rodri-
de na população menos favorecida faria com gues não deixou de reconhecer a possibilidade
que, nas vastas regiões do Sertão, a existência de haver uma bilateralidade no mando exer-
da civilização europeia fosse apenas aparente. cido pelos meneurs. Afinal, a manifestação
O que imperava, no Sertão, era o choque entre epidêmica da loucura também pode se evi-
as tendências para uma organização feudal por dencia com os menés, retificando, emendando
parte da burguesia abastada e as represálias e coordenando o delírio dos meneurs.9 É que
por parte de uma massa popular orientada por a influência dos meneurs sobre os menés, no
um comunismo incipiente. caso da histeria por contato, também pode se
Todavia Nina Rodrigues era assertivo exercer de tal maneira a não fazer desses últi-
também ao afirmar que tal mentalidade im- mos verdadeiros alienados. Esse seria o caso
primia, na massa, o afã de seguir as ordens de mais frequente da psicose coletiva. Para Nina
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um chefe, de um mandão. O fetichismo faria Rodrigues, a alucinação apenas é sintoma de


com que predominassem, no Sertão, os inte- loucura quando é constante e essencial e re-
resses pessoais que, na camada subalterna, se produz integralmente a psicose dos meneurs.
constituem como uma vontade sumaríssima. E Ele chamava a atenção para a ocorrência de
mais: a tournure fetichista dada pela popula- epidemias transitórias de loucura em pessoas
ção às práticas do culto católico faria do nosso 8
Ao atribuir um caráter epidêmico do fanatismo às mani-
povo um povo crédulo e exaltado frente à fal- festações histéricas, Nina Rodrigues afirmou que a men-
talidade sertaneja podia ser explicada pelo fenômeno da
sa persuasão do milagre. Daí viria a carência psicologia das multidões. Todavia não deixou de reconhe-
da população, pela coerência lúcida de uma cer que os delírios epidêmicos que assolavam o interior
do país revelavam um sentimento de surda condenação
loucura “raciocinante”, única capaz, segundo e revolta popular contra as instituições do Império. O es-
cravismo é apontado como a instituição que corrompeu e
Nina Rodrigues, de fazer desaparecer os inte- entibiou os ânimos da população menos favorecida.
resses pessoais para fazer surgir uma unidade 9
Sobre a possibilidade de bilateralidade no mando, Nina
Rodrigues pontuou: “Em primeiro lugar, a existência de
7
“Antônio Conselheiro anormaliza extraordinariamente a um elemento ativo cria o delírio e o impõe à multidão que
vida pacífica das populações agrícolas e criadoras da pro- passa a representar o elemento passivo do contágio. Em-
víncia, destituindo-as de suas ocupações habituais para bora aceitando as ideias delirantes, a multidão reage por
uma vida errante e de comunismo em que os mais abasta- seu turno sobre o elemento ativo, retificando, emendando,
dos cediam de seus recursos em favor dos menos favoreci- coordenando o delírio que só então se torna comum” (Ro-
dos de fortuna” (Rodrigues, 1939, p. 56). drigues, 1939, p. 64).

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normais, como as provocadas pela histeria de indivíduos predispostos também podiam ter
contato e até mesmo pelas paixões humanas, como causas o esgotamento orgânico, a misé-
na quais não há perda de consciência por parte ria e as doenças. Daí ele ter reconhecido que
do elemento passivo. as ideias de classe, com as emoções e paixões
Entretanto ele próprio não via razão que suscitam, também podiam criar essa pre-
alguma para se qualificar de alienação men- disposição em massa e instaurar um violento
tal apenas os casos de longa duração. É que a estado de multidão, conquanto salientasse que
população mestiça era vista por Nina Rodri- as ideias de classe ainda eram incipientes no
gues como constituída de verdadeiros “dege- pensamento popular.
nerados”; daí ela ser considerada como pre- É por apresentar essa preocupação tam-
disposta a ser atingida, em consequência, de bém com os aspectos político-sociais que as
uma loucura imposta, de verdadeiros delírios explicações de Nina Rodrigues sobre fanatis-
vesânicos. Não seria o fanatismo simples casos mo encontraram discípulos que se dispuseram
de hipnose por contato, mas verdadeiros casos a completar as lacunas e a corrigir os erros que
de doença, de loucura epidêmica. Daí ele con- o ensaísta cometera ao endossar o ideal racista
cluir que o estado delirante coletivo de cará- de sua época. É o caso, por exemplo, de Ar-
ter político-religioso constituía um verdadeiro thur Ramos, intelectual que deu continuidade
estado de multidão, que gera uma alienação à metodologia inaugurada por Nina Rodrigues,
nos menés. Portanto, o autor não deixava de mas que a refinou com as atualidades trazidas
revelar os pesados preconceitos de sua época, pela psicanálise e pela antropologia. Arthur
ao supor que o fanatismo tinha sua causa no Ramos substitui a noção de raça pela de cultu-
mestiçamento ou no contato entre civilizações ra e chama a atenção para os aspectos progres-
em graus diversos de evolução social. sistas que existiam no fanatismo quando expli-
Com essa elaboração teórica construída ca o animismo fetichista pela ideia de mana.
também por meio de argumentos retirados da Tal como Nina Rodrigues, Arthur Ramos
psiquiatria, Nina Rodrigues chamou a atenção procurou determinar a influência do negro na
para a existência de uma mentalidade fetichis- vida social brasileira (Ramos, 1934). Como
ta na camada subalterna que explica o fanatis- seu precursor, considerou necessário obser-
mo, ou seja, seus valores comunistas incipien- var as práticas e crenças de sua vida religiosa
tes, bem como sua tendência de seguir cega- e conhecer a estrutura emocional de sua vida

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mente uma liderança com o dom da oratória. coletiva.10 Para tanto, ele procurou desvendar
Revela o tom preconceituoso de sua análise ao as tramas inconscientes do logro e da supers-
considerar que essa predisposição da popula- tição, sem endossar, todavia, os postulados da
ção rural a se alienar diante de um líder elo- inferioridade do negro e a crença de que ele
quente que exalta a falsa persuasão do milagre era incapaz de civilização. Arthur Ramos su-
é compatível com um comportamento patoló- punha que a mentalidade primitiva do negro
gico de histeria, que tinha sua razão última no se explicava por razões psicológicas e não por
mestiçamento de nossa população. razões raciais, podendo ser encontrada em
Nina Rodrigues adere, então, ao ideal qualquer grupo social atrasado em cultura. Por
racista que vigorava na sociedade brasileira isso, abraçou os axiomas da psicanálise e da
no final do século XIX e início do século XX, antropologia em suas análises.
quando afirma que esse tipo de liderança pre- Com essa nova perspectiva, ele não dei-
ferido pelas massas era o resultado, necessaria- 10
Tal como Nina Rodrigues, Arthur Ramos acreditava que
mente de uma alienação, de um rebaixamento “O estudo do sentimento religioso é o melhor caminho para
se penetrar na psicologia de um povo. Leva diretamente a
da consciência. Mas não deixa de admitir que esses estratos profundos do inconsciente coletivo, desven-
dando-nos essa base emocional comum, que é o verdadeiro
as epidemias de loucura que acometiam os dínamo das realizações sociais” (Ramos, 1934, p. 20).

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xará de afirmar, todavia, que as classes subal- ramente o objeto, de representá-lo por meio de
ternas têm um pensamento mágico pré-lógico. aferições intelectuais e cognitivas sem recorrer
Arthur Ramos atesta o paganismo das classes a elementos emocionais. Por ter a necessidade
incultas, endossando a teoria de Nina Rodri- de fundir seres e coisas numa essência comum,
gues de que a catequese aqui foi apenas ilusó- as representações da classe subalterna obedece-
ria. Ele descobrira a adoração do fetiche, em- riam à lei da participação.14 A classe subalterna
bora reconhecesse que já não havia mais, no não conceberia, portanto, a ideia de contradição
Brasil, o fetichismo africano puro de origem.11 entre ser e objeto. “O eu se confunde com o não
O fetiche e os fenômenos de possessão nada eu, onde o microcosmo não se separa do macro-
mais seriam do que a busca pela consciência cosmo, onde o real não conhece limitação com
da presença dos espíritos, pelo contato com a o irreal” (Ramos, 1934, p. 208).
divindade suscitado por meio das várias práti- A lei da participação entre seres e ob-
cas rituais.12 Ainda que reconhecesse a crença jetos faria a classe subalterna ter uma crença
no fetiche, Arthur Ramos, assim como Nina excessiva na onipotência das ideias. Por con-
Rodrigues, atribuiu um caráter patológico ao ta disso, Arthur Ramos estabelece um para-
êxtase, por considera-lo como uma espécie de lelo entre a antropologia e a psicanálise para
delírio histérico coletivo. Ou seja, como seu justificar a ocorrência do fanatismo pelo fe-
precursor, ele também considerou que o fe- nômeno do narcisismo. Também, nessa “fase
nômeno causado pela sugestão incorria numa da evolução sexual, em que a libido se volta
dissociação mental.13 sobre o eu”, o pensamento é fortemente sexua-
Para ele, essas manifestações da perso- lizado, no sentido psicanalítico. Foi assim que
nalidade tinham uma significação regressiva, ele explicou a crença da classe subalterna no
por pertencerem a estratos profundos, arcai- domínio mágico do mundo e a sua convicção
cos. Seriam restos hereditários de um primiti- inconsciente de poder influenciar as forças ex-
vo estado de vida, daquela esfera mágico-cata- teriores pela força dos desejos, das criações do
tímica das reações afetivas. O êxtase decorreria eu. Arthur Ramos chegou mesmo a afirmar que
da crença de que cada coisa, cada ser, possui a população mais pobre não admitia fronteira
um espírito. Por essa razão, tal qual o homem nítida com o objetivo porque faz uma superes-
primitivo, as classes subalternas teriam uma timação do eu, apresentando uma tendência ao
percepção mística que confunde o subjetivo desdobramento da personalidade e à histeria.
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com o objetivo pela projeção que fazem do eu Tal fenômeno seria causado pela crença de que
no ambiente. circula uma realidade essencial entre os seres
Arthur Ramos conclui, então, que a po- e as coisas. É o mana, espécie de realidade mí-
pulação mais pobre era incapaz de conhecer pu- tica, menos representada do que sentida que
não pode, assim como a substância universal
11
“Já vimos que o pai de santo não quer se confundir com
o feiticeiro ou o bruxo. No novo habitat, perdeu seu caráter dos metafísicos, entrar na forma de um concei-
propriamente social, reservando-se as funções sacerdotais
[...]. Vamos assistir à progressiva desafricanização da feiti- to. Essa seria uma força que é deslocável e que
çaria.” (Ramos,1934, p.130).
explica o processo da magia.15 O mana seria
12
Arthur Ramos acreditava que a possessão é uma verda- tudo, então, que possui força; seria tudo que
deira obsessão entre nós, coisa que não se sucedia na Áfri-
ca, onde ela é uma prerrogativa apenas dos feiticeiros ou
de um número reduzido de pessoas. E lembra que a pos-
sessão fetichista, quando acontece de forma espontânea, 14
“A realidade objetiva achar-se-ia assim impregnada de
ou seja, sem decorrer de práticas evocatórias especiais elementos místicos, que o civilizado chamaria de subjeti-
conduzidas pelo pai de santo, como na macumba, chega a vos” (Ramos, 1934, p. 206).
provocar um paroxismo extraordinário. Sendo espontânea
ou não, os fenômenos de possessão provocariam uma fu-
15
Segundo Arthur Ramos, “O mana é expressão da libido
são mística com a divindade. narcisista. Como tal, esse princípio é uma força pessoal
que implica um ato de vontade e de poder. É a posição
13
Arthur Ramos explica que: “A sugestão é a causa da libidinal do primitivo no estado narcísico, pela superesti-
dissociação, a dissociação é a causa da sugestão” (Ramos, mação do poderio do seu pensamento, que explica toda a
1934, p. 189). magia” (Ramos, 1934, p. 284).

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causa admiração, que é extraordinário, mons- A constante eleição de um pai-totem


truoso, como os grandes turbilhões. pela classe subalterna revelaria o poder que o
Para Arthur Ramos, seria justamente o mana possui na mentalidade popular. Foi des-
apego ao animismo-fetichismo ou ao mana sa maneira que Arthur Ramos explicou a prefe-
que faria o pensamento das classes subalter- rência da população pela mudança social, que
nas, no Brasil, estar intimamente ligado a é expressão dos desejos de líderes contumazes
símbolos concretos. No entender da classe po- e que se realiza como decretos. Tal como Nina
pular, assim como na criança, a palavra está Rodrigues, Arthur Ramos deu ao fanatismo um
associada à fase oral-sádica da libido. Isso ex- sentido extremamente negativo em função de
plicaria o grande poder mágico concedido às conferir legitimidade apenas à mudança social
fórmulas verbais pela população. Afinal, para que se executa, destruindo essa ilusão mágica
ela, a palavra é um grande condensador de da vida emocional, substituindo os elementos
símbolos (Ramos, 1972). A linguagem não pos- pré-lógicos da consciência das classes subal-
suiria apenas a função de comunicar o pensa- ternas por elementos mais racionais, compa-
mento: ela cumpriria uma função egotista, por tíveis com a cultura ocidental. Era assim que
estar relacionada às atividades primitivas da Arthur Ramos acreditava que o Brasil alcança-
libido, numa fase em que o ser humano seria ria etapas sociais mais avançadas. E, traçando
um reservatório de tendências, de impulsos um paralelo com a interpretação psicanalítica,
que procuram desordenadamente pela sua má- considerou que tal processo equivalia à passa-
xima realização. gem do narcisismo à completa socialização da
Entretanto, Arthur Ramos adverte que o libido no indivíduo.16
mana não possui apenas uma dimensão nar- Tanto Nina Rodrigues como Arthur Ra-
císica. Ele provém de uma identificação com mos afirmaram, portanto, que a mentalidade
o pai primitivo. É que as cerimônias mágicas animista-fetichista era a explicação para o fato
ou tabus imprimem prescrições ao sistema to- de a população ser constantemente acometida
têmico. Entretanto, ocorre que alguns povos de delírios histéricos. Com esse linguajar de-
primitivos se identificam com o seu totem. masiadamente médico, eles não deixaram de
Disso decorrem os fenômenos de esquizofre- pontuar que o fato de, no pensamento popular,
nia ou a lei da participação, fazendo com que, a palavra estar intimamente ligada à ação, re-
na mentalidade primitiva, a entidade poderosa velava que o fanatismo era a expressão de um

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que se oculta por trás do animal totêmico seja a comunismo incipiente. Entretanto atribuíram
imago paterna. A imago paterna seria símbolo um conteúdo negativo ao fanatismo em função
do irrealizável e, ao mesmo tempo, um impe- de ele implicar a dominação de um meneur, no
rativo categórico. Daí, segundo ele, o fato de o dizer de Nina Rodrigues, ou de um pai-totem
fenômeno do narcisismo, no primitivo, ter sido que maneja o mana à vontade, nas palavras de
reforçado, no sentido de ter dado origem a um Arthur Ramos.
ego narcísico que deseja ultrapassar seu totem. Desse modo, a importante indicação
Essa predisposição faria com que aquele que de que um comunismo incipiente orientava
detém o mana retenha o phalus paterno. Não é a consciência das classes subalternas foi pre-
à toa que, “nas práticas mágicas, o feiticeiro é o terida pela compreensão de Nina Rodrigues e
representante da potência fálica do grupo. Ele Arthur Ramos de que o animismo fetichista,
detém o princípio vital, manejando-o à vonta- ou o mana, faz a mudança social necessaria-
de” (Ramos, 1934, p. 284). Tanto é que, no ritu- mente ser resultante de uma vontade sumária
al mágico-religioso, a dança é a representação
dos movimentos do Deus morto, do pai-totem, 16
“As sociedades valem pelas conquistas progressivas nos
graus de erotização de suas relações, no sentido psicanalí-
como a música primitiva é imitação de sua voz. tico das etapas da libido” (Ramos, 1934, p. 297).

155
NOTAS SOBRE A CONSCIÊNCIA DAS CLASSES SUBALTERNAS ...

(Muniz, 1987).17 Essa compreensão fez o afã Bastide também se valeu dos conhecimentos
por relações sociais e políticas igualitárias ser da psicanálise para discorrer sobre o com-
contingenciado, comprovando a dificuldade portamento político das classes subalternas.
que o pensamento social teve em reconhecer a Em seu livro, Sociologia e psicanálise (1974),
classe subalterna como politicamente subver- os termos da psicanálise ganham um sentido
siva (Queiroz, 2009). mais político, por ele se preocupar em caracte-
A despeito disso, as contribuições teó- rizar a consciência mágica das classes popula-
ricas de Nina Rodrigues e Arthur Ramos são res de acordo com o potencial subversivo que
relevantes porque elas ajudam a evidenciar a ela apresenta.
presença de um viés reformista no pensamen- Roger Bastide parte do pressuposto de
to social. Essa preferência pelo reformismo que Freud concede uma importância salutar
pode ser demonstrada, entre outras maneiras, à sociedade na vida psíquica do indivíduo,
pelos estudos posteriores de Roger Bastide e chegando a afirmar que havia, na psicanálise,
Maria Isaura Pereira de Queiroz, autores que fundamentos sociológicos precípuos. Embora
deram uma significação ao mana mais próxi- a psicanálise fosse a redescoberta dos dramas
ma da dádiva. da infância perdida e do inconsciente, Bastide
supôs que Freud não deriva totalmente a so-
ciabilidade da libido ou do princípio de prazer
A CONTRIBUIÇÃO DE ROGER BAS- pelo fato de retratar o instinto social que todo
TIDE E MARIA ISAURA PEREIRA DE adulto apresenta como algo que se forma com
QUEIROZ PARA O ESTUDO DO a dessexualização da libido. A contribuição da
MESSIANISMO psicanálise seria fazer da sociedade não ape-
nas uma força inibidora da libido; ela também
A despeito de caracterizar o fanatis- seria constituinte do indivíduo por indicar o
mo como uma patologia, Nina Rodrigues não modo como a nossa força psíquica deve se ex-
deixou de reconhecer que a mentalidade ani- travasar. Em decorrência disso, a sublimação é
mista-fetichista fazia surgir um comunismo tida por Bastide como uma verdadeira contri-
incipiente na população mais pobre. Arthur buição oferecida pela sociedade à constituição
Ramos, por sua vez, refinou a metodologia de do indivíduo.18
Nina Rodrigues, ao se valer da noção de mana Entretanto, Bastide admite que nem
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para acentuar a presença de um agir subver- sempre o princípio do prazer se vê assim im-
sivo no mundo rural. A preocupação em de- pregnado por um princípio de realidade que
terminar a função social que o agir político da o canaliza e o dirige a certas direções. Pode
classe subalterna desempenha na mudança so- acontecer também o inverso: o princípio de
cial também marcou os estudos de Roger Bas- realidade estar subsumido ao princípio de pra-
tide e Maria Isaura, embora eles tenham dado zer, deixando se orientar por ele. Esse seria o
preferência ao saber sociológico, marcando chamado estágio da onipotência mágica aluci-
sua discordância em relação à abordagem mais 18
Bastide compreende que o princípio de prazer ou a libido
compele o indivíduo a evitar a dor e a satisfazer todos seus
etnográfica que orientava os primeiros estudos desejos. Contudo a sociedade imporia duras realidades ao
sobre fanatismo. indivíduo, que seria forçado a se adaptar constantemente
ao meio que o cerca para não ter seus desejos neurosados.
Em respeito à tradição ensaísta, Roger O autor chama a atenção para a sublimação, processo que
oferece a possibilidade de unificação do princípio de pra-
17
Em, Canudos: a guerra social, Edmundo Muniz também zer com o princípio de realidade. Seria pela sublimação
caracteriza o comunismo popular como intuitivo, por no- que a libido iria de encontro às coerções da sociedade,
tar a presença de utopias na mentalidade das classes su- sendo descartada pela censura e inibida e rejeitada para o
balternas. Segundo ele, a população mais pobre se guiaria inconsciente. Contudo, a sublimação não implicaria ape-
por preceitos igualitários herdados do cristianismo primi- nas isso: seria também uma solução para o conflito entre
tivo e pelas ideias de Tomás Moro, autor que difundiu o as forças repressivas e as forças reprimidas, na medida em
utopismo de uma sociedade igualitária, no imaginário po- que permite que a energia dessas últimas seja direcionada
pular (Muniz, op. Cit.). para outros objetivos (Bastide, op. cit.).

156
Dora Vianna Vasconcellos

natória, fase na qual não se faz distinção entre rodeados de tabus que impedem a posse pes-
o mundo subjetivo e objetivo, entre os laços do soal de riqueza. Isso levou Bastide a ponderar
eu e do não eu e na qual a libido procura por que, para que o capitalismo pudesse nascer, foi
sua máxima realização.19 Daí os objetos pare- necessário que o ouro e a prata perdessem o
cerem dotados de vida e de um poder divino. seu valor mágico. Daí ele concluir que, “embo-
Com essa apropriação da psicanálise, ra a fase anal da humanidade seja primitiva, o
Bastide afirma que o narcisismo da fase da oni- capitalismo não o pode ser” (Bastide, 1974, p.
potência mágica explica a mentalidade primiti- 112). O tabu dos metais preciosos criaria, nas
va e também o fetichismo da camada subalter- sociedades primitivas, um comunismo original
na. Segundo ele, nesse estágio da humanidade, em função de os ímpetos da fase oral ainda pre-
a inteligência se encontra dominada pela afeti- dominarem sobre a fase anal.
vidade. “O subjetivo funde-se com o objetivo; As conclusões de Bastide aparentemen-
a intensidade extrema dos desejos acarreta a te são congruentes com as de Nina Rodrigues,
crença na sua realização. O gesto e a palavra embora expliquem a crença no fetiche em no-
são dotados de eficácia própria. Eis a base da vos termos. Na realidade, ele supunha que o
magia” (Bastide, 1974, p. 46). A fase da onipo- capitalismo pode se desenvolver por meio da
tência mágica seria o período da crença na oni- regressão da libido da fase genital para a anal.
potência dos desejos, por estar a libido altamen- Quando é assim, a deserotização das relações
te sexualizada (afinal, o princípio de realidade econômicas nunca é completa. É assim que ele
se encontra subjugado ao princípio de prazer). explica o fato de o capitalismo moderno, com
Bastide traça um paralelo entre o proces- todo seu séquito de luta de classes, apresentar
so de deslocamentos da libido vivido pelo indi- um componente sádico-masoquista nas rela-
víduo e o surgimento do capitalismo. Se a ma- ções econômicas, que é uma orientação típica
turidade acontece no indivíduo à medida em da fase anal da libido.21 Talvez Bastide consi-
que ocorrem as transferências da libido para derasse ser esse o caso da sociedade brasileira,
objetos secundários até a fase genital, o capita- pelo fato de a classe subalterna se guiar por
lismo também se desenvolveria com a progres- preceitos mágicos ainda, a despeito de estar
siva deserotização das relações econômicas. inserida numa sociedade capitalista. Portanto,
Bastide tinha como referência o fato de que, na na contracorrente dos estudos pioneiros sobre
criança, a fase oral é substituída pela fase anal, fanatismo, Bastide negou que a mentalidade

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estágio associado à atividade de acúmulo ca- animista-fetichista revelasse a existência de
pitalista, por ser nesse momento que a criança um comunismo popular.
aprende a ter controle sobre suas necessidades. Segundo Bastide, para que houvesse a
Seriam essas as primeiras economias do indi- superação do componente sádico-masoquista
víduo.20 Todavia, na fase anal, por ser uma fase nas representações populares, era necessário,
primitiva da libido, o ouro e a prata, que são tal como acontece no indivíduo, que a libido
sublimações dos excrementos, ainda se reves- fosse deslocada pelas sublimações; que ocor-
tem de um valor mágico. Os bens ainda estão resse a deserotização das relações econômicas,
portanto. Essas observações sugerem haver um
19
Segundo Bastide, o estágio da onipotência mágica é pa- conteúdo de ordem econômico-política nas
ralelo à fase na qual a criança, desejosa de voltar à felici-
dade do ventre materno, chora e berra na expectativa de observações psicanalíticas de Bastide.
conseguir satisfazer o desejo de voltar a fundir-se com a
mãe. Procedendo dessa maneira, a criança obtém a aten-
21
Segundo Bastide, para que houvesse a superação do
ção da mãe e é, por isso, levada a crer que dispõe de um componente sádico-masoquista nas representações popu-
poder mágico capaz de assegurar a satisfação de todos os lares, eram necessários, tal como acontece no indivíduo,
seus desejos (Bastide, ibidem). os deslocamentos da libido pelas sublimações; e ainda era
necessário que ocorresse a deserotização das relações eco-
20
Bastide lembra que, para a psicanalise, nos sonhos e nos nômicas. Essas observações sugerem haver um conteúdo
mitos, o ouro sempre se constitui como um símbolo que é de ordem econômico-política nas observações psicanalí-
substituto das matérias fecais (Bastide, ibidem). ticas de Bastide.

157
NOTAS SOBRE A CONSCIÊNCIA DAS CLASSES SUBALTERNAS ...

Desse modo, Bastide imprime um sen- afro-brasileiros, com seus rituais de prestação
tido político a seus escritos, diverso do de e contraprestação entre os humanos e os deu-
Arthur Ramos, divisando o que seriam duas ses, manteriam estáveis o equilíbrio das forças
tomadas de opinião divergentes quanto aos cósmicas, evitando a crença no apocalipse que
princípios que orientam a classe subalterna. guiava os indígenas. Na realidade, Bastide afir-
Se Arthur Ramos era assertivo ao afirmar que mava a mentalidade afro-brasileira como refra-
a população se encontrava na fase oral da li- tária à mentalidade animista-fetichista.23
bido, Bastide não tinha tanta certeza quanto a Essas ponderações não impediram Bas-
isso, chegando mesmo a sugerir que o capita- tide de reconhecer que o princípio de parti-
lismo mundial vinha se consolidado por meio cipação, descrito por Arthur Ramos por meio
de uma regressão da libido da fase genital para do mana, de fato, orienta a classe subalterna.
a anal. Embora Bastide seguisse as mesmas tri- Mas ele descobrira que, ao lado do princípio
lhas dos seus antecessores, ele não situava a de participação, havia o de cisão.24 O princípio
camada subalterna na fase oral, portanto. de cisão permitiria que a população dividisse
Roger Bastide sumariza assim as três fa- o mundo em compartimentos, o que compro-
ses da libido: a fase animista corresponde ao va que as ligações místicas entre as coisas e
narcisismo; a fase religiosa, ao estágio de objeti- as pessoas, estabelecidas pela lei da participa-
vação, caracterizada pela fixação da libido nos ção, não se faziam ao sabor do acaso na sua
pais; e a fase científica, que encontra seu parale- consciência (Queiroz, 1983).25 Bastide refuta,
lo no estágio de maturidade, que se caracteriza então, as interpretações de Nina Rodrigues e
pela renúncia à busca do prazer e pela escolha de Arthur Ramos de que a classe subalterna
de um objeto que é exterior às exigências e con- se guiava por uma percepção mítica, que con-
veniências da libido. Essa seria, para ele, a lei funde o subjetivo com o objetivo, pela proje-
dos três estágios de Freud (Bastide, ibidem). ção que faz do eu no ambiente. A lógica dos
E mais: para ele, o messianismo brasi- afro-brasileiros não seria totalmente distinta
leiro não tinha suas raízes nos traços africanos da lógica dos ocidentais porque, em meio às
da cultura popular. O autor era enfático ao afir- 23
Para Bastide, o messianismo apenas se desenvolve quan-
mar que a busca pelo paraíso perdido era um do há concorrência pelos postos de comando da socieda-
de. Com efeito, para ele, o paternalismo brasileiro instituiu
apanágio das populações caboclas do interior relações inter-humanas continuas e afetuosas entre domi-
nantes e dominados e vias de ascensão social pelo apadri-
do país (Bastide, 1958).22 E restringiu o afã por nhamento, evitando o conflito entre as camadas sociais.
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generalizações da tradição ensaísta ao sugerir Essa opinião o levou a afirmar que “Le ressentiment pos-
sible du noir est donc brisé par le fait que la barrière n’est
que a crença messiânica, para existir, precisa jamais fermée et que cette barrière même fait de’amour
et nom de haine” (Bastide, idem) E conclui que, “pour
dar vazão aos ressentimentos de classe. qu’um messianisme nègre trionphe, il faut qu’um régime
de concurrence raciale apparaisse et il faut que le noir ait
Bastide argumenta que, mesmo no espi- l’impression que cette concurrence ne joue pas librement
ritismo da umbanda, onde os ressentimentos – qu’une barrière légale l’impêche de fonctionnner, regi-
mes de castes, statut colonial, etc.” (Bastide, idem). Em
de classe ganham representação com as des- concordância com M. Balandier, Bastide indicou que o
messianismo é uma forma de protesto anticolonialista. No
cidas fulminantes de santos, não se podem Brasil, por conta do paternalismo, não teria se instalado
uma situação colonial típica, por isso a ausência do mes-
perceber os germes do messianismo. Essas sianismo negro no país.
práticas religiosas seriam muito heterogê- 24
Dizia Bastide, em relação ao mana: “Nous voudrions
neas, apresentando mais a tendência a orga- aujurd’hui em souligner um aspect nouveaux” (Bastide,
1958, p. 493).
nizar igrejas multirraciais do que a criar um 25
Arthur Ramos definiu o mana pelo princípio de partici-
movimento reivindicatório messiânico. Os pação, sugerindo que a classe subalterna tem uma tendên-
cia a misturar seres e objetos numa mesma força mística.
Bastide, de forma análoga, sugeriu que a participação obe-
22
A análise de Bastide torna-se ambígua quando ele re- decia à lógica da adição, porque ela convertia indefinida-
conhece que a prática econômica dos sertanejos não era mente os valores objetivos em subjetivos (Bastide, 1960).
distinta da dos escravos. Sendo assim, ele mesmo notara Mas, em meio às participações, ele descobrira também a
que, do ponto de vista sociológico, era para ter havido um presença das cisões que devolviam às coisas sua objetivi-
messianismo negro no país (Bastide, 1958). dade (Bastide, 1958).

158
Dora Vianna Vasconcellos

participações, havia as cisões (Bastide, 2011). fetiche origina (Gurvitch, 1987). Para ele, as
Em termos mais sociológicos, o princípio de classes sociais não se relacionam segundo uma
cisão comprovava que a mentalidade popular dialética de oposição, mas por meio de uma
se forma tendo os ditames dos quadros insti- dialética de complementaridade. Daí as trans-
tucionais capitalistas da sociedade brasileira formações históricas, no Brasil, não seguirem
como parâmetro (Bastide, 2006). o ritmo da luta de classes, mas o das pequenas
Bastide nega, então, que o fetichismo disjunções (Bastide, 1994).
africano dota indistintamente as coisas de uma Roger Bastide inaugura, então, uma ver-
força mística ou que seria um tipo de pensa- tente intelectual nova nas ciências sociais bra-
mento típico de uma libido altamente sexuali- sileiras, ao sugerir que o fetichismo não era,
zada, que anseia pela sua máxima realização. então, uma forma de sentir e de ver que se
Pelo contrário, o africanismo popular seria pauta num comunismo incipiente. Para ele, ao
proveniente de uma libido que subsume o contrário, seria uma mentalidade que impede
princípio de prazer ao princípio de realidade, o capitalismo brasileiro de cometer os mesmos
sendo uma forma de ver e sentir já deserotiza- vícios dos países de capitalismo avançado,
da pela sublimação. Desse modo, na contracor- e que padece com o excessivo egoísmo das
rente de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos, classes dominantes, na medida em que faz as
Bastide assevera que a crença no fetiche não classes subalternas se identificarem, em certa
traduz a busca pelos grandes turbilhões; era, medida, com o ideal de lucro (Bastide, 2006).
quando muito, um anseio de solução para o Desse modo, Bastide, em vez de referendar as
conflito que se estabelece entre as forças da conclusões de Nina Rodrigues e de Arthur Ra-
libido e as forças da realidade, por meio do mos, afirma que a classe subalterna obedece a
desvio da energia pulsional para objetivos que uma lógica capitalista sui generis.
estivessem mais de acordo com o capitalismo. Maria Isaura Pereira de Queiroz também
O fetichismo seria uma crença pautada se preocupou em saber que tipo de anseio a
pela lógica capitalista, estando, portanto, de busca pela terra sem males gerava na camada
acordo com dinâmica social brasileira, na qual subalterna, se o dos grandes turbilhões ou se
não há conflitos dialéticos entre as classes so- o das pequenas disjunções. Tal como Bastide,
ciais (Bastide, 1960). É que o princípio de ci- não relacionou a espera messiânica aos tra-
são, ao devolver a objetividade às coisas, fazia ços africanos na cultura popular, por afirmar

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nascer um procedimento operatório comum o messianismo como uma tradição cabocla
entre a consciência das classes subalternas e (Queiroz, 1972), mas inovou em relação a seu
a consciência da classe dominante, tornando mestre quando deu ao mana um novo estatuto
possível o surgimento de um ideal aliancista teórico, por preferir traduzi-lo por meio da dá-
entre elas. A noção de sagrado das religiões diva (Queiroz, 1976a).
africanas não seria um reflexo das contradi- Ao observar os meios e modos de vida
ções econômicas; pelo contrário, é uma força do campesinato brasileiro, Maria Isaura reco-
que transcende o social. nhece que as populações do interior são mes-
Bastide deixa transparecer, então, a in- siânicas, mas acentua que a crença messiâni-
fluência de Durkheim em seu pensamento, ca está orientada pela lógica do dom e contra
quando supõe que o capitalismo brasileiro se dom ou da reciprocidade de favores (Queiroz,
constitui por meio de uma dinâmica aliancista 1976b), fazendo uma clara remissão à obra de
entre as classes sociais (Ortiz, 1989). Pauta-se, Marcel Mauss (Mauss, 2003). Maurice Gode-
também, no conceito de dialética de Georges lier observa que Mauss foi um dos primeiros a
Gurvitch, para explicar, em termos mais so- compreender o mana pelo ideal de reciproci-
ciológicos, a dinâmica social que a crença no dade de favores. Ele notou a recusa de Mauss

159
NOTAS SOBRE A CONSCIÊNCIA DAS CLASSES SUBALTERNAS ...

em reconhecer a existência de princípios co- suscitar, todavia, uma crítica ao capitalismo.


munistas na dádiva, por afirma-la como uma À exemplo de Bastide, Maria Isaura também
moral não contrária ao princípio de proprieda- julga que o surgimento de um ideal aliancista
de privada (Godelier, 2001). O mesmo se pode entre as classes sociais foi fundamental para
dizer de Maria Isaura. que os conflitos sociais da sociedade brasileira
É que a autora notara ser a prática do pudessem ser neutralizados. Com essa inter-
ajutório ou do mutirão fundamental para se pretação, ela não deixa de realçar também o
explicar o messianismo, uma vez que ela im- tipo de mudança social que achava mais fac-
põe a necessidade de retribuição do favor al- tível para a sociedade brasileira: aquela que se
cançado entre os camponeses. Desse modo, foi situa a meio do caminho entre o ordinário e o
por meio da teoria do dom e contra dom que extraordinário, marcando sua preferência pelo
Maria Isaura relacionou o messianismo à so- caminho das pequenas disjunções.
ciabilidade rústica, traduzindo o anseio cam- Importa assinalar que Maria Isaura não
pesino em termos teóricos mais sociológicos,26 fazia distinção entre o messianismo reformista
segundo o paradigma da reforma e da revolu- e o messianismo revolucionário. Afinal, para
ção (Queiroz, 1969). ela, também o messianismo revolucionário
A socióloga supõe que o ideal de ajuda não rompe com o tempo cíclico, embora obe-
mútua das comunidades messiânicas possui deça a uma noção de tempo linear. Por estar
um teor reformista porque não rompe, de todo, baseado em preceitos pessoais, o messianismo
com a lógica capitalista. É que as relações cam- revolucionário, mesmo seguindo uma orienta-
pesinas de compadrio se estendem de alto a ção contrária à lógica capitalista, não permi-
baixo da hierarquia social, dando origem a clãs te que a estrutura social seja questionada em
familiares assimétricos ou a parentelas. Em seus fundamentos. Maria Isaura não deixou de
função de a comunidade messiânica repetir a notar, entretanto, que o messianismo revolu-
lógica propagada no interior dos clãs familia- cionário impede o camponês de se inserir na
res assimétricos, Maria Isaura afirma as paren- sociedade capitalista, ao passo que o messia-
telas como verdadeiros fatos sociais totais. Em nismo reformista, por ser uma forma de pro-
termos mais políticos, a lógica da reciprocida- testo menos subversiva, propicia a participa-
de fazia nascer uma moral social comum entre ção dos camponeses nela. Foi assim que Maria
as classes sociais, impedindo que se instalasse Isaura explicou sua preferência pelo messia-
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uma polarização entre as classes sociais. nismo reformista.


Todavia, Maria Isaura percebe que o Desse modo, Maria Isaura repete a pers-
ideal de ajuda mútua, justamente por ser um pectiva de Bastide, embora dê ao mana uma
fato social total, impunha a necessidade de acepção mais sociológica quando o interpreta
retribuição do favor alcançado, mesmo para pela lógica da dádiva. Por meio dessa pers-
os fazendeiros, abrindo possibilidade para pectiva, Maria Isaura pôde corrigir o erro dos
que a camada subalterna pudesse barganhar primeiros estudos, ao afirmar que o messia-
seu voto. Sua crença era a de que a lógica da nismo não é fruto de uma liderança contumaz
reciprocidade dos favores, por fazer nascer e eloquente. Para ela, o ideal de ajuda mútua
uma moral social comum no meio rural, im- campesino, por ser correlato à lógica das pa-
primia mais justiça às relações de mando, sem rentelas, tornou possível a barganha política
26
De certo modo, Bastide já havia percebido a existência no mundo rural. Ao afirmar a existência de
de uma sociabilidade fundada no ideal da ajuda mútua de
origem africana quando destaca que os terreiros de can- uma bilateralidade nas relações de mando, o
domblé formavam uma espécie de comunidade axiológica grande mérito da sociologia de Maria Isaura foi
(Bastide, 1974). Mas é apenas com Maria Isaura que a prá-
tica da ajuda mútua ganha notoriedade, permitindo que os o de dar ao messianismo um novo estatuto teó-
estudos sobre a consciência da classe subalterna ganhem
um enfoque mais sociológico. rico. Afinal, a socióloga foi uma das primeiras

160
Dora Vianna Vasconcellos

a reconhecer o campesinato brasileiro como imprescindíveis para essa mudança de para-


politicamente ativo. digma (Botelho, 2007).
Todavia, se por meio da dádiva, Maria Todavia, neste estudo, ficou sugerida a
Isaura recusa o prognóstico fatalista dos estu- ideia de que já havia, nos primeiros ensaios
dos de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos, ela sobre o fanatismo, a indicação da existência de
consolida a ideia de que o messianismo brasi- um comunismo incipiente na população. To-
leiro é reformista. Para ela, a busca pela me- davia essa descoberta foi preterida em função
lhoria de vida campesina está em consonância de o mana ter sido associado a um tipo de li-
com a dinâmica capitalista; o messianismo se- derança que se exerce sumariamente. Ao mes-
ria um meio encontrado pela classe subalterna mo tempo, foi salientado que, se o mérito dos
de se inserir no sistema produtivo mercantil estudos posteriores de Roger Bastide e Maria
sem que se instalasse uma polarização dialéti- Isaura foi o de refutar essa ideia, não se pode
ca entre as classes sociais.27 esquecer que a correção foi feita consolidando
Com a recusa do axioma mais importan- a interpretação de que o agir das classes subal-
te deixado pelos primeiros estudiosos do tema ternas é reformista. É que, segundo eles, a bi-
– a indicação de que o mana contém princí- lateralidade nas relações de mando comprova
pios comunistas incipientes –, predominou, que a comunidade messiânica obedece à lógi-
no pensamento social, a ideia de que a classe ca capitalista. A exemplo de Edison Carneiro,
subalterna segue uma orientação reformista. Bastide e Maria Isaura preferem enaltecer a di-
Os estudos de Roger Bastide e Maria Isaura nâmica social acomodatícia que incorpora os
ajudam a evidenciar a presença desse viés no indivíduos subalternos, sem alterar a estrutura
pensamento social. social capitalista, do que ressaltar os princí-
pios subversivos que existem na consciência
política popular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Vale dizer que Eric Hobsbawn, em seu
livro Rebeldes Primitivos (1983), notou a pre-
Pode-se dizer que existe, no pensamen- sença de preceitos comunistas nos movimen-
to social brasileiro, a tendência a representar a tos messiânicos latino-americanos, inclusive
sociedade brasileira como se ela fosse um todo os brasileiros. A exemplo do que diziam os
monolítico, sem conflitos significativos entre estudos pioneiros brasileiros sobre o tema, as

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 149-163, Jan./Abr. 2019


as classes sociais (Wegner, op. cit.). Essa in- agitações sociais espontâneas, segundo ele,
terpretação se consolidou com a consagração possuíam um caráter epidêmico e não endêmi-
da interpretação de Gilberto Freyre de que a co, como supôs o pensamento social. Segundo
dinâmica social brasileira obedece a uma lógi- Hobsbawn, havia, no milenarismo, a esperan-
ca acomodatícia (Corrêa, 1981; Freyre, 2001). ça de mudança total na ordem, e a proposta de
A existência desse viés torna-se ainda mais derrocada da autoridade constituída. Embora
perceptível quando se toma como referência seja caracterizado como espécie de rebelião
os estudos sobre a consciência das classes su- primitiva, o milenarismo apresenta um caráter
balternas no país. Vale notar que somente na revolucionário proeminente: representa a von-
década de 1950 as populações mais pobres do tade política que acredita na chegada do co-
interior foram reconhecidas como ativas poli- munismo sem a consolidação de uma primeira
ticamente (Queiroz, 2009). As obras de Roger etapa capitalista industrial. Por ter essa orien-
Bastide e Maria Isaura têm sido consideradas tação, o milenarismo seria um elemento facili-
27
Maria Isaura, tal como Bastide, também endossou a ideia
tador da propagação das ideologias comunis-
de que podia surgir uma dialética de complementaridade tas modernas América Latina e do surgimento
entre as classes sociais (Queiroz, 1978). Foi com essa noção
que Maria Isaura explicou o dinamismo social brasileiro. de formas alternativas de revolução.

161
NOTAS SOBRE A CONSCIÊNCIA DAS CLASSES SUBALTERNAS ...

Todavia Hobsbawn também cai no erro BOTELHO, A. Sequências de uma sociologia política
brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007.
de vincular os movimentos milenaristas ao
CARNEIRO, E. Antologia do negro brasileiro: de Joaquim
surgimento de líderes deificados ou de caudi- Nabuco a Jorge Amado. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
lhos demagogos, o que, para ele, comprovava ______. Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.
o teor primitivista dessas manifestações. Mas
CARVALHO, L. C. Transição e tradição: mundo rústico e
isso não o impediu de reconhecer a possibi- mudança social na sociologia de Maria Isaura Pereira de
Queiroz. 2010. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –
lidade de esses movimentos originarem uma Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
consciência política de tipo moderna. Com Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2010.

isso, ele pontuava que as revoluções sociais CÔRREA, M. Repensando a família patriarcal brasileira.
Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 37, p. 5-6, maio 1981.
podem seguir um caminho não ortodoxo, di- FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro:
fícil de ser classificado segundo as categorias Record, 2001.
que descrevem os movimentos revolucioná- GODELIER, M. O enigma do dom. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
rios europeus clássicos. Daí ele reivindicar a
GURVITCH, G. Dialética e Sociologia. São Paulo: Vértice;
importância de classificações alternativas que Editora Revista dos Tribunais, 1987.
não se pautem em ideias e movimentos sociais HOBSBAWN, E. Rebeldes primitivos: estúdio sobre las
formas arcaicas de los movimentos sociales em los siglos
importados (Hobsbawn, 1983). XIX y XX. Barcelona: Editorial Ariel S. A., 1983.
É preciso que a hipótese de que a lide- MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca
nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naif, 2003.
rança messiânica comporta algum grau de bi-
MUNIZ, A guerra social de canudos. Rio de Janeiro:
lateralidade seja reconhecida sem o arrefeci- Civilização Brasileira, 1978.
mento do ideal comunista igualitarista campe- ORTIZ, R. Durkheim: arquiteto e herói fundador. Revista
sino por parte do pensamento social. Por essa Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo v. 4, n.11, p.5-22,
out. 1989.
razão, a retomada dos primeiros estudos bra- QUEIROZ, M. I. P. de O campesinato brasileiro. Petrópolis:
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Dora Vianna Vasconcellos

NOTES ON THE CONSCIENCE OF SUBALTERN NOTES SUR LA CONSCIENCE DES CLASSES


CLASSES IN SOME BRAZILIAN STUDIES SUBALTERNES DANS CERTAINSETUDES
BRESILIENS

Dora Vianna Vasconcellos Dora Vianna Vasconcellos

The article emphasizes the importance of some L´article met en evidence l’importance de certains
studies dedicated to understand the subaltern classes études qui se dediquent à comprendre l’actuation
performance through the analysis of fanaticism or politique des classes subalternes à travers de l’analyse
the messianism phenomena. That can be noticed du phénomène du fanatisme ou messianisme. C’est
on pioneer essays of Nina Rodrigues and Arthur cella qui on peut retrouver dans des essais pionniers
Ramos, and in the sociological analysis of Roger de Nina Rodrigues et de Arthur Ramos, et dans les
Bastide and Maria Isaura Pereira de Queiroz. With analyses sociologiques de Roger Bastide et Maria
the passage from essay to sociology, the explanation Isaura Pereira de Queiroz. On observe qui, avec
of messianism was consolidated by the notion of la passage du essai à la sociologie, se consolide la
mana. This new perspective enable us to elaborate explication de la croyance messianique par la notion
another interpretation of the political aspirations of demana. Avec cette nouvelle perspective s`elabore
subaltern classes, as well as the leadership that they une nouvelle intérpretation sur les aspirations de la
allow to be subjected. classe subalterne, aussi qu’une compreension de la
leadership à laquelle cette classe se conforme.

Key-words: Conscience of subaltern classes. Mots-clés: Conscience de la classe subalterne.


Messianism. Brazilian social thought. Sociology. Messianisme. Pensée socialle brésilienne. Sociologie.

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 149-163, Jan./Abr. 2019

Dora Vianna Vasconcellos - Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em


Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Trabalha com temas relacionados a mudança social, desenvolvendo pesquisas na área da
teoria social, do pensamento social brasileiro e da literatura. Publicação recente: O imaginário como algo
inimaginável: a sociologia rez de chausée de Roger Bastide. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. v 49,
p. 1-30, 2018.

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