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Tania de Vasconcellos
objetivação do referente social: não basta que exista tal referente social, é
preciso que seja articulado como critério definidor de alguma identidade
mediante a aplicação de uma matriz categorial ou sistema de diferenças
(isto é, para constituir uma identidade é preciso também definir − para
o descartar − o que ela não é). E a matriz em questão só pode ser da
ordem da linguagem, do discurso. Os referentes sociais são causalmente
inertes, só são ativados se e quando partes deles forem incorporadas a
um padrão discursivo de significado. Caso se aceite tal ponto de vista,
estar-se-á aceitando também que a identidade não está causalmente
vinculada ao referente, mas, sim, a um objeto discursivamente construído.
Deste modo, os objetos de identidade não podem preexistir às próprias
identidades: objetos e identidades se constituem simultaneamente, no
mesmo processo de articulação do contexto social mediante um discurso,
um espaço de articulação que depende do imaginário social. O domínio
do discursivo é que preexiste, fornecendo os padrões de “subjetivação”
por meio dos quais os indivíduos possam constituir a si mesmos como
sujeitos dotados de identidade, sentir-se como tais e, deste modo, agir
como agentes conscientes. A linguagem não se limita a nomear os sujei-
tos: ela os gera, permite que apareçam, existam e atuem.
Outra consequência da postura que estamos sintetizando é a
proibição de hierarquizar normativamente, epistemologicamente, as
diferentes formas de identidade, como se umas fossem naturais, on-
tologicamente plenas e superiores às outras. O fato de que, em dadas
circunstâncias históricas, um referente específico se converteu em
objeto de identidade não garante que tal coisa vá acontecer em todos
os casos, nem do mesmo modo, já que não é necessário que o processo
discursivo que cria a identidade venha a existir: ele é possível, mas não
é necessário. Outrossim, referentes mais ou menos análogos podem
ser articulados discursivamente em formas heterogêneas, que gerarão
identidades diferentes entre si. Além do mais, as identidades são todas
passageiras e instáveis, em função da instabilidade, não do referente
social, mas das construções discursivas. Todas as identidades, sem
exceção, se forjam a partir do contraste com outras possibilidades de
identificação e mediante a exclusão delas: cada identidade exige uma
alteridade, um exterior constitutivo. Os pós-modernos acham que,
devido a tal processo de exclusão, cada identidade está sempre ame-
açada pelo que deixa de fora. Na verdade, o jogo identidade/alteridade
tende a criar duplas de identidades em oposição complementar, nas
quais cada termo depende do outro e implica o outro, numa relação
hierarquizada em que um deles é visto como superior ao seu contrário,
mas impossível de constituir-se sem ele (masculino/feminino, branco/
negro, homossexual/heterossexual, proletariado/burguesia, etc.).
Notas
*
WILLIAM H. Sewell Jr. Work and revolution in France: the language of labour from
the Old Regime to 1848. New York: Cambridge University Press, 1980, p. 213
**
Sewell Jr., p.197, 280.
1.1. Apresentação
p. 212). A proporção dos óbitos devidos à peste parece ter oscilado entre
2/3 a 1/8 em relação ao conjunto da população européia, consideradas
as variações regionais (RENOUARD apud WOLFF, 1988, p. 31).
Com efeito, tende-se a considerar que as cidades, dada a concen-
tração populacional e as precárias condições de higiene, bem como as
associações comunitárias pagaram maior tributo à epidemia. Segundo
um documento da antiga colegiada de são Pedro de Coimbra morreram,
na Igreja da Almidinha, “o Priol e o chantre e todos os Raçoeyros [...]
huus de pos outros todos em huu mes” (MEIRELLES, 1866, p. 8). Em
Lisboa, “a peste matou todos os oficiais do mosteiro de S. Vicente de
Fora, na sacristia, hospital, vestiaria, enfermaria e correaria” (MAR-
QUES, 1987, p. 20). O arcebispo de Braga comunicou ao papa Clemente
VI, em fins de 1348, que
Notas
1
Segue ainda hoje ceifando a esmo, inclusive no Brasil, segundo Veronesi (1985, p. 442),
quando não dá origem a surtos de amplitude tal como os medievais e modernos.
2
Segundo 1 Sam., 5, 6-12 (SOARES, 1989, p. 782).
3
No Ocidente, praticamente as únicas referências devem-se a Gregório de Tours,
em sua História Francorum, segundo Biraben; Le Goff (1960).
4
Ley per que [...] manda que os homes husem dos mesteres de que husaram ante da
postenença E aquelles que morarom por soldada que os costrangam que morem
com anos” (apud CAETAN0, 1981, p. 83).
5
Rodrigues (1990, p. 79).
6
Houve epidemias, gerais ou parciais em 1348, 1356, 1384, 1414/15, 1423, 1432, 1435,
1437/38, 1448, 1459, 1464/69, 1477/79, 1480/97, 1503, 1505/06, 1514, 1518, 1522,
1526/29, 1531, 1537, 1564, 1569/80, segundo Meirelles (1866).
Arca da Aliança, quando o Senhor os feriu com uma doença “na parte
mais oculta do corpo”, provocando grande mortandade, além da cé-
lebre referência à peste que atingiu Israel, por três dias consecutivos,
originada da grave ofensa cometida pelo rei Davi.5
Ainda em reforço à expressão da doença como punição divi-
na, as crônicas religiosas portuguesas descrevem a sua ocorrência
amalgamando-a a outros recursos recorrentes e específicos desta
Sua ação. Frei Luis de Sousa designa por “feridos” os contagiados
pela peste, porque “com este nome se declara esta infirmidade, como
dada com setas do Ceo”. Através dela, “mostrou o Senhor, que eraõ
tiros de sua ira, e verdadeira pena de peccados” (SOUSA, 1767, p. 414).
Frei Manoel da Esperança destaca o vigor da caridade dos frades se-
ráficos na Vila de Guimarães, particularmente nas ocasiões de peste,
“quando irado o Ceo co a espada na mão feria grandes, e piquenos”
(ESPERANÇA, 1666, p. 171). Sobre a Peste Negra de 1348, declara que
“foi huma semelhança do diluvio gèral, de que escapârão poucos”
(SEVILLA, 1982, Segunda Parte, p. 343). Segundo frei Fernando da So-
ledade, referindo-se à terrível peste de 1569, “tambem a esta Provincia
de Portugal chegou a sua espada degollando muytos religiosos della”.
Em função desta epidemia, afirma, “Portugal fluctuava” (SOLEDADE,
1705, t. 5, p. 2), fazendo eco ao autor do Breue summario da peste, para
quem o contágio começando com “labirintozas ondas”, submeteu a
“nau boalis” (metáfora da cidade de Lisboa) a “tormenta desfeita de
mares crusados” (BREUE SUMMARIO…, 1569, fol. LV).
Mas se a peste naufraga, fere, degola, ela preferencialmente
queima. De longe, a expressão da doença como um fogo impõe-se
como a mais recorrente nas fontes. Segundo frei Manoel da Esperan-
ça, governava o mosteiro das clarissas D. Margarida de Menezes em
1480, quando sentiu que adentrava a casa “o mesmo fogo da peste,
q jà tinha abrazado a cidade” (ESPERANÇA, 1666, Segunda Parte,
p. 62). Salvo o mosteiro pela intervenção miraculosa da Virgem Maria,
recolheu-se a ele a rainha, “pera poder escapar do incendio da peste,
que ardia noutras partes” (ESPERANÇA, 1666, p. 65). Frei Fernando da
Soledade, considerando a elevada letalidade e a extensão da epidemia
de 1579, perguntava-se “quantas seriaõ [as vítimas] por todo o ambito
do Reyno que ardia nas chamas da mesma doença?” (SOLEDADE, 1705,
t. 5, p. 126). Em 1586, informa-nos o mesmo cronista seráfico, “ardia a
Cidade do Porto em pestiferos incendios de hum pavoroso contagio”
(SOLEDADE, 1705, t. 5, p. 223). E o padre Balthazar Telles, narrando a
ação caritativa dos frades jesuítas durante a epidemia de 1569, acentua
o seu destemor no trato com os doentes em “meyo das mais vorazes
labaredas deste incendio abrazador” (TELLEZ, 1647, fol.195).
em valdyos aluoroços
com byoucos, nam s’asombrem
da sandyçe. (RESENDE, 1752, p. 120)
Notas
1
Veja-se, por exemplo, o artigo de Freitas (1957, p. 295-313), em que o autor aborda
as sucessivas condenações, por cânones eclesiásticos da Igreja portuguesa, de
práticas pagãs “sobreviventes” ao longo de 14 séculos, posto que identificadas e
condenadas como tais, no século VI, por são Martinho de Braga, no seu De Correc-
tione Rusticorum.
2
Procissão solene de penitência realizada nos três dias que precedem imediata-
mente a Ascensão. Em 511, o Concílio de Orleães estendeu este costume a todo
o Reino Franco, introduzindo-se em Roma em 816, sob o pontificado de Leão III.
Constitui-se numa rogação, tendo por fim afastar os flagelos da justiça divina e
atrair as bençãos e a misericórdia de Deus. Conforme LEFEBVRE, 1960, p. 87. Pro-
cissões muito caras ao povo, eram seguidas por bom número de fiéis, ainda que,
com bastante frequência, o caráter delas se inspirasse mais no folclore do que na
piedade. Conforme Augé et al. (1991, p. 284-287).
3
Ou Ladainhas Maiores, instituídas posteriormente, aos 25 de abril, data em
que se celebrava a solenidade pagã das Robigalia (culto agrário). Até mesmo
o percurso da procissão cristã era sensivelmente idêntico ao da celebração
pagã, descrita por Ovídio (Fausti, IV, 901-936): ela passava pela via Flamínia,
saindo por esta porta, chegando até a ponte Mílvio onde, num bosque, eram
sacrificados um cão e uma ovelha à deusa Robigo. Na convocação de são Gre-
gório Magno, o cortejo reunía-se na igreja de são Lourenço in Lucina, saindo
pela mesma porta, estacionava em são Valentim, atravessava a ponte Mílvio de
onde se dirigia a são Pedro para a celebração da eucaristia. Com a difusão do
Sacramentário Gregoriano, as Ladainhas Maiores entraram primeiro na Gália,
e em seguida em outros países latinos, vindo a substituir a cerimônia pagã.
Conforme Lefebvre (1960, p. 88).
4
Segundo o Eclesiástico (39,36), as serpentes e os escorpiões constam da lista de
“coisas” criadas e usadas por Deus para o castigo em Soares (1989, p. 782).
5
Respectivamente Ex. 3,19; Ex. 9, 1-7;14-16; Ex. 15,26; 23, 25-26; 26,1-13; 26,14-33;
14,11-12;19-20; 7,11-12,15;28,15-22,58-62;29,22-25; 1Sam. 5,6-12; 2Sam. 24,15-17,25,
em Soares (1989, passim). Segundo Leão (1774, p. 169-170) e Pina (apud ALMEIDA,
1977, p. 41), as calamidades (fome, peste e guerra) que atingiram o reino entre
1188 e 1192 foram atribuídas ao pecado do matrimônio incestuoso de D. Teresa
com o seu primo D. Afonso de Leão.
6
Respectivamente 32,18-25;39-42; 17,15; 37,3; 26,14-33; 5,23; 39,35-37, em Soares
(1989, passim).
7
Respectivamente 19,24-25;27-28; 10,1-2; 11,1-3; 22,8-10;13-15; Sl. 67,3; 4,24 em Soa-
res (1989, passim).
8
Jó 8,3; Le Goff (1987, p. 266). O livro dos Salmos (77, 9.34) estabelece que a infide-
lidade do povo para com seu Deus significa sempre uma ruptura da Aliança, que
implica por sua vez sempre em castigo.
9
Lev. 16,30; Dt. 21,6; Biraben; Le Goff (1960, p. 1498).
10
38,1-2; segundo Jó, é o Senhor quem fere e sara (5,17-18,20,22), enquanto o Livro
da Sabedoria fixa que a cura não é devida a lenitivo algum, mas à palavra do
Senhor, que sara todas as coisas (16,12). As fontes religiosas portuguesas assi-
nalam, frequentemente, a ascendência dos remédios da alma e da cura divina.
O Breue summario valoriza a ação dos médicos durante a epidemia, destacando
inclusive o apoio divino às suas deliberações – acreditaram sucessivamente que
o calor do sol, as águas das chuvas e os ventos suprimiriam a doença, e Deus os
concedeu. Mas o faz, na verdade, para realçar a sua ineficácia, reservando ex-
clusivamente ao Juízo de Deus a decisão de pôr fim ao contágio (fols.LXV-LXVI).
Sousa (1767, p. 527) abordando o fim da epidemia de 1569 em Braga destaca que,
a despeito das medidas profiláticas adotadas por ordem do arcebispo, foram as
procissões, as orações, os jejuns e penitências “as mezinhas, e as diligencias que
serenaram o tempo, purificaram o ar, deram saude, e enfim lançaram de todo fora
o contágio.”
11
1,32-34;40,44;2,4-12; Le Goff (1987, p. 267).
12
II Mac. 8,12-13.Tobias afirma que não há quem possa subtrair-se à mão do Senhor
(Tob 13,1-2,5,11) em Soares (1989).
13
No mesmo Livro (2,4): “Paciência na tribulação. [...] Aceita tudo o que te acon-
tecer, e permanece em paz na tua dor, e no tempo da humilhação tem paciência;
porque no fogo se prova o ouro e a prata, e os homens amados, no cadinho da
humilhação.”
Autoridade e interdições:
a medicina e a doença
“[...] nas casas onde se ouuerem ferido de tres pera cima, se despejem,
Notas
1
Ver o Capítulo 2.
2
RECOPILAÇAM das cousas...(1801) e REGIMENTO PROUEITOSO... (M.D.LXXX), pres-
creve o afastamento individual do contato com os “focos de podridão”.
3
RECOPILAÇAM das cousas... (1801) prescreve o fechamento dos banhos públicos; REGI-
MENTO PROUEITOSO..., M.D.LXXX ., p. LXXXII, determina que se evite o banho diário.
4
Ver, entre outros, o “Alvará de D. João III”, de 1526 apud Meirelles (1866, p. 67).
minou à câmara que abrisse “hu~m poço, o mais fumdo que podese
ser, no llugar que fose mais comvinhavell e de menos imcomvyniente,
no quall se llãçasem os ditos escrauos [...].28 O processo de ingerência
do poder central neste campo da limpeza e saúde parece-nos ter, por
sinal, chegado ao termo durante o governo de D. Manuel. Por carta
régia de 30 de julho de 1510 (OLIVEIRA, 1887, p. 411), ordenava aos
vereadores lisboetas, que lhe pediram licença de suas funções, que
se mantivessem nos cargos, em função inclusive da epidemia que
atingia então a cidade. Segundo Eduardo Freire de Oliveira o pedido
fora feito em represália à ação régia, que havia privado a câmara da
superintendência de alguns setores da administração, dentre eles o
regimento da limpeza (OLIVEIRA, 1887, p.411).
Mas as medidas de caráter preventivo não se limitaram à nor-
matização das práticas de higiene pública. A peste gerou, e o discurso
médico o expressou amplamente, sobretudo suspeição. A certeza do
perigoso contágio, veiculado pelo ar corrompido, ensejou posturas
de isolamento, reclusão e confinamento através das quais o Estado
manifestou, e afirmou, o seu poder sobre os cidadãos. Abordemo-las,
em suas principais vertentes. A fuga foi a sua primeira expressão, já
o dissemos, valendo-se dela amplamente a corte portuguesa. Muitos
dos seus deslocamentos pelo reino no período tiveram lugar com a
peste nos seus calcanhares. Em setembro de 1495,29 a rainha D. Leonor
comunicou-se com a câmara de Lisboa, pedindo informações sobre o
estado de saúde da cidade, desejosa que estava de para ela retornar.
Contudo, considerado o princípio firmado por D. Duarte, o abandono
por parte das autoridades locais dependia de liberação régia (TAVA-
RES, 1987, p. 20).
Quanto ao isolamento nas endemias, as primeiras referências em
Portugal datam do século XV. D. Duarte, em O Leal Conselheiro, indicava
às autoridades municipais a adoção de três medidas básicas, visando
a impedir a disseminação local do contágio: em primeiro lugar, deviam
expulsar das cidades os doentes, para que se curassem ou morressem
fora do centro de habitação; quanto aos mortos, fossem enterrados em
cemitérios extramuros e, por fim, que suas casas fossem encerradas
por 15 ou 20 dias (PIEL, 1942, cap. LIV, p. 226). Medidas, ainda uma
vez, fadadas a largo futuro, e aprimoramento. No mesmo intuito, mas
em sentido contrário, coibia-se o livre trânsito de pessoas oriundas
de centros contaminados, o que pressupõe um sistema minimamente
articulado de comunicação entre as regiões. A ordenação mais antiga
nesse sentido, conhecida em Portugal, data do reinado de D. Afonso V.
O ainda príncipe D. João ordenou à vila de Beja a instalação de quatro
postos de fiscalização nas suas portas de entrada, limitando o ingresso
Notas
1
Mattoso;Sousa ([19--], p. 280). Com a mesma perspectiva, veja-se Marques (1986,
p. 279).
2
Mattoso; Sousa ([19--], p. 527). O autor segue a conceituação de Estado proposta
por Strayer ([19--], p. 9-16).
3
Sousa (s/d, p. 528). A vitória do centralismo régio não implicou na supressão da
nobreza como categoria social autônoma, abastada e privilegiada, mas sim a de
uma concepção de Estado que, na sua conformação histórica, a integrou. Veja-se
Anderson (1985, p. 15-57).
4
Veja-se, ainda, Anderson (1985, p. 15-41).
5
Sobre a organização então fixada e as atribuições dos vereadores, veja-se Torres
([19--], p. 270-271).
6
Elite concelhia representada, em geral, pelos proprietários rurais, cavaleiros-vi-
lãos, escudeiros e, nalguns casos, mesteirais de algum peso econômico, segundo
Carvalho (1989, p. 91). A ascensão dos últimos à administração foi, no que diz res-
peito às grandes cidades, uma vitória alcançada com a revolução de Avis, segundo
Marques (1987, p. 201). Veja-se ainda, deste último, “Homens-bons”, em Serrão
([19--], v. 3, p. 222).
7
ORDENAÇOENS do Senhor Rey D.Afonso V, (1983, L. I, tit. XXIII, 43-46); Serrão
(1986, p. 77), refere-se a sua publicação em 1446.
8
Considere-se, neste sentido, o tempo mais ou menos longo para o diálogo entre
o poder central e o local, do qual dependiam a urgência do tema, as distâncias a
serem percorridas etc. Pode-se ter uma ideia a partir de João José Alves Dias, “A
Comunicação entre o Poder Central e o Poder Local. A difusão de uma lei no século
XVI”, cópia divulgada.
9
Barros, (1896, t. II, p. 199), compuseram-na elementos estranhos às reuniões
ordinárias, dentre eles dez “médicos”.
10
as quatro primeiras cartas datam de 9 de abril, 19 de maio, 20 e 23 de junho de
1520 apud Oliveira, (1887, t. I, p. 469-470.
11
por carta régia de 1 de fevereiro de 1509, apud Oliveira (1887, t. I, p. 10).
12
a carta régia data de 27 de agosto de 1385, apud Oliveira (1887, T. I, p. 20).
13
Sobre o conflito entre a realeza e a Igreja no tocante à disposição dos testamentos,
veja-se a Parte I deste livro.
14
Carta Régia de 11 de setembro de 1437, apud Oliveira (1887, p. 12).
15
Carta régia de 9 de fevereiro de 1453, apud Bastos ([19--], p. 5).
16
Carta régia de 8 de julho de 1496, apud Oliveira (1887, p. 370) .
17
Carta régia de 1 de setembro de 1525, apud Carvalho (1943, p. 33).
18
Datada de 7 de julho de 1569, apud Oliveira (1887, p. 474).
19
Por carta régia de 2 de junho de 1523, apud Oliveira (1887, p. 471) .
20
Por carta régia de 13 de abril de 1570, apud Oliveira (1887, p. 576).
21
Por carta régia de 19 de abril de 1572, apud Oliveira (1887, p. 583).
22
Vejam-se também as considerações a respeito no capítulo IV desta obra.
23
Veja-se a nota 12
24
Segundo Roque (1979, p. 206), D. João II fixou com esta lei os três principais pro-
blemas de higiene das cidades medievais.
25
Por carta régia, apud Oliveira (1887, p. 463).
26
Datada de 8 de agosto (OLIVEIRA, 1887, p. 402).
27
Por carta régia de 22 de agosto de 1515, apud Oliveira (1887, p. 446).
29
Por carta régia datada de 15 de setembro de 1495, apud Oliveira (1887, p. 369).
30
Por carta régia de 3 de julho de 1531, apud Oliveira (1887, p. 455).
31
por carta régia de 5 de setembro de 1492, apud Oliveira (1887, p. 363).
32
por carta régia de 2 de abril de 1494, apud Oliveira (1887, p. 369).
Dias, João José A.(transc. de). Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte
Referências
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Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994, 174 p.
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Consejería de Educación y Cultura, 1996, 252 p.
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1985. 453 p.
Augé, Matias et al. O ano litúrgico: história, teologia e celebração. São
Paulo: Paulinas, 1991. 5v. 987 p.
Barros, H. G. História da Administração Pública em Portugal nos secu-
los XII a XV. t. 2. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias,
1896. 439 p.
BENCHIMOL, Jaime L. (ed.). História, Ciências, Saúde: Maguinhos.
Dossiê Pestilências e Curas da Medicina Quinhentista. Rio de Janeiro:
Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, 2005.
Biraben, J. N. Epidemias na história da população. In: Marcílio,
M. L. (Org.). População e sociedade: evolução das sociedades pré-
industriais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. p. 87-112.
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Bloch, M. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 345 p.
boltansky, l. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal,
1979. 210 p.
ORENT, Wendy. Plague: the mysterious past and terrifying future of the
outro que chamam serpillo/ que acharas ao boticairo. & ysso mesmo
toma chan/tagem & siligem (vay te ao boticayro) & pisa todo/ muyto
bem atee que vejas que quer pareçer que say de/stas cousas assy
pisadas augoa ou çumo. emtom/ toma aquelle çumo & mistura ho
com leyte de molher/ & da ho a beber aquelle que teuer apostema. &
ysto com/ o estamago [sic] gejuum. porque emtom obra milhor em
o/ homem. Item quando apostema primeyro apareçer. to/me auela-
ans. figos passados & aruda & tudo bem pisa/do: ponlho ençima da
apostema. E estas cousas/ abastem pera pestilença. & qualquer que
se per este modo reger/ escapara muytos periigos da pestilencia com
virtude/ & meezinha de nosso senhor jesu christo. sem o qual nom/
ha hy saúde. & da benta virgem maria sua madre se/ja gloria & louuor
pera sempre Amen./
Feyto em Lixboa per Valentino de morauia.
[4]
la cura desta enfermedad. En las quales dos posturas partes,
emos procurado de no dexar cosa de lo que bien escriuieron los que
dello tractaron, antes añadiendo algunas particularidades muy ne-
cessarias para la cura fundadas en razon, y larga experiencia (como
en ellas se podra ver): en lo qual no poco trabajo hemos tenido por la
breuedad del tiempo, y el peligro de la tardança: y las occupaciones
del dia ha sido causa para que en horas hurtadas a nuestro reposo
se uuiesse cumplido con lo que desseauamos. A Vossa Alteza humil-
mente [sic] supplicamos resciba este pequeño seruicio, tomando en
cuenta la intencion con que esto se ha trabajado, que es de seruir a
Vossa Alteza, y assi lo fauorezca como cosa de sus criados, y mandada
hazer de parte de Vossa Alteza. El prouedor mayor de la salud quiso
se trasuntasse & imprimiesse en lengua Portuguesa. Y constando nos
de su mucho cuydado, y zelo de administrar bien su//
[5]
cargo, aunque quisieramos se imprimiera en la lengua que se
escriuio, venimos en ello. Plega a nuestro Señor haga tanto fructo
como desseamos, y guarde y felicite la Real persona de Vossa Alteza
con acrescentamiento de Reynos, y Señorios. En Lixboa a 13 Dagosto
de 1569 Años./
Criados de Vossa Alteza que sus Reales/ pies, y manos besan,/
El Doctor Thomaz Aluares./ Doctor Garcia de Salzedo Coronel./
Al Lector./ Las faltas que enesta recopilacion uuiere, son dignas
de perdon, como cosa hecha en muy breue tiempo, y muy occupado,
assi en visita de mucho numero de enfermos, desde dos de Agosto
que llegamos a esta Ciudad hasta doze del dicho que esto se acabo.
En el qual se les leyo a los Doctores Medicos, Pedro de Palacios, &
Prospero Diaz, Francisco Botelho, Rodrigo Ribeiro, hombres de grande
erudicion, y experiencia, que nos fueron señaladas para proponer las
dudas que en la cura desta enfermedad se offrescieron: los quales la
aprobaron. Algunos medicos para el beneficio deste mal encomenda-
dos por algunos de los que en la materia hão escripto dexamos: solo
tomamos dellos los mas seguros, los mas prouechozos, y de nosotros
mas experimentados, teniendo cuenta principal con las particularida-
des que en los enfermos desta Ciudad hallamos, para remedio de lo
qual se nos mando la escriuiessemos. Escusamonos//
[6]
de alegar autores, porque el que fuere exercitado enellos vera
luego, que lo que aqui dezimos va fundado en lo que ellos dexaron
escripto: y para los que no lo son, mejor le esta la breuedad: y tampoco
haze al cazo de la cura contar cuentos que nos ayan acaecido, porque
eyra, & todos os mais bons cheiros que cada hum quiser deitar, assi dos
comuns como polas menhãas ou aa boca de noite. & estas duas cousas
são muyto louuadas em a fisica, assi pera ho remedio, como//
[9]
para a purificaçam do ar, no qual consiste grande parte da
cura, & preseruação deste mal, porque como o ar corrupto he a cau-
sa delle, a sua retificação sera o remedio./ Assim mesmo se hão de
mandar aos barbeiros, & aos demais, em cujas casas ouuer sangrias,
que logo acabado de sangrar mandem ho sangue ao mar, & o não te-
nham em casa nem aa porta pera o ver, como ho costumão fazer em
outras enfirmidades./ Nestes tempos encomendão muito os Medicos,
que aja pouco exercicio que chegue a trabalho, como jugar a pela, &
armas: & o que mais faz ao caso he tirar todas as danças, bailos, &
ajuntamentos dos negros, assi porque o exercicio (como està dito)
he danoso, como pello mao cheiro que de si dão, & porque elles de si
mesmos são mais pronptos a cair neste mal, & a todas as congregações
de gente se mandão vedar, quanto mais de tal gente. & não somente
estes ajuntamentos nos parece se deuem tirar, mas ainda os nauios
de negros que vierem de nouo, estem em parte onde não chegue á
communicação da Cidade, porque vem aparelhados a esta enfirmidade
por muitas causas. & porque a roupa frisada he a que mais embebe
em si o ar, sera bom auisar aos que andarem entre os enfermos, usem
de outras roupas antes que destas,//
[10]
por mais seguridade de suas pessoas, & dos que communicão.
O pão que se amassa de trigo do mar, não he são por seu mao chei-
ro: podese emendar, amassandoo com agoa cozida com erua doce,
& tambem deitando a mesma erua doce no pão, porque com isto se
retificarà parte do dano com a do mar: isto se entende pera os sãos./
Nam he bom que se venda carne que morresse, nem a que começar
de cheirar mal, & o de seu mesmo os pescados: & assi em as partes
que se venderem todos os mantimentos, se tenha grande cuydado da
limpeza, de maneira que não aja rasto de mao cheiro./ Tambem se
deue de vedar, que não se vendão fruitas danadas, nem começadas
dapodrecer./ He bom que aja muyta abondança de boa carne, de
maneira que a todas as horas se ache, porque seja occasião que se
comma menos pescado: porque nesta enfirmidade o pescado por sua
demasiada humidade he proibido, especialmente o que se pesca perto
das Cidades grandes, onde comem muytas immundicias: porque estes
se corrompem mais facilmente, & de pior corrupção: o das outras
partes que se ouuer de comer he milhor frito ou assado, que cozido,
e sendo cozido sera com vinagre, & sem eruas.//
bres & desamparados nam ham de ter quem os solicite, & porque a
enfirmidade requere os beneficios com tempo, & se vam tarde he muy
difficultoso o remedio, & o mouimento sobre fraqueza he occasiam
de morrer mais asinha. Que em cada hospital aja apartamento pera
curar os escrauos a custa de seus donos, porque não se corrompa
mais o ar com o mao cheiro repartido pollo pouo. & pois que nam
podem estar todos os enfermos juntos, tenha se conta que estem a
parte os que forem mais feridos./ Que se leuem aos hospitaes as ca-
mas dos feridos que la forem, assi liures como escrauos, tendose ja
deytado nellas depois de feridos: pera menos custa dos hospitaes, &
porque aja menos roupa repartida pelo pouo./ Que se busquem pera
administradores pessoas Religiosas, charitativas, diligentes, & de bom
gouerno, pera que dem ordem que os officiaes fação nos hospitaes
seus officios como cumpre.//
[14]
Que aja em cada hospital quem administre os Sacramentos em
entrando os enfermos, pellos inconuenientes que depois socedem,
como por tirarse a fala, ou o juyzo, & polos vomitos que este mal traz,
que nam sera decente receber o Sancto Sacramento com elles./ & se
eleja pera cada hospital medico, & cirurgião, & se o medico souber
de cirurgia sera milhor, & enfermeiros: & podendo auer alguns dos
que praticam cirurgia no hospital del Rey sera melhor por o que ja
entendam, & que a estes se lhes encarregue muyto a charidade, & di-
ligencia: & nam sayam de casa, assi por que nam se alonguem da cura
dos enfermos, como porque nam se apeguem os ares delles aos sãos
de fora./ Assi estes como todos os mais dos officiaes dos hospitaes se
perseruem, assi no comer, como no vestido, como no vso das mezinhas
que se dirão, assi porque se faça o que he necessario com os enfermos,
& se vse de charidade com elles, como porque se morrerem alguns
delles nam se guardando, fugiram os outros de seruir nos hospitaes,
& os enfermos ficaram sem remedio./ Que aja aposento a parte para
os conualecentes, ao qual vão nuus de toda a roupa que antes tinhão
no hospital, & que a sua que antes tinhão, se//
[15]
lhes torne lauada antes tres ou quatro vezes, e a derradeira em
agoa, & vinagre: & no cabo se fara hum cozimento de murta, aroeyra,
acipreste, & zimbro em agoa, & misturado com vinagre se lance sobre
hum tijolo feito brasa ao fogo, & perfumando com o bafo a roupa. &
os mesmos que ham de passar ao aposento dos conualecentes, se
passem onde se ham de reger como conualecentes, porque acontesce
muytas vezes despois de liures da enfirmidade por ficarse entre os
enfermos, tornarse a ferir de nouo, & perigar./ Com os defunctos dos
entam sera bom que estando a casa muy limpa, se ague com vinagre,
& agoa, auendo calma. & se for o aposento principal, & se barrufar
com agoa rosada, & vinagre, partes ygoaes, isto sera melhor. Tambem
se pode fazer isto com hum pedaço de pano de linho, posto a maneira
de bandeira em hum pao, & molhandoo as vezes que ouuer calma no
dito vinagre, & agoa, fazendo vento com elle. & em tempo de inverno
se barrufe com vinho cheyroso, em que seja cozido//
[18]
hum pouco de beijoy, & cascas de cidras, & isto coza tapada a
boca da vasilha, & com fogo manso: & no aposento onde se ouuer de
estar, alguma caçoula feita de beijoy, & cascas de cidra, estoraque,
& huma pequena de algalia, em agoa de flor, para o inverno. & em
verão com agoa rosada, & acrescentando rosas secas, & isto ha de
estar ao fogo manso continuamente, de maneira que saya hum va-
por suave & cheiroso./ O aposento he milhor o que tiuer as janelas
ao norte, & se isto não poder ser, seja ao ponente, & não as auendo
desta maneira, estem cerradas as janelas. Em tempo de inuerno, &
em dia frio, & claro, se podem abrir as janelas ao meyo dia, a horas
que entre o sol, & purifique os aposentos, & casas./ Assi mesmo se
façam fogos de noyte, & menhãa, em verão na parte da casa, onde
mais se communiquem aos outros aposentos. & toda a lenha seja de
bom cheiro, como acipreste, zimbro, alecrim, murta, oliueira, lourei-
ro, vides: podese lhe yr deitando perfume de bom cheiro, quando
se acabar a chama. & de inuerno se podem fazer estes fogos a todas
horas./ Serà bom que em verão estem os aposentos enramados com
ervas, & ramos//
[19]
de bom cheyro, & em inuerno com arruda, poejo, & manjarona,
ortelãa, mentrastos, erua cidreira. Tambem se podem ter fruytas, como
marmelos, camoesas, peros de bom cheiro, cidras, limões, laranjas,
zamboas, & toda fruita despinho./ He bom trazer de contino huma
poma na mão, em tempo quente feita desta maneira: Os tres Sanda-
los, rosas, folhas de murta, flor de golfão, frol de violetas, almizcre,
ambre, algalia, desatado em agua rosada, & com laudano purissimo,
& tormentina de abiete mui lauada com agua rosada: & com isto se
fação pomas para trazer. & para tempo frio se pode fazer de estora-
que, linaloe, canela finissima, nos moscada, beijui de boninas, ambre,
almizcre, algalia, & tudo isto desatado em vinho brãco, vermelho fino,
& se farão as pomas com a tromentina lauada com agua rosada, & com
o laudano. Destas mesmas cousas de que se hão de fazer as pomas,
se poderão fazer huns saquinhos de tafetà carmesi, para pôr sobre
o coração, que a que se aconselha do solimão./ O que toca ao comer,
[22]
Azenias, pescada, & qualquer outro de carne enxuta que nesta
terra se tem experiencia ser bom: com que não seja pescado dentro
de huma legua de Lixboa, polas inmundicias de que se mantem. Estes
auendose de comer, seram milhores assados, ou fritos em pouco &
bom azeite, & deitados em escabeche, ou passados despois de fritos
por vinagre feruido com crauo./ Os ouos de galinha frescos são de bom
mantimento assados, ou cozidos em agoa com a casca, de modo que
de huma maneira, ou de outra sejão moles, ou passados por agoa com
agraço, ou vinagre, ou çumo de limão./ Toda cousa de leyte he muito
danosa, soffrese comer algum pouco de queijo velho do muito bom
dalentejo./ As fruitas verdes, todas as mais as defendem os autores,
excepto ginjas, romãas, abrunhos, marmelos, peras, peros, camoesas:
laranjas agras são louuadas, ou as bicaes./ Das fruitas secas, são boas
passas de toda sorte, figos passados, auelãas, nozes, amendoas: & se
começar a comida com figos passados, recheos com nozes, & erua
doce, em inuerno sera acertado: & as alcaparras ás ceas por selada,
são muy encomendadas para esta materia.//
[23]
Dos legumes & eruas, as azedas na selada, ou cozidas com a car-
ne, borrages, sarralhas, & escabiosa se podem usar. Lentilhas são muy
louuadas cozidas com agraço, ou com vinagre./ Tenhase por auiso que
diuersidade de manjares a huma mesa, ou guisados com diuersidade
de cousas, como manjar branco, miraustre, tigeladas, pasteis de todas
maneiras, & finalmente misturas de comida são danosas: o assado he
o milhor, & logo o cozido com has condições ditas./ A quantidade de
comida seja de maneira que o estamago a possa muy bem gastar, &
não lhe dê fastio, & que estê primeiro a comida bem gastada. Milhor
he declinar a pouco comer que muyto, com que não seja tam pouco,
que se enfraqueça a força./ Todas as cousas doces, assi conserua,
como outras daçucre & mel, não são proueitosas nesta materia, ain-
da que as cousas que de seu são boas não se podem guardar se não
conseruandose, como são marmelos, peras, ginjas, & os çumos agros
como de cidras, agraço, limão, camoesas, peros cheirosos: de todas
estas cousas se podem usar, não por doces, se não por ser contrairas
ao mal da peste./ As cousas vntuosas, & de grossura,//
[24]
et azeites são danosas, ainda que sejão em pouca quantidade,
porque os manjares que as leuão tambem se mandão deixar./ No que
toca ao beuer para preseruação deste mal, he bom que o que tem de
costume beuer vinho, & os velhos que o não tiuerem, o beuerão mo-
deradamente aguado conforme a força do vinho às oras das comidas.
fonte em perna que se lhe tenha cerrado, ou se teue gota em os pes &
faltandolhe neste tempo, seram as sangrias em os pés./ Não somente
he mester escusar o dano do contagio, com tirar as cousas danosas
para a preseruação desta infirmidade, mas usar de cousas que forti-
fiquem as virtudes, & tenhão propriedade contra o mal. Entre ellas a
mais antigamente louuada he a Triaga, a qual se pode, & deue tomar
em inuerno atè cantidade de hum adarme, & atè dous aos de catorze
annos para cima, & para os mininos he mais apropriada a Triaga de
esmeraldas, tomada em cantidade de hum escrupulo sendo atè tres
annos, & dahi para cima atè chegar a huma dragma. Em verão sera bom
tomar hum pouco de bolo armenico atè em cantidade de mea dragma
em hum ouo fresco assado, ou com agua de azedas, ou rosada.//
[31]
Entre as outras cousas em a fisica mais louuadas, & que mais
seguramente se pode tomar em a cantidade que quiserem, & com
ser mezinha he manjar, he huma mistura de figos passados, & nozes,
folhas de arruda, com hum piqueno de sal, & he tão virtuoso que lhe
quiseram chamar Triaga: & para isto se pode fazer que como os figos
se acostuma de arrechiar com amendoas, em lugar das amendoas se
faça com pernas de nozes, & com arruda, & sal que esta dito, & isto
he milhor para inuerno que para verão, dado que para todo tempo
ho louuam os authores. Assi mesmo os pos da raiz da tromentina, ou
sete em rama, ou a pimpinela peso de huma dragma tomados pola
manhãcom agua dazedas he remedio mui conueniente: podese tambem
tomar estes pos em algum ouo fresco, & comer com elles, ou despois
delles alguma cousa de boa sustancia em pouca cantidade, porque he
muy conueniente desjejumarse [sic] pollas menhãas com alguma cousa
de boa sustãcia que faça contra este mal, & quem não tem costume de
almoçar, tome em verão huma sopa de çumo de agraço, ou de huma
laranja agra, ou ginjas, & em inuerno abastalhe os figos. Tambem se
pode fazer pera os mais delicados, & poderosos, Humas talhadas
per poluoras cordiaes de triasandalos, de diamargaritom frio, pos de
pepitas de cidra, de rayz de sete em rama, de aljofar preparado, de
semente de rosas, de azedas, de bolo//
[32]
armenico, & os que quiserem que se lhe acrecente pedra bazar,
sera mais ao proposito. Destes poos sejão as quantidades yguaes,
excepto o bazar que sera muyto menos dos outros, mais ou menos,
como a arte da botica ho insina, & com açucre finissimo se podera fazer
lectuario ou talhadas, de peso cada huma de duas ou tres dragmas./
Soemos usar de huma conserua de çumo de agraço, & a chamamos
gelea de agraço: esta para colericos, & em verãos, & pera preseruação
este tempo que ha que estamos aqui, que se pode tirar sangue com
mais ousadia do que os authores nos permitem. Ajudase isto ser a
região temperada, os mantimentos de muyta sustancia, & este mal
trauar mais em humores quentes, assinaladamente no sangue. & assi
o mostram as postemas que saem, que testificam auer inflamação
nas partes interiores, ho qual quasi sempre he de sangue. & muyto
mais se nos confirma esta opinião por auer visitado muita copia de
enfermos, assi dos mosteiros, como outras muytas gentes por toda a
Cidade, nos quaes sempre parecem de grande auondança, & infeição
no sangue. & ainda que os antigos vedarão geralmente a sangria de
catorze annos abaxo, a experiencia nos tem mostrado que tres acima
geralmente donde cumpre se pode fazer sangria como nesta enfirmi-
dade. & o mesmo entendemos que se pode//
[35]
fazer nas prenhes. Porque temos por certo que das sangrias
que mais ordinariamente fazemos, não entendêrão os que as vedárão,
que se deuião prohibir nas ditas pessoas. Sendo a dor muy grande, se
podem adiantar em tirar mais sangue auendo constancia de virtude,
& tendo grande atenção a não mudar vea, posto que se requeiram
tres, ou quatro, ou mais sangrias: porque todas as que aos medicos
parecer ser necessarias, se podem fazer liuremente da mesma vea &
lugar, que abayxo se declara. & encarregamos a consciencia a todos
os que o ham de exercitar, que nisto não aja falta: e o instar tanto
nisto, nos obriga ter visto o contrayro em muytos dos enfermos que
temos visitado, & o temos por muy certo danno. O primeyro porque
o principal que o medico he obrigado fazer, he imitar & ajudar a natu-
reza: & isto he mais necessario quando está alguma cousa debilitada,
& peleja com tam brauo enemigo, & nesta infirmidade de peste não
pode louuar de forte, porque poucas vezes deixa destar fraca. Porque
o ar que he, de donde ha de tomar refrigerio o coração, & os spiritus,
sempre o offende em alguma maneyra por estar inficionado. & ainda
que os homens andem sãos, quando vem a cair, ja estão maltratados,
posto que entonces se manifesta o danno. Bem assi como agoa que
caindo na pedra, ainda que desda primeira gota que cae começa a
fazer impressão, & sempre a faz, nem//
[36]
por isso se deixa ver este effecto, atè que aja nella notauelmente
cauado. Assi o danno que faz o ar, não se manifesta atè que tem feita
notauel impressão. Como claro parece do homem que saindo do ar
inficionado ao liure passa alguns dias sem enfermar, & depois enfer-
ma deste mal, cousa certa he que o ar liure não lhe causou o danno,
se não a infeição que trazia da parte inficionada de donde sayo. &
dentro do ventre da mãy, que morta ali com muyta mayor difficuldade
a despidira a mãy, que não viua: pois lhe falta a ajuda que pera sair do
ventre faz a mesma criatura sendo viua. Mayormente que a sangria do
artelho não faz mouer forçosamente, nem sempre: & isto se verifica,
porque muytas vezes queriamos prouocar menstruo com sangria do
artelho, & fazendoa não sahimos com isso. & muytas vezes tambem
se tem visto, ignorando a emprenhidão assi a paciente como o medico
que a cura, querendo prouocar os meses sangrar dor artelhos, & não
mouer: & algumas molheres que de proposito procurão mouer com
esta sangria, não saem com isso. & assi ay quem diz que pera que
melhor a sangria do artelho//
[43]
prouoque menstruo ha de preceder outra do braço, & esta pre-
supomos que hade faltar neste caso, ainda que aja auondança: a qual
entendemos que aja de auer pera fazer a do artelho, despois da do
braço na prouocação do menstruo./ & assi das molheres prenhes que
temos visto com inchaço na virilha, sangrandoas do braço escaparão
poucas, & as que se sangrarão no artelho tiuerão mais remedio. & não
ay duuida senão que qualquer infirmidade aguda em molher prenhe
he perigosa, & muyto mais esta por ser de humor venenoso. & se
bem olhamos huma das potissimas causas, porque se teme mouito
[sic] nas prenhes com sangria, he porque no discurso da infirmidade
he necessario apoucar o mantimento pera a cura della. & por isto
he necessario que aja posito de sangue pera manter a criatura, &
nesta infirmidade não ay este inconueniente, porque antes auemos
de yr ceuando a virtude com bom mantimento./ Outra duuida se
offerece nestas infirmidades, & he que auendo inchaço pestilencial,
ou carbunculo no sobaco, ou virilha, & sobreuindo acometimento de
humor á cabeça, que fizesse huma maneira de frenesi, ou catafora das
que agora andão quasi vniuersalmente, se se fara sangria da vea da
cabeça, & deitarão ventosas secas, ou com sarja nas espaldas, que
são os remedios adequados//
[44]
e encomendados dos autores. Dizemos que em nenhuma ma-
neira, auendo inchaço na virilha, ou sobaco, se deue fazer sangria da
vea da cabeça, & para persuadir isto cremos não serão necessarias
muytas razões. Basta que se entenda que a catafora, ou acometimen-
to à cabeça he accidente da infirmidade: porque como o humor esta
venenoso, não deixa de acometer todo membro principal, para mais
asinha derribar o enfermo. & assi tendo respeitoà causa do acidente,
que he o humor venenoso que natureza deita ao inchaço, remediandose
o inchaço, que he a causa principal, se remedia o da cabeça que he o
[55]
Que tenha força de coroborar, como çumo de marmelos,
de agraço, de assencios verdes, ou agoa delles. Do que milhor se
podem fazer estas epithimas são agoa de indiuia, de almeirões, de
erua moura, de azedas, de escabiosa, rosada, & vinagre rosado,
acrecentando as cousas ditas. Os pòs para esta epithima são con-
feição de tria sandalos, dia margaritom frio, diarroslom de abade,
pòs de rosas, & de assencios verdes, deitandolhe de contino hum
pouco de alcanfor./ Com qualquer acometimento à cabeça, ou sinal
delle, que he auendo dòr nella, falta, ou sobejo sono, he necessario
tirar sem detença o cabelo da moleira bèm raso, porque naquella
parte he mais facil a penetração ao celebro: & poerlhe defensiuos,
molhando hum pano de linho usado nelles, e renouando o muy a
miude de maneira que não se aquente muyto, se ouuer demasiada
quentura na cabeça, nem se deixe secar. Os materiaes quasi sempre
hão de ser huns, variando as quantidades, porque tendo falta de
sono, se ham de poer quatro partes de azeite rosado, & huma de
vinagre rosado: & auendo muyto sono, a metade de vinagre que
de azeite. Em todos he bom acrecentar sandalos: & nos que muyto
dormirem, alcanfor. Isto se poera quente, frio, ou temperado, se-
gundo a quentura que na cabeça//
[56]
ouuer, ou a temperança do tempo./ O estamago se conforte com
grande cuydado desdo principio, porque importa muyto conseruar
a vontade de comer, & a digestiua, ou concotiua [sic]. & isto se fara
muy bem com que se ouuer muyto ardor no estamago, poer nelle de
çumo de agraço, ou de marmelos, & de azeite rosado, partes iguaes,
molhado hum pano nelle, & posto no estamago. Não auendo muita
quentura, se faça hum cozimento de duas partes de Alosna, & huma
de ortelaã em vinagre meamente agoado, & molhando huma reuanada
de pão tostada no dito vinagre, & pisada com a Alosna, & ortelaã, se
faça em forma de emprasto, e se ponha quente no estamago, porque
conforta, & restitue à vontade do comer./ As apostemas pestilenciaes
que nascem nos emunctorios, tem necessidade de remediarse com
breuidade, nam os curando a elles escusando que nam venham a
maduro, senam chamando a elles o mao humor, apartandoo dos
membros principaes: porque em tal caso he muy perjudicial poer
causa que defenda que nam se engrandeça. & a atração se procure
de contino: seja com medicinas que nam tenham em si mà qualidade,
antes propriedade, & virtude contra a peçonha, ou se mesture com
as medicinas atractivas alguma//
[59]
de aberto se va mundificando. & se ficar por madurecer alguma
[...] da postema, indose modificando a chaga, se vam pondo cousas
para madurecer nella: & entonces se procurara de encarnar, quando
estas cousas esteuerem feitas. & nam se acabam de poer aqui outras
particularidades de mais remedios, porque se poem nas duuidas que se
nos moueram, donde està bem dicedido./ Os carbunculos nascem em
differentes partes do corpo, & nelles tambem he necessario atração:
& porque as medicinas que nelles se aplicam, com a codea ou escara
que fazem nam penetra sua virtude, nem faz fructo, he necessario
que feitos os remedios vniuersaes, logo se sarje, & sejão as sarjas tam
profundas, que debaixo da escara saya sangue, & lauese com salmoura
quente, para que va saindo melhor sangue: & nas sarjaduras se deite
pedra bazar muy moyda, & de tal maneira se ha de deitar, que caya
na carne que descubriram as sarjaduras, porque he remedio muy
certo extirpando o veneno./ Nestes carbunculos, junto á escara he
grão beneficio aplicar humas sambijugas [sic] das que na phisica sõ
louuadas, para que picando ellas, & começando a chupar o sangue,
quando se vão enchendo lhes cortem as colas com//
[60]
humas tisouras, porque despedem por ali o sangue que vão
chupando, & assi não se fartam. & se pode tirar com ellas quantidade
de sangue seguramente, porque chupão o sangue melancolico, & taes
quando faz carbunculo: & he mais conueniente este remedio, quando
saem muitos juntos em differenetes partes do corpo./ A escabiosa
verde machucada entre duas pedras, & se for seca, enternecida com
sua mesma agoa, & posta ali, em todo tempo aproueita: & para ar-
rancar a escara mesturaa com manteiga de vacas, & gema de ouo,
mesturada com sal moyda, a maneira de vnguento, he boa em todo
tempo para isto. & para arrancar a escara he muy bom hum emprasto
de figos passados, & nozes, pisado, & mesturado com hum pouco de
mel: & depois de arrancada, não hay que fazer mais, que mundificar
a chaga, com mundificatiuo de apio, & depois encarnando quando
for tempo./ Para poer ao derredor do carbunculo, & não na escara,
he excellente remedio fazer hum emprasto de romãa agra, cozida em
vinagre, & pisada, & encorporada com farinha de ceuada, atè que
tome ponto de emprasto, & poelo (como està dito) ao derredor, sem
que toque à escara, porque este tal mata a peçonha, & defende que
não se estenda//
[61]
mais a escara. & ainda estorua que aquelles vapores do muy
adusto (que não podem transpirar polla casca) tornam a retroceder, &
seco, & açafram, & nam outras, & sempre com algum agro dos ditos./
O beber seja, auendo febre rija, agoa cozida com ceuada, & [...] de
cidra, & se a aborrecer muyto, ou não ouuer tanta febre, seja agoa
muy boa fria./ & os muy acostumados à beber vinho, & fracos, não
auendo reponta de damno na cabeça, poderam beber muy pouco vinho
branco, & não muy anexo, de muy pouca força, & seja bem aguado, &
ordinariamente seja bem frio o que ouuerem de beber./ O somno, aos
principios ao menos, seja pouco, com que não se desuelem demasiado.
& se sobreuier accidente de começar à profundarse o somno, se lhe
procurem desde logo os remedios que acima estão ditos para este
proposito./ Sempre se procure de alegrar, & poer animo ao enfermo
nesta infirmidade por todas as maneiras possiueis.
[68]
As faltas que neste regimento curatiuo ouuer são dignas de per-
dão, como cousa feita por homens que as horas que nelles gastarão,
tirarão do sono necessario á seu repairo, & saude, por andar todo o
dia occupados nos enfermos do pouo, & das religiões, procurando
seruir nisso a Deos nosso Senhor, & á Sua Alteza, quanto nossas for-
ças alcanção./ O Doctor Antonio Diaz, Prouédor Mór da Saude por el
Rey nosso Senhor, com gram zelo do bem comum, & paraque todos
tiuessem noticia do modo que auião de ter na cura destas infirmidades,
& nenhum caysse em error no remedio dellas, nos fez ajuntar muitas
vezes com os Medicos para este proposito deputados, para que em
sua presença se tomasse resolução por escripto ns duuidas que se
offrescessem, & proposessem. & tendose em sua presença tomado
resolução, não nos deu lugar para limar, & emendar o escripto, não
soffrendo dilação em cousa que cumpre ao bem comum. & assim te-
mos por bastante desculpa mandado de pessoa tam graue, procedido
de tam Christianissimo peito. Praza á nosso Senhor seja para tanto
fructo, como delle, & todos desejamos.//
[69]
As Determinações das Duuidas, que se Propuseram ante o Doc-
tor Antonio Diaz, Vereador, & Provédor Mór da Saúde./
I. Se se vsará de Triaga magna, ou de Esmeraldas: & de bolo
Armenico, & quando./
Determinouse, que se pode vsar de ambas Triagas, sendo
boas nam sendo a quentura muy intensa, & auendo mostras de muita
peçonha, particularmente, quando o dano for na cabeça, se vsará
da Esmeralda: & quando no coração, & essoutras partes, da Magna:
& quando for a quentura muy intensa, nam se vse de huma, nem de
outra, senão de bolo Armenico, nam tendo o enfermo opilação, nem
humores grossos no peito./ Quanto ao tempo em que se deue dar
Porem se for pequena, & sem dor, entonces quadra poer nella huma
ventosa: & se for dura, fomentações com cousas que abrandem, &
logo ventosa: & sempre com qualquer destas fomentações se deite
triaga./
6. Duuidouse, quando estas febres pestilenciaes começão com
vomitos de colera verde, ou amarella, se sera bem ajudar brandamente
ao vomito, ou nam./
Determinouse, que auendo saydo ja os inchaços, ou dores, que
os significassem, ou carbunculos, que em tal caso em nenhuma se
prouoque vomito. Mas que auendo febres pestilenciaes, sem estes
sinaes, & com humores muy apartados da natureza do sangue que
està no estamago, que entonces//
[72]
se ajude brandamente com agoa tibia, & enxarope acetoso./
7. Duuidouse, se auendo em tal caso vomito de huma maneira,
ou de outra, todauia se procederia com sangria./
Determinouse, que si, por causa da febre continua, & inflam-
mação de algum dos membros principaes, de donde procedem as
apostemas que parecem, sinaladamente nesta cidade, & neste tem-
po, donde parece auer muyto inchimento de sangue, & os outros
humores misturados com elle: presuposto que se conforte primeiro
o estamago./
8. Duuidouse, se quando parece que a febre pestilencial abranda,
ou de todo ponto se tira, ficando todauia o inchaço por alguns dias, se
tratarão do folego, como nas outras febres, & tempos: ou se todauia
se procederá com atractiuos, & maduratiuos./
Determinouse, que quando o inchaço sair primeiro que a febre,
sempre se estê sobre auiso que delle hão de vir febres, & accidentes:
pollo qual conuem, conforme à qualidade delle, fazer chamamento
fora, & mesturar maturatiuos, se for duro: & no processo yr mudando,
como ao Medico lhe parecer./
9. Duuidouse, se parecendo que o inchaço crece de maneira,
que parece//
[73]
que virà a madurecer, & por deterse, nam deixam os accidentes,
nem a febre, se sera bom abrillo com cauterio de fogo, antes que com
lanceta./
Determinouse, que parecendo sinal de maduração, se pode vsar
o cauterio actual, & profundo que chegue ao lugar da materia: em todos
os outros, se faça como està respondido na quinta duuida.
LAVS DEO.
O Breue summario da peste ... é um relato escrito por uma frade domi-
nicano anônimo da mesma epidemia que originou o tratado médico do anexo
anterior. Seu autor parece ter vivido na cidade de Lisboa assolada pelo flagelo,
em 1569, data provável da redação da obra, e traça em cores vivas as mazelas
que, ao seu juízo, abateram-se sobre a comunidade, recorrendo à metáfora
que constitui a cidade como uma nau perdida no mar. O manuscrito transcrito
a seguir encontra-se no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa, Portugal.
[15]*
O senhor Deos gratifique a charidade que me fez em me alertar
com suas lembranças pois/ me imposibilitou de as poder renunciar,
mais que em deseios, mas porque da minha parte/ farei o que he
posiuel na obra lhe peço ma faça tamanha como todas as suas o sam
pera/ mim. aceite este breue proceso do largo & compendioso que
oferecer pudera, cuio discurso he/ daquilo, quae uiderunt oculi mei
muitas vezes, que he o termo que o Euangelho daa pera/ pera [sic] se
poderem chamar uerdades./ O qual foi uer huma fermosa [et alterosa]
nao, que se intitula boalis que se diz auer largos anos/ que estaa surta
no porto deste bem asombrado Rio Lisbonense em paz e tranquilidade,
et/ no mais quieto soseguo deste tempo se aleuantou huma mortifera
tormenta dos ares celestes,/ que foi recebida por nada, de que deos cus-
tumou a fazer heroicas & sumptuosas obras,/ como foi o Ceo supremo
corte Real, cuios cortezãos sam os superiores corpos Angelicos & spi/
ritos bem auenturados, & ho mundo ornado de tam uaria fermesura,
& deleitosas prantas/ de agricultura, & fontes, & rios caudais de tam
saborosas agoas como as do poço de Jacob. & da cis/terna de Dauid,
criando nele o paraiso terreal aa nos tam incognito: fez mais ho/ ho-
mem a cuio feitio pos tam heroico titulo como foi dizer delle que era
sua ima/gem & semelhança, & quanto esta nada nas mãos & iuizo de
deos obrou maravilhas,/ tanto estoutro que digo nas mãos & iuizo dos
homens obrou dano. com o qual rebuço/ de não he nada se começarão
a leuantar tam labirintozas ondas que quasi todos lhe pe/diam como
Leandro a pasagem sem risquo das uidas o que asim não socedeo. ho/
qual feito pos todos em tantos que cada qual dos nauegantes comecarão
de alijar has/ fazendas & pescas com tam desatinado impeto que mais
parecia pouca, fee que temor de/ peito christão, com a qual diligentia
se alijou a nao quasi de toda a carga & gente/ & em tam breue espaço
que foi pasmo deixandoa todos seus superiores senhorio [rei] ca/pitão
[cardeal], condestabre [os do conselho], alferes [regedor], meirinho,
Rolda Estrinqueiro. os que mor escandalo deram/ com suas idas foi o
piloto & ho Mestre por serem dos tres que em tal tormenta erão nece/
sarios pera o gouerno & leme da nao & ficou soo o Contramestre com
hum guardiam não/ crendo que a tormenta fose tamanha & durase
tanto mas deixada dos mais & não dos/ nomes doficiais dela logrando
*
O documento principia pelo fol. 15.
os estipendios. prois. & percalsos que por elles lhe con/uem deixada
soo com os pobretes que faltandolhe o siualho dos que se puderam/
saluar começarão a morrer aa mingoa, que por amor da patria huns.
outros por/ imposibilidade ficarão esperando saluarse nas tauoas da
nao porque de todo ho mais/ fiquou ingrime de monicoins [sic], exar-
cea, uelame, armas, que soo mente deixarão o casco:/ com estes que
digo pegados nele como [...] acompanhados de estranho temor, por/
se uerem soos tam magoados. Em cuio porto comecarão inuocar <o
oraculo da> misericordia <de deos>, com/ procisoins piadosas, pelas
quais se cree acudirlhe deos com ella para as almas, uisto/ como en-
tão não foi seruido dela para os corpos. com <o> qual afeito fiquou a
nao aruore/ sequa nas empoladas ondas da morte, alhea da frol dos
lustrozos soldados. auentu/reiros. pasageiros. & filhos dalgo que em
seus largos comuezes se sohião uer, et/ dos granes [sic] & nauios
merquantes que nela traziam os ualerosos diamantes da distan/te Bis-
naga, os riquisimos robijs do alongado peguo & as alegres & custozas
esmeral/das. & çafiras de Çeilão com outras uarias pedras preciosas
roubadas ao centro/ da terra. & as mui estremadas Perolas orientais.
& as mui curiozas peças & alfaias/ de Asia. Ethiopia. Arabia. Persia.
India. & doutras conquistas a nos remotas.//
[15.v]
et dos professores do alegre & Remediauel metal Minatico. & do
tumulto dos largos tratantes/ de todalas conquistas de frandes. fran-
ça. Inglaterra. Milam. [Enues]. Paris. vngria. Alemanha/ alta & baixa.
Olanda. Ruam. noua & uelha Espanha os quais traziam entre mãos
ho/ mundo uelho & nouo com a qual congregação de nauegantes se
ornaua esta nao Boalis que/ desamparada então dos naturais ficarão
humas uarias & infinitas camaras de tosquo & bru/tesquo, habitadas
de famintas baratas tam tristes e tais que era pazmo & magoa & os
caste/los de popa & proa que renouados eram de nouo corridos [do
custo que nelles se fizerão se auia por ditozos] por serem asim des-
troçados das fu/riosas ondas [de lingoas] que neles quebrauão sem
polas bombardeiras deles parecer cousa uiua & as/ antigas & largas
escotilhas [portas] abertas sem auer quem entrase & saise por elas
auenturadas/ a serem entradas de quaisquer imigos tendo custado
tanto sangue damigos ha pose delas./ procedendo este desemparo
que o temor fazia cada ues maior comicarão [sic] a perecer mais aa/
mingoa os pobretes que ia dise esperando saluarse nas boias da nao,
no qual trabalho huns/ de outros fugiam como de imigos capitais tra-
zendo quotidianos defensiuos. & uendose/ alheos de todo o humano
remedio, chamarão uoce magna polo diuino com frequentação/ de
proçisõins [sanguinhas & lacrimozas] as quais foi huma aquela tam
tantos que uiam padeçer. a este trabalho acudio/ logo a muito catolica
Religiam do bem auenturado, & serafico padre são francisco, descalso
do mundo/ calsado de deos com o lado aberto de caridade & despois
as mais ordens saluo huma que não quiz/ dar copia de si guardandose
do efeito mas não da causa. aceitando enterrar em seu/ conuento os que
deixauão enserrandose com outros das portas adentro com o amor do
pro/ximo, que nunqua ouue quem os uise andar pelo rasto dos mais, em
que se comprio a/quela parabola do euangelho o que caio em mãos de
Ladrõins que pasou o sacerdote/ & leuita sem se compadecerem dele,
& o samaritano lhe ungio as feridas, & pos em pouo/ado: asim pasou
na realidade que muitos sacerdotes & leuitas pasaram de largo pelas/
feridas não de Ladroins mas de deos, & muitos samaritanos visitarão
& conso/larão, & não/ como hum sacerdote que tendo consagrado na
misa o santisimo sacramento para dar/ aa gente são, o deixou no altar
com temor sem o dar deixando a gente descon/solada & não menos
escandelizada mas parece que foi iuizo de deos porque dahi a/ bem pou-
cas oras faleceo do mesmo mal de bem pequena ocasiam & parte disto
aconteceo/ aos mais fechados a quem a tormenta afogou mor numero,
que daqueles que deseu/ proprio moto se oferecerão a isso [porque
nisi dominus] que forão os religiosos Dominicos aquem ficou todo/ o
peso das confiçõins como se forão uigairos parroçhiais por rezão que
os curas se/ ocupauão todo o tempo em sacramentar & ungir./
Neste estado estaua esta nao quando o seu contramestre, que
ficou não lhe parecendo/ que a tormenta fose desfeita como algumas
uezes acontese em casos semelhantes quererem/ pilotos mostrarse
tam sabios & animosos que gritando todos amaina dizem issa o que/
as mais das uezes acontese sosobrar ou dar a costa como a esta
aconteceo, mas bem se/ cree de sua uirtude prudencia & nobresa
não querer mostrar saber soberbo mas piadozo/ de cuio foro os erros
são sofredoiros saluo os desta calidade se não tiuerão a deos/ por
prouedor sendo nos ocasiam deles. o qual & o guardiam que com elle
ficou uendo/ como não auia remedio humano, & que o diuino tinhão
pecados tam distantes de si/ & feito antre terra & ceo outro daço &
de mor dureza que Diamantes, o qual impedia/ o orualho & rocio da
misericordia de deos, que anos não chegase & que ia de agra/uado
de nos em pubrica forma nos tinha trocadas as mãos como filhos de
Josue fazen/do sua piadade esquerda & iustica direita, como o hera em
nos castigar pois não ou/uia padroeiros mas quebrandolhe priuilegios
antiquisimos, que prometidos a seus/ deuotos tinhão tanta liberdade
quanto os anos pasados lhe segurauão nos quais deos/ sempre tanto
disimulou por seus meos, ate que uendo que seruiam ia mais fiansas/
de santos de ofensas suas que de seruiço seu permitio que por então
enxoualhadas entre o tumulto de tanto negro & gente baixa/ com tam
pouca reuerencia aa tanta autoridade era lastima: as femeas & machos/
como colchetes por cuio respeito queriam antes os enfermos morrer
nas muradas/ da nao soo com os alhos & cebolas do Egypto que em
tal ualhacoito, que alguns/ dias estiueram sem elle por não se poder
acodjr a tanto. acabo do qual a cari/dade dominica querendo em tudo
ser frutuosa uendo sinquo religiosos dela que os/ proximos pereciam,
& o contra mestre não podia mais como desamparado dos parceiros,/
& que o pezo da tormenta era graue foranse meter todos sinquo aa
honra das/ sinquo chagas de christo por cuio amor por cuio amor [sic]
o fizerão, no mais interi/or do roxo mar uermelho onde as ondas do
fim andauom mais empoladas apon/zentandose na mesma oficina do
mal, querendo ali sacrificarse a deos & aos pro/ximos vsque ad mor-
tem no mais espantauel da tormenta cousa asaz dina de consi/derar
o que esforcou tanto a gente que de nouo se feria, que ia pedia o que
dantes/ repudiaua clamando que a tirase da nao, & a leuasem aonde
estauão aqueles/ uerdadeiros seruos de deos, em cuia caridade tanto
resplandecia a diuina. porque/ ia ali morrião consolados, como forão
todos os que se espediam da uida, & pera que/ ouuese em todos os que
adoesesem este deseio, determinaram estes religiosos que os que/ da
sua ordem enfermasem, fosem ali leuados pera que uistos pelos que
de nouo caise/ com mor eficacia quizesem ser leuados onde estauam
os mais, & asim pasou que/ o que dantes era força & degredo ueo a ser
merce pelo amor com que eram trata/dos & suas almas consoladas com
santos exemplos & exhortacoins. & os corpos com/ ho necessario dos
medicos, que auia butiqua & nutrimento, & tudo o mais anexo/ de que
logo foi larga mente prouida a oficina pelo contramestre & gardiam/ &
mais gente da nao com muita diligencia, cuidado, trabalho. & perigo de
suas pessoas,/ & com grande gasto que se fez a pasante de sinquo mil
pesoas. das quais sera/ falecidas mil & oitocentas, & sans pasante de
duas mil & seis sentas a fora os/ conualecentes & enfermos, & grande
copia de criancas de hum atee seis anos hos/ mais deles que ficaram
orfãos com quem se tem particular cuidado por rezão/ das idades.
outro gasto se fez numeroso com a gente que na nao se curou//
[17]
Em cuio numero uariam as cifras dos arismeticos [sic]. a qual
foi uisitada por ordem/ que pera iso deu hum catolico uiso Rei que
o senhorio da nao mandou logo na entra/da da tormenta com largos
creditos & poderes pera a prouisão geral de toda a sorte/ denfermos
pobres que estauão dentro na nao cuio cargo tomarão as religioins
ho/ qual oficio acabaram quasi todos de o deixar asim por muitos que
faleceram deles/ como polo temor que isto fez nos poucos que escapa-
com os meus. mas inda asim ficam asas capazes de merecimen/to asim
do pouo da nao como daquele por cuio respeito ofereceram suas/ uidas
a tam certa morte. Ha mor furia desta tormenta durou//
[17.v]
tres mezes, antre outros que antecederam & procederam de
menos trabalho de que/ foi Julho, Agosto. setembro. & agosto foi o
de mais desgosto porque ouue dia de/ seiscentas pessoas, & asim
nauegauam os esquifes de mortos por terra como se foram/ pelo mar
ueleiados porque a mare era tal que não uia olho senão bargantis/ que
ao cabo do dia tinham feitas mais uiagens do que tinha de horas os
quais/ hiam sempre tam sobrecargados que as uezes alijauam hum no
meo da uiagem/ & depois tornauam por elle & chegando aos semite-
rios que de monturos, praias. & car/dais se fizeram os deixauam sobre
elles que pareciam roupa uelha & noua na ribeira/ dalcantara atee lhes
ser chegada a hora de sepultura de dez em dez. & de uinte/ em uinte
como estaa por lembransa pera o futuro com cuias uiagens puzeram/
no porto da outra uida segundo huma das contas piadosas quarenta
& quatro mil/ almas. no qual tempo eram os coueiros mais peitados
que despachadores do reino et/ alguma parte cabia aos remeiros dos
esquifes. porque posto que eram forçados & postos/ nas partes limi-
tadas da nao pera estarem a pique com seus bargantins esquipados/
queriam ser tambem estipendiados como se ali não comprisem o que
deuião nas galez/ mas nem esta diligencia bastou per deixarem muitas
pesoas de tomar seus mortos/ aas costas, Ou arastro, & hilos enterrar
atee o pee da forca que tambem se sagrou/ onde aconteceo darem as
ofertas de pão & uinho aa meninos que com sua inocentia/ hiam uer, o
que fazia pasmar. outros ouue que nenhum remedio destes lhes/ coube
em partilha falecendo tanto ao desemparo que ninguem soube deles
se/ não acabo de dias pelos fedores que das camaras sahiram, cuias
portas quebradas/ os achauam ia roidos dos ratos & doninhas, & tais
de podres que as mesmas cama/ras lhe ficauão por sepultura onde lhe
abriam couas em que os uirauam por/ não estarem para mais, em que se
achou hum defunto em joelhos com hum crus/ na mão & na outra hum
pedaco de uela que ardeo atee lhe queimar os dedos onde/ se apagou,
& não serem comidos dos cãins & gatos foi por rezam dos que eram/
mortos por mandado dos fisicos por entrarem nas casas impedidas
dos feridos a/ comer o que deles sobeiaua. & os emprastos de pombos
& frangos & sangrias et/ depois entrando nas desempedidas as inficio-
narem contaminando os ares delas/ pera a qual execução auia certo
estipendio por cada cabeca de quão ou gato/ nem faltauão ministros
asas solicitos que leuauão suas cambadas a resis/tar a parte que pera
iso estaua limitada onde os tomauão em receita/ por serem pagos./