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Curso de Especialização UNIAFRO: Promoção da Igualdade Racial na Escola


Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – Departamento de Letras – Instituto de Ciências Humanas e Sociais –
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP/MG)

III MÓDULO – O Negro: Artes, Língua e Literatura

UNIDADE IX

A Escrita Insubmissa das Mulheres Negras

Ricardo Riso1

Janeiro/2015

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Nome de Ricardo Silva Ramos de Souza (1974). Mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ). Graduação em Letras
(UNESA/RJ). Com José Henrique de Freitas Santos organizou “Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na
encruzilhada brasileira” (Kitabu Editora, 2013). Autor do blog Riso – sonhos não envelhecem - <http://ricardoriso.blogspot.com>. E-
mail: risoatelie@gmail.com
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“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar
os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.”
(CONCEIÇÃO EVARISTO)

Começaremos com uma provocação: o que há hoje de mais interessante na literatura


brasileira encontra-se na produção textual das mulheres negras. Vivenciamos na segunda
década deste século XXI momento único de efervescência, tessitura, circulação e visibilidade
da autoria feminina negra brasileira. Ainda que essa produção não apareça nos grandes meios
literários, o que corresponde à representação das mulheres negras na sociedade brasileira,
que, além de sofrerem os males do racismo (branco x negro) ainda enfrentam diariamente a
opressão sexista e de gênero (homem negro x mulher negra), assim como a de classe, pois as
mulheres negras estão, em sua maioria, nas camadas mais pobres de nossa sociedade.
Importante frisar que no movimento feminista as mulheres negras nem sempre encontram
espaços para suas reivindicações, conforme relata Caldwell:
Em 1979, durante o Encontro Nacional de Mulheres, Lélia Gonzalez elaborou
um ensaio em que “apontava para a existência de divisão racial no movimento
de mulheres brasileiras e afirmava que a cumplicidade das mulheres brancas
no que se referia à dominação racial gerava nestas uma relutância em
reconhecer o racismo como um problema. Suas críticas são particularmente
singulares e representam um rompimento, já que elas apontam para o privilégio
racial das mulheres brancas sugerindo que estas se beneficiam das
construções hegemônicas de raça no país. Gonzalez foi mais além, e criticou
as ativistas do movimento de mulheres por ignorarem a exploração sexual
vivida pelas mulheres negras, principalmente no que se refere àquelas que
trabalham no serviço doméstico. Por fim, a autora chamou a atenção para a
necessidade de uma análise que considerasse a inter-relação entre raça,
gênero e classe. (CALDWELL, 2010)

A partir dessas questões podemos inferir que a ausência de escritoras negras no


cânone literário brasileiro está muito além do abstrato “valor estético”, mas sim concomitante à
representação das mulheres negras na vida social brasileira. Ter consciência das intersecções2
desse processo de exclusão da mulher negra contribui para o melhor entendimento dessas
lutas e de como são amplas as atuações das ativistas e escritoras negras. Sueli Carneiro
expõe a dupla militância dessas mulheres:
O casamento entre racismo e sexismo contra as mulheres negras e a ausência
de solidariedade entre algumas das feministas e ativistas negras têm revelado
que as vitórias do movimento de mulheres acabam beneficiando as mulheres
brancas e, por outro lado, as vitórias do movimento negro tendem a beneficiar
os homens negros. Isto tem imposto uma dupla militância para as mulheres
negras: a partir de suas próprias perspectivas, elas devem engajar-se nas
causas tanto do movimento negro quando do movimento de mulheres. Porém,
para que a dupla militância possa ser significativa, elas precisam criar suas
próprias organizações de mulheres negras independentes com o intuito de
constituir-se elas mesmas enquanto forças políticas capazes de dialogar em
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Interseccionalidade segundo Kimberle Crenshaw é: uma conceituação do problema que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o
racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento. (SILVA, 2013, p. 110)
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condições iguais com outros movimentos e instituições sociais. A construção


das mulheres negras enquanto novos atores sociais tem demandado
criatividade no sentido de demarcar uma identidade política que dialoga tanto
do ponto de vista das questões das mulheres quanto das questões dos negros
(CARNEIRO, 1999, p. 224).

A respeito da não contemplação da mulher negra no movimento feminista, a escritora e


ensaísta Miriam Alves afirma que:
as lutas e reivindicações femininas conquistaram alguns patamares do direito
de cidadania plena, mas não consideraram as questões de raça,
consequentemente de preconceito e discriminações, como também das
desigualdades entre classes sociais.(...)
A militância feminista negra se distinguiu das bandeiras que impulsionaram o
chamado movimento feminista brasileiro, pois para ela seriam outros os
obstáculos a superar, em oposição à mentalidade de muitas mulheres brancas
para as quais o conceito da feminilidade estava relacionada à brancura e à
pureza, as quais não contemplavam as mulheres negras que tinham (e têm)
que se desvencilhar de uma variedade de estigmas que correlacionam a cor e
a trajetória histórica com inferioridade (...) (ALVES, 2010, p. 60-61).

Alves complementa que uma das lutas do movimento feminista era com a ruptura da
imagem da mulher dona-de-casa, frágil e dedicada ao bem-estar da família, reivindicando
outros papéis na esfera pública e a participação no mercado de trabalho. Sendo assim:
Torna-se compreensível porque a questão de identidade racial não fez parte do
agenciamento feminista e não abrangeu a totalidade de mulheres, justamente
as que já faziam parte do mercado de trabalho, em empregos e subempregos,
mal remunerados e sem garantias trabalhistas, trabalhando como empregadas
domésticas ou babás (ALVES, 2010, p. 62-63).

Contra a subalternidade imposta que as mulheres negras constroem um discurso de


ruptura e de afirmação. Para Spivak (2010), esse ser, o subalterno, é uma categoria alijada do
poder. Ele não é qualquer sujeito marginalizado, mas sim quem não é ouvido, quem está
excluído das esferas de poder. Trata-se de uma massa sem rosto, mas que é heterogênea,
que não possui voz ou não é escutada, que trabalha para quem é visto e que não consegue ver
esse indivíduo invisibilizado pela sua própria condição à priori. Estar nessa condição de Outro,
subalternizado, é não ser sujeito, é não poder falar, pois falam por ele e não o deixam falar,
tratando-se de uma violência epistêmica. Esse ser não é sujeito, restringe-se a um objeto de
investigação.
A literatura passa a ser um lugar de independência da fala das mulheres negras, pois
expõe o ponto de vista negro feminino excluído da literatura brasileira, além de trazer o
protagonismo dessas mulheres em posições que diferem das personagens estereotipadas
como “Bertolezas” e “Tias Anastácias”. Trata-se de uma produção literária útil por retirar as
mulheres negras dos lugares de subalternidade determinados por uma sociedade configurada
pela discriminação racial e escorada no ideal branco como padrão estético a ser seguido,
padrões que o cânone literário também compartilha. Uma literatura que combate a
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invisibilidade das mulheres negras, procurando trazer afirmações identitárias que dialogam com
as reflexões de Jurema Werneck, para quem
As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres
negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação
de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de
enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação
ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação
colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos (...)
(WERNECK, 2010, p. 10).

As condições adversas da mulher negra em uma sociedade patriarcal e racista


explicitadas por Jurema Werneck demonstram a necessidade e a importância de uma literatura
produzida pelas escritoras negras, comprometidas em desvelar questões antitrracistas e
antissexistas, porque as mulheres negras são atingidas primeiro pela condição étnico-racial,
depois pelo gênero, e, em seguida, dentro do gênero, pois sofrem com as discriminações da
mulher branca e de reivindicações feministas que não atendem às demandas das mulheres
negras. Logo, percebe-se a necessidade de enegrecer o feminismo. Segundo Sueli Carneiro:
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,
demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a
questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas,
na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do
conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país que não é branca;
introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com
maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na
formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos
mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que
mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.
(CARNEIRO, s/d, p. 3)

A ensaísta e escritora Miriam Alves dá prosseguimento à discussão:


Já a palavra de ordem para o corpo da mulher negra seria forçosamente outra
tendo em vista o aviltamento do qual foi vítima esse corpo negro que passou
pela coisificação, mutilação, primeiro pela força da escravização, e depois
seguido da automutilação, para aproximá-lo da estética branca alienígena à
sua feição natural. Antes de tudo, é um corpo vitimado que necessita de se
desvencilhar das marcas de sexualização, racialização e punição nele inscritas
para redefini-lo numa ação de afirmação e autoafirmação de identidade; de
formar, assim, um novo locus de compreensão sem, no entanto, esquecer a
necessidade de esse mesmo corpo comer bem, vestir-se, entre outras coisas.
Os versos e os textos realizam a desconstrução desse locus de confinamentos
onde ficamos excluídas da noção de estética nacional, para chegarem à
construção, ou, pelo menos, a apontar de outro lugar de brasilidade onde o
Brasilafro feminino possa existir em plenitude (ALVES, 2010, p. 71, grifos da
autora).

A postura explícita de mulher negra e de defesa incontestável de uma estética negra em


boa parte da literatura feita por essas mulheres conduzirá ao conceito de “metáfora do corpo
tatuado”, desenvolvido por Edmílson de Almeida Pereira e Núbia Pereira de Magalhães Gomes
(2001), no qual a relação tensa entre corpo e forma de comunicação é evidenciada, obliterando
as possibilidades de entendimento do Outro. Segundo os dois autores:
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Nossa intenção, por agora, se volta para a análise do estereótipo de exclusão


que incide sobre os indivíduos negros e que faz valer a representação de
negros como sinônimo de inferioridade étnica, baixa condição socioeconômica
e ausência de padrão estético. Esse aspecto é interessante na medida em que
o corpo negro tem sido utilizado, historicamente, como interface para
elaborações discursivas que anunciam sua própria rejeição. Em outras
palavras, o corpo negro tem sido escrito por outros agentes sociais, além dos
próprios negros. Esse fato ocorre também com corpos de outras etnias, mas
em relação aos negros, chama a atenção o caráter de saturação dessa
modalidade de discurso escrito no corpo. (PEREIRA; GOMES, 2001, p. 220-
221).

A ideologia racista procura diferenciar o corpo negro do corpo branco, determinando


aos negros signos de não humanidade que o aproximam da natureza, enquanto ao corpo
branco signos de cultura, de pureza e elevação moral (idem, p. 221). Ao avançar a dicotomia
corpo-natureza e corpo-cultura, esse pensamento impôs a criação de conceitos de exclusão e
inclusão social. Para os corpos negros que foram situados na esfera da natureza, elaborou-se
o discurso da exclusão ao mesmo tempo em que para os corpos brancos, situados na esfera
da cultura, foi inserido o discurso da inclusão social (idem, p. 222). Essa dicotomia corpo-
natureza x corpo-cultura só se sustenta para justificar o passado escravocrata da sociedade
brasileira e a manutenção do status quo racista ainda vigente.
Para combater esse discurso predominante de desumanização do corpo negro e as
formas sutis as quais se apresentam que a literatura das mulheres negras desvela a
valorização do corpo negro, pois
[a]ssumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos
traços europeus, que também nela se mostram, é uma atitude de
enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que
não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias
que produz, o senso comum descarta a questão porque acredita que vivemos
numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial
continua a se perpetuar entre nós. (FONSECA, 2011, p. 13)

Como forma de enfrentar essa ordem, a pertinência dessa literatura distante das
descrições estereotipadas apresentadas no cânone literário nacional. De acordo com a Miriam
Alves:
A produção textual das mulheres negras é relevante, pois põe a descoberto
muitos aspectos de nossa vivência e condição que não estão presentes nas
definições dominantes de realidade e das pesquisas históricas. Partindo de um
outro olhar, debatendo-se contra as amarras ideológicas e as imposições
históricas, propicia uma reflexão revelando a face de um BrasilAfro feminino,
diferente do que se padronizou, humanizando esta mulher negra, imprimindo
um rosto, um corpo e um sentir mulher com características próprias (ALVES,
2010, p. 67, grifo da autora).

É essa condição diferenciada das mulheres negras que não é demonstrada nos livros
consagrados de nossa literatura, que fazem dos textos produzidos por essas autoras negras
fundamentais, pois apresentam novos paradigmas ao emergir um mundo oprimido por séculos
de repressão revelados no ato da escrita, conforme afirmar Fernanda Figueiredo:
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Escrever, para estas mulheres, é ‘ultrapassar’ uma percepção única da vida; é


construir mundos e neles apreender, discutir, apontar, enfim, serem agentes
imprescindíveis à vida. As vozes-mulheres negras, são, portanto, as vozes,
agora audíveis, não somente a própria voz, as vozes ancestrais silenciadas por
séculos de exclusão. (...) Elas soltam as mãos e os olhares em seus teares,
formando, aos poucos, nova roupagem para a literatura brasileira: a literatura
afrobrasileira de autoria feminina. O papel das escritoras é escrever e inscrever
a memória do povo negro pelo olhar de dentro; um olhar que recusa as
omissões que a sociedade brasileira, sob a égide do mito da democracia social
e racial, impôs e ainda impõe à população afrobrasileira (FIGUEIREDO, 2009,
p. 105. Apud: ALVES, p. 66).

Sendo assim, é importante resgatarmos a carta da escravizada Esperança Garcia, com


data de 06 de setembro de 1770 e dirigida ao Governador da Capitania do Piauí em que revela
os incontáveis problemas vivenciados por uma escravizada durante a colonização. Vejamos o
conteúdo da carta de Esperança Garcia:
"Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto,
cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos
algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde
nella passo mto mal.
A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo
uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q.
sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho
peiada, por mezericordia de Ds. esCapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã
criança minha e duas mais por batizar.
Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em
mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me
tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.
3
De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Trata-se de um documento fundamental para a autoria feminina negra brasileira, por ser
testemunho de um tempo, por ser escrita em primeira pessoa, por ser pioneira dessa escrita e
por aproximar-se de temáticas ainda caras às autoras negras contemporâneas, tais como a
separação forçada da família comprometendo as relações afetivas; a violência física e
psicológica rotineira; a assimilação forçada com o abandono da religiosidade de matriz
africana, a conversão ao catolicismo, o uso de um “nome cristão” e o provável abandono da
língua africana.
Por outro lado, temos a força de uma mulher, ainda que escravizada, que sabia ler e
escrever, tinha plena consciência das injustiças e dos malefícios do sistema escravocrata.
Sendo assim, não poderia aceitar passivamente a sua vida de adversidades, o que estimulava
a indignação, a revolta e o desejo de expressar os seus pensamentos. Essa mesma força
insubmissa de Esperança Garcia que encontramos na literatura das mulheres negras dos
nossos dias. Como homenagem a sua memória, a Lei nº 5.046, de 07 de janeiro de 1999,
instituiu o dia 06 de Setembro como o “Dia Estadual da Consciência Negra” no Piauí, local
onde viveu.

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Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/um-rosto-para-esperanca-garcia>. Acesso em: 08 jan. 2015.
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Outro nome incontornável da autoria feminina negra é o da maranhense Maria Firmina


dos Reis (1825-1917), considerada a expoente do romance abolicionista brasileiro com Úrsula
(1859). Além disso, na sua bibliografia constam os livros de contos originalmente publicados na
imprensa maranhense, Gupeva, romance brasiliense (1861-1862) e A Escrava (1887), assim
como poemas, composições musicais e um diário, intitulado Álbum, publicado apenas em
1975. De seu romance Úrsula, a pequena passagem abaixo revela como a relação
escravizado-senhor é tratada de forma direta e a complacência do branco à condição desigual
aos quais os escravizados eram submetidos:
– A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me
chameis amigo. Calculates já, sondastes vós a distância que nos separa? Ah! o
escravo é tão infeliz!... tão mesquinha e rasteira é a sua sorte que...
– Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o jovem
cavaleiro – dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos,
Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo, que te borbulha
na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro
homem que escravizou a seu semelhante. Sim – prosseguiu – tens razão; o
branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus
sentimentos! Sim, acerbo deve ser o seu sofrer, e eles o não compreendem!
Mas, Túlio, espera, porque Deus não desdenha aquele que ama ao seu
próximo... e eu te auguro um melhor futuro. (REIS, 2011, p. 28)

Carolina Maria de Jesus é um nome incontornável para as autoras do nosso tempo e


para todo um público formado por mulheres negras, que se identifica e se transforma após a
leitura de suas obras, elevando a autoestima dessas mulheres. Frisamos que somente uma
literatura com evidenciado poder de linguagem é capaz de transmitir mudanças de
comportamento nas pessoas, e literariedade é o que não falta na obra de Carolina Maria de
Jesus, ainda que a academia, a crítica literária e até pesquisadores de suas obras insistam em
afirmar o contrário.
Tendo estudado apenas até a segunda série primária, isso não impediu que Carolina
desenvolvesse uma sensibilidade rara para o cotidiano, para os diversos prismas que a
oprimiam como mulher, negra, mãe, moradora de favela, desempregada e obrigada a sair
diariamente para catar papéis e assim manter o sustento de sua família, enxergando e sendo
precisa ao identificar as mazelas impostas a si e aos moradores da favela do Canindé, um dos
“quartos de despejo” da cidade de São Paulo, postura que a obrigou a relatar com perspicácia,
raiva e muitas vezes com uma sagaz ironia a maneira como os políticos manipulavam a
população pobre e negra. Fatos que vindo de uma voz do lugar de onde veio não poderia ser
bem vista, por isso que muitas vezes Carolina foi desacreditada ou tratada como exótica pela
imprensa e crítica do seu tempo, posições que perduram até os nossos dias, infelizmente.
Observadora atentíssima, Carolina, em seus diários reunidos na obra “Quarto de
Despejo”, oferece-nos provas de que a “boa” literatura se revela sobretudo no “como” dizer.
Neste quesito Carolina é maestrina, pois trabalha com desenvoltura e criatividade a descrição
do seu cotidiano entrecortado pelas agruras intermináveis da fome. Seu discurso, por ser uma
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voz legítima daqueles que não têm voz, portanto, não se trata de uma escritora sentada em
seu gabinete criando a sensação da fome, mas sim alguém que realmente a sente, constrange
as certezas de uma classe dominante branca e racista que prefere se manter distante dessas
histórias, como se não tivesse nenhuma participação nos relatos de “Quarto de Despejo”, como
a própria descreve:
“... Mas eu já observei os nossos politicos. Para observá-los fui na Assembleia.
A surcusal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no
palácio do Governo. Foi lá que eu vi o ranger de dentes. Vi os pobres sair
chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas
de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que
assiste e observa as tragédias que os políticos representam em relação ao
povo (JESUS, 1960, p. 54).

Seguem outros excertos com temas variados:


“Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circo. Eles me respondiam:
- É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e
o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o
cabelo de branco. Porque o cabelo de preto, onde põe, fica. É obediente. E o
cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É
indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.”

“... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte
quando vê o seu povo oprimido.” (Quarto de Despejo, 1960, p. 40)

“O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não
quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar
de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E
que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro
viver só para o meu ideal.” (Quarto de Despejo, 1960, p. 50)

“[...] na África os negros são classificados assim:


- Negro tú.
- Negro turututú.
- Negro sim senhor!
Negro tú é o negro mais ou menos. Negro tutututú, é o que não vale nada. E o
negro Sim Senhor é o da alta sociedade.” (Quarto de Despejo, 1960, p. 52)

“Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no alcool. Se você achar
que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: – Muito bem,
Carolina!” (Quarto de Despejo, 1960, p. 73)

“... Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu


livro é comunista. Respondi que é realista. Êle disse-me que não é
aconselhavel escrever a realidade.” (Quarto de Despejo, 1960, p. 105)

Vemos a diversidade de temas abordados por Carolina, questões cruciais para a autoria
feminina negra estão presentes nesses pequenos excertos. Nesse sentido, desconsiderar a
sua obra a partir do mau uso das normas cultas da língua portuguesa é uma estratégia
necessária e desesperada para conter o sucesso que sua obra atingiu, e atinge, além do
caráter provocador e subversivo de seu discurso. Vimos como o cânone manipula o uso da
língua, logo, que não há inocência na maneira como a obra de Carolina é tratada. Sendo
assim, é importante destacarmos as considerações da intelectual e professora negra norte-
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americana bell hooks acerca do caráter dominador e opressor da língua padrão inglesa. hooks
(2013) é bastante feliz ao afirmar que a língua padrão esconde os ruídos da matança e da
conquista, fato comum no continente americano para os índios e para a população negra
escravizada que foi retirada à força do continente africano. hooks considera que não é a língua
que a machuca, mas o seu uso pelos opressores, pelo poder, que a limita e define numa forma
de envergonhar, humilhar e colonizar. Para ela, a língua utilizada pelos negros é uma
contralíngua a partir do momento que passaram a utilizar uma fala quebrada, despedaçada,
passando a ser uma forma de resistência, reinventando a língua para além das fronteiras da
dominação com o uso incorreto das palavras, na colocação incorreta das palavras nas frases,
fazendo do uso da língua um local de rebelião e resistência.
Em nosso entendimento, a escrita de Carolina enquadra-se nisso que bell hooks
descreve, pois sua obra parte de uma oralidade que revela características das negras e dos
negros, trazendo outros saberes, outras sensibilidades, outras formas de agir que os
representantes da dominação são incapazes de controlar, silenciar e censurar. Seu discurso
subalternizado agride as certezas da ordem vigente, do padrão branco de ver e sentir a vida.
Carolina comunica-se e faz emocionar com uma linguagem que é íntima de nós, negras e
negros, tidos como “subalternos”. E isso é imperdoável para o cânone.
Na contemporaneidade, o enfrentamento ao racismo impregnado na sociedade
brasileira tem na palavra poética de Cristiane Sobral (1974) uma voz ativa e antirracista, a
valorizar o cabelo crespo das(os) negras(os) como temática recorrente de sua obra,
apresentando as diversas contradições e a complexa relação de aceitação/rejeição que temos
com o nosso cabelo ao longo da vida em um país no qual o modelo de cabelo é o liso e “bom”
das mulheres brancas. Dentro desse contexto de empoderamento negro contrário aos valores
racistas impostos pela hegemonia branca que o poema “Pixaim Elétrico”, transcrito logo a
seguir, busca valorizar o padrão estético negro num contexto predominante racista no qual
“nosso cabelo é percebido na cultura branca não só como feio, como também atemorizante”
(hooks, p. 5):
Naquele dia
Meu pixaim elétrico gritava alto
Provocava sem alisar ninguém.
Meu cabelo estava cheio de si

Naquele dia
Preparei a carapinha para enfrentar
a monotonia da paisagem da estrada
Soltei os grampos e segui, de cara pro vento, bem desaforada...
Sem esconder volumes nem negar raízes.

Pura filosofia
Meu cabelo escuro, crespo, alto e grave...
Quase um caso de polícia em meio à pasmaceira da cidade
Incomodou identidades e pariu novas cabeças
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Abaixo a demagogia
Soltei as amarras e recusei qualquer relaxante
Assumi as minhas raízes ainda que brincasse com alguns matizes
Confrontando o meu pixaim elétrico com as cores pálidas do dia. (SOBRAL,
2011, p. 81)

Com uma ironia mordaz, o sujeito lírico mostra o quanto é importante a retomada do
sentido político do uso do cabelo crespo, da autoafirmação negra, “bem desaforada/ Sem
esconder volumes nem negar raízes”, em uma sociedade que adota um padrão estético
incapaz de associar nosso cabelo à beleza. Quando o sujeito lírico demarca o momento da
ruptura com os padrões estéticos estabelecidos à recordação de um tempo distante exposta
nos versos iniciais das duas primeiras estrofes, “Naquele dia”, demonstra o quanto a relação
rejeição/aceitação ao nosso cabelo revela-se um processo árduo e de longa duração para
amar o nosso corpo, tornando-se necessário o enfrentamento para encarar as críticas que
serão proferidas por pessoas conhecidas ou desconhecidas, já que dentro do modelo
preconceituoso de dominação racial da sociedade brasileira a valorização de nosso cabelo
crespo é considerada “Quase um caso de polícia”. Esse processo de aceitação do cabelo
crespo remete ao que bell hooks considerou como um retorno à despreocupação que tinha
com o cabelo quando era criança, época que não possuía consciência das pressões raciais
que sofreria no futuro:
A verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em
qualquer estado e o aceitei como era.
Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam
dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir
consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo.
Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando
menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo
e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo. (hooks, p. 9)

É no confronto dessa relação complexa, também ambígua, com o cabelo que a mulher
negra convive diariamente até aceitar o seu cabelo como “bom”. Ao assumir suas raízes, o
sujeito lírico desvela a intrínseca relação da sociedade racista com a valorização da estética
negra, pois o “pixaim elétrico” possui diferentes significados tanto para negros quanto para
brancos. Ele “incomodou identidades e pariu novas cabeças”. O “cabelo escuro, crespo, alto e
grave” sem “arrumação” ou “tratamento” é uma afronta para os padrões estéticos
hegemônicos, que nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito, porém tal penteado
quando visualizado por outros negros e negras, estimula-os a assumir um padrão negro de
beleza, a elevar a autoestima e de pertencimento étnico.
Por outro lado, a mutabilidade das táticas racistas procura dissociar o cabelo crespo de
seu uso político e de afirmação identitária negra. Na sociedade contemporânea, os estilos
políticos de cabelo do negro passam por um processo de “esvaziamento” e, muitas vezes, são
interpretados e usados como simples “penteados”. Isso implica que, hoje, nem sempre o sujeito
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que adota tal penteado ou aquele que o realiza como uma intervenção estética está vinculado
a um grupo ou organização política em prol da negritude. Além disso, nem sempre esses
sujeitos adotam tal comportamento com um sentimento consciente de denúncia ao racismo
(GOMES, 2008).
Essa escrita inscreve o corpo das mulheres negras. Isso se dá mediante um processo
de vivência, ou de escrevivência, conceito de Conceição Evaristo, que demarca as
particularidades de uma escritora negra e o seu fazer literário, comum a tantas outras
escritoras negras brasileiras. Em entrevista a Eduardo de Assis Duarte, Conceição Evaristo
afirma que:
Eu sou uma escritora brasileira, mas não somente. A minha condição de
brasileira agrega outras identidades que me diferenciam: a de mulher, a de
negra, a de oriunda das classes populares e outras ainda, condições que
marcam, que orientam a minha escrita, consciente e inconscientemente. (...) E
ainda asseguro a existência de um texto feminino negro, ou afro-brasileiro,
como queiram. O meu texto se apresenta sob a perspectiva, sob o ponto de
vista de uma mulher negra inserida na sociedade brasileira. (...) E, nesse
sentido, afirmo que, quando escrevo, sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a
criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã
brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares,
mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na
criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma
história, de uma experiência pessoal que é intransferível. (EVARISTO, 2011, p.
114-115)

A experiência retratada por Evaristo e definida como escrevivência aborda as


incontáveis situações de confronto que o racismo apresenta no nosso cotidiano. Determinante
que tais experiências revelem especificidades que não são consideradas por uma ordem
heteronormativa, falocêntrica e grafocêntrica. Com isso, o aprendizado oral é descartado em
uma sociedade com tal perfil, mas que se desvela como necessário para a confecção da
poesia, para a vida, como apreendemos no poema “De mãe”, de Conceição Evaristo (1946):
O cuidado da minha poesia
aprendi foi de mãe
mulher de pôr reparo nas coisas
e de assuntar a vida.

A brandura da minha fala


na violência dos meus ditos
ganhei de mãe
mulher prenhe de dizeres
fecundados na boca do mundo. (...)

Foi mãe que me fez sentir


as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou, insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
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do meu canto
da minha fala.
(RIBEIRO; BARBOSA, 2008, p. 120-121)

Conceição Evaristo, no poema “Vozes-Mulheres”, apresenta a trajetória de resistência


das mulheres de sua família, do ato contínuo de luta, de geração a geração, enfrentando, sem
desestimular, os problemas do tempo em que cada uma vive(u) mostrando a atemporalidade
da luta das mulheres negras em contextos racistas e de subalternidade:
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha


recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(Cadernos Negros 13, p. 32-33)

Uma marca de enorme relevância na poética aqui exposta é a exploração sensível da


religiosidade de matriz africana, deslocando seus signos, experimentando outras sensações e
a utilização de palavras em iorubá, como se apresenta na poesia de Lívia Natália (1979).
Segue “Asé”:
O sangue, ejé que corre caudaloso,
lava o mundo e alimenta
o ventre poderoso de meus Orixás.
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A cada um deles dou de comer


um grânulo vivo do que sou
com uma fé escura.

(...) Minha fé é negra,


e minha alma enegrece a terra
no ilá
que de minha boca escapa.

Sou uma árvore negra de raiz nodosa.


Sou um rio de profundidade limosa e calma.
Sou a seta e seu alcance antes do grito.
E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade
e o ferro das armas.

E ainda luto em horas de sol obtuso


nas encruzilhadas (NATÁLIA, 2011, p. 33).

É essa sintaxe inovadora transversalizando a alvura da literatura brasileira, é a


diversidade poética ressemantizando e propondo o esgarçamento do cânone, este na
encruzilhada tendo escancarada a percepção de sua fragilidade. Em ruidosas ruínas a sua
indiferença fere e sangra. Delicada e visceral, a poesia de Lívia Natália é transnegressora,
navega destemida por uma diversidade de águas, sendo sempre negra, reconfigurando
margens, desbravando a multiplicação dos sentidos, provocando os redutores/detratores da
literatura negro-brasileira ao mostrar o apurado conteúdo estético, ainda assim engajado,
preocupado com o social, atento à discriminação, mas, sobretudo, feminina e a serviço das
possibilidades ilimitadas que o fazer poético pode oferecer. A poesia de Lívia Natália é um rio
que deságua num mar sem fim, como no poema “Oriki para Osun” que encerra seu livro de
estreia, “Água Negra”:
O rio se cala,
mas há quem não saiba
que ele é fundo (NATÁLIA, 2011, p. 73).

O corpo da mulher negra é reconfigurado por Miriam Alves (1952), tomado para si,
pela perspectiva da mulher negra, ainda assim dolorido das marcas do passado, corpo este
vítima das mais absurdas violências. Segue o poema “Compor, Decompor, Recompor”:
Olho-me
espelhos
Imagens
que não me contém
Decomponho-me
apalpo-me.
Perdem-se
de meu corpo
as palavras
Volatizo-me.
(...)

Recompondo-me
sentada
na
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sala
de espera
falando com
meus
fantasmas
(ALVES, 1985, p.32)

Miriam Alves também valoriza as mulheres negras que protagonizaram revoltas no


passado escravocrata. Luiza Mahín e a revolta dos Malês são contempladas na sua poesia em
“Mahín amanhã”:
Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
Malês
Bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
“é aminhã, aminhã”
sussuram
Malês
Bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luiza Mahin falô”
(QUILOMBHOJE, 2008, p. 104)

A memória e o seu resgate são centrais na poesia de Ana Cruz (1965), desvelando
diferentes passagens comuns às famílias negras e seus esforços para sobreviver. O poema
“Para todos os dias” demonstra a transição de uma família negra do interior para a cidade
grande com todos os seus percalços e desencantos:
Nasci onde o rio fazia curva
Para descansar,

O fogo, água e mato.


A certeza, o tempo passando sem pressa.
A voz dos meninos se transformando.
Flores nas meninas começando a nascer.

Cigarra acordou cantando uma canção diferente


e o céu tá côvado, sinal de chuva pesada.

Milho, manga formiga cabeçuda,


todo mundo, tudo vida. (...)
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As rezadeiras, benzedeiras, parteiras, milagreiras.


Alegres faladeiras. (...)

História de uma família


que acompanhou o progresso
mas não quis levar
o patuá de identidade.

Desembestaram atrás do progresso,


sem saber que o progresso era aquele
e para onde ele estava indo.

Daí, o progresso progrediu


só de um lado,
progrediu ainda mais

quem era progredido.

E essas pessoas ficaram


feito folha seca
ao vento...

Arrebatamento...
Juízo final...
Ressucita, minha avó,
para dar jeito
nesse meu mundo.
(CRUZ, p. 9-10)

A emancipação feminina combatendo a heteronormatividade é o eixo principal em


muitos poemas dessas autoras negras. Cristiane Sobral apresenta com desenvoltura esse
procedimento a partir de atos do cotidiano e da valorização da leitura como metáfora da
liberdade da mulher em “Não vou mais lavar os pratos”:
Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro
e uma semana depois decidi. (...)

Ah, esqueci de dizer. Não vou mais.


Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida,
passou do alfabeto.
Desalfabetizou. (...)

Não lavo mais pratos.


Li a assinatura da minha lei áurea
escrita em negro maiúsculo,
em letras tamanho 18, espaço duplo.

Aboli.
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata,
Cozinha de luxo,
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e jóias de ouro. Legítimas.


Está decretada a lei áurea.
(Cadernos Negros 23: poemas afro-brasileiros, 2000)

É na reconfiguração literária do ser feminino negro que outros espaços dedicados à


afetividade revelam-se. Uma experiência comum às mulheres negras é a infeliz ambientação
em presídios. Ainda que em um espaço rude e desumano como o sistema carcerário brasileiro,
a afetividade da mãe à sua filha permanece intacta como vemos na pequena narrativa de “Por
que Nicinha não veio?”, de Lia Vieira (1958). Em um presídio, a mãe presta solidariedade à
filha presa, a segurança e o apoio aos quais precisaria para cumprir a pena, e assim as duas
partilham os poucos momentos de união:
A sirene tocou marcando o início das visitas.
O calor sufocante de mais uma tarde sem chuvas.
A indolência do corpo e do pensar.
Um dia atravessava o outro.
Cumpria pena no Talavera Bruce.
O artigo 157.
Só um alívio entre tantas outras iguais a fazia sobrevivente: a visita de Nicinha,
sua mãe. Nicinha jamais fizera julgamento do seu gesto, nunca censurara ou
se referira ao acontecido.
Trazia sempre palavras confortadoras, revistas, novidades que ali não tinham
eco...
Mas fazia bem o jeito bom de querer que a mãe lhe passava.
Única amiga, cumpriam juntas a pena. Uma dentro, outra fora das grades. Não
faltava nunca. Tinha sempre uma “coisinha especial”. (...)
Perguntou as horas. Alguém lhe soprou um número. Recostou-se nervosa,
inquieta, agitada. Acendeu um cigarro, contemplou a paisagem. Arrepio.
Presságios. O tempo se excede. Terminado o horário de visitas. Todas
recolhidas.
Em seu armário, um bilhete pregado:
“Nicinha não virá mais. Foi atropelada no percurso até aqui.
Mais informações na Administração.”
(VIEIRA, 2011, p. 10)

O rompimento abrupto da relação afetuosa seguido da desumanidade do gesto revela a


maneira como essas mulheres negras são tratadas. Cumpre-se a pena determinada pela
justiça, entre outras penas, tais como a da cor da pele, a de ser mulher negra e a de ser pobre.
Essa é a literatura produzida por mulheres negras que mostra a complexidade das
experiências dessas mulheres, rompendo com o isolamento, o silenciamento da literatura
feminina canônica. É essa literatura desenvolvida por mulheres negras que obriga, exige a
revisão de conceitos que estão para além da literatura, que revela uma subjetividade ainda
excluída dos principais meios de comunicação, mas que procura circular com a força das redes
de mulheres negras, atingindo um público leitor cada vez mais amplo e sedento pela
diversidade da literatura a partir de outros agentes, e que a autoria feminina negra revela
outras perspectivas, também enriquecedoras, de ser e fazer literatura.
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