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O poder nos tempos da peste

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Mário Jorge da Motta Bastos

O pOder nOs tempOs da peste


(pOrtugal – séculOs xiv/xvi)

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, 2009

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Copyright © 2009 by Mário Jorge da Motta Bastos
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP


B327 Bastos, Mário Jorge da Motta
O poder nos tempos da peste (Portugal - séculos XIV/XVI)
Mário Jorge da Motta Bastos – Niterói : EdUFF, 2009.
212 p. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia. p. 129
ISBN 978-85-228-0522-80475-7
1. Doença 2. História I. Título II. Série
CDD 362.1

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Tania de Vasconcellos

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Sumário
Prefácio, 9
1. Introdução, 17
Parte I: A doença presente e nomeada
Capítulo 1 – A peste no Ocidente: o mal inscrito na
longa duração, 25
1.1 A polissemia do termo e as pandemias históricas, 25
1.2 Os “efeitos” de um mal sem par, 30
1.3 Um novo ciclo de terror, 35
1.4 As cidades são sobretudo mortuários, 40
1.5 Caos inexplicável?, 45
Capítulo 2 – O discurso cristão: doença-pecado coletivo, 47
2.1 A mão interventora e punitiva de Deus, 50
2.2 As “primeiras formulações”, 51
2.3 Imagens e expressões do castigo, 54
2.4 O castigo aflige a comunidade, 57
2.5 Origem e sentido do castigo: pecado, culpa e redenção, 62
Capítulo 3 – Autoridade e interdições: a medicina e a doença, 73
3.1 A medicina constrói a doença, 75
3.2 Um discurso de autoridade e interdições, 81
Parte II: O Rei físico e a saúde do reino
Capítulo 4 – Imagens funcionalistas da realeza, 89
4.1 Aspectos da produção literária da corte de Avis, 93
4.2 O Livro da Virtuosa Benfeituria do Infante D. Pedro, 96
4.3 A realeza saneadora, 101
Capítulo 5 – A efetivação das imagens, 109
5.1 Aspectos da afirmação do poder régio, 109
5.2 Vetores da intervenção régia em matéria de saúde, 114
5.3 “Taumaturgia” régia e restauração do corpo social, 117
Conclusão, 131
Referências, 133
Anexos, 145
Normas gerais de transcrição de documentos, 147
Anexo 1 - Regimento proueytoso contra ha pestenença, 149
Anexo 2 - Recopilaçam das cousas que convem gvardarse no modo
de preseruar à cidade de Lixboa. & os sãos, & curar os que
esteuerem enfermos de peste, 161

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Anexo 3 - Breue summario da peste que ouue em Lixboa o anno de 69
que hum frade Dominico escreueo a outro seu amigo, fingindo
a cidade huma nao perdida com tormenta desfeita, 197

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À Wilma, Célia e Carolina, que me deram à luz, cada
uma a seu modo. Ao Mário Filho, pai e parceiro. Aos
meus alunos.

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Prefácio

O autor do livro que prefaciamos afirma que “o tempo da doença


é... o da proliferação de discursos sobre ela”. E o livro em questão in-
veste bastante, embora não em caráter exclusivo, numa leitura textual
formalizada, em especial com o fito de esclarecer : (1) como se constrói
o discurso médico sobre a doença, num contexto cristão, mas sobre a
base do saber hipocrático-galênico herdado da Antiguidade; (2) como,
no Livro da virtuosa benfeituria, de lavra do infante Pedro, irmão do rei
Duarte, da dinastia de Avis, emerge, com um grau de elaboração bastante
superior, uma noção já presente anteriormente (1340) em texto legal do
rei Afonso IV: o regimento do reino foi outorgado ao monarca português
por Deus; a sacralidade de origem do poder régio, por conseguinte,
reúne as diversas funções do rei numa representação sua como “figura
aglutinadora dos interesses gerais do reino”. Entre tais funções e como
parte da figura aglutinadora em questão, o príncipe Pedro constrói, em
especial, a noção do rei de Portugal como médico perfeito, encarregado
de prover e preservar a saúde da comunidade sob sua direção, ou seja,
de seu reino. Assim sendo, a obra pode servir para ilustrar, por contraste,
uma alternativa a meu ver superior à visão da História, com ênfase dis-
cursiva, sem dúvida, mas sob o ângulo desconstrucionista, hoje opção
ou tentação bastante comum. Em função disso, minha escolha quanto à
estruturação deste Prefácio levar-me-á, de início, bastante longe do texto
de Mário Jorge; mas prometo voltar a ele a seu devido tempo!
A opinião desconstrucionista a respeito da História acredita no
papel central do elemento discursivo como fator constitutivo do conhe-
cimento. O conceito central para esta postura é, pois, o de discurso. O
discurso, pretendem os desconstrucionistas, seria uma esfera social
específica, dotada de uma lógica própria. “Discurso”, usado deste modo,
designaria um sistema de significados formando uma rede de categorias −
não devendo ser confundido, portanto, com outras coisas habitualmente
chamadas também de discursos: textos, livros, falas ou outros exemplos
empíricos de textos − e corresponderia àquilo que Michel Foucault de-
nominou episteme. Não se trata, porém, de um meio de transmissão de
significados previamente presentes no social, mas, sim, de um compo-
nente ativo na constituição dos significados sociais, um corpo coerente
de categorias mediante o qual, no contexto de uma situação social dada,
os indivíduos apreendem e conceituam a realidade social; e, outrossim,
em função do qual desenvolvem suas práticas. O discurso funciona, en-
tão, como uma rede conceitual que torna visível, especifica, diferencia
e classifica. Mediante tal rede, os indivíduos − mais exatamente, grupos

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Prefácio

específicos de indivíduos − dotam de significado o referente social (ou


seja, estabelecem setores dele como objetos) e concebem e conformam
a si mesmos como sujeitos agentes. Com esta noção de discurso (padrão
de significados), passar-se-ia da dicotomia tradicional presente em tantas
análises de meados do século XX – a realidade social em contraste com
a subjetividade – para uma situação ternária: realidade, ou contexto, ou
referente social/discurso/indivíduos humanos – sendo o discurso aquilo
que, por um lado, transforma setores do social em objetos e, por outro,
transforma seres humanos empíricos (individualmente considerados)
em sujeitos agentes. Alega-se que esta nova visão do humano não seria
antirrealista; não o seria, pelo menos, em seus proponentes mais so-
fisticados e menos primários, como Michel Foucault ou Joan W. Scott,
embora o pudesse ser ao se tratar dos representantes menos voltados
para pesquisas que sejam de fato pesquisas de base empírica e, conco-
mitantemente, mais radicais no interior do movimento pós-moderno,
como Jacques Derrida ou Hayden White. O desconstrucionismo ou pós-
modernismo seria, acima de tudo, uma postura antiobjetivista, mais do
que antirrealista. Ele não põe em dúvida a existência da realidade social,
mas, sim, que algum setor desta possa assumir o status de objeto antes
de ser assim constituído pelo discurso. Analogamente, os seres humanos
só poderiam constituir-se em sujeitos atuantes, dotados de propósitos,
mediante sua construção discursiva em tal sentido.
As ciências sociais (e entre elas a História Social), tal como ma-
joritariamente encaradas em meados do século XX, partiam de uma
crítica do indivíduo ou do sujeito racional, que viam como sendo típico
do pensamento burguês, ou seja, sujeitos individuais concebidos como
naturais, autônomos, estáveis, plenamente informados e, portanto,
agentes racionais e plenamente conscientes que seriam os autores das
práticas sociais e a base e origem tanto das relações sociais quanto dos
significados. Numa ciência social ou História “tradicional” que partis-
se de tal ponto de vista, o cientista do social deveria dedicar-se a um
empreendimento interpretativo ou compreensivo, visando recuperar
as motivações dos agentes, muitas vezes, aliás, reduzidos somente
aos assim chamados “grandes homens”: governantes, generais, juízes,
membros de elites intelectuais e religiosas, etc. As ciências sociais, bem
como a História Social, no seu formato já assumido com clareza em
meados do século XX (mas com precursores importantes, como, por
exemplo, os marxistas clássicos do tipo de Marx, Engels ou Gramsci),
achavam, pelo contrário, que os indivíduos derivam a sua identidade
do lugar que ocupam nas relações sociais. Deste modo, tais sujeitos
não passam de expressões, historicamente específicas, das condições
sociais de existência, que estabelecem os termos em que os indivíduos

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se autopercebem, caracterizam a si mesmos e, em função disto, agem.
A própria noção, típica da Filosofia burguesa, de “indivíduo” ou “sujeito
racional”, para algumas das formas do tipo de ciência social ou História
Social de que estamos falando – a marxista, por exemplo – seria so-
mente uma representação ideológica das condições sociais modernas,
típicas da era do capitalismo triunfante. Para o marxismo, o indivíduo
não passaria de uma expressão do conjunto das relações sociais, razão
pela qual a prioridade explicativa na explicação do social e de suas
transformações caberia, na verdade, a sujeitos coletivos ou intersubje-
tivos, como as classes sociais, sendo limitado o papel dos indivíduos
encarados stricto sensu na ação e na transformação do social.
A tendência discursiva de tipo desconstrucionista tem como
ponto de partida o suposto de que os sujeitos ou formas de identifica-
ção social, isto é, as maneiras em que os indivíduos e grupos percebem
quem são, constituem sem dúvida entidades históricas, não sendo, em
absoluto, essências universais. As identidades não são estados, são posi-
ções – entidades diferenciais ou relacionais que não conformam um todo
homogêneo, mas, sim, algo plural e fragmentado. O pós-modernismo
submete à crítica a noção de sujeito social, tratando de redifinir radi-
calmente a origem e a natureza dos sujeitos agentes. Para esta postura,
a realidade social não constitui uma estrutura objetiva, assim como
a identidade das pessoas não pode ser a expressão de sua posição
social. Os significados atribuídos ao social nascem da interação entre o
referente social e uma matriz categorial que constrói setores dele como
objeto. Analogamente, a identidade também se gera como resultado de
tal interação. Toda identidade só pode ser estabelecida mediante um
processo de significação tornado possível por um determinado padrão
de significados, ou um determinado padrão assumido pelo imaginário
social. Assim, a identidade dos indivíduos – a forma em que se concebem
e caracterizam, e em função da qual agem e se tornam sujeitos –, longe
de ser mera expressão da posição que ocupam nas relações sociais, é
na verdade o efeito de uma articulação discursiva particular, específica,
dessa posição e de como ela é vivida, experimentada. Em outras pala-
vras, a identidade não é uma propriedade preexistente que a linguagem
designa e representa, mas, sim, torna-se uma propriedade unicamente
no seio da própria linguagem, do próprio discurso.
A continuidade lógica aparente entre a identidade e seu referente
social é ilusória: a conexão entre ambos não é objetiva, nem da ordem
da representação do real no nível da identidade; não é uma propriedade
ou condição presente nos referentes sociais em si, de que os indivíduos
chegariam a obter uma consciência que, então, projetariam na ação.
A identidade surge, isto sim, como consequência de uma determinada

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Prefácio

objetivação do referente social: não basta que exista tal referente social, é
preciso que seja articulado como critério definidor de alguma identidade
mediante a aplicação de uma matriz categorial ou sistema de diferenças
(isto é, para constituir uma identidade é preciso também definir − para
o descartar − o que ela não é). E a matriz em questão só pode ser da
ordem da linguagem, do discurso. Os referentes sociais são causalmente
inertes, só são ativados se e quando partes deles forem incorporadas a
um padrão discursivo de significado. Caso se aceite tal ponto de vista,
estar-se-á aceitando também que a identidade não está causalmente
vinculada ao referente, mas, sim, a um objeto discursivamente construído.
Deste modo, os objetos de identidade não podem preexistir às próprias
identidades: objetos e identidades se constituem simultaneamente, no
mesmo processo de articulação do contexto social mediante um discurso,
um espaço de articulação que depende do imaginário social. O domínio
do discursivo é que preexiste, fornecendo os padrões de “subjetivação”
por meio dos quais os indivíduos possam constituir a si mesmos como
sujeitos dotados de identidade, sentir-se como tais e, deste modo, agir
como agentes conscientes. A linguagem não se limita a nomear os sujei-
tos: ela os gera, permite que apareçam, existam e atuem.
Outra consequência da postura que estamos sintetizando é a
proibição de hierarquizar normativamente, epistemologicamente, as
diferentes formas de identidade, como se umas fossem naturais, on-
tologicamente plenas e superiores às outras. O fato de que, em dadas
circunstâncias históricas, um referente específico se converteu em
objeto de identidade não garante que tal coisa vá acontecer em todos
os casos, nem do mesmo modo, já que não é necessário que o processo
discursivo que cria a identidade venha a existir: ele é possível, mas não
é necessário. Outrossim, referentes mais ou menos análogos podem
ser articulados discursivamente em formas heterogêneas, que gerarão
identidades diferentes entre si. Além do mais, as identidades são todas
passageiras e instáveis, em função da instabilidade, não do referente
social, mas das construções discursivas. Todas as identidades, sem
exceção, se forjam a partir do contraste com outras possibilidades de
identificação e mediante a exclusão delas: cada identidade exige uma
alteridade, um exterior constitutivo. Os pós-modernos acham que,
devido a tal processo de exclusão, cada identidade está sempre ame-
açada pelo que deixa de fora. Na verdade, o jogo identidade/alteridade
tende a criar duplas de identidades em oposição complementar, nas
quais cada termo depende do outro e implica o outro, numa relação
hierarquizada em que um deles é visto como superior ao seu contrário,
mas impossível de constituir-se sem ele (masculino/feminino, branco/
negro, homossexual/heterossexual, proletariado/burguesia, etc.).

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O lado positivo do pós-modernismo consiste em ter chamado
a atenção para o poder constitutivo do discurso – entendido como
sistema categorial – no aparecimento de sujeitos e objetos sociais. O
imaginário social tem, sem dúvida, um papel de peso, antes pouco
explorado, em processos assim. O seu lado negativo – grave, a meu ver
– está em absolutizar este fator além de qualquer limite razoável.
Em relação à crítica da postura pós-moderna que acabamos de
sintetizar, pode-se indagar o seguinte: qual é o status ontológico de algo
que, se acreditarmos nos pós-modernos, existe por si mesmo, ao que
parece – o referente social, que, em si, não é gerado pelo discurso (só
é “objetivado” por ele) – mas, ao mesmo tempo, não é um objeto de co-
nhecimento (o discurso é que pode vir a constituir setores seus como
objetos)? Analogamente, como considerar seres humanos – aparente-
mente, indivíduos – que também existem por si na estruturação ternária
a que aludimos (referente social/discurso/seres humanos) – posto que
obviamente não é o discurso que gera os seres humanos fisicamente
existentes –, mas que não são, em si ou por si, sujeitos, até que alguma
configuração discursiva os constitua como tais? Parece estranha, por
exemplo, a existência de um referente social que exista, se reproduza e
mude por si mesmo, levando a coisas tão complexas quanto as diferen-
ciações socioeconômicas, mas, ao mesmo tempo, seja capaz de existir
e transformar-se na sombra, numa espécie de limbo, até ser objetivado
pela intervenção discursiva. Parece algo bastante improvável.
Nas pesquisas concretas levadas a cabo dentro dos princípios
desconstrucionistas ou pós-modernos, a preferência por atribuir o pa-
pel causal à dimensão discursiva aparece com frequência como decisão
arbitrária, mais derivada de um postulado teórico, uma escolha ou algo
preconcebido – que a análise viria só ilustrar – do que da própria aná-
lise. Assim, por exemplo, William H. Sewell Jr. afirma que o surgimento
da consciência de classe dos operários franceses coincide com a onda
grevista que teve lugar na França em 1833, durante a qual se intensificou a
colaboração ativa e prática dos membros de diferentes ofícios; mas acha
também que esta onda de greves e a experiência prática da colaboração
dos trabalhadores entre si são fatores insuficientes para explicar o apa-
recimento da consciência de classe: constituem uma “base importante”,
um fator “favorável”, mas o fator causal por excelência para que a identi-
dade de classe substituísse a de ofício foi, segundo ele, que os operários
começassem a dar sentido à sua situação mediante o uso que fizeram
então do discurso liberal e, em especial, da categoria de “cidadão”.*
Esta sua opinião ou preferência não parece decorrer, em ab-
soluto, da análise empreendida, nem está de fato embasada. Como
proceder, aliás, para medir uma onda de greves e a experiência

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Prefácio

prática que articula como fatores “suficientes” ou “insuficientes” em


algum sentido?! O autor parte, simplesmente, do postulado teórico
desconstrucionista que prefere, de que são sempre os discursos
(entendidos como redes categoriais) que geram as identidades, nes-
te caso, a de operário. Em suma, os pós-modernos desconstroem o
homo oeconomicus ou a História Social, alegando serem unilaterais
e estarem a serviço da manipulação exercida por certos centros de
poder, só para caírem no homo symbolicus, igualmente unilateral. Por
que uma unilateralidade seria melhor do que a outra? Como justificar
a antipatia sistemática pelo econômico-social nas explicações? E a
postura pós-moderna, com seu próprio caráter unilateral, por acaso
não serve a foco de poder algum? Os pós-modernos nunca dizem a
qual “poder do saber” estão vinculados, porém, nem “desconstroem”
seus próprios construtos, só os alheios...
Outro assunto pode resumir-se nestas perguntas: como se cons-
titui, de onde vem, como muda o discurso, entendido na acepção men-
cionada de moldura categorial, ou imaginário social? Michel Foucault,
talvez mais sincero do que outros pós-modernos, confessava não saber
responder como se abandona uma episteme (a versão foucaultiana do
discurso e das práticas a ele articuladas) para passar à seguinte. Ou-
tros pós-modernos oferecem respostas muito inadequadas, sobretudo
se considerarmos a importância central que concedem ao conceito de
discurso tal como o definem. Admitem, aliás, que o esforço maior da
atitude desconstrucionista tem-se exercido em análises sincrônicas dos
efeitos constitutivos do discurso, razão pela qual a pesquisa das origens e
transformações discursivas ainda é insuficiente. Apresentam, entretanto,
respostas parciais, pouco convincentes. Uma das mais frequentes é achar
que toda nova situação social é sempre apreendida e conceitualizada
mediante as categorias herdadas da situação discursiva precedente, que
são modificadas para exercer a nova função: assim, a realidade social não
gera as categorias ou conceitos que lhe serão aplicados, mas, sim, interage
com um sistema categorial preexistente. Isto recorda as teorias sobre a
origem da vida na Terra que afirmavam que ela veio de outros astros...
Dizer que o sistema discursivo se forma, em cada caso, por meio da in-
tertextualidade com um discurso mais antigo equivale, simplesmente, a
jogar para trás o problema da origem do discurso como tal, em lugar de
dar-lhe solução. Outra resposta eventual é que os indivíduos, ao utiliza-
rem o sistema discursivo, o reproduzem como é, em certas condições, o
modificam. Nesta opinião haveria uma aproximação pelo menos parcial
com posturas como a de Julia Kristeva ou a de Marshall Sahlins; com a
ressalva importante, porém, de que estes últimos autores preservam a
noção de um sujeito agente racional, coisa que não ocorre com os pós-

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modernos, já que, como vimos, para eles os seres humanos só podem
ser constituídos como sujeitos pela mediação do discurso.
O caráter altamente insatisfatório de respostas como estas leva
a contradições frequentes, lapsos e escorregadelas no tocante à ques-
tão do sujeito. Em seu trabalho já citado antes, William H. Sewell Jr.
afirma que a institucionalização liberal do direito de propriedade e da
liberdade de indústria (que proibia a associação dos trabalhadores e
determinava a repressão estatal à mesma) estimulou alguns militantes
operários a que reformulassem o ponto de vista dos trabalhadores:
de um tal processo de rearticulação discursiva deveria vir a nascer a
nova identidade operária. Neste modo de ver, a identidade operária é
atribuída, não ao efeito de um discurso desencarnado, mas, sim, à ação
deliberada e racional de certos “militantes operários” que, portanto,
agiram como sujeitos, não a posteriori da construção discursiva de
sua identidade, mas a priori, criando-a.**
Em contraste com esta maneira de conceber a História – a meu
ver altamente insatisfatória e, epistemologicamente, mais cheia de
furos do que uma peneira –, o que nos oferece o rico texto elaborado
por Mário Jorge?
Em primeiro lugar, longe da tendência a negar os grandes objetos
da História mediante sua fragmentação sistemática, o seu estudo busca,
pelo contrário, estabelecer nexos. A perspectiva cristã relativa à doença
em geral e à peste em particular mantém-se fiel à matriz hipocrático-
galênica herdada da Antiguidade, não negando, portanto, o discurso e as
práticas médicas coetâneas. Aceita, por exemplo, o “envenenamento do
ar” – causa natural – como uma das razões da epidemia. Entretanto, num
nível hierarquicamente superior, submete tal fator à incidência da vonta-
de divina. Em outras palavras, mesmo dadas as circunstâncias naturais
favoráveis à eclosão da pestilência, esta só ocorrerá se Deus – em função
do castigo aos pecados dos homens – assim o decidir. Analogamente, o
discurso médico medieval está cristianizado, em Portugal, como alhures.
Seus produtores, entretanto, são agentes sociais diferentes dos clérigos
e, portanto, sua estratégia discursiva não se limita a reafirmar os prin-
cípios cristãos. O discurso médico português do século XVI inclui, por
exemplo, elementos específicos de discriminação social voltados contra
os negros, as prostitutas e os pobres, cuja reclusão recomenda, em caso
de epidemia, tanto quanto a dos próprios doentes. Além disso, tal como
o discurso eclesiástico, mas por outros caminhos, trata de fundamentar
a importância social dos médicos e a autoridade de que devem estar
dotados. Isto se faz num raciocínio de fundo cristão: o médico, tal como
a natureza, está regido pela inteligência divina, o que lhe permite agir
adequadamente, isto é, em defesa do estabelecimento e da preservação da

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Prefácio

saúde da comunidade. Por sua vez, o discurso régio, em princípio, vai na


mesma direção: o príncipe Pedro estabelece uma equivalência entre mal,
doença e pecado – todos estes, elementos “desnaturais”, ou antinaturais
–, por um lado; por outro, aceita os princípios e medidas derivados da
medicina da época. Entretanto, isto é feito no contexto de uma política
específica de centralização régia, em especial quanto a intervenções
nos municípios que vão no sentido da diminuição de sua autonomia (o
que é facilitado pela incidência maior das epidemias em âmbito urbano:
“Aquelas conjunturas nas quais a presença do flagelo se fazia mais incisiva
foram, obviamente, as mais favoráveis ao incremento das determinações
régias.”). O discurso régio se apropria à sua maneira, seletivamente, dos
discursos religioso e médico, “amalgamando-os, revestindo-os da sua
autoridade”. Mas o faz segundo uma estratégia específica. Assim, por
exemplo, “o discurso religioso, em sua matriz clerical, desautorizava a
realeza”. A afirmação de um discurso religioso como parte do discurso
régio deve, então, fazer-se, como aliás também ocorre no caso do discurso
médico, mediante a reafirmação da autoridade e do poder do rei, “cuja
afirmação social demanda a submissão das autoridades concorrentes”.
Numa pesquisa como a do livro que prefaciamos, os agentes sociais
geram discursos, criam discursos, amalgamam discursos: não são uma
criação de discursos desencarnados que ninguém sabe de onde vêm. E
tais agentes são de fato sociais, coletivos. Assim, por exemplo, em função
da crescente intervenção régia nos concelhos, “a administração munici-
pal foi-se concentrando numa oligarquia restrita, cada vez mais ligada
ao monarca”. Os agentes sociais agem num contexto que, por sua vez,
esclarecido no início do livro, está longe de ser uma emanação discursiva,
já que tem embasamento econômico e demográfico, entre outros.
Em suma, no trabalho de Mário Jorge temos uma prova concreta de
que é possível levar a cabo uma pesquisa que respeite o que chamamos
de lado positivo do pós-modernismo – reconhecer o poder constitutivo
do discurso entendido como sistema categorial – para a análise do apa-
recimento e das modificações históricas dos sujeitos e objetos sociais,
sem, entretanto, cair na ingenuidade de acreditar que, por ser o discurso
uma variável de peso (ou seja, sempre existe uma dimensão discursiva a
ser levada em conta nas análises sociais), por tal razão só ele seja digno
de percepção e estudo (como se o discurso esgotasse a realidade social,
o que não passa de um reducionismo empobrecedor).
Ciro Flamarion Cardoso

Notas
*
WILLIAM H. Sewell Jr. Work and revolution in France: the language of labour from
the Old Regime to 1848. New York: Cambridge University Press, 1980, p. 213
**
Sewell Jr., p.197, 280.

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1. Introdução

1.1. Apresentação

Esta obra que o(a) leitor(a) tem em mãos constitui a manifestação


sensível e derradeira de um longo processo de contágio e incubação! Se
é positivo o prognóstico, caberá àquele(a) estabelecê-lo. Explico-me.
Ao concluir a graduação em história, nos idos de 1988, possuía
um “tema”, na verdade um fascínio (mórbido?) surgido do primeiro
contato com a “Peste Negra”. Contato distante, como convém, tra-
vado pela leitura. É que o tema suscita, e já de longa data, estudos
orientados por abordagens diversas, confluindo em sua maioria para
o intuito mais amplo de avaliar o peso e a influência das doenças nas
sociedades humanas.
Em relação à “Peste Negra”, sobretudo, é hoje volumosa a
bibliografia, cabendo-lhe a primazia no interesse dos historiadores.
A demografia histórica, a história socioeconômica e a história das
mentalidades – apenas para situar, esquematicamente, alguns dos
seus campos privilegiados – vêm dedicando-se a avaliar os efeitos
diversos da “Morte Negra”, buscando-se conhecer a sangria demo-
gráfica produzida pelo flagelo, bem como suas articulações com as
transformações que se processaram na sociedade europeia ocidental
ao final da Idade Média.
Embora ainda em menor escala, os estudiosos despertam cada
vez mais para o fato de que, se a Grande Peste constitui fenômeno único
na história da doença, pela fereza com que abateu a Europa de então,
as frequentes reincidências da epidemia não devem ter seus efeitos
menosprezados, posto que, entre outros aspectos, reproduziram pe-
riodicamente o angustiante contato das populações com o flagelo.
Ingressando no Programa de Pós-Graduação em História da UFF
para cursar o mestrado, o fascínio genérico passou a circunscrever-se;
propus-me a abordar o tema sob um prisma até então negligenciado
pela historiografia, em especial, a portuguesa, qual seja, o das relações
entre doença e poder.
Nesse sentido, e mais especificamente, considerando a elevada
frequência com que a sociedade portuguesa foi assolada por surtos
epidêmicos, ao longo dos séculos XIV ao XVI, num contexto de afir-
mação do poder régio sob a dinastia de Avis, este estudo orienta-se
para a análise de uma interpretação da doença que, dele emanada,
requisita à realeza o poder e a função de intervenção social objeti-

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Introdução

vando a sua erradicação. Dessa forma apropriada, a reação à doença


manifesta-se como um nível particular das práticas intervencionistas
do Estado, contribuindo para a compreensão da complexidade do
processo mais global, posto que a ele se articula, da centralização
política então em curso.
Circunscrito o tema central deste estudo e, objetivando o seu
desenvolvimento, dividimo-lo em cinco capítulos, além desta intro-
dução em que teceremos considerações gerais sobre os pressupostos
teóricos que norteiam a análise.
O primeiro capítulo foi dedicado a pôr em cena o fúnebre
ator. Transbordando o recorte espaço-temporal mais preciso que
circunscreve nossa análise, abordamos, com base na bibliografia
disponível, a longa trajetória do contato das sociedades medievais
europeias com a doença.
Os capítulos segundo e terceiro são, considerado o tema cen-
tral deste estudo, de certa forma complementares. Tendo em vista a
elevada frequência da doença, e a desestabilização social que produz,
o elemento primário de reação contra ela consiste nas tentativas de
defini-la, impor-lhe um significado. Nestes dois capítulos, portanto,
dediquei-me a abordar as concepções da doença expressas pelos
discursos religioso e médico, respectivamente, visto terem fundamen-
tado a formulação do discurso régio. Quanto às fontes utilizadas para
a análise do discurso religioso, a efetiva compreensão deste levou-me
a extrapolar o recorte espaço-temporal mais preciso em que se encer-
ra este estudo, já que se elabora num “diálogo” embasado e inscrito
na longa tradição judaico-cristã. Utilizamos as crônicas monásticas
portuguesas, relatos de suas ações “memoráveis” em terras lusitanas,
além de uma narrativa da peste de 1569 em Lisboa, de autoria de um
frade dominicano anônimo. Quanto às fontes utilizadas para a análise
do discurso médico – duas fundamentalmente –, serão caracterizadas
no capítulo correspondente.
Os capítulos quatro e cinco são, decididamente, complemen-
tares, confluindo para a análise do objeto central deste estudo. Sua
divisão foi motivada pela perspectiva de considerar, nas articulações
entre o poder régio e a doença, a fundamentação ideológica do exer-
cício do poder orientado para o cumprimento de funções sociais que
se lhe afirmam inerentes, definidoras da própria (sobre) natureza da
realeza. Dentre elas, destacamos a expressão da função saneadora do
rei, que o realça como responsável pela saúde da sociedade. Desenvol-
vida a análise a partir de uma fonte central, única, as considerações
que julgamos relevantes constam do próprio capítulo. No último,
aborda-se, a par do processo de produção da concepção régia da do-

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Mário Jorge da Motta Bastos


ença, os principais níveis de intervenção social que a mesma suscita,
utilizando-se para tal crônicas régias e, sobretudo, fontes jurídicas
de caráter local, através das quais impunham-se as determinações
do poder central sobre as municipalidades.
Nestes poucos mais de dez anos passados desde a elaboração da
dissertação até a sua atual publicação em livro, os historiadores mantive-
ram-se, em termos gerais, alheios às relações que constituem o seu objeto
de análise, o que nos motivou a preservar o material original, submetido a
alguns poucos ajustes. Agradecemos ao(s) parecerista(s) e avaliador(es)
anônimos que avalisam, com o seu crivo, a nossa decisão.

1.2. Pressupostos teóricos-metodológicos

A doença pertence à história, em primeiro lugar, porque não


é mais do que uma idéia, um certo abstracto numa “complexa
realidade empírica” [...] (LE GOFF, [19--], p. 7).

Ora, não há que duvidar de sua materialidade, dolorosamente


manifesta, por exemplo, num bubão axilar. No entanto, mais do que um
fator biológico, a doença é um elemento de cultura. Ela é o que dela se
diz ao longo do milenar contato do homem com os agentes patogêni-
cos. E o que dela se diz não é unívoco, diacrônica e sincronicamente,
constituindo-a em objeto e campo de um conflito histórico entre su-
postas verdades mais ou menos divergentes, concorrentes. Quanto às
epidemias de peste, explicá-las, circunscrevê-las, consistia antes do
mais em forjar um quadro tranquilizador, conceber uma ordenação em
meio ao caos, instituir a coerência lógica de um sentido do qual, ao
cabo, apresentar-se-iam os remédios ou alternativas de superação.
Investir-lhe um sentido, essa a função primordial dos discursos
sobre a doença, veículos de expressão de múltiplas significações, de-
finidas social e historicamente. E em sendo o discurso uma forma de
engendramento de sentido, e todo sentido social, qualquer discurso,
como qualquer fenômeno social, é passível de ser “lido” em relação
ao ideológico e ao poder, que são, portanto, dimensões específicas
de análise entre tantas que perfazem o universo social de sentido.
Segundo Verón, o ideológico não consiste num tipo específico de dis-
curso, tampouco numa “instância” que ocupe um lugar demarcado na
estrutura social, mas “pode-se [vê-lo] como sistema de comportamen-
tos rituais, da mesma maneira que no agenciamento da gestualidade
cotidiana [...]” (VERÓN, 1980, p. 92). Mas em se tratando desta matéria
significante específica – o discurso – o autor articula a manifestação
ideológica às suas “condições sociais de produção”, enquanto a de

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20
Introdução

poder relaciona-a com os efeitos discursivos (VERÓN, 1980, p. 192). As


“duas gramáticas”, de produção e consumo, não são jamais idênticas,
constituindo-se a circulação dos discursos no desvio que se interpõe
entre ambas. Destaca-se, assim, a complexidade do processo social
de geração e difusão das ideologias.
No que tange ao processo de sua produção, dois aspectos há
que se distinguir: os determinantes sociais que se impõem dentre
as condições de formulação do discurso (a demarcação do universo
de possibilidades no interior da utensilagem mental disponível ao
período), bem como a situação específica do autor (em sentido amplo,
coletivo) que o elabora, considerando-se sua vinculação com grupos
e instituições, riqueza criativa individual e os meios materiais de que
dispõe. Quanto ao processo de circulação das ideologias, sujeita-se
ao poder das classes e do Estado, que através do controle exercido
sobre os “canais” de difusão – meios materiais e instituições da so-
ciedade civil – “seleccionam y simplifican segmentos de un discurso
ideológico que bien puede ser más amplio, complejo e contradictório
que las versiones difundidas y vulgarizadas” (BRIGNOLI; CARDOSO,
1988, p. 18). Isto posto, a análise do discurso não deve nunca se fur-
tar ao exame das condições que orientam a sua elaboração, ou seja,
não deve prescindir da consideração das determinações sociais que
se articulam à sua construção, às condições de trânsito do discurso
na sociedade e, por fim, às possíveis interferências das ideias por ele
divulgadas na ordem social.
Jean Delumeau distingue três explicações para a peste, vigentes
no período histórico do qual nos ocupamos. Uma, formulada pelos
eruditos, apontava na origem da epidemia a corrupção do ar, decorren-
te de fenômenos celestes (passagem de cometas, conjunções astrais
particularmente nefastas etc.), de emanações pútridas várias ou da
ação de ambas, conjuntamente. A segunda, originada da multidão
anônima, consistia numa acusação, a de que semeadores do contágio
disseminavam deliberadamente a doença, sendo portanto necessário
localizá-los e puni-los. A terceira, elaborada “ao mesmo tempo pela
multidão e pela Igreja” (DELUMEAU, 1989, p. 138), creditava a doença
à ação punitiva de um Deus encolerizado: impunha-se à comunidade
penitente apaziguá-lo. Jean-Nöel Biraben, com relação ao mesmo
tema, diferencia duas formas de compreensão da doença, uma mani-
festa pelo “povo, [que] cria na ação de intermediários sobrenaturais,
enquanto as elites cultas recorriam à ação de intermediários físicos”
(MARCÍLIO, 1984, p. 117).
Além das dúvidas suscitadas pelo laconismo do vocabulário –
quem são os eruditos e a elite culta, e o povo e a multidão anônima?

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Mário Jorge da Motta Bastos


Integravam os primeiros a multidão que partilhava com a Igreja a noção
de castigo, na perspectiva de Delumeau? – a imprecisão, a despeito
da intenção de demarcar uma origem social precisa, autônoma, para
cada uma das formulações, parece-nos residir na desconsideração,
em primeiro lugar, de que tais discursos interagiam, influenciavam-
se mutuamente, e isto por não serem irredutíveis entre si. Opor uma
concepção popular a uma concepção erudita da doença implica negar
as relações entre os níveis de cultura, segundo um “modelo” de tradi-
ções culturais como o estabelecido por Peter Burke (1989, p. 50-90).
A ampla massa iletrada da população no período não teria acesso às
fórmulas rebuscadas do discurso erudito, supondo que este tenha
sido o da medicina cultivada nas universidades. No entanto, se foi
este o locus primordial de sua produção, não foi o âmbito restrito de
sua divulgação. Fundamentava, na origem, a requisição de autoridade
para a sua mensagem, mas o seu reconhecimento demandava da sua
capacidade de disseminação.
Parece-nos possível considerar inclusive que, se de fato as
massas atemorizadas tenderam a recorrer a explicações sobrenatu-
rais, ou a buscar culpados pelo contágio, tais procedimentos talvez
sejam indicadores do poder de divulgação das referências médicas
e religiosas. Isto porque, aspecto negligenciado pelos autores e que
acima destacamos, as “gramáticas de produção” e de “consumo” dos
discursos não são análogas, consistindo esta última, ela própria,
numa produção, “que evidentemente não fabrica nenhum objecto,
mas constitui representações que nunca são idênticas às que o [...] o
autor [investiu] na sua obra” (CHARTIER, [19--], p. 59). No processo
social de apropriação dos discursos criam-se usos e representações
que não são necessariamente redutíveis à intenção de seus produto-
res. Nesse sentido, popularizada a noção de doença como fruto do
pecado, não seria lícito punir os “bodes expiatórios” – judeus, lepro-
sos, feiticeiros – pecadores potenciais por todos reconhecidos? Não
eram estes os mesmos que envenenavam os poços, corrompiam o ar
e disseminavam o contágio?
Negar a irredutibilidade profunda entre os níveis de compreensão
da doença não significa, no entanto, considerá-los como numa relação
de simbiose pacífica, processo livre de tensão e disputas. Projetando-se
como um fenômeno ideológico, a doença ultrapassa um suposto campo
primário, biológico, constituindo-se num elemento das representações
do mundo e da ordem social. Estas, se aspiram à universalidade, vincu-
lam-se sempre aos interesses do grupo que as elaboram. Os discursos
que a abordam não são, portanto, neutros: propõem estratégias, práti-
cas, comportamentos que visam fundar uma autoridade, num “campo

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Introdução

de concorrências e competições cujos desafios se enunciam em termos


de poder e dominação” (CHARTIER, [19--], p. 17). Nesse sentido, Ciro
F.S. Cardoso e Héctor Brignoli destacam que

[...] analisado como um corpus, o nível do mental coletivo de


uma sociedade em um momento dado não tem que possuir
uma coerência lógica interna; ele se caracterizará, ao contrário,
como um mosaico de ideologias em disputa, partilhadas apenas
parcialmente por diversos grupos e classes. A coerência emer-
girá, imposta pela lógica do poder, a partir de uma perspectiva
funcional. (BRIGNOLI; CARDOSO, 1988, p. 18)

Isto posto, se as ideologias, como conjunto de códigos gera-


dores de mensagens, são indispensáveis à formulação e orientação
dos comportamentos sociais, sua principal função é de legitimação
(BRIGNOLI; CARDOSO, 1988, p. 16), a que permite, em última análise,
o funcionamento de toda sociedade. Elemento de ordenação social,
a sua criação ou apropriação pelas classes dominantes e o Estado
constitui ingrediente fundamental da “dupla legitimação” (BRIGNOLI;
CARDOSO, 1988, p. 16) das relações de produção dominantes. Nesse
sentido, em sendo a doença um elemento de desestruturação, amea-
ça recorrente aos frágeis equilíbrios sociais, a reação contra aquela
demanda e favorece a expressão de um poder ordenador.

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Parte I:
A doença presente e nomeada

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Capítulo 1

A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

A peste volta a ameaçar a humanidade:

Segundo a OMS, a peste não só está longe de ter sido erradicada,


como assiste-se, nas últimas décadas, ao seu ressurgimento em
diversos países e regiões do planeta. Nos três primeiros anos
do novo milênio foram registrados 9.227 casos no mundo, com
766 óbitos. (W. H. O., 2006, p. 9).

A notícia, ainda que traduza a preocupação das autoridades


internacionais da área da saúde, certamente não suscitou, entre
os leitores comuns, o alarde e a comoção que suscitaria entre seus
antepassados, sobretudo dos séculos XIV ao XVI. Àquela época, a
referência à pestilência, repleta de significado, fazia-se plena do sen-
timento vívido de angústia e desolação que dominava os espíritos. A
“pestilência” contemporânea, tal qual a sociedade, é outra, ainda que,
a despeito do progresso da ciência médica, da “superação das mentes
supersticiosas”, não tenha deixado de evocar reações próximas, por
natureza, àquelas milenares que, em diferentes períodos, culturas e
sociedades, vieram à tona no intuito de amortecer o choque.
Ainda que atualmente a peste subsista em extensos focos natu-
rais, sobretudo na Mandchúria, Mongólia e Turquestão (ROQUE, 1979,
p. 77),1 seu caráter avassalador de pandemia parece ter-se encerrado
com a chamada Peste de Hong-Kong, que a partir de 1894, proveniente
do foco chinês do Yunnam, ganhou o mundo irradiando-se deste porto
por via marítimo-comercial (VERONESI, 1991, p. 439). Concluía-se,
assim, com a terceira e última “epidemia mundial”, a trajetória milenar
da difusão de um flagelo ao qual já se imputaram enormes responsabi-
lidades nas rupturas e transformações que se processaram na história
das sociedades humanas. Isto, se a peste não estiver de volta...

1.1 A polissemia do termo e as pandemias históricas

Pestilência, pestelença, pestinência, peste. Contrariamente à pre-


cisão epidemiológica que, a partir da descoberta do bacilo pestoso por
Yersin e Kitasato durante a epidemia de Hong-Kong, delimitou o termo e a
doença “peste”, desde a mais remota Antiguidade a expressão revestiu-se

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

de um caráter polissêmico, designando não só contágios de natureza


vária como “distúrbios ecológicos” aos quais se associaram elevadas
mortalidades. A noção aparece já entre os egípcios, no II milênio a.C.,
como entre os hititas, em Sumer (RUFFIE; SOURNIA, 1985, p. 74). Na
Bíblia, o Antigo Testamento está repleto de alusões à peste, dentre as
quais reteremos algumas, à guisa de exemplo, voltando posteriormente
ao tema. A peste figura entre as “pragas” com que o Deus de Moisés
atingiu o Egito, e foi ainda ela que dizimou os filisteus quando estes se
apropriaram da Arca da Aliança.2 No Novo Testamento, destaca-se a
imagem clássica do Livro do Apocalipse de São João (SOARES, 1989,
p. 1346), em que a abertura do quarto selo liberta o cavaleiro de nome
morte, com o poder de matar, sobre as quatro partes da terra, à espada,
à fome, com a peste e por meio das feras da terra. Ingrediente básico da
mentalidade apocalíptica e milenarista, de forte apelo cristão, fomentada
no Ocidente da Alta Idade Média pela ação de Gregório Magno, “o papa
da peste”, quando das epidemias que assolaram a Itália em fins do século
VI (BIRABEN; LE GOFF, 1960, p. 1498). Quanto à Idade Média, a referência
surge em santo Isidoro de Sevilha, nas suas Etimologias, como sinônimo
de contágio (SEVILLA, 1982, p. 489). No latim medieval, bárbaro para
o classicismo purista dos renascentistas, a expressão “pestis” revestia
múltiplos significados, traduzindo muitas vezes “miséria”, “destruição,
“infortúnio”. Outras vezes referia-se a moléstias que conspurcavam o
corpo, aplicando-se então a doenças de natureza vária, como sífilis, tifo
etc. (MEIRELLES, 1866, p. 206-207).
Tendo em vista a abordagem e os objetivos que orientam esta
análise, consideramos secundária a controvérsia que, pelo menos
desde o século XIX em Portugal, afeta epidemiologistas e historiadores
da doença. Referimo-nos à preocupação de discernir, dada a histórica
amplitude do termo e as exigências de precisão contemporânea, as
verdadeiras epidemias de peste que, ao longo dos séculos, teriam
assolado as sociedades humanas. Não é tanto a presença efetiva e
documentada do Iersinia pestis o que nos interessa, mas o destaque
para a íntima convivência das sociedades medievais com cataclismas
e epidemias que se traduziram, neste universo mental, como pestes,
associadas ou igualadas, portanto, em seu caráter destruidor e caó-
tico. Por sinal, o rigor nominativo contemporâneo fica, via de regra,
plenamente satisfeito quando se evocam as grandes pandemias que
afetaram, ao longo da história, as sociedades humanas.
Celebrizou-se, pelo brilho da narrativa de Tucídides, no Livro II da
sua História da Guerra do Peloponeso (ROQUE, 1979, p. 73), a peste que
entre 430 e 425 a.C. grassou em Atenas. Oriunda da Etiópia, foi favoreci-
da pela concentração de refugiados no interior da área urbana, quando

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Mário Jorge da Motta Bastos


do ataque ao porto do Pireu sob a liderança da coligação espartana
(RUFFIE; SOURNIA,1985, p. 78). Agindo em fases sucessivas, a doença
atingiria outras cidades gregas, provocando a morte de um terço dos
habitantes de Atenas. A despeito da profunda divergência entre os epi-
demiologistas quanto à precisa etiologia desta epidemia, Mário Roque
considerou-a “como um conjunto de várias pestinenças, em que, de
certeza, a peste bubônica e a pneumônica estiveram presentes” (RO-
QUE, 1979, p. 73). Depois de Tucídides, encontramos ainda descrições
de pestes devidas a Posidônio, Amiano Marcelino, e sobretudo as
manifestações bubônicas referenciadas, no século I d.C., por Rufus de
Éfeso, inserta nas obras de Oribásio (Livro 44, cap. 17), e por Pedanius
Dioscorides Anazarbeus, cirurgião e fitologista (ROQUE, 1979, p. 74).
Mas se tais referências fornecem ainda aos epidemiologistas
material, sem dúvida escasso, para amplo debate, quanto à chamada
“Peste de Justiniano”, não resta muito lugar à dúvida em sua carac-
terização como a primeira grande pandemia europeia de peste. À
semelhança de sua congênere de 1348, além da presença efetiva (e
dolorosa!) do bubão, configurou-se como epidemia “mundial”, ceifan-
do parcelas dos três continentes – África, Ásia e Europa – a partir do
foco primitivo africano (BIRABEN; LE GOFF, 1960, p. 1484). Atestada
em 541, grassando em Pelúsia, no delta do Nilo, originária da Etiópia,
irrompeu pelo Egito, atingindo Alexandria e o norte da África para,
cruzando em várias direções o Mediterrâneo, tocar a Palestina, a
Síria, Constantinopla e a Europa Ocidental. Tal qual se explicitaria no
segundo grande ciclo inaugurado em meados do século XIV, a doença
assolou a Alta Idade Média em vagas epidêmicas sucessivas, com
surtos em 541/44, 558/61, 570, 580/82, 588/91 etc. Presença nefasta em
média a cada 12 anos, até a última referência em 767. Considerados
os limites impostos ao seu estudo pela exiguidade das referências
documentais,3 a Europa parece ter sido desigualmente atingida, tanto
em intensidade quanto regionalmente, e ferida principalmente em sua
fachada mediterrânica, em especial na Itália (Ravena, Gênova, Roma,
Pávia), Gália (Narbona, Marselha) e Península Ibérica. Estimada a sua
parca capacidade de penetração interiorana, destaque-se, contudo,
que a “Peste de Cadwalader”, assinalada por Beda na Grã-Bretanha
entre 664-684, deve certamente ter-se articulado aos ciclos acima
referidos (ROQUE, 1979, p. 75). Cessam, misteriosamente, em 767, as
referências às epidemias. Desinteresse dos cronistas de época por
relatar fenômeno já quase “cotidiano”? Ou encerrara-se, a esta altura,
por razões não muito claras para os especialistas, o primeiro grande
ciclo epidêmico de peste? Trégua, ao que parece, a partir da segunda
metade do século VIII! Provisória, no entanto...

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

Subtraída da memória coletiva ocidental ao longo de seis sécu-


los, foi como um fato novo que a peste irrompeu na Europa em meados
do século XIV. Inaugurava-se, com a segunda pandemia histórica – a da
Grande Mortandade – um novo ciclo epidêmico que só iria arrefecer
a partir de fins dos Quinhentos, quando sobretudo o tifo, a varíola e
a sífilis passam a disputar com a peste a primazia na destruição de
vidas humanas.
Desde Pollitzer e Wu Lien-teh (ROQUE, 1979), na década de 1950,
situa-se a origem da Peste Negra no extenso e primitivo foco natural
da doença radicado no planalto central da Ásia, onde grassava em es-
tado endêmico, atingindo daí por três vias o seu caráter de pandemia:
deslocando-se para o oeste, abateu a Europa; para o sul, a Índia e, por
fim, a caminho do leste, fustigou grande parte do Extremo Oriente.
No entanto, estudos mais recentes, levados a efeito a partir da
década de 1970, consideram o foco centroasiático apenas como um
importante agravante da pandemia que se teria originado na China.
Com base em cronistas e informações de natureza vária, concluem
que o deslocamento da epidemia para Ocidente fora precedido de uma
longa série de catástrofes que, desde 1333, assolou diversas regiões
chinesas. Alternaram-se, num período de 15 anos, secas prolongadas,
chuvas torrenciais e tremores de terra que ceifaram, por si, milhões de
vidas. Em última análise, tal frequência de distúrbios climáticos teria
desalojado de seus focos naturais elevadas quantidades de roedores
pestíferos, ainda hoje presentes na Mandchúria, Mongólia e Turquestão.
Seriam eles que, ao se dispersarem, juntamente com as primeiras po-
pulações infectadas, ensejaram a disseminação da doença. Sua marcha
para Ocidente seguiu as duas principais vias de comércio:
l a primeira, terrestre, cruzava o extenso, e eivado de focos
naturais da doença, planalto centro-asiático. Quer tivesse aí
se originado ou reforçado, as lápides sepulcrais de diversos
centros populacionais, sobretudo na Rússia, atestam a morte
por peste a partir de 1338, bem como seu curso lúgubre para
oeste. Por tal via, a epidemia atingiria os movimentados por-
tos do Mar Negro, como Caffa e Constantinopla, que foram
dizimadas a partir de 1346;
l a segunda rumava da China pelo sul, cruzando a Índia, para
daí, por via terrestre ou marítima – respectivamente pela
Pérsia e Mesopotâmia e via Golfo Pérsico e Mar Vermelho –
atingir os portos do Mediterrâneo Oriental.
Por qualquer das vias, a epidemia encontrava-se instalada nestes
centros comerciais entre fins de 1346 e princípios de 1347, grassando
já em Alexandria e no norte da África, nas ilhas gregas, em Jaffa, Caffa

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Mário Jorge da Motta Bastos


e Constantinopla. Não tardaria a abordar a Europa Ocidental, ao que
parece seguindo também duas rotas:

l partindo da Crimeia, atravessou a Alemanha central, indo


fustigar as cidades hanseáticas e as regiões bálticas e do
Mar do Norte;
l avançando pelo Mediterrâneo com assombrosa velocidade,
em um trimestre (fins de 1347/48) franqueou seus principais
portos, e daí o continente. De Messina, ganhou a Sicília, Túnis,
Córsega, Sardenha, Baleares e os portos orientais da Penínsu-
la Ibérica. Enquanto Gênova constituiu-se em principal polo
difusor da peste na Itália setentrional e central, Veneza, onde
a doença instalou-se a despeito da precocidade das medidas
preventivas, irradiou-a para a Áustria e a Hungria. E coube
a Marselha, atingida a partir de Messina, o triste lugar de
destaque na difusão europeia do flagelo, que daí seguiu por
três vias: para ocidente, por via marítima, contaminou a
Septimânia (Narbonne, Carcassone, Toulouse etc.), atingiu a
Catalunha e, por fim, seguindo o curso do Ródano, abordou
o norte da França, Flandres, os Países Baixos, Bélgica e Ale-
manha. Na sequência, atingiu a Inglaterra, Escócia, Irlanda
e regiões escandinavas, de onde rumou para oriente, aden-
trando a Rússia, e completando em 1352, no Mar Negro, o
périplo que tivera ali, cinco anos volvidos, um dos principais
centros de disseminação.

As tentativas de determinar o início e a progressão da epidemia


de Peste Negra em terras portuguesas esbarram, até aqui, na escassez e
no laconismo das fontes. O Livro da Noa, do mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, um dos raros documentos coetâneos que se refere à epidemia,
registra que na “Era de mil e trezentos e oytenta e seys anos [à margem]
por S. Miguel de Setembro [festa em 29 deste mês] se compeçou esta
pestilençia”. Quanto à sua duração, afirma que “esta mortaydade duraua
na terra por spaço de tres meses”. Ao indicar os sintomas da doença,
assegura-nos da presença da peste: “e as mays dores das doenças eram
de leuacoens que tijnham nas verilhas e so os bracos” (RAU, 1986, p.
129), referência explícita ao bubão pestilencial.
Basicamente a partir dessas informações, a historiografia por-
tuguesa (ROQUE, 1979, p. 124) conclui que o início do contágio deu-
se em fins de setembro de 1348, tendo sido breve, ainda que nefasta,
a sua duração em terras lusitanas. Mário da Costa Roque (ROQUE,
1979, p. 123-136), no entanto, criticando a referência literal, e muito

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30
A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

pouco crítica, aos registros acima transcritos, põe em dúvida não só


o início da epidemia por esta altura – tendo em vista a participação
efetiva do país no intenso tráfego comercial mediterrânico, cujos
principais portos foram ainda contaminados em fins de 1347 – bem
como sua disseminação e desaparecimento em apenas um trimestre.
Redimensionando a extensão das informações contidas no Livro da
Noa, considera-as restritas ao início e duração do flagelo numa “terra”
específica, possivelmente Coimbra. Advoga o autor que a entrada da
peste em Portugal deve ter ocorrido na primavera de 1348, estação
propícia à eclosão do surto – oriundo do Mediterrâneo –, e que sua
difusão pelo hinterland tenha se dado ao longo desse ano, de forma
mais ou menos lenta segundo o trajeto fluvial ou terrestre.

1.2 Os “efeitos” de um mal sem par

A volumosa bibliografia hoje existente sobre a grande epidemia


de peste negra de 1348 indica, já pelo seu aspecto quantitativo, o re-
conhecimento de seu peso e influência marcantes sobre a evolução
da sociedade europeia ao final da Idade Média. “Muy pocas vezes, en
el transcurso de la historia, un acontecimiento determinado ha teni-
do una gama de resonancias más amplia que la Peste Negra de 1348”
(CALLICÓ, 1970-1971, v. 7, p. 67).
Vários especialistas, de diversas regiões da Europa, dedicam-se,
há várias décadas, a traçar o roteiro do contágio, a estabelecer os dife-
rentes índices de mortalidade nas áreas atingidas, bem como a avaliar
as transformações impostas pela “grande mortandade” em diversos
níveis da sociedade cristã ocidental de 1300. Ainda em 1898, um dos
primeiros estudiosos da Morte Negra rendia-se – com certa dose de
exagero – a seus efeitos devastadores, requisitando-lhe ter “marcado o
verdadeiro fim do período medieval e o início da nossa Idade Moderna”
(GASQUET apud MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV, p. 211).
A ampla maioria dos medievalistas converge para a configuração
do cunho de catástrofe com que a peste se abateu sobre o Ocidente.
No entanto, as divergências são profundas quando se trata de imputar
ao fenômeno e seus efeitos, a primazia nas transformações socioe-
conômicas que se processaram na sociedade europeia ao longo dos
séculos XIV e XV.
O debate aprofunda-se, sobretudo, ao tratar-se do que Ciro
Flamarion Cardoso intitulou “problema histórico da depressão do
final da Idade Média” (CARDOSO; BRIGNOLI, 1984, p. 22). Segundo o
autor, a interpretação dominante acerca das transformações acima
referidas, e particularmente no que tange ao regime senhorial, super-

O poder nos tempos da peste.indb 30 19/8/2009 19:01:49


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Mário Jorge da Motta Bastos


dimensiona o poder explicativo da catástrofe demográfica, gerando
“esquemas interpretativos insuficientes”, incapazes de se sustentar,
por exemplo, quando aplicados comparativamente à evolução do
processo na Europa Oriental.
Não cabe, na perspectiva deste estudo, aprofundar este amplo
debate historiográfico relativo ao “lugar” da Peste Negra no contex-
to de fins da Idade Média. Referenciá-lo pareceu-nos obrigatório,
posto que na sequência, ao abordar os possíveis efeitos da grande
epidemia, tocamos em considerações que sustentam determinada
corrente interpretativa, em especial a que aponta para uma profunda
crise socioeconômica no período. Pressupondo a relação entre crise
e decadência, crise e doença, a grande peste e seus efeitos acabam
por revestir-se de uma singularidade profunda, tornando-se o deux
ex machina da crise geral dos séculos XIV e XV.
Armando Castro (1980, v. 3, p. 223) destaca, lucidamente, que a
Peste Negra relaciona-se com fatores sociais, ganhando sentido profun-
do quando articulada às condições sociais de existência na sociedade
de então. Le Roy Ladurie, por seu turno, afirma que, paralelamente
à punção demográfica produzida pela epidemia, o soerguimento da
manutenção do capital agrícola favoreceu a expansão dos cultivos
ainda em meados da centúria seguinte.

Esta superabundância do capital terra permitiu que o nível de


vida aumentasse substancialmente na segunda metade do sécu-
lo XV, bem como a diversificação da economia urbana, marítima,
etc., crescendo as necessidades materiais desde Portugal até à
Alemanha. (CASTRO, 1980, v. 3, p. 223)

Enfim, foi a peste fator do “outono da Idade Média ou (da) pri-


mavera dos novos tempos?” (WOLFF, 1988).
A primeira questão suscitada pela grande epidemia de peste negra,
responsável, sem dúvida, pelo cunho de catástrofe que esta assume já
aos olhos dos contemporâneos, é o da altíssima taxa de mortalidade
provocada pela doença, promovendo uma profunda punção demográfica
no continente europeu. Os cronistas contemporâneos, aterrados ante a
destruição causada pelo flagelo, tendem a exagerar os números, atual-
mente criticados pela demografia histórica. Contudo, convém lembrar
que em regiões onde a documentação, principalmente as listas de obi-
tuários preservadas durante a epidemia, permite o cômputo em bases
minimamente seguras, vê-se “com surpresa que aquelas notícias estão
muito próximas da realidade, que os cronistas se limitaram, no máximo,
a arredondar os números” (DOREN apud MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV,

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

p. 212). A proporção dos óbitos devidos à peste parece ter oscilado entre
2/3 a 1/8 em relação ao conjunto da população européia, consideradas
as variações regionais (RENOUARD apud WOLFF, 1988, p. 31).
Com efeito, tende-se a considerar que as cidades, dada a concen-
tração populacional e as precárias condições de higiene, bem como as
associações comunitárias pagaram maior tributo à epidemia. Segundo
um documento da antiga colegiada de são Pedro de Coimbra morreram,
na Igreja da Almidinha, “o Priol e o chantre e todos os Raçoeyros [...]
huus de pos outros todos em huu mes” (MEIRELLES, 1866, p. 8). Em
Lisboa, “a peste matou todos os oficiais do mosteiro de S. Vicente de
Fora, na sacristia, hospital, vestiaria, enfermaria e correaria” (MAR-
QUES, 1987, p. 20). O arcebispo de Braga comunicou ao papa Clemente
VI, em fins de 1348, que

devido à mortandade imensa e horrível que naquelas partes


durou, como ainda dura, a vossa igreja bracarense está privada
da consolação dos seus ministros, de tal modo que dificilmen-
te se podem efetuar os ofícios divinos por sacerdotes locais
(MARQUES, 1987, p. 21).

No entanto, a tendência de creditar a estes centros uma maior


propensão ao choque da epidemia pode dever-se à abundância relativa
de informações, sem que daí se possa deduzir que os campos tenham
sido menos fustigados. Segundo dados provenientes da aldeia de
Givry, na Borgonha (WOLFF, 1988, p. 31), registraram-se 39 óbitos em
1345, 25 em 1346, 42 em 1347, e 649 de princípios de janeiro a meados
de novembro de 1348, período em que foi atingida pela epidemia. Em
estudo relativo a Navarra, as condições naturais dessa região monta-
nhosa – altitude, relevo acidentado, divisão e compartimentação em
vales – bem como as baixas densidades humanas levaram seu autor a
supor que teria sido moderadamente atingida pelo flagelo. “E contudo,
a disseminação foi geral. As aldeias isoladas foram todas infestadas”
(BERTH apud WOLFF, 1988, p. 31). Conclui-se, portanto, que a devas-
tação foi marcada por uma profunda variação, tanto em relação às
cidades como também ao campo (BERTH apud WOLFF, 1988, p. 32).
A ausência de fontes diretas, relativas a aldeias e cidades, im-
pede o conhecimento, em bases seguras, das baixas provocadas pela
epidemia em solo português. As informações colhidas em cronistas
contemporâneos são, ao extremo, genéricas, inclusive em dados
relativos especificamente a Portugal. Assim, o já citado Livro da Noa
afirma que “morrerom (polo mundo) as duas partes das gentes” (RAU,
1986, p. 129). Parece-nos possível conceber que o cronista do mostei-

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Mário Jorge da Motta Bastos


ro, tomando seu “microcosmo pelo mundo”, refira-se aí ao índice de
mortalidade inferido dentro dos muros da abadia, índice, sem dúvida
elevado, o que faz supor a manifestação pneumônica da doença.
No entanto, pautando-se pelas inúmeras referências relativas
ao despovoamento do reino, afirmam os historiadores que todo Por-
tugal foi assolado pelo flagelo. De um extremo ao outro do país, e por
anos a fio, abundam as queixas e representações em cortes contra a
deficiência de braços para o amanho da terra, e a consequente ruína
da agricultura. Em 1358, um documento relativo a Santar afirmava que
durante a “pestelença morreram muytos homes antigos que a verdade
sabem e ora som maaos de achar homes antigos que se acordem do
tempo delRey dom Donys e delRey dom Afonso seu padre delRey dom
Denys” (MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV, p. 215).
Seria este um indicativo, sem dúvida exagerado (69 anos sepa-
ram a Peste Negra do início do governo de D. Dinis, e o documento
faz ainda menção ao tempo de seu pai!), de que a epidemia ceifou
sobretudo os mais velhos? Ponte de Lima queixava-se, em 1372, de
que “nom era povorada como cumpria” (MARQUES et al., 1963, v. XIV-
XV, p. 215), enquanto Coimbra, em 1373, ressentia-se de estar “muy
despovorada e falecida de companha” (MARQUES, 1963, v. XIV-XV, p.
215). O rol dos besteiros do conto também denuncia uma acentuada
queda de seus contingentes, assinalada a partir de fins do século XIV
e por quase todo o século XV.
Oliveira Marques, depois de arrolar os variados testemunhos
relativos ao despovoamento do reino, conclui que “todo [ele] traduzia
o mesmo fenômeno e exprimia idêntico queixume, em cartas régias,
em artigos de corte, em contratos de compra e venda, em testamentos,
enfim” (MARQUES, 1987, p. 28).
Poder-se-iam multiplicar, na sequência, as referências que pare-
cem apontar para uma íntima articulação entre a eclosão da Peste Negra
e a de uma “crise” demográfica em Portugal. No entanto, a tendência de
queda demográfica que marcou o final da Idade Média manifestou-se, em
diversas regiões europeias, desde os primeiros anos do século XIV, ou
ainda a partir de finais do século XIII, ainda que o período mais crítico
situe-se nos cerca de 20 anos consecutivos à Grande Peste. Esta, ao se
abater sobre um meio já deficiente, exerceria uma influência determinan-
te. Em relação a Portugal, aguarda-se a elaboração de estudos regionais
que venham a lançar alguma luz sobre a questão, permitindo englobá-lo
ou excluí-lo do quadro mais comum ao Ocidente. Um dos raros exis-
tentes, uma monografia relativa ao Vale do Mondego, indica ser datável
de 1340, ou mesmo antes, a tendência gradual de diminuição, “quer no
número de arrotéias quer no de transações de bens imobiliários, a par

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

de uma intensificação nos queixumes de penúria e dos tempos difíceis


que se iam atravessando” (MARQUES, 1987, p. 20).
Tenha ou não se debatido a agricultura portuguesa em meio a
um quadro crítico anterior a 1348, a sangria demográfica provocada
pelo flagelo iria acirrar as contradições e conflitos de classe entre
empregadores e assoldadados. D. Afonso IV deliberou, por lei de 1349,4
no intuito de pôr cobro a suposta motivação da crise – a carência de
mão de obra. No preâmbulo do diploma régio, indica as motivações de
sua expedição: afirma ter sido a “postenença” responsável pela falta
de mão de obra, não só em função das mortes, mas ainda pelo fato
de que muitos antigos jornaleiros, em função das heranças recebidas,
negavam-se a trabalhar em terras alheias. Outros, ainda seguindo suas
indicações, exigiam pelo trabalho quantias abusivas, acarretando a
diminuição da renda dos proprietários, que deixaram de arar seus
campos e apascentar seus rebanhos, promovendo “grandes dapnos
nos pãaes E nas outras cousas E fruytos da terra”. Parece-nos oportuno
ressaltar, em relação a esta lei, bem como a suas congêneres europeias
(SILVA, 1976, p. 81) (que inclusive representam a primeira manifestação
da intervenção do poder régio, senão contra a doença, ao menos con-
tra seus efeitos), a intenção do legislador de preservar integralmente
os interesses das elites concelhias, diante do aumento do poder de
barganha e pressão auferido pelos trabalhadores rurais.
Outra questão suscitada pela Peste Negra diz respeito à concen-
tração de propriedades, fenômeno característico da súbita elevação da
mortalidade produzida pela epidemia. Embora tal acúmulo não tenha
se limitado aos membros das classes privilegiadas, foi sem dúvida a
Igreja uma das mais beneficiadas pelos legados testamentários (não
era a peste castigo de Deus, e o legado meio de alcançar sua graça?),
fato superdimensionado pela nobreza laica contrária à concentração
de patrimônios por parte, principalmente, das ordens religiosas. O
conflito estabeleceu-se entre a Igreja e o Poder Régio (querela antiga,
exacerbada em função da conjuntura!), particularmente em relação à
competência para a abertura e disposição dos testamentos. D. Afonso
IV, por meio da já referida lei de 1349, firmou a posição real, proibindo
a apresentação dos testamentos aos vigários e ordenando sua provisão
pelos juízes régios das localidades. Temendo o descumprimento da
disposição, reafirma seu poder e decisão sobre as municipalidades,
instituindo os “juízes de fora parte”, nomeados e investidos pela au-
toridade régia, mas com salários custeados pelos concelhos.
Talvez fosse possível observar ainda alguns reflexos, porven-
tura longínquos, produzidos pela Grande Peste e seus efeitos sobre
as transformações que se processaram na sociedade portuguesa ao

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Mário Jorge da Motta Bastos


final da Idade Média. O incremento da pastorícia, principalmente na
região alentejana e nos arredores de algumas cidades, parece guardar
relação com o escasseamento da mão de obra. Oliveira Marques des-
taca o engrandecimento das cidades do sul, fenômeno provavelmente
acelerado a partir da segunda metade do século XIV, “consequência
possível das migrações posteriores à Peste Negra” (MARQUES, 1987,
p. 187). Movimento sensível em diversas outras regiões europeias e
apontado, via de regra, como importante fator da crise do setor agrário,
seu processo é, ao menos teoricamente, conhecido. A epidemia pro-
moveu pesadas baixas nos centros urbanos. Este súbito decréscimo
do contingente de trabalhadores gerou uma elevação dos salários
artesanais, e com ela a fuga maciça da mão de obra para as cidades,
onde lhe pagavam melhor.
Contudo, os efeitos da Peste Negra no complexo contexto que
caracterizou o final do medievo português estão ainda a exigir a
atenção dos historiadores, permanecendo quase intocado o campo
de uma história social da doença em Portugal.

1.3 Um novo ciclo de terror

Não haveria mais, depois de 1348, epidemias “mundiais”, ao me-


nos com o caráter catastrófico atingido pela peste no “terrível século
XIV”. No entanto, destacando uma de suas “faces”, tantas vezes eclip-
sada pelo prestígio da pandemia, a Peste Negra inaugurou no Ocidente
um novo ciclo da doença, assemelhando-se à Peste de Justiniano em seu
caráter fundador. Agindo em vagas epidêmicas frequentes até fins do
século XVI, a partir de quando se atenuou o seu papel de principal des-
truidor demográfico (MARCÍLIO, 1984, p. 77), seguiu o flagelo ceifando
vidas em grande intensidade regional, atingindo por vezes índices mais
elevados do que os inferidos na Grande Epidemia. Tais surtos configu-
ravam, via de regra, as crises de mortalidade (MARCÍLIO, 1984, p. 77),
elemento central, estrutural, definidor do regime demográfico de tipo
antigo. Ainda que sua “excelência destruidora” legitime a abordagem
isolada dos diversos surtos epidêmicos, a efetiva compreensão de suas
reincidências e efeitos devastadores demanda o seu enquadramento no
modelo demográfico acima referido, ganhando o fenômeno pleno signi-
ficado pela sua articulação com as condições materiais do período.
O desenvolvimento, relativamente recente, da demografia
histórica permitiu a formulação de uma das mais importantes teo-
rias sobre o comportamento demográfico das populações de Antigo
Regime, dando origem ao conceito (ou ao modelo) de “demografia
de tipo antigo”, aplicável às (e característico das) populações

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

anteriores à transição demográfica contemporânea. Tendo em vista


o caráter essencialmente quantitativo das análises demográficas,
aliado a uma perspectiva diacrônica, os historiadores demógrafos
buscam discernir a vigência temporal de regimes demográficos,
globalmente caracterizados em função das tendências marcantes
e duradouras do comportamento das principais variáveis que os
compõem. Destaque-se que o modelo proposto abrange, a despeito
da referência ao Antigo Regime, um período mais vasto, grosso modo
situado entre a segunda metade do século XIV e fins do século XVIII
(RODRIGUES, 1990, p. 16).
Em regime demográfico dito “normal”, livre da episódica inter-
venção de eventos catastróficos (em certas épocas, como veremos,
de fato ordinários!), o índice de nascimentos tende a ultrapassar o de
óbitos, gerando o crescimento populacional “natural”, que se produz
segundo ritmos variados. Quanto aos seus determinantes, os de-
mógrafos afirmam a existência de “freios preventivos” (mecanismos
autorreguladores, homeostáticos), adotados consciente ou inconscien-
temente pelas populações no intuito de controlá-los ou adequá-los ao
nível da oferta de alimentos (MARCÍLIO, 1984, p. 47-68).
Considerado o pressuposto inicial, caracteriza o regime demo-
gráfico antigo a recorrência periódica de crises de mortalidade que
solapavam, total ou parcialmente, o capital humano auferido nos perío-
dos de crescimento natural das populações. Tais crises configuram-se
como estruturais não só em função de seus determinantes profundos,
como de sua ascendência sobre o comportamento das demais variáveis
demográficas. Todos os países europeus da era moderna estiveram, em
maior ou menor grau, sujeitos a periódicos anos de crise, basicamente
traduzidos, num contexto de elevada mortalidade “normal”, por um
brusco e violento acréscimo dos óbitos, imposto por causas de tipo
endógeno ou exógeno, não necessariamente intrínsecas à população
atingida. Ainda que pontualmente marcassem sua presença, as crises
repercutiram de forma variada, segundo períodos e lugares, de acordo
com o complexo conjunto de elementos que as originava. Assim, o
crescimento populacional atingido em termos globais no século XVI
parece articular-se a uma menor ocorrência e/ou virulência das crises.
O oposto, no tocante a ambas as variáveis, caracterizou a centúria
seguinte, até que o espaçamento e a paulatina supressão daquelas
viesse instituir, com a grande mutação de fins do Oitocentos, o regime
demográfico contemporâneo.
No que diz respeito à natureza das crises demográficas e aos
seus fatores essenciais determinantes, Dupâquier (RODRIGUES,1990,
p. 21) propõe uma tipologia que as caracteriza como: 1. crise de sub-

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Mário Jorge da Motta Bastos


sistência, dada a falta e/ou carestia de alimentos básicos em determi-
nada região, sem implicar necessariamente um aumento significativo
do número de óbitos; 2. crise de mortalidade “pura”, traduzida por
um aumento simples dos índices de mortalidade, devido em geral à
deflagração de um surto epidêmico e; 3. crise de tipo misto, aquela
em que um surto infectocontagioso se abate sobre uma conjuntura
marcada por sucessivos anos de quebra da produção agrícola, ou de
escassez crônica de alimentos, determinando a elevação brusca dos
óbitos. Claro está resultarem desta última as efetivas crises demográ-
ficas, dada sua profunda incidência sobre os índices de mortalidade,
de concepções e casamentos, e ainda sobre a sensibilidade coletiva.
Da conjugação da crise de subsistência com a epidêmica (no período
ao qual se circunscreve esta análise, sobretudo a peste, a despeito da
ocorrência de febres tifóides e paratifóides) atingia-se, via de regra, a
decuplicação da taxa média de óbitos. Um movimento de força igual,
porém inversa, incidia sobre os matrimônios, com uma queda imediata
acentuada nas concepções, definindo-se teoricamente a recuperação
populacional como um processo de médio prazo.
Da compreensão da complexidade que caracteriza a articulação
dos fatores acima aduzidos, e as crises demográficas do passado,
vislumbra-se de forma mais nítida e equilibrada, não só o poder deses-
truturador com que a doença afligia a sociedade, como as razões de
sua contumácia e da demarcação de um palco predileto à encenação
do seu espetáculo de horrores.
Consideremos, em primeiro lugar, da longa lista de calami-
dades, as fomes e penúrias, distinguidas pela incidência da morte
(WOLFF, 1988, p. 15). Ainda que, via de regra, desencadeadas pela
interferência de fatores climáticos adversos (chuvas excessivas, secas
prolongadas etc.), mais ou menos controláveis em função do grau de
desenvolvimento das forças produtivas, articulam-se e são também
determinadas pelos níveis de produtividade, circulação, consumo e
estoque de alimentos. A despeito do avanço tecnológico e do aumento
da produtividade dos campos, esteio para o arranque da sociedade
ocidental europeia entre os séculos XI e XIII, a precariedade subsistente
das forças produtivas, aliada ao profundo abismo social que separava
os setores privilegiados do campesinato, produzia, quando rompido o
frágil equilíbrio da produção, fomes terríveis das quais ouvem-se ecos
mesmo no período acima referido. Maurice Berthe, em estudo relativo
à região da Navarra (WOLFF, 1988, p. 16), considera que as variações
climáticas ali verificadas no século XIV não podem ser caracterizadas
como anormais. Segundo Brooks (apud MARQUES, 1978, p. 39), o século
XIII padeceu maior número de calamidades naturais do que quaisquer

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

dos seguintes. Portanto, mais do que os próprios acidentes climáticos,


anormal é a amplitude das catástrofes, frequentes, por eles desencade-
adas a partir de meados do século XIV. Antes que um “determinismo
climatológico” (frio e umidade maiores?), foram os problemas crônicos
da agricultura medieval, agudizados pela crescente pressão demográ-
fica e senhorial, os fatores fundamentais do desequilíbrio manifesto
pela economia dos campos no alvorecer da Baixa Idade Média. Lem-
bremos que a fome endêmica que caracterizou o período articulou-se
ao aumento das exações sobre o campesinato, pela exacerbação da
exploração senhorial, sobrecarregada com os crescentes impostos
instituídos pelos estados nacionais em gestação. E, por fim, onde o
pobre morria de fome, o rico tinha sempre com o que se saciar.
Quanto às epidemias, alguns demógrafos, como Massimo
Livi-Bacci (ROTBERG, 1990, p. 103-109), consideram que a evolução
de certas doenças infectocontagiosas, como a peste, é “autônoma”,
alheia a qualquer relação com o nível ou a pauta de nutrição das
populações. Contudo, a frequência e a recorrência das epidemias
mantêm íntima relação com as condições materiais do período (sem
desconsiderar seus quadros nosológicos específicos), seja no tocante
à elevada concentração populacional, sobretudo nos meios urbanos,
aliada às precárias condições de higiene, seja em função dos limites do
conhecimento médico disponível, entre outras. A título de ilustração,
considere-se que a presença endêmica da malária no Ocidente da Alta
Idade Média (ROMANO; TENENTI, 1977, p. 4) esteve ligada à existência
de grandes áreas pantanosas, campo propício à ação do anófele. Se
de fato sua incidência reduziu-se no século XII, credite-se-lhe, como
fator de extrema importância, a redução daquelas áreas durante o
processo de conquista agrária. Existem, ainda hoje, como destacado
anteriormente, grandes focos naturais de peste em diversas regiões
do globo, mas raríssimas epidemias: evoluiu-se, desde fins da Idade
Média, no controle eficaz de sua disseminação. Várias das “pestes”
que grassaram no período foram, afirmam os especialistas, epidemias
de tifo exantemático, ligadas ao acirramento e profusão de confrontos
militares. No que tange à “seletividade natural” da peste, ainda que
longe de ser comprovada, é hoje quase lugar comum a aceitação da
teoria da morte diferencial (RODRIGUES, 1990, p. 31), circunscrita não
apenas ao nível individual, mas até ao “geopolítico”. Deflagrado um
surto epidêmico, as possibilidades de escapar-lhe e/ou resistir-lhe são
maiores entre as classes abastadas. Todo quadro infeccioso tende a
se agravar e a produzir sequelas mais profundas em organismos mal
ou subnutridos, fato gritante ainda em nossas sociedades contempo-
râneas, em especial as subdesenvolvidas.

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Mário Jorge da Motta Bastos


A relação postulada entre os dois flagelos acima caracterizados,
bem como suas elevadas frequências ao longo dos dois séculos aos
quais nos referimos, não se traduz apenas numa lógica mecanicista
que pressuponha a obrigatória sequência ou a ocorrência simultânea
dos eventos, a despeito de que, diversas vezes, se tenha verificado tal
simbiose. Ruggiero Romano destaca que

uma epidemia não é apenas precedida, como também acom-


panhada e seguida por uma carestia, pela evidente razão de
que, tendo os camponeses refugiado-se na cidade, faltam nos
campos os braços necessários para os trabalhos da colheita
seguinte (ROMANO; TENENTI, 1977, p. 7).

A Peste Negra foi imediatamente seguida de uma carestia de


grãos, posto que a profunda punção demográfica produzida se fez
sentir, mais do que na diminuição do número de bocas a alimentar,
na redução dos braços para o trabalho da terra.
Mas para além desta relação imediata há que se considerar
ainda as carências estruturais discerníveis (até onde nos é possível
avaliar) na cultura alimentar medieval, tiranizada pela hegemonia do
“pão”. Amplamente assente nos cereais, acompanhados de carnes e
vinhos (obviamente variando a quantidade e a qualidade de acordo
com a bolsa do comensal), resultava num regime alimentar mal equi-
librado, pobre em produtos frescos, e sobretudo carente em vitami-
nas A, C e D. Daí decorriam as comuns doenças de olhos, escorbuto,
organismos débeis ante os ataques das infecções (MARQUES, 1987,
p. 7). Nos frequentes períodos de escassez – nos campos como nas
cidades – recorria-se desesperadamente, segundo relatam as fontes,
a alternativas alimentares diversas (literalmente, com o que matar a
fome!). Via de regra eram ainda mais pobres em calorias e vitaminas,
quando não francamente impróprias ao consumo humano: cevada, na
melhor das hipóteses, mais comumente bolotas, cascas de árvores,
raízes várias, vísceras, tripas e até carne putrefata de animais, o que
por si já frequentemente favorecia os surtos de tifo ou disenteria,
quando não preparavam o terreno para a ceifa da peste.
Portanto, da cíclica conjugação de fomes e epidemias resul-
taram as principais crises de mortalidade do passado. As fontes de
época dizem respeito sobretudo às cidades. E os campos? Georges
Duby (1989, p. 115) os crê menos fustigados, posto que os campone-
ses encontravam o necessário para não morrerem à míngua. Pierre
Chaunu (RODRIGUES, 1990, p. 32) assevera que não se morre de fome
em regiões litorâneas e em áreas arborizadas, haja vista as possibili-

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40
A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

dades de recurso à pesca, à caça e à coleta de alimentos silvestres. A


perspectiva de ambos os autores parece incidir, ainda que não direta
e explicitamente sobre o que os especialistas qualificam como com-
portamento demográfico diferenciado da urbe em relação ao meio
rural (RODIRGUES, 1990, p. 32), tanto em “condições normais” quanto
diante das crises de mortalidade. Na primeira situação, as taxas de
natalidade e de mortalidade apresentam-se mais elevadas nos meios
urbanos, e a elas se articulam compensações de tipo diverso, em es-
pecial o intenso movimento migratório oriundo do meio rural. Em se
tratando dos fenômenos de mortalidade catastrófica, as crises tendem
a se apresentar menos intensas e duradouras, e mais esporádicas no
atingir e afetar os campos. De fato, as cidades e vilas constituíram-se
em espaço por excelência da efetiva consumação das crises demo-
gráficas, indicam-nos os “frios” cálculos dos especialistas. Mas esta
morte estatística, asséptica, se inscrita no âmbito das mentalidades,
revela-nos a trágica percepção do fenômeno e suas marcas profundas
cunhadas, ao longo do período, nas sensibilidades coletivas.

1.4 As cidades são sobretudo mortuários5

O multifacetado espaço urbano surge-nos, sobretudo caracteri-


zado (em especial o dos grandes centros) pela riqueza, pela pujança
do tráfego humano, da produção e circulação de ideias e mercadorias,
espaço aberto por excelência, centros de atração. Mas caracteriza-se
também (o quadro não nos deve parecer muito estranho!) por uma
espécie de contraface, marcada pela errância e concentração de
mendigos e vagabundos, feitos párias e lançados à marginalidade, de
subempregados, “ganha-dinheiros”, pobres esfomeados e subnutridos,
apinhados nos bairros populares, nas vielas sujas e tortuosas; locais
da precariedade da vida, “onde se nasce e morre muito depressa”
(RODRIGUES, 1990, p. 37).
Com efeito, as cidades reuniam condições propícias à deflagra-
ção frequente de crises diversas. Um habitat concentrado, submetido
a precárias condições de higiene, dependente do abastecimento ex-
terno, próximo e/ou longínquo, de alimentos básicos (fatores de uma
mortalidade já destacadamente elevada em condições normais), fazia
da população urbana alvo predileto dos repetidos contágios vários.
Para Oliveira Marques, “o conceito de crise de subsistências, de fome,
como nos surge nos séculos XIV, XV e XVI, só em relação à urbe ad-
quire um significado pleno” (MARQUES, 1978, p. 151). Quanto à peste,
se não deixou de assolar mesmo as pequenas aldeias isoladas, tal se
deu em geral pela disseminação, via rotas comerciais, de epidemias

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Mário Jorge da Motta Bastos


“originadas” em centros urbanos. Biraben destaca seu caráter sazonal
e desigual:

Se seguirmos a peste numa cidade desta época [...] verifica-


remos que ela fazia, com intervalos de oito, dez, quinze anos,
violentas investidas que atingiam a cidade inteira, eliminando
até 20, 30 ou mesmo 40% da população. Aparte estes paroxismos
persistia em estado endêmico, errando caprichosamente de
rua para rua ou de quarteirão para quarteirão, sazonalmente,
durante um, dois e até cinco ou seis anos de seguida, e depois
extinguia-se por alguns anos. Reaparecia então sob esta forma
“atenuada” que precedia frequentemente a forma “explosiva”
antes de voltar a seguir-se-lhe. (WOLFF, 1988, p. 27)

Atendo-me a Portugal, Lisboa parece ter sido, além de centro


mais atingido pelas crises de mortalidade, a principal via de impor-
tação de contágios. “Cabeça” do Reino e, logo, do Império, pode ser
considerada a única grande cidade portuguesa digna do adjetivo, à
escala europeia, no alvorecer da Idade Moderna. Principal porto do
trato marítimo, a “sobre todas estimada”, foi a capital eleita de um Es-
tado em centralização. Centro político, cultural, econômico, portanto,
e também difusor de epidemias: “algumas das maiores mortalidades
gerais entraram envoltas em mercadorias pelo [seu] porto, daí se
espalhando por todo o País” (RODRIGUES, 1990, p. 29). Ainda que
a sua situação destacada aponte para a singularidade da cidade no
interior do Reino, tal destaque não implica em independência, isola-
mento. Lisboa espelha e traduz, em seus condicionamentos, ainda
que superdimensionados, os fatores determinantes da frequência dos
surtos epidêmicos, a desestruturação por eles promovida, bem como
os níveis de intervenção das autoridades no sentido de pôr cobro à
situação. Tomo-a como exemplo, neste estudo, cotejando-o com as
parcas informações relativas a outros centros.
O crescimento da cidade, no período de que nos ocupamos,
insere-se num processo global de surto urbano vivenciado em Portu-
gal, acentuado até meados da centúria de Quinhentos, numa espécie de
correspondência defasada com o quadro europeu ocidental dos sécu-
los XI a XIII. Destacamos, anteriormente, o fenômeno do crescimento
das urbes sulistas. No entanto, aspecto talvez mais significativo que
a “oposição” norte/sul, o desenvolvimento das atividades marítimo-
comerciais fez com que os frutos da expansão fossem sobretudo
concentrados nas cidades portuárias, em detrimento das vilas beirãs
e trasmontanas interioranas. Se, em pleno século XV, apenas Lisboa,

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

em sua condição de cidade marítima (base de sua prosperidade, sem


dúvida, mas para a qual contribuíam ainda um florescente artesanato
e sua condição de capital), avultava em relevância a centros rurais
tradicionais, como Santarém e Évora, o alvorecer dos tempos moder-
nos reservou a estes últimos um papel secundário. Afirmado o caráter
marítimo do Reino, protagonizam a cena centros como Porto, Setúbal,
Aveiro, Viana do Lima, vilas algarvias, favoravelmente situados em
relação ao comércio mediterrâneo e atlântico, elemento-chave de seu
poderio e condicionante interno das demais atividades econômicas.
Assim, em Lisboa e no Porto, por exemplo, floresce uma infraestrutura
correspondente à atividade marítimo-comercial, como o desenvolvi-
mento da construção naval (em suas várias cambiantes), da “indústria”
e comércio dos utensílios de armazenagem, abastecimento etc.
O crescimento urbano exerceu, e embasou-se (num mesmo
processo, causa e consequência), na atração e na concentração popula-
cional verificada nesses centros. Vejamos o caso de uma vila nortenha,
Viana do Lima. Afirmado seu caráter mercantil pelo foral de D.Afonso
III (1258), desponta do “anonimato” em princípios do século XVI em
meio a um surto de expansão demográfica e econômica. Segundo o
numeramento realizado por determinação de D. João III, em 1527 con-
tava cinco mil vizinhos, e provavelmente uma cifra da mesma ordem
no termo, o que a situava como terceiro maior centro populacional ao
norte do Douro, a seguir ao Porto e Guimarães. Por lastro deste cresci-
mento, a excelência e importância do tráfego comercial em seu porto,
entreposto ativo em relação aos produtos ultramarinos e ao norte da
Europa. Caracterizado especialmente como instituição importadora,
a ele chegavam os panos de Flandres e França, o açúcar e os vinhos
da Madeira, o pão das Ilhas e o ferro asturiano. Mercê deste tráfico
comercial, Viana “transformou-se no século XVI numa povoação cosmo-
polita e rica” (MOREIRA, 1982, p.127): no seu cais, banqueiros judeus
cambiavam moedas de diversas partes do mundo; em suas ruas, em que
se multiplicavam novas construções em majestoso estilo manuelino,
circulavam mareantes e comerciantes de distintas nacionalidades.
Do velho burgo medieval – conquistado aos mouros em 1147, e
que segundo Damião de Góis restringia-se a uma colina que se derra-
mava sobre o Tejo – Lisboa impôs-se, desde o século XIV, como elo mais
importante da inserção do reino no comércio internacional. Capital
do Reino, espaço crucial da ascensão de Avis, a primazia, a um tempo
econômica, política e demográfica da cidade, tendeu à acentuação ao
longo dos séculos XV e XVI. Ligada ao Oriente pela Rota do Cabo e em
seguida ao Império Sul-Atlântico, responsável em 1526 por cerca de
35% do total das receitas estatais, suas múltiplas atividades e fontes de

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Mário Jorge da Motta Bastos


riqueza explicam o seu “rápido e desmesurado crescimento em relação
ao País” (MARQUES, 1987, p. 195). No último quartel da centúria de
Quinhentos, Lisboa concentrava cerca de 1/10 da população total do
reino, 120 mil indivíduos apinhados sobretudo nas freguesias do centro
urbano – núcleo nevrálgico do acréscimo populacional – a despeito
da progressiva ocupação das freguesias extramuros. Resultava daí o
elevado número de habitantes por núcleo familiar, média de sete, com
extremos inferiores e superiores registrados, respectivamente, em
quatro e nove. Segundo Gaspar Barreiros, na Lisboa de princípios do
século XV, “difficultosamente se acharam casas em que nam pousem
muitos moradores” (RODRIGUES, 1990, p. 50), habitações essas que,
no denso e estreito arruamento dos bairros populares mais antigos,
tendiam a ser muito baixas e pequenas.
O abastecimento dos centros urbanos foi um dos grandes proble-
mas formulados à Europa Medieval, ainda que o retorno à tradicional
simbiose campo/cidade, arrefecida durante a Alta Idade Média, tenha
sido elemento fundamental à expansão da sociedade ocidental europeia
a partir do século XI. Esta íntima associação, favorecendo o surto urbano
e a penetração do comércio no mundo rural, facultava à cidade retirar
de seu termo boa parte de sua subsistência. No entanto, o vertiginoso
crescimento de muitos centros onerou este sempre vulnerável equilíbrio,
exigindo o recurso a fontes abastecedoras diversas. Lembremos que
uma cidade de três mil almas – e muitas atingiram e ultrapassa-
ram esta grandeza no século XIII – consumia anualmente pelo
menos mil toneladas de cereais; para produzir uma tal quan-
tidade de alimento, era necessário, na situação das técnicas
agrícolas e dos rendimentos, semear cerca de mil e quinhentos
hectares e, consequentemente, para dar à terra o repouso
necessário, dispor de uma superfície arável pelo menos duas
vezes superior. (DUBY, 1989, v. 1, p. 165)

A concentração populacional impôs, dessa forma, a par do in-


cremento do comércio internacional de cereais – figurando a garantia
do abastecimento como preocupação básica das autoridades urbanas
– a constituição de verdadeiros celeiros produtores e exportadores
do frumento. Estes estavam situados em zonas de solos férteis e pro-
pícios à cultura cerealífera, com destaque para as regiões do Báltico,
da Polônia, da Alemanha Oriental, norte da França, parte do Magreb,
entre outras.
Neste amplo mercado, Portugal colocou-se, desde cedo, na “fila
dos compradores”. A primeira referência à importação de cereais para
o reino data do século XIII, tornando-se a partir daí uma constante,

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

tendo em vista o déficit crônico que caracterizou a produção nacional.


Abordando-o, Oliveira Marques destaca, como fatores dessa estrutural
insuficiência, a adversidade das condições naturais, o atraso das técni-
cas e dos meios de transporte, a escassez de braços para o amanho da
terra, agravados ainda pelo particularismo concelhio, avesso ao livre
comércio que permitiria equilibrar internamente a demanda e a oferta
de cereais. Atingido por crises de subsistência sucessivas, Portugal
buscou, um pouco por toda parte, suprir sua suposta e inolvidável
“abastança do Reino”:
De Castela e da Andaluzia, da Bretanha e da Flandres, de
Inglaterra e da Hansa Teutônica, de Itália e da Berbéria, toda
a Europa e até a África lhe serviram, em quantidades e em
épocas várias, para receber o pão de que carecia. Desde os
primeiros anos do século XVI que a importação regular do
trigo estrangeiro se impõe, definitiva e perenemente. (MAR-
QUES, 1978, p. 284)

As disposições régias e concelhias relativas, em Portugal, ao


comércio cerealífero, ainda que via de regra conflitantes, traduzem a
preocupação comezinha das autoridades em garantir o abastecimen-
to. O problema, embora generalizado, tendo em vista as frequentes
conjunturas críticas, parece ter sido particularmente premente em
Lisboa, para onde, através de incentivos os mais diversos, procura-
vam os poderes local e central atrair os carregamentos de trigo. A
cidade consumia anualmente (RODRIGUES, 1990, p. 49), em meados
do século XVI – quando apenas 6% de seus habitantes radicavam-se
no setor primário da economia, 690 mil hl de cereal, restringindo-se o
contributo provincial a cerca de 200 mil hl; dependia-se, portanto, da
oferta externa. Daí as sucessivas cartas régias licenciando a livre saca
de trigo para Lisboa de qualquer ponto do país, bem como a isenção
ou redução de impostos (com prejuízo para a Fazenda) sobre a entra-
da de cereais, que visava a fomentar as importações do estrangeiro,
centralizando-as na capital.
Tais medidas, corriqueiras ao longo do século XV, denotam a
“situação deficitária cada vez mais desesperada dos grandes centros
demográficos em abastecimento interno de pão” (MARQUES, 1978, p.
163). Viana, a vila nortenha que encontramos, no alvorecer do século
XVI, em franca expansão, carecia de pão, vinho, peixe, madeira, sub-
sistindo numa situação de extrema dependência do abastecimento
externo. Vivendo do seu porto, quando o comércio marítimo sofria
qualquer quebra, imediatamente a pobreza e a miséria invadiam as
ruas da vila (MOREIRA, 1982, p. 123).

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Mário Jorge da Motta Bastos


1.5 Caos inexplicável?

Tentamos reunir, até aqui, os fatores essenciais explicativos das


frequentes crises de mortalidade que afetaram a sociedade portugue-
sa ao longo do período. É hora de, num balanço final, abordá-los em
sua nefasta articulação. Considerado o ciclo nosológico, específico,
da peste, “reinaugurado” pela Grande Epidemia de 1348, na extensa
faixa costeira portuguesa, os centros portuários, que eram frequenta-
dos por embarcações de diversas partes do mundo, constituíram-se
em vias de ingresso para epidemias que por vezes atingiram todo o
território nacional.
Assim, em Viana do Lima, ao longo do século XVI, vários foram
os reflexos de pestes oriundas da Galiza e do Norte da Europa, que por
vezes fustigaram todo o Alto Minho. Em Lisboa resultaram sobretudo
dos contatos comerciais travados com os portos do Sul da Espanha,
Marselha, Gênova, Londres, cidades holandesas e alemães. Centros
de intensa atividade comercial, de concentração populacional em ruas
estreitas e sujas, verão repetidas vezes as galeras que lhes traziam
o aguardado “pão”, os ricos tecidos e as afamadas especiarias, tra-
zerem também a peste em seus porões. Favorecida pelas condições
do meio urbano, e explicitando a precariedade das condições sociais
de existência, a doença assumia um caráter endêmico, errando pelos
bairros da cidade por anos a fio, como a endemia que, por 17 anos
consecutivos, assolou Lisboa em fins do século XV.
Depreende-se, do quadro exposto, as razões da elevada frequên­
cia com que as crises de mortalidade atingiam os principais centros
urbanos. Elas determinavam períodos consecutivos, e por vezes longos,
de crescimento populacional natural lento e até negativo, colmatado, no
entanto, pela intervenção de outras variáveis, em especial pelo intenso
movimento migratório em direção às urbes. Em Lisboa, ao longo do
século XVI e, fugindo ao nosso recorte, do XVII, registrou-se “em média
para cada três anos normais um de mortalidade extraordinária, distri-
buídos de forma irregular, embora manifestassem certa periodicidade”
(RODRIGUES, 1990, p. 71). Desiguais em sua força destrutiva, a peste
esteve sempre na base das grandes mortandades: calcula-se que 60 mil
pessoas tenham sucumbido na capital durante a Peste Grande de 1569.
Ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, Portugal vivenciou, com caráter
geral ou local, pelo menos um surto epidêmico por década.6
Em suma, convívio cotidiano e inquietante com a morte, inter-
venção frequente de um poder desestruturador. Urgia opor-se-lhe!
Oliveira Marques, com base em tal nefasta cronologia, propõe uma
interessante reflexão:

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A peste no Ocidente: o mal inscrito na longa duração

Cada português dos séculos XIV e XV (incluiria aí, sem dúvida, o


XVI) viu duas ou mais epidemias durante a sua vida, e teve, com
certeza, parentes e amigos levados por elas [...]. Compreende-
se assim os esforços de físicos, boticários, curandeiros, bruxos
e até filósofos e políticos no sentido de se descobrirem remédios
eficazes de proteção. (MARQUES, 1987, p. 93)

Urgia, acima de tudo, compreender a doença, traduzi-la, explici-


tar suas motivações, premissa indispensável às tentativas de superá-
la ou, antes, dominá-la. Em que pese a possibilidade, e certamente
a existência, de “leituras” diversas da moléstia, como indica o autor
citado, percebemos e apontamos para a constituição, no Portugal
do período, de uma compreensão particular da doença, emanada do
poder central, que pretende defini-la, requisitando à realeza o poder
e a função de intervenção social tendo em vista sua superação. A
constituição de uma interpretação “real” das epidemias efetiva-se pela
articulação de dois elementos básicos, quais sejam, a produção de um
discurso sobre a doença – e aqui, antes de um discurso “possível”,
aquele que se intenta impor socialmente como o discurso qualificado –, e
a definição de posturas e normas voltadas à sua superação, cujo não
cumprimento implicava em penas físicas e pecuniárias.
Ao buscarmos as bases de sustentação e informação do poder
central em matéria de doença, verificamos serem duas, fundamen-
talmente, as fontes do discurso real: a interpretação das epidemias
veiculadas pelos discursos religioso e médico, que serão abordados
nos capítulos que se seguem.

Notas
1
Segue ainda hoje ceifando a esmo, inclusive no Brasil, segundo Veronesi (1985, p. 442),
quando não dá origem a surtos de amplitude tal como os medievais e modernos.
2
Segundo 1 Sam., 5, 6-12 (SOARES, 1989, p. 782).
3
No Ocidente, praticamente as únicas referências devem-se a Gregório de Tours,
em sua História Francorum, segundo Biraben; Le Goff (1960).
4
Ley per que [...] manda que os homes husem dos mesteres de que husaram ante da
postenença E aquelles que morarom por soldada que os costrangam que morem
com anos” (apud CAETAN0, 1981, p. 83).
5
Rodrigues (1990, p. 79).
6
Houve epidemias, gerais ou parciais em 1348, 1356, 1384, 1414/15, 1423, 1432, 1435,
1437/38, 1448, 1459, 1464/69, 1477/79, 1480/97, 1503, 1505/06, 1514, 1518, 1522,
1526/29, 1531, 1537, 1564, 1569/80, segundo Meirelles (1866).

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Capítulo 2

O discurso cristão: doença-pecado coletivo

[...] Bendito é o teu nome, ó Deus de nossos pais, que,


depois de te irares, usas de misericórdia, e no tempo
da aflição perdoas os pecados aos que te invocam [...].
(Tob. 3,13 apud SOARES, 1989, p. 782)

“No princípio, e durante séculos, os homens acreditavam que


a peste era uma manifestação da cólera divina, um castigo por grave
ofensa” (MARCÍLIO, 1984, p. 117). Tal referência introduz, num artigo
de um afamado especialista, a apresentação dos conceitos e lutas
contra a peste em voga em fins da Idade Média. Referência emblemá-
tica, pelo que encerra de taxativa, conclusiva e lacônica. Expressaria
o reconhecimento, reconfortante talvez, do predomínio sempiterno de
uma crença que mergulha na noite dos tempos, que domina, e confere
um colorido particular a um “mental coletivo” supersticioso, carac-
terístico das sociedades pré-industriais? Que princípio, que séculos,
que homens? Crença intrínseca, inerente à espécie humana, mono-
córdia, ou investimento de sentido deliberado da esfera do religioso
(aqui entendido como ortodoxia cristã, a Igreja) sobre o campo mais
amplo do sagrado no qual se inscreve e intenta organizar, delimitar?
Se a maioria das crenças partilhadas por grupos humanos remetem,
entre suas fontes, a elementos que se perdem num passado remoto,
arredio a delimitações espaço-temporais precisas, verdadeiros topoi
presentes em diversas civilizações, a sua formulação, expressão e
divulgação inserem-nas em contextos históricos específicos, e pressu-
põem um processo de engendramento de sentido que requer agentes
e mecanismos socialmente determinados.
Dentre as várias imagens que expressaram, em fins da Idade
Média, a identificação das epidemias com o castigo divino, encontra-
se aquela representada no painel do altar dos carmelitas descalços
de Gôttingen, de cerca de 1424, da qual sobressai um Cristo encole-
rizado disparando uma espessa chuva de flechas sobre os homens
(DELUMEAU, 1989, p. 113). Ainda em 1348, as autoridades de Orvieto
registravam a elevada mortalidade “devida à peste que nesse momen-
to envia atrozmente suas flechas por toda parte” (DELUMEAU, 1989,
p. 113). No Antigo Testamento, Jó, abatido pela doença-provação,
declara que “as setas do Senhor estão cravadas em mim, e o vene-

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

no delas devora o meu espírito, e os terrores do Senhor combatem


contra mim” (Jó 6,4). Transcendendo o próprio quadro do referencial
judaico-cristão, o canto I da Ilíada (HOMERO, 1968, p. 11-12) registra a
ira vingativa de Febo Apolo, que desce do Olimpo carregando o arco
e a aljava para disparar suas setas contra os gregos, dizimando as
tropas com um “mal pernicioso”. Evocada a imagem, Jean Delumeau
considera natural a assimilação, pelo clero e fiéis, “dos ataques do mal
aos golpes mortais de flechas lançadas do alto” (DELUMEAU, 1989,
p. 113). No entanto, destaca, a retomada e popularização da compa-
ração foi obra da cultura eclesiástica, levada a efeito sobretudo pelos
meios clericais. Ainda no século XIII Jacques de Voragine divulgava,
na Legenda Áurea, a visão de São Dominique de um Cristo irado que
brandia, do céu, três lanças contra a humanidade culpada de orgulho,
cupidez e luxúria (DELUMEAU, 1989, p. 113).
Portanto, se a identificação da doença como castigo divino im-
posto aos homens transcende o campo do referencial judaico-cristão,
e o contexto histórico mais preciso em que se inscreve esta pesquisa, a
elaboração (ou reelaboração) e difusão desta doutrina, entre as socieda-
des ocidentais europeias medievais, foi instrumentalizada por homens
da Igreja e partilhada, “por muito tempo, pela parcela esclarecida da
opinião quanto pela massa das pessoas” (DELUMEAU, 1989, p. 144).
Projeta-se a doença como fenômeno ideológico, campo propício
à expressão de crenças, valores, conceitos e normas. Elaboradas e
transmitidas por um corpo de funcionários especializados (sacerdotes
e intelectuais) integrantes de organizações específicas da sociedade
(CARDOSO, 1989, p. 11-18), operavam nos limites de uma visão de
mundo profundamente calcada no referencial cristão, admitindo-se
que “o cristianismo era o próprio ar respirado por toda a região que
convencionamos designar por Europa e que constituía a Cristandade”
(FEBVRE, 1978, p. 38). A doença é um locus de reflexão e produção de
discursos que nela se originam, mas que a ultrapassam. Sob a ótica cris-
tã, fomentou a abordagem do pecado, da culpa, do arrependimento e da
redenção, do papel social da caridade e, em extremo, da fundamental
observância das leis que regulam o pacto entre Deus e os homens.
A assimilação das epidemias às flechas divinas e, na extensão,
da peste como um castigo de Deus, em vez de natural, como parece
considerar Delumeau – metáfora que se impõe por sua própria força
a mentes nas quais reina a confusão entre o natural e o sobrenatural
– explicita-se como um processo de investimento de sentido cujos prin-
cipais artífices foram membros da Igreja, instituindo e disseminando
esta concepção através de discursos (orais e escritos), imagens, ritos
e cerimônias estabelecidos, salvo engano, no Ocidente a partir de fins

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Mário Jorge da Motta Bastos


do século V. Nas sociedades ocidentais, tal qual a doença, a formulação
da interpretação cristã desta inscreve-se na longa duração, sorvendo o
manancial vetero-testamentário para circunscrever um campo primor-
dial de referência, vigoroso a ponto de matizar tanto o discurso médico
quanto o régio. A mão divina foi recurso primeiro, e último!
Neste processo, o elemento primário a considerar reside na
perspectiva eclesiástica, que atravessa a Idade Média, de requisitar-se
a hegemonia e o controle das relações humanas com a esfera do sa-
grado, explicitada em especial na função social requerida e definidora
do ordo clerical na ideologia da sociedade tripartida. Guerra travada
em vários tempos, a batalha primordial teve por palco o Ocidente da
Alta Idade Média, onde a Igreja triunfante, pilar ao menos ereto em
meio aos escombros do edifício imperial romano, assumiu a função de
herdeira e representante da cultura romana, buscando a ascendência
na constituição de uma nova ordem, a da Cristandade Ocidental. Às
vésperas da derrocada imperial, a difusão do cristianismo no Ocidente
fora um movimento estritamente urbano, anunciando-se timidamente
no imenso interior rural (JONES apud LE GOFF, 1986, p. 209). A ampla
massa camponesa, reforçada pela tendência de ruralização e abandono
dos centros urbanos no período, permanecia pagã, “arqueociviliza-
ções” arraigadas a costumes e práticas cujas raízes remontam a além
da época clássica, para a proto-história e mesmo, em vários aspectos,
para a pré-história (CHAVES, 1957, v. 8, p. 253). A expressão latina,
paganus, camponês, designou os não-conversos.
Somente a partir do século VIII é que se pode afirmar que o
cristianismo chegou a ser a religião do Ocidente (VAUCHEZ, 1985,
p.14), tarefa autoimposta de expansão da fé para a qual concorreram
papas, bispos, monges e reis. Vitória da cruz na supressão do paga-
nismo? O embate confrontou tradições culturais diversas, em parti-
cular a de uma elite eclesiástica, herdeira da cultura greco-romana,
e a das camadas laicas da sociedade, imbuídas do que Jacques Le
Goff (1986, p. 212) definiu como cultura folclórica. Mas se ao choque
cultural impôs-se a iniciativa da recusa, atitude deliberada ou fruto da
incompreensão, desta cultura folclórica pela eclesiástica, a aculturação
fez-se via de mão dupla, favorecida por estruturas mentais comuns
e sobretudo determinada pelas próprias condições de implantação
do cristianismo. Imperioso à evangelização um esforço de adaptação
cultural, ele instituiu um canal de comunicação entre a espiritualidade
do clero e a dos fiéis.
Em que pese a reação, mais ou menos violenta e decidida,
mas recorrente, da ortodoxia contra o que considerava “resíduos” e
“infiltrações” do paganismo, e que deviam ser extirpados,1 a ação da

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50
O discurso cristão: doença-pecado coletivo

Igreja orientou-se pela perspectiva de purificar o simbolismo tradi-


cional das populações do Ocidente, lavando-o na água do batismo:
cristianizaram-se festas arcaicas, edificaram-se templos de Cristo, da
Virgem e dos santos nas ruínas de templos pagãos, purificaram-se e
cobriram-se com o manto cristão datas e costumes calendários. Enfim,
“converteram-se símbolos sem destituí-los do significado original que
lhes conferia a simplicidade intuitiva humana” (CHAVES, 1957, p. 254).
Ressalta-se assim um dos elementos cruciais à compreensão do pro-
palado domínio da religião sobre a vida na Idade Média: o esforço da
Igreja por cristianizar, e nesse sentido reter, orientar, controlar a inge-
rência do sobrenatural na ordem terrena, canalizando a “sacralidade
difusa que rodeava os principais atos da vida na religiosidade popular”
(VAUCHEZ, 1985, p. 28) e impregnando de religião a vida cotidiana dos
fiéis. A par da liturgia eucarística desenvolveu-se um conjunto de ritos
paralitúrgicos que traduzem tal impregnação. Restringindo-nos ao
nosso campo de interesse, bendições e exorcismos protegiam contra
calamidades (naturais, diríamos nós!), ataques de feras selvagens,
enfermidades devidas ao demônio, fonte de toda corrupção. Ao mes-
mo tempo, amorteciam os choques, positivando-os, carreando neles
o proselitismo cristão numa espécie de “pedagogia do oprimido”:
determinava-se-lhes uma origem, um fim, delimitando-se o campo
dos recursos legítimos e favoráveis à sua superação.

2.1 A mão interventora e punitiva de Deus

Se a esfera do religioso se introduz, plena, no cotidiano vivido,


a própria vida, individual e coletiva, é impregnada de um sentido
transcendente; transborda sua vigência mundana, inscrevendo-se na
história global do Povo de Deus, na economia da salvação, perspectiva
última da sociedade cristã. Nesse sentido, a história, durante a Idade
Média (e para além dela, segundo a concepção cristã providencialista),
constitui-se num campo privilegiado para as intervenções divinas,
“não passa da aplicação dos desígnios divinos sobre a humanidade”
(BOURDÉ; MARTIN, [19--], p. 17). Tal perspectiva afeta, em níveis dis-
tintos, laicos e religiosos. Quanto a estes manifesta-se, por exemplo,
nas crônicas monásticas, principais fontes narrativas de que dispõe
o historiador para os séculos XI e XII, cujo número e importância se
explicam também pela preocupação dos religiosos em “discernir o
modo pelo qual a obra da salvação, inaugurada pela Encarnação, se
inscrevia na trama do tempo” (VAUCHEZ, 1985, p. 55). Os acontecimen-
tos encerram sinais divinos, sintonizados e registrados pela narrativa
cenobítica. Quanto aos laicos,

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Mário Jorge da Motta Bastos


a seu próprio nível, inferior indubitavelmente, [...] não estão
menos atentos aos sinais dos tempos. Todos estão intimamente
persuadidos de que Deus intervém de maneira direta nos des-
tinos individuais e coletivos. Concretamente, crê-se que seu
poder se manifesta mediante prodígios cujo signi­ficado está em
relação com as ações humanas, e que as guerras e as epidemias
são conseqüências do pecado. (VAUCHEZ, 1985, p. 55)

Como entender a distinção em dois níveis? Vulgarização de um


modelo clerical? De onde a persuasão íntima da intervenção recorrente
de um Deus-juiz no curso da história, senão na difusão da concepção
clerical de que esta se orientava para um fim, o retorno de Cristo e
a realização da Jerusalém celeste? Na “constante véspera do Apoca-
lipse” (RICHARDS, 1993, p. 15) as pestes são, além de um seu sinal, a
demonstração do poder punitivo de Deus, a realização da Sua justiça,
castigo-resgate da comunidade dispersa, reintroduzida no caminho
da salvação. É a “teologia do Deus terrível” (DELUMEAU, 1989, p. 226),
perene no discurso cristão, e reforçada nos contextos de calamidades,
particularmente no da fúnebre cadeia que se abateu sobre o Ociden-
te a partir da Peste Negra. Divindade paciente e misericordiosa, no
entanto sujeita a arroubos de cólera periódicos identificados como
manifestação de Sua indignação, ação legítima posto que intrínseca
a natureza do Justo Juiz. A dialética punição/redenção impôs-se aos
espíritos com força de lei, reafirmando, ao termo, o caráter indelével
e incomensurável da piedade divina.

2.2 As “primeiras formulações”

Concepção inscrita na longa duração, embasava-se funda-


mentalmente no amplo referencial fornecido pelo discurso religioso
do Antigo Testamento, pleno da ação punitiva de Deus, atualizado
particularmente no “tempo da catástrofe”, este que era, por exce-
lência, o da sua divulgação. Não nos afeta a intenção (ou preten-
são) de percorrer e esgotar este largo percurso, perseguindo as
contribuições várias à cristalização desta crença, numa espécie de
“genealogia da ideia do castigo”. Antes, cumpre-nos considerar, a par
da recolha das formulações cruciais, o seu conteúdo, as propostas
que encerra e veicula, bem como seus canais de divulgação e afir-
mação na sociedade e no período que nos ocupa. A amplitude do
tema levou-nos, contudo, a extrapolar os limites do nosso recorte
espaço-temporal, tão somente porque a leitura cristã da doença, nele
vigente, extravasa-o em sua elaboração.

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

Ainda em princípios da Idade Média, a primeira pandemia de


peste que assolou o Ocidente instaurou o contexto propício não só às
primeiras manifestações discursivas da crença por homens da Igreja,
mas à sua fixação e divulgação através de rituais específicos. Gregório,
bispo de Tours, em 573, registrou os sucessivos ataques da doença
na sua Historia Francorum. De sua narrativa da epidemia que em 588
assolou Marselha (BOURDÉ; MARTIN, [19--], p. 14-15) destaca-se o
papel de mediadores assumido pelo rei e pelo bispo, únicos capazes,
como agentes divinos na terra, de interceder junto a Ele para apaziguar
Sua cólera. Mais do que a referência direta à origem divina, Gregório
de Tours nos permite antever que a fixação da perspectiva cristã visou
impor-se à tendência das populações atingidas de recorrer a “supers-
tições” pagãs ainda vivas, como no apelo a um feiticeiro (hariolus),
relatado no Liber de virtutilus sancti Iuliani (BIRABEN; LE GOFF, 1960, p.
1498). Em face da recorrência da peste, os homens “entregaram-se mais
dóceis a certas crenças e práticas cristãs” (BIRABEN; LE GOFF, 1960,
p. 1498). Articulada num conjunto de calamidades identificadas como
sinais, a doença, expressa sob a ótica religiosa, fomentou nos espíritos
a espera próxima do Juízo Final, uma mentalidade apocalíptica e mi-
lenarista. Nosso bispo chegou a identificar nos líderes populares, que
exploravam a confusão e o terror reinantes, a presença do Anticristo
(BIRABEN; LE GOFF, 1960, p. 1498). Fruto da cólera divina, punição
pelo pecado coletivo, a peste suscitou a culpabilidade e a penitência
populares, prontamente estabelecidas pela ortodoxia eclesiástica em
rituais específicos, inseridos no calendário litúrgico.
Reza a tradição que são Mamerto, bispo de Viena, falecido em
474, ordenara, num contexto de calamidades, as Ladainhas, rapidamen-
te disseminadas por toda a cristandade.2 Mas foi no século seguinte,
em meio às epidemias-castigo, que a reação apaziguadora proposta
aos fiéis promoveu um desdobramento até então desconhecido das
peregrinações e procissões: além das Rogações ao túmulo de são
Julien de Brioude introduzidas por são Gall, são Gregório Magno, o
“papa da peste”, instituiu, numa Roma assolada pelo flagelo em 590,
as Litanias Maiores.3 No século VIII, são Beda referiu-se a elas em sua
Homiliae XCVII (MIGNE, 1862, col. 499). Segundo o Venerável, Gregório,
ao ascender ao pontificado em meio à grande mortalidade que vitimara
o papa Pelágio, convocou o povo romano ordenando-lhe penitenciar-
se por suas faltas, e que invocassem a misericórdia divina. Instituiu
sete Ladainhas, com peregrinação ao túmulo de são Pedro, clamado
por todos como intercessor junto ao Deus irado. O povo jejuou neste
dia, fixando-o como preceito para toda a Igreja: sua celebração anual
protegeria o fiel contra a morte súbita, característica essencial daquela

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imposta pela peste. No termo da narrativa são Beda, contrariando a
cronologia, posterga as Ladainhas de são Mamerto, submetendo-as
à tradição fundadora requisitada para são Gregório.
A origem de tal mortalidade, descrita por são Beda, evoca um
traço marcante da perspectiva cristã relativa à doença: ela reconhe-
ce, preserva e qualifica a referência médica, de matriz hipocrático-
galênica, submetendo-a à deliberação divina. Entre as causas da
epidemia, a homilia arrola o envenenamento do ar – causa natural
fixada pela medicina – decorrente, contudo, da ação de uma força
maléfica, o veneno desprendido dos cadáveres de cobras e escorpiões
que invadiam a cidade.4 Reafirmando a intervenção sobrenatural,
setas de fogo oriundas do céu multiplicaram os óbitos. Santo Isidoro
de Sevilha (ca. 570-636) firmara, em suas Etimologias, o princípio:
“Ainda que esta enfermidade [a peste] seja muitas vezes provocada
pelas propriedades que têm o ar, não ocorre nunca, no entanto, sem
a decisão de Deus onipotente (SEVILLA, 1982, p. 489). A explicação
última, irrefutável, entrava em cena, para dominá-la. O saber médico,
herança da cultura da Antiguidade, referência básica dos tratados anti-
pestíferos dos séculos XIV ao XVI, impôs-se mediatizado, previamente
cristianizado pelo labor de dois dos “fundadores da Idade Média” (LE
GOFF, 1983, p. 164).
Fixadas por são Gregório Magno, reafirmadas por são Beda,
inseridas no calendário litúrgico, as Litanias Maiores favoreceram-se,
a partir do século XIII, de um importante veículo de divulgação e po-
pularização, insertas na Legenda Áurea (VORAGINE, 1967, p. 351-355)
de Jacques de Voragine (1230-1290). Criticada pelos erros históricos,
lendas e fantasias que a integram, consistiu numa obra hagiográfica de
enorme popularidade (em função até da simplicidade da descrição da
vida dos santos), atingindo várias reproduções manuscritas e edições
em língua latina e línguas vulgares, desde fins do século XIV. Quanto
a sua função didática,

foi tão importante que o iletrado homem medieval, recordan-


do o que ouvira ler na Legenda, compreendia à maravilha os
episódios e as peripécias romanescas das vidas dos santos,
que escultores, pintores e desenhadores de vitrais e de blocos
xilográficos figuraram com rigor voragineano, nas obras desti-
nadas a corporações, confrarias, igrejas, catedrais, mosteiros
etc. [...]. (ROQUE, 1979, p. 244)

Ao apontar a origem das Litanias, Jacques de Voragine introduziu


referências que não constam do “histórico” de são Beda: segundo o

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

autor, a epidemia de peste que determinou a intervenção de são Gre-


gório Magno foi um castigo de Deus, provocado pelos romanos, que
tão logo acabada a Páscoa entregaram-se à gula, ao jogo e à luxúria
(VORAGINE, 1967, p. 351).

2.3 Imagens e expressões do castigo

As Litanias Maiores constituíram-se numa espécie de referên-


cia de base da concepção cristã da doença. Definiram suas origens,
motivações, evocaram imagens e, sobretudo, fixaram a perspectiva
de superação. Núcleo primordial, em torno dele o discurso cristão
multiplicou referências, precisou e alargou o campo de imagens,
ampliou a esfera dos recursos, possíveis e sagrados, voltados à su-
peração do flagelo quando, a partir da Peste Negra, a ira persistente
de Deus impôs um castigo recorrente à humanidade. Tempo forte da
“teologia do Deus terrível”, da prédica apocalíptica, parecia esgotada
a paciência divina. Aos homens aterrorizados apresentava-se a Sua
face vingativa, em função da qual a antiga, dramática e angustiada
oração fez eco pelo Ocidente: “A fame, impidemia et bello libera nos,
Domine! ” (WOLFF, 1988, p. 13). Escutá-la-ia?
Nas fontes religiosas portuguesas são abundantes as referências
diretas e explícitas à peste como castigo divino. Segundo frei Manoel
da Esperança, a fereza da peste de 1348 persuadiu a “todos que mais
era hu açoute, mandado por Deos do ceo em castigo de pecados, que
doença, a qual tivesse principio em as causas naturaes” (ESPERANÇA,
1666, p. 343), opinião partilhada pelo padre Francisco de Santa Maria
(SANTA MARIA, 1697, fol.106) frei Luis de Sousa, na esteira de santo
Isidoro de Sevilha, embora reconheça o caráter contagioso da doença,
destaca que “os que somos Christãos, E que damos a Deos [...] todo o
governo e poder das cousas humanas, a principio mais alto devemos
referir açoutes tão horrendos” (SOUSA, 1857, p. 511-512). Frei Fran-
cisco de Santiago, genérico e taxativo, afirma que “he a peste açoute
da ira divina, e entre todas as calamidades desta vida a mais cruel, e
atrocissima” (SANT-IAGO, 1762, fol.319). Para o padre Balthazar Tellez,
introduzindo a narrativa da epidemia de 1579, “nam hà duvida, que este
mal da pèste he ordinariamente dado por Deos, empena dos peccados
dos homens” (TELLEZ, 1647, fol.198). Das 12 causas da epidemia de 1569
arroladas no Breue summario da peste, que segundo seu autor anônimo
foram juízos correntes sobre o flagelo, 11 especificam castigo divino,
enquanto a última, se lhe confere origens naturais – “cursos naturais E
ynfluencias dos ares” –, acaba por caracterizá-la como sinal da inter-
venção divina, previamente diagnosticada com permissão do Altíssimo

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pelo “cristianissimo prinçipe infante dom luis” (BREUE SUMMARIO...,
1569, fols. LXX – LXXII). Frei Luis de Souza, abordando o mesmo surto
epidêmico, destaca que há largos anos gozava a cidade de Lisboa de
boa saúde, depois do que “foy o Senhor servido de a visitar com hum
rigurosissimo castigo de peste” (SOUSA, 1767, p. 406).
Integrada, por vezes, num conjunto de sinais, à peste aliam-
se outros flagelos que, característicos da justiça divina, reforçam o
caráter de punição. Frei Fernando da Soledade, refletindo sobre as
misérias que se abateram sobre o reino de Portugal durante o reinado
de Afonso V, lastima que “o ceo se armava por todos os caminhos cõtra
nòs com diluvios de agoa, peste, fome e guerra; mas tudo lhe mereciaõ
as culpas dos homes” (SOLEDADE, 1705, t. 3, p. 340-341). Segundo o
mesmo autor, no infausto ano de 1601 encontram-se em várias partes
do mundo sinais evidentes de justiça divina e “particularmente em
Portugal, aonde alèm da peste q a ninguem perdoava, appareciaõ os
ares, E campos coalhados de gafanhotos” (SOLEDADE, 1705, t. 5, p.
275). O cronista jesuíta Balthazar Tellez faz o ponto da questão: “Quãdo
Deos quer castigar peccados grãdes, nam lhe basta huma pèste grãde;
bem se vé esta verdade nos castigos tam repetidos em Egypto, contra
a dura pertinacia do barbaro rey egytano” (TELLEZ, 1647, fol.198).
Indica-nos ainda, portanto, de sobra, sua principal fonte de refe-
rência, a verdade contida e colhida na tradição vetero-testamentária.
Se a Bíblia representou, para o homem medieval, uma viva rea-
lidade que o impregnava, concedendo-lhe alimento espiritual, matéria
de reflexão e conselhos de ação (VAUCHEZ, 1985, p.130), o discurso
religioso do Antigo Testamento forneceu aos homens da Igreja, “agui-
lhoados por acontecimentos trágicos” (DELUMEAU, 1989, p. 226),
um farto manancial de citações que, isoladas, ofereciam-se aos fiéis
atemorizados e inquietos. A colheita é farta. Em vários de seus livros
explicita-se que a enfermidade e a peste são recursos frequentes,
“armas” contumazes da punição do Altíssimo. No segundo livro do
Pentateuco, a fúria divina empregada para vencer a resistência do faraó
atingiu com a peste primeiro os animais dos egípcios, ferindo em segui-
da os próprios. Libertos do cativeiro, a obediência aos preceitos divinos
foi firmada como garantia, ao povo de Deus, contra a enfermidade. O
Levítico, depois de garantir as bênçãos divinas aos observantes da Lei,
ameaçou os seus transgressores com a fome, a guerra e a peste, que
reduziriam à solidão as suas cidades. Em Números, o Senhor ultrajado
pelo povo ameaçou feri-lo e exterminá-lo com a peste. Concluindo a
fixação da Lei, o Deuteronômio readvertiu que à sua infração corres-
ponderiam penalidades, dentre elas enfermidades e peste. Dos Livros
Históricos, reterei apenas o castigo impingido aos filisteus, de posse da

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

Arca da Aliança, quando o Senhor os feriu com uma doença “na parte
mais oculta do corpo”, provocando grande mortandade, além da cé-
lebre referência à peste que atingiu Israel, por três dias consecutivos,
originada da grave ofensa cometida pelo rei Davi.5
Ainda em reforço à expressão da doença como punição divi-
na, as crônicas religiosas portuguesas descrevem a sua ocorrência
amalgamando-a a outros recursos recorrentes e específicos desta
Sua ação. Frei Luis de Sousa designa por “feridos” os contagiados
pela peste, porque “com este nome se declara esta infirmidade, como
dada com setas do Ceo”. Através dela, “mostrou o Senhor, que eraõ
tiros de sua ira, e verdadeira pena de peccados” (SOUSA, 1767, p. 414).
Frei Manoel da Esperança destaca o vigor da caridade dos frades se-
ráficos na Vila de Guimarães, particularmente nas ocasiões de peste,
“quando irado o Ceo co a espada na mão feria grandes, e piquenos”
(ESPERANÇA, 1666, p. 171). Sobre a Peste Negra de 1348, declara que
“foi huma semelhança do diluvio gèral, de que escapârão poucos”
(SEVILLA, 1982, Segunda Parte, p. 343). Segundo frei Fernando da So-
ledade, referindo-se à terrível peste de 1569, “tambem a esta Provincia
de Portugal chegou a sua espada degollando muytos religiosos della”.
Em função desta epidemia, afirma, “Portugal fluctuava” (SOLEDADE,
1705, t. 5, p. 2), fazendo eco ao autor do Breue summario da peste, para
quem o contágio começando com “labirintozas ondas”, submeteu a
“nau boalis” (metáfora da cidade de Lisboa) a “tormenta desfeita de
mares crusados” (BREUE SUMMARIO…, 1569, fol. LV).
Mas se a peste naufraga, fere, degola, ela preferencialmente
queima. De longe, a expressão da doença como um fogo impõe-se
como a mais recorrente nas fontes. Segundo frei Manoel da Esperan-
ça, governava o mosteiro das clarissas D. Margarida de Menezes em
1480, quando sentiu que adentrava a casa “o mesmo fogo da peste,
q jà tinha abrazado a cidade” (ESPERANÇA, 1666, Segunda Parte,
p. 62). Salvo o mosteiro pela intervenção miraculosa da Virgem Maria,
recolheu-se a ele a rainha, “pera poder escapar do incendio da peste,
que ardia noutras partes” (ESPERANÇA, 1666, p. 65). Frei Fernando da
Soledade, considerando a elevada letalidade e a extensão da epidemia
de 1579, perguntava-se “quantas seriaõ [as vítimas] por todo o ambito
do Reyno que ardia nas chamas da mesma doença?” (SOLEDADE, 1705,
t. 5, p. 126). Em 1586, informa-nos o mesmo cronista seráfico, “ardia a
Cidade do Porto em pestiferos incendios de hum pavoroso contagio”
(SOLEDADE, 1705, t. 5, p. 223). E o padre Balthazar Telles, narrando a
ação caritativa dos frades jesuítas durante a epidemia de 1569, acentua
o seu destemor no trato com os doentes em “meyo das mais vorazes
labaredas deste incendio abrazador” (TELLEZ, 1647, fol.195).

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Mário Jorge da Motta Bastos


Jean Delumeau, abordando as “imagens do pesadelo”, reflete
sobre a comparação frequente entre peste e fogo, o incêndio comu-
memte sinalizado do céu pelo rastro de fogo de um cometa. Supõe-no
“reforçado pela frequente relação entre verão e epidemia e pelo hábito
de acender nas encruzilhadas fogos purificadores, espécies de contre-
feux.” (DELUMEAU, 1989, p. 112). Quanto ao “hábito” das fogueiras,
consistia em determinação médica presente em todos os regimentos.
No que tange à associação entre peste e fogo, haveria que ressaltar
ainda que este último constituiu-se em “arma” divina privilegiada no
Antigo Testamento, expressão de Sua fúria e vingança, encerrando in-
clusive, e voltaremos ao tema, um caráter purificador, regenerador.
No Deuteronômio, Deus admoestou Seu povo ameaçando em-
pregar contra ele todas as suas setas, embriagadas de sangue, en-
quanto Sua espada era afiada como o raio. No livro dos Salmos, Davi
agradeceu ao Senhor por ter desbaratado os seus inimigos, enviando
sobre eles as Suas setas, e apelou à Sua misericórdia quando essas se
lhe cravaram. No Levítico, dentre as ameaças aos transgressores da
Lei, pesava a ação da espada vingadora da aliança divina. Segundo o
livro da Sabedoria, a ira de Deus faria embravecer-se contra os ímpios
a água do mar, “e os rios transbordarão com fúria.” No Eclesiástico, a
espada, “que pune o ímpio até o extermínio”, estava pronta a executar
as ordens divinas, constando da lista dos artifícios criados para o
castigo. Encabeçando tal rol, o fogo.6
De fato, ainda no livro do Gênesis, consta que de Sodoma e Go-
morra elevaram-se “cinzas inflamadas, como o fumo de uma fornalha”,
logo após a chuva de “enxofre e fogo do céu” vinda da parte do Senhor.
No Levítico, Nadab e Abiú, filhos de Arão, foram também eles devora-
dos por um fogo vindo do Senhor. Em Números, o Senhor irado pelo
murmúrio do povo devorou uma sua parcela com o Seu fogo. Samuel,
em seu segundo livro, tece uma aterrorizante imagem do Deus irado:
“O fumo dos seus narizes elevou-se ao alto, um fogo devorador saía
da sua boca; por ele foram acesos carvões. [...] Pelo esplendor da sua
presença acenderam-se carvões de fogo.” Segundo o salmo de Davi,
“como se derrete a cera diante do fogo, assim pereçam os pecadores
diante de Deus.” Concluamos as referências, com um Deuteronômio
taxativo - “[...] o Senhor teu Deus é um fogo devorador [...]”.7

2.4 O castigo aflige a comunidade

Punição divina, a peste abate a comunidade. O seu poder deses-


truturador, narrado em verso e prosa por contemporâneos assombra-
dos, ganha um colorido especial nas fontes religiosas portuguesas.

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

O tempo da doença é, ao seu modo, no discurso religioso, um tempo


em suspensão: Deus entra em cena no curso da história deflagrando
a epidemia, como que para anunciar a Sua retirada, impondo à socie-
dade experimentar – procedimento “didático”, sem dúvida, em última
instância! – as misérias e incertezas de uma existência livre, errante,
porque alheia aos mais altos desígnios do Criador. O tempo do castigo
é o da supressão do pacto, da vida sem Lei, alheia a regras, a valores, a
laços, quando o amor fraternal humano, centelha divina, como aquele
que o inspirou, se desvanece. Talvez resida aqui o essencial do castigo:
mais do que Sua presença, a do Deus irado, que é contingente, a doença
traduz a temporária ausência divina, a da sua verdadeira face, do Pai
Clemente. Ouçamos a súplica contida no intróito da missa particular
instituída por Clemente VI, por ocasião da Grande Peste:

Lembra-te, Senhor, da tua aliança e diz ao anjo exterminador:


que de agora em diante a tua mão se detenha e cesse de fustigar
a terra e de levar a morte a todos os seres vivos. Escuta-nos, ó
tu que diriges Israel, ó tu que conduzes José como uma ovelha!
Glória ao Pai. Como era dantes. Lembra-te Senhor. (WOLFF,
1988, p. 38-39)

À comunidade, abandonada, o caos impunha-se como ausência


de direção, de sentido. Contra o risco iminente de dissolução insurge-
se a prédica cristã, que opera, dessa forma, em situações de limite.
O discurso cristão enfoca a incidência do castigo assolando
a comunidade em níveis variados, concorrendo todos a explicitar
a tendência de desestruturação total imposta pelo flagelo, salvo a
excepcionalidade da ação das ordens religiosas, exemplo de conduta
em meio a tamanha miséria. Frei Francisco de Santiago estabelece
o quadro geral de desestruturação. A peste, calamidade horrível,
consome e destrói, tudo reduz à confusão, desordem e ruína. Ficam
“os Magistrados attonitos, os póvos assombrados, o governo poli-
tico sem fórma, a justiça sem obediencia, as artes sem exercicio,
as familias sem concerto, as ruas sem concurso [...]” (SANT-IAGO,
1762, fol. 317).
A fuga e o abandono impõem-se como ingredientes básicos da
narrativa, afligindo em primeiro lugar o palco privilegiado das recor-
rentes epidemias: as cidades transformavam-se em desertos, lugar da
dor e da provação, sem dúvida, mas também da purificação.
O autor anônimo do Breue Summario da Peste descreve a cida-
de de Lisboa assolada em 1569 como um navio fantasma, barco que
povoou a imaginação das populações costeiras, divulgado em contos

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e na Legenda Áurea (DELUMEAU, 1989, p. 49). Desapareceram do seu
interior os sinais materiais de riqueza que a caracterizavam – soldados,
estrangeiros que a frequentavam, os nobres, os navios mercantes que
a seu porto afluíam de diversas regiões, o burburinho cotidiano do
seu avultado comércio. Resta-lhe, da ruptura imposta, o abandono,
suas ruas infestadas de famintas baratas e de pobres desampara-
dos, suas portas franqueadas e sujeitas à invasão de inimigos, “tudo
tam triste [...] que era pazmo E magoa” (BREUE SUMMARIO…, 1569,
fol. LIV). Frei Luis de Sousa, em função do mesmo surto, expõe a
cidade de Braga, contaminada, tomada por “escandalos, desempa-
ros, desmayos e desconsolações”. Declarado o mal, pôs-se em fuga a
maior parte dos moradores, “e os que ficaraõ tudo foy gente pobre,
e alguns muyto poucos do gouerno”, que seguiram aliás o exemplo
dado pelo santo arcebispo, D. frei Bertolameu dos Martyres (SOUSA,
1767, p. 520). E o padre Balthazar Tellez conclui o quadro, remetendo-
nos ainda a sua fonte de referência. Por ocasião da Peste Grande, a
mesma de 1569,

nam havia quizesse entrar na Cidade [de Lisboa], pera acudir


aos vivos, E pera ajudar aos que morriam, cuydando cada hum,
que assegurava a vida, com fugir do que estava jà doente; as
ruas estavam cheyas de erva crescida, mais pareciam campos
desertos, que estradas seguidas. (TELLEZ, 1647, fol.193)

Como o profeta Jeremias, o autor lamenta uma Lisboa que, feita


nova Jerusalém, encontrava-se humilhada e desolada.
O abandono da cidade infestada não é mais do que a manifes-
tação, ao nível das relações do homem com o espaço que habita, da
tendência da ruptura dos vínculos que afeta a sociedade em níveis
variados. Na sua base, rompem-se os laços familiares e sociais,
suprimindo-se o que frei Francisco de Santiago designou por leis do
amor e da natureza:

são improvisamente apartados os filhos dos pais, as mulheres


dos maridos, os irmãos, e os amigos huns de outros, apartando-
se vivos (ausencia lastimosa) para não se verem mais nesta vida.
Os homens perdendo o valor natural, e não sabendo dar-se a
conselho, andão como cegos, e assombrados [...]. (SANT-IAGO,
1762, fols. 319-320)

Tempo do acúmulo, das misérias humanas exacerbadas, o cas-


tigo impõe a inquietante convivência com a certeza da brevidade da

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

vida, e da fugacidade dos bens terrenos, fazendo ecoar, por todos os


lados, segundo o autor do Breue Summario da Peste, o velho adágio de
Jó: “O homem nascido da mulher, vive pouco tempo, e é cheio de mui-
tas misérias” (BREUE SUMMARIO, 1569, fol.LXIV). Presa da angústia,
gemidos, choros e clamores funestos soam como canto triste e recor-
rente das populações afligidas, ressaltando o primário, vertiginoso,
profundo, e perigoso sentimento que o castigo produz – o medo.
Que as sociedades medievais e modernas europeias tenham sido
frequentemente varridas por vagas de medo e angústia, vinculadas
aos surtos epidêmicos, fomes e guerras, parece ponto definitivamente
assente (FEBVRE, 1947; MANDROU, 1961). Ter-se-ia o medo instalado
como traço psicológico coletivo? Nas fontes religiosas, sua presença
é marcante. Ele quase domina inteiramente a cena, contrapondo-se-
lhe apenas, e dessa forma realçando, o desprendimento heróico que
caracteriza a ação clerical. Estes se destacam, antes do mais, pela
ausência do temor, pela autoentrega absoluta, pela ânsia até com que
buscam o encontro com a sua principal motivação – a morte – que
creem e apresentam como redentora, santificadora. Para o comum dos
mortais, o medo origina-se do convívio inquietante e da certeza da
proximidade de um encontro que se pretende adiar. Durante a peste, a
morte espreita, sorrateira e cruel. Zomba, em primeiro lugar, do mito
apaziguador da morte ordenada, fim de uma longa trajetória de vida:
morrem os filhos antes dos pais, finam-se os jovens, preservam-se os
velhos. No Breue Summario da Peste de 1569, em meio a tanta tristeza
o maior “espanto” consistia em “uer mancebos [e] donzelas na frol da
idade contraminados da morte largando as uidas em breues momentos
[...]” (BREUE SUMMARIO..., 1569, fol. LIX).
Ela invade a vida, multiplica-se, faz-se plena, presente. Frei Fran-
cisco de Santiago registra que “as ruas, as praças, e as Igrejas alastra-
das de corpos mortos formão aos olhos o mais lastimoso espectaculo
[...]”. Segundo o cronista jesuíta, durante a peste de 1569, “a gente que
ficou na Cidade andava como assombrada, E com a morte diante dos
olhos, [posto] que mais parecia Lisboa àdro de corpos mortos, que
cidade de homens vivos [...]” (SANT-IAGO, 1762, fol. 318). Na mesma
ocasião, reforça o Breue Summario da Peste, ficavam “os mortos antre
os uiuos sem auer quem os diuidise [...]”. A morte faz-se também súbita,
fria, escarnecendo de toda a ritualização voltada a amortecer o cho-
que. Segundo o frade dominicano, durante a Peste Grande em Lisboa
afluíam diariamente aos diversos cemitérios instituídos dezenas de
corpos, que eram ali deixados até serem enterrados, “de dez em dez.
E de uinte em uinte [...]”. Outros, falecendo em completo desamparo,
só eram descobertos quando o odor fétido exalava de seus aposentos.

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Mário Jorge da Motta Bastos


“Portas quebradas os achauam ia roidos dos ratos E doninhas, E tais
de podres que as mesmas camaras lhe ficauão por sepultura [...]”
(BREUE SUMMARIO…, 1569, fol. LXIII).
Mas, por que o medo? Natural, certeza e desespero intrínsecos
à espécie humana? No discurso cristão, também se expressa o castigo
divino, um requinte da ação punitiva de Deus. Pior do que a morte
imposta aos homens é o medo desta que lhes foi impingido, herança
maldita, segundo o padre Balthazar Tellez, de Caim. Para castigá-lo
pelo assassínio, o Senhor, “em lugar da morte lhe meteo o medo da
morte, fazendoo lidar sempre com assombros, E tremores no corpo,
com temores, E sobresaltos na alma.” (TELLEZ, 1647, fol. 193). Ao medo
generalizado que se difundiu entre a população lisboeta no início da
epidemia de 1569, sobrecarregado pela divulgação de um “boato” de
que a cidade seria assolada por um dilúvio, o cronista jesuíta imputa o
juízo de Deus, “que quiz meter nos coraçoens dos homens hum medo
mayor do que o do dia do Iuizo” (TELLEZ, 1647, fol. 194).
Ainda que de origem divina, o medo constitui-se, no entanto,
no “perigo que espreita constantemente o sentimento religioso” (DE-
LUMEAU, 1989, p. 20). Invadida por ele, feito presa, a comunidade
corre o risco de desagregar-se. Ele fundamenta a ruptura, introduz o
desespero, ou pior, a desesperança. Paralisa, congela, ou incita explo-
sões de violência e histeria coletiva, comuns no “tempo da epidemia”,
tanto quanto ao relaxamento dos costumes. Em meio à epidemia de
1506, a “plebe enfurecida” transformou a cidade de Lisboa em palco
de violências e atrocidades, levando à fogueira cristãos-novos respon-
sabilizados pelo flagelo (OLIVEIRA, 1887, t. 1, p. 395-401). Sacrifícios
humanos para aplacar a fúria divina? Exacerbação da prédica cristã,
calcada fundo nas massas, e aí incontida, explosiva, perigosamente
pronta a extrapolar os limites que a ortodoxia intentava impor-lhe?
Álvaro de Brito criticou, numa trova publicada em Évora em meados
do século XVI, a conduta da comunidade assolada:

Esta morte nos guerrea,


tantos años, tam sobeja
em morrendo;
O pecar nam se rreçea,
nem a vyda nam s’enteja
mal fazendo.

Nam m’espanto ja dos moços,


mas dos velhos, que rreuoluem
sa velhyçe

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

em valdyos aluoroços
com byoucos, nam s’asombrem
da sandyçe. (RESENDE, 1752, p. 120)

Certeza e desespero da morte introduzindo o “carpe diem”?


Tensão da proximidade entre a exortação piedosa a que se refletisse
sobre o momento, a que se o preparasse, e a exortação profana a que
se aproveitasse o melhor possível a vida? (HUIZINGA, [19--], p. 148).
Desapego, autoentrega, ou paixão exacerbada? Esse o campo de forças
no qual a prédica cristã se instala. Impunha-se-lhe canalizar a diversi-
dade de sentimentos e reações evocadas pela contumácia do flagelo,
“polir” o medo, instinto básico, matéria bruta, retendo-o e orientando-o
para um fim “positivo”: ao povo órfão, provado, o restabelecimento
do pacto e a saúde eterna.

2.5 Origem e sentido do castigo: pecado, culpa e redenção

Se as epidemias expressam a intervenção punitiva de Deus, a sua


ocorrência constitui apenas um estágio de um mais amplo processo. O
próprio caráter da Sua ação, a do Justo Juiz, pressupõe considerar-se a
fixação e a divulgação da lei, a sua transgressão e o julgamento como
procedimentos prévios à penalização imposta a uma humanidade
como que sentada ao banco dos réus. Deus não pode ser injusto e
castigar o inocente. Sua punição é consequência, que antes do mais
acusa a ocorrência do delito: o pecado, definido por são Boaventura,
no século XIII, como “aversio Dei”, afastamento de Deus.8 E Ele o auto-
riza justamente porque preserva o poder de punir. O golpe se impõe
como um alerta, e o “fogo da peste” assinala, na estrada tortuosa da
vida, o caminho seguro para a boa travessia.
No entanto, haveria um crime específico a imputar aos homens,
passível de ser dado ao seu conhecimento, de esclarecer-lhes na
origem a falta, introjetando-lhes a culpa? O discurso cristão oscilou
entre uma ânsia demarcatória precisa e a contrastante perspectiva
da imperscrutável razão divina. Para o padre Balthazar Tellez, consi-
derando a recorrência do castigo,

as causas que Deos em porticular (sic) teve, pera multiplicar


tam horrendos açoutes neste nosso affligido Reyno de Portu-
gal, sabemolas chorar, mas nam as podemos adivinhar, que
os segredos divinos nam sam como os dos homens, que logo
se descobrem por mais que se encommendem. (TELLEZ, 1647,
fol.198)

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Mário Jorge da Motta Bastos


Já o autor do Breue Summario da Peste, ainda que consideran-
do-os “ociosos iuizos”, não se furtou a arrolar os crimes cotidianos
apontados, em 1569, como responsáveis pelo curso da justiça divina.
Dentre eles, destacam-se a luxúria, o adultério, o luxo desmedido, a
usura, o abandono das igrejas, que na extensão traduz o abandono da
própria divindade (BREUE SUMMARIO…, 1569, fols. LXIX-LXXII).
Como a lepra, segundo a tradição judaica transmitida ao cris-
tianismo, externava e demarcava fisicamente o pecado individual
que a originava, a peste era sobretudo a marca do pecado coletivo:
a impureza da sociedade. Segundo o frade domínico, a peste de
1569 originou-se de pecados seus e alheios (BREUE SUMMARIO…,
1569, fol. LXII). A ação divina abateu a comunidade como a “filhos
de Josue”, fazendo de cada lisboeta um Acan pecador responsável
pelo castigo – Lisboa/Israel pecou e violou o pacto (Jos.7) (BREUE
SUMMARIO..., 1569, fol. LVII). E o pecado que origina a doença
explica ainda a sua frequência, extensão e duração. Frei Fernando da
Soledade, considerando a causa da contaminação geral e duradoura
do Reino em 1487, afirma a intenção divina de que

a perseverança do estrago fizesse mais perduravel a memoria


do castigo, com a qual chama Deos muytas veses aos homens,
que naõ querem acodir aos clamores das suas inspirações pela
estrada dos beneficios. (SOLEDADE, 1705, t. 3, p. 415)

Para frei Luis de Sousa, quando a peste de 1642 atingiu até o


Algarve, “mostrou o Senhor [que era] verdadeira pena de peccados,
[...] porque não ficasse nenhuma parte destes Reynos livre da grande
affliçaõ da peste” (SOUSA, 1767, p.414). Frei João da Povoa creditou
aos “peccadores [que] naõ queriaõ fazer [as pazes] com Deos” a
longa duração da endemia de peste que atingiu Lisboa entre 1479 e
1497, “porque se huns se emendavaõ em parte, muytos se relaxavaõ,
accumulando culpas com grande offensa, E indignaçaõ do mesmo
Senhor” (SOLEDADE, 1705, t. 3, p. 342).
No essencial, portanto, a epidemia é uma reação divina ao
pecado que macula a comunidade dos fiéis, ele próprio definido no
Antigo Testamento como uma contaminação que exige a purificação.
Assim, se o bubão pestífero é o sinal do mal, que conspurca a pele,
dilacera, externaliza-se – com são Gregório Magno as pústulas de Jó
transformaram-se em tumores pestilentos9 – a doença/pecado introjeta,
em primeiro lugar, sentimentos e condutas determinadas: o medo, a
angústia, o sentimento de culpa e o remorso. A peste constitui-se, se-
gundo o referencial cristão, num agente fundamental à culpabilização

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

das massas quando, ao final da Idade Média, o pecado provocou mais


medo do que nunca (LE GOFF, 1987, p. 279). Considerada a origem da
doença, reduz-se a cura à ação deliberada da vontade divina, à inter-
venção da medicina de Deus, premissa que se reafirma no discurso
religioso pela relação que este estabelece com a medicina.
A perspectiva de base fora fixada por santo Isidoro de Sevilha.
Cristianizando-a, se-lhe reconhece, autoriza e legitima como interven-
ção positiva, derivada de Deus, campo também sagrado, de onde o
destaque para a ação caritativa dos religiosos que ministravam aos
necessitados os remédios do corpo. Segundo o autor das Etimologias,
“não há que se rechaçar os remédios medicinais, já que sabemos que
Isaías deu uma medicina a Ezequias, que se encontrava enfermo, e que
o apóstolo Paulo disse a Timóteo que um pouco de vinho é saudável”
(SEVILLA, 1982, p. 499).
O Eclesiástico, estabelecendo a origem divina da medicina,
determina que se honre o médico, posto que é necessário e criação
de Deus. Investida pelo Pai, submetida portanto aos seus desígnios, o
poder curativo da medicina a transcende, não lhe pertence em última
instância. Seu poder interventor demanda do juízo de Deus, verdadeira
fonte da saúde e da doença.10
Configurada como castigo, fundada na resposta divina ao afasta-
mento humano, à ruptura dos laços, a cura pressupunha a purificação,
o apagamento do pecado (e da culpa) – marca das curas milagrosas do
Cristo, relatadas no Evangelho de Marcos – a redenção da coletividade
no reencontro com o Criador. Exigia ritos, “consumados através de
um cerimonial puramente exterior (sacrifícios) ou parcialmente inte-
riorizado (confissão, penitência).”11 Arrependam-se, penitenciem-se,
para aplacar a fúria do Deus irado, essa a mensagem básica da prédica
cristã favorecida pelo “tempo da doença”!
Em primeiro lugar, fugir é não confiar na justiça de Deus, vã
conduta, posto que do onipotente não se escapa.12 Segundo o padre
Balthazar Tellez, muitos dos que fugiram da cidade de Lisboa ao início
da epidemia de 1569 por temor da morte, “obrando como gente sem
entedimento”, morreram (TELLEZ, 1647, fol. 195). Quanto aos religio-
sos indignos, afirma o autor do Breue Summario da Peste servindo-se
da parábola evangélica, que “pasaram de largo pelas feridas não de
Ladroins mas de deos”, recusando-se à assistência dos doentes, o
juízo d’Aquele os condenou, em massa, à morte (BREUE SUMMARIO…,
1569, fol. LVII). Se a punição não se evita, não se extingue com a fuga,
que ao contrário a reforça – atitude pecaminosa da desconfiança em
Deus – era preciso encará-la, vivenciá-la como experiência, dolorosa
sem dúvida, mas positiva em última análise. A docilidade no contato

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Mário Jorge da Motta Bastos


com a doença, enfim obra divina, a aceitação e a autoentrega davam
o tom à conduta proposta à comunidade, instituindo a perspectiva do
carpe diem cristão, o bom proceder no tempo da enfermidade fixado
pelo Eclesiástico (18,21).13
Na primeira parte da História de S. Domingos, frei Luis de Sousa
refere-se à ação dos membros da ordem durante a epidemia que atin-
giu Lisboa no reinado de D. João I. Aproveitando-se das procissões
diárias que se encaminhavam à Nossa Senhora da Escada na Ermida,
próxima à Igreja do Mosteiro, e do ajuntamento do povo daí decorrente,
pregava-lhe diariamente frei Andre Dias, empregando “todo seu estudo
em buscar meyos pera levantar as almas desmayadas, e caidas com o
peso da tribulaçaõ.” Do discurso do pregador destaca-se, como antí-
doto seguro contra o desespero – “triaga contra o veneno dos males
que padeciaõ” – o recurso às “armas” cristãs da paciência, do amor a
Deus e da esperança. Conservar-se, qual Jó, firme Nele, era a garantia
de angariar merecimento dos suplícios inerentes ao castigo. O mais
eficiente caminho para aplacar a fúria divina, ensina o jesuíta, consistia
no fortalecimento da devoção ao Cristo, Ele próprio o Cordeiro de Deus
oferecido em sacrifício (e como “espelho” a todos os sofredores), para
salvar o mundo enfermo do pecado. O Seu santo nome todo homem
deveria trazer, mais que interiorizado na própria alma, cantado em alto
e bom som, gravado sobre o peito e pintado sobre a porta das casas,
qual o “Tau” que no Livro do Êxodo livrou os filhos de Israel do golpe
do anjo exterminador. Ainda que se prolongasse o açoite, verdadeira
prova de resistência, louvavam o Senhor pacientes os que morriam,
rendiam-Lhe graças piedosas os sobreviventes, como se a intensidade
da pena visasse deliberada e tão somente o fortalecimento progressivo
da fé. Provada por Deus, reencaminhada, não tarda à comunidade a
Sua face misericordiosa, operando o milagre da água benta que sus-
pendeu a punição. “Pareceo entaõ que seria justo daremse graças ao
Senhor polla saude, e milagre della”.14
Da narrativa das fontes religiosas depreende-se o predomínio
de um sentimento difuso e generalizado de que o recurso à misericór-
dia divina constituía-se no procedimento fundamental à superação da
doença. Expressão do poder de divulgação popular e de persuasão
do discurso cristão? As pregações de frei Andre Dias, acima referi-
das, favoreceram-se da frequência das procissões imediatamente
organizadas pelos próprios fiéis lisboetas, logo ao início da epidemia.
Segundo o autor do Breue Summario da Peste, deflagrada a doença
na cidade de Lisboa em 1569, o povo aflito rapidamente ensejou
várias procissões, como a de São Domingos, “confesando nela de
si cada qual ser Jonas para que botado no mar da morte çesase a

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

tormenta.”15 No entanto, à louvável manifestação da piedade popular


acudia, também breve e determinadamente, a intervenção decisiva
dos profissionais do sagrado. Autoproclamada obrigação, função
inerente ao ordo numa conjuntura propícia à sua afirmação, a ação
dos religiosos converge para a garantia da ortodoxia – o correto e
proveitoso recurso à divindade – para o fornecimento de exemplos
santos à comunidade e, por fim, para a explicitação do sentido pro-
fundo que a punição encerrava.
Originada do pecado coletivo, as iniciativas individuais de ex-
piação, ainda que necessárias, não bastavam para aplacar a divindade.
Recaindo sobre a comunidade, exigia-se dela a confissão das faltas
e a imploração coletiva do perdão. Através das procissões, cortejos
ordenados e hierarquizados, o clero orientava, retinha e canalizava
as manifestações expiatórias, afirmando o direito exclusivo da Igreja
hierárquica de impor ao pecador a “satisfação” de seu erro. Suprimia-
se assim o perigo da purgação voluntária que, sobretudo no contexto
da Peste Negra de 1348, configurada na ação dos “flagelantes”, pôs
em xeque a ortodoxia e o controle da esfera do recurso ao sagrado.16
Se continuavam a comportar elementos de flagelação física, como
na procissão dos “Nus”, realizada pela primeira vez em Coimbra em
função da epidemia de 1423,17 faziam-no sob os auspícios e a direção
de membros da Igreja.
No anseio da cura, a procissão era medicamento indispensá-
vel, segundo as fontes religiosas portuguesas. Apertava a devoção,
quando a cidade em uníssono participava da liturgia, orava, suplicava
e arrependia-se. Em Lisboa, apenas no contexto da peste de 1569,
realizaram-se nove distintas procissões, algumas convocadas por
autoridades públicas, mas todas organizadas pelas ordens religio-
sas. Partiam os cortejos das igrejas, atravessando as ruas da cidade
iluminadas com círios e candeias, em geral contando com a presença
de imagens e relíquias sacras, concluindo-se o périplo com pregação
na igreja de origem (ALMEIDA, 1953, p. 21-23). Durante a peste que
assolou a Vila de Guimarães em 1507, foram instituídos quatro dias
de ladainhas a Nossa Senhora, que ainda se realizavam na segunda
metade do século XIX (COSTA, 1868, p. 63). Frei João Alvares, abade
do mosteiro de Paço de Sousa fixou, em função da epidemia de 1464,
“no dia de sam sebastiam a procissom com ha imagem sua: e cada
somana, segunda feira, missa cantada no seu altar, e prezes polla
pestilentia, e todos com candeas nas maaons.” (MEIRELLES, 1866,
p. 48). Ressalta-se o aspecto quantitativo destas súplicas coletivas,
espécie de prece “non-stop” (DELUMEAU, 1989, p. 148) que forçasse
a atenção e a compaixão do Juiz irado.

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Mário Jorge da Motta Bastos


No mesmo intuito, era possível recorrer ainda a interlocutores
privilegiados do divino, contando-se às dezenas o número dos santos
protetores contra a peste.18 Desde os primórdios do cristianismo, os
santos invocados contra a epidemia eram-no também contra qualquer
espécie de morte súbita, destacando-se o temor particular da morte
“despreparada”, na ausência dos sacramentos, que punha em risco
o destino da alma. Taumaturgos poderosos, a ascendência da legião
coube a são Miguel Arcanjo, evocado por Gregório Magno durante a
epidemia de 590, eclipsado apenas pela ascensão vertiginosa do culto
a são Sebastião, em fins do século VII. Jean Delumeau recorre a uma
das leis que domina o universo do magismo, a lei do contraste, para
explicar o favor particular deste santo. “Porque são Sebastião morrera
crivado de flechas, as pessoas convenceram-se de que ele afastava de
seus protegidos as da peste” (DELUMEAU, 1989, p. 116). Referência
criativa, se não desconsiderasse a hagiografia do santo. Condenado à
morte por Diocleciano, o santo sobreviveu, trespassado pelas flechas
dos arqueiros imperiais, sendo por fim executado por espancamento
e decapitação em 287 d.C. A imunidade às flechas, esse o verdadeiro
elemento do seu poder. Jacques de Voragine registrou, na Legenda
Aurea, a primeira de uma longa série de intervenções miraculosas do
santo, quando um altar a ele dedicado livrou a cidade de Pávia da peste
que a atingiu em 680. A Peste Negra fortaleceu ainda mais o seu culto,
ainda que a partir da segunda metade do século XIV viesse a sofrer a
concorrência, sem ser sobrepujado, da ascensão de são Roque.
Nascido em Montpellier, cerca de 1350, Roque partiu aos 20
anos em peregrinação ao túmulo dos santos apóstolos, dedicando-se
ao tratamento de pestosos nos diversos centros que encontrou asso-
lados por epidemias, dentre eles a cidade de Roma. Inúmeras foram
as curas milagrosas que alcançou, abençoando com o sinal da cruz
os doentes. Em 1371, trabalhando em Piacenza junto a epidemiados,
foi avisado certa noite por um anjo que seria tocado pela doença,
sentindo logo uma dor lancinante que acusava um bubão inguinal.
Abandonou a cidade, refugiando-se num bosque para morrer entre-
gue a Deus, quando foi salvo por um anjo e pela ajuda de um cão que
o alimentou com o pão furtado diariamente ao dono. Recuperado,
regressou por ordem divina à cidade natal, onde foi tido como espião
e encarcerado por cinco anos consecutivos. Encontrado morto pelo
carcereiro, seu corpo jazia envolto numa intensa luminosidade, e a
seu lado um escrito, quiçá deixado por um anjo, indicava que aqueles
que rogassem a são Roque logo estariam livres da peste. A despeito
de sua canonização tardia (apenas sob Urbano VIII, no século XVII)
seu culto beneficiou-se de uma série de orações prescritas pelo

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O discurso cristão: doença-pecado coletivo

Concílio de Ferrara, reunido sob ameaça de peste em 1439. “Gregório


XIII inseriu seu nome no martirológico na segunda metade do século
XVI” (ROQUE, 1979, p. 262).
Foi sobretudo pelo exemplo desses mártires, até pelo que en-
cerram da imitação do Cristo, que os membros das ordens religiosas
portuguesas pautaram e circunscreveram a conduta santa no “tem-
po da epidemia”. Frei Luis de Sousa destaca o que se constitui num
verdadeiro topos nas fontes religiosas: o valor supremo da ocupação
dos frades no tratamento dos epidemiados, “ponto taõ subido, que a
Igreja Sagrada [...] trata com honra de Martyres a todos aquelles, que
em tal empresa acabaraõ a carreira mortal da vida” (SOUSA, 1767,
p. 406). Todo o quadro de desestruturação que abatia as cidades na
deflagração de um surto epidêmico – o castigo divino grassando e
desesperando – é minuciosamente traçado na intenção do reforço da
conduta heroica dos religiosos.
Enquanto o vulgo fugia, aqueles ansiavam, lançavam-se, bus-
cavam a morte santificadora, entregando-se em holocausto a Deus,19
determinados no fervor da caridade e autoentrega. Segundo o Breue
Summario da Peste, os religiosos, durante a epidemia de 1569, como
Tobias, o filho, estimulados por Rafael20 (a medicina ou cura de Deus,
segundo Tob. 3, 25), rompiam “as furiosas ondas (que atodos prometia
morte, mas como os tais o auiam por uida) por consolarem necesita-
dos remedeando suas miserias” (BREUE SUMMARIO…, 1569, fol. LV).
Abordando a mesma epidemia, o padre Balthazar Tellez destaca que os
irmãos mortos nesta gloriosa empresa entraram “com grande animo
pelo meyo das mais vorazes labaredas deste incendio abrazador, pois
seus nomes estam sem duvida escritos nos livros da vida eterna.”21
Se o receio do contágio promovia o desamparo de pais e filhos,
os frades franciscanos de frei Manoel da Esperança “nessas calamida-
des [...] pera todos erão filhos, E pera todos erão paes, curando com
medicinas os corpos, com sacramentos as almas” (ESPERANÇA, 1666,
p. 171). O preceito norteador fora fixado por frei Francisco de Santiago.
Se servir ao próximo é ato meritório, quanto maior o trabalho, des-
velo e perigo em função daquele que ama e serve, tanto maior será
o seu merecimento. Resulta daí que o ponto mais alto da caridade e
do amor reside em expor a vida em benefício do próximo, segundo o
exemplo exacerbado do mártir maior, o próprio Cristo (SANT-IAGO,
1762, fol. 321).
Mas da conduta dos religiosos, martirizados nas epidemias,
o discurso cristão, mais do que o espelho ofertado ao povo, retira e
expressa o sentido profundo do castigo, a sua positividade intrínseca,
o fundamento mesmo do martírio: purgativo, ele redime, santifica,

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Mário Jorge da Motta Bastos


aprimora a espécie. Ainda uma vez, as referências, várias, ecoam do
Antigo Testamento, ressaltando que à face severa da divindade corres-
ponde a misericordiosa, o que faz com que a punição não seja, nunca,
definitiva.22 Para além do Livro de Jó, todo ele um primor no que tange
à provação/resgate através da doença, segundo Judite os flagelos do
Senhor, “com que, como seus servos, somos castigados, nos vieram para
nossa emenda e não para nossa perdição”, destacando que os castigos
de Deus nunca são vindicativos, mas visam sempre a conversão, tal
qual expressa o Livro dos Salmos. E o padre Balthazar Tellez, na esteira
do salmista, introduz a narrativa da epidemia de 1579 inserindo-a na
sequência da Peste Grande, considerando que através delas Deus visava
“acrizolar nossa paciência, e apurar nossas consciencias”.23
No seu sentido mais profundo, o “tempo da epidemia” se
converte e se traduz no tempo da ocorrência terrena do purgatório,
concepção embasada em santo Agostinho.24 Como destacamos ante-
riormente, nas fontes religiosas portuguesas as epidemias são sempre
expressas como fogo divino, à exceção do Breue Summario no qual a
peste é identificada com o dilúvio. Articulam-se, assim, atuando em
meio à doença divina, os dois ingredientes essenciais das penas do
purgatório – o fogo e a água – cuja função última é a da purificação
(LE GOFF, 1985, p. 85). Segundo Clemente de Alexandria e Orígenes,
os “inventores gregos do purgatório”, as passagens do Antigo Testa-
mento em que Deus se apresenta como fogo significam menos a Sua
ação colérica do que a de um Deus que purifica ardendo, devorando e
consumindo (LE GOFF, 1985, p. 70-71). No extremo, a peste constitui-se
numa manifestação da piedade divina, cura para a profunda e pertinaz
doença humana do pecado, posto que os castigos de Deus “saõ como
os cauterios, de que usaõ os homens, que se applicaõ mais efficazes
aonde as corrupções estaõ mais apparentes.” (SOLEDADE, 1705,
t. 3, p. 41). Os justos, purgados e educados, reencontram agraciados o
Criador, no paraíso, como o P. Pero Mascarenhas, cuja morte assistindo
aos doentes na peste de 1579 “lhe rendeo a coroa da gloria, e a vista
de Deos”,25 ou na comunidade terrena renovada pela reafirmação do
pacto salvador. Ao fim, e pelo fim, Ele retorna fortalecido, reencontra
a sociedade órfã ansiosa do Pai que, lição expressa, “castiga aquele a
quem ama, e acha nele a sua complacência”.

Notas
1
Veja-se, por exemplo, o artigo de Freitas (1957, p. 295-313), em que o autor aborda
as sucessivas condenações, por cânones eclesiásticos da Igreja portuguesa, de
práticas pagãs “sobreviventes” ao longo de 14 séculos, posto que identificadas e
condenadas como tais, no século VI, por são Martinho de Braga, no seu De Correc-
tione Rusticorum.

O poder nos tempos da peste.indb 69 19/8/2009 19:01:52


70
O discurso cristão: doença-pecado coletivo


2
Procissão solene de penitência realizada nos três dias que precedem imediata-
mente a Ascensão. Em 511, o Concílio de Orleães estendeu este costume a todo
o Reino Franco, introduzindo-se em Roma em 816, sob o pontificado de Leão III.
Constitui-se numa rogação, tendo por fim afastar os flagelos da justiça divina e
atrair as bençãos e a misericórdia de Deus. Conforme LEFEBVRE, 1960, p. 87. Pro-
cissões muito caras ao povo, eram seguidas por bom número de fiéis, ainda que,
com bastante frequência, o caráter delas se inspirasse mais no folclore do que na
piedade. Conforme Augé et al. (1991, p. 284-287).

3
Ou Ladainhas Maiores, instituídas posteriormente, aos 25 de abril, data em
que se celebrava a solenidade pagã das Robigalia (culto agrário). Até mesmo
o percurso da procissão cristã era sensivelmente idêntico ao da celebração
pagã, descrita por Ovídio (Fausti, IV, 901-936): ela passava pela via Flamínia,
saindo por esta porta, chegando até a ponte Mílvio onde, num bosque, eram
sacrificados um cão e uma ovelha à deusa Robigo. Na convocação de são Gre-
gório Magno, o cortejo reunía-se na igreja de são Lourenço in Lucina, saindo
pela mesma porta, estacionava em são Valentim, atravessava a ponte Mílvio de
onde se dirigia a são Pedro para a celebração da eucaristia. Com a difusão do
Sacramentário Gregoriano, as Ladainhas Maiores entraram primeiro na Gália,
e em seguida em outros países latinos, vindo a substituir a cerimônia pagã.
Conforme Lefebvre (1960, p. 88).

4
Segundo o Eclesiástico (39,36), as serpentes e os escorpiões constam da lista de
“coisas” criadas e usadas por Deus para o castigo em Soares (1989, p. 782).

5
Respectivamente Ex. 3,19; Ex. 9, 1-7;14-16; Ex. 15,26; 23, 25-26; 26,1-13; 26,14-33;
14,11-12;19-20; 7,11-12,15;28,15-22,58-62;29,22-25; 1Sam. 5,6-12; 2Sam. 24,15-17,25,
em Soares (1989, passim). Segundo Leão (1774, p. 169-170) e Pina (apud ALMEIDA,
1977, p. 41), as calamidades (fome, peste e guerra) que atingiram o reino entre
1188 e 1192 foram atribuídas ao pecado do matrimônio incestuoso de D. Teresa
com o seu primo D. Afonso de Leão.

6
Respectivamente 32,18-25;39-42; 17,15; 37,3; 26,14-33; 5,23; 39,35-37, em Soares
(1989, passim).

7
Respectivamente 19,24-25;27-28; 10,1-2; 11,1-3; 22,8-10;13-15; Sl. 67,3; 4,24 em Soa-
res (1989, passim).

8
Jó 8,3; Le Goff (1987, p. 266). O livro dos Salmos (77, 9.34) estabelece que a infide-
lidade do povo para com seu Deus significa sempre uma ruptura da Aliança, que
implica por sua vez sempre em castigo.

9
Lev. 16,30; Dt. 21,6; Biraben; Le Goff (1960, p. 1498).
10
38,1-2; segundo Jó, é o Senhor quem fere e sara (5,17-18,20,22), enquanto o Livro
da Sabedoria fixa que a cura não é devida a lenitivo algum, mas à palavra do
Senhor, que sara todas as coisas (16,12). As fontes religiosas portuguesas assi-
nalam, frequentemente, a ascendência dos remédios da alma e da cura divina.
O Breue summario valoriza a ação dos médicos durante a epidemia, destacando
inclusive o apoio divino às suas deliberações – acreditaram sucessivamente que
o calor do sol, as águas das chuvas e os ventos suprimiriam a doença, e Deus os
concedeu. Mas o faz, na verdade, para realçar a sua ineficácia, reservando ex-
clusivamente ao Juízo de Deus a decisão de pôr fim ao contágio (fols.LXV-LXVI).
Sousa (1767, p. 527) abordando o fim da epidemia de 1569 em Braga destaca que,
a despeito das medidas profiláticas adotadas por ordem do arcebispo, foram as
procissões, as orações, os jejuns e penitências “as mezinhas, e as diligencias que
serenaram o tempo, purificaram o ar, deram saude, e enfim lançaram de todo fora
o contágio.”
11
1,32-34;40,44;2,4-12; Le Goff (1987, p. 267).
12
II Mac. 8,12-13.Tobias afirma que não há quem possa subtrair-se à mão do Senhor
(Tob 13,1-2,5,11) em Soares (1989).
13
No mesmo Livro (2,4): “Paciência na tribulação. [...] Aceita tudo o que te acon-
tecer, e permanece em paz na tua dor, e no tempo da humilhação tem paciência;
porque no fogo se prova o ouro e a prata, e os homens amados, no cadinho da
humilhação.”

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71

Mário Jorge da Motta Bastos


14
12,21-27; Sousa (1767, p. 332-333).
15
BREUE SUMMARIO..., 1569, fol.LV. O autor expressa, apoiando-se no relato bíblico,
a culpabilização individual que estaria na base do pecado coletivo. Ao atingir a
comunidade, a culpa, genérica, individualiza-se, impondo a reflexão/expiação pes-
soal. Jonas, tentando fugir da face do Senhor, embarcou em um navio para Tarsis.
Porém Este enviou sobre o mar uma grande tempestade, pondo em risco a em-
barcação. O próprio Jonas, responsabilizando-se pelo evento/punição, aconselhou
aos tripulantes lançarem-no ao mar para aplacar a fúria divina (Jon 1).
16
Delaruelle (1987, p. 113) e Szèkely (1987, p. 181-182). Segundo Szèkely (1987,
p. 180). não há relação comprovada entre o movimento dos flagelantes e os mas-
sacres de judeus no contexto da Grande Peste. Clemente VI o proibiu, sob pena de
excomunhão, acusando-o de heresia.
17
Dela nos dá notícia, entre outros, ESPERANÇA, 1666, p. 298-300. Teve origem no
voto de um leigo, que rogou a são Francisco que o livrasse da peste. A interces-
são do santo obrou como o “Tau” do livro do Êxodo, já que o sangue franciscano
matizou as portas de sua casa, protegendo-a contra a ação do anjo extermina-
dor. Realizava-se ainda na altura do relato do frade franciscano (1656), segundo
o ritual seguinte: na manhã de 16 de janeiro (dia dos Santos Mártires), reúnem-se
todos na igreja do convento de são Francisco da Ponte. Confessam-se, comungam
e, terminada a missa, seguem com a cruz em mãos de um religioso, ladeado por
outros dois que levam ceroferários. Seguem-se os fiéis, seminus (vestindo apenas
calções), dispostos em duas fileiras, com um terço em uma das mãos e uma vela na
outra. Vão ainda em companhia de uma relíquia dos mártires. O cortejo atravessa,
no auge do inverno, a ponte do Mondego e as duas principais ruas da cidade, che-
gando ao mosteiro de Santa Cruz, onde há pregação.
18
Seguimos, para este assunto, Roque (1979, p. 239-268). A possibilidade da inter-
cessão junto a Deus para aplacá-Lo está fixada no Antigo Testamento. No livro dos
Números (14,11-20), o Senhor perdoa o povo, livrando-o da peste, em função das
súplicas de Moisés.
19
A referência à morte de religiosos nas epidemias como em holocausto é recorrente
nas fontes (neste sacrifício, fixado no Levítico [1,9], livro composto de leis que
visam à santificação individual e nacional, a vítima era inteiramente queimada à
divindade. Tinha lugar inclusive para aplacar o pecado coletivo do povo). O exem-
plo maior encontra-se em Soledade (1709,t. 4, p. 56-57, referindo-se à autoentrega
do padre Francisco de Faraó, morto na peste de 1580 como “bode expiatório” viti-
mado em holocausto: tratando dos doentes na ribeira de Peniche disse-lhes, certo
dia, com grande alegria que “nenhum de vòs ha de morrer de peste; eu sómente
hey de experimentar esse golpe, E cõ o meu falecimento cessara o mal, E logo
tereis saude perfeyta.” Logo teve efeito sua previsão.
20
Refere-se ao episódio bíblico (Tob 2-6) em que Deus prova Tobias cegando-o, do-
ença contra a qual seu filho busca um remédio, supostamente encontrado nas en-
tranhas de um peixe. A cura proveio de Deus, por intermédio do arcanjo Rafael.
21
Tellez (1647, fol.195). O segundo livro dos Macabeus (7,36) estabelece que a morte
em meio à punição/provação garante a vida eterna.
22
Veja-se, entre tantas passagens, Ex. 15,26; 23,25-26, Dt. 4,23-24;30-35; 5,9-10; 32,18-
25;39-42, Tob. 3,13; 13,1-2,5,11, Jdt. 8,22-27, 2Mac. 6,12-16, Jó 5,17-18;20,22;33,19,26,
Sl. 102,3, Prov. 3,11-12, etc. em Soares (1989, passim).
23
Jó 8, 26-27; Jud. 65, 10-12; Sl. 117,18; Tellez (1647, fol. 198).
24
Le Goff (1985, p. 85), santo Agostinho, o “pai” do purgatório, expressa a noção de
que as tribulações desta vida são uma forma de purgatório.
25
Prov. 3,11-12; Tellez (1647, fol. 200).

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Capítulo 3

Autoridade e interdições:
a medicina e a doença

A doença pertence não só à história superficial dos pro-


gressos científicos e tecnológicos como também à história
profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas so-
ciais, às instituições, às representações, às mentalidades.
(LE GOFF, 1991, p. 8)

O tempo da doença é, dissemos, o da proliferação de discur-


sos sobre ela. Ainda em meio ao pânico e ao terror promovidos pela
Grande Peste de 1348, vemos despontar um saber médico, erudito,
vinculado à tradição da medicina da Antiguidade, e veiculado nas
universidades. Pretendendo afirmar-se como um saber distinto das
“opiniões supersticiosas” que dominavam as mentes, requisita para
si a verdadeira compreensão da doença. Gui de Chauliac, considerado
o maior expoente da medicina de sua época, estando em Avignon por
ocasião da Peste Negra, afirmou:

Era para muitos duvidosa a causa desta grande mortandade.


Acreditou-se numas partes que os judeus tinham envenenado
o mundo e matavam-nos, noutras punham a culpa aos pobres
mutilados, e corriam-nos, e alguns atribuíam-na aos nobres, que
não se aventuravam a sair para os seus negócios [...]. Fique-se
porém o povo na sua, que a verdade foi haver duas causas desta
mortandade, uma universal agente, outra particular paciente.
(MEIRELLES, 1866, p. 27)

A divulgação deste saber, transcendendo o meio universitário


num processo de vulgarização, efetivou-se a partir da Peste Negra,
atribuindo-se a iniciativa à Faculdade de Medicina de Paris, que em ou-
tubro do fatídico ano lançou o seu Compendium de Epidemia (MOLLAT,
1989, p. 190). Ensejava-se um gênero literário que iria se impor no
Ocidente, tanto quanto se impôs a macabra presença da doença.
Inicialmente produzidos em latim, os manuais sobre a doença
conheceram larga divulgação na Europa, transcendendo o recorte cro-
nológico específico da Idade Média, deduzindo-se seu número elevado
da enorme quantidade de exemplares que sobreviveram ao tempo.

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74
Autoridade e interdições: a medicina e a doença

Várias vezes copiados e sujeitos, portanto, a interpretações errôneas,


desvios e interpolações, “não raro um exemplar tido por original em
muito se distanciara de sua fonte. Irreconhecíveis, guardavam no en-
tanto suas bases de referência galênica” (ROQUE, 1979, p. 230).
A partir do desenvolvimento da imprensa, e favorecendo-a, tais
escritos conheceram mais fácil e rápida difusão, principalmente, na-
queles centros populacionais europeus mais atingidos pela epidemia.
Muitas tipografias deram início às suas atividades com a impressão
desses manuais.

Por iniciativa própria ou por encomenda de autoridades vigilan-


tes da saúde pública, o negócio dos impressos contra a peste,
com custos mínimos de produção e venda assegurada, era
sempre rendoso. Por isso, tais impressos, produções pioneiras
de um grande número de oficinas, ocupam um lugar de primazia
na história da proto-imprensa européia. Assim, figuram entre
os incunábulos mais primitivos, aparecem como primeiras
produções de certas tipografias e ainda como os primeiros
textos médicos estampados em diversos países e cidades.
(ROQUE, 1979, p. 231)

Em Portugal, o primeiro texto médico dado à estampa foi o


Regimento proueytoso contra ha pestenença (REGIMENTO Proueito-
so contra..., 1962). Sua autoria coube a Johannes Jacobi, mestre em
medicina e cancelário da Universidade de Montpellier, onde residia
por ocasião da Grande Peste, e escrito em data incerta, no século
XIV, provavelmente no ano de 1357. Conhecendo grande difusão na
Europa medieval, em meados do século XV, uma sua versão atribuída
a Kaminto ou Canuto seria vertida para linguagem em Lisboa por Frei
Luis de Rás, mestre em teologia da Ordem de são Francisco, entre fins
de 1495 e princípios de 1496. Destaque-se que essa cidade sofria, por
essa altura, um ciclo endêmico de peste que a assolava desde 1480.
Também diretamente relacionada à deflagração de um surto
epidêmico viria à luz, em Portugal, a Recopilaçam das Cousas que
convem guardarse no modo de preservar à Cidade de Lixboa: E os sãos,
E curar os que esteuerem enfermos de Peste... (ALVARES; CORONEL,
1800), obra quatro vezes editada, apenas no século XVI, datando a
primeira edição de 1569, cuja autoria cabe a dois médicos provenien-
tes de Sevilha. Segundo informação dos próprios, Thomaz Alvares e
Garcia de Salzedo Coronel, foram ambos convocados por D. Sebastião
a Lisboa “para que con los medicos desta Ciudad comunicasemos los
remedios que este mal (peste) podia tener [...]” (ALVARES; CORONEL,

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75

Mário Jorge da Motta Bastos


1800, p. 2). Anunciara-se, em Lisboa, mais um dos frequentes ataques
da doença, tão ou mais terrível do que poderia ter sido a Peste Negra
de 1348.
Ainda em meados de janeiro de 1569 surgiram as primeiras
manifestações: “começarão [...] a sintirse géralmente erisipulas e
carbunculos com febres de mà calidade, que dando em huma casa
se pegavão e corrião por todos: logo se forão descobrindo forçãs de
mayor veneno, em pintas e inchaços, com mortes arrebatadas” (SOUSA
apud MEIRELLES, 1866, p. 43).
As autoridades e médicos concelhios, numa reação comum ao
início de um surto, procuraram negar a natureza do contágio. Informa-
nos o autor do Portugal Cuidadoso, e Lastimado (MEIRELLES, 1866,
p. 36), que a junta de médicos, convocada nos paços do castelo por
D. Sebastião para definir a origem da doença, cindiu-se em opiniões
contrárias, prevalecendo inicialmente a de que não se tratava de peste,
mas de uma moléstia causada pelos rigores do clima. Em fins de junho,
contudo, deslocava-se a corte para Cintra, em função do contágio que
dizimava a cidade. Outras localidades do reino foram também atingi-
das no curso desta epidemia, como Santarém, Évora e Braga.
Contra este pano de fundo, impõe-se a imagem do rei respon-
sável pela preservação da saúde do corpo social. Segundo os autores
da Recopilaçam, é do “pecho christianissimo” do rei que nasce o “zelo
[...] para el remedio deste mal de peste” (ALVARES; CORONEL, 1800,
p. 2). Imagem tal que persiste no tempo, uma vez que seria evocada
ainda ao início do século XIX. Alexandre Portugal, em seu manual
contra a peste, impresso em Lisboa por essa altura, afirma que se
iria furtar de tratar dos meios a serem empregados, no combate à do-
ença, pelas autoridades públicas, “pois que o estabelecê-lo pertence
a hum Soberano piedoso e illustrado” (PORTUGAL, 1801, p. IV). No
processo da afirmação do “rei físico”, como veremos a seguir, coube
à medicina um lugar de destaque.

3.1 A medicina constrói a doença

Dedicamo-nos, na sequência, à abordagem da concepção da


doença expressa pelo discurso médico nas duas únicas fontes de
que dispomos: o Regimento Proueytoso Contra ha Pestenença e a
Recopilaçam das Cousas que convém guardarse no modo de Preservar
à Cidade de Lixboa: E os sãos, E curar os que esteuerem enfermos de
Peste. Contextualizadas em sua produção, tais obras indicam-nos os
principais níveis de recorrência da medicina de época para a explica-
ção da doença, seja através das causas apontadas como responsáveis

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76
Autoridade e interdições: a medicina e a doença

pela deflagração de um surto epidêmico, seja através dos meios e


processos de preservação e cura indicados.
Segundo Jacques Le Goff,

A má alimentação e a mediocridade de uma medicina que não sa-


bia qual era o seu lugar, oscilando entre receitas caseiras e teorias
pedantes, originavam aflitivas misérias físicas e uma mortalidade
de país subdesenvolvido. (LE GOFF, 1983, v. 1, p. 291)

Se “concordamos” em grau, discordamos em gênero. Soa, tal


afirmação, como um julgamento de valor assentado no atual estágio
da medicina europeia, fruto do desenvolvimento científico. Antes, o
essencial reside em se avaliar os conhecimentos médicos da época,
bem como as atitudes sociais diante da doença, em grau elevado de-
pendente deles, com base nos níveis de compreensão e apreensão da
natureza disponíveis à medicina, ao final da Idade Média. As “receitas
caseiras” e as “teorias pedantes” enquadram-se e traduzem a raciona-
lidade médica do período, evidenciando sua natureza e limites.
Com o intuito de referendar uma interpretação de natureza
qualitativa, como temos privilegiado neste estudo, “percorremos” a
Recopilaçam..., manipulando o elemento quantitativo inerente ao discur-
so. O “tratamento quantitativo” permitiu-nos verificar uma incidência
significativa de formas em referência à doença, que se consubstanciam
seja pela sinonímia, seja por metáforas, seja por expressões de nature-
za diversa. Percebe-se a utilização recorrente de termos com valores
semânticos nitidamente negativos. Serve-se o autor da Recopilaçam...
de formas as mais variadas possíveis que convergem para a significa-
ção da doença, em especial infermidade, mal, daño, peçonha, veneno,
pestilença, contagio, fogo, sangue peçonhento etc.
A doença traduz-se, portanto, na ação de forças malignas,
constituindo-se numa entidade viva, agente, que contamina o ar, paira
sobre as cidades perseguindo a morte do indivíduo, presa básica em
seu projeto maior de destruição: provocar a desestruturação do corpo
social.
A superação do mal que abate a sociedade exige o recurso
ao “muyto bõ mantimento”, aos “bõs cheiros”, a “boa agoa” e ao “bõ
vinho” (ALVARES; CORONEL, 1800), destinados à preservação da vir-
tude e do espírito vital. Essa a dicotomia fundamental, estabelecida
pela medicina, norteadora da conduta e ações humanas em tempos
de epidemia. Desponta, deste quadro, a ação restauradora do médico,
conhecedor e divulgador dos caminhos e perspectivas de reordenação
e reequilíbrio da sociedade abalada pela doença. Dado o seu caráter

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Mário Jorge da Motta Bastos


antinatural, a doença, interiorizada no corpo humano, sofre a reação
da natureza, que “se rege por intelligencia que não erra” (ALVARES;
CORONEL, 1800), que procura expurgar do organismo o veneno que
o ofende.

Tabela 1 - Termos designativos da doença por ordem de frequência


Nº OCORRÊNCIA FREQUÊNCIA % (*)
1 infermidade 43 33.07
2 mal 28 21.53
3 daño 9 6.92
4 peçonha 9 6.92
5 humor venenoso 5 3.84
6 veneno 5 3.84
7 brauo enemigo 3 2.30
8 febres pestelenciaes 3 2.30
9 pestilença 3 2.30
10 contagio 2 2.30
11 fogo 2 1.53
12 infeições pestilente 2 1.53
13 lugares tocados 2 1.53
14 materia peçonhenta 2 1.53
15 mortal 2 1.53
16 mui breue 2 1.53
17 peligrosissima 2 1.53
18 postema venenosa 2 1.53
19 sangue peçonhento 2 1.53
20 tam peçonhentas 2 1.53
(*) O percentual é em relação ao universo de termos designativos da doença

A compreensão da tabela apresentada demanda conside-


rarmos a noção da etiologia da doença expressa pelos tratadistas
medievais (ROQUE, 1979; TAMAYO, 1988). Estes, além de recorrerem
frequentemente a autores coetâneos, preservam no essencial a etiolo-
gia galênica da peste, mais ou menos adequada ao que a experiência
empírica impunha. Para Galeno, tal como os autores medievais o
entenderam, as doenças das partes homogêneas, isto é, dos tecidos
orgânicos, eram essencialmente devidas, com base nos conceitos de
Pitágoras, de Alcmeon e de Empédocles, seguidos por Hipócrates, a
um desequilíbrio que se verificava na combinação natural das qualida-
des primárias: quente, fria, seca e úmida, relacionadas com os quatro
elementos (ar, água, terra e fogo) e com os quatro humores (sangue,
bílis, pituíta e atrabílis). O equilíbrio entre aquelas quatro qualidades
era igual à saúde. A alteração das respectivas proporções pela pre-
ponderância de umas em relação às outras conduzia à doença.

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Autoridade e interdições: a medicina e a doença

Na peste verifica-se, pois, um desequilíbrio entre as quantida-


des relativas daquelas quatro qualidades primeiras, e a desarmonia
daí resultante tinha origem numa excessiva preponderância das qua-
lidades quente e úmida. O calor e a umidade, em demasia relativa,
conduziam à putrefação e desta nascia a peste. Estes dois excessos
relativos podiam verificar-se:
1. nas qualidades do ar (causa exterior), principalmente em cer-
tas situações meteorológicas (intempéries), com relevo para estações
do ano, horas do dia, pontos cardeais, direções do vento etc.;
2. nas qualidades dos humores do organismo (causa interior),
ferindo as suas vísceras;
3. conjuntamente, nas qualidades do ar e dos humores.
Como decorrência destes fatores produzia-se, por extensão, a
transformação da qualidade segunda: o cheiro, essência do ar cor-
rupto ou pestenencial, que se cria manifestar internamente no corpo
do doente. Comprovando-o, a fetidez do hálito era prognóstico da
contaminação do indivíduo.
Com base no princípio hipocrático do “contraria contrariis”
(ROQUE, 1979, p. 50), a profilaxia e a terapêutica incidiam na oposição
às qualidades da doença, visando à restauração do equilíbrio natural;
recorria-se às qualidades primeiras, seca e fria, e a uma qualidade
segunda que superasse o cheiro podre.
Considerada a base galênica que orienta a concepção da doença
expressa pela medicina de época, a sua ação se orienta em torno a
três princípios básicos: circunscrever os sinais que indicam a proxi-
midade da deflagração de um surto, as medidas profiláticas que se
lhe anteponham e, por fim, o tratamento indicado aos epidemiados
quando de sua ocorrência.
Quanto ao primeiro item, introduz o Regimento Proveytoso,
estando ausente da Recopilaçam em função do contexto em que foi
elaborada: grassava já a epidemia, concentrando-se, portanto, os
esforços nas medidas voltadas à sua superação. Sete sinais prognos-
ticam a proximidade da peste, ressaltando todos a qualidade do ar
como fator determinante e, indicando a corrupção deste, a presença
de moscas é sinal incisivo da deflagração de um surto. Em todos os
outros, a qualidade alterada do ar se expressa na ação de forças cós-
micas, como a passagem de cometas (referência aristotélica), relâm-
pagos e trovoadas, além da ação particularmente perniciosa do vento
oriundo das regiões do meio-dia. É nesse nível que particularmente
se expressa a relação entre o discurso médico e o religioso: segundo
o autor do Regimento (REGIMENTO Proueitoso contra...,1962), uma
vez surgidos os sete sinais indicativos da doença, só a deliberação

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Mário Jorge da Motta Bastos


divina a poderia evitar, assumindo e integrando assim a perspectiva
expressa por santo Isidoro de Sevilha.1
No que se refere às causas da doença, implícitas na Recopilaçam
pelas mesmas razões acima referidas, remete a três (REGIMENTO
Proueitoso contra...,1962) origens distintas: a primeira, designada
como de “raiz superior”, considerava que certos fatores celestes, sob
certas condições, atuavam sobre a Terra, dando origem a vapores
que alteravam a qualidade úmida do ar e, na extensão, à podridão e
à peste. Decorre daí o conselho dos físicos de que fossem abandona-
dos os lugares altos das moradias, mais propícios à ação direta das
influências celestes. Da “raiz inferior” provinha a peste do mau cheiro
originado dos focos de podridão abundantes, tendo em vista as pre-
cárias condições de higiene dos meios urbanos (fator promotor da
corrupção do ar). Quanto à última, supostamente responsável pelos
surtos mais violentos, origina a peste da conjugação das duas “raízes”,
gerando uma profunda corrupção do ar.
Destacada a corrupção do ar como fator da doença, o conceito
de contágio vincula-se não fundamentalmente ao contacto inter-
humano, embora também se expresse a esse nível, mas às distintas
situações em que se convivia com o ar contaminado. Essa noção,
crucial, articula todos os preceitos opostos à doença fixados pela
medicina. Tanto ao nível geral quanto ao individual.
O primeiro preceito, conselho básico, residia no afastamento
máximo da fonte da doença, traduzindo-se no famoso “electuário dos
três advérbios”, de matriz hipocrática e velho de séculos: “cito, longe,
tarde”, ou seja, fugir o mais cedo possível, para local bem afastado,
adiando-se ao máximo o retorno (ROQUE, 1979, p. 143).
Aos que não podiam segui-lo, restava evitar ao máximo as si-
tuações de contato direto com o ar corrupto, respirando-o o menos
possível, ou seja, evitando a fadiga oriunda de exercícios físicos,
esforços violentos, a ira e os movimentos coléricos, que disritmando
os movimentos respiratórios promovessem maior concentração de
ar no peito.
Ambos os tratados destacam importância fundamental no que
diz respeito à higiene urbana. Assim, na Recopilaçam2 prescreve-se a
limpeza das ruas, praças e áreas coletivas com a máxima diligência e
mais, que a sujeira acumulada nesse processo seja despejada em áreas
distantes, sobretudo à noite, evitando-se as horas de concentração
da população. No intuito de recuperar a qualidade do ar, os tratados
(RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. VI; REGIMENTO PROUEITOSO...,
M.D.LXXX, p. LXXXI) convergem para a necessidade de se promover
fogueiras com ervas aromáticas, visando, dessa forma, a superação da

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Autoridade e interdições: a medicina e a doença

podridão e a purificação do ambiente. A introdução de gado vacum nas


áreas infestadas cumpria o mesmo objetivo: cabia-lhes absorver todo o
ar contaminado, o que era feito particularmente durante o sono, quan-
do, segundo o Regimento (REGIMENTO PROUEITOSO..., M.D.LXXX, p.
LXXXVII), o veneno adentrava o corpo. Isto feito, defumavam-se as
ruas e as casas, que também eram caiadas, completando-se a higie-
nização das cidades.
Para preservar a qualidade do ar impunham-se práticas várias,
tanto no nível individual quanto coletivo. Antes de mais nada, devia-se
coibir qualquer situação da qual decorresse concentração humana,
como bailes e festas e, particularmente, segundo a Recopilaçam...,
todo e qualquer ajuntamento de negros: “como pello mao cheiro que
de si dão, E porque elles de si mesmos saõ mais prõptos a cair neste
mal” (REGIMENTO PROUEITOSO..., M.D.LXXX, p. VII). Mas o estigma
social, expresso pelo discurso médico, não tinha um matiz apenas
racial, posto que atingia as prostitutas (RECOPILAÇAM das cousas...,
1801, p. IX), cujas casas mandavam encerrar, e ainda os pobres, que
indicava, deviam ser recolhidos para evitar a sua livre circulação pela
cidade, fontes que eram, também, da corrupção do ar (RECOPILAÇAM
das cousas..., 1801, p. IX).
A reclusão dos doentes, base da política de segregação no
tempo da epidemia, é referência básica nos manuais. Neste sentido,
a Recopilaçam... (RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. X) prescreve
a construção de hospitais nos extremos da cidade para evitar a pro-
ximidade com ar corrupto que se concentra nesses locais.
Nas casas onde se manifestasse a doença, a Recopilaçam...
(1801, p. X) prescreve que fossem isoladas e fechadas, não sem an-
tes promoverem a sua desinfestação, através de fogos, perfumes e
caiação de suas paredes. Também no tocante às normas de conduta
individual, os “Tratados”3 recomendam práticas diversas como, por
exemplo, o evitar-se o banho diário, já que a umidade favorece a do-
ença, limitando-se a higiene corporal à lavagem das mãos e do rosto
com uma mistura de água e vinagre. Com relação à alimentação, o
Regimento (REGIMENTO PROUEITOSO..., M.D.LXXX) seguindo indi-
cação de Avicena, determina, em primeiro lugar, a moderação, já que
a gula enche o corpo de “maus humores”, e estes são mais amiúde
vítimas do ar envenenado. No desjejum convinha comer-se alimentos
de gosto azedo, posto que fechavam os poros, impedindo a entrada
no corpo do ar envenenado.
Destaque-se ainda que o Regimento (REGIMENTO PROUEITO-
SO..., M.D.LXXX, p. LXXXVI) prescreve medidas importantes para a
preservação do indivíduo ao nível do estado de espírito, afirmando

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que prazer e alegria eram indispensáveis à vida longa, e, ao contrário,
o receio da morte era agente favorecedor do contágio.
Recobrar e/ou manter a saúde, condição natural, exigia reintro-
duzir e/ou preservar o equilíbrio orgânico. Com base neste postulado
define-se, nos textos, a ação primordial do médico, a de atuar em
benefício da natureza, auxiliando-a no combate ao mal: “o principal
que (o) medico he obrigado fazer, he imitar E ajudar a natureza” (RE-
COPILAÇAM das cousas...,1801, p. XXXIII).
É nesse nível que reside tanto o argumento básico da afirmação
da autoridade do discurso, quanto o da valorização da função social
do físico. Regido, qual a natureza, pela inteligência divina, cumpre-lhe
circunscrever e defender o bem, ditando as regras de preservação da
saúde da comunidade.

3.2 Um discurso de autoridade e interdições

Definimos, como orientação central desta análise, a avaliação da


produção e afirmação, ao nível discursivo, da autoridade e competência
do saber médico ante a doença, autoridade tal que sustenta e embasa a
definição de prescrições e interdições voltadas à superação do flagelo.
A título de ilustração, observamos a lista de ocorrências textuais
da Recopilaçam..., analisando o universo verbal empregado e atentan-
do, sobretudo, para as ocorrências e frequências dos modos verbais.
Segundo Rosa Virginia, estes traduzem a “atitude do falante em relação
ao ‘status’ factual do que está dizendo, isto é, sua certeza e ênfase, sua
incerteza ou dúvida, etc.” (SILVA, 1989, p. 402). Desponta, em primeiro
lugar, no índice de frequência, o emprego de verbos no modo imperativo
(33,7%), que “expressam basicamente atitudes de ordem ou instruções”
(SILVA, 1989, p. 403). Delineia-se o pressuposto da autoridade investida
pelo enunciador em seu discurso, no qual ordena, muito mais do que
propõe ou aconselha, atitudes e alternativas voltadas à superação da
doença. A própria significação verbal é, neste sentido, elucidativa,
posto que expressa sobretudo prescrições: tenham, dê, faça, andem,
busquem, procure etc. Vejamos alguns exemplos:
“[...] E para isto se faça diligência [...]” (RECOPILAÇAM das
cousas..., 1801, p. VI);
“[...] E a todas as congregações de gente se mandão vedar [...]”
(RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. VII).
Cabe ressaltar ainda que o verbo aber (do latim habere) “tam-
bém se aplicava ao imperativo no período arcaico” (SILVA, 1993, p. 52),
o que justificaria a sua incidência relevante neste texto de natureza
ordenadora.

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Autoridade e interdições: a medicina e a doença

Atente-se ainda para a utilização de vários recursos de mo-


dalização discursiva expressos, principalmente, nos auxiliares mo-
dais do tipo dever, ter, ter que, servindo para que o enunciador se
posicione incisivamente em relação ao que enuncia. A modalização
com construções do tipo ter + infinitivo (não flexionado) já era, no
português arcaico, uma estratégia modalizadora (MATTOSO CÂ-
MARA JUNIOR, 1975, p. 172). Mattoso Câmara Junior afirma que de
todos os verbos seguidos de infinitivo nesta fase histórica da língua,
o ter de e o ir foram os que perderam seu valor de verbo pleno (o
sentido da construção deixou de estar centrado na significação ver-
bal destes verbos auxiliares). Isto justifica o seu emprego com um
valor modal de obrigação/necessidade. Ressalte-se, ainda, que “no
período arcaico aver de corresponde a ter de, e pode variar com aver
a, para a expressão da obrigação/necessidade” (SILVA, 1993, p. 67).
No documento analisado, estes recursos evidenciam uma posição
impositiva de quem assume um discurso de autoridade, alertando
sobre providências individuais e coletivas a serem tomadas no intuito
de preservação contra o mal. Tal emprego é, por sinal, recorrente ao
longo do texto, constituindo-se, por si só, de “modalidades lexicali-
zadas”, expressando preferencialmente um valor de obrigatoriedade,
e raramente de possibilidade.

Tabela 2 - Verbos modais que se combinam ao infinitivo


VERBOS MODAIS
aja 18
HAVER ha 5
ham 1
TOTAL 24
DEVER DEVE 2
TER + DE TENHAM 5
TER + QUE TENHA 4
TOTAL 9

Significativo também é o uso do verbo ser, com maior frequên-


cia na forma seja, definindo e ditando comportamentos e atitudes a
serem observadas.
A produção da autoridade está caracterizada ao nível discursivo
por várias pistas linguísticas, seja na constância do modo imperativo
e dos outros modos verbais (indicativo e subjuntivo), seja por meios
vários de expressão dos diversos matizes apresentados pelo impera-
tivo, ou ainda por intermédio do próprio significado do verbo. Rosa

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Mário Jorge da Motta Bastos


Virgínia enfatiza que, no português arcaico, a base semântica nas
construções do tipo verbo + infinitivo (com exceção do ter de e aver
de) encontra-se nos verbos e não no infinitivo. Isso ocorre tanto em
fórmulas do tipo Verbo + Infinitivo ou Verbo + preposição + Infinitivo.
Os principais exemplos encontrados pela autora, em textos arcaicos,
que expressam “modalização” são: querer, desejar ~ desejar a; ousar
~ ousar a; cuidar ~ cuidar a, atrever a; dever ~ dever a; poder; saber
(SILVA, 1993, p. 39). Tais considerações, além de auxiliarem na análise
dos nossos dados, confirmam a posição assumida aqui com relação
ao caráter “normatizador de regras obrigatórias de comportamento”
no tempo da doença. Observa-se, inclusive, o emprego de verbos cuja
significação lexical expressa, contextualmente, as ações recomendá-
veis com vistas à preservação/cura da doença, ou seja, o que deve
ser feito e/ou obedecido:

Tabela 3 - Verbos mais frequentes


SANGRAR EMBEBER UESTIR BEUER LANÇAR CURAR
TIRAR ENTERRAR UISITAR UELAR PURGAR CONSUMIR
QUITAR COMER TRAZER USAR EUACUAR AJUDAR

Os exemplos a seguir confirmam a posição de Rosa Virgínia, no


tocante à combinação dos verbos aver com o infinitivo, implicando
na expressão de obrigatoriedade, valor de comando e de proibição.
O elevado índice de frequência do infinitivo (31%) reitera os aspectos
levantados pela autora:

“[...] ha de auer ordem na limpeza [...]” (RECOPILAÇAM das cousas...,


1801, p. X);
“[...] os homens que ham de leuar os enfermos [...]” (RECOPILAÇAM
das cousas..., 1801, p. X);
“[...] onde se ham de reger como conualecentes [...]” (RECOPILAÇAM
das cousas..., 1801, p. XIII);
“[...] he mester escusar ho dano do contagio [...]” (RECOPILAÇAM das
cousas..., 1801, p. XXVII).

Percebe-se, ao longo da documentação analisada, a intenção de


fundo do autor de exortar o interlocutor a cumprir a ação indicada pelo
verbo, imperativamente, ou ainda sob a forma de conselhos, pedidos
e recomendações. Atenua-se, nestes casos, a ordem, pelo recurso a
verbos que exprimam solicitação ou súplica, tais como “vay”, “toca”,
“passa”, “acrecente”, “pedimos”, “deixa”, “aconselhamos” etc.

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Autoridade e interdições: a medicina e a doença

Mira Mateus, em sua Gramática da língua portuguesa, destaca a


existência de regras que regem o comportamento verbal, definidoras
dos tipos de atos passíveis de serem realizados pela fala. “Existe portan-
to um significado pragmático que faz parte da competência de qualquer
falante e que permite definir tipos de actos de ilocução” (MATEUS et al.,
1983, p. 167). A partir de tal premissa, propõe uma tipologia dos atos
e objetivos ilocutórios, definindo como directivo aquele que tem por
intuito garantir a realização futura, por parte do alocutário, de um ato
verbal ou não verbal que reflita, em si, o reconhecimento do conteúdo
do enunciado expresso pelo locutor. O conteúdo de verdade neste tipo
de ato depende diretamente da sua realização pelo alocutário. “Essa
tentativa de determinação da realização que se espera do alocutário é
assumida, em vários graus, pela expressão verbal do tipo de controle
do alocutário por parte do locutor (relação social locutor-alocutário)”
(MATEUS et al., 1983, p. 167).
Com base em tais indicações, ressalte-se que, no discurso
médico, a produção social da verdade sobre a doença respalda-se no
recurso frequente às frases imperativas e nas construções do tipo ver-
bo + infinitivo produtoras de ordens que, exige-se, sejam cumpridas.
A “absolutização” do discurso, pela verdade que pretende produzir,
impor e hegemonizar, depende da aceitação social unânime de suas
premissas e indicações. Neste sentido, é elucidativo que a realeza
portuguesa tenha, ao longo destes séculos, reiteradas vezes, fixado e
imposto às comunidades regimentos de saúde embasados em prescri-
ções médicas, instituindo inclusive duras penas aos transgressores
das normas por ela determinadas.4
Outro importante elemento a destacar, no texto, diz respeito à
utilização recorrente de certas construções condicionais, que além da
relação de causa/efeito que expressam, produzem ainda uma vincula-
ção implicativa entre as proposições. Exemplificando, temos:
“[...] sedem ordem como aja todas as prouisões necessarias [...]
por~que nesta infirmidade he necessario ceuar a uirtude cõtinuamente
cõ muyto bõ mantimento.” (RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. V);
“[...] as immundicias que se costumão levar ao mar, seja de noite, ou
de madrugada, [...] pola mayor impressão que recebe o ár, E a gente,
sendo de dia.” (RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. VI);
“[...] He bom que aja muyta abondança de boa carne [...] porque seja
occasião que se coma menos pescado: porque nesta infirmidade o
pescado por sua demasiada humidade he prohibido” (RECOPILAÇAM
das cousas..., 1801, p. VIII);

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“[...] nas casas onde se ouuerem ferido de tres pera cima, se despejem,

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E cerrem, [...] porque està claro que aquelle ar està mais danado que
outro [...]” (RECOPILAÇAM das cousas..., 1801, p. X).

Poder-se-iam multiplicar os exemplos, posto que quase a totali-


dade das prescrições constróem-se pelo recurso às “frases imperati-
vas” de natureza diversa, como vimos, interarticuladas por relações
de implicação. Tal operação, considerada um mecanismo lógico por
Mira Mateus, “regula para o enunciado determinada interpretação
semântica, isto é, lhe atribuem um valor de verdade, independente-
mente da situação e da interpretação que os falantes em interação lhe
possam atribuir” (MATEUS et al., 1983, p. 165).
O tempo da epidemia é, portanto, o tempo fundamental da
afirmação do saber médico, produtor de verdades sobre a doença,
pretenso regulador de atos e condutas permitidas e proibidas. Seria
interessante atentar, nesse sentido, para a produção nos dois tratados
de um tempo específico e singular, que é paralelamente o da doença
e o da efetivação do próprio discurso, seja pelo elevado emprego de
verbos no presente do indicativo (20%), seja pelo recurso direto à
expressão “Neste tempo”. Ambos, discurso e doença, produzem-se
numa relação dialética.
Mas se a doença fornece a base para a afirmação deste discurso,
sua trajetória aniquiladora impõe-lhe um desafio, admoestando-o com
a chave de sua superação, aspecto que institui o paradoxo fundamental
que o atravessa. Ao determinar a existência de um tempo singular e ter-
rífico, porque submetido pelo mal e regido por interdições e rupturas
obrigatórias nas relações sociais cotidianas – elemento indispensável
à afirmação de seu poder discricionário e normatizador –, o discurso
médico incidia sobre um fundo psicológico, reforçando o medo cole-
tivo que abatia as populações. Impunha-se-lhe contudo controlá-lo
socialmente, posto que a sua exacerbação implicava, definitivamente,
na negação do próprio discurso.
Num reino assolado por epidemias, e esse um dos matizes do Por-
tugal desses séculos, o físico, mais do que como um demiurgo, impõe-se
como um guerreiro-servidor régio, aquele que em nome de El-Rei “peleja
com tam bravo enemigo” (ALVARES; CORONEL, 1800, p. XXXII). Afinal,
não era a peste um dos quatro cavaleiros do Apocalipse?

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Autoridade e interdições: a medicina e a doença

Tabela 4 - Tempos e modos verbais por frequência


TEMPO
PRET. PRET.
MODO PRESENTE FUTURO PERFEITO IMPERFEITO TOTAL %
INDICATIVO 89 01 04 03 97 21.8
SUBJUNTIVO 04 14 0 06 24 5.4
IMPERATIVO - - - - 145 33.7

FORMAS NOMINAIS TOTAL %


INFINITIVO 138 31
PARTICÍPIO 24 5.4
GERÚNDIO 15 3.3
TOTAL 177 40
Total geral dos verbos = 443

Notas
1
Ver o Capítulo 2.
2
RECOPILAÇAM das cousas...(1801) e REGIMENTO PROUEITOSO... (M.D.LXXX), pres-
creve o afastamento individual do contato com os “focos de podridão”.
3
RECOPILAÇAM das cousas... (1801) prescreve o fechamento dos banhos públicos; REGI-
MENTO PROUEITOSO..., M.D.LXXX ., p. LXXXII, determina que se evite o banho diário.
4
Ver, entre outros, o “Alvará de D. João III”, de 1526 apud Meirelles (1866, p. 67).

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Parte II
O rei físico e a saúde do reino

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Capítulo 4

imagens funcionalistas da realeza

Esta relação (entre o poder e a sociedade) é essencialmente


carregada de sacralidade, porque toda a sociedade associa a
ordem que lhe é própria a uma ordem que a ultrapassa,
expandindo-se até ao cosmos no caso
das sociedades tradicionais.
(BALANDIER, [19--], p. 107)

Que a doença é, acima de tudo, um elemento de desordem social,


os discursos expressaram-no. Dessa forma, a sua apropriação e articu-
lação ao processo de centralização política em curso em Portugal nos
séculos XIV ao XVI ressaltam, dialeticamente, a afirmação de um poder
que se requisita a função de intervir contra o flagelo. Função saneadora,
embasamento ideológico da prática centralizadora que se efetiva. Con-
substanciada em imagens, deforma, sublima a dominação, expressa-a
como necessária e indispensável à integridade da ordem.

Pensar la Monarquia es referirse a una ética, una teoria y una


práctica del poder, capaces de mantener la lealtad de los súditos
[...] y de guiar a la propria realeza en sua acción de gobierno.
(NIETO SORIA, 1988, p. 36)

Consideremos, portanto, a fundamentação ideológica do poder


régio que o apresentou, no século XV, como o de um físico responsável
pela saúde do corpo social.
A sacralidade com que se revestiu a realeza medieval, traço
fundamental em sua legitimação, expressou-se em níveis e fórmulas
diversas, seja em rituais e cerimônias, como as sagrações e “entradas
régias”, nas insígnias do poder, nas titulaturas adotadas, entre outras.
Manifestações exteriores de um brilho particular, halo de esplendor
que se impunha irradiar, publicar, explicitavam sobretudo um poder
em potência, apto a cumprir-se, requisitando e circunscrevendo o
campo desta realização. Traduzida em termos “funcionalistas”, a re-
aleza atualizava-se no exercício de atributos superiores particulares,
porque revelados (e reveladores) de sua (sobre)natureza. Em seus
primórdios no Ocidente medieval, a realeza germânica assumia um
aspecto nacional e popular, portando, ao lado das insígnias militares,

O poder nos tempos da peste.indb 89 19/8/2009 19:01:53


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Imagens funcionalistas da realeza

aquelas tomadas aos deuses que governavam o mundo e garantiam a


fertilidade da terra. “O Rei encarnava o bem-estar do povo” (FEDOU,
1977, p. 32). Com a cristianização, se a tônica se deslocou do indiví-
duo para o “cargo”, a celebração da realeza como um ofício divino
e a ascensão do Rex Dei Gratia reafirmaram o caráter funcional, e
providencial, deste poder (ULLMANN, 1985).
Na Península Ibérica, remonta à monarquia visigótica, e aos
célebres Concílios de Toledo, a concepção do poder real manifesto
no exercício de uma função (CAETANO, [19--], p. 206), englobando
uma complexa rede de poderes e deveres orientados à satisfação de
fins superiores. Suplantada a monarquia pelo poderio muçulmano,
subsiste a concepção, expressa nas fontes de direito, pródiga à in-
formar as realezas cristãs emergentes no processo de reconquista.
Nascidas sob o signo de Marte, coube a primazia no realçamento do
poder régio à função guerreira dos reis, supremos comandantes de
tropas, nobres guerreiros chefiando seus pares. A destacar o caráter
sagrado conferido a esta ação, projetou-se, no século XIII, a imagem
aureolada de Fernando III, de Leão e Castela, rei pelo manejo da es-
pada, gládio divino posto a serviço da cristandade na guerra santa
que o elevou.
Com relação a Portugal, tal função circunscreve sobretudo a
afirmação dos primeiros reis da dinastia de Borgonha, condutores
da imensa obra de conquista aos muçulmanos do território onde iria
se fundar o reino. Primordial, portanto, nas origens, não seria contu-
do de todo eclipsada, mesmo depois da estabilização das fronteiras
com a anexação do Algarve por D. Afonso III, em 1249. Avis, em sua
ascensão, a reabilitou, e em sua sacralidade, ao revestir o expansio-
nismo africano com o caráter de cruzada, superdimensionando-a na
trágica figura do rei (mártir?) D. Sebastião. Mais do que a frequência
do exercício da guerra, a perenidade do comando militar havia ma-
tizado a constituição do reino, alçado a realeza, preservando-se sua
herança partilhada pelo sangue da linhagem. D. Dinis, defendendo a
autonomia do poder real português diante das pretensões do Império,
afirma a um representante que percorria o reino a dar “testemunho
por autoridade do Imperador”, que estes

nunca houveram nem hão nenhum poder na terra nem no se-


nhorio do rei de Portugal [...]. Os reis que houve em Portugal
conquistaram a terra e a filharam a mouros e assim a houveram
e possuiram sempre como a os mouros haviam. E nunca Impe-
rador nem outrem houvera, nem havia, na sua terra nem no seu
senhorio nenhuma jurisdição. (CAETANO, [19--], p. 298)

O poder nos tempos da peste.indb 90 19/8/2009 19:01:54


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Mário Jorge da Motta Bastos


Fundada no direito de conquista, referência de base, o lento real-
çamento da realeza portuguesa nos séculos seguintes culminaria, em
meados de Trezentos, num rei que se pretendia e afirmava “absoluto,
legislador, juiz e administrador, representante consciente do interesse
geral do reino” (MARQUES, 1987, p. 207). Alçado de sua condição de
suserano feudal, embora continuasse a sê-lo, destacou-se a imagem
do rei representante divino, vigário de Deus na terra, supremo con-
dutor dos destinos da nação. D. Afonso IV, por volta de 1340, em sua
lei de repressão ao jogo, afirmava que “o regimento dos ditos reinos
por Deus nos é outorgado” (CAETANO, [19--], p. 297), sacralidade de
origem tantas vezes requisitada pelos seus sucessores, e que em tese
apontava para a inexistência de qualquer outro poder terreno que com
o régio concorresse. Tal ascendência divina e poder absoluto confe-
riam ao monarca o exercício de várias funções, convergindo todas a
sua representação como figura aglutinadora dos interesses gerais do
reino. Nesse sentido, transformava-se o rei num ser múltiplo, “cabe-
ça” de um corpo social que, numa relação dialética, sustentava-o, ao
mesmo tempo que, pelo justo exercício de suas funções, cabia ao rei
mantê-lo em equilíbrio.
Tendo em vista a preservação deste, sua primeira e principal
função residia no provimento da justiça, com base em referência e
alusão direta aos reis bíblicos. Segundo o Livro I de Reis, o Senhor,
por amor a Israel, “te constituiu rei (a Salomão), a fim de governares
com equidade e justiça” (I Reis (10,9); SOUSA, 1989, p. 348). No Livro
da Cartuxa, dentre as inúmeras considerações relativas ao valor do
braço justiceiro da realeza, destaca-se a “Oração do Justo Juiz”, que D.
Duarte considerava “forte escudo onde se ampara, e que por sua graça
vence seu perseguidor” (DIAS, 1982, p. 243). Em sua famosa “Carta
de Bruges”, o Infante D. Pedro aconselhava ao mesmo rei que “outro
muyto espeçial proueito a todos feitos de uosa terra cada humano [...]
andardes uos por todalas comarqas dela” (DIAS, 1982, p. 34), a prover
a justiça. Promovê-la implicava, sobretudo, em coibir a opressão dos
mais fracos, garantir a cada um o que era seu de direito – preservar
a igualdade na hierarquia –, realçando-se a figura do monarca como
mantenedor da ordem e da paz entre os homens.
Paralelamente à exaltação da função justiceira, ou como seu
corolário, fortaleceu-se a função legisladora da realeza. Numa socie-
dade profundamente condicionada por usos e costumes arraigados,
traduzidos por um complexo de leis e posturas de nível local e regional,
impôs-se, paulatinamente, a legislação oriunda do poder central, leis
gerais que iriam absorvendo e incorporando as várias influências de
textos legais. Em Portugal, a primeira compilação de leis gerais do reino

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Imagens funcionalistas da realeza

data do século XIV, provavelmente do início do reinado de D. Pedro I,


o Livro das Leis e Posturas (RODRIGUES, 1971, p. 80), ação centrali-
zadora que não implicou a supressão, no nível local, da vigência dos
forais, costumes e posturas.
A obrigatoriedade da obediência dos súditos ao rei devia-se a
sua ascendência divina. Já que ele era eleito de Deus como provedor da
justiça terrena, desobedecer-lhe implicava em contrariar os mais altos
desígnios divinos, pecado mortal, segundo os legistas das Ordenações
Afonsinas. Embasados em São Paulo, afirmavam que

aquele que não obedece a seu Rei ou Príncipe e trespassa seu


mandato peca mortalmente, porque resistindo a seu mandado
resiste ao mandado de Deus, pois de sua mão recebeu seu Alto
e Real estado todo o poderio que tem porque rege e governa o
reino em justiça [...]. (CAETANO, [19--], p. 466)

A obediência dos súditos, obrigatória, garante a contrapartida


do justo exercício do poder real, expressão da ideia do pacto, do “dom
e contra-dom” que embasa a relação entre o rei e seu povo.
Cabia ainda à realeza a promoção do desenvolvimento econômi-
co do reino, zelando pelo povoamento do território e pela manutenção
de sua “abastança”, o que implicava “produzir o bastante para consumo
farto, para a auto-suficiência econômica” (MARQUES, 1978, p. 14).
Aliada às imagens do rei guerreiro, justiceiro, sagrado, variando
a pujança de cada uma delas em função de tempo e espaço, impôs-
se a imagem do rei sábio, cultivador das letras e artes, que servia à
cultura e dela se servia como elemento de afirmação de sua elevada
posição social, imagem que conhecera em Carlos Magno um breve
expoente. Na Península Ibérica, a variação dos elementos de afirmação
e valoração das “imagens reais” de Fernando III e Afonso X parece-
nos demarcar a ascensão irresistível desta “nova face” da realeza. Ao
valor da grande obra guerreira de um vem sobrepor-se a importância
da grande obra cultural do outro, alcunhado “o sábio”, dando ensejo
à premissa que seria mais tarde considerada, pelo Infante D. Pedro,
primordial ao perfeito exercício do poder pelo governante. Segundo
passagem do seu Livro da Virtuosa Benfeituria, apoiado em Platão,
afirmava que “se deue chamar bem auenturado e glorioso o mundo,
quando regnam os sabedores, per guisa que a sabedorya e o real
poderyo seiam muytos em huma persoa. E prinçipe e sabedor todo
seia huma cousa” (ALMEIDA, 1981, L.II, cap. XXII).
No Leal Conselheiro D. Duarte evocava a vinculação com os reis
bíblicos, rendendo antes homenagem a Afonso X:

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Mário Jorge da Motta Bastos


[...] aquel honrrado Rey dom Affonso estrollogo, quantas multi-
doões fez de leituras! (e o) Rey Sallamom e outros na ley antiga
e doutras creenças (que) seendo em real estado filharom desejo
e folgança em screver seus liuros, do que lhes prouue, os qua-
aes me dam pera semelhante fazer nom pequena autoridade.
(ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XXVII)

A produção literária e o apego à cultura impõem-se, pouco a


pouco, como importante elemento de propaganda e afirmação do
poder real, seja pela valorização do monarca letrado que ascende
da ampla massa dos “iliteratii”, poeta, conhecedor e divulgador das
“boas obras”, seja pela utilização “pragmática” de um importante
veículo de propagação de discursos didáticos e moralistas, marca
característica da produção literária de Avis. “Os príncipes de Avis
não são poetas, como o fora D. Dinis” (SARAIVA, 1988, p. 216), neto
inspirado no exemplo de seu avô Afonso X. A literatura voltara-se,
sob os príncipes desta dinastia, à produção de obras que se preten-
diam úteis aos seus leitores, divulgadoras de uma moral senhorial
“temperada” pela tradição cristã. Para Oliveira Marques, a literatura
originalmente produzida em Portugal nos séculos XIV e XV, “fruto de
um período de crise”, não manteve a riqueza e a variedade temáticas
que a caracterizaram no século XIII e no início do XIV, posto que a
poesia refluiu em benefício dos “romances de cavalaria, da história e
(dos) temas edificantes” (MARQUES, 1987, p. 423).
Julgamento de valor quiçá profícuo, mas na perspectiva do
crítico literário. Ao historiador impõe-se, como questão crucial, não
a apreciação da maior ou menor riqueza e variedade temáticas da lite-
ratura promovida por Avis, em comparação com períodos anteriores
e/ou posteriores, mas a própria frequência temática e a preocupação
doutrinária que caracteriza esta literatura. Abordemo-la, portanto, de
seguida, em seu caráter “pragmático”, seja aquele que seus autores
(com especial atenção dedicada a D. Pedro) explicitamente lhe confe-
riram – o de dar ensinamento de moral e virtude ao rei e, de resto, à
sociedade –, seja aquele implícito, e essencial, o de promover a dinastia
recém-instalada no poder, afirmando a supremacia do rei em sua fun-
ção catalisadora, a de mantenedor do equilíbrio do corpo social.

4.1 Aspectos da produção literária da corte de avis

A relação pragmática da dinastia de Avis com o “saber” ressalta


de uma ligeira análise das obras produzidas ou mandadas produzir
por seus infantes e reis. Pragmatismo que, contudo, não deve ser

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Imagens funcionalistas da realeza

revestido de um sentido pejorativo, e que não traduz uma relação


com a cultura que despreze o deleite, o prazer. O tal que é imputável
aos seus autores resulta do caráter acentuadamente didático de suas
obras, voltadas sobretudo a indicar posturas retas e de “boa” moral
aos indivíduos, indispensáveis, segundo a concepção daqueles, à
preservação do equilíbrio social.
D. João I, em seu Livro da Montaria, afirma seu intuito de re-
valorizar uma “arte” que fora desprezada no Portugal de seu tempo,
compondo uma obra que desse “ensino a aquelles, que ouuessem sabor
de serem monteyros, em como o poderiam melhor seer” (ALMEIDA,
1981, prólogo). Segundo Saraiva (SARAIVA; LOPES, [19--], p. 102), no
entanto, tal obra não é regida por intenção outra que a de entreteni-
mento de rodas palacianas. Preocupação didática mais grave presidiu
a confecção do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela,1 por
D. Duarte, em reação contra a obliteração “do velho desporto feudal
da montaria, (e) até do hipismo, a tal ponto que veio a ser necessário
proibir o uso de mulas pelos fidalgos” (SARAIVA; LOPES, [19--], p.
102). O zelo didático do autor é patente ao final do prólogo desta obra,
ao indicar aos seus leitores a fórmula mais adequada a sua leitura e
compreensão: “[...]E os que esto quiserem bem aprender, leamno de
começo pouco, passo, e bem apontado, tornando algumas vezes ao
que ja leerom pera o saberem melhor” (ALMEIDA, 1981, prólogo).
A cultura, nesse contexto de afirmação da nova dinastia, produ-
zida sob a égide da realeza, tem por função primordial subsidiar, ou até
mesmo embasar, as ações humanas. A leitura e a reflexão dos filósofos
antigos, à luz da literatura cristã, e sobretudo voltadas às necessidades
e anseios contemporâneos, são aspectos a matizar explicitamente as
principais obras de D. Duarte e D. Pedro. No Leal Conselheiro, em um
dos capítulos em que aborda o pecado da ociosidade, D. Duarte indica
como uma das alternativas à superação deste mal que corrompe o
corpo social, “o leer dos livros de boas inssynanças [...] assy que os
livros nos declarom nossas obras, cuydados e sentidos” (ALMEIDA,
1981, cap. XXVII).
D. Pedro, por sua vez, destaca em duas importantes passagens
a sua preocupação com o valor objetivo do saber. Na dedicatória de
sua tradução do Livro dos Ofícios, endereçada a D. Duarte, afirma
que embora este possua vários e bons volumes de filosofia moral, a
excelência da obra de Cícero reside em que “este declara como em
cada virtude nos devemos aver e que maneira em cadahuma obra
devemos de teer pera guardar ou cobrar estado virtuoso, assy que
os outros per a mayor parte screvam da theorica, e a tençom deste
he de mostrar a pratica” (ALMEIDA, 1981, dedicatória).

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Mário Jorge da Motta Bastos


No Livro da Virtuosa Benfeituria, afirma D. Pedro que “nom he
sabedor o que por seer mayor letrado melhor pode chilrar, mas o
que em suas obras mais usa de rrazom”. Citando exemplos antigos,
evoca a benéfica união de dois estados, a saber, a “cauallarya” e os
“studiosos”, que “sempre yrmaamente querem uiuer” (ALMEIDA, 1981,
L. II, cap. XXII), remetendo-nos, antes do mais, à importante função
desempenhada pelos últimos na produção e divulgação da ideologia
real. E tal evocação, se articulada a uma passagem da mesma obra,
anteriormente citada,2 revela o que constitui, para o infante, um traço
marcante da perfeição do príncipe: o de ser essa una e ao mesmo
tempo múltipla figura que congrega os atributos de distintos estados,
residindo e materializando, em si, a pretensa irmandade, irresistível
e natural, que une o todo social.
Antes de dar início à análise mais específica da obra do Infante
D. Pedro, convém ainda tecer algumas considerações sobre a produção
literária da corte real portuguesa ao início da dinastia de Avis. Seus
reis e infantes produziram, originalmente ou em traduções, obras
diversas, que guardam, porém, entre si traços comuns. Destacam-se,
sobretudo, apologias da nobreza e de seus atributos, perpassados, e
tal aspecto é essencial, por uma rígida e frequente divulgação de uma
moral cristã em que deveriam pautar-se as ações humanas, fornecendo
o elemento norteador das relações sociais.
Ao fundador da dinastia coube a autoria do Livro da Montaria,
título que parece ter ido buscar na obra que mandara compor, ver-
sando o mesmo tema, Afonso XI de Leão e Castela, ainda em meados
do século XIV (SARAIVA, 1988, p. 216). Segundo seu filho primogênito,
D. João I “fez hum livro das oras de Sancta Maria, e salmos certos
por os finados, e outro da moontaria” (ALMEIDA, 1981, cap. XXVII).
Preservou-se apenas o último. A D. Duarte coube a autoria de três
obras, o Leal Conselheiro, o Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte,
obra considerada variante ou até mesmo aditamento ao seu “ABC da
lealdade” (MARQUES, 1987, p. 423), e ainda o Livro da Ensinança de
Bem Cavalgar Toda Sela. O infante e depois regente D. Pedro é autor
(em que pese a participação de Frei João Verba na composição da
obra (ALMEIDA, 1981, dedicatória) do Livro da Virtuosa Benfeituria,
e ainda tradutor de três obras latinas, o De Re Militari, de Vegécio, o
De Officiis, de Cícero e o De Regimine Principum Libri III, de Aegidius
Romanus ou Colonna, discípulo de são Tomás de Aquino, escrito após
1280 (MERÊA, 1919, p. 7). À pena de Afonso V atribui-se uma obra de
astrologia, o Tratado da Constelação do Cão e um Tratado de Milicia
(SARAIVA, 1950, p. 438).

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Imagens funcionalistas da realeza

A produção de tais obras articula-se a um fenômeno comum


em diversas regiões europeias, ao longo do século XV e do começo
do seguinte. Em Portugal, como na França e em Flandres, este foi o
período do auge da produção do livro manuscrito (SARAIVA, 1950,
p. 438). Ao lado das obras monásticas e religiosas, como as diversas
cópias da Regra de são Bento, arroladas na biblioteca de Alcobaça
(MARQUES, 1987, p. 422), ou o Livro dos Evangelhos e os Actos dos
Apostolos, possuídos por D. Duarte (DIAS, 1982, p. 206-207), e daquelas
mais diretamente voltadas ao ensino universitário, como os manuais
de medicina e direito, propagou-se a literatura de origem cortesã ou
senhorial. Não obstante, atingiam apenas tiragens mínimas, consis-
tindo o livro um artigo de luxo que “só os mais ricos se permitiam
orgulhosamente exibir (em suas) bibliotecas” (MARQUES, 1987,
p. 420) e, dentre eles, os reis e infantes de Avis.
Tal dinastia foi, sem dúvida, importante ativadora da produção
e divulgação da cultura literária no Portugal do período. A mais antiga
referência à existência de uma biblioteca régia no país remonta a D.
Duarte, constituída por 83 volumes (DIAS, 1982, p. 206-207). D. Afonso
V, seu filho, foi o primeiro a fazer “livraria em seus paços”, o que parece
significar que tenha sido este monarca quem “oficializou e converteu
em instituição palaciana a livraria privada do rei” (SARAIVA, 1950,
p. 439). Também no movimento das traduções, importante atividade
cultural em Portugal no período (MARQUES, 1987, p. 421), a partici-
pação dos membros da casa de Avis foi além da execução de algumas
delas, como as já referidas, devidas a D. Pedro. Em seu Livro dos Con-
selhos de El-Rei D. Duarte, este discorre sobre a “maneira pera bem
tornar alguma lectura em nossa lyngoajem” (DIAS, 1982, cap. 30),
requisitando ao tradutor que busque preservar a clareza de vocabu-
lário, facilitando assim a leitura e compreensão da obra.
Expusemos, ainda que em linhas gerais, a importância e as ca-
racterísticas da vinculação da dinastia de Avis com o incremento da
produção literária em Portugal, ao início do século XV, vinculação tal
que remete à valorização da imagem do rei sábio, condição que reafir-
ma e garante o pleno exercício de suas outras funções. Voltemo-nos,
então, ao tratamento mais específico do Livro da Virtuosa Benfeituria
do Infante D. Pedro.

4.2 O livro da virtuosa benfeituria do Infante D. Pedro

Uma análise mais específica não deve prescindir de um enqua-


dramento histórico-cultural, antes exige-o, do autor e de sua obra.
Alguns dos estudiosos portugueses que, até aqui, dedicaram-se, em

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Mário Jorge da Motta Bastos


níveis variados, a sua análise (MERÊA, 1919, p. 5; SARAIVA, 1988, p. 219;
SERRÃO, 1986, p. 71), divergem no que tange à cronologia da redação.
A leitura da dedicatória da obra permite, quando muito, estabelecer os
seus limites. Nela afirma D. Pedro ter sido interpelado, por D. Duarte
e D. João I, sobre o andamento de sua confecção, por ocasião das
cortes celebradas em Santarém, em função da perspectiva de guerra
contra Castela. Tais cortes reuniram-se em 1418, e D. Pedro respondeu
a ambos que, segundo sua intenção original, estava a obra pronta.
Pretendendo, no entanto, acrescê-la, do que foi impedido por D. João,
incumbiu seu confessor e coautor, frei João Verba, de concluir o livro,
que dedica ao “infante” D. Duarte, portanto antes de 1433. Certo é que
a obra seja anterior ao Leal Conselheiro, pois esta faz menção explícita
ao livro de D. Pedro (ALMEIDA,1981, cap. 27).
O autor, quarto filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, duque
de Coimbra, fez-se regente do trono em 1439, quase um ano após a mor-
te de D. Duarte, e em meio a um contexto de intensa agitação política
em Portugal, em muito semelhante àquele que marcou a ascensão de
Avis. Três aspectos há que merecem destaque na biografia e na “per-
sonalidade” de D. Pedro. Em primeiro lugar, sua grande proximidade
pessoal e afetiva com D. Duarte, afeição que distingue, por parte do
infante, o duplo sentido da “amizade” devida ao irmão, segundo afirma
na “Carta de Bruges”: “eu esgardo em vos dobrez pesoa/ A primeira he
uos singularmente a 2ª he o senhor Rey”. Essa “dupla personalidade”
atribuída ao rei soa-me mais profunda do que se faz antever, caracte-
rística da multiplicidade que constitui a imagem real. Na mesma carta,
D. Pedro, ao dedicá-la, destaca não tê-la escrito à singular pessoa de
seu irmão, “quanto senhor ao singular eu nam sey que escreua”, mas
a uma personalidade composta e distinta que tem por fundamento do
ser uma aliança com seu povo, segundo que escreve a “uos (o rei) com
toda a comunjdade de uosa terra” (DIAS, 1982, p. 27).3
Ressaltar a proximidade afetiva entre D. Pedro e D. Duarte, de
que o último dá claros sinais de correspondência, “o iffante dom Pe-
dro, meu sobre todos prezado e amado irmaão, de cujos feitos e vida
muyto som contente” (ALMEIDA, 1981, cap. XXVII), faz-se essencial na
medida em que ela se traduziu em obras. D. Pedro impõe-se como um
importante e constante conselheiro do rei, por ele requisitado, como no
“diagnóstico” do reino em que se traduz a sua “Carta de Bruges”, feito
a mandado de D. Duarte, onde o infante retoma elementos e críticas
que “antes de mynha (sua) partida // per vezes uos faley, e algumas
outras que me pareçerom despois que dela party” (DIAS, 1982, p. 27-
28). Esta afirmação de D. Pedro traz ainda, à cena, o segundo aspecto
que convém frisar, a partir da biografia do autor.

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Imagens funcionalistas da realeza

O duque de Coimbra empreendeu, entre 1425 e 1428, uma viagem


na qual percorreu diversas regiões europeias, périplo que lhe valeu
o título legendário de “Príncipe das Sete Partidas”. Esteve na Hungria
onde, lutando ao lado de Sigismundo contra os turcos e hussitas, gran-
jeou o ducado de Treviso. “Visitou Barcelona, Veneza, Pádua, Ferrara,
Roma, onde foi recebido pelo papa Martinho V, Flandres, Inglaterra
e Castela” (SERRÃO, [19--], v. 5, p. 29). Dos vários títulos e benesses
conquistadas em tal viagem destaque-se que, do encontro com o
papa, originou-se uma bula (COSTA, 1953, p. XCVII) que concedeu aos
reis de Portugal o direito de se fazerem consagrar pelo mesmo modo
dos de França e Inglaterra, segundo o ritual que se impunha como
elemento central na sacralização dos reis taumaturgos franceses e
ingleses (BLOCH, 1993). Ainda que tal prática não se tenha efetivado
em Portugal (o tema não foi, ainda, devidamente explorado!), o rei que
emerge da obra de D. Pedro impõe-se como perfeito “físico”, principal
provedor da saúde da comunidade.
Destaca-se ainda, como aspecto vinculado a esta “experiência
internacional” vivenciada pelo infante, o reforço de seu apelo refor-
mador da estrutura administrativa do reino português. Patente já no
Livro da Virtuosa Benfeituria, tornou-se sem dúvida mais flagrante
em sua “Carta de Bruges”, posterior àquela obra. Sua proposta de
reforma da estrutura universitária, cuja tônica reside na multiplica-
ção dos colégios, visando aumentar o número e melhorar a formação
dos clérigos e oficiais do reino, vincula-se diretamente ao modelo de
algumas universidades estrangeiras (MARQUES, 1987, p. 418). Ainda
que não constitua novidade indicar o vínculo das universidades com o
processo de centralização do poder político na Idade Média, ressalto o
reforço desses laços, em Portugal, sob a dinastia fundada pelo Mestre
de Avis, posto que se articula com a anteriormente referida “relação
pragmática com a cultura”.
Logo após a insurreição de Lisboa em apoio a D. João, em 1383,
este concede, “por honra e exalçamento da mui nobre cidade”, que se
fixe nela a universidade “perpetuamente e não se mude para Coimbra
ou outro lugar” (SARAIVA, 1988, p. 129). Se a “Universidade portu-
guesa estava sob a dependência do rei” (SARAIVA, 1988, p. 129), esta
se acentua na proporção em que avança o fortalecimento do poder
régio. Tal é a perspectiva flagrante em D. Pedro. No Livro da Virtuosa
Benfeituria evoca os senhores, e sobre todos o príncipe, a manter
as universidades, valorizando a benéfica união da “cauallarya” com
os “studiosos”, a que já fiz referência. Impõe-se a estes uma função
“orgânica” fundamental à preservação da sociedade, função que, ao
nível metafórico, vincula-os diretamente ao rei que os congrega em si,

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Mário Jorge da Motta Bastos


e consiste em alumiar a cabeça do corpo social: “os sabedores que som
olhos em a comunydade, uiuendo em exerçiçios scolasticos, consyrem
todalas cousas per suas artes” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XXII).
É a este nível que D. Pedro investe o valor primordial da cultura,
que ele próprio cultivou, pretendendo colocá-la, acima de tudo, ao ser-
viço do príncipe. Tal perspectiva insere autor e obra numa tradição cul-
tural e numa corrente literária que, no Ocidente, atingiria seu expoente
máximo com Maquiavel, o que me leva a evocar o terceiro elemento da
“personalidade” do infante – homem cultivador das “boas leituras” – , a
partir do qual discernir-se-ão as fontes inspiradoras de sua obra.
De D. Pedro relata Zurara que “alem do seu grande e natural
saber estudara as artes liberais” (SERRÃO, [19--], p. 29), (note-se que
a sabedoria é natural nos membros desta dinastia, pois referência se-
melhante há na Crônica de D. Duarte - ALMEIDA, 1977) e, segundo Rui
de Pina, “foi bem latinizado e assaz mystico em ciencias e doutrinas
de letras e dado muyto ao estudo” (SERRÃO, [19--], p. 29). Uma análise
das bases inspiradoras de sua obra inscrevem-no “como um espécime
fielmente representativo da cultura de sua época” (MERÊA, 1919, p. 6).
Manifesta-se, com efeito, no Livro da Virtuosa Benfeituria, a influência
clássica matizada pela doutrina cristã. São frequentes as citações de
Aristóteles, “o filósofo”, de Cícero, de Sêneca, sendo que na obra deste
último, o De beneficiis, o próprio D. Pedro afirma ter-se fundamentado
(ALMEIDA, 1981, L. I, cap. II). O recurso aos filósofos antigos ocorre
em reforço dos ensinamentos cristãos, nunca os contrariando, ope-
rando o autor na tradição dos grandes padres e doutores da Igreja,
constantemente citados, assim como o é a Sagrada Escritura.
Sua obra insere-se numa abundante literatura político-moral, espe-
cialmente orientada à educação de príncipes. Voltadas a ministrar-lhes
retos ensinamentos da arte de bem governar, tais obras circunscrevem a
natureza do seu poder, seu campo de atuação e ações primordiais. “Surgi-
dos” na França do século IX seus primeiros exemplares, como a Via Régia,
escrita pelo abade de Verdum, em 813, o “gênero” proliferou sobretudo
na Baixa Idade Média, no bojo das acirradas disputas entre o Império e o
Papado, sem que arrefecesse sua perspectiva moralista cristã. Em Portu-
gal, seu primeiro exemplar parece dever-se à pena do bispo de Silves, Frei
Álvaro Pais, intitulado Speculum Regum, redigida em latim e publicada
entre 1341 e 1344 (PAIS, 1955-1963). Da articulação desta com a obra de D.
Pedro ressalta-se a intenção dos autores de dotá-las de um certo caráter
monumental, obras que refletem, em si, a imagem idealizada da realeza.
No livro do bispo de Silves, tal perspectiva explicita-se nomeando-o; no
Livro da Virtuosa Benfeituria, ela se faz notar em passagem da dedicatória a
D. Duarte:

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Imagens funcionalistas da realeza

E pero senhor que eu bem entenda que destas cousas de que


elle (o livro) traucta, uos sooes per pratica bem grande douctor,
creo porende que uos sentirees prazer em ueendo como em
spelho em elle louuor de uossas boas obras. (ALMEIDA, 1981,
dedicatória)

O próprio D. Pedro se nos refere, em seu livro, a outras obras


que lhe embasam e com as quais a sua se articula. Indica aos interes-
sados em saber

queiandas benffeyturias outorgadas deuem seer a quall quer


stado (que) busquem o liuro da ensynança dos prinçipes, que
compos mestre frey thomas de aquyno, e o liuro do rregimento
dos prinçipes, composto per frey gill de Roma, (bem como o)
que foy ordenado per frey Ioham de galez. (ALMEIDA, 1981, L.
II, cap. XXVI)

A primeira, atribuída a são Tomás, é o De regimine principum ad


regem Cypri, da qual apenas as duas primeiras partes são da lavra do
doutor Angélico, tendo sido concluída por Ptolomeu de Lucca em fins
do século XIII. A segunda, a qual já me referi, foi igualmente composta
visando a educação de um rei, Filipe-o-Belo, de França, ainda em fins
de Trezentos (SARAIVA, 1988, p. 218). Vertida para várias línguas, ob-
teve larga divulgação em Portugal, havendo referências da existência
de exemplares seus nas bibliotecas monárquicas, dentre elas a de D.
Duarte (DIAS, 1982, p. 206-207). Este se lhe refere constantemente em
seu Leal Conselheiro, e o prólogo da Crônica de D. Pedro, de autoria de
Fernão Lopes, deve a “frey gill de Roma” grande parte de suas linhas
(MERÊA, 1919, p. 7). Quanto à terceira obra referida por D. Pedro, cuja
autoria atribui a um “frey Ioham de galez”, corresponde ao Commu-
niloquium, de Joannes Galensis, franciscano inglês que a compôs em
meados do século XIII (MERÊA, 1919, p. 7).
Ainda no nível formal, é notável a vinculação do Livro da Virtuosa
Benfeituria com o conjunto de obras a que se aludiu. D. Pedro a concebeu
nos moldes de um tratado escolástico, em que o tratamento de cada
assunto inicia-se por suas definições, seguidas da análise de suas partes
constitutivas, de onde deduz, por fim, as conclusões. Sua redação em
“língua vulgar” traduz um grande esforço de produção do autor (ob-
viamente articulado a seu intuito didático), tendo em vista que a língua
portuguesa não se mostrava apta, tanto ao nível do vocabulário quanto
ao discursivo, à exposição doutrinária (SARAIVA, 1950, p. 638).

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Mário Jorge da Motta Bastos


4.3 A realeza saneadora

Destacada a inserção da obra de D. Pedro na abundante litera-


tura político-moral produzida nos últimos séculos da Idade Média,
abordo-a ao nível da constituição de uma imagem precípua da realeza,
porque aglutinadora de suas várias funções, afirmando uma ação régia
cujo fim último é prover e preservar a saúde do reino. Os escritos do
infante constituir-se-iam, então, num “receituário” fornecido à realeza,
bem como à sociedade que pretendia fosse-lhe contígua, capaz de
promover a sanidade do corpo social. Quanto à noção de saúde aqui
adotada, tomo-a da obra de Cícero, traduzida por D. Pedro e também
ofertada a D. Duarte (relembro que o valor maior desta obra, segundo
o infante, consiste em dar ensinamento sobre a prática das virtudes):
“a ssaude se gouerna per conhecimento da desposiçom do seu corpo,
e por bõ esguardamento das cousas que nos sõe daproveitar ou em-
peecer [...]” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XXXVII).
Dois elementos, recorrentes no discurso de D. Pedro, até aqui
não explorados por seus estudiosos, impõem-se como fundamentais a
esta análise. Primeiro, a frequência de metáforas relativas à sociedade-
corpo,4 e a partir dela, à de saúde/doença da sociedade, bem como
a de benfeitoria-remédio para os males da comunidade. O segundo,
intimamente articulado ao anterior, diz respeito às várias críticas
tecidas pelo autor em relação a procedimentos e situações que, tendo
lugar no Portugal de sua época, impediam a plena realização da socie-
dade por si idealizada. Soa-me forte o apelo reformador e ideológico
do Livro da Virtuosa Benfeituria, patenteando um efetivo projeto de
intervenção sobre a realidade. Seu “efeito ideológico” manifesta-se
sobretudo na perspectiva de impor, como teoria geral da sociedade,
como expressão de um anseio coletivo, aquela produzida e vinculada
aos interesses das camadas dirigentes, cujo expoente régio o autor
pretende, com sua obra, elevar.
Consideremos, em primeiro lugar, o sentido e o poder conferidos
por D. Pedro ao exercício da benfeitoria, esta que, em sendo a viga-
mestra da arquitetura de sua obra, propõe que o seja da arquitetura
social. No Livro III, dedicado ao tratamento do ato de pedir, o autor
expõe a teoria da desigualdade social, e, a par dela, indica a origem
das deficiências que submetem a espécie humana. Citando Santo
Agostinho, afirma que “o homem em quanto guardou o mandado de
deos, uiuia seguro de toda myngua, en o parayso a seu prazimento”
(MARQUES, 1988, L. III, cap. II). Contudo, maculada pelo pecado origi-
nal, a natureza humana foi submetida a privações e reduzida a distintos
estados. Corrompida, afastada do Criador, necessita de direção, de

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Imagens funcionalistas da realeza

esclarecimentos norteadores de suas ações que neutralizem a igno-


rância e o mal e encaminhem a humanidade para a realização da per-
feição (causa necessária da produção da obra). Dedicar-se-á o autor
então, acima de tudo, a indicar o caminho da reafirmação do pacto
entre Deus e os homens, situando a esse nível a função da benfeitoria.
Segundo o infante, Deus fixou distintos graus nas sociedades huma-
nas, correspondendo a cada um certas necessidades, pois “nenhuma
condiçom he tanto ysenta que em faleçimento nom aia sua parte”
(MARQUES, 1988, L. I, cap. II). A preservação da espécie demanda a
existência de um elo que promova o auxílio mútuo entre os homens,
elo tal que para o autor não é fruto de um tácito acordo entre eles,
mas uma “natural afeyçom”, moldada na natureza, dada pelo Criador
e, portanto, inquebrantável:

(Deus) liou spyritualmente a nobreza dos prinçipes e a obe-


deença daquelles que os ham de seruir com doçe e forçosa
cadea de benffeyturia per a qual os senhores dam e outorgam
graadas e graçiosas merçees. E os sobdictos offereçem ledos
uoluntariosos seruiços aaquelles a que por natureza uiuem so-
geytos, e som obrigados por o bem que rreçebem. (MARQUES,
1988, cap. I)

Essa passagem é, em vários sentidos, elucidativa. Em primeiro


lugar advoga, ainda que sutilmente, a origem divina do poder real, a
partir da sacralização da estrutura e das relações sociais. A aliança é
posta por Deus como o são os distintos graus que compõem a socie-
dade, dentre eles o que confere a supremacia ao príncipe. Em segundo
lugar, essa mesma aliança, cujo efeito é, a priori, profano, em sendo
sacralizada impõe a sua preservação como elemento primordial do
pacto entre Deus e os homens, posto que através dela garante-se a
salvação do corpo social. Nesse sentido, afirma D. Pedro que a ma-
nutenção do pacto fundamenta o governo do mundo, e mais, “per
elle podemos aa fonte chegar, que sobre todos sparge suas augas, e
doutrem as nom rreçebe” (MARQUES, 1988, cap. I).
Tais elementos conferem a base do caráter reformador, pe-
dagógico e, quiçá, salvacionista, do discurso e da “leitura social”
do infante D. Pedro. A despeito da mácula original, ou em função
dela, há um grau possível e exigível de perfeição que deve pautar a
conduta humana. Expresso, no nível geral, no amor que une os ho-
mens, impele-os a entreajudarem-se, respeitando-se porém, no nível
específico, as virtudes e privações, poderio e submissão inerentes,
porque também naturais, a cada estado. Urge, portanto, ensinar aos

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Mário Jorge da Motta Bastos


homens, detalhadamente, a extensão, o sentido e a prática correta
das benfeitorias, já que todo o mal social advém da ignorância do seu
virtuoso exercício e, em contrapartida, este constitui-se no remédio
eficaz para todos os males.
Segundo o infante, toda “malleza he desnatural”, o que implica
em que padeça “moor emfermydade [...] aquele que em sua uida nom
pode conheçer a uertuosa perfeiçom das benfeyturyas”. Começa a
se estabelecer, assim, a equivalência entre mal, doença e pecado
(ser “desnatural”), vinculada ao desconhecimento das condições
do ato que traduz, repito, o próprio pacto entre Deus e os homens.
Tanto que, ao apontar o principal “padeçimento” que se abate sobre
os “maleçiosos benfeytores” e os “rreçebedores desconheçidos”,
imputa-lhes a “priuaçom do bem Infyndo, e penosas doores daquel-
les tormentos, que sse dam em o logar da mais profunda baixeza”, a
doença-sofrimento eterno reservada aos traidores, no inferno, “onde
Iudas [...] padeçe tormento que numca faleçe” (MARQUES, 1988, L.
VI, cap. VIII).
Isto posto, merece destaque a “leitura crítica” tecida por D. Pedro
dos males que afligiam a sociedade de sua época. Evocando, ainda uma
vez, o seu intuito didático e reformador, suas críticas indicam sempre
que a origem dos problemas e dificuldades reside no descumprimento
dos preceitos básicos norteadores das benfeitorias. Reforça-se, por-
tanto, na extensão, o apelo a que se façam cumprir.
Ao tratar do principal fundamento do benefício, afirma que seu
valor supremo reside na intenção do outorgante, sendo esta sua base
mais duradoura, tanto que nela deve fundar-se o agradecimento do
recebedor. A vontade, firmada no espírito, supera a obra, deleite da
carne. Contudo, segundo o infante, “o contrayro desto maginam os
moços [...] nom consyrando que outra cousa he mais nobre e preçiosa,
que aquellas que teemos e ueemos, [...] porque som cousas uaãs, en
que iaz fundada a nossa cobyça” (MARQUES, 1988, L. I, cap. XIII).
No mesmo livro, ao mostrar as condições do benefício, consi-
dera essencial que se outorgue o que ao outorgante pertence, e nunca
do alheio, uma vez que a intenção de fazer o bem a alguém não pode
estar fundada em mal feito a outrem.

Este camynho perem he pouco seguydo de muytos senhores


ao tempo dagora. Aos quaaes chegando os de sua casa, mos-
tramlhe como andam mal encaualgados, pedindo que tomem
os cauallos aos lauradores, por lhesseer feyta delles merçee.
(MARQUES, 1988, L. I, cap. XX)

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Imagens funcionalistas da realeza

A crítica de D. Pedro faz-se, aqui, mais ampla, pois atinge tam-


bém o rei que cede a tais impulsos, servindo a um estado com mal feito
a outro, contrariando a sua natureza e superior função de manter o
equilíbrio do corpo social. No mesmo capítulo, reafirma o caráter ne-
cessariamente natural do benefício, e o nefasto rompimento da cadeia
promovido pela intenção de tornar obrigatório o que deve ser movido
pela livre vontade. Tal era fato corrente em Portugal, segundo o infante.
As comunidades recebiam, a princípio, seus senhores, com grandes
dádivas e honrarias. Começando a sentir, porém, “a despeza que a
elles fazia pequeno proueito” (MARQUES, 1988, L. I, cap. XX), eram
constrangidos pelos senhores a perseverarem na prática, tornando-se
imposição o que a perfeição exigia que fosse natural vontade.
Haveria ainda outras referências mas, dada a frequência dos
temas, permito-me não reproduzi-las, impondo-se antes a reflexão
sobre o que foi apresentado. Por estas críticas D. Pedro situa o con-
teúdo histórico e a motivação doutrinária de sua obra, localizando e
indicando, segundo sua ótica, a raiz dos males que afligiam a socie-
dade de sua época. Tal “diagnóstico” recebe nova ênfase na “Carta de
Bruges”, na qual o infante propõe, explicitamente, como alternativa
à superação deste quadro, o estabelecimento de um rígido programa
de administração régia, ao menos planeado por D. Duarte.
Outro aspecto a destacar, intimamente articulado ao anterior,
diz respeito ao fato de que todas as críticas demarcadas historicamen-
te, isto é, todas as dificuldades que advinham ao Portugal do período,
concentram-se nos dois livros iniciais que compõem a Virtuosa Ben-
feituria. O autor dedica-lhes, respectivamente, ao tratamento do ato
em si, expondo o que é, verdadeiramente, o benefício, e como deve
ser dado pelo sujeito, constituído fundamentalmente pela nobreza.
Tais aspectos elucidam a sutileza com que o infante, atuando em prol
da ideologia senhorial, reforça, contudo, a supremacia do poder real,
afirmando a necessária ação interventora e equilibrante da realeza.
A ascensão do Mestre de Avis promoveu, no seu rastro, a de
uma nova nobreza, formada sobretudo pelos “filhos segundos” das
tradicionais casas senhoriais partidárias de Castela. “Esta nobreza
revelou-se tão turbulenta, opressiva e ambiciosa quanto a sua anteces-
sora” (MARQUES, 1987, p. 539). Ainda no reinado de D. João I impôs-se
a questão senhorial como principal entrave ao pleno fortalecimento
do poder régio, senhorialismo que, se no governo de D. Duarte en-
controu resistência (Lei Mental, proibição das cartas senhoriais de
privilégio, etc.), “campeou triunfante” (MARQUES, 1987, p. 539) no
reinado de D. Afonso V.

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Mário Jorge da Motta Bastos


É o intuito de dirimir essa contradição básica que acompanha
o processo de fortalecimento do poder real na Baixa Idade Média que
confere o tom central à obra de D. Pedro. Vimos que a fonte das com-
plexas dificuldades que assolavam a sociedade portuguesa do período
resumem-se, na concepção do autor, à “cobyça” que orientava as ações
dos senhores, estes que, por serem “mais chegados a deos que os outros
Homens [...] deue auer mayor partiçipaçom das suas uirtuosas condi-
ções” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. IX). O cerne das contradições e dos
conflitos sociais, em sua visão sublimada da sociedade, reside sobretudo
no plano moral: advêm do não cumprimento da perfeição das benfeito-
rias, desvio frequente (e mais grave!) entre aqueles que deveriam, acima
de todos, pautar sua conduta pela virtuosidade destas.
Subvertida a regra natural e social das benfeitorias, tônica da
conduta humana, impõe-se a função ordenadora do príncipe. Ocu-
pando os senhores, no estado moral, “que perteece aa gouernança
do mundo”, a posição e a condição de maior proximidade com Deus,
sobrepõe-se-lhes o príncipe, por sua “singullar perffeyçom” (ALMEIDA,
1981, L. II, cap. IX), que o obriga a socorrer a todos com “meezinha com
que uniuersalmente cada hum rreçeba rremedio ao seu padeçimento”
(ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XIV). Guardião da virtuosa benfeitoria, faz-
se o rei responsável pela saúde do corpo social.
Para entender a extensão desta imagem, é preciso notar que
sua sustentação reside em metáforas que articulam corpo-sociedade,
e, a par dela, saúde/doença do corpo-saúde/doença da sociedade.
Destaco algumas passagens em que se tecem. D. Pedro, em capítulo
onde dirime dúvidas sobre a possibilidade de fazer “bem” a homens
“maus”, afirma que tal deve ser feito, pois “o bem fazer proueytoso faz
abrandar as enfermydades” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XXI). Desde
que, ressalva, o ato não ponha em risco o bem coletivo, perspectiva
que obriga o “gouernador” da comunidade a “cortar os menbros do
corpo comum. Por sse nom corromper per a multidom de todos,
com a peçonha que trazem alguns” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XX). A
referência, e a imagem que evoca, assemelha-se a outra, devida a D.
Duarte. No Leal Conselheiro, ao tratar da urgência com que se deve
abandonar os locais infestados pela peste, ordena às autoridades con-
celhias que afastem das cidades e vilas os doentes, pois “ca veemos
cortar ou queymar hum menbro mal desposto por nom se perder per
ssa contagiom o corpo todo” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. LIII). Impõe-se
a relação entre doença e mal, ambos contagiosos e nefastos ao corpo
social, afirmando-se ainda a supremacia da saúde do todo sobre a
saúde das partes, premissa a que faz referência D. Pedro: “o bem da

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Imagens funcionalistas da realeza

comunydade seia soportado, aynda que o bem persoal de todo faça


sua fim” (ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XX).
Circunscreve-se, pois, a função do príncipe-físico do corpo
social. O infante, embora diferencie três formas pelas quais o gover-
nante seja alçado a seu posto, destaca, em referência à ascensão de
sua linhagem, que “algumas uezes naçe este geeral cuydado que os
prinçipes tomam por eleiçoões em que as comunydades os reçebem
por suas cabeças, outorgandolhe çerto poderyo sobre sy meesmos”
(ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XVIII).
Cabeça da sociedade, responsável pela manutenção da saúde
do corpo que o sustenta, dispõe o príncipe da virtuosa benfeitoria
como um antídoto universal, qual a “triaga” dos físicos, contra todos
os males que maculam e adoecem o corpo social: “curando suas
necessidades faremos em o geeral corpo bem a todolhos menbros,
squiuando aquella malleza (a qual se refere Platão dizendo) que a
maa uida da comunydade he a cousa peyor que sse pode padeçer”
(ALMEIDA, 1981, L. II, cap. XIV).
Tal ação saneadora transcende os limites da sociedade terrena,
projetando a função salvacionista da realeza, expressando seu cará-
ter sagrado na conquista e na realização da eternidade. Resgatada e
mantida a sanidade da comunidade, “os regedores [...] reçebem [...]
çerta e stremada morada em os çeoos, en que sem conheçimento de
tristura e de morte uiuem per sempre” (ALMEIDA, 1981, L. III, cap.
XIV), o paraíso, assegurado também aos fiéis súditos, cumpridores do
virtuoso ato do agradecimento. Preservada a aliança pela ação de um
rei que congrega, em si, a pretensa comunhão do reino, garante-se a
todos “seermos iuntados [...] ao nosso Infyndamente boo criador [...]
por cobrarmos herança em o seu glorioso regno, em que o ueiamos
craramente por sempre” (ALMEIDA, 1981, L. V, cap. XVII).
Redimida pela intervenção primordial do príncipe e pelo poder
da virtuosa benfeitoria, livre das paixões e contradições que maculam
a ordem social - santificada -, a sociedade caminha para o Criador,
restabelece o pacto e conquista, por fim, a saúde eterna.

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Mário Jorge da Motta Bastos


Notas
1
Ver MARQUES, 1978, p. 14.
2
Ver, a seguir, a p. 99.
3
Sobre a imagem “geminada” pela qual o rei ostentava uma personalidade natural
e humana, além de uma com valor político-teológico, em função do ofício, veja-se
Kantorowicz (1985).
4
A metáfora fundamenta a função organicista do Rei. Nos dez primeiros séculos do
cristianismo aplicou-se ao conjunto da Igreja, convertendo-se a partir daí numa
imagem claramente política. Na Península Ibérica, apoiou juridicamente o poder
régio, embasando as afirmações doutrinais do “Fuero Real” e das “Siete Partidas”
de Afonso X, o sábio, que conheceram versões portuguesas ainda no século XIII.
Veja-se Nieto Soria (1988, p. 90-97). Sobre as versões portuguesas, conforme Mar-
ques (1988, p. 167).

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Capítulo 5

a efetivação das imagens


Os jogos, nojos, plazeres, costumes, trajos, e leys, virtudes,
manhas, saberes, e bõs, e maos pareceres, são segundo
querem Reys: que como são inclinados, todos vemos
inclinar; tudo lhes vemos louuar, ainda que vão errados.
(RESENDE, 1752)

5.1 Aspectos da afirmação do poder régio

Se a representação ideológica do poder real, consubstanciada


em imagens, forneceu à realeza os pressupostos teóricos de seu real-
çamento, estas ganham um significado profundo, atingem sua máxima
eficácia quando aplicadas a um contexto histórico bem delimitado. A
construção da unidade pela centralização constituiu-se, no período
histórico do qual nos ocupamos, mais do que em palavras de ordem
a expressar um velho anseio, uma ação combinada em várias frentes
visando, pari passu a limitação dos poderes senhoriais (leigo e ecle-
siástico) e concelhios, a concentração das prerrogativas em torno
à monarquia. Superação histórica do Estado em sua conformação
feudal. Como processo que foi, conheceu fases, graus distintos, e uma
trajetória cuja plenitude demandaria da implantação efetiva do Estado
moderno no século XIX.1
Com a ascensão da dinastia de Avis, as restrições que ainda se
impunham à caracterização do reino de Portugal como Estado – a des-
peito das “memoráveis realizações” de D. Dinis e D. Afonso IV – foram
paulatinamente satisfeitas. Segundo Armindo de Souza,2 por esta altura,
Portugal constituía-se numa unidade política secular, limitada por fron-
teiras geográficas estabilizadas, e gerida por instituições permanentes
e impessoais. Sobretudo, habitava-o uma população que reconhecia,
consentia e julgava necessária a manutenção de uma autoridade, su-
perior e englobante, à qual ligava-se por vínculos de lealdade.
O Estado português iniciava, em 1385, o seu percurso, cabendo
aos sucessores imediatos de D. João I fortalecer o “adolescente” que
se tornaria “adulto” sob D. João II. Contudo, ainda no século XV, restos
de feudalidade disputar-lhe-ão territórios e súditos, dispersando a
autoridade e a obediência direta, conflito no seio de uma classe domi-
nante que, irredutível sob Afonso V, viria a ser “civilizada” pela ação
determinada de seu filho, “segundo os modos da modernidade”.3

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110
A efetivação das imagens

Sem perder de vista a complexidade deste processo, nas suas


várias faces e fases, concentramo-nos aqui na abordagem daqueles
elementos fundamentais à análise de nosso objeto. Consideremos,
como orientação inicial que norteia e traduz o processo de centrali-
zação régia, a concentração da autoridade política num polo único,
restritiva e a caminho excludente das outras instâncias de poder no
interior do território nacional. A par da consecução destes objetivos
pelo viés institucional – organização do Estado e da burocracia, recur-
so aos “instrumentos de controle social” (MATTOSO; SOUSA, [19--],
p. 363-365) – destaca-se a monarquia (também ele, o rei, a rigor, uma
instituição!) como vetor primordial da unidade da nação, que se nele
não se esgota, foi seu principal arranjador.
Unidade embasada na afirmação de uma ordem interna, agluti-
nadora das diferenças e disparidades locais que, se não são de todo
suprimidas, caminham para integrar um “uno”. A monarquia “soma”
o reino, somatório que articula no todo as diferenças das partes.
Explicita e afirma representar o comum, o interesse do todo, consubs-
tanciado no bem supremo da ordem redentora do caos, posto que é,
a um tempo, “certeza de sentido, eficácia do controle e sacramento
da unidade” (MATTOSO; SOUSA, [19--], p. 360). Vimos a referência,
sobretudo teórica, na função “corporativa” do rei.
No entanto, dos séculos XIV ao XVI, principalmente a partir
de D. Dinis, o primeiro a se designar como “cabeça e começamento
do povo todo” (MATTOSO; SOUSA, [19--], p. 371), a teoria buscou,
efetivamente, praticar-se. Pôr olhos, ouvidos e mãos do rei em todo
lado, tarefa expressa na referência corporativa que, pragmaticamente,
traduzir-se-ia por centralizar. Nesse sentido, e mantendo-se a referên-
cia à construção da unidade pela manutenção da ordem, destaca-se o
aperfeiçoamento da burocracia estatal em níveis vários, como o das
instituições e agentes correspondentes. Apoiados na fixação do direito
comum, aprimoraram-se os mecanismos judiciais, administrativos,
militares e fiscais, através dos quais a monarquia infiltrava-se nas (ou
sobrepunha-se às) duas grandes formas de organização sociopolítica
existentes no Reino: os senhorios, e sobretudo os concelhos.
Ainda que o “item” da saúde pública viesse a se constituir, paulati-
namente, num problema de âmbito nacional, as primeiras intervenções
régias que circunscreveram o seu campo situam-se no âmbito dos mu-
nicípios, o que aliás não é estranho ao próprio caráter das epidemias.
Lisboa, como vimos, capital do reino e principal porta de entrada da
doença, foi o palco de referência para as primeiras manifestações da
ação centralizadora régia, nesse nível, capítulo particular que integra,
no entanto, o processo histórico mais amplo da paulatina redução da

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Mário Jorge da Motta Bastos


autonomia concelhia. Cumpre, inclusive, considerar, neste aspecto, que
se o exemplo típico dos concelhos concerne aos do interior do reino,
as cidades litorâneas e as do sul igualmente adotaram a organização
concelhia, sendo sua função econômica tão importante quanto a polí-
tica para o realçamento da monarquia. Não se trata de retomar aqui a
tese desgastada, sobretudo pelo caráter sistemático e geral que confere
a um fenômeno conjuntural, da aliança entre os reis e os municípios
contra o poderio senhorial (CARVALHO, 1989, p. 97-98).4 No entanto,
aqueles constituíram-se em verdadeiros polos de transmissão do poder,
lugares de eleição da corte régia para sua fixação e, portanto, da con-
centração das autoridades e da burocracia, civil e militar, bases para
a extensão da justiça e da fiscalidade régia para todo o reino. Função
política, também, porquanto contribuiu para reforçar a uniformização:
os agentes monárquicos orientam-se por modelos e princípios únicos,
pela mesma linguagem, e pelos mesmos métodos e padrões de aferição,
que daí irradiam-se para os campos. Segundo José Mattoso,

a maior parte da documentação régia pressupõe uma menta-


lidade a uma problemática urbana. É o que acontece particu-
larmente com a legislação, sobretudo a partir de Afonso III,
como se poderá concluir, por exemplo, ao verificar que só se
concebe a justiça como sediada na vila, isto é, em meio urbano.
(CARVALHO, 1989, p. 211)

E se, desde o início da Monarquia, a administração central se


fez presente na dos concelhos (LANGHANS, [19--], p. 454) data jus-
tamente do reinado de D. Afonso III o início do seu aperfeiçoamento,
que não mais do que traduz a intervenção, paulatina mas decidida,
de um Estado que se efetiva na redução das autonomias locais. Sob D.
Dinis, a estratégia real da integração concelhia ao organismo político
mais vasto que se vai, assim, instituindo, ganha foros de amplitude e
complexificação. Além da imposição dos funcionários realengos nos
campos judicial e fiscal, acentua-se a uniformização, pela fixação de
regras gerais que pautam o julgamento dos protestos concelhios. Estes
se defendem nomeando procuradores permanentes, junto à corte, mas
evitam raras vezes o desrespeito pelos seus privilégios e foros antigos
em nome da uniformidade. Como corolário – e manifestação dúbia
de uma autoridade estatal matizada pelo “feudal” e pelo “moderno” –
D. Dinis afirma sobre os concelhos uma sua dupla dependência, a da
fidelidade fundada na homenagem, que os constitui como vassalos
coletivos do rei, e uma “natural”, que qualifica cada um de seus mem-
bros como súditos régios (MATTOSO; SOUSA, [19--], p. 287).

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A efetivação das imagens

Ação efetiva, portanto, ainda sob os reis da primeira dinastia.


Esmorecida sob D. Fernando, às voltas com os conflitos externos,
retomar-se-ia o processo de centralização com grande impulso a partir
da ascensão da dinastia de Avis.
Em primeiro lugar, e fortalecendo nesse nível a tendência
unificadora, a entrada gradual das ordens religiosas militares para o
senhorio régio reduziu a sua supremacia um grande número de conce-
lhos – situados sobretudo no Centro e no Sul – aquelas anteriormente
submetidos (MARQUES, 1987, p. 315). E mesmo naquelas “terras”
que não estavam sob sua dependência direta, e portanto sujeitas a
jurisdições privadas (como a dos “donatários”), os “provedores” do
rei tomavam conhecimento dos recursos e das queixas dos povos
(LANGHANS, [19--], p. 454).
Destacamos, na sequência, as grandes linhas pelas quais vai-
se processando a coarctação da autonomia municipal. Como um seu
elemento, sem dúvida, primordial, a fixação dos códigos de leis gerais
do reino foi, pouco a pouco, fazendo com que estas se impusessem
sobre os costumes e posturas locais, emanadas das autoridades con-
celhias. Por seu turno, muitas das leis que, insertas nas “Ordenações”,
foram alçadas à aplicação geral, originaram-se de dispositivos régios
preliminarmente fixados para o nível local.
Ao longo do período, a presença dos funcionários régios, de
maior ou menor antiguidade, nas localidades, se não conheceu um sig-
nificativo crescimento numérico, tendeu ao alargamento das funções
e consequentemente da sua ingerência. Os “corregedores”, instituídos
por D. Afonso IV (MARQUES, 1987, p. 203), atingiram amplos poderes
de intervenção. Inspecionavam a justiça da administração concelhia,
exigiam eficácia na atuação dos magistrados locais, julgavam as con-
tendas que envolvessem os privilegiados, supervisionavam o processo
eletivo da vereança, confirmando, por delegação régia, a ocupação dos
cargos etc. “Dos seus abusos de ingerência no poder local sobram os
testemunhos, sobretudo em artigos de Cortes” (MARQUES, 1987, p.
205). Atestando a concentração da autoridade do “corregedor”, tanto
os “juízes ordinários” quanto “os de fora” tenderam a sujeitar-se-lhe
(LANGHANS, [19--], p. 454).
Quanto aos “juízes de fora” (ou “juízes por el-rei”, ou “juízes
de fora parte”), foram estabelecidos ainda no reinado de D. Dinis,
generalizando-se pelo reino sob D. Afonso IV. Se no princípio estes,
apenas esporádica e excepcionalmente, sobrepunham-se aos “juízes
ordinários” (os antigos “alvazis” ou “alcaldes”), viriam até mesmo a
ser designados pelo rei em substituição aos de eleição camarária. Tal
ocorreu em Lisboa, Porto, Santarém e outras localidades (MARQUES,

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Mário Jorge da Motta Bastos


1987, p. 202). Com funções militares, nos concelhos, mas de nomeação
régia, havia ainda os “alcaides”. “Acantonados nos seus castelos, cons-
tituíram uma ameaça muito menor para as vereações que os outros
oficiais régios” (CARVALHO, 1989, p. 100).
Mas a afirmação do poder régio, na redução paulatina da
autonomia concelhia, não se valeu apenas da implantação de seus
representantes em nível local, posto que atingiu a própria dinâmica
da administração municipal. Nesse sentido, D. João I, por carta régia
de 12 de junho de 1391, endereçou aos concelhos do reino a chamada
“Ordenação dos Pelouros”, visando regulamentar as eleições cama-
rárias.5 A tendência, anteriormente manifesta, da concentração do
poder e dos cargos em mãos de uma oligarquia dos “homens-bons”6
viria a reforçar-se.
As antigas assembleias concelhias, da qual participavam todos
os vizinhos, em local público, tenderam a desaparecer do cenário
municipal. Quanto à composição das assembleias regulares, ou “ve-
reações”, seu efetivo restringiu-se aos que efetivamente detinham
o governo – “os juízes, os vereadores, o procurador, o escrivão da
câmara e, por vezes, o representante do poder central” (MARQUES,
1987, p. 200). Quantos aos primeiros, em geral em número de dois, do
crime e cível, eram a princípio eleitos pelos “homens-bons”, e secun-
dados pelos vereadores, seus auxiliares nas tarefas burocráticas e
administrativas. O procurador, defensor dos interesses do concelho,
representava-o em Cortes, cabendo ao escrivão o registro dos atos
da administração.
Com a “ordenação” de D. João I, todo o processo de designação
dos cargos foi alterado. Coube, como incumbência às vereações, a
fixação de uma lista de elegíveis para os cargos municipais, que pas-
sam a ser sorteados entre estes. Posteriormente, quando da inserção
da “carta régia” nas Ordenações Afonsinas,7 seu conteúdo foi alterado
para fazer depender o rol dos elegíveis da decisão de seis “homens-
bons”. Quanto ao cargo de procurador, tornou-se, no século XV, de
nomeação régia, efetivada a partir de D. Duarte (MARQUES, 1987, p.
200). Portanto, a administração municipal foi-se concentrando numa
oligarquia restrita, cada vez mais ligada ao monarca:

O caso mais típico que nos ocorre é o da vereação sintrense,


que vemos estar nas mãos dessa elite ao longo dos séculos
XIV e XV, para, no final do primeiro quartel do século XVI, cair
na posse de escudeiros e fidalgos da casa real. (CARVALHO,
1989, p. 91)

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A efetivação das imagens

Em função do quadro acima exposto, Armindo de Sousa (MAT-


TOSO; SOUSA, [19--], p. 531-532) destaca que, entre os séculos XIV
e XV, pouco restou da antiga autonomia concelhia. Dependentes e
fiscalizados, o poder autárquico restringiu-se às “tarefas menores”,
dentre elas a vigilância da saúde e da ordem pública. No entanto, con-
trariando a referida desimportância relativa do tema da saúde pública,
em função até das frequentes epidemias, o poder central manifestar-
se-ia, também nesse nível, em sua ação centralizadora.
A incidência das epidemias demandou, por toda a Europa, com
maior ou menor rapidez, a reação das autoridades a esse elemento
promotor de uma constante desestruturação social. A primazia oci-
dental coube à cidade de Messina, que ainda nos primeiros dias de
outubro de 1347 expulsou de seus portos as galeras genovesas con-
taminadas pela peste (ROQUE, 1979, p. 169). Ora, na base da reação
à doença pressupõe-se, antes do mais, a compreensão que dela se
expressa, o que não é unívoco, como já afirmamos. Nesse sentido,
reagir-lhe implica em requisitar e afirmar socialmente um poder e
uma autoridade para fazê-lo. Sua ação consiste em circunscrever os
procedimentos definidos como necessários para tal fim, embasados
numa compreensão da doença que, dessa forma investida, impõe-se
como única possível, qualificada. Portanto, se a doença, de per se, não
funda poder e autoridade, reforça-os, em sua expressão, na reação que
suscita e promove. Flagelo comunitário, urbano e local, na origem,
demanda reações primeiras nesse nível. Contudo, e a própria expe­
riência o indicava, um surto primário era ameaça geral, foco irradiador
que punha em risco a integridade do conjunto.
Em Portugal, se não foi o Estado centralizador sob Avis que
fundou o “campo” da saúde pública municipal, este se definiu e
especializou-se sob sua ingerência, contribuindo, nesse nível, para
afirmar a supremacia do Estado.

5.2 Vetores da intervenção régia em matéria de saúde

A intervenção do poder régio sobre os concelhos, no que diz


respeito ao estabelecimento das medidas de saúde pública, deu lugar
a um “diálogo” constante entre as duas instâncias de poder ao longo
do período. Nesse contato, se situações houve em que a urgência da
ação demandou a iniciativa das autoridades locais (TAVARES, 1987,
p. 32),8 estas frequentemente consultavam previamente o soberano,
propondo medidas e aguardando a sua deliberação. No sentido oposto,
muitas vezes a realeza antecipava-se às consultas, determinando, em
geral através de cartas régias emanadas da Chancelaria, a deliberação

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de medidas que, no entanto, só seriam aplicadas depois de sua apro-
vação. Casos houve em que o poder central, como veremos, fixava os
regimentos sem anuência ou consulta prévia às municipalidades.
Em 6 de outubro de 1437 reuniu-se a vereança numa sessão
“ampliada”9 na Casa da Câmara de Lisboa. Seu objetivo era dar cum-
primento a uma carta régia, recebida na noite anterior. Através dela D.
Duarte determinava a proposição de medidas para evitar a dissemina-
ção da doença, que por essa altura introduzia-se em Lisboa, e grassava
já em Ceuta e no Algarve. A resposta régia, por intermédio de carta não
datada, aprovou as medidas propostas, não sem modificações (BAR-
ROS, 1896, t. II, p. 199). Através de duas cartas régias consecutivas,
(datadas aos 12 e 17 de julho de 1480), D. João II repreendeu veemen-
temente os magistrados do concelho de Évora pelo negligenciamento
das medidas de prevenção sanitária, anteriormente fixadas, o que
permitiu o contágio da cidade, a partir de Lisboa (BARROS, 1896, t.
II, p. 200). Por carta régia de 7 de dezembro de 1537, D. João III enviou
ao concelho de Carvalho o seu “físico”, Francisco Feliciano “o quall
curou nesta cidade [Lisboa] em outras por meu mandado os annos
pasados” (CARVALHO, 1943, p. 63-64), com ordens de estabelecer as
medidas para livrá-la do contágio, que então se iniciava.
Aquelas conjunturas nas quais a presença do flagelo se fazia
mais incisiva foram, obviamente, as mais favoráveis ao incremento das
determinações régias. Assim, apenas nos quatro primeiros meses da
epidemia que assolou Lisboa, no biênio de 1520-21, compulsamos cinco
cartas consecutivas pelas quais D. Manuel estipulou medidas diversas
no intuito de erradicar o contágio. Na última, datada de 4 de julho de
1520, respondeu negativamente à consulta da câmara sobre a possibi-
lidade de celebrarem, com festas públicas e procissões, o declínio do
contágio.10 Contudo, não só a elevada frequência da doença, quanto o
pressuposto de que podia, e devia, ser evitada, originou prescrições
que parecem transcender o momento de sua efetiva presença. Atesta-o
sobretudo as reiteradas determinações régias, e a pressão sobre as
autoridades concelhias, no sentido da provisão da limpeza urbana, bem
como da prevenção, tanto contra a “importação de peste estrangeira”,
quanto contra a disseminação nacional de epidemias locais.
Quanto aos “canais institucionais” pelos quais se conduzia tal
diálogo, eles não nos surgem claros e precisos. Em geral, as determina-
ções régias seguiam para as localidades em forma de missivas, alvarás
e posturas genericamente endereçadas às Câmaras. Admoestava-se o
conjunto da governança, exigindo o zelo no cumprimento das medidas.
Sabemos, por carta régia de 1 de dezembro de 1485, que D. João II re-
quisitou, junto à Câmara de Lisboa, ascendência direta no que tangia

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A efetivação das imagens

às provisões sobre a limpeza da cidade, isentando-a de ordenações da


Casa do Civel e da Suplicação: nom qremos que outrem entenda em
ello nem proveja sobre o que fezerdes sse não nos” (OLIVEIRA, 1887,
t. 1, p. 355).
No entanto, e a despeito de certa imprecisão, é possível discer-
nir-se a paulatina criação e/ou especialização de ofícios e instituições
na área da saúde, com base em iniciativas régias. Vejamos o caso do
Provedor-Mor da Saúde. A primeira referência à função surgiu-nos na
fundação do “Tribunal da Saúde de Lisboa” por D. João III, em 1526
(MEIRELLES, 1866, p. 62- 64). D. Manuel não lhe fez menção a quan-
do da reorganização por ele promovida nos serviços municipais da
cidade, em 1509, restringindo-os a quatro “pelouros”, entre os quais
o da limpeza urbana.11 Contudo, Eduardo Freire de Oliveira (1887, t. I,
p. 452-453) destaca que, dentre as atribuições primitivas do concelho
lisbonense, e uma das mais importantes, constava a superintendência
do serviço sanitário, incumbência que recaía sobre um dos vereadores
através de sorteio anual. Empossado, intitulava-se Provedor-Mor da
Saúde e sua ação, sujeita a posturas e regimentos sancionados pelo
poder central, transpunha os limites da cidade e do termo. Competia-
lhe, por resoluções régias, o provimento de todos os ofícios ligados à
saúde, tanto nos portos do mar e ilhas adjacentes quanto no interior
do continente. De certo, sabemo-lo atuante por alturas de 1571. Aos 7
de janeiro, D. Sebastião, por alvará endereçado à vila de Autoguia e a
várias outras do reino, determinou que as autoridades locais cumpris-
sem com diligência as disposições do Provedor-Mor da Saúde de Lis-
boa, que por ordem sua as fixava no intuito de proteger o reino contra
a epidemia que atingira Peniche (OLIVEIRA, 1887, t. I, p.452-453).
Com relação à cidade do Porto, instituiu-se, em data incerta no
século XVI, o cargo de “físico da saúde da cidade”, competindo ao rei
o seu provimento, que podia ser de duração vitalícia. Cerca de 1575,
passou a ser secundado por um cirurgião, cujos vencimentos, pagos
pela câmara, dependiam de provisão real (SILVA, 1978, p. 25-28).
Além da especificação de cargos que, municipais mas submeti-
dos às determinações régias, impunham-se como vetores da política
centralizadora, originaram-se dela também instituições, como os
hospitais para epidemiados, expressão sobretudo das medidas de
isolamento, das ações voltadas para segregar, isolar o “mal”. Nesse
sentido, data de 1526, em Lisboa, a fundação do “Tribunal da Saúde”
(MEIRELLES, 1866, p. 62-64), primeira manifestação do poder central,
tímida e circunscrita, é certo, a exercer um controle sobre o obituá-
rio da população. Tratava-se, neste caso, de manter um registro das
“causas mortis” diárias na cidade, visando identificar, na origem, as

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“mortes suspeitas” denunciadoras da possível eclosão de um surto
epidêmico. Considerada a infestação frequente da capital, D. João III
determinou a instalação, na igreja de são Sebastião da Padaria (locali-
zada no centro da cidade), de um grupo de oficiais responsáveis pela
provisão da saúde pública. Manter-se-iam reunidos, diariamente, dois
provedores, um escrivão, um meirinho e um físico, supervisionados
pelo provedor-mor da saúde da cidade. Haveria em cada freguesia
um “cabeça da saúde”, 29 no total, cuja função residia em registrar
os óbitos diários em sua circunscrição, a partir das certidões juradas
expedidas pelos físicos, em que estes especificavam a causa da morte.
Em não sendo “suspeita” (morte súbita, com dores e febres!) o “cabe-
ça” liberaria o enterro – dando “escrito pera o coueiro aver de fazer
coua” (MEIRELLES, 1866, p. 64). Nas reuniões diárias, realizadas no
“Tribunal”, cabia-lhes, por fim, comunicar aos provedores o número
de mortes registradas, entregando-lhes as certidões. Sabemos, neste
caso, que sobre as rendas da cidade recaía o pagamento dos oficiais,
à exceção dos “cabeças da saúde”, pagos pelo erário régio. Mas se o
“diálogo” entre o rei e os concelhos, a fixação das medidas, a criação
dos cargos e instituições foram os veículos da política de centralização
no campo da saúde pública, estes se orientaram pela (e afirmaram
socialmente) concepção régia da doença.

5.3 “Taumaturgia” régia e restauração do corpo social

A produção de um discurso régio sobre a doença, veículo de


sua expressão e, logo, da determinação de medidas e condutas que
se impunham em oposição ao “mal”, embasou-se na apropriação dos
discursos religioso e médico, amalgamando-os, revestindo-os da sua
autoridade. Contudo, e como suposto do próprio conceito, o poder
central os reequaciona, oscila entre polos, investe-os diferencialmente,
considerando as contradições de fundo que expressam. A apropriação
instaura um novo discurso, absoluto, posto que submetido na prática
à lógica do poder.
Logo na fundação da dinastia de Avis, a intervenção de Deus
no curso da história materializada com uma “peste-castigo” realçou
que, para além do apoio “popular”, o divino era favorável à ascensão
do Mestre de Avis, destacando a preservação da Aliança na base da
instauração da nova casa dinástica. Segundo Fernão Lopes, sofria a
cidade de Lisboa com a falta de mantimentos devido ao cerco imposto
por D. João de Castela (em fins de maio de 1384), minando-se assim
paulatinamente a sua capacidade de resistência. Desesperançosos de
outro recurso, veio o divino, quando

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prougue aaquell Senhor que he Primçipe das hostes, e Vemçedor


das batalhas que nom ouvesse hi outra lide nem pelleja senom
a Sua; e hordenou que o angio da morte estemdesse mais a sua
maão e percudisse asperamente a multidom daquell poboo.
(LOPES, 1991, v. I, p. 310)

Imediatamente o fogo da peste ateou-se no arraial e, realçando


o seu caráter punitivo, atingiu apenas os castelhanos, que morriam
diariamente às centenas, não afligindo dos portugueses nem mes-
mo os prisioneiros deliberadamente colocados em contato com os
doentes. Perseverante, o rei manteve o cerco, até que, contaminada,
a rainha entendeu “que nom prazia a Deos de alli mais estar” (LOPES,
1991, v. I, p. 312). A tribulação imposta à cidade, livre do cerco no
início de setembro, se traduz num elemento de propaganda e reforço
da piedade geral, e do caráter messiânico da realeza nacional. No
dia seguinte à partida do exército invasor, ordenou-se uma grande e
devota procissão de graças, à qual acorreu, além de todo o povo, o
bispo da cidade e o mestre, todos descalços, partindo da Sé à igreja
da Santíssima Trindade. Ao cabo, pregou-lhes frei Rodrigo de Cintra,
franciscano mestre em teologia, fazendo do futuro D. João I um rei
bíblico, e de Lisboa uma Jerusalém cercada e afligida, mas salva afinal
pelo apoio iniludível do Senhor ao seu povo eleito. Reforçados Nele,
e certos do seu rei, posto que o juízo divino vaticinou a injustiça da
causa castelhana, alçaram todos “as mãaos ao çeeo dãdo muitas gra-
ças ao alto Deos que os assi desabafara do poder de seus emmiigos”
(LOPES, 1991, v. I, p. 320).
Pouco mais de um ano volvido o episódio, o já então aclamado
rei, D. João I afirmava, por carta régia endereçada a Lisboa, sua função
de defensor da ortodoxia religiosa, e na extensão, da saúde da cidade
que se alçava como cabeça do reino. Através da missiva, determinou
o expurgo dos erros de idolatria que a maculavam, e que na perspec-
tiva régia originavam a “doença-castigo”. Condenou em especial o
pecado da blasfêmia, em função do qual “deos envya ao poboo fomes,
e pestelençias e terramotos [...]”.12 Destaque-se que a decisão real
confirmou o dispositivo camarário estabelecido aos 14 de agosto de
1385, buscando os “homens bons” do concelho, através dele, dada a
eminência da guerra contra Castela (que teve lugar no mesmo dia, em
Aljubarrota), garantir o apoio da misericórdia divina, “a que solamente
o Regno e a cidade [Lisboa] pode livra” (OLIVEIRA, 1887, t. I, p. 20).
Sancionados pela “realeza cristianíssima”, tais dispositivos viriam a
integrar as Ordenações Manuelinas (ORDENAÇOENS DO SENHOR REY
D. MANUEL, 1984, L. V, tits. XXXIII - XXXIIII e XLV).

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Mário Jorge da Motta Bastos


Mas, se na referência acima a realeza de Avis, em seu contexto
fundador, integra globalmente, através de seu cronista, umas das
perspectivas básicas da concepção cristã, a peste atinge e explicita
o pecado, punindo o estrangeiro invasor – o segundo rei da dinastia
daria ensejo à primeira matização dos discursos, “instaurando” a
concepção régia, fadada a largo futuro. No seu Leal Conselheiro (PIEL,
1942, cap. LIV, p. 224 – 230), D. Duarte dedica-se a abordar a licitude
da fuga dos centros contaminados pela peste. A referência, de per
se, pressupõe o peso da condenação moral da atitude pelo discurso
cristão, contrária ao conselho primeiro, e velho de séculos, avança-
do pela medicina. A opinião régia era, desde logo, a de que fugir da
epidemia era atitude não só lícita, como de obrigação, até para com
Deus. Concentremo-nos nos pontos cruciais de sua argumentação,
desenvolvida nos moldes escolásticos.
Observa o autor as quatro vias principais que estruturam o
debate, baseando em cada ponto isolado, e no conjunto, a sua con-
clusão. O primeiro, define-o como a razão. Aqueles contrários ao ato
afirmavam que o contágio era fruto da decisão divina, que determinava
os que seriam feridos pela peste. Portanto, de nada adiantava a fuga,
posto que impossível esconder-se da visão de Deus. D. Duarte refuta-o,
considerando que se o homem é regido pela luz do entendimento com
que Deus o dotou, seria lícito perseguir as alternativas mais eficazes
à preservação de sua vida, desde que a via não contrariasse o serviço
de Deus e a sua própria honra. Contrário a Deus seria a adoção de
um procedimento pelo qual a espécie humana se comportasse como
as “brutas anymalias” (irracionais por deliberação divina), não re-
conhecendo o caráter contagioso da doença, e de que era, inclusive,
mais frequente nuns locais que em outros. Nesse sentido, conclui, em
fugindo-se à peste não se menospreza o poder divino, antes vale-se
o homem do entendimento de que foi por Ele dotado, distinguindo-o
das outras espécies. Ressalte-se, apenas, que a ascendência divina é
tema de debate racional, e que ela não é, em última análise, negada,
já que embasa o argumento do autor.
A segunda via do debate define-a como de autoridade, tanto a
humana quanto a divina. Investe, da primeira, os físicos, e a sua in-
dicação hipocrática, negando-a aos frades e clérigos, que com o seu
errôneo conselho “foram costumados em ellas [pestenenças] e hauer
dellas muytos temporaes proueitos.” (PIEL, 1942, cap. LIV, p. 225).13
Relembra ainda, como autoridade humana, o seu próprio pai, D. João
I, que durante a conquista de Ceuta, a despeito da “assaz mui grande
pestellença”, ordenou a todos que se mantivessem em seus postos
uma vez que cumpriam uma missão divina. Considerando-se o que foi

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A efetivação das imagens

destacado, reafirma a impossibilidade da fuga quando é um desserviço


a Deus, e a obrigatoriedade portanto da permanência sobretudo dos
“confesores e dos que teem curas das almas” (PIEL, 1942, cap. LIV,
p. 225). Por fim, neste item, recorre à autoridade divina expressa em
várias passagens bíblicas, condizentes com a prática humana da fuga
em situações de perigo: “nom tentaras teu deos”, “quando uos perse-
guyrem em huma cidade fugi pera a outra”, a fuga de Nossa Senhora
quando do massacre dos inocentes, e ainda o conselho e a fuga de Lot
à destruição de Sodoma e Gomorra” (PIEL, 1942, cap. LIV, p. 229).
Os terceiro e quarto itens são os dos exemplos e da experiência.
Reafirmando a certeza do contágio, mas também a necessidade de se
implorar a proteção divina contra a peste, sustenta-se nos exemplos
dados pelas grandes personalidades, como os papas e os cardeais,
que não se furtavam ao abandono dos locais infestados. Quanto à
experiência, refere-se à sua própria, e de sua corte, que praticavam
sempre a fuga, e por isso morriam poucos. Durante a epidemia de
1415, em Lisboa, da corte que abandonou a cidade permaneceu
apenas a rainha, que morreu do contágio. Debalde, D. Duarte seria
colhido, e morreria, em plena fuga da peste de 1438 (ALMEIDA, 1977,
p. 186). Concluindo, considera o autor que, à exceção dos que eram
obrigados a permanecer, não fugir à peste era antes um ato peca-
minoso, tentação a Deus e autoentrega em suicídio, contrariando
a perspectiva da morte santificadora, do sacrifício divino do holo-
causto expresso pelo discurso religioso. No mesmo capítulo (PIEL,
1942, cap. LIX, p. 226), considera haver quatro distintas origens
para a peste: a primeira, a determinação divina, como aquela que
atingiu Israel pelo pecado do rei Davi; a segunda, a influência astral,
como na Peste Grande prognosticada pelos astrólogos; a terceira,
a corrupção das águas, como sucedia frequentemente em Veneza e
em Roma; a quarta, o contágio, a causa mais corrente das epidemias
que assolavam o reino.
Naturalização da doença? Atenuação do poder da cura divina?
Em outro capítulo da mesma obra, D. Duarte diagnostica um mal cor-
rente que afligia a sociedade de sua época, doença do espírito, “pecado
de tristeza que procede da voontade desconcertada, que ao presente
chamam em os mais dos casos doença de humor manencorico [...]”
(PIEL, 1942, cap. XIX , p. 67).
Doença, pecado e desequilíbrio mais uma vez se articulam. O rei
sofreu de melancolia por mais de três anos, e “per special mercee de
noso senhor deos houue perfeita saude” (PIEL, 1942, cap. XIX, p. 67).
Delineia-se a intervenção reparadora que o governante a si requisita,
fornecendo-se como exemplo, modelo, orientação.

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Mário Jorge da Motta Bastos


Com a teençom que primeiro screvi, de alguns desta breue e
sympres leitura filharem enssynança e avisamento, prepus de
vos screver o começo, persseguimento e cura que del houue,
por tal que mynha speriencia a outros seja exempro (PIEL,
1942, cap. XIX, p. 68).

Propõe-se de espelho à sociedade, refletindo para a totalidade


do corpo social sua sintonia com o momento vivido e, sobretudo –
posto que demarca a função saneadora – enraizando na sua purificação
individual o caminho para o resgate da comunidade adoecida. Abor-
dando as causas que o levaram a abater-se pelo “humor manencori-
co”, afirma que a tristeza se lhe acresceu quando vivenciou um surto
epidêmico, sentindo-se atingido pela doença. Tomou-o um

tam rryjo penssamento com receo de morte, que nom soomente


temy aquella, mes a que todos scusar nom podemos, penssa-
mento na breveja da vida presente. E aquel penssamento entrou
em meu coraçom, que per seis meses hum pequeno spaço nunca
o del pude afastar, tirandome todo o prazer e acrecentandome
a mayor tristeza segundo meu juyzo que auer podia. (PIEL,
1942, cap. XIX, p. 70)

Procurando o conselho dos físicos, estes lhe prescreveram


vida tranquila, dedicada aos prazeres mundanos da caça, da mesa
farta, do ouvir boa música. No entanto, relata, mais útil lhe foi o do
seu confessor, e pela observância de uma conduta virtuosa, casta,
ordenada, entregue a orações e confissões diárias, recobrou a saúde
(PIEL, 1942, cap. XIX, p. 70).
Não se trata, portanto, de renegar o recurso ao sagrado, o refor-
ço da fé e da piedade individual como pauta fundamental à preservação
da ordem e da saúde, mas de ancorá-lo num suposto livre arbítrio,
que retira força das referências médica e religiosa submetendo-as à
deliberação monárquica. O discurso régio elabora-se num processo
dialético no qual investe e desinveste as autoridades concorrentes,
impondo a sua, reforçada pelo poder do Estado. A misericórdia divina
mantém-se desejada, fundamental, e o resgate da sociedade pecadora
é dever, e força, de um rei cristão.
O próprio D. Duarte, por carta régia anteriormente referida14
aprovou, dentre as medidas propícias ao livramento de Lisboa do
contágio, em 1437, a realização de missas diárias em todas as igrejas
da cidade, bem como uma procissão geral todas as sextas-feiras. D.
Afonso V, em fevereiro de 1453, convocou a cidade do Porto, através

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A efetivação das imagens

das autoridades concelhias, a realizar procissões e preces rogando a


Deus que livrasse Ceuta do contágio que a assolava.15 D. João II, por
carta régia de 6 de janeiro de 1484, reeditou as medidas fixadas pelo
fundador da dinastia. Ordenou à câmara de Lisboa que inquirisse sobre
todos os pecados e males cometidos contra Deus na cidade, aplicando
as penas devidas, haja vista constituírem-se numa “das principaaes
coussas per que nosso Senhor permite do trabalho da pestelença
andar [nela] tanto tempo ha [...]” (OLIVEIRA, 1887, p. 285).
Doze anos volvidos, e devido à mesma endemia que se arrastava
ainda em Lisboa, a rainha D. Leonor mandou à cidade o seu capelão
para fixar “algumas devaçoes, que nos prazeria muito se fazerem por
saude desa cidade [...]”.16 D. João III, em missiva de resposta enviada
à câmara de Coimbra, em setembro de 1525, determinou, em função
das mortes por peste que ocorriam na cidade, que fossem rendidas
muitas graças ao Senhor, e “prazera a ele que por sua misericordia
[...] lhe querera dar saude e lhe aleuamtara ese mal.”17 Por ocasião da
Peste Grande de 1569, D. Sebastião fez um voto pessoal, que por car-
ta régia18 desse ano partilhou com a câmara de Lisboa, de construir
no terreiro do Paço um templo no qual seria abrigada uma relíquia
de são Sebastião, mártir intercessor que haveria de livrar a cidade
do contágio. Caberia a ela arcar, através de taxas, com a metade do
custo total da edificação. Livre do fogo da peste, mas considerando
a necessária preservação da chama da piedade popular, exortou a
câmara a agilizar a execução da obra, que mal tivera início, para não
“reçeber disso o pouo escandallo, e arefeçer nelle a deuação que tinha
[...]” (OLIVEIRA, 1887, p. 474).
A maior parte das missivas acima referidas incluem medidas
profiláticas aconselhadas pela física, fazendo-se depender a saúde
pública da graça divina e das ações humanas combinadas. Ambas
orientadas pelas determinações régias. Contudo, e pelo menos a par-
tir do reinado de D. Manuel, ressaltando-se uma outra oposição de
fundo entre os discursos, parece-nos impor-se, sob a ótica do poder,
a referência médica. Pretendendo o povo de Lisboa celebrar o arrefe-
cimento do contágio que a assolou em 1520, com festas e procissões,
estabeleceu o rei que estas fossem adiadas até que a cidade estivesse
completamente livre da doença (OLIVEIRA, 1887, p. 469-470). D. João
III, estando a capital novamente contaminada em 1523, proibiu, neste
ano, a realização da procissão do Corpo de Deus.19 D. Sebastião, con-
siderando finalmente salva a capital da Peste Grande, recomendou à
câmara20 que realizasse então a procissão que esta havia-lhe proposto,
agradecendo-se a Deus o milagre que restituíra a saúde à cidade. A
procissão realizou-se aos 20 de abril de 1570 (OLIVEIRA, 1887, p. 578),

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sete dias após a sua recomendação. Ressaltando a ascendência régia
sobre a piedade popular, as promessas votivas feitas pelas cidades
dependiam de confirmação real (OLIVEIRA, 1887, p. 458). Assim, o
mesmo monarca daria posteriormente a sua anuência à realização
anual da procissão, conhecida como “da saúde”.21
D. Duarte firmara o princípio, sem extrair dele todas as conse-
quências. A concepção religiosa, respaldada na premissa isidoriana,
secundarizava a intervenção médica, submetendo-a aos desígnios do
Criador. A fuga, seu principal conselho, era traduzida como pecado.
Positiva, sem dúvida, cristianizada, indicava os lenitivos do corpo, que
eram inferiores, porém, aos remédios da alma. No referencial cristão,
o tempo da epidemia é o do castigo maior, o da justiça divina. E que
se exercia por Suas próprias mãos. Interregno terreno, o Rei dos reis
dominava o curso da história: o Deus encolerizado resumia em si a
manifestação exclusiva do poder, exercendo-se e se afirmando sobre
a comunidade. Diante d’Ele, a única reação humana efetiva era a
autoentrega, a passividade e a aceitação, conduta indispensável para
o resgate, orientada pelo clero. Haveria lei humana a opor-se-lhe?
O discurso religioso, em sua matriz clerical, desautorizava a
realeza. Quem era o rei, senão mais um, ou o principal pecador? Não era
ele, com toda a corte, o primeiro seguidor de Hipócrates? Não atraía,
sobre o povo, a doença por seus pecados? A reação régia contra tais
premissas, expressa já no Leal Conselheiro, significou o resgate da
sua própria possibilidade de intervenção, a reafirmação de sua auto-
ridade e poder. Não sobre o sagrado, que lhe transcendia, e era ainda
um de seus principais fundamentos, mas sobre o exclusivo da ordus
clerical na sua interpretação terrena. Oposição entre os discursos,
repetimo-lo, mas que de fato se revela e exacerba no seu processo de
apropriação, posto que instaura um absoluto, cuja afirmação social
demanda a submissão das autoridades concorrentes.
Em se tratando do discurso médico, a realeza muito mais
investiu-lhe do que lhe atenuou a autoridade de base. Em Portugal,
o seu locus de produção estava sob a dependência régia, que ainda
mais “acentuou-se à medida que se acentuava a centralização política”
(SARAIVA, 1988, p. 129).22 Contudo, mais do que a subordinação da
Universidade de Coimbra ao rei, destaque-se, no contexto dessa aná-
lise, o investimento régio na normatização do exercício da medicina
em Portugal. D. João I, por lei geral de 28 de junho de 1392 (ALMEIDA,
1813, p. 205-206), determinou a obrigatoriedade do licenciamento,
através de exame pelo “Fysico d’El-Rey”, a todos aqueles que no reino
se dedicassem à “arte da física”, fixando aos transgressores a pena de
prisão e perda dos bens. Por carta régia enviada a Lisboa em 1385,

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condenava como prática idólatra a feitura de “Remedio outro algum


para saude dalgum homem ou animallia, qual nõ cõsselhe a arte da
fisica [...]”.23 A mesma referência colhe-se, de um lado, nas Ordenações
Manuelinas, e de outro no De Correctione Rusticorum, de são Martinho
de Braga, datado do século VI (CHAVES, 1957, p. 243-278).
Normatizar a medicina consistiu, portanto, em fixar o seu
campo legal, o da tradição antiga cristianizada, e erudita, fazendo
derrapar para o âmbito proscrito da feitiçaria as práticas desviantes,
não canonizadas. A esta lei primeira de D. João seguiu-se uma vasta
legislação posterior. D. Afonso V, por regimento de 1448 (ALMEIDA,
1813, v. II, n. VII, p. 58), estabeleceu a obrigatoriedade do exame para
os cirurgiões, prestados perante o cirurgião-mor da corte. D. João II
concedeu, em 1481, poder de polícia ao cirurgião-mor, permitindo-lhe
fazer-se acompanhar de três homens armados para “prenderem os que
uzassem [do ofício] sem Carta de Licença [...]” (ALMEIDA, 1813, v. II, n.
VIII, p. 137). Guardião da medicina legal, esta orientaria os principais
níveis de intervenção da realeza contra a doença.
Em primeiro lugar, embasado no binômio galênico “podridão/
peste”, o poder régio deu ensejo a uma efetiva política de higienização
urbana, pública e privada. As primeiras posturas camarárias, conheci-
das em Portugal, datam de fins do século XIV. Uma série delas, relativas
a Évora, circunscrevem-se aos anos de 1375 a 1395. Do conjunto dos
dispositivos, apenas uma pequena parte diz respeito à limpeza urbana,
orientando os mesteres a remover lixos, estercos, águas acumuladas e
dejetos, proibindo o trânsito de porcos pelas áreas públicas, o despejo
de esterco em depósitos abandonados etc. Contudo, como premissa
orientadora de tais deliberações, não se explicita a vinculação entre as
condições de higiene e a doença, mas a preocupação das autoridades
com o aspecto da cidade. Proibia-se o acúmulo da sujeira porque “a
cidade e ruas pareciam mal” (ROQUE, 1979, p. 202).
Já no “Regimento da Cidade de Évora”, fixado por D. João I em
1392, se não se faz alusão direta à peste, e se não se descarta o “pa-
recer mal”, impõe-se a relação direta entre a doença e as condições
de higiene, a necessária provisão desta para debelar aquela, porque
“das çujidades e estercos e cousas podres e nojosas e fumos que se
delas fasem nos logares recrescem muytos danos e dores aos cor-
pos e ainda parece mal os lugares onde se tal cousa consente [...]”
(ROQUE, 1979, p. 202).
Daí em diante, a tônica seria a pressão, constante e crescente,
do poder central sobre os municípios no sentido da adoção, genera-
lização e aprimoramento das medidas de higiene urbana, sob o pres-
suposto de que eram o meio essencial da erradicação das epidemias.

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As disposições do regimento de D. João I, além de tratarem mais
detalhadamente das esterqueiras, animais mortos, águas potáveis
etc., foram estabelecidas em 1420 na vila de Arraiolos, não sem antes
se disseminarem para o Porto (1394) e Lisboa (1410) (ROQUE, 1979,
p. 202). Insertas nas Ordenações Afonsinas (ORDENAÇOENS do Senhor
Rey D.Afonso V, 1983, L. I. Tit. XXVIII), ganhariam estatuto de lei geral.
Sob D. João II, a errância endêmica da peste, sobretudo em Lisboa,
ao longo de quase todo o seu reinado (1481-1495), propiciou ao poder
régio a conjuntura favorável à efetivação de sua ascendência sobre
este ramo da administração municipal.
Em janeiro de 1482 determinou que a câmara nomeasse “hum
çidadão que tenha carreguo de olhar pela çidade que este limpa”, e
que ainda promovesse o encanamento articulado da capital, ligando
as casas às ruas menores, e estas às ruas principais, para que pu-
dessem “deytar suas agoas çujas e vir a elles” (ROQUE, 1979, p. 205).
Dois anos passados, nova carta régia, (OLIVEIRA, 1887, p. 285) além
de estabelecer a origem divina da epidemia que atingia a cidade,
discorreu sobre os seus determinantes naturais: a falta de higiene
pública decorrente das práticas do “entornar dos camareiros”, o acú-
mulo clandestino de “monturos e esterqueiras” e o “entupimento dos
canos”, exigindo das autoridades medidas de reparação imediata.24 No
ano seguinte, já o referimos, D. João fixou a sua ascendência direta na
determinação das posturas de limpeza da capital. Em janeiro de 1486,25
por fim, condenando a falta de zelo no tratamento do tema, impôs à
cidade um regimento de limpeza urbana. Ordenou, em primeiro lugar,
a nomeação de um cidadão, com poder de polícia, que acompanhado
por um escrivão zelaria pela higiene, impondo penas pecuniárias
aos transgressores, e obrigando-os a reparar o delito. Determinou
ainda que em cada freguesia houvesse homens a fazer a limpeza,
com pagamento custeado pelas respectivas casas. Reiterou, por fim,
a ordenação da construção da rede de esgotos da cidade, custeada
em parceria pelas rendas públicas e pela população.
Sob o “Rei Venturoso” não haveria de se arrefecer o ímpeto cen-
tralizador, e normatizador, consubstanciado nas posturas de higiene
pública, particularmente dirigidas a Lisboa, “capital da Europa” e do
império em formação. Por carta régia de 1506, D. João determina o
envolvimento coletivo dos cidadãos nos trabalhos de limpeza da cida-
de, a despeito de sua condição social.26 Um problema novo colocado à
saúde pública levou-o a determinar, em 1515, que a câmara ordenasse
a prisão de escravos responsáveis por sujar a cidade.27 Em novembro
do mesmo ano, considerando que os escravos mortos lançados aos
monturos representavam perigo para a saúde da cidade, o rei deter-

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minou à câmara que abrisse “hu~m poço, o mais fumdo que podese
ser, no llugar que fose mais comvinhavell e de menos imcomvyniente,
no quall se llãçasem os ditos escrauos [...].28 O processo de ingerência
do poder central neste campo da limpeza e saúde parece-nos ter, por
sinal, chegado ao termo durante o governo de D. Manuel. Por carta
régia de 30 de julho de 1510 (OLIVEIRA, 1887, p. 411), ordenava aos
vereadores lisboetas, que lhe pediram licença de suas funções, que
se mantivessem nos cargos, em função inclusive da epidemia que
atingia então a cidade. Segundo Eduardo Freire de Oliveira o pedido
fora feito em represália à ação régia, que havia privado a câmara da
superintendência de alguns setores da administração, dentre eles o
regimento da limpeza (OLIVEIRA, 1887, p.411).
Mas as medidas de caráter preventivo não se limitaram à nor-
matização das práticas de higiene pública. A peste gerou, e o discurso
médico o expressou amplamente, sobretudo suspeição. A certeza do
perigoso contágio, veiculado pelo ar corrompido, ensejou posturas
de isolamento, reclusão e confinamento através das quais o Estado
manifestou, e afirmou, o seu poder sobre os cidadãos. Abordemo-las,
em suas principais vertentes. A fuga foi a sua primeira expressão, já
o dissemos, valendo-se dela amplamente a corte portuguesa. Muitos
dos seus deslocamentos pelo reino no período tiveram lugar com a
peste nos seus calcanhares. Em setembro de 1495,29 a rainha D. Leonor
comunicou-se com a câmara de Lisboa, pedindo informações sobre o
estado de saúde da cidade, desejosa que estava de para ela retornar.
Contudo, considerado o princípio firmado por D. Duarte, o abandono
por parte das autoridades locais dependia de liberação régia (TAVA-
RES, 1987, p. 20).
Quanto ao isolamento nas endemias, as primeiras referências em
Portugal datam do século XV. D. Duarte, em O Leal Conselheiro, indicava
às autoridades municipais a adoção de três medidas básicas, visando
a impedir a disseminação local do contágio: em primeiro lugar, deviam
expulsar das cidades os doentes, para que se curassem ou morressem
fora do centro de habitação; quanto aos mortos, fossem enterrados em
cemitérios extramuros e, por fim, que suas casas fossem encerradas
por 15 ou 20 dias (PIEL, 1942, cap. LIV, p. 226). Medidas, ainda uma
vez, fadadas a largo futuro, e aprimoramento. No mesmo intuito, mas
em sentido contrário, coibia-se o livre trânsito de pessoas oriundas
de centros contaminados, o que pressupõe um sistema minimamente
articulado de comunicação entre as regiões. A ordenação mais antiga
nesse sentido, conhecida em Portugal, data do reinado de D. Afonso V.
O ainda príncipe D. João ordenou à vila de Beja a instalação de quatro
postos de fiscalização nas suas portas de entrada, limitando o ingresso

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apenas aos viajantes que jurassem ter deixado as áreas contaminadas
há, no mínimo, 30 dias (TAVARES, 1987, p. 20). Em outubro de 1486, o
então rei D. João II admoestou o concelho de Lisboa por ter permitido
que ingressassem na cidade pessoas oriundas de Alhandra, onde gras-
sava a peste (TAVARES, 1987, p. 21). Sob D. João III, a medida assume
foros de crime de “lesa majestade”: determinou, em julho de 1531, que
qualquer pessoa que viesse a Évora, onde estava a corte, oriunda de
Lisboa ou de regiões impedidas, fosse sumariamente executada.30
A partir de D. João II, o isolamento dos doentes tendeu a se
circunscrever num local fixo, fechado e externo ao centro urbano.
Em 1480 o monarca ordenou à cidade de Évora o estabelecimento
do primeiro hospital especificamente destinado ao encerramento de
epidemiados, que seriam assistidos por um físico, pago pelo concelho
(TAVARES, 1987, p. 24). Em 1485, despachou a liberação de uma quinta
nos arredores de Lisboa para o mesmo fim (TAVARES, 1987, p. 24).
D. Manuel, num contexto em que a realeza assumia o campo da cari-
dade pública, projetou para Lisboa o primeiro hospital permanente
para pestosos, que seria construído em local isolado para “menos se
conversarem os doentes com a cidade” (ROQUE, 1979, p. 186). D. João
III, em carta-resposta enviada à câmara de Coimbra, datada de 1 de
setembro de 1525 (CARVALHO, 1943, p. 33), determinou a edificação
urgente de um hospital, ao qual seriam recolhidos os pobres contami-
nados, sob os cuidados de um físico, um cirurgião e um barbeiro.
O caráter de segregação dessas instituições revela-se pela
condição social dos internados e pelas precárias condições de suas
instalações: num hospital improvisado no Porto, em 1486, existiam
apenas duas camas, ocupadas por seis a oito doentes que, rapidamente
falecidos, davam lugar a outros tantos (ROQUE, 1979, p. 33). Segundo
Eduardo Freire de Oliveira (1887, p. 453), quando não se instalavam os
hospitais, o provedor-mor da saúde determinava o “entaipamento” dos
pobres (“escrauos, e omees de soldada e obreiros dos macanicos”)
em bairros e ruas apartadas, enquanto a “gente grossa” permanecia
em suas casas, sinalizadas pelos agentes da saúde.
A defesa contra pestes estrangeiras suscitou, no período, as
primeiras medidas de polícia sanitária dos portos. D. João II esboçou,
em 1492,31 o primeiro regimento para o porto de Belém, em Lisboa.
Determinou o balizamento de sua entrada, que serviria de marco obri-
gatório para a paragem de barcos oriundos de regiões contaminadas.
Recolher-se-ia a tripulação e os passageiros num alpendre isolado,
sob quarentena, depositando-se as mercadorias num pontão, ao sol,
para desinfestação. A demora na execução da obra levou o monarca
a repreender o conselho, em 1494. Contudo, durante as epidemias

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de 1492-1494, 32 o concelho de Lisboa proibiu, por ordem régia, a


atracação no porto de embarcações originárias da Alemanha e da
França, e expulsou do Tejo naus fundeadas provenientes de Sevilha
e da Andaluzia (TAVARES, 1987, p. 22). Outro alerta preventivo foi
expedido pela realeza aos portos costeiros em função da epidemia
que, entre 1503 e 1504, assolou a Galiza. A vereação do Porto, a partir
da ordem régia, proibiu a entrada de barcos oriundos daquela região,
ordenando ainda aos pescadores galegos que se afastassem de seu
porto (TAVARES, 1987, p. 23).
Na extensão, sob D. João III, impôs-se afinal a polícia do porto,
com a criação da “Casa da Saúde” (ou do Despacho) de Belém, em 1526.
Sediada na entrada do Tejo, serviam-lhe um provedor, um escrivão,
um meirinho e dois guardas. Fixou-a como parada obrigatória para
as embarcações que adentravam o rio. Estas fundeavam junto à casa,
vindo o mestre mareante informar ao provedor, sob juramento, se era
originário de porto “impedido”, ou se passara por algum contaminado.
Na sequência, as mesmas informações eram tomadas a dois tripu-
lantes, lavrando-se o auto pelo escrivão. Considerada a embarcação
insuspeita, permitia-se o acesso à cidade. No entanto, definida a sua
proveniência de regiões contaminadas, determinava-se a evacuação
da nau, posta sob vigilância dos guardas, transferindo-se a carga e os
tripulantes para o Lazareto da Trafaria (na margem oposta do Tejo),
submetendo-os a quarentena (ROQUE, 1979, p. 190).
Pelo exposto verificamos que, das primeiras medidas oriundas
do poder central, voltadas à superação da doença, expressas por D.
João I, os séculos XIV ao XVI foram palco de sua especialização e
complexificação, ampliando-se as frentes de combate a par da intensi-
ficação da ascendência do Estado sobre o campo da saúde pública.
Sob D. João III, a cidade de Lisboa, foco central da intervenção
régia que, como a doença, se disseminava pelo reino, recebeu o seu
primeiro regimento de saúde, redigido pelo “doutor” Pero Vaz por
ordem do soberano, em 1526. Dos seus artigos, destaca-se o projeto
de intervenção máxima de um poder que se pretende absoluto – a
vigilância do indivíduo – impondo-se sobre a “célula” básica do corpo
social. No item terceiro, fixa penas pecuniárias, de açoite e degredo
“aquelle que não declarar o doente que tiver em casa de qualquer
doença que seja dentro em duas horas da hora em que adoecer [...]”
(MEIRELLES, 1866, p. 65). Se a reiteração frequente das determinações
régias contra a doença ressaltam a oposição, mesmo que por inércia,
à ação interventora do Estado, as penalidades por ele impostas desta-
cam o elemento crucial, favorecedor da supremacia do seu discurso: a
ideologia por ele veiculada reforça-se no poder que detém e exerce.

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Mas em 1580 a mão interventora de Deus se fez novamente
presente no curso da história, agora a apoiar ideologicamente o “novo
poder” que se impunha: atingindo os portugueses com uma peste-
castigo expressou, segundo um embaixador castelhano em Lisboa
(SILVA, 1862, p. 434-435), o apoio divino à causa de Filipe de Espanha.
Deus, como dissemos, foi recurso primeiro, e último!

Notas
1
Mattoso;Sousa ([19--], p. 280). Com a mesma perspectiva, veja-se Marques (1986,
p. 279).
2
Mattoso; Sousa ([19--], p. 527). O autor segue a conceituação de Estado proposta
por Strayer ([19--], p. 9-16).
3
Sousa (s/d, p. 528). A vitória do centralismo régio não implicou na supressão da
nobreza como categoria social autônoma, abastada e privilegiada, mas sim a de
uma concepção de Estado que, na sua conformação histórica, a integrou. Veja-se
Anderson (1985, p. 15-57).
4
Veja-se, ainda, Anderson (1985, p. 15-41).
5
Sobre a organização então fixada e as atribuições dos vereadores, veja-se Torres
([19--], p. 270-271).
6
Elite concelhia representada, em geral, pelos proprietários rurais, cavaleiros-vi-
lãos, escudeiros e, nalguns casos, mesteirais de algum peso econômico, segundo
Carvalho (1989, p. 91). A ascensão dos últimos à administração foi, no que diz res-
peito às grandes cidades, uma vitória alcançada com a revolução de Avis, segundo
Marques (1987, p. 201). Veja-se ainda, deste último, “Homens-bons”, em Serrão
([19--], v. 3, p. 222).
7
ORDENAÇOENS do Senhor Rey D.Afonso V, (1983, L. I, tit. XXIII, 43-46); Serrão
(1986, p. 77), refere-se a sua publicação em 1446.
8
Considere-se, neste sentido, o tempo mais ou menos longo para o diálogo entre
o poder central e o local, do qual dependiam a urgência do tema, as distâncias a
serem percorridas etc. Pode-se ter uma ideia a partir de João José Alves Dias, “A
Comunicação entre o Poder Central e o Poder Local. A difusão de uma lei no século
XVI”, cópia divulgada.
9
Barros, (1896, t. II, p. 199), compuseram-na elementos estranhos às reuniões
ordinárias, dentre eles dez “médicos”.
10
as quatro primeiras cartas datam de 9 de abril, 19 de maio, 20 e 23 de junho de
1520 apud Oliveira, (1887, t. I, p. 469-470.
11
por carta régia de 1 de fevereiro de 1509, apud Oliveira (1887, t. I, p. 10).
12
a carta régia data de 27 de agosto de 1385, apud Oliveira (1887, T. I, p. 20).
13
Sobre o conflito entre a realeza e a Igreja no tocante à disposição dos testamentos,
veja-se a Parte I deste livro.
14
Carta Régia de 11 de setembro de 1437, apud Oliveira (1887, p. 12).
15
Carta régia de 9 de fevereiro de 1453, apud Bastos ([19--], p. 5).
16
Carta régia de 8 de julho de 1496, apud Oliveira (1887, p. 370) .
17
Carta régia de 1 de setembro de 1525, apud Carvalho (1943, p. 33).
18
Datada de 7 de julho de 1569, apud Oliveira (1887, p. 474).
19
Por carta régia de 2 de junho de 1523, apud Oliveira (1887, p. 471) .
20
Por carta régia de 13 de abril de 1570, apud Oliveira (1887, p. 576).
21
Por carta régia de 19 de abril de 1572, apud Oliveira (1887, p. 583).
22
Vejam-se também as considerações a respeito no capítulo IV desta obra.
23
Veja-se a nota 12
24
Segundo Roque (1979, p. 206), D. João II fixou com esta lei os três principais pro-
blemas de higiene das cidades medievais.
25
Por carta régia, apud Oliveira (1887, p. 463).
26
Datada de 8 de agosto (OLIVEIRA, 1887, p. 402).
27
Por carta régia de 22 de agosto de 1515, apud Oliveira (1887, p. 446).

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130
28
Carta régia de 13 de novembro de 1515, apud Oliveira (1887, p. 509).
A efetivação das imagens

29
Por carta régia datada de 15 de setembro de 1495, apud Oliveira (1887, p. 369).
30
Por carta régia de 3 de julho de 1531, apud Oliveira (1887, p. 455).
31
por carta régia de 5 de setembro de 1492, apud Oliveira (1887, p. 363).
32
por carta régia de 2 de abril de 1494, apud Oliveira (1887, p. 369).

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Conclusão

Chegou a hora de recompor a trajetória, quase de tão longa


duração quanto a da história da doença, ainda que certamente não
tão sofrida. Não nos bastava a simples referência, “fria”, da presença
insidiosa, e quase cotidiana, da doença no Ocidente, dispondo-a numa
sucessão de anos arranjados em ordem cronológica. Quais os seus
determinantes profundos, até onde nos é dado conhecê-los? Por que
a demarcação de um palco privilegiado para a encenação de seu es-
petáculo de horrores, cujos atos intermináveis levavam ao “delírio”
as plateias atemorizadas?
A peste e a fome, este outro flagelo da humanidade, produziram
sangrias demográficas, mais ou menos profundas, mas constantes,
entre as populações dos séculos XIV ao XVI. E encontraram em meio
urbano o campo propício à sua ação. Espaço da riqueza, do tráfego
humano e de mercadorias, mas também das vielas sujas e tortuosas,
da concentração populacional sob precárias condições de higiene, do
recurso frequente ao abastecimento externo. Esse espaço conheceu,
como uma espécie de contraface de sua pujança, o convívio frequente
com a doença.
Instalada, o tempo da doença era o da suspensão do burburinho
da vida cotidiana, talvez este o principal nível da ruptura. Caos, mo-
mentâneo, é certo, mas a visita era frequente. O contexto de desordem
suscitou reações ordenadoras, de preservação da ordem social.
Se os especialistas de hoje se esforçam em conhecer as suas
motivações, o que se dirá das populações atingidas. Estas também
os tinham, e não tardaram a expressar, não hipóteses, mas certezas
que buscavam disseminar.
Para os do sagrado, recurso amplo que convinha precisar,
hegemonizando-o, calamidades tão frequentes eram manifestação da
cólera divina, castigo que se impunha a um povo arredio, pecadores
contumazes, recalcitrantes a infringir a lei de Deus. Impunha-se, para
apaziguá-Lo, o reforço da fé, o arrependimento e a expiação dos peca-
dos. O tempo da peste era, por excelência, o da purificação, espiritual
sobretudo, para o discurso cristão. Mas, consubstanciada na introjeção
de valores piedosos, expressar-se-ia pela conduta social renovada,
revigorada pelos preceitos morais da religião. O castigo, em última
análise, visava afirmar aos homens a brevidade da vida e quão pacífica
poderia ser sob a face bondosa do Pai. Redimir, resgatar, salvar, ainda
que a ferro e fogo, esta a razão maior da doença-castigo.

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Conclusão

Para os da medicina, “verdade expurgada aos seus ilegítimos


detentores”, cristianizada, reconheciam nesse universo mental pro-
fundamente impregnado de religião, a ascendência divina reivindicada
pelo discurso cristão. Mas buscaram talhar para si uma autoridade
sobre a doença. Na sua base, o locus da produção do discurso, a cor-
poração do saber erudito que, no tempo da epidemia, propagou-o.
Ainda que a deliberação – decisão em última instância – fosse divina,
a doença possuía causas naturais que a medicina conhecia e fixava.
Se procedia de “raízes” várias, era sempre agente de desequilíbrio,
logo pronto a transcender o individual e contagiar, desequilibrar a
comunidade. A autoridade deste discurso ordenador, requisitada na
origem, reforçou-se sob a égide do Estado.
Centralização em tempos de epidemia. Título possível para este
trabalho, posto que ressalta o choque entre “poderes”: a peste, desor-
dem de cunho local a se disseminar pelo reino; a realeza, arrogando-
se mantenedora da ordem nacional. Apropriando-se das referências
médica e religiosa, com tudo que há de re-produção neste processo,
oscilou entre polos, e sobretudo investiu autoridade na medicina, fixan-
do o seu campo legal e ortodoxo. Não desprezou o recurso ao sagrado,
mas o submeteu a normas de higienização, posturas de confinamento
e reclusão. Impondo-as às municipalidades, fundou lentamente – como
elemento integrante de um processo de longo percurso – o campo da
saúde púbica nacional sob sua ingerência.

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Normas gerais de transcrição dos documentos
(edição semidiplomática)

1. Respeitou-se absolutamente a ortografia do texto original,


mantendo-se exatamente a pontuação e todas as maiúsculas
e minúsculas;
2. Separaram-se as palavras que se encontravam unidas no
texto e uniram-se as sílabas ou letras da mesma palavra que
se encontravam no texto separadas, de acordo com a forma
normal das palavras de hoje. Não se utilizou hífen na separa-
ção das proclíticas e enclíticas;
3. Desenvolveram-se as abreviaturas, colocando-se em itálico
as letras, desenvolvidas, que não estavam no original, mas
mantendo-se o “til” nas palavras em que ele hoje surge como
indicador de som nasal;
4. Manteve-se a forma original dos numerais;
5. Colocou-se entre [ ] tudo o que se interpretou, mas que no
original se encontrava manchado, rasurado, rasgado, ou sim-
plesmente faltava;
6. Escreveu-se a palavra [sic] depois dos erros do texto origi-
nal;
7. Utilizou-se [...] para o ilegível;
8. Nunca se desenvolveu “.s.” com sentido de “scilicet”;
9. As expressões latinas foram grafadas em itálico.
10. Usou-se / para indicar término de linha;
11. Usou-se // para indicar término de fólio ou página.
12. Usou-se & para grafar a conjunção et.

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149

Mário Jorge da Motta Bastos


Anexo 1

Regimento proueytoso contra ha pestenença


O Regimento proueytoso contra ha pestenença constitui-se, se-
gundo Mário da Costa Roque, talvez o seu principal estudioso, em um
dos primeiros impressos a testemunhar os primórdios da atividade
de imprensa em Portugal. Seu autor teria sido um médico radicado na
cidade de Montpellier, Johannes Jacobi, que o elaborou em meados
do século XIV, no contexto, pois, da Peste Negra que varria diversas
regiões do mundo. Redigido, originariamente, em latim, o tratado
médico sobre a peste mereceu várias edições também em línguas
vernáculas, dentre as quais o português (traduzido por Frei Luiz de
Rás), tendo sido editado em Portugal, em fins do século XV (cerca
de 1495), pelo famoso impressor alemão estabelecido em Lisboa, Va-
lentim Fernandes. D. Raminto (Kaminto, Canuto) teria estabelecido a
versão “sincrética” que então veio à luz, suprimindo e acrescentando
elementos ao texto original.

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151

Regimento proueytoso contra ha pestenença

Mário Jorge da Motta Bastos


[1]
[Imagem – Brasão de armas de D. João II]
Regimento proueytoso/ contra ha pestenença.//
[1.v]
[Imagem – Xilogravura A Virgem e o Menimo]
Ora pro nobis sancta dei genitrix. Ut mereamur/ peste epydimie
ille si transire & promissionem christi/ optinere.//
[2]
Começase huum boom regimento muyto neçessa/ rio & muyto
proueitoso aos viuentes. & per conseruação/ de suas saudes & segu-
rança das pestinençias. Fey/to per ho reuerendissimo Senhor dom
Raminto/ bispo arusiensi: do regno da dacia. E tralladado de/ latim
em lingoagem per ho reuerendo padre frey/ Luys de ras: mestre em
sancta theologia da ordem/ de sam Francisco./
Em louuor da santissima triinda/ de. & da gloriosa virgem maria
& a/ proueyto do pouoo: por conserua/ çam dos saãos: & reformaçam
dos/ caydos. Quero algumas cousas da/ pestenença que nos ameude
fere: dos ditos dos mays/ autenticos médicos: screver. E primeyra-
mente./
Dos signaes prognosticos da pestilençia./
Segundo das cousas della./
Terçeyro. dos remedios della./
Quarto das conformidades do coraçam: & dos/ prinçipaes
membros./
Quinto & derradeyro da sangria./
Dos signaaes. Capitollo primeyro./
Signaes prognosticos da pestilencia quanto/ ao presente per-
tence: são sete. Primeiro quando/ em huum dia do estio & do alto
veraão se//
[2.v]
muda amanhaã muytas vezes. em modo que de/ manhaam
pareçe chuuosa & chea neuoa [sic]. & depois/ ventosa. & prinçipal-
mente quando he ho vento meri/ dional. ou da parte de estrela do Sul.
Segun/ do sinal he quando em tal estio muytas vezes escure/ çem: ou
pareçem escureçer os dias em modo que pareçe/ que quer chouuer &
nom choue. & emtão se isto muito/ durar he pera temer de viir grande
pestilência./
Tercio he quando ha hy muytas moscas em ha/ terra. porque
emtão pareçe ho aar ser empeçonhenta/do & que sobem muytos va-
pores peçonhentos ao aar./

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152
Anexo 1

Quarto sinal he quando ha cometa pareçe voar/ & segundo diz


aristoteles em os metauros [sic]. quando/ ha cometa apareçe acon-
teçem mortes de gentes em/ bathalhas &c. & por isso diz ho verso
poetico fa/lando do apareçimento da cometa. A morte se em/sanha
ha çidade se filha & toma dos imigos. ho/ mar se faz cruel. & ho sol
se cobre .s. de nuueens. ho/ regno se muda. ho pouoo padeçe fame
& pestilen/cia./
Quinto sinal. he quando se fazem muitas relam/pados [sic] &
trouoadas. & mayormente se veem da par/te do meo dia .s. do sul./
Sexto sinal he quando/ veem muytos ventos do meo dia. porque
taes ventosi/dades sam muyto çujas & muyto velhacas./
Quando ergo estes signaes apareçerem. he para te//
[3]
mer grande pestilencia. se ho senhor deos todo pode/roso ho
nom quitar & estoruar./
Das causas da pestilência. Capitollo. ij./
Tres sam as causas da pestilencia. porque/ as vezes veem &
proçede ha pestilencia da/ rayz superior. & as vezes proçede da rayz/
inferior. emtanto que senssualmente pareçe aos ho/mens mudança do
aar. & as vezes veem dambos de/ dous .s. da rayz superior & da rayz
inferior juntamen/te. Da rayz inferior proçede segundo nos veemos
que/ da privada que açerca da camera ou de alguum/ fedor particular
de alguum canno çujo se corrompe ho/ aar em substançia & qualidade.
& esta causa particu/lar & pode aconteçer cada dia. & daly proce-
dem febres/ pestilençiaes. açerca das quaes muytos medicos sam/
emganados. porque não conheçem taes febres serem pe/stilençiaes.
nem ho creem. As vezes isso mesmo veem de/ corpos mortos. ou de
corrupçom de pauees [sic] & char/cos ou chafarizes çujos podres &
federentos [sic]. et/ esto aconteçe muytas vezes onde ha lugares po/
dres & corruptos. & tambem esta causa he as vezes/ particular. Da rayz
superior veem & acontece a pe/stilençia per virtude dos corpos de çima
dos çeos. dos/ quaes se corrompem os spiritos vitaes em ha creaturas
[sic]/ viuente. & de tal diz auicena no quarto liuro que muy//
[3.v]
ligeyramente se empeçonhentam os corpos da indispo/siçam ou
da maa desposiçam dos çeos. por ha empres/sam dos çeos corrompe
ho aar. & ha empresam [sic] do/ aar corrompe os spiritos vitaes em ho
homem & assy se/ geera ha pestilençia per esta causa. Da rayz supe/
rior & inferior juntamente proçede quando impressam/ celestrial [sic]
corrompente [sic] ho aar. & podridam dos corpos/ mortos. ou lugares
çujos se causa ho morbo ou/ ha chagua em ho homem: & tal morbo
ou infirmi/dade as vezes he febre. & as vezes apostema & isto/ em

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Mário Jorge da Motta Bastos


os demais. porque ho aar inspirado as vezes/ he peçonhento: & assy
corrupto feere ho coração. em/tanto que ha natureza he per muytas
maneiras agra/uada: mas ainda tam sobejamente se agraua ha na/
tureza que não sinte sy ser ferida nem emferma. & isto/ porque apa-
reçem bõas ourinas & boõas augoas. et/ bõas digestiões [sic]. empo
[sic] ho enfermo vay caminho/ da morte. E portanto muytos medicos
que em os/ enfermos soomente esguardam as ourinas superficial/
mente falam . & lygeyramente sam enganados. Ergo/ he neçessario
que todo enfermo se preueja de boom fisi/co & bem esperto. E estas
cousas sam assy ditas das/ causas da pestilençia./
Aqui se mouem duas questões. Da primeyra he/ porque he assy
que huum morrer ho outro nom. et//
[4]
daquella villa morrem homens & da queloutra [sic] nom. & da/
quella casa morrem & da queloutra [sic] nom./
Segunda questam he esta./
Se taaes infirmidades pestilençiaes sam conta/giosas .s. se se
[sic] apegam. A primeyra questam: digo que/ esto pode aqueçer por
duas causas .s. por parte do/ agente & por parte do paçiente Da parte
do agente quan/do aquella influençia sobre celestial mays dereyta/
mente fere & sguarda aquelle ou aqueloutro. que aquelle/ ou aqueloutro
lugar ou homem. Da parte do paciente que aquelle he mays desposto aa
morte que aqueloutro./ & portanto deues de notar que os corpos mays
despo/stos a infirmidade & a morte sam os corpos quentes/ & teem
os poros mays largos: & os corpos peçon/hentos que tem os poros
opilados : & çarrados de/ muitos humores. E portanto dos quaes se
faz ha/ grande resoluçam assy como sam os corpos desorde/nados
em luxuria & coyto. & os que vaam ameude a/os banhos. & os homens
que se muyto esqueentam com/ grande trabalho ou grande yra. teem
os corpos mais dispostos pera reçeber ha pestilencia./
A segunda questam digo que taaes infirmidades/ pestilençia-
aes sam contagiosas & apegam se muy a/sinha. porque dos corpos
apeçonhentados proce/dem humores & fumos peçonhentos que
corrompem//
[4.v]
ho aar. & portanto deue homem de fugir dos aares/ peçonhen-
tos. mais ainda digo que em o tempo pesti/lençial nenhuum nom deue
de star em ajuntamento do/ pouoo. porque podera ser que alguum
delles sera ape/çonhentado ou ferido: por razão do qual os medi/
cos prudentes quando visitam os enfermos deuem/ de star afastados
delles: teendo o rostro pera genela/ ou fresta: & assi ho deuem de
fazer os seruidores dos/ enfermos. E portanto digo que a tal doente

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154
Anexo 1

de pesti/lençia he boom per alguuns dias mudar a câmera: et/ muytas


vezes teer as frestas pera ho norte ou pera/ o leuante abertas. & as
genelas ou frestas pera ho meo dia ou pera ho sul estem çarradas.
porque o vento/ do sul teem em si duas causas de de [sic] apodrentar/
A primeyra que faz emfraqueçer os corpos assi dos/ saãos como dos
enfermos. A segunda que assi co/mo se escreve em o terçeyro liuro
dos amforismos/ do sul he vento inchado & agraua o ouuido fere/ o
coração: porque abre os poros do homem & emtra a/tee o coração.
pola qual cousa boom he ao saão em/ tempo da pestilençia quando
venta vento sul estar/ em casa per todo o dia: & se for neçessario que
saya/ este em casa atee que saya o sol & suba huum boõm espa/ço
sobre o nosso orizonte.
Dos remedios da pestilençia
Capitollo terçeyro.//
[5]
Vistas as causas da pestilencia. agora a/jamos de veer per que
modo & como se de/ue homem de guardar da pestilencia & pre/seruar
se della. pollo qual deues de notar que segun/do diz o grande medico
.s. dauid. que primeiro se de/ue o homem de afastar do mal & inclinar
se ao bem./s. que homem primeiramente ha de confessar seus peca/
dos humildosamente. polla qual causa grande re/medio he em tempo
da pestilençia a sancta penitencia/ & a confissam as quaaes proçedem
& sam muyto mel/hores que todas as mezinhas. Empero prometo te/
que muyto boom remedio he fugir & mudar o lugar/ apeçonhentado.
mas porque muytos sem grande per/da nom podem mudar o lugar. &
por isso quanto for/ possiuel taaes deuem de euitar & de sy esquiuar
as/ causas de tal podridom. E per conseguinte todo o coy/to & toda
luxuria. & tambem o vento meridional ou/ sul: o qual naturalmente
apeçonhenta. Fechem se er/go as frestas ou genelas como dito he
que vaam ou/ estam pera o sul atee huma hora depois do meo dia/ &
abram se as que stam pera o norte. & per esta mesma/ causa euitaras
& esquiuaras todo ho fedor .s. de/ estrebarias. de campos. de ruas. &
em special don/de ha hi corpos mortos & podres. & tambem don/de
ha hi podridom de agoas & fedor dellas. porque//
[5.v]
em algumas casas estam as agoas çujas per dous/ ou tres dias
& as lançam per canos & regos soterran/hos: em os quaes taes agoas
çujas causam gran/des fedores: & daqui veem que em tal casa como
esta/ morrem os homens mais azinha & em outra nom co/mo dito
he mesmo onde se lançam foças & caldos/ podres que sobejam em
taaes casas. & por serem assi po/dres causam tal fedor & doença
que muyto empeçe./ E assi como per ho boom cheyro & aromatico:

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155

Mário Jorge da Motta Bastos


se re/crea o coraçom & o sprito do homem. assi emfraqueçe/ per o
çujo fedor. & portanto se deue bem de guardar/ a casa: porque nom
entre em ella ho aar peçonhentado/ porque ho aar apeçonhentado he
humido & faz po/dridom em a casa ou em lugar onde dormem. & ysso/
naturalmente. Apure se ergo & asutileze se a casa/ per clara chama ou
flama: & faça se fogo claro de/ lenha. & façase tambem com fumo de
boõas heruas/ aqui scriptas .s. baga de louro. junipero. vberior/gano.
as quaes acharas aos apotecayros. & de a/losna & ysope & arruda. &
artamija. & com lenho/ de aloes que he melhor de tudo posto que se
nom pode/ comprar por pequeno preço. E tal fumo entre per a/ boca
& per os narizes. porque assi indirançe [sic] as cousas/ de dentro. Item
per esta meesma causa se euite et/ esquiue: todo ho inchamento do
ventre que veem per//
[6]
muyto comer. porque os corpos cheos dos maa/os humores sam
mais asinha empeçonhentados. E portanto diz auiçena em o quarto
do canone. que a/quelles que sempre querem encher seus ventres
que abre/uiam seus dias & tempos da sua fim & mínguam sua vi/da.
Item per esta mesma causa se deue de euitar/ ho banho de cada dia.
porque pouco creçente a/peçonhenta toda a massa. onde finalmente
digo que/ toda multidom de pouoo & comunidade em tal/ tempo se
deue de euitar em quanto for possiuel. por/que se nom apeçonhente
homem do aar apeçonhentado./ E quando assi for que companhia &
ajuntamento de po/uoo se euite. emtam huse homem dos remedios
a/bayxo scriptas .s. de manhaam quando se alguum ale/uantar logo
coma da aruda lauada em agoa lim/pa espargida com sal & noz nozcada
[sic] huma ou duas/ bem limpas. E ysto nom poder auer emtam coma/
paão ou huma sopa molhada em vinagre. & ysto/ seja mayormente em
tempo de neuoeiro & chuuoso/ Mas em tempo de pestilencia milhor
he estar em/ casa que andar fora. nem he saão andar pera villa ou/
çidade. E tambem a casa seja aguada: & em special/ em o alto veraão
com vinagre rosado & folhas de/ vinhas. & ysso meesmo he muyto
boom ameude/ lauar as maãos com augoa & vinagre. & alimpar//
[6.v]
o rostro & despois cheyrar as maãos. & tambem/ he boom assi
em ho inuerno como no veraão chei/rar cousas azedas. Em mompi-
lher nom me pude/ escusar de companhia de gente. porque andaua
de ca/sa em casa curando enfermos por causa da minha/ pobreza. &
emtam leuaua conmigo huma sponja ou/ paão enssopado em vinagre:
& sempre no [sic] punha/ nos narizes & na boca. porque as cousas
azedas et/ os cheyros taaes opilam & çarram os poros & os/ meatos &
os caminhos dos humores & nom consin/tem entrar as cousas peço-

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156
Anexo 1

nhentas. & assi escapey/ de tal pestilencia. que os meos companheiros


nom podiam/ creer que eu podesse viuer & escapar. Eu çertamen/te
todos estos remedios prouey./
Das conformidades do coraçam & dos outros membros. Capi-
tolo iiij./
As cousas canfortatiuas [sic] sam estas .s. a/çafram. cassiafisto-
la chantagem. com todas/ as outras heruas que endereçam ho spiri/to
interior. & estas cousas prestam pera antre pouoo/ onde ligeyramente
se aconteçe huum seer empeçon/hentado do outro. E por ysso te
digo que em toda/ maneyra te guardes que nom reçebas do baffo de/
outrem. Os olhos do aar empeçonhentado logo/ escureçem se estas
cousas nom trouuer homem em ha//
[7]
maão Muyto saam cousa he que se laue a boca & os/ olhos & as
maãos ameude cada dia com agoa ro/sada mesturada com vinagre. &
se estas cousas nom/ poder auer façase com vinagre. & assi guardan-
do/ estas cousas seguramente entraras em pouoo ou/ amtre gente. E
tambem he grande remedio vazar o ventre. & se o ventre naturalmente
se nom poder/ vazar. toma huum cristel. & tambem tomaras piro/las
pestilençiaaes as quaaes acharas aos apote/cayros. Em casa sempre
este fogo açeso. porque/ clarifica muyto ho aar & poõe grande impe-
dimen/to aa maa influencia do çeeo./
Quanto he ao teu mantiimento digo te que atria/ga te he muyto
proueytosa: assi saãos como aos/ enfermos. toma se ergo duas vezes
no dia com/ boom vinho claro & auguado. ou com augoa crara/ de rosas
ou com çerueja crara. nem se tome mais/ da triaga que quantidade
de huum piseo. & do vinho/ ou augoa ou çerueja tomaras quantidade
de du/as colhares [sic]. & a triaga seja delida em ho vaso ou/ copo
em que ha tomares. & nom jantares atee ho/ meo dia porque possa a
triaga em o corpo fazer sua/ operaçam. E ysso meesmo deues de co-
mer boom/ manjar & bõa yguaria como boom vinho puro & a/meude.
empero nom muyto juntamente. porque a sobe/ja abastança & grande
inchamento tras apodren//
[7.v]
tamento dos humores. E em os mantiimentos/ guarte [sic] das
cousas queentes. assi como som pigmen/ta & alhos. ainda que pig-
menta purga o çerebro da/ freuma & os outros membros speciaaes
dos hu/mores vistosos. mas porque muyto aqueenta. & a/ queentura
traz podridom. melhor me pareçe soo/ a cousa amargosa que que-
entura cheyro & sabor./ ysso mesmo o alho posto: alimpe da freuma
& lan/ça fora os maaos humores. & prouoca o apetito/ de comer: &
nom consinta emtrar [sic] ho aar seco. empe/ro contorua os olhos &

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Mário Jorge da Motta Bastos


squeenta a cabeça de cada/ huum que ho ameude come. & por ysso
nom pareçe se/ neçessario mas antes inpidoso. a pertilençia que veem/
per causa queente ameude se acreçenta. & portan/to todos os mantii-
mentos quanto som de mais/ leue digestam tanto som milhores. pela
manhaam/ sejam os manjares cozidos: & de noyte assados/ caldos.
polmes. & potagios se euitem: se nom forem/ azedos Em tempo da
pestilencia valem mais cousas/ azedas que todalas meezinhas Isso
mesmo se eui/tem todos os fructos se nom forem azedos. assi como/
sam çirejas. romaans. ou huum pequeno de pero ou/ maçaam em lugar
de meezinha. porque todo ho/ fructo traz podridom. E as speçias que
comuummen/te conuem a comer. sam gingiure. canela. cumin/hos.
froles de heruas cheyrosas. & açafram. & com//
[8]
estas cousas busquem se pera os ricos muyto bõas/ salsas ou
salseamentos. porque se forem pobres con/tentem se com arruda e
salua. noz nozcadas [sic]. pereril/ & todo misturado com vinagre faz
muy bõa salsa/ E se nom forem muyto pobres: tomem cuminhos &
a/çafram & misturem tudo com vinagre. & tal salsa he/ muyto boõa
& destruye & quita ou tira toda po/dridom. E tambem a alegria do
coraçom he gram/ remedio pera a saude do corpo. polla qual cousa/
deue se bomem [sic] de guardar em tempo da pestilen/cia que nen-
guem [sic] nom tema morte. sem teer infirmida/de pestilencial. porque
ymaginaçam faz causa et/ perigo. mas qualquer com muyto prazer &
alegria/ sempre espere de muyto viuer./
Da sangria. Capitollo. v./
Sangria huuma vez em huum mes se pode/ bem fazer. se nom
se aydade ou outra cou/sa for em contrayro. assy como he em as/
molheres que som prenhes. ou em alguum muyto/ fraco .s. em alguum
que teem corrença ou fluxu do vem/tre. Façase ergo a sangria em a
vea destra ou see/stra ante de comer. & despois que a vea for ferida
ou/ aberta aproueyta muyto tomar muyto prazer./ beber muy boom
vinho ou bõa çerueja. empero sem/pre se tome temperadamente. &
nom conuem dormir/ em aquelle dia que se sangrar & abrir a vea. &
se alguum//
[8.v]
se agrauar de apostema ou sentir agrauado: ou/ se sentir ape-
çonhentado. em toda maneyra tal co/mo este euite o sonno & ysto em
andando. porque em/ ho sonno ha queentura intrinseca. caladamente
traz/ a peçonha ao coração & aos outros membros spe/ciaaes. em
modo que escassamente pode nenhuma her/ua tal peçonha reuogar.
a qual cousa nom se faria/ se o homem andar em mouimento. Mas
dirá al/guum. se o homem deue de euitar ho somno que fará ho/mem

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158
Anexo 1

se teuer o somno natural. A ysto digo breuemen/te que em tempo da


pestilencia. logo despois de co/mer. se alguum teuer desejo de dor-
mir: que tal desejo/ se deue reuogar & impedir per alguum andar em/
jardiis ou em campos. em modo que o somno natu/ral se possa tomar
per huma hora despois de comer./ Empero diz auiçena que se homem
quiser dormir ha/ de beber huma bõa vez de vinho ou çerueja ante/
de dormir. porque o homem estando em o somno traz/ em si muytos
vapores. & estes maaos humores/ se lançam fora pera tomar huma
bõa vez de vinho boom/ ou bõa çerueja. Mas diras tu. Como sintira/
homem que esta apeçonhentado & ferido da pestilen/çia. A ysto te
respondo que o homem que em tal dia/ he apeçonhentado nom come
muito. porque he cheo/ de maaos humores. & logo despois de comer
tem/ desejo de dormir. & sente de baixo de frio grande//
[9]
quententura [sic]. & ysso mesmo tem grande door em ha/ parte
dianteira da cabeça. mas todas estas cou/sas pode muyto bem euitar
& de sy lançar andan/do ou espaçando huum pouco antre ho comer
& o/ dormir. Posto que tal como este nom pode andar em/ cauallo ou
besta. nem andar grande camiho [sic] por/ a grande pigriça [sic] do
corpo & muyto grande pe/so & carrega corporal. porque o homem ja
apeçonhen/tado em todas as horas teem grande desejo de dor/mir.
porque a peçonha intrinseca pertorua o sprito vital. em modo que
sempre deseja folgança. Ergo/ per estes signaaes se sente homem
apeçonhentado. mas se alguum nom quiser creer: spere per huum
meo/ dia & logo sentira apostema de baixo dos bra/ços. ou açerca das
partes vergonçosas. ou açer/ca das orelhas. De ergo gramde remedio
sy se/ alguem sentir apeçonhentado ou em tempo de pestilencia/ sentir
estas cousas que escuse o somno & ho euite quanto/ poder. & assi
segundo estas cousas he assaz mani/festo: que em o tempo do somno
o sprito vital repousa:/ & emtom a peçonha espalha se per os membros
de to/da parte. Estas cousas per my mesmo prouey./ Estantes ergo
assi estas cousas quando se ho/mem sente ser tocado da peçonha
pestilençial. logo/ naquelle meesmo dia mingue ho sangue: & se san/
gre atee esmoreçer. porque pouco minguamento//
[9.v]
de sangue esperta a peçonha. & se homem nom quiser/ cortar
muytas veas juntamente: emtam leyxe [sic] yr a/ vea aberta ou ferida
atee o retardamento do san/gue. porque pequena sangria: ou peque-
na sayda/ de sangue mais fortemente esperta a peçonha se/gundo
dicto he. Item o homem que se sangra ou/ tenha pestenença ou nom.
em nenhuma maneyra nom/ deue de dormir per todo o dia atee mea
noyte: & sempre naquella meesma parte do corpo: em aquel/ ha do-

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159

Mário Jorge da Motta Bastos


ença ou chaga apareçer se deue de sangrar/ & abrir a vea. E se pella
ventura naçer a aposte/ma debayxo do braço direyto. sangre se em
ho/ meo daquelle braço da vea meaam. Se de bay/xo do braço seestro
ou esquerdo. sangrese em ha/ vea meaam daquelle meesmo braço.
ou na vea epa/tica .s. em a vea que he açerca do dedo mais peque/
no. E se açerca das partes vergonçosas. san/gre se em o pee daquelle
mesmo lado açerca do cal/canhar. E se a apostema for em o pescoço.
seja/ sangrado em a vea de çephalica açerca do dedo/ polegar em a
maão daquelle meesmo lado. ou na/ meaam daquelle meesmo braço.
ou na maão daquelle/ meesmo lado açerca do dedo menor. E se pe/
la ventura apareçer açerca da orelha: façase a san/gria de çephalica
daquelle meesmo lado. ou da vea/ que esta antre [sic] o dedo demos-
trador [sic] & ho dedo po//
[10]
legar. porque muytas cousas peçonhentas nom/ destruam o çe-
rebro. ou da vea que he açerca do dedo/ menor: ou açerca do articulo
que he de muytos me/dicos chamada basilica. E se polla ventura/ for
açerca das espadoas: minguaras o sangue com/ ventosas. & primei-
ramente minguaras a meaam./ E se for em o espinhaço mingua sobre
a vea que/ he chamada a pedica grande. E todas estas cou/sas se
façam se homem nom dormir antes que conheça/ que tem apostema.
E se pella ventura sentir/ chagas despois de dormir: emtom há de
menuir [sic]/ o sangue em a parte crucifixa que he a parte contray/ra.
porque se aparecer despois em o braço direyto:/ que se sangre em o
braço esquerdo do figado: ou ba/sílica: ou da meaam. E se apareçer a
apostema debayxo do braço direyto: emtom façase como di/to he do
braço esquerdo. & assi dos outros luga/res em os quaaes apareçer
a apostema: em ma/neira que sempre se mingue o sangue per modo
com/trayro. E despois do sangue menuido se for/ muyto fraco emtom
podera dormir despois do/ meo dia. & sempre antes do meo dia sera em
con/tinuo mouimento: ou caualgando: ou andando/ temperadamente.
E se despois creçer apostema:/ nom tema. porque tal apostema lança
o mal de fora/ & faz o homem ser muyto saão. E ysso mesmo por//
[10.v]
que a apostema mais çedo & milhor seja madura/ & seja rom-
pida façase meezinha em tal maneira. Toma folhas de sabugo pisadas
& com mostar/da pisada & faze emprasto. & despois poõe tudo/ na
apostema. posto que alguuns çirogiaães [sic] querem/ que lhe ponham
triaga mas eu rogo muito que se nom pon/ha. porque a triaga lança
a peçonha fora. mas eu queria/ antes que quando alguum teuesse tal
apostema que sor/uesse em si toda a triaga: & assy lança a peçonha./
Item outro remedio Tomaras huma herua que/ chamam barba jouis. &

O poder nos tempos da peste.indb 159 19/8/2009 19:01:59


160
Anexo 1

outro que chamam serpillo/ que acharas ao boticairo. & ysso mesmo
toma chan/tagem & siligem (vay te ao boticayro) & pisa todo/ muyto
bem atee que vejas que quer pareçer que say de/stas cousas assy
pisadas augoa ou çumo. emtom/ toma aquelle çumo & mistura ho
com leyte de molher/ & da ho a beber aquelle que teuer apostema. &
ysto com/ o estamago [sic] gejuum. porque emtom obra milhor em
o/ homem. Item quando apostema primeyro apareçer. to/me auela-
ans. figos passados & aruda & tudo bem pisa/do: ponlho ençima da
apostema. E estas cousas/ abastem pera pestilença. & qualquer que
se per este modo reger/ escapara muytos periigos da pestilencia com
virtude/ & meezinha de nosso senhor jesu christo. sem o qual nom/
ha hy saúde. & da benta virgem maria sua madre se/ja gloria & louuor
pera sempre Amen./
Feyto em Lixboa per Valentino de morauia.

O poder nos tempos da peste.indb 160 19/8/2009 19:01:59


Anexo 2

Recopilaçam das cousas que convem gvardarse no


modo de preseruar à cidade de Lixboa. & os sãos, &
curar os que esteuerem enfermos de peste.

A Recopilaçam das cousas que convem gvardarse no modo de


preseruar à cidade de Lixboa. & os sãos, & curar os que esteuerem
enfermos de peste é um tratado médico sobre a peste elaborado por
Thomas Aluares e Garcia de Salzedo, doutores em Medicina origi-
nários de Sevilha e médicos do rei de Portugal, D. Sebastião, escrito
por determinação régia durante uma violenta epidemia que assolou
Lisboa e algumas outras cidades do reino, em 1569, em meio à atuação
daqueles no trato com médicos e doentes da cidade. O documento
transcrito a seguir constitui uma cópia da segunda edição, impressa
em Lisboa por Marcos Borges, em 1580.

O poder nos tempos da peste.indb 161 19/8/2009 19:01:59


163

Mário Jorge da Motta Bastos


Recopila/ çam das cousas/ que convem gvardarse/ no modo de
preseruar à cidade de Lixboa. & os sãos, & curar os que esteuerem
enfermos de peste. Feita pellos/ doctores, Thomas Aluares, & Garcia
de Salzedo, vezi/ nhos de Seuilla, & medicos do serenissimo rey/
de Portugal, Dom Sebastiam Primeiro,/ nosso senhor, & dirigida/
à Sua Alteza./ Foi mandado imprimir esta segunda impressão, per/
mandado da Cidade de Lixboa, sendo vereadores, os se/nhores
Manoel Tellez Barreto, & Antonio Dagama; & / Francisco de Saa,
& Fernão de Pina, Provedor Mór da/ Saude, & Bastião de Lucena
Dazeuedo, Procura/dor da Cidade, & Gaspar Rodriguez, & Luyz/
Franco, & Francisco Rodriguez et/ Antonio Nobre, Prouedores/ dos
Mesteres./ Vista pellos Deputados do Sancto Officio./ Impresso em
Lixbo [sic], por Marcos Borges, Im/pressor del Rey nosso Senhor./
Anno de M.D.LXXX. //
[2]
Serenissimo, Muy Alto, y Muy Poderoso Senhor.
Visto el zelo nascido del Christianissimo pecho de V. A. para el
remedio deste mal de Peste, que al presente anda enesta tan celebre,
& insigne Ciudad de Lixboa, y que para ello Vossa Alteza nos mando
venir desde Seuilla, nos dio animo para que no solamente viniessemos
a meternos en peligro de estar en parte a donde segun lo que auemos
leydo, y despues experimentado, sabemos se corre mas aun para
visitar tanto numero de enfermos como en ella se nos ha offrescido,
sin nos quedar ni aun tiempo de descansar del gran trabajo. Y como
el principal fin para que V. A. nos mando por sus Reales cartas venir
fue, para que con los Medicos desta Ciudad conmunicassemos los
remedios que este mal podria tener: lo qual luego que por Don//
[3]
Martinho Pereira del consejo de V. A. y veedor de su hazienda
nos fueron señalados, nos juntamos muchas vezes en casa del Doctor
Antonio Diaz, Prouêdor mayor por Vossa Alteza de la salud, y en su
presencia se mouieron, y determinaron las dudas que cada uno qui-
so mouer. Y por auerse nos mandado diessemos por escripto lo que
fuesse conueniente para remediar tanto daño, nos parecia hazer una
breue recopilacion partida en quatro partes: la primera aduertir de
algunas cosas necessarias para lo general desta Ciudad. La segunda,
la orden que se tendra en curar los pobres, los desamparados, dellos
lleuando los a las casas de la salud para ello diputadas, y a los demas
supliendo sus necessidades: las quales cosas dimos luego dentro de
tres dias a Don Martinho Pereira, cuya orden Vossa Alteza por sus
Reales cartas nos mando en todo siguiessemos. La tercera, es una
orden de preseruarse los sanos deste mal. La quarta, //

O poder nos tempos da peste.indb 163 19/8/2009 19:02:00


164
Anexo 2

[4]
la cura desta enfermedad. En las quales dos posturas partes,
emos procurado de no dexar cosa de lo que bien escriuieron los que
dello tractaron, antes añadiendo algunas particularidades muy ne-
cessarias para la cura fundadas en razon, y larga experiencia (como
en ellas se podra ver): en lo qual no poco trabajo hemos tenido por la
breuedad del tiempo, y el peligro de la tardança: y las occupaciones
del dia ha sido causa para que en horas hurtadas a nuestro reposo
se uuiesse cumplido con lo que desseauamos. A Vossa Alteza humil-
mente [sic] supplicamos resciba este pequeño seruicio, tomando en
cuenta la intencion con que esto se ha trabajado, que es de seruir a
Vossa Alteza, y assi lo fauorezca como cosa de sus criados, y mandada
hazer de parte de Vossa Alteza. El prouedor mayor de la salud quiso
se trasuntasse & imprimiesse en lengua Portuguesa. Y constando nos
de su mucho cuydado, y zelo de administrar bien su//
[5]
cargo, aunque quisieramos se imprimiera en la lengua que se
escriuio, venimos en ello. Plega a nuestro Señor haga tanto fructo
como desseamos, y guarde y felicite la Real persona de Vossa Alteza
con acrescentamiento de Reynos, y Señorios. En Lixboa a 13 Dagosto
de 1569 Años./
Criados de Vossa Alteza que sus Reales/ pies, y manos besan,/
El Doctor Thomaz Aluares./ Doctor Garcia de Salzedo Coronel./
Al Lector./ Las faltas que enesta recopilacion uuiere, son dignas
de perdon, como cosa hecha en muy breue tiempo, y muy occupado,
assi en visita de mucho numero de enfermos, desde dos de Agosto
que llegamos a esta Ciudad hasta doze del dicho que esto se acabo.
En el qual se les leyo a los Doctores Medicos, Pedro de Palacios, &
Prospero Diaz, Francisco Botelho, Rodrigo Ribeiro, hombres de grande
erudicion, y experiencia, que nos fueron señaladas para proponer las
dudas que en la cura desta enfermedad se offrescieron: los quales la
aprobaron. Algunos medicos para el beneficio deste mal encomenda-
dos por algunos de los que en la materia hão escripto dexamos: solo
tomamos dellos los mas seguros, los mas prouechozos, y de nosotros
mas experimentados, teniendo cuenta principal con las particularida-
des que en los enfermos desta Ciudad hallamos, para remedio de lo
qual se nos mando la escriuiessemos. Escusamonos//
[6]
de alegar autores, porque el que fuere exercitado enellos vera
luego, que lo que aqui dezimos va fundado en lo que ellos dexaron
escripto: y para los que no lo son, mejor le esta la breuedad: y tampoco
haze al cazo de la cura contar cuentos que nos ayan acaecido, porque

O poder nos tempos da peste.indb 164 19/8/2009 19:02:00


165

Mário Jorge da Motta Bastos


las curas que han tenido buen sucesso por esta orden las auemos
guiado. IESV CHRISTO nuestro Señor, que es verdadero dador de salud,
alumbre nuestros entendimientos, para que en profession de tanta
importancia como es esta nuestra acertemos a seruilo, ayudando a
nuestros proximos, encaminandoles a la salud que se pretende.//
[7]
A ordem que se deu do que conuinha ao geral da Cidade pera
preseruaçam, & cura desta enfirmidade de peste./ Logo como Dom
Martinho Pereira do conselho de Vossa Alteza & veador de vossa fazen-
da nos mandou que nos juntassemos com os medicos assinados pera
tratar as duuidas que em a cura desta enfirmidade se recrecessem,
o posemos por obra, & o himos continuando o mais que podemos,
& tambem auemos visitado os enfermos que nos mandou visitar, &
outros muytos enfermos pobres da cidade: & porque para o remedio
de tudo nos pareceo ser necessarias algumas cousas que consistem
em a gouernança, as damos por escripto, porque assi nos mandou
que o fizessemos.
O primeiro he, que se dê ordem como aja todas as prouisões
necessarias, assinadamente bom pão que não seja do mar, galinhas,
frangãos, & perdigões: porque nesta enfirmidade he necessario ceuar à
uirtude continuamente com muyto bom mantimento: & assi ha mester
que aja abondança, de maneira que o achem a comprar todos os que
o ouuerem mester. & se para isso for necessario, mandar homens da
cidade que os vão comprar fora para prouimento, assi dos hospitaes,
como da mais gente. & para isto nos parece que se deue mãdar dar
prouisões, para que a estes homens não lhes impidão a entrada//
[8]
em nenhum dos lugares, nem à nenhum outro que traga qualquer
genero de prouisão a esta cidade, & que lhes não seja feito agrauo,
nem lhe impidam a passagem./ A limpeza das ruas, & praças, & partes
pubricas he cousa muito importante: & para isto se faça diligencia, que
por muito que seja, não sera demasiada, segundo o muito que importa:
& antre [sic] outras cousas nos parece, que as immundicias que se
costumão leuar ao mar, seja de noite, ou de madrugada, a oras que não
aja, gente pola cidade, pola mayor impressão que recebe o ar, & a gente,
sendo de dia./ Muito louuado he na fisica fazer fogos pollas ruas, & ao
redor dos lugares, que estão já tocados, & isto parece que vem mais
ao proposito em Lisboa, polla muita humidade que tem, que he causa
potissima desta enfirmidade, & por serem as casas altas, sem pateos,
nem quintaes, as ruas estreitas, & por isto o sol não faz tanta operação,
& os ventos não as enxugão tanto. Podem se fazer os fogos de Alecrim,
Zimbro, Cedro, Acipreste, Oliueyra, Esteua, Vides, Pinho, Murta, & Aro-

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166
Anexo 2

eyra, & todos os mais bons cheiros que cada hum quiser deitar, assi dos
comuns como polas menhãas ou aa boca de noite. & estas duas cousas
são muyto louuadas em a fisica, assi pera ho remedio, como//
[9]
para a purificaçam do ar, no qual consiste grande parte da
cura, & preseruação deste mal, porque como o ar corrupto he a cau-
sa delle, a sua retificação sera o remedio./ Assim mesmo se hão de
mandar aos barbeiros, & aos demais, em cujas casas ouuer sangrias,
que logo acabado de sangrar mandem ho sangue ao mar, & o não te-
nham em casa nem aa porta pera o ver, como ho costumão fazer em
outras enfirmidades./ Nestes tempos encomendão muito os Medicos,
que aja pouco exercicio que chegue a trabalho, como jugar a pela, &
armas: & o que mais faz ao caso he tirar todas as danças, bailos, &
ajuntamentos dos negros, assi porque o exercicio (como està dito)
he danoso, como pello mao cheiro que de si dão, & porque elles de si
mesmos são mais pronptos a cair neste mal, & a todas as congregações
de gente se mandão vedar, quanto mais de tal gente. & não somente
estes ajuntamentos nos parece se deuem tirar, mas ainda os nauios
de negros que vierem de nouo, estem em parte onde não chegue á
communicação da Cidade, porque vem aparelhados a esta enfirmidade
por muitas causas. & porque a roupa frisada he a que mais embebe
em si o ar, sera bom auisar aos que andarem entre os enfermos, usem
de outras roupas antes que destas,//
[10]
por mais seguridade de suas pessoas, & dos que communicão.
O pão que se amassa de trigo do mar, não he são por seu mao chei-
ro: podese emendar, amassandoo com agoa cozida com erua doce,
& tambem deitando a mesma erua doce no pão, porque com isto se
retificarà parte do dano com a do mar: isto se entende pera os sãos./
Nam he bom que se venda carne que morresse, nem a que começar
de cheirar mal, & o de seu mesmo os pescados: & assi em as partes
que se venderem todos os mantimentos, se tenha grande cuydado da
limpeza, de maneira que não aja rasto de mao cheiro./ Tambem se
deue de vedar, que não se vendão fruitas danadas, nem começadas
dapodrecer./ He bom que aja muyta abondança de boa carne, de
maneira que a todas as horas se ache, porque seja occasião que se
comma menos pescado: porque nesta enfirmidade o pescado por sua
demasiada humidade he proibido, especialmente o que se pesca perto
das Cidades grandes, onde comem muytas immundicias: porque estes
se corrompem mais facilmente, & de pior corrupção: o das outras
partes que se ouuer de comer he milhor frito ou assado, que cozido,
e sendo cozido sera com vinagre, & sem eruas.//

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Mário Jorge da Motta Bastos


[11]
Importa muyto que aja grande diligencia de enterrar os corpos
dos defuntos, de maneira que nem em casa nem na ygreja aja dilação
na sepultura. & assi mesmo os corpos dos que padecerem por justiça,
se lhes dee sepultura com breuidade, & muyto perto do lugar onde
se executar a justiça. & se os curas não abastarem a tanto trabalho,
se mande prouer mais clerigos que nisto entendam, porque oje vi-
mos tres corpos que por falta de clerigos estauam por enterrar./ Da
casa publica da mancebia resulta grandissimo danno, por muytas
razões que para isso ha, & se poderão dizer querendo as ouuir./ Aos
pobres que pedem pelas portas que forem chagados, sera acertado
darlhes mantimento em alguma parte, recolhidos, de maneira que não
andem polla cidade, porque com suas chagas não ay duuida senam
que ajudaram a danar mais o ar./ He necessario que aja grandissima
diligencia, pera que nas casas onde se ouuerem ferido de tres pera
cima, se despejem, & cerrem, pera que não usem delle os enfermos
nem sãos, pelo tempo que se determinar, porque està claro que aquelle
ar està mais danado que outro, & antes que se cerrem, se fação fogos,
& perfumes nas taes casas.//
[12]
Os banhos que ouuer na Cidade he bom tiralos neste tempo.
Em a roupa dos feridos, ha de auer ordem na limpeza, & guarda, pera
que se possa aproueitar della sendo dalgum preço, & a que o não for
se queime, & a boa lauarse ha muy bem primeyro na agoa do mar,
especialmente na vazante, & despois em agua doce, & despois em
agua, & vinagre./
A ordem que se ha de ter com os enfermos pobres, assi em as
casas da saude, como em as particulares./
Para remedio deste mal nos parece que aja dous Ospitaes aos
dous estremos da Cidade, casas grandes, & airosas, & podendo ser
baixas antes que altas, em que aja muytos aposentos onde estem re-
partidos./ Os homens que ham de leuar os enfermos sejão vestidos de
cor sinalada, & de bocaxim, & a cadeyra, ou leito em que os leuarem
com sua cortina do mesmo, & estem prestes assi os homens como
a cadeyra em parte onde se achem facilmente: & se communiquem
pouco, porque não se inficionem com o ar delles./ Que por estar o mal
tam estendido, nam seja ninguem apremiado a yr per força ao hospital,
senão o que de sua vontade quizer yr: porque se siguiraa//
[13]
que ninguem encubra o mal (como se tem visto por experien-
cia encobrillo) por não yr ao hospital, & por esta causa morrer./ Que
recebão com facilidade os enfermos que quiserem yr, porque os po-

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168
Anexo 2

bres & desamparados nam ham de ter quem os solicite, & porque a
enfirmidade requere os beneficios com tempo, & se vam tarde he muy
difficultoso o remedio, & o mouimento sobre fraqueza he occasiam
de morrer mais asinha. Que em cada hospital aja apartamento pera
curar os escrauos a custa de seus donos, porque não se corrompa
mais o ar com o mao cheiro repartido pollo pouo. & pois que nam
podem estar todos os enfermos juntos, tenha se conta que estem a
parte os que forem mais feridos./ Que se leuem aos hospitaes as ca-
mas dos feridos que la forem, assi liures como escrauos, tendose ja
deytado nellas depois de feridos: pera menos custa dos hospitaes, &
porque aja menos roupa repartida pelo pouo./ Que se busquem pera
administradores pessoas Religiosas, charitativas, diligentes, & de bom
gouerno, pera que dem ordem que os officiaes fação nos hospitaes
seus officios como cumpre.//
[14]
Que aja em cada hospital quem administre os Sacramentos em
entrando os enfermos, pellos inconuenientes que depois socedem,
como por tirarse a fala, ou o juyzo, & polos vomitos que este mal traz,
que nam sera decente receber o Sancto Sacramento com elles./ & se
eleja pera cada hospital medico, & cirurgião, & se o medico souber
de cirurgia sera milhor, & enfermeiros: & podendo auer alguns dos
que praticam cirurgia no hospital del Rey sera melhor por o que ja
entendam, & que a estes se lhes encarregue muyto a charidade, & di-
ligencia: & nam sayam de casa, assi por que nam se alonguem da cura
dos enfermos, como porque nam se apeguem os ares delles aos sãos
de fora./ Assi estes como todos os mais dos officiaes dos hospitaes se
perseruem, assi no comer, como no vestido, como no vso das mezinhas
que se dirão, assi porque se faça o que he necessario com os enfermos,
& se vse de charidade com elles, como porque se morrerem alguns
delles nam se guardando, fugiram os outros de seruir nos hospitaes,
& os enfermos ficaram sem remedio./ Que aja aposento a parte para
os conualecentes, ao qual vão nuus de toda a roupa que antes tinhão
no hospital, & que a sua que antes tinhão, se//
[15]
lhes torne lauada antes tres ou quatro vezes, e a derradeira em
agoa, & vinagre: & no cabo se fara hum cozimento de murta, aroeyra,
acipreste, & zimbro em agoa, & misturado com vinagre se lance sobre
hum tijolo feito brasa ao fogo, & perfumando com o bafo a roupa. &
os mesmos que ham de passar ao aposento dos conualecentes, se
passem onde se ham de reger como conualecentes, porque acontesce
muytas vezes despois de liures da enfirmidade por ficarse entre os
enfermos, tornarse a ferir de nouo, & perigar./ Com os defunctos dos

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Mário Jorge da Motta Bastos


hospitaes se ha de ter esta ordem, que estê feita huma coua muy alta,
& comprida pera todos os corpos, na qual em morrendo o enfermo,
o enuoluão no lançol, ou manta em que morrer, & deytandolhe cal
primeiro, & logo terra encima, seja muyto calçado, porque nam saya
mao vapor: porque depois de Deos na retificação do ar, & em esto-
ruar que não se corrompa, consiste o remedio deste mal./ & porque
qualquer medo dana muyto nesta enfirmidade seria conueniente, que
quando o enfermo estiuer muyto propinquo a morte, o tirem logo de
antre os outros, porque o nam vejam morrer./ Importa muyto que nos
lugares donde//
[16]
necessariamente ha de auer muyta gente, como he nas cadeas,
galees, em sendo ferido alguem, o carcereiro que tiuer conta com elles,
logo o mande a parte que para a cura de tal gente for assinada, porque
não peguem aos outros sãos./ & nos mosteiros, & casas de religião,
assi frades, como freiras, tenham seus mayores cuydado de tirar de
casa aos que forem feridos, & poelos em a mais apartada parte da
conuersaçam de toda a casa, & fora da enfermaria ordinaria, & que
a estes curem alguns religiosos, ou religiosas dos mais velhos, & de
compreiçam fria, & seca, & se preseruem, & escusem a conuersaçam
da casa./ Ha muytos enfermos pobres na cidade que tem necessidade
de ajuda, & tem suas casinhas em que podem estar: seria bom que
pera estes se mandasse dar salario a alguns medicos, a cujo carre-
go estiuessem repartidas as freguesias, & que estes medicos cada
hum com seu religioso visitasse os pobres, & que por suas receptas
assinadas pello medico, & religioso se lhes pagassem aos boticairos
as mezinhas que por ellas derem./ & sendo tanta a necessidade, que
se lhes dê mantimento competente por amor de Deos, porque como
auemos visitado muytos enfermos, temos visto//
[17]
muytos com extrema necessidade de todo beneficio./ & sobre
tudo pedimos se mande poer grande diligencia, em que haja prouisões
abastantes, porque entre os enfermos (que temos visto alguns) nos
tem certificado que por nenhum dinheiro achão frangãos nem galinhas:
& nisto vay muyto, porque esta enfirmidade se remedea com comer
bons mantimentos, & a falta delles he hum dos mayores danos que
ha na cura della.
Regimento Preservativo contra o mal da Peste./
Presuposto o que temos dito em geral na retificação do ar da
Cidade em o apontamento, que se deu para a emenda dele, he neces-
sario em particular que pela manhãa não se abrão as janelas até o
sol leuado, nem se saya de casa atè duas horas despois de sahido, &

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170
Anexo 2

entam sera bom que estando a casa muy limpa, se ague com vinagre,
& agoa, auendo calma. & se for o aposento principal, & se barrufar
com agoa rosada, & vinagre, partes ygoaes, isto sera melhor. Tambem
se pode fazer isto com hum pedaço de pano de linho, posto a maneira
de bandeira em hum pao, & molhandoo as vezes que ouuer calma no
dito vinagre, & agoa, fazendo vento com elle. & em tempo de inverno
se barrufe com vinho cheyroso, em que seja cozido//
[18]
hum pouco de beijoy, & cascas de cidras, & isto coza tapada a
boca da vasilha, & com fogo manso: & no aposento onde se ouuer de
estar, alguma caçoula feita de beijoy, & cascas de cidra, estoraque,
& huma pequena de algalia, em agoa de flor, para o inverno. & em
verão com agoa rosada, & acrescentando rosas secas, & isto ha de
estar ao fogo manso continuamente, de maneira que saya hum va-
por suave & cheiroso./ O aposento he milhor o que tiuer as janelas
ao norte, & se isto não poder ser, seja ao ponente, & não as auendo
desta maneira, estem cerradas as janelas. Em tempo de inuerno, &
em dia frio, & claro, se podem abrir as janelas ao meyo dia, a horas
que entre o sol, & purifique os aposentos, & casas./ Assi mesmo se
façam fogos de noyte, & menhãa, em verão na parte da casa, onde
mais se communiquem aos outros aposentos. & toda a lenha seja de
bom cheiro, como acipreste, zimbro, alecrim, murta, oliueira, lourei-
ro, vides: podese lhe yr deitando perfume de bom cheiro, quando
se acabar a chama. & de inuerno se podem fazer estes fogos a todas
horas./ Serà bom que em verão estem os aposentos enramados com
ervas, & ramos//
[19]
de bom cheyro, & em inuerno com arruda, poejo, & manjarona,
ortelãa, mentrastos, erua cidreira. Tambem se podem ter fruytas, como
marmelos, camoesas, peros de bom cheiro, cidras, limões, laranjas,
zamboas, & toda fruita despinho./ He bom trazer de contino huma
poma na mão, em tempo quente feita desta maneira: Os tres Sanda-
los, rosas, folhas de murta, flor de golfão, frol de violetas, almizcre,
ambre, algalia, desatado em agua rosada, & com laudano purissimo,
& tormentina de abiete mui lauada com agua rosada: & com isto se
fação pomas para trazer. & para tempo frio se pode fazer de estora-
que, linaloe, canela finissima, nos moscada, beijui de boninas, ambre,
almizcre, algalia, & tudo isto desatado em vinho brãco, vermelho fino,
& se farão as pomas com a tromentina lauada com agua rosada, & com
o laudano. Destas mesmas cousas de que se hão de fazer as pomas,
se poderão fazer huns saquinhos de tafetà carmesi, para pôr sobre
o coração, que a que se aconselha do solimão./ O que toca ao comer,

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171

Mário Jorge da Motta Bastos


& beber para a preservaçam, todos os mantimentos secos sam mais
louuados que os outros./ Do pão, como he mantimento que mais se
vsa, se tenha principal conta//
[20]
que seja de bom trigo, nam velho, nem de couas, nem furado,
nem de mao cheiro, & escolhido de toda outra semente. O pão de calo
souado com erua doce, he milhor que o molete, & quem gostar mais
do biscouto, ou rosquilhas, sam milhores: não seja o pão duro, nem
quente, & cozase com boa lenha, & amassado com boa agua./ Das
carnes as de monte sam as milhores com duas condições: à huma,
que não seja a res velha, senam que estê em idade de crecer, & que
seja no tempo do anno em que tem vez, que he quando tem o pasto
de que se mantem em abondança, & destas todas as que se vsam co-
mer sam boas. & a de veado, porco montes nouo são mais louuadas
principalmente em conserua. Das domesticas sam boas carneiro,
vitela, cabrito, de mais idade hum pouco do que se costuma comer,
com tanto que não tenha cheiro de seu pai: & não se comam as partes
gordas, nem tutanos: sejam antes assadas, que cozidas, como todas
as demais carnes./ Tambem se pode comer de hum lacão, com que
não seja da parte gorda, & seja pelado o porco sem agua quente, não
seja muy salgado, porque não obrigue a beuer demasiado, que he
danoso./ As aues sam boas as do campo em tempo que tem sazão,
como perdigões,//
[21]
perdizes, rolas, Pombinhos, passarinhos, melras, Estorninhos,
tordos, Codornizes: & das caseiras sam boas, galinhas, frangãos, ca-
pões, pauões das Indias, & os frangãos dos pauões reaes: presuposto
que não se ha de comer a grossura destas aues./ Todas as carnes, assi
aues como essoutras, sam melhores assadas que nam cozidas: mas
auendose de comer cozidas, em verão se deitara a cozer com ellas
azedas, agraço, & em seu lugar vinagre, & deitandose agro de Cidras,
ou çumo de limão ceitil sera milhor: em inuerno se podem deitar as
cousas acima ditas com acrecentar ortelã, e as especias que ordinaria-
mente se costuma deitar em os guisados, & hum pouco de alho./ Destas
carnes, as mais duras serão ao proposito preseruativo, deitadas em
adubo hum ou dous dias primeiro, o qual se pode fazer de ouregam,
& pouco alho, & sal, & vinagre forte, & humas talhadas de limões: &
em inuerno lhe deitem crauo, & um pouco de gengiure./ Os pescados
geralmente são condenados nesta materia de preseruação por dano-
sos, & mais os de rio que os do mar: & dos do mar são menos danosos
os que se tomão em rochedo, & os milhores sam os mais enxutos de
carne, como sam Aranhas, Salmonetes, Linguados,//

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172
Anexo 2

[22]
Azenias, pescada, & qualquer outro de carne enxuta que nesta
terra se tem experiencia ser bom: com que não seja pescado dentro
de huma legua de Lixboa, polas inmundicias de que se mantem. Estes
auendose de comer, seram milhores assados, ou fritos em pouco &
bom azeite, & deitados em escabeche, ou passados despois de fritos
por vinagre feruido com crauo./ Os ouos de galinha frescos são de bom
mantimento assados, ou cozidos em agoa com a casca, de modo que
de huma maneira, ou de outra sejão moles, ou passados por agoa com
agraço, ou vinagre, ou çumo de limão./ Toda cousa de leyte he muito
danosa, soffrese comer algum pouco de queijo velho do muito bom
dalentejo./ As fruitas verdes, todas as mais as defendem os autores,
excepto ginjas, romãas, abrunhos, marmelos, peras, peros, camoesas:
laranjas agras são louuadas, ou as bicaes./ Das fruitas secas, são boas
passas de toda sorte, figos passados, auelãas, nozes, amendoas: & se
começar a comida com figos passados, recheos com nozes, & erua
doce, em inuerno sera acertado: & as alcaparras ás ceas por selada,
são muy encomendadas para esta materia.//
[23]
Dos legumes & eruas, as azedas na selada, ou cozidas com a car-
ne, borrages, sarralhas, & escabiosa se podem usar. Lentilhas são muy
louuadas cozidas com agraço, ou com vinagre./ Tenhase por auiso que
diuersidade de manjares a huma mesa, ou guisados com diuersidade
de cousas, como manjar branco, miraustre, tigeladas, pasteis de todas
maneiras, & finalmente misturas de comida são danosas: o assado he
o milhor, & logo o cozido com has condições ditas./ A quantidade de
comida seja de maneira que o estamago a possa muy bem gastar, &
não lhe dê fastio, & que estê primeiro a comida bem gastada. Milhor
he declinar a pouco comer que muyto, com que não seja tam pouco,
que se enfraqueça a força./ Todas as cousas doces, assi conserua,
como outras daçucre & mel, não são proueitosas nesta materia, ain-
da que as cousas que de seu são boas não se podem guardar se não
conseruandose, como são marmelos, peras, ginjas, & os çumos agros
como de cidras, agraço, limão, camoesas, peros cheirosos: de todas
estas cousas se podem usar, não por doces, se não por ser contrairas
ao mal da peste./ As cousas vntuosas, & de grossura,//
[24]
et azeites são danosas, ainda que sejão em pouca quantidade,
porque os manjares que as leuão tambem se mandão deixar./ No que
toca ao beuer para preseruação deste mal, he bom que o que tem de
costume beuer vinho, & os velhos que o não tiuerem, o beuerão mo-
deradamente aguado conforme a força do vinho às oras das comidas.

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173

Mário Jorge da Motta Bastos


Porque como pretendemos ter a virtude fortificada, & com auondança
de spiritus, e escusar o medo, & que o medo não faça assento: a todas
estas cousas ajuda o moderado uso do vinho. Nos moços de idade atè
dezoito annos de qualquer maneira, & dahi para cima ate a velhice, se
não tem costume de o beuer, temos por mais saudauel não o beuer,
principalmente nesta terra, & na infirmidade que corre. & mais do
vinho que mais ordinariamente se beue, que he vermelho, ou tinto, o
qual he muy propinquo a natureza do sangue. & as infirmidades que
agora correm, todas as mais tocam, & tem damno no sangue./ O vinho
nos parece sera mais são ao proposito da preseruação branco, dou-
rado, de cor de casca de cidra, & que seja de dous annos & dahi pera
cima, cheiroso, & sem gesso, sendo possiuel sem que tenha reponta
de madre, nem agro, nem outro mao sabor, agoado mea hora ante de
comer: & que se beua//
[25]
frio moderadamente em inuerno como esteuer, & em verão
quanto cada hum soffrer./ Os que não tem costume de beuer vinho
senão agoa, sera bom que a busquem boa, & para isto he de considerar
que seja de fonte conhecida, ou de bom rio que corra muito, & passe
por terra limpa e areosa, cujo peixe tenham por bom os moradores
ao redor, & que se tome a agoa do rio acima do pouo, depois de saydo
o sol, com tal que no dito rio nam seja metido a cortir linho, canamo,
ou esparto, nem cousas desta qualidade. Toda a agoa de poço nos
parece que se deue escusar, & quando se nam poder deyxar de usar
della, se coza sendo em inuerno com canela, ou erua doce, ou crauos:
& em verão com azedas, ou semente dellas, ou se lhe deite hum pou-
co de vinagre: ajuda tambem a retificação da agoa, ou vinho que se
ouuer de beuer, apagar na agoa ou no vinho huma lamina, ou barra
douro ardendo./ No dormir ou velar, vay muito que aja moderação
no hum, & no outro, porque o velar demasiado resolue os espiritus,
& virtude, & o demasiado sono humedece de tal arte, multiplicando
humidades, que despõe os corpos para receber infeição pestilente.
Seja pois o sono moderado, antes decrine à menos do acostumado,
que a mais. Principalmente nos que são grossos, & os que tem muitas
superfluidades://
[26]
seja depois de cea huma, ou duas horas, senão for nos que tem
costume perder o sono por não dormir logo despois de cea: seja o
sono de noite em aposento bem guardado do sereno, e aja nelle bom
cheiro, como de hum tachinho de perfumes, ou tendo pendurado
fruitas cheirosas, ou tendo huma almofadinha chea de rosas secas &
alguns outros cheiros em lugar de lãa, como se costuma fazer para as

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174
Anexo 2

mimosas. O sono depois de comer he danoso, senão for muy acostuma-


do, ou auendo faltado na noite, & o que for seja em aposento escuro,
& cheiroso (como està dito), com tanto que não seja o aposento muy
frio, nem muito humido no verão, & em inuerno seja em alto./ No que
toca ao exercicio, ainda que em regimento de saude seja muy louuado,
neste tempo se ha de vsar com mais moderação, seja antes de comer, &
depois de ter despejado o ventre, e a bexiga. A quantidade seja alguma
cousa menos do ordinario, por que como o dano deste mal he o ar
corrupto, com o muito exercicio se acrecenta a necessidade de entrar
ar de fora no corpo para dar refrigerio: & como este està venenoso, he
necessario escusalo quanto seja possiuel. & soffrese menos exercicio,
porque comendo menos, & mantimentos mais enxutos, auera menos
superfluidades, & poderà escusarse o muito exercicio: & sera//
[27]
bem que seja em aposento bem cheiroso, & cerrado, que nam
entre ar do danado, nem saya o outro ate acabado o exercicio, &
tornado a quietar o folego. & aconselhamos a pregadores, lectores, &
cantores, que se exercitam dando vozes, que excusem de encender-
se muito, & muito mais quando se isto faz em congregação de muita
gente, como he pola mayor parte. He conselho neste tempo, & que
nam pouco importa, escusarse de yra, nojo, tristeza, & demasiada
congoxa, & cuydado, & sobre tudo de medo desta infirmidade, de ouuir
maos acontecimentos della ao menos ditos de supito: tomar alegria
moderada, entretenimento de boas conuersações, algums jogos de
passatempo, que o preço perdido ou ganhado não dê pena. Ouuir, &
ler historias apraziueis, & não lidas com tanta pressa que cansem, &
apresure o folego, são cousas que se deuem vsar. & assi trazer vestidos
que alegrem, limpos, & cheirosos: e que se mudem: se forem de seda
rasa melhor, que de outra cousa: & o que andar no ar inficionado, nam
traga frisado. O trazer pedras preciosas, principalmente Esmeraldas,
e Iacintos, trazendose que toquem a carne sam melhores./ A conuer-
saçam de molheres he vedada neste tempo, & com rezam./ Os que
tiuerem euacuações acostumadas,//
[28]
como camaras, fluxo dalmorreimas, molheres que alguma cousa
demasiado lhes vem sua purgação, com tal que as não debilite muyto,
ou tiuerem gota, ou sarna, ou o que tiuer corrimento a membro ignoble,
ou chaga velha, ou fonte, estes tais não se tirem estas euacuações,
senão deixemse passar sem curarse neste tempo. Porque não os asse-
gura pouco deste mal qualquer destas indisposições, antes os escusa
dalgumas euacuações, que sam necessarias para preseruaçam do
mal./ Tenhase conta em despedir as superfluidades, porque não està

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Mário Jorge da Motta Bastos


a cousa mais louuada na fisica, que ter os corpos limpos dellas, porque
são a materia em que se encende este fogo: & pera remediar isto, &
alimpar os corpos, são bem louuadas, & bem antiguas as piloras que
nomeão de Rhasis, porque alem de limpar o corpo, os materiaes de
que se compõe preseruão os corpos de putrefação, o qual claramente
se vè nos corpos mortos que se embalsamão. Tomem se em inuerno, &
para os corpos não quentes ao pè da letra como ellas estão: & em estio,
& para corpos quentes teriamos por bom conselho acrescentarlhes a
quinta ou sexta parte de bolo armenico, & formalas com enxarope de
agro de cidras: a quantidade que he bem tomar dellas em regimento
de saude, he o mais ordinario, como meya dragma ao terceiro dia, ou a
quarta, segundo a necessidade que ouuer de euacuação, & a brandura
do ventre de quem//
[29]
as toma, que nisto não se pode limitar regra certa: a melhor ora
de tomalas he pola menhãa, & não tem necessidade de guardarse.
Tambem se tenha conta que as superfluydades acostumadas a euacuar
polas narizes, & escarrãdo do peito, & por ourina, se façam: & entre
as outras cousas aproueitara muyto fregar polas manhãs as partes
donde soem estas nascidas sair, com hum pouco de vinho branco
velho cheiroso: & deitandolhe hum pouco de almizcre, ou algalia, sera
melhor, & quente o vinho: porque por ali aos membros principaes
estão os poros muy abertos, & assi como a natureza se descarrega,
deitando ali o mao, recebe proueito da conuersaçam do bom cheiro./
Tambem nos parece que algumas vezes, & com as condições que ha
de auer para a preseruação, tirar sangue, & não tam ordinario como
aqui se faz: quadra bem em quem tinha costume de sangrarse, & faltou
nisso, a quem falta assi mesmo euacuação de sangue por o menstruo,
ou almorreimas, ou quem era costumado padecer infirmidade ou de
gota, ou outra semelhante enfermidade de sangue, & ha dias que lhe
não veo, ou o que estaua acostumado a algum exercicio, & de pouco
antes lhe falta, ou o que tem sinaes de enchimento de sangue: como
são sentirse pesado, ou carregado o corpo esquentado com dor nos
membros, ou tem comido muito bom mantimento//
[30]
et bebido vinho aloque muito tinto, ou que lhe parece que não
pode bem cerrar as mãos, & o que fazendo hum pouco de exercicio
se sente pesado, & o que sonha que leua peso, ou que quer fazer
alguma cousa & não pode, ou ho que he muy corado que parece ter
cantidade de sangue. A estes taes conuem a sangria, e se podem san-
grar em o crecente da huma das duas veas da arca. & sendo a quem
tenha faltado alguma das purgações ditas, ou tiuer ja alguma chaga ou

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176
Anexo 2

fonte em perna que se lhe tenha cerrado, ou se teue gota em os pes &
faltandolhe neste tempo, seram as sangrias em os pés./ Não somente
he mester escusar o dano do contagio, com tirar as cousas danosas
para a preseruação desta infirmidade, mas usar de cousas que forti-
fiquem as virtudes, & tenhão propriedade contra o mal. Entre ellas a
mais antigamente louuada he a Triaga, a qual se pode, & deue tomar
em inuerno atè cantidade de hum adarme, & atè dous aos de catorze
annos para cima, & para os mininos he mais apropriada a Triaga de
esmeraldas, tomada em cantidade de hum escrupulo sendo atè tres
annos, & dahi para cima atè chegar a huma dragma. Em verão sera bom
tomar hum pouco de bolo armenico atè em cantidade de mea dragma
em hum ouo fresco assado, ou com agua de azedas, ou rosada.//
[31]
Entre as outras cousas em a fisica mais louuadas, & que mais
seguramente se pode tomar em a cantidade que quiserem, & com
ser mezinha he manjar, he huma mistura de figos passados, & nozes,
folhas de arruda, com hum piqueno de sal, & he tão virtuoso que lhe
quiseram chamar Triaga: & para isto se pode fazer que como os figos
se acostuma de arrechiar com amendoas, em lugar das amendoas se
faça com pernas de nozes, & com arruda, & sal que esta dito, & isto
he milhor para inuerno que para verão, dado que para todo tempo
ho louuam os authores. Assi mesmo os pos da raiz da tromentina, ou
sete em rama, ou a pimpinela peso de huma dragma tomados pola
manhãcom agua dazedas he remedio mui conueniente: podese tambem
tomar estes pos em algum ouo fresco, & comer com elles, ou despois
delles alguma cousa de boa sustancia em pouca cantidade, porque he
muy conueniente desjejumarse [sic] pollas menhãas com alguma cousa
de boa sustãcia que faça contra este mal, & quem não tem costume de
almoçar, tome em verão huma sopa de çumo de agraço, ou de huma
laranja agra, ou ginjas, & em inuerno abastalhe os figos. Tambem se
pode fazer pera os mais delicados, & poderosos, Humas talhadas
per poluoras cordiaes de triasandalos, de diamargaritom frio, pos de
pepitas de cidra, de rayz de sete em rama, de aljofar preparado, de
semente de rosas, de azedas, de bolo//
[32]
armenico, & os que quiserem que se lhe acrecente pedra bazar,
sera mais ao proposito. Destes poos sejão as quantidades yguaes,
excepto o bazar que sera muyto menos dos outros, mais ou menos,
como a arte da botica ho insina, & com açucre finissimo se podera fazer
lectuario ou talhadas, de peso cada huma de duas ou tres dragmas./
Soemos usar de huma conserua de çumo de agraço, & a chamamos
gelea de agraço: esta para colericos, & em verãos, & pera preseruação

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Mário Jorge da Motta Bastos


deste mal a temos por muy boa. O modo de fazerse he facil, porque
tomão yguaes partes de çumo de agraço, & açucre muy aluo, & fazse
ao modo de marmelada, & se tem em cayxas: tomãdo huma talhada
polas menhãas com beber qualquer agoa das cordiaes, ou boa de
fonte, sera bom pera tomar em jejum./
Modo Curativo/
A ordem que em a cura desta enfirmidade nos parece se deue
de ter he, que com a mayor breuidade posiuel se tire sangue. Porque
como he infirmidade muy breue, & peligrosissima, & de seu mortal,
he necessario o remedio seja muy breue, porque se passa logo a
oportunidade delle. & por ser tam peçonhenta, enfraquece, & derriba
à virtude, de tal maneira que começada a derribar,//
[33]
não tão somente a sangria não faz proueito, mas he occasião
de morrer mais asinha o paciente. Pello qual muytos dos que melhor
escreuem, quiserão que despois de vinte & quatro horas não se fizesse
sangria. & isto nos parece que não se tome tão precisa a limitação do
tempo, que seja occasiam que alguns deixem de fazer o beneficio da
sangria tão necessaria neste mal, & nesta Cidade de Lixboa. & assi he
nosso parecer, que não se tendo sangrado abastantemente, antes ao
tempo que os que escreuem sinalam, & temos dito, tendo forças ho
tal enfermo, & accidentes que mostrem mais enchimento que veneno,
como são ser mancebo corado, grosso, bem mantido, as veas cheas,
moderadamente exercitado que sinta carregamento, ou extensãoa
nos membros, quando estas cousas tiuer, ou parte dellas, com boa
força, & grandeza de pulso, se pode e deue sangrar. Hos sinaes do
veneno são vomito de colera verde, grandes desassossegos, & com
maneira de desmayo, não sossegar em a cama mudando se de huma
a outra parte, quando tiuer a còr mudada, ou se teuer adelgaçado ho
rosto mais que a rezão dá, com diuersidade, & desassossego do pulso.
Quando estas cousas ouuer, não sòmente despois das vinte & quatro
horas, mas antes se deue estoruar a sangria: mas como quer que seja,
ho que parecer conueniente se faça.//
[34]
Em o que toca a limitar a quantidade que se ha de tirar de san-
gue, não se pode determinar por palaura nem por escripto, porque
isto soo faz conjecturauel a facultade da medicina, que em outras
cousas he certa. Mas auisese que querem os authores, que o que se
ouuer de tirar, he mais seguro em muytas vezes que em huma, como
seja dentro do tempo conueniente. Verdade he que a experiencia
nos tem amostrado na enfermidade que estes dous annos andou em
Seuilha, que he a mesma que aqui corre, & pollo que temos visto todo

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178
Anexo 2

este tempo que ha que estamos aqui, que se pode tirar sangue com
mais ousadia do que os authores nos permitem. Ajudase isto ser a
região temperada, os mantimentos de muyta sustancia, & este mal
trauar mais em humores quentes, assinaladamente no sangue. & assi
o mostram as postemas que saem, que testificam auer inflamação
nas partes interiores, ho qual quasi sempre he de sangue. & muyto
mais se nos confirma esta opinião por auer visitado muita copia de
enfermos, assi dos mosteiros, como outras muytas gentes por toda a
Cidade, nos quaes sempre parecem de grande auondança, & infeição
no sangue. & ainda que os antigos vedarão geralmente a sangria de
catorze annos abaxo, a experiencia nos tem mostrado que tres acima
geralmente donde cumpre se pode fazer sangria como nesta enfirmi-
dade. & o mesmo entendemos que se pode//
[35]
fazer nas prenhes. Porque temos por certo que das sangrias
que mais ordinariamente fazemos, não entendêrão os que as vedárão,
que se deuião prohibir nas ditas pessoas. Sendo a dor muy grande, se
podem adiantar em tirar mais sangue auendo constancia de virtude,
& tendo grande atenção a não mudar vea, posto que se requeiram
tres, ou quatro, ou mais sangrias: porque todas as que aos medicos
parecer ser necessarias, se podem fazer liuremente da mesma vea &
lugar, que abayxo se declara. & encarregamos a consciencia a todos
os que o ham de exercitar, que nisto não aja falta: e o instar tanto
nisto, nos obriga ter visto o contrayro em muytos dos enfermos que
temos visitado, & o temos por muy certo danno. O primeyro porque
o principal que o medico he obrigado fazer, he imitar & ajudar a natu-
reza: & isto he mais necessario quando está alguma cousa debilitada,
& peleja com tam brauo enemigo, & nesta infirmidade de peste não
pode louuar de forte, porque poucas vezes deixa destar fraca. Porque
o ar que he, de donde ha de tomar refrigerio o coração, & os spiritus,
sempre o offende em alguma maneyra por estar inficionado. & ainda
que os homens andem sãos, quando vem a cair, ja estão maltratados,
posto que entonces se manifesta o danno. Bem assi como agoa que
caindo na pedra, ainda que desda primeira gota que cae começa a
fazer impressão, & sempre a faz, nem//
[36]
por isso se deixa ver este effecto, atè que aja nella notauelmente
cauado. Assi o danno que faz o ar, não se manifesta atè que tem feita
notauel impressão. Como claro parece do homem que saindo do ar
inficionado ao liure passa alguns dias sem enfermar, & depois enfer-
ma deste mal, cousa certa he que o ar liure não lhe causou o danno,
se não a infeição que trazia da parte inficionada de donde sayo. &

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179

Mário Jorge da Motta Bastos


por isto se manda em fisica que o que vier de donde ay peste, o não
recebam atè passados trinta dias. & para a debilitação he potissima
occasião o medo, que a gente ordinariamente tem em semelhante
tempo, o qual consume os spiritus vitaes. Pois que tão brauo enemi-
go seja esta infirmidade, claro no lo mostra o que cada dia vemos: &
assi a comparão os que bem escreuem, a cruel besta fera, que não
soo cidade, mas provincias inteiras gasta, & destrue. & pois assi he
que estas nascidas, & carbunculos não são outra cousa senam huma
expulsão de natureza a aquellas partes, que os membros principaes
tem deputados, pera que recebão suas superfluidades, fica claro, que
ha mister ajudar a natureza, & por nenhuma maneira estoruallo. Antes
toda a mais diligencia ha de ser procurar de fazer crescer a nascida
ou carbunculo com todos os remedios assi de sangrias, como outros
que para este proposito fazem. Porque tendo o medico feito isto auera
obrado segundo a arte manda, E//
[37]
fazendo se a sangria de parte differente, he occasião de diminuir
a postema, & reboluer o humor às partes interiores. O qual mani-
festamente parece, porque quando queremos escusar que qualquer
inflamação ou postema, que se faz na parte inferior, não creça senão
que se diminua, sangram os da parte superior, & quando està na parte
superior, sangram os das inferiores, as quaes sangrias os medicos
chamão reuulsam. Seguese pois que estando a postema na virilha,
fazendo se do mesmo cutelho, se traz para ali ho humor. Isto mesmo
se persuade por outra razão, que a nosso parecer he fortissima, & que
a nenhum de bom entendimento lhe poderà deixar de quadrar. Se assi
he que esta materia peçonhenta que esta apoderada nos membros
principaes, como o coração, figado, e cabeça, & a natureza discreta
mãy, & mestra, que se rege por intelligencia que não erra, procura com
todas as forças de engeitar dos membros principaes aas partes mais
fracas, & vis, & exteriores o humor que o offende: razão sera que o bom
medico não somente a imite, mas que a fauoreça, e sirua, ajudandoa a
apartar tão mao humor do membro principal, de donde tanto danno
pode fazer. & isto se obra muy bem, fazendo as sangrias das partes
que vão declaradas. & querendo fazer o contrairo, não somente não
he ajudar a natureza, mas causar-lhe muyto dano, não//
[38]
somente estoruando a obra que ella bem faz, mas ainda reuo-
luendo o humor venenoso ao membro principal, ou por elle. & assi
concordão os que bem escreuem nesta materia & tanto, que ay quem
encareça que a quem fizesse o contrario, se lhe poderia imputar a
morte do enfermo./ A parte de donde a sangria se deue fazer, sera

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Anexo 2

conforme ao lugar donde der a postema, porque se he detras da orelha,


ou carbunculo no pescoço, ou dahi para cima, ha se de fazer a sangria
da vea da cabeça do mesmo lado da postema. & se for minino, & em
idade que não se soffre sangrar, ou não parecendo vea, faça-se sarja
no mesmo braço. Se for debaixo do sobaco, ou ouuer carbunculo des
do pescoço até a região do figado, se farão as sangrias da vea da arca
do mesmo braço. & sendo minino, ou não parecendo vea, se sarje do
mesmo braço no molhedo [sic] da parte de dentro, e sendo necessario
segunda se fara do cotouelo pera baixo no mesmo braço./ Sendo em
alguma das verilhas, tirarseha o sangue do artelho daquelle lado: &
dado caso que aconteça esta infirmidade com demasiado enchimento
daquella vea conjuncta, com tirar quantidade de sangue em huma ou
mais vezes se depõe o enchimento que se pode desejar depoer, & se
ajuda a expulsam//
[39]
que a natureza começou: & auendo carbunculo em dereito do
figado, ou baço, & dali abaixo, seja tambem a sangria da vea do artelho
do mesmo lado: com que se tenha atenção que se o carbunculo ou
postema venenosa que requeirão sangria, der nas cadeiras, ou nos
muslos [sic] da parte de fora, sera mais conueniente da vea ciatica, que
he a que está da parte de fora do artelho. & se for da parte de dentro,
da vea que mais se soe sangrar do artelho, que he a que està aa parte
de dentro./ Acontece muytas vezes vir estas postemas em duas partes
juntamente. & quando assi acontecer, se sangre das duas veas que a
ellas respondem. Como se viessem nos dous sobacos, nas duas veas
da arca juntamente, de maneira que as duas veas estè a par abertas,
& de ambas se tire a quantidade que parecer ao medico: tendo tento
que por dar em duas partes he mostra de mayor auondança de humor
peçonhento. & o mesmo se entendera dando em ambas as virilhas,
que se han de abrir as veas dos dous artelhos apar./ & dando tras
das orelhas, as veas da cabeça de entre ambos os braços. & se der
em hum sobaco, & em huma virilha, hão se de abrir as veas que lhes
correspondem: & assi em tudo o mais.//
[40]
Mas se der primeiro em hum cabo, como posto caso que seja em
a virilha, & despois socceda sayr em algum dos braços, ou detras de
alguma orelha, se ha de considerar se tem feito euacuação, & quanta,
respeitando o enchimento que ha. & se tiuer feito abastante euacuação,
não sera necessario tirar mais sangue. & se sair a segunda postema
em dia cretico da primeira, & com sinaes de aliuio notaueis, por onde
se entenda descarrego de natureza, não se faça euacuação de sangue.
Mas se parecer sair a segunda em dia cretico, ou com accidentes ri-

O poder nos tempos da peste.indb 180 19/8/2009 19:02:02


181

Mário Jorge da Motta Bastos


gurosos, como vehemencia de quentura, ou dor na mesma parte, ou
mostra de enchimento, façase sangria da vea que responde à segunda
postema, tendo resguardo a que a virtude está mais fraca, & que de
rezão ha de estar tirada a mayor parte do enchimento. & para que mais
seguramente se possa fazer a sangria, por rezão da segunda postema
donde está dito, & que não retroceda o humor, que tinha começado
natureza a deytar fora á primeira postema, se ponha, quando o quiser
sangrar, huma ventosa na primeira postema, a qual tenha em quanto
o sangrarem, & meya hora despois, que sera o tempo que de boa
conjectura possa durar agitação no sangue por causa da sangria. &
do dito se segue claramente, que ao minino, ao qual se não pode fazer
sangria pollas razões ditas, se farão as sarjaduras apar pola//
[41]
mesma ordem que esta dito nas sangrias, pois tem as vezes
dellas./ & se acontecer que debaixo do braço teuer alguma nascida, &
mais abaixo em a sangradeira, ou perto della, para riba ou para baixo,
ouuer algum carbunculo, façase a sangria na mesma mão na vea do
figado, sendo no braço dereito, e no esquerdo da vea do baço, que he
a que esta entre o dedo que chamão Annular, do meyo, porque esta he
a mais possante. & nem mais nem menos se acontecer o carbunculo
junto ao artelho, se sair da parte de dentro, se sangre sobre o dedo
grande, & sendo da parte de fora, junto do dedo pequeno no mesmo
pê./ Hum dos acontecimentos que podem dar trabalho, he quando se
fere deste mal huma prenhe da virilha, de que parte se hade sangrar:
porque se he do artelho, corre mais perigo de morrer, que não fazen-
dose do braço, & se he do braço, os inconuenientes que acima estão
ditos são grandes, & deixar de sangrala mayor que nenhum, sendo em
tempo & em caso que tenha necessidade de sangria: & he esta mayor
difficuldade, por não estar determinada, nem tocada de autor nenhum
que tenhamos visto dos que tratão esta materia, ainda que para isso
não temos reuolto poucos. Nosso parecer he que se deue de sangrar
pollas razões acima tocadas,//
[42]
que por escusar prolixidade não se referem. & que seja do ar-
telho. Porque ha mester soccorrer ao mayor perigo, que he a morte
da mãy, de donde tambem se segue a morte da criatura, que não o
mouer. Quanto mais que não he menos perigo para mouer ter a cria-
tura vezinhança do sangue peçonhento, & manterse delle pola vea
do embigo, & estar perto da maneira do fogo, da quentura, & perto
donde a natureza deita este humor, para mouerse a criatura à querer
sair agastada da quentura, & peçonha do sangue./ As quaes cousas
não somente serão cousa para fazer mouer, mas para matar a criatura

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182
Anexo 2

dentro do ventre da mãy, que morta ali com muyta mayor difficuldade
a despidira a mãy, que não viua: pois lhe falta a ajuda que pera sair do
ventre faz a mesma criatura sendo viua. Mayormente que a sangria do
artelho não faz mouer forçosamente, nem sempre: & isto se verifica,
porque muytas vezes queriamos prouocar menstruo com sangria do
artelho, & fazendoa não sahimos com isso. & muytas vezes tambem
se tem visto, ignorando a emprenhidão assi a paciente como o medico
que a cura, querendo prouocar os meses sangrar dor artelhos, & não
mouer: & algumas molheres que de proposito procurão mouer com
esta sangria, não saem com isso. & assi ay quem diz que pera que
melhor a sangria do artelho//
[43]
prouoque menstruo ha de preceder outra do braço, & esta pre-
supomos que hade faltar neste caso, ainda que aja auondança: a qual
entendemos que aja de auer pera fazer a do artelho, despois da do
braço na prouocação do menstruo./ & assi das molheres prenhes que
temos visto com inchaço na virilha, sangrandoas do braço escaparão
poucas, & as que se sangrarão no artelho tiuerão mais remedio. & não
ay duuida senão que qualquer infirmidade aguda em molher prenhe
he perigosa, & muyto mais esta por ser de humor venenoso. & se
bem olhamos huma das potissimas causas, porque se teme mouito
[sic] nas prenhes com sangria, he porque no discurso da infirmidade
he necessario apoucar o mantimento pera a cura della. & por isto
he necessario que aja posito de sangue pera manter a criatura, &
nesta infirmidade não ay este inconueniente, porque antes auemos
de yr ceuando a virtude com bom mantimento./ Outra duuida se
offerece nestas infirmidades, & he que auendo inchaço pestilencial,
ou carbunculo no sobaco, ou virilha, & sobreuindo acometimento de
humor á cabeça, que fizesse huma maneira de frenesi, ou catafora das
que agora andão quasi vniuersalmente, se se fara sangria da vea da
cabeça, & deitarão ventosas secas, ou com sarja nas espaldas, que
são os remedios adequados//
[44]
e encomendados dos autores. Dizemos que em nenhuma ma-
neira, auendo inchaço na virilha, ou sobaco, se deue fazer sangria da
vea da cabeça, & para persuadir isto cremos não serão necessarias
muytas razões. Basta que se entenda que a catafora, ou acometimen-
to à cabeça he accidente da infirmidade: porque como o humor esta
venenoso, não deixa de acometer todo membro principal, para mais
asinha derribar o enfermo. & assi tendo respeitoà causa do acidente,
que he o humor venenoso que natureza deita ao inchaço, remediandose
o inchaço, que he a causa principal, se remedia o da cabeça que he o

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183

Mário Jorge da Motta Bastos


accidente. Porque se quizessemos fazer a sangria da vea da cabeça,
não soo era impedir a obra que a natureza bem faz em lançar dos
membros principaes aos ignobles o humor venenoso: porem fariamos
grauissimo dano, & a nosso ver irreparauel, que seria fazer retroceder a
materia venenosa aos mesmos membros principaes que de si a deitão,
fazendo chamamento della com a sangria da vea da cabeça. & quanto
isto em boa medicina estê condenado, facilmente se colligira do que
temos dito nesta materia de sangria. & se assi he que em materia não
venenosa, quando de hum membro mandante a outro recebente se
manda humor, se ha de fazer a sangria da vea peculiar ao membro
mandante: Como quando pola supressam de menstruo, ou de sangue
emorroydal, se ha de fazer a//
[45]
sangria do artelho: & se ay dor de costado, & dali se comunica
dãno ao celebro, como do que se faz na diaframa, he o remedio san-
gria da vea da arca, & não da cabeça: & assi se vindo epilepsia por
communicação de algum dedo do pè, o remedio he cauterizar, ou
abrir aquelle pè, para que por ali saya o humor, que subindo acima, ou
mudando seus fumos causa a epilepsia: Quanto mais sera conueniente
em materia tão venenosa, como parece que ay, ter conta principal
com o membro mandante que he o inchaço, que trazela à parte de
cima: ou ao menos não fazella reboluer a aquella, donde a natureza
quando estaua mais forte auia intentado deitala. Pollo qual quando
nos tem sucedido algum caso destes, que não forão poucos, temos
procurado remediar este accidente com outros remedios, os quaes
se poeram em seu lugar. & podemos testificar mais, que despois que
estamos nesta cidade temos visto não poucos com este accidente de
catafora, & se remediou nos mais por outro caminho que á sangria
da cabeça./ & porque muytas vezes acontece dar esta infirmidade á
huma molher de pouco parida, ou que lhe vem sua regra, no sobaco,
ou detras da orelha: ha se de considerar, se purga conuenientemente,
& entonces poerselhe hão duas ventosas secas nas duas verilhas, &
tendoas postas se lhe tirara do braço, E//
[46]
vea, conforme ao dito, o sangue que for necessario. & despois
de cerrada a vea tenha bom espaço as ventosas, & não purgando bem,
ou auendoselhe começado à leuãtar a purgação, nosso parecer he que
se tire sangue do braço, & do artelho á par: porque desta maneira se
cumpre com a infirmidade, & se supre a falta de euacuação natural. &
agora acontece, o que outra vez muytos annos ha noutra peste, que
as molheres que lhes vem sua regra, se remedião esta infirmidade./
Outro remedio ay pera esta infirmidade muyto importante, que he

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184
Anexo 2

purgar, & este he muy necessario, quando se administra como deue:


& tratando disso ao proposito à esta maneira de pestilença que ao
presente temos, que he ou de sangue, ou com auondança de san-
gue, ou de humor mesturado com elle, poucas vezes se deue fazer
sem preceder sangria. Mas com que mezinhas se deua fazer isto, &
quando, & como, não he pequena difficuldade. Para a determinança
della he necessario que notemos o que por experiencia se tem visto,
que todos os mais à quem dão camaras morrem. Pello qual he bem
que se faça com muy grande tento, pera não espertar euacuação, que
desmandandose possa acabar o enfermo: Porque despois de tomada
a purga, não está tanto na mão do medico deter, que não se desmande
a obra della. & por isto ha mester//
[47]
que as purgas sejão de contino de mezinhas beneditas nesta
maneira de pestilença que corre: de maneira que não tenhão força
de trazer muy de longe, porque não sejão causa de tornar dentro o
veneno, que ja natureza irritada delle tinha começado de lançar pera a
parte de fora. As mais conuenientes mezinhas sam as que com euacuar
moderadamente purificão o sangue: & mais se resfria algum pouco,
& mais se são cordiaes, ou se mistura com ellas alguma cousa que
seja cordial, & contra à peçonha, o qual se hade guardar de contino,
como em cousa que muyto vay./ As mais conuenientes são rosas, &
seu enxarope de noue infusões, o qual tem prerrogativa neste mal, &
misturese com elle huma pouca de agoa de azedas. & se o enxarope
de noue infusões for das sete primeiras de rosas de Alexandria, & as
duas derradeyras de rosas comuns cheirosas, o teriamos por mais
acertado, porque nam seria tam quente, & confortaria mais: violetas
em conserua, ou em infusão, ou em pò sam muyto boas: & tambem
polpa de canafistola, manna: & sobre todas tamarindos nesta materia,
que certo parece que os criou Deos para remedio desta infirmidade,
os quaes não somente são bons para purgar como purga, mas dados
muytas vezes entre dia, quando a febre for muy intensa, & em materia
de carbunculos, fazem admirauel effecto.//
[48]
O Ruybarbo se pode dar, & sinaladamente quando estiuer o dano
nas virilhas, por ser mezinha apropriada para o figado: com que ha
febre nam seja muy intensa, & que estê em infusam em agoa dazedas,
ou de almeirões pollo menos doze horas antes./ Agarico he tambem
mezinha cordial, & esta conuem muyto quando os inchaços sairem
detras das orelhas, ou de baixo dos braços, ou quando ouuer algum
acometimento de humor à cabeça com demasia, ou falta de sono, ou
dor nella, que dê sospeita de vir accidente algum a ella: porque este

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185

Mário Jorge da Motta Bastos


accidente vem muytas vezes nesta infirmidade que ao presente corre.
& quando soccede he dos mais temerosos, & se se começa a confirmar,
escapão poucos delles: & isto entendemos assi do que auemos lido dos
auctores, como do que a experiencia nos tem mostrado em Seuilha, &
aqui./ Ay necessidade que o Agarico seja muy escolhido de bom polla
grande differença que ay de bom a mao. Sua melhor correição he com
oximel, & sal gema: & o mais a proposito para esta infirmidade sera
que em lugar de oximel se deite enxarope de agro de cidras, ou de
limões./ Sen, & epithimio, & mirabolanos indos são medicinas muito
apropriadas na especie desta infirmidade//
[49]
que deita muytos carbunculos. Com que se tenha este auiso, que
os mirabolanos se dem quando a quentura seja mais excessiva: e o
epithimio nem se de em estio, nem quando a quentura for muy rija: &
os mirabolanos se dem em infusam, mais que em corpulencia, se nam
ouuer sospeita de camaras./ O tempo quando conuenha purgar, ha de
ser o mais asinha que for possivel, auendo comprido meanmente com a
euacuação do sangue. Ainda que na pestilença que agora ay temos por
não muyto inconueniente deixar de purgar, por ser (como està dito)
a materia sanguinea, & a natureza sempre inclinada à deitar à parte
de fora: o qual parece, porque ao cabo todos os mais vem à parar em
pintas vermelhas, ou pretas./ Nas pessoas que mais cumpre purga das
que auemos dito são, as que tem vascas, & não sossegão, reuoluendose
de hum cabo a outro da cama, os que tem amargor de boca notauel,
os que tem principio de carregarlhes sono, os que tiuerem a lingua
amarela, ou verde, ou muyto branca: & isto se entende em quanto dura
a sospeita da infirmidade muy aguda, & que o veneno està toda via
com força: porque despois de apaziguados os accidentes de veneno,
ficando quantidade de materia se pode yr digerindo, & euacuação.
Porque ja dá a infirmidade treguas, em que se possam//
[50]
fazer de vagar os beneficios. & porque entre as duuidas que
entre os medicos desta cidade se mouerão diante do Doctor Antonio
Diaz, Vereador & Prouêdor Mòr da saude, foy o que toca à par, donde
nos parece se discidio bem esta materia, hira a determinação com to-
das as de mais ao fim deste regimento curatiuo./ O suor he huma das
euacuações que neste caso cumpre, e està louuada dos que nisso bem
escreuem: assi porque esta infirmidade começa polla mayor parte de
humor de dentro das veas, prende em humor quente, & em infirmidade
(que como esta dito) a natureza procura contino deitar à as partes de
fora. Porem tem inconuenientes .s. não ser a materia tão sobtil como
era necessario, para facilmente despedirse por suor, porque ao cabo

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186
Anexo 2

he de materia sanguinha mais que de outra, antes grossa que delgada,


& muyta della queimada, o que se mostra na resistencia que fazem
estas apostemas no vir a madurecer, ou resoluer, que se forão de
humor sobtil mais asinha vierão a alguma destas duas terminações.
Tem outro inconueniente não pequeno, que as medicinas que o prou-
ocão são quentes: & he sempre primeira a obra da mezinha quente
aquentar, & depois vem a fazer os outros effectos. & não estamos tão
certos que fara o effecto pretendido, que he//
[51]
suar, não podendo escusar do auer esquentado. & por isto
esta euacuação nos parece que não se deue prouocar, donde ouuer
incredulidade que se sayra com isso. & para isto se deue de considerar
primeiramente à natureza do paciente, se he dos que facilmente com
qualquer exercicio suam, com cear demasiadamente de noite, & que
beuendo no estio agoa sua logo, homens baços meanamente carnosos./
De parte da infirmidade, & humor, se ha de considerar que aos que tem
grande ardor de dentro, & de fora, ou temperados, não nos auemos de
atreuer a darlhes beneficio quente para prouocar suor, a donde ouuer
sinaes de ser o humor muy grosso./ Ho tempo da infirmidade em que
se deue prouocar, ham de ser depois de feita bastante euacuação por
sangria: & estando o pulso grande, & brando, com alguma desigual-
dade que chamão vndoso, auendo com isto algumas inquietações, &
como accidente de desuariar, & fazerse vermelho de fora, & se com isto
ha algum principio de pintas vermelhas, & pretas, sera bom prouocar
esta euacuação./ As medicinas com que isto se pode fazer sam, triaga
da magna, saluia imperial: mas o que mayor effecto//
[52]
faz sem aguentar, he o vnicornio, & pedra bazar, e alem de
prouocar suor, são apropriadas contra à peçonha. A quantidade do
vnicornio serão atè dez grãos com agoa de madronhos, ou de escabio-
sa: e da bazar atè cinco ou seys grãos, com qualquer das ditas agoas.
& nos de catorze annos a baxo, & nos que tiuerem as nascidas detras
das orelhas, ou forem muy quentes de compreição, se vse da triaga
de esmeraldas em lugar da magna, & da huma & outra se pode dar atè
quantidade de huma dragma, com as ditas agoas, ou qualquer delas. &
entendese que pera auelas de tomar ha de estar a virtude meanamente
forte. Porque se està muy fraca, nem he razão de prouocar suor, nem
o poderà soffrer, nem à força da medicina. & entre as outras medici-
nas a flor de nogueira seca, & moyda em quantidade de mea dragma,
com as mesmas agoas, se louua para este proposito de excitar suor, &
he contra à peçonha./ Sempre desdo principio da cura atè o cabo he
necessario usar de medicinas que confortem os membros principaes,

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187

Mário Jorge da Motta Bastos


& fação contra a putrefação do humor, que he a raiz do danno: & se
ouuer febre intensa, a apaziguem, & estirpem./ Estas se podem tomar
em muytas maneiras, ou em forma de enxaropes,//
[53]
& os mais conuenientes são enxarope de agro de cidras, de
limões, de romãas, de azedas, & o acetoso, & depomis, ou em agoas
de azedas, de escabiosa, de lingua de vaca, de agraço, rosada, mis-
turando as com os enxaropes, ou por si sò./ Eleituairos sam bons
de rosas, de violetas, frol de borragens, de lingua de vaca, e os que
fazem de marmelos, de pecegos durazeos. & não obstante que alguns
condenem a confeiçam alchermes, ella he huma excelente mezinha
pera este mal, & que mais leuanta a virtude quando se vay caindo, &
faz contra ho mal de coração, ao qual esta infirmidade principalmente
pretende derribar, & desta mezinha temos grande experiencia./ Em
forma de talhadas sam boas de dia margaritom frio, de tria sandalos,
diarrodom, & as que estam ordenadas no fim da preseruaçam. Destas
cousas se hão de tomar muytas vezes de dia, & de noyte, humas vezes
de huma maneira, outras de outra, com que não dê fastio ao enfermo,
porque nenhuma cousa tanto importa como sostentarlhe apetito de
comer./ Em forma de poos se faça huma mestura de piuidas de cidra,
de rayz de sete em rama, de pimpinela, da semente de azedas, de cada
cousa duas//
[54]
dragmas, de osso de coração de ceruo huma dragma, de rosas
secas tres dragmas, de bolo armenico tres dragmas, de pò de coral,
& de aljofre, de cada hum dragma e meya de açafrão peso de dez
grãos. Façase tudo pò moydo muy sotilmente. Podese usar delle nos
enxaropes, e no que comer, & beber o enfermo. & disto tambem se
podem fazer talhadas com açucre branco delido em agoa de azedas,
ou em çumo de agro de cidras, ou limões./ Iuntamente he necessario
não esquecer a confortação dos membros por defora. Epitime se o
coração como abaixo se tocara na duuida que sobre isto fala, & farse
ha a epithima de agoas de borragens, de lingua de vaca, de escabiosa,
de azedas, rosada, & vinagre rosado, & dos pòs cordiaes que estão
ditos, & tambem se pode acrescentar da confeição de alchermes: &
nisto se pode molhar huma madeixa de seda de grão, ou de pano de
linho usado, & polo sobre o coração, & nos pulsos, & mudarse ha à
meude: & isto se pora quente, ou morno, ou frio, segundo ouuer a
força da quentura, & temperança do tempo./ Tambem he necessario
socorrer ao figado, principalmente sahindo inchaço na virilha, com
que se tenha feito moderadamente euacuação: & com intenção que
sempre se acrecente alguma coisa//

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188
Anexo 2

[55]
Que tenha força de coroborar, como çumo de marmelos,
de agraço, de assencios verdes, ou agoa delles. Do que milhor se
podem fazer estas epithimas são agoa de indiuia, de almeirões, de
erua moura, de azedas, de escabiosa, rosada, & vinagre rosado,
acrecentando as cousas ditas. Os pòs para esta epithima são con-
feição de tria sandalos, dia margaritom frio, diarroslom de abade,
pòs de rosas, & de assencios verdes, deitandolhe de contino hum
pouco de alcanfor./ Com qualquer acometimento à cabeça, ou sinal
delle, que he auendo dòr nella, falta, ou sobejo sono, he necessario
tirar sem detença o cabelo da moleira bèm raso, porque naquella
parte he mais facil a penetração ao celebro: & poerlhe defensiuos,
molhando hum pano de linho usado nelles, e renouando o muy a
miude de maneira que não se aquente muyto, se ouuer demasiada
quentura na cabeça, nem se deixe secar. Os materiaes quasi sempre
hão de ser huns, variando as quantidades, porque tendo falta de
sono, se ham de poer quatro partes de azeite rosado, & huma de
vinagre rosado: & auendo muyto sono, a metade de vinagre que
de azeite. Em todos he bom acrecentar sandalos: & nos que muyto
dormirem, alcanfor. Isto se poera quente, frio, ou temperado, se-
gundo a quentura que na cabeça//
[56]
ouuer, ou a temperança do tempo./ O estamago se conforte com
grande cuydado desdo principio, porque importa muyto conseruar
a vontade de comer, & a digestiua, ou concotiua [sic]. & isto se fara
muy bem com que se ouuer muyto ardor no estamago, poer nelle de
çumo de agraço, ou de marmelos, & de azeite rosado, partes iguaes,
molhado hum pano nelle, & posto no estamago. Não auendo muita
quentura, se faça hum cozimento de duas partes de Alosna, & huma
de ortelaã em vinagre meamente agoado, & molhando huma reuanada
de pão tostada no dito vinagre, & pisada com a Alosna, & ortelaã, se
faça em forma de emprasto, e se ponha quente no estamago, porque
conforta, & restitue à vontade do comer./ As apostemas pestilenciaes
que nascem nos emunctorios, tem necessidade de remediarse com
breuidade, nam os curando a elles escusando que nam venham a
maduro, senam chamando a elles o mao humor, apartandoo dos
membros principaes: porque em tal caso he muy perjudicial poer
causa que defenda que nam se engrandeça. & a atração se procure
de contino: seja com medicinas que nam tenham em si mà qualidade,
antes propriedade, & virtude contra a peçonha, ou se mesture com
as medicinas atractivas alguma//

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189

Mário Jorge da Motta Bastos


[57]
que tenha esta virtude. & por isto he muy conueniente remedio
a cebola assada com a triaga, & azeite de açucenas, pisada, & posta
no inchaço, & tornando a poer de duas em duas oras, ou de ora a
ora: & ponhase mais, ou menos assada, segundo for a dor, porque si
a dor he pouca, assese pouco, porque tenha mais virtude atractiua; e
se a dor he grande, assese mais, porque quanto mais se assar, mais
mitiga a dor, e sempre tem uirtude atractiua. & seja regra geral, que
sempre se procure mitigar a dor, porque debilita muito a virtude,
que sempre se deue de conseruar, ainda que seja o beneficio menos
atractivo: porque quando ha muyta dor, o sinal, & causa de mayor
atração./ Remedio he tambem conuenientissimo a consolda mayor,
ou menor, ou a escabiosa, eruas conhecidas, pisadas entre duas
pedras, ou em um gral de pedra, & posta qualquer dellas sobre a
nascida, & remudadas de ora a ora, com grande força matam esta
peçonha. Para o mesmo proposito se pode fazer hum emprasto, que
para isto he admirauel, & o temos vsado muitas vezes, & atrae muy
bem, e tem virtude de matar a peçonha, sem fazer muita violencia,
o qual se faz desta maneira: Tomem se duas cebolas cecens, & huma
duzia de figos passados, huma pouca de escabiosa, duas rayzes de
tormentina,//
[58]
cozam estas cousas, pisense, & machuquemse, encorporemse
com duas onças de azeyte de lirio, & quatro de formento muy azedo,
& duas dragmas de triaga: & pertendendo mais atração, se pode
acrecentar galuano, ou poponaceo, ou ambos./ Tambem se vsa para
este effecto hum galo viuo, depenado o sesso, & poluorizado com sal
moydo, & posto sobre a nacida [sic], atrae suauemente a peçonha sem
violencia: & morrendo hum galo se ponha outro, atè tanto que algum
fique viuo, porque entonces sera sinal que està a peçonha estirpada./
Quando parecer que a nascida està crescida, & està desposta para
vir a fazerse materia, sera bom ajudar a natureza, & para isto se faça
hum emprasto de figos, rayzes de lirio, maluaisco, & alfoluas, tudo bem
cozido, picado, & machucado, & encorporado com vnto sem sal, o qual
se ponha duas vezes entre dia & noyte. & para o tempo de o abrir se
tenha muyta conta, que se ha de abrir antes que estè perfectamente
maduro, com qualquer principio de materia que tinha. Em qualquer
tempo nestas apostemas he bem que nam tenhão demasiada roupa,
& a atadura não estè apertada, porque não se estorue a euaporação
do veneno, que he necessario que de contino transpire sem estoruo,
porque nam retroceda: & depois//

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190
Anexo 2

[59]
de aberto se va mundificando. & se ficar por madurecer alguma
[...] da postema, indose modificando a chaga, se vam pondo cousas
para madurecer nella: & entonces se procurara de encarnar, quando
estas cousas esteuerem feitas. & nam se acabam de poer aqui outras
particularidades de mais remedios, porque se poem nas duuidas que se
nos moueram, donde està bem dicedido./ Os carbunculos nascem em
differentes partes do corpo, & nelles tambem he necessario atração:
& porque as medicinas que nelles se aplicam, com a codea ou escara
que fazem nam penetra sua virtude, nem faz fructo, he necessario
que feitos os remedios vniuersaes, logo se sarje, & sejão as sarjas tam
profundas, que debaixo da escara saya sangue, & lauese com salmoura
quente, para que va saindo melhor sangue: & nas sarjaduras se deite
pedra bazar muy moyda, & de tal maneira se ha de deitar, que caya
na carne que descubriram as sarjaduras, porque he remedio muy
certo extirpando o veneno./ Nestes carbunculos, junto á escara he
grão beneficio aplicar humas sambijugas [sic] das que na phisica sõ
louuadas, para que picando ellas, & começando a chupar o sangue,
quando se vão enchendo lhes cortem as colas com//
[60]
humas tisouras, porque despedem por ali o sangue que vão
chupando, & assi não se fartam. & se pode tirar com ellas quantidade
de sangue seguramente, porque chupão o sangue melancolico, & taes
quando faz carbunculo: & he mais conueniente este remedio, quando
saem muitos juntos em differenetes partes do corpo./ A escabiosa
verde machucada entre duas pedras, & se for seca, enternecida com
sua mesma agoa, & posta ali, em todo tempo aproueita: & para ar-
rancar a escara mesturaa com manteiga de vacas, & gema de ouo,
mesturada com sal moyda, a maneira de vnguento, he boa em todo
tempo para isto. & para arrancar a escara he muy bom hum emprasto
de figos passados, & nozes, pisado, & mesturado com hum pouco de
mel: & depois de arrancada, não hay que fazer mais, que mundificar
a chaga, com mundificatiuo de apio, & depois encarnando quando
for tempo./ Para poer ao derredor do carbunculo, & não na escara,
he excellente remedio fazer hum emprasto de romãa agra, cozida em
vinagre, & pisada, & encorporada com farinha de ceuada, atè que
tome ponto de emprasto, & poelo (como està dito) ao derredor, sem
que toque à escara, porque este tal mata a peçonha, & defende que
não se estenda//
[61]
mais a escara. & ainda estorua que aquelles vapores do muy
adusto (que não podem transpirar polla casca) tornam a retroceder, &

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191

Mário Jorge da Motta Bastos


communicarse à parte de dentro. A consolda mayor, ou menor pisada
(como està dito), & posta na parte da escara, & não ao derredor, he
proueitosa./ Entre os accidentes que soem acompanhar estas febres
pestilenciaes, não he o menor a nosso ver o que chamão vermelhas,
& pretas: no remedio do qual nam ay pouca duuida ver, se os que
o tiuerem se hão de euacuar por purga, ou por sangria (como està
dito no demais)./ Se em dando a febre pestilencial, der logo as pintas
vermelhas, & pretas, & ouuer no enfermo os sinaes de repleção (que
estão ditos), sempre se ha de sangrar. & auendo inchaço ou carbun-
culo, sera da vea que atras fica declarado no da sangria: não auendo
inchaço, senão soo as pintas vermelhas, & pretas, se fara a sangria
dos artelhos. & se for caso que não aja tantas forças no enfermo para
poder soffrer a euacuação por sangria, se poderà fazer por huma
escarificação nas pantorrilhas com ventosas. Porem saindo as pintas
vermelhas, & pretas depois da febre dous, ou tres dias, ou auendo feyto
euacuação por sangria, ainda que não tão bastante como a repleção
pedia, de nenhuma qualidade se faça sangria://
[62]
mas sendo necessaria auacuação, sera com ventosas com
sarja, como esta dito. & entendase com muyto cuydado em ajudar
á natureza a deitar mais fora, principalmente, quando for meudo, &
còrado, porque este tal não he de tam má qualidade como o que traz
còr morada, ou verde. & porque dado que esta aparição das pintas
vermelhas, & pretas não seja euacuação perfecta da natureza, antes a
que os Medicos chamão simptomatica, com tudo estamos obrigados
a ajudalla de acabar de deitar as partes de fora o humor, como o tem
começado. & para isto, & para com que com a sangria nam se faça
volta para dentro do humor, tendo começado a sair a partes de fora,
se façam humas esfregaduras por todo o corpo com hum pano de
linho aspero. Assimesmo se lhe de logo para suar alguma cousa das
que acima temos dito para este effecto, com que sempre se mesture
alguma cousa que tempere a quentura do sangue colerico, de donde
pola mayor parte procede, como hum pouco de bolo Armenico, pòs
de [...], Triasandalos./ Para remediar isto das pintas vermelhas, & pre-
tas, & ajudar à natureza a alcançar a partes de fora, he muy louuado,
& de nos vsado, o enxarope de lacca: & não o auendo, se pode fazer
um cozimento de funcho, & figos passados, & huma pouca de laca,
lentilhas tirada a casca, açafrão, acrescentando//
[63]
a sete em rama, ou tormentila, & trevo, ou sua semente: e deste
cozimento se podera vsar para ho proposito dito. & quando ouuer
quentura rija, se faça outro cozimento desta maneira: Duas dragmas

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192
Anexo 2

de violetas de ouroçus, passas sem caroços, & ceuada, de cada cousa


huma onça, de rayzes de apio, & funcho, de cada huma huma onça, de
semente de beldroegas, & funcho, de cada huma huma dragma, de [...]
duas dragmas, & com mea duzia de figos passados brancos: cozase
primeiro as rayzes atè que se amolentem, & despois as sementes, &
depois as violetas, & ao cabo deitem huma dragma de açafrão: & disto
quente tome atè cinco onças polla manhãa em jejum, & á tarde antes
de cea outras tantas. Entre as cousas que muyto aproueitão para tra-
zer isto à parte de fora, he poer muytas ventosas secas sem sarja em
differentes partes corpo, que nam durem muyto em hum lugar, senam
mudandoas muytas vezes: & auendo inchaço, ou nascida, se ponhão
junto do inchaço, alongando a materia do membro principal, como se
està na virilha, polas pernas abaixo. & sendo no sobaco, ou tras as
orelhas, nas costas, & braços, & costados, apartandose do coração, &
figado, & não deixando assossegar muyto as ventosas: tenhase grande
atenção, que em começando aparecer alguma cousa disto, se tirem
todas as vnturas, & não fique por todo o corpo//
[64]
rastro de vntura de azeyte, nem ingoento, antes se faça nas
partes donde ouuer tido a vnção, huma maneira de esfregadura
com hum pano molhado em vinho brando quente. Assi mesmo he
necessario que se escusem por entonces as epithimas. Sera bom
poer ao que sair estas pintas vermelhas, & alguma cousa de cor em
que olhe, porque ajuda a sair fora./ Tendo dito o que toca aos reme-
dios de medicina, fica a tratar do regimento que se ha de ter com os
enfermos./ Primeiramente, acerca do aposento, & temperança delle,
& do ar, & mod de emendallo se tenha a ordem que temos dado no
regimento da preseruação, porque não só aproueitarà ao enfermo,
mas os que os seruem estarão com menos perigos./ Em a comida,
he necessario se tenha grande conta com ella, porque ha mester
muita força para resistir a tanto dano. E assi desde logo se lhe dê a
comer ao enfermo de hum frangão assado, ou cozido, com muyto
çumo de agraço, ou agro de cidras, ou de limões, ou de romãas:
com que auisamos que por ser humor peçonhento, & podre, & com
isto debilitar a virtude, he bom conselho dar pouco, bom, & muitas
vezes: em o qual//
[65]
se guarde o costume, com que se dê mais vezes de comer aos
mininos, que aos grandes, & se dê tempo pera vsar ds mezinhas, que
não se misturem com o manjar no estamago, porque fação milhor
effeito./ Faltando o apetite de comer, de maneira que se aborreça o
mastigado, se podem fazer caldos sustanciosos, ou tirar sustancias,

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193

Mário Jorge da Motta Bastos


com o qual se podem deitar algubs cordiaes dos que não desagradão
o gosto do que come: como cozendo huma muito boa galinha poedei-
ra, ou hum capão nouo em agoa soo, a fogo manso, atè que se aparte
o osso da carne: & entendese, que ao principio se ha de deitar tanta
agua, que nam seja mester acrecentar nenhuma. A este caldo depois
de cozido, espremendo bem a carne, & tirandolhe a gordura, porque
não dè fastio, lhe acrecentem çumo de limões, ou agraço, ou agro de
cidras, ou de romãa, e seja do que o enfermo gostar mais. Podese fa-
zer outra maneira de sustancia, tomando huma boa aue das ditas, ou
huma perna de carneiro meirinho capado, tirada a gordura, ou hum
pedaço de vitela, ou perdiz, & assese vntandoa com huma mistura de
agoa rosada, & çumo de limão ceitil, & hum pouco de açafrão: & a meo
assar, se ponha em huma prensa de boticairo, & apretandoa lhe tirem
o çumo, & mesturem com elle algum dos agros acima//
[66]
ditos, & agua rosada, ou de azedas, & ferua hum pouco com pò
de aljofre, ou coral atè que se sazoe: & quando o tirem do fogo, lhe
deitem meya dragma de diamargariton frio. & se ficar de huma vez
para outra dalgum caldo desta substancia, estè perto do lume onde
nam se esfrie, porque o requentado toma mao gosto. Tambem se pode
dar assada huma aue boa frangãa poederira, ou que põe nouamente,
& assi como se for assando, a iram vntando com a mistura acima dita,
& yrão pingando talhadas de pão delgadas na substancia que cair, por
se gostar dellas o enfermo. & entendese, que as comidas nam soo ham
de ser de galinha, porque bem s pode dar perdiz, perdigão, gaçapo,
lombinho de vitela, ou huns ouos assados brandos, ou pasados por
agua, & com agua dazedas, & hum çumo agro, conforme ao gosto
do enfermo./ & porque importa muito nesta infirmidade sostentar o
apetito, sera bem variar as comidas, & dar aos principios dellas dos
cousas que o soem despertar, como são humas alcapauas das grandes,
& conseruadas em vinagre são milhores, & muy lauadas do sal, ou em
huma salada verde de eruas aporpriadas, azedas, borrages, alfaças,
ortelãa, ou hum olho de alfaça com vinagre, ou huma laranjaagra,
abrunhos, & ginjas, conforme ao tempo. & para a derradeira, pera,
ou marmelo, ou sua conserua://
[67]
tomando por fundamento ter de contino o enfermo meãamen-
te mantido, porque os que se esforção a comer o que ham mester
nesta infirmidade, nam tem a menor parte de seu remedio. & para
isto aproueita muyto as differenças de manjares, que as molheres,
& cozinheiros soem fazer, tendo aduertencia que todos sejam sem
grossura, nem especies, senão for huma pouca de canela, & coentro

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194
Anexo 2

seco, & açafram, & nam outras, & sempre com algum agro dos ditos./
O beber seja, auendo febre rija, agoa cozida com ceuada, & [...] de
cidra, & se a aborrecer muyto, ou não ouuer tanta febre, seja agoa
muy boa fria./ & os muy acostumados à beber vinho, & fracos, não
auendo reponta de damno na cabeça, poderam beber muy pouco vinho
branco, & não muy anexo, de muy pouca força, & seja bem aguado, &
ordinariamente seja bem frio o que ouuerem de beber./ O somno, aos
principios ao menos, seja pouco, com que não se desuelem demasiado.
& se sobreuier accidente de começar à profundarse o somno, se lhe
procurem desde logo os remedios que acima estão ditos para este
proposito./ Sempre se procure de alegrar, & poer animo ao enfermo
nesta infirmidade por todas as maneiras possiueis.
[68]
As faltas que neste regimento curatiuo ouuer são dignas de per-
dão, como cousa feita por homens que as horas que nelles gastarão,
tirarão do sono necessario á seu repairo, & saude, por andar todo o
dia occupados nos enfermos do pouo, & das religiões, procurando
seruir nisso a Deos nosso Senhor, & á Sua Alteza, quanto nossas for-
ças alcanção./ O Doctor Antonio Diaz, Prouédor Mór da Saude por el
Rey nosso Senhor, com gram zelo do bem comum, & paraque todos
tiuessem noticia do modo que auião de ter na cura destas infirmidades,
& nenhum caysse em error no remedio dellas, nos fez ajuntar muitas
vezes com os Medicos para este proposito deputados, para que em
sua presença se tomasse resolução por escripto ns duuidas que se
offrescessem, & proposessem. & tendose em sua presença tomado
resolução, não nos deu lugar para limar, & emendar o escripto, não
soffrendo dilação em cousa que cumpre ao bem comum. & assim te-
mos por bastante desculpa mandado de pessoa tam graue, procedido
de tam Christianissimo peito. Praza á nosso Senhor seja para tanto
fructo, como delle, & todos desejamos.//
[69]
As Determinações das Duuidas, que se Propuseram ante o Doc-
tor Antonio Diaz, Vereador, & Provédor Mór da Saúde./
I. Se se vsará de Triaga magna, ou de Esmeraldas: & de bolo
Armenico, & quando./
Determinouse, que se pode vsar de ambas Triagas, sendo
boas nam sendo a quentura muy intensa, & auendo mostras de muita
peçonha, particularmente, quando o dano for na cabeça, se vsará
da Esmeralda: & quando no coração, & essoutras partes, da Magna:
& quando for a quentura muy intensa, nam se vse de huma, nem de
outra, senão de bolo Armenico, nam tendo o enfermo opilação, nem
humores grossos no peito./ Quanto ao tempo em que se deue dar

O poder nos tempos da peste.indb 194 19/8/2009 19:02:03


195

Mário Jorge da Motta Bastos


qualquer destas medicinas, se assentou que feitas algumas euacuações
por sangria, se podem dar: & antes se escusem./
2. Se depois de feita euacuação por sangria bastantemente, a
parecer do Medico, se se purgarà o enfermo erradicatiua, ou mino-
ratiuamente./
Determinouse, que auendo quentura pestilencial em alguma
motsra de fora, & auendo suspeita de movimento de humor no corpo
de huma parte para outra, que se deue purgar erradicativamente com
mezinhas, que tenhão força. & auendo mostra de fora no enfermo
de//
[70]
inchaços, ou outra cousa, que então se deue purgar minoratiu-
amente com mezinhas beneditas./
3. Duuidouse, se se dara aos enfermos enxarope para pacificar
a sede./
Determinouse, que si, & tambem agoa fria em quantidade, que
o enfermo se satisfaça bebendoa de golpe./
4. Se se epithimaram o coração, & os pulsos ao principio desta
infirmidade./
Determinouse, que epithimas frias de materia que se esfrie
facilmente, como de agoas, que se deuem de poer no coração em
febres pestilenciaes intensas, não auendo sinaes de querer suar, nem
auendo carbunculo muyto perto da parte donde se põe a ephitima:
& em semelhante caso se poderam poer epithimas, que nam sejam
tam frias./
5. Se se poeram ao principio nos inchaços atractivos fortes,
& ventosas secas, ou com sarja, & quando, & como se ha de vsar de
cada cousa destas./
Determinouse, que sempre são necessarios atractivos, mas em
differentes maneiras, em em differentes materias porque algumas
vezes lança de golpe a natureza grande quantidade de humor//
[71]
peçonhento aos emunctorios, & então ay grande inchaço, &
està còrada por causa do sangue: & neste caso se sarjarà logo, & saya
quantidade de sangue, sem deitar ventosa, & depois vntarà com cebola
cecem, & se poera lam çuja encima./
Outras vezes nasce huma apostema pequena, & corada, & então
he mais conueniente poer sambixugas de boa agoa, que tirem quanti-
dade de sangue, conforme ao que for mester./
Outras vezes vem esta apostema pequena, ou grande com gran-
de dor, & entonces poerse hão fomentações de cousas mitigatiuas de
dor, como são coroa de Rey, cebola, endro, & cousas semelhantes.

O poder nos tempos da peste.indb 195 19/8/2009 19:02:03


196
Anexo 2

Porem se for pequena, & sem dor, entonces quadra poer nella huma
ventosa: & se for dura, fomentações com cousas que abrandem, &
logo ventosa: & sempre com qualquer destas fomentações se deite
triaga./
6. Duuidouse, quando estas febres pestilenciaes começão com
vomitos de colera verde, ou amarella, se sera bem ajudar brandamente
ao vomito, ou nam./
Determinouse, que auendo saydo ja os inchaços, ou dores, que
os significassem, ou carbunculos, que em tal caso em nenhuma se
prouoque vomito. Mas que auendo febres pestilenciaes, sem estes
sinaes, & com humores muy apartados da natureza do sangue que
està no estamago, que entonces//
[72]
se ajude brandamente com agoa tibia, & enxarope acetoso./
7. Duuidouse, se auendo em tal caso vomito de huma maneira,
ou de outra, todauia se procederia com sangria./
Determinouse, que si, por causa da febre continua, & inflam-
mação de algum dos membros principaes, de donde procedem as
apostemas que parecem, sinaladamente nesta cidade, & neste tem-
po, donde parece auer muyto inchimento de sangue, & os outros
humores misturados com elle: presuposto que se conforte primeiro
o estamago./
8. Duuidouse, se quando parece que a febre pestilencial abranda,
ou de todo ponto se tira, ficando todauia o inchaço por alguns dias, se
tratarão do folego, como nas outras febres, & tempos: ou se todauia
se procederá com atractiuos, & maduratiuos./
Determinouse, que quando o inchaço sair primeiro que a febre,
sempre se estê sobre auiso que delle hão de vir febres, & accidentes:
pollo qual conuem, conforme à qualidade delle, fazer chamamento
fora, & mesturar maturatiuos, se for duro: & no processo yr mudando,
como ao Medico lhe parecer./
9. Duuidouse, se parecendo que o inchaço crece de maneira,
que parece//
[73]
que virà a madurecer, & por deterse, nam deixam os accidentes,
nem a febre, se sera bom abrillo com cauterio de fogo, antes que com
lanceta./
Determinouse, que parecendo sinal de maduração, se pode vsar
o cauterio actual, & profundo que chegue ao lugar da materia: em todos
os outros, se faça como està respondido na quinta duuida.
LAVS DEO.

O poder nos tempos da peste.indb 196 19/8/2009 19:02:03


Anexo 3

Breue summario da peste que ouue em Lixboa o anno


de 69 que hum frade Dominico escreueo a outro
seu amigo, fingindo a cidade huma nao perdida com
tormenta desfeita.

O Breue summario da peste ... é um relato escrito por uma frade domi-
nicano anônimo da mesma epidemia que originou o tratado médico do anexo
anterior. Seu autor parece ter vivido na cidade de Lisboa assolada pelo flagelo,
em 1569, data provável da redação da obra, e traça em cores vivas as mazelas
que, ao seu juízo, abateram-se sobre a comunidade, recorrendo à metáfora
que constitui a cidade como uma nau perdida no mar. O manuscrito transcrito
a seguir encontra-se no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa, Portugal.

O poder nos tempos da peste.indb 197 19/8/2009 19:02:03


199

Mário Jorge da Motta Bastos


Breue summario da peste que ouue em L ixboa o anno de
69 que hum frade Dominico escreueo a outro seu amigo,
fingindo a cidade huma nao perdida com tormenta desfeita.

[15]*
O senhor Deos gratifique a charidade que me fez em me alertar
com suas lembranças pois/ me imposibilitou de as poder renunciar,
mais que em deseios, mas porque da minha parte/ farei o que he
posiuel na obra lhe peço ma faça tamanha como todas as suas o sam
pera/ mim. aceite este breue proceso do largo & compendioso que
oferecer pudera, cuio discurso he/ daquilo, quae uiderunt oculi mei
muitas vezes, que he o termo que o Euangelho daa pera/ pera [sic] se
poderem chamar uerdades./ O qual foi uer huma fermosa [et alterosa]
nao, que se intitula boalis que se diz auer largos anos/ que estaa surta
no porto deste bem asombrado Rio Lisbonense em paz e tranquilidade,
et/ no mais quieto soseguo deste tempo se aleuantou huma mortifera
tormenta dos ares celestes,/ que foi recebida por nada, de que deos cus-
tumou a fazer heroicas & sumptuosas obras,/ como foi o Ceo supremo
corte Real, cuios cortezãos sam os superiores corpos Angelicos & spi/
ritos bem auenturados, & ho mundo ornado de tam uaria fermesura,
& deleitosas prantas/ de agricultura, & fontes, & rios caudais de tam
saborosas agoas como as do poço de Jacob. & da cis/terna de Dauid,
criando nele o paraiso terreal aa nos tam incognito: fez mais ho/ ho-
mem a cuio feitio pos tam heroico titulo como foi dizer delle que era
sua ima/gem & semelhança, & quanto esta nada nas mãos & iuizo de
deos obrou maravilhas,/ tanto estoutro que digo nas mãos & iuizo dos
homens obrou dano. com o qual rebuço/ de não he nada se começarão
a leuantar tam labirintozas ondas que quasi todos lhe pe/diam como
Leandro a pasagem sem risquo das uidas o que asim não socedeo. ho/
qual feito pos todos em tantos que cada qual dos nauegantes comecarão
de alijar has/ fazendas & pescas com tam desatinado impeto que mais
parecia pouca, fee que temor de/ peito christão, com a qual diligentia
se alijou a nao quasi de toda a carga & gente/ & em tam breue espaço
que foi pasmo deixandoa todos seus superiores senhorio [rei] ca/pitão
[cardeal], condestabre [os do conselho], alferes [regedor], meirinho,
Rolda Estrinqueiro. os que mor escandalo deram/ com suas idas foi o
piloto & ho Mestre por serem dos tres que em tal tormenta erão nece/
sarios pera o gouerno & leme da nao & ficou soo o Contramestre com
hum guardiam não/ crendo que a tormenta fose tamanha & durase
tanto mas deixada dos mais & não dos/ nomes doficiais dela logrando

*
O documento principia pelo fol. 15.

O poder nos tempos da peste.indb 199 19/8/2009 19:02:03


200
Anexo 3

os estipendios. prois. & percalsos que por elles lhe con/uem deixada
soo com os pobretes que faltandolhe o siualho dos que se puderam/
saluar começarão a morrer aa mingoa, que por amor da patria huns.
outros por/ imposibilidade ficarão esperando saluarse nas tauoas da
nao porque de todo ho mais/ fiquou ingrime de monicoins [sic], exar-
cea, uelame, armas, que soo mente deixarão o casco:/ com estes que
digo pegados nele como [...] acompanhados de estranho temor, por/
se uerem soos tam magoados. Em cuio porto comecarão inuocar <o
oraculo da> misericordia <de deos>, com/ procisoins piadosas, pelas
quais se cree acudirlhe deos com ella para as almas, uisto/ como en-
tão não foi seruido dela para os corpos. com <o> qual afeito fiquou a
nao aruore/ sequa nas empoladas ondas da morte, alhea da frol dos
lustrozos soldados. auentu/reiros. pasageiros. & filhos dalgo que em
seus largos comuezes se sohião uer, et/ dos granes [sic] & nauios
merquantes que nela traziam os ualerosos diamantes da distan/te Bis-
naga, os riquisimos robijs do alongado peguo & as alegres & custozas
esmeral/das. & çafiras de Çeilão com outras uarias pedras preciosas
roubadas ao centro/ da terra. & as mui estremadas Perolas orientais.
& as mui curiozas peças & alfaias/ de Asia. Ethiopia. Arabia. Persia.
India. & doutras conquistas a nos remotas.//
[15.v]
et dos professores do alegre & Remediauel metal Minatico. & do
tumulto dos largos tratantes/ de todalas conquistas de frandes. fran-
ça. Inglaterra. Milam. [Enues]. Paris. vngria. Alemanha/ alta & baixa.
Olanda. Ruam. noua & uelha Espanha os quais traziam entre mãos
ho/ mundo uelho & nouo com a qual congregação de nauegantes se
ornaua esta nao Boalis que/ desamparada então dos naturais ficarão
humas uarias & infinitas camaras de tosquo & bru/tesquo, habitadas
de famintas baratas tam tristes e tais que era pazmo & magoa & os
caste/los de popa & proa que renouados eram de nouo corridos [do
custo que nelles se fizerão se auia por ditozos] por serem asim des-
troçados das fu/riosas ondas [de lingoas] que neles quebrauão sem
polas bombardeiras deles parecer cousa uiua & as/ antigas & largas
escotilhas [portas] abertas sem auer quem entrase & saise por elas
auenturadas/ a serem entradas de quaisquer imigos tendo custado
tanto sangue damigos ha pose delas./ procedendo este desemparo
que o temor fazia cada ues maior comicarão [sic] a perecer mais aa/
mingoa os pobretes que ia dise esperando saluarse nas boias da nao,
no qual trabalho huns/ de outros fugiam como de imigos capitais tra-
zendo quotidianos defensiuos. & uendose/ alheos de todo o humano
remedio, chamarão uoce magna polo diuino com frequentação/ de
proçisõins [sanguinhas & lacrimozas] as quais foi huma aquela tam

O poder nos tempos da peste.indb 200 19/8/2009 19:02:03


201

Mário Jorge da Motta Bastos


famosa de Jesu que tanto abalo fez/ nas almas christans, qual duuido
poderse uer nem terse uisto outro tal em algum/ tempo confesando
nela de si cada qual ser Jonas para que botado no mar da morte/ çesase
a tormenta. mas ainda que nos ouuise com caridade faltou dizendo-
lhe que se/ fosem asens Parrochiais. Pastores & como atais por suas
obrigacõins lhes quizesem/ ualer [com os sufragios spirituais] & ouuir
porque a tormenta hia de uerde a uerde. & os que escaparão sendo ia
poucos/ não bastauão porque ho açoute sobeiaua./
Neste tempo [transe] se aleuantou a mui religiosa & não menos
caritativa companhia de Jesus/ a bandeira da caridade. & ainda a não
tinham bem aruorada quando ia hia na diantei/ra ha suprema & unica
ordem dos Pregadores dela dominicos em seu esquadrão espiritual/
pondoa por obra. de seus proprios motos oferecendo as almas a deos,
& os corpos aa morte/ & a caridade aos proximos holocausto asas dino
de açeitalo de quem por hum pucaro dagoa/ promete & daa o do Çeo.
& esta conquista não custou menos a muitos dos oferecidos do que/
prometerão. o que creo he castigo de deos pera maos leuar bons. por
cuios sufragios/ os não confundir. & consolação pera iustos pois uiam hir
descansar seus Irmãos para/ sempre como consta do euangelho Beati
mortui, qui in domino moriuntur, per cuio/ amor deram as uidas que elle
custumaua gratificar consigo mesmo. Detremina/das estas duas compa-
nhias do senhor a socorrer aos proximos cometeram as mortais ondas/
& tormenta desfeita de mares crusados que atodos prometia morte, mas
como os tais/ o auiam por uida pronta mente entrauão por elas como
Tobias o moço por uer/ se topaua com o pexe do remedio [pera curar a
segueira do uelho padre adam] das almas & corpos de seus proximos.
& este estimulo/ Rafael que os incitaua lhes daua animo a romper as
furiosas ondas por con/solarem necesitados remedeando suas miserias
porque a pose não era de mais/ quilates. & sem duuida fiqua que quem
daua uida milhor dera aquilo que para/ remedio dela lhe daua. Tendo ia
este comercio conquistado aa muita custa sua/ cometidos os principios
da dobrada molestia, em que lhe aconteçeram notaueis &/ marauilhosas
cousas dinas de perpetua memoria que por largas não relato, botando/
demonios fora das almas em nome do senhor acompanhando os mortos
ate a ulti/ma hora & tão seguros estauam dentro nesta nao durante esta
tormenta, como/ senão estiuera fazendo agoa por mil partes, que a leu-
auam quasi ao fundo,/ mas elles ao çeo, por cuio premio auiam por tam
pouco as uidas, que deseiauam/ ter muitas como propriedades, pera as
dedicarem ao autor delas, ou ao menos ter//
[16]
ter muitos corpos pera que pudesem socorrer a tudo a que a
caridade os incitaua. & este/ era o mor tormento que padeciam entre

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202
Anexo 3

tantos que uiam padeçer. a este trabalho acudio/ logo a muito catolica
Religiam do bem auenturado, & serafico padre são francisco, descalso
do mundo/ calsado de deos com o lado aberto de caridade & despois
as mais ordens saluo huma que não quiz/ dar copia de si guardandose
do efeito mas não da causa. aceitando enterrar em seu/ conuento os que
deixauão enserrandose com outros das portas adentro com o amor do
pro/ximo, que nunqua ouue quem os uise andar pelo rasto dos mais, em
que se comprio a/quela parabola do euangelho o que caio em mãos de
Ladrõins que pasou o sacerdote/ & leuita sem se compadecerem dele,
& o samaritano lhe ungio as feridas, & pos em pouo/ado: asim pasou
na realidade que muitos sacerdotes & leuitas pasaram de largo pelas/
feridas não de Ladroins mas de deos, & muitos samaritanos visitarão
& conso/larão, & não/ como hum sacerdote que tendo consagrado na
misa o santisimo sacramento para dar/ aa gente são, o deixou no altar
com temor sem o dar deixando a gente descon/solada & não menos
escandelizada mas parece que foi iuizo de deos porque dahi a/ bem pou-
cas oras faleceo do mesmo mal de bem pequena ocasiam & parte disto
aconteceo/ aos mais fechados a quem a tormenta afogou mor numero,
que daqueles que deseu/ proprio moto se oferecerão a isso [porque
nisi dominus] que forão os religiosos Dominicos aquem ficou todo/ o
peso das confiçõins como se forão uigairos parroçhiais por rezão que
os curas se/ ocupauão todo o tempo em sacramentar & ungir./
Neste estado estaua esta nao quando o seu contramestre, que
ficou não lhe parecendo/ que a tormenta fose desfeita como algumas
uezes acontese em casos semelhantes quererem/ pilotos mostrarse
tam sabios & animosos que gritando todos amaina dizem issa o que/
as mais das uezes acontese sosobrar ou dar a costa como a esta
aconteceo, mas bem se/ cree de sua uirtude prudencia & nobresa
não querer mostrar saber soberbo mas piadozo/ de cuio foro os erros
são sofredoiros saluo os desta calidade se não tiuerão a deos/ por
prouedor sendo nos ocasiam deles. o qual & o guardiam que com elle
ficou uendo/ como não auia remedio humano, & que o diuino tinhão
pecados tam distantes de si/ & feito antre terra & ceo outro daço &
de mor dureza que Diamantes, o qual impedia/ o orualho & rocio da
misericordia de deos, que anos não chegase & que ia de agra/uado
de nos em pubrica forma nos tinha trocadas as mãos como filhos de
Josue fazen/do sua piadade esquerda & iustica direita, como o hera em
nos castigar pois não ou/uia padroeiros mas quebrandolhe priuilegios
antiquisimos, que prometidos a seus/ deuotos tinhão tanta liberdade
quanto os anos pasados lhe segurauão nos quais deos/ sempre tanto
disimulou por seus meos, ate que uendo que seruiam ia mais fiansas/
de santos de ofensas suas que de seruiço seu permitio que por então

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203

Mário Jorge da Motta Bastos


não tiuesem ui/gor geral & faltando o dos santos sobeiou o asoute.
o que uisto pelos ditos da/ nao pozeram toda sua posibilidade por
obra, & uendo que os naufragantes não soomente/ se afogando, mas
ainda aqueles que os queriam aiudar a saluar, detreminarão como/
logo fizerão ao longo da costa do rio humas choupanas de tauoado,
& outras que cobrião/ com algumas uelas, que ficarão das uiagens
pasadas onde por forsa os leuauão por re/zão de sua indispocisão mui
contagiosa pera que asim diuididos huns dos outros os mo/ lestados
pudesem ter algum refrigerio, & os medrosos alguma esperansa mas
nem isto bas/tou porque como erão agoas uiuas em coniunção de lua
da iustica de deos nem os dela/ guareceram nem os da nao falando
geralmente. Ho cargo desta mortifera/ impreza aceitarão alguns
auentureiros que nela acabauam as uidas em muito breues dias,/ &
por falta doutros que o temor não aprezentauão padeciam mais na
terra que/ no principio na nao, porque realmente foi o mais espantoso
& temerario spectaculo que/ ia mais se uio pera uer & temer uendo
o concurso de tanto inferno/ cuio numero/ chegou a estarem iuntas
pasante de XX mil almas. o regimento antigo diz que//
[16.v]
poderiam estar na dita oficina atee 3000 pesoas por onde se pode
inferir quanto/ mor foi este asoute que os pasados: & estes que estauam
bom auiam mister outros tantos/ pera os ministrar. & faltando quasi
todos era de uer & não pera uer estar os mortos/ antre os uiuos sem
auer quem os diuidise porque atromenta era tal que não daua mais/
lugar que pera recolher os feridos aos montes, & comecar a ordenar
o necessario para elles/ o qual pauor aos sãos mataua quanto mais
aos enfermos huns gritando outros ge/mendo outros chorando sem
socorros piadosos botados pelos peis das oliueiras & sepas de/ uinha
que alguns dias lhe seruiram de conseruas & camas no qual numero
auiam/ todas as idades que cada qual era lastima de uelas mor mente
os meninos de tam tenra idade/ sem pais & sem mãis cortauam en-
tranhas com pura magoa: uer mãis & pais saudosos/ de filhos que na
nao lhe fiquauam desemparados de todo o abrigo lastimauam a/ alma
uer maridos sem molheres, & molheres sem maridos tam saudosos
huns dos outros/ por não saberem se se [sic] ueriam ia mais cortauam
coracõins: uer mancebos na frol da/ idade contraminados da morte
largando as uidas em breues momentos fazia notauel/ espanto: uer
donzelas cuia fermesura não tinha igual, que com tresualios descobri/
am seus peitos de cristal de tam mimosas carnes com suas grinaldas
de madexas/ doiro, entransados seus ondados cabelos, que creo que
a cadaqual delas dera Paris a/ maçam doiro: uer mais as ultimas ida-
des de onradas donas, & donos com tam graues/ & antigas cans tam

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204
Anexo 3

enxoualhadas entre o tumulto de tanto negro & gente baixa/ com tam
pouca reuerencia aa tanta autoridade era lastima: as femeas & machos/
como colchetes por cuio respeito queriam antes os enfermos morrer
nas muradas/ da nao soo com os alhos & cebolas do Egypto que em
tal ualhacoito, que alguns/ dias estiueram sem elle por não se poder
acodjr a tanto. acabo do qual a cari/dade dominica querendo em tudo
ser frutuosa uendo sinquo religiosos dela que os/ proximos pereciam,
& o contra mestre não podia mais como desamparado dos parceiros,/
& que o pezo da tormenta era graue foranse meter todos sinquo aa
honra das/ sinquo chagas de christo por cuio amor por cuio amor [sic]
o fizerão, no mais interi/or do roxo mar uermelho onde as ondas do
fim andauom mais empoladas apon/zentandose na mesma oficina do
mal, querendo ali sacrificarse a deos & aos pro/ximos vsque ad mor-
tem no mais espantauel da tormenta cousa asaz dina de consi/derar
o que esforcou tanto a gente que de nouo se feria, que ia pedia o que
dantes/ repudiaua clamando que a tirase da nao, & a leuasem aonde
estauão aqueles/ uerdadeiros seruos de deos, em cuia caridade tanto
resplandecia a diuina. porque/ ia ali morrião consolados, como forão
todos os que se espediam da uida, & pera que/ ouuese em todos os que
adoesesem este deseio, determinaram estes religiosos que os que/ da
sua ordem enfermasem, fosem ali leuados pera que uistos pelos que
de nouo caise/ com mor eficacia quizesem ser leuados onde estauam
os mais, & asim pasou que/ o que dantes era força & degredo ueo a ser
merce pelo amor com que eram trata/dos & suas almas consoladas com
santos exemplos & exhortacoins. & os corpos com/ ho necessario dos
medicos, que auia butiqua & nutrimento, & tudo o mais anexo/ de que
logo foi larga mente prouida a oficina pelo contramestre & gardiam/ &
mais gente da nao com muita diligencia, cuidado, trabalho. & perigo de
suas pessoas,/ & com grande gasto que se fez a pasante de sinquo mil
pesoas. das quais sera/ falecidas mil & oitocentas, & sans pasante de
duas mil & seis sentas a fora os/ conualecentes & enfermos, & grande
copia de criancas de hum atee seis anos hos/ mais deles que ficaram
orfãos com quem se tem particular cuidado por rezão/ das idades.
outro gasto se fez numeroso com a gente que na nao se curou//
[17]
Em cuio numero uariam as cifras dos arismeticos [sic]. a qual
foi uisitada por ordem/ que pera iso deu hum catolico uiso Rei que
o senhorio da nao mandou logo na entra/da da tormenta com largos
creditos & poderes pera a prouisão geral de toda a sorte/ denfermos
pobres que estauão dentro na nao cuio cargo tomarão as religioins
ho/ qual oficio acabaram quasi todos de o deixar asim por muitos que
faleceram deles/ como polo temor que isto fez nos poucos que escapa-

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205

Mário Jorge da Motta Bastos


ram saluo os pregadores que ficaram/ com o leme nas mãos quasi de
todas as Parrochias ministrando tudo asim na nao/ como na terra que
atodos os que tem olhos & ouuidos dou per testemunha. sen/do pois
chegado este senhor que digo com tanto remedio & refugio com ainda
que/ pera iso deram algumas pessoas reais & outras que o não eram,
mas então o quizeram/ ser nas obras, tomou logo larga informacão
do naufragio amoestando/ ao contra mestre com quem determinou
marauilhosas obras por mui perfeita ordem/ & fez muitas caridades
que distribuiram as ordens que tomarão acargo uizitar/ as estancias
da nao que per elles foi repartida, no qual exerçiçio gastauam/ todo
o tempo confesando, consolando, esmolando, & curando, pera cuio
efeito tra/ziam os medicos consigo, no qual cargo os mais dos uisi-
tadores das ditas ordens aca/baram os seus saluo os dominicos que
soo hum adoeceo & não faleceo, & asim o con/teceo nos falecidos
que somente foram sete & em bemfica dous. franciscos vinte e sete/
Enxobregas desaseis. carmelitas desoito: companhia uinte & hum.
agostinhos de/soito sam uicente tres. capuçhos quatro. trinitarios
tres. clerigos duzentos/ & nouenta & sete. orfãos noue./
Outra cousa se fez de mui marauilhosa composição. que foi hum
Colegio depu/tado pera todos os orfãos que do mal ficauam sem pais &
mais & protectores/ onde os recolhiam, & uestiam de nouo & prouiam
de todo o necesario, & asim de/ amas pera criarem os que eram pera
iso. o qual cargo se deu a huma pesoa si/cular que nele mostrou bem
quam abalizada & campal era sua uirtude, obra/ asas insigne & de gram
merecimento & consideração com a qual ordem que daqui/ por diante
em tudo se teue ordenada pelo uiso rei nas esmolas da nao & na ofi/
cina pelo contramestre & guardiam & sua gente asas solicita no contino
trabalho/ comecaram a guarecer os enfermos de huma parte & da outra
uisitados polos/ medicos & surgiõins que auia, por que muitos não pu-
deram curar asi mesmos/ pelo que he muito de agradecer & gratificar
os que uendo falecer seus parcei/ros não deixando de fazer seus oficios
deuendose muito pouco aos que sempre/ dixeram não ser nada dando
diso suas certidõins com que o contra mestre se defen/de, & com rezam,
os quais se acolherão que a iuizo de muitos mereciam as ca/becas fora
dos ombros ou degradados pera a Ilha do Fogo. & as fazendas con/
fiscadas pera aiudar a gratificar aos que o senhorio mandou uir estran-
geiros/ doutos & experimentados em semelhantes casos, aa falta dos
fugitiuos. ainda/ que sua chegada mais prometeo asinada saude como
na caridade dos pobres, do que/ socedeo, antes parece que foi iuizo
diuino que sendo chegados tres dagosto foi/ o mes em que mais gente
pereceo. posto que elles uisitauam de toda preça os que/ os uisitauão
a elles por nos fazerem celebrar aquele adaio antigo De ma/teme Deos

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206
Anexo 3

com os meus. mas inda asim ficam asas capazes de merecimen/to asim
do pouo da nao como daquele por cuio respeito ofereceram suas/ uidas
a tam certa morte. Ha mor furia desta tormenta durou//
[17.v]
tres mezes, antre outros que antecederam & procederam de
menos trabalho de que/ foi Julho, Agosto. setembro. & agosto foi o
de mais desgosto porque ouue dia de/ seiscentas pessoas, & asim
nauegauam os esquifes de mortos por terra como se foram/ pelo mar
ueleiados porque a mare era tal que não uia olho senão bargantis/ que
ao cabo do dia tinham feitas mais uiagens do que tinha de horas os
quais/ hiam sempre tam sobrecargados que as uezes alijauam hum no
meo da uiagem/ & depois tornauam por elle & chegando aos semite-
rios que de monturos, praias. & car/dais se fizeram os deixauam sobre
elles que pareciam roupa uelha & noua na ribeira/ dalcantara atee lhes
ser chegada a hora de sepultura de dez em dez. & de uinte/ em uinte
como estaa por lembransa pera o futuro com cuias uiagens puzeram/
no porto da outra uida segundo huma das contas piadosas quarenta
& quatro mil/ almas. no qual tempo eram os coueiros mais peitados
que despachadores do reino et/ alguma parte cabia aos remeiros dos
esquifes. porque posto que eram forçados & postos/ nas partes limi-
tadas da nao pera estarem a pique com seus bargantins esquipados/
queriam ser tambem estipendiados como se ali não comprisem o que
deuião nas galez/ mas nem esta diligencia bastou per deixarem muitas
pesoas de tomar seus mortos/ aas costas, Ou arastro, & hilos enterrar
atee o pee da forca que tambem se sagrou/ onde aconteceo darem as
ofertas de pão & uinho aa meninos que com sua inocentia/ hiam uer, o
que fazia pasmar. outros ouue que nenhum remedio destes lhes/ coube
em partilha falecendo tanto ao desemparo que ninguem soube deles
se/ não acabo de dias pelos fedores que das camaras sahiram, cuias
portas quebradas/ os achauam ia roidos dos ratos & doninhas, & tais
de podres que as mesmas cama/ras lhe ficauão por sepultura onde lhe
abriam couas em que os uirauam por/ não estarem para mais, em que se
achou hum defunto em joelhos com hum crus/ na mão & na outra hum
pedaco de uela que ardeo atee lhe queimar os dedos onde/ se apagou,
& não serem comidos dos cãins & gatos foi por rezam dos que eram/
mortos por mandado dos fisicos por entrarem nas casas impedidas
dos feridos a/ comer o que deles sobeiaua. & os emprastos de pombos
& frangos & sangrias et/ depois entrando nas desempedidas as inficio-
narem contaminando os ares delas/ pera a qual execução auia certo
estipendio por cada cabeca de quão ou gato/ nem faltauão ministros
asas solicitos que leuauão suas cambadas a resis/tar a parte que pera
iso estaua limitada onde os tomauão em receita/ por serem pagos./

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207

Mário Jorge da Motta Bastos


Neste tempo pode com rezão dizer quem ho uio que alcansou uer
quasi tudo/ o que uer se podia em algum tempo afortunado que as me-
morias antigas/ dos homens ou escrituras podem ter por lembrança,
em cuia proua direi o/ que mal & clara mente poso relatar em muitos
dias quanto mais escreuer/ em papel ao menos direi de mim que uiuo
ia na segunda ou terceira uida/ como forro ondi ui mudadas as natu-
rezas das cousas entre as quais ui o dinheiro/ ter duas repugnantias,
que são ualer mais caro que nunqua a quem o não tinha/ & auia mister
& o mais barato de gastar aquem o posuhia do que nunqua foi/ pois
atroquo dele se não achaua quem curase nem quem seruise nem quem
enter/rase nem o que se auia mister. no qual transe a gente pasmaua
& se consu/mia de uer & ouuir tam miseraueis miserias sequandose
as lagrimas porque/ não pudesem seruir de aliuio que muitas uezes
dam. ui mais o tempo/ entregue aa morte por noua prouizão do qual
se senhoreou tanto & dos que//
[18]
nele residiam, que com rezão se podia noua mente tornar a dizer.
Homo natus de/ mulhere breui uiuens tempore repletus multis miserijs:
qui quasi flos greditur. & an/teritur & fugit uelut umbra porque muitos
dos que amanheciam como flores na som/bra da tarde os sepultauam
fogindo da uida a toda preça & com tanta miseria que fora pou/qua si
palauras a puderam explicar uendo a morte em seu carro triunfante
tam cru/el mente disipando toda a cousa uiuente asim racional como
irracional ferindo ata/ as aues do ar e os brutos da terra, & sobre toda
a cousa uiua arcum suum tetendit/ & parauit illum. & in eo parauit uasa
mortis. sagittas suas ardentibus efeçit sicut/ sagitta in manu potentis.
entrando asim triunfante pelos templos de deos destroindo/ as espiri-
tuais columnas deles sem lhes ualer nada ualendo elles sempre a todo o
culpado/ & tanto dominaua sobre elle que a toda a ora do dia & da noite
tinha triumfo & em/ qualquer coniunção auia uendima ficando huns
podados de nouo, outros em agraço,/ por cuia causa em todo o tempo
andaua o santisimo sacramento das mais das/ Parrochias correndo seus
limites disfracado do aparato reuerencial por não auer quem/ leuase o
Paleo dando iuntamente a extrema unção porque qualquer toque era/
extremo de uida, no qual acto se gastauão os dias inteiros, & a maior
parte das noutes/ tanto que ia os sinos não seruiam de mais nas igreias
que de denunciar como ho/ senhor não tinha repouzo por pecadores
como se ia não morrera por elles. Durante/ esta sarraçam tam chea de
corisquos deseiarão os medicos sol tendo que seria no/tauel remedio
deulho noso senhor & mui calido morreram mais que nunqua, da/ qual
experiencia deseiaram agoa. não faltou. faleceram como dantes. uendo
que isto/ lhe era nociuo deseiaram uento frio. desfizeranse os ares nele

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208
Anexo 3

como testemunha/rão os oliuais nem por iso cesou a tormenta. porque


como era dada de deos, soo/ em sua misericordia estaua o remedio
certo & infaliuel. mas como o dara elle em/ tempo que estando com o
asoute na mão com mor autoridade que quando botaua/ os negoceantes
do templo por fazerem da casa de deos & de oração coua de ladrõins/
nos estamos aproueitando das ocasiõins roubando as casas fechadas.
leuando as/ fazendas alheas, executando censuras & apetites mor mente
de luxuria andando/ o tumulto de molheres uiuuas orfans, & mocas
fermosas desemparadas de todo ho/ humano remedio & protectores
que constrangidas da necesidade se prometiam per/ pão parecendo
muitas delas de boa casta & criacam, recolhidas, segundo se entendia/
dos meneos de seus paços, & brandura de suas falas. & do espanto em
que se achauão/ pelo conuez da nao culpa asas graue dos que podendo
cortar os peis a tais oca/siõins & insultos com suas calidades o não fize-
ram falecendo & deixando/ paredes por herdeiros de suas fazendas. &
daqueles que efeituando seus uarios/ apetites se aproueitaram do tempo
& ocasiam que a necesidade sempre trouxe/ aneixa nos sete anos da
bonansa de Joseph, quanto mais nestes sete mil de tra/balhos que tais
nos tem parecidos. fazendose muitos tabaliãins aa falta dos/ auzentes
nos quais testamentos se fazião erdeiros. onde aconteceo falecer/ huma
molher sem testamento & foram cristãos bautizados & fizerão huma ce/
dola em nome da defunta repartindo a fazenda por si mesmos. pera a
qual/ aprouação chamarão hum tabaliam, & uindo asentaram a defunta
na cama/ a qual tinham mão dizendo que de fraca se não podia ter com
o rostro cuber/to & ianelas cerradas. & perguntandolhe o tabaliam se
auia por bom o testamento/ lhe abaixaram a cabeça por diante pera
declarar que dizia que si. e que uindo//
[18.v]
o tabalião inquirir porque não falaua. & respondendolhe que
de fraqua não podia/ entendeo que era engano diabolico. & disimulou
dizendo que como falase o chamase/ que elle não aprouaua testamen-
tos por acenos./
Aconteceo mais ser a necesidade tam geral causada do desem-
paro dos grandes et/ ricos. porque posto que as esmolas eram as que
dixe, auia somente para pesoas pobres/ enfermas do mal, que pera
os sãos não auia remedio tam copioso que não perecesem/ muitos aa
fome como do mal, que hum homem honrado de prezensa & perso-
nagem/ & asi o seria do mais estaua prezo no limoeiro onde a fome
que pasaua era ta/ tamanha [sic] que lhe seruio de ocasiam para se
fazer huma tarde enfermo do mal que/ corria & ao outro pela menham
morto & uendo alguns dos presos que o parecia ou/ como quer que
fose o emburilharam em huma manta mal entrouxado com medo de/

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209

Mário Jorge da Motta Bastos


chegar a elle, & pasando hum esquife com huma negra morta o botarão
sobrella/ & os leuaram ao adro de nosa senhora da graça, & sentindo
que estaua nele pedio ho/ desemburilhasem o que logo fizeram com
muito temor & espanto aos quais respon/dendo que se fosem embora
pois estaua em sagrado se recolheo no dito mosteiro et/ ao outro dia
ueo ter aa portaria desam Domingos em corpo & descalso donde se/
proueo de humas botas & capa uelha com que se foi embora catar
uentura./ sobre o numero dos afogados desta tormenta ha diuersas
contas porque na uer/dade nenhuma pode ser uerdadeira atee gora.
ainda que se fez toda a diligencia na/ ordem pera se poder saber. mas
a tormenta foi tal que espantou os limites/ da posibilidade pela qual
escolho dantre as uarias a mais pia que he 30000/ pesoas. das quais
iriam aa casa da saude 4500 na qual casa gastaria ha/ caridade huns
dias por outros sincoenta mil rés. & das pesoas que a ella foram ate/
gora seram falecidas 1400 & 1800 são fora dela ate fim doutubro/ & as
mais estam em conualencia afora oitenta meninhos machos & femeas
que/ ficaram sem pai & sem mãi do qual numero sam quarenta & tantos
de hum/ atee seis anos de que tem cargo pesoas pera iso deputadas
antre outras muitas/ que ha de todos os oficios & muitas que são pa-
gas a tres mil rés por mes et/ asim auia todos os domingos & festas
pregacão dos padres que nela estauam/ & procisõins/
Pasada esta furia ficou ainda o mar empolado mas uendo o con-
tramestre milhor/ coniunção procurou aproueitarse dela. & uendo que
o naufragio comecaua aleuiar/ com muita diligencia mandou por gardas
nas escotilhas pera que a agoa do monte que/ da tormenta grande se
espargio pelos certõins, não tornase a entrar E/ por outra uez a nao em
perigo o que ora se faz com todo o exame posiuel/ necesario & trabalho-
so como forão todas as cousas que pera saluação desta/ nao boaliz se
ordenaram mandadas pelo dito. & ministradas pelo guardiam/ & mais
gente da nao que asas fica em obrigação aos tais. & ao muito magnifico/
senhor uiso Rei enuiado zeloso da onrra de deos & da caridade fraternal
porquem/ optimo uiue se pode dizer pola lei, & polo rei, & pola grei com
cuio socorro/ de pesoas & caridades que asi trouxe anexas tanto animo
deu a esta princeza/ a quem a necesidade ia tinha no campo oferecida aos
uenenosos & mortais dentes da Hydra/ pestenencial se suas caridades
lhes não ualeram mormente aquela/ tam antiga & cotidiana que neste
infortunio lhe apareceo armada de ponto/ embranquo que parecia hum
são Jorge com laminas de silua crauadas em/ nobres bairros encontrando
a mortifera serpente com o arremeção do copioso//
[19]
socorro cortandoa com o estoque piadoso & segurando a uida
a tal donzela. restituin/ doa salua a seus progenitores, & asim ao mui

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210
Anexo 3

uenerauel diatolico regente que sempre/ lhe seruio de anio da guarda


de seu proprio moto uisitandoa com sua iustica et/ fauor, & com sua
magnifica prezensa acompanhado de seus leais membros cuia uista/ nos
olhos de quem o uia com o amor que se lhe deue parecia o corpo santo
pois/ parecia em tal tormenta animando a toda a gente em geral com
suas promesas, in/do uisitar os conuentos dos religiosos & religiosas
exortandoas que não temesem sal/teadores prometendolhe o que lhe
fose necesario & a elle posiuel. & asim o fazia/ aos pobretes que achaua
polas ruas por abiectos que fosem. a qual caridade/ onrra & merce deos
gratificara com renouar a uida atal idade como a aue Phonix & depois de
mui dilatados & bem afortunados annos gloria sempiter/ na amem./
Este he o canto chão do discurso desta tormenta que pasou,
mas ainda temos/ o anzol na boca do temor se tornara o que deos não
permita mas liurainos/ de todo no mais que pera depois de reconcilia-
dos com elle <per graca> uermos os seus santos/ templos organisados
de seus membros, porque huma das magoas que rompiam peitos/
cristãos foi uer as festas solenes com tam pouca solenidade. orfãns de
ministros et/ faltas de culto tanto. quanto de auditorios pera as ouuir
& uer que parecia que/ estaua christo no sepulchro como esteue tres
dias depois de sua morte. & que os dis/cipulos desempararão as sina-
gogas. & não pareciam com temor dos Judeus & que/ so as marias se
achauão uisitando a sepultura como asim pasou em realidade/ que soo
elas acompanhauam o momento de Jesu continuas & tais de lagrimas/
que bem parece que chorariam meus pecados. ao qual estado em que
agora/ estamos chegarão somente com o impeto com que começarão
os caritatiuos prega/ dores. porque todas as mais ordens que uisitauão
estancaram a furia de suas/ caridades com muitas mortes de religiosos
seus, & os que digo ficaram com o leme/ nas mãos asim do hospital
como da mais parte da nao não derrogando de/ alguns que a remo
chegaram com elles ao remate desta bonansa cuios nomes/ calo pois
os deos tem escrito no Liuro da caridade no ceo, & na terra nos cora/
cõins dos pobres humildes que he o proprio & principal tezouro de
deos. as quais/ nouas pasam asim em realidade firmadas com uistas
dolhos muitas uezes/ & com muito perigo de minha pesoa. mas por-
que antre tantas uerdades/ aão algumas por folha que ou asim seram
ou nam lhe quero recapitular ho/ que alguns sobre este canto cham
solfarão com seus ociosos iuizos, quais/ sam hos seguintes/
Primeiramente dizem alguns commentadores que foi castigo
de deos por pecados/ quasi reais, & eclesiasticos como se pregou em
santo Agostinho dia de no/sa senhora de Agosto./
Outros dizem que pelo que se tomou aos pobres da India permi-
tio deos parte/ gastarse com pobres. & outra se perdese nas rendas

O poder nos tempos da peste.indb 210 19/8/2009 19:02:05


211

Mário Jorge da Motta Bastos


reais com tanta afronta et/ perigo desta nao Boalis cuia reformacão
não sei quem uera./
Outros que pelo que se pedio os anos pasados pera se fazer
hum templo a são se/bastiam pera o qual se aiuntou muito dinheiro
<ut aiunt> que se diz gastar/se em outras obras posto que pias sem
licensa do bem auenturado santo/ no que se lhe fez agrauo.//
[19.v]
Outros que pela soberba dos grandes usada com os pequenos
permitio Deos que os/ ofensores fugisem pera não terem que merecer
em tais tempos. & os ofendidos/ ficasem pera leuados aos ceos serem
consolados & honrados de deos pera sem/pre dos sempres./
Outros que pelas taixas pera os pequenos izentando os grandes
como feitas por/ elles sem nunqua as auererem [sic] por nas cazas
que sam suas, que he o que/ mais destrue os pobres./
Outros pela uariedade & delicias da terra & estados desuzados
das cadeiras acha/roladas pelas ruas tam custozas de damasquos
estrangeiros estando altares/ enquartinados com teas de aranhas em
terra de christãos quais o profesamos/ no nome./
Outros que pelos buratos & fileles tam ordinarios em quaisquer
pesoas et/ fraldilhas de seda que esta tormenta conuerteo em uasqui-
nhas de ingoento/ basiliquam. & as peras dambre em cebolas branquas,
& os caiados de docura/ em tantos quinze anos, & com tantos isanos
da mina & brasil em canas/ & pedaços de pao, & os almeicegados pera
mais aluas & fermosas se trazem/ agora por negros, uiuuas, & orfans, &
as luuas de poluilhos tam cotidianas/ nas mãos, em papeis de ingoento
& oleos horrendos não pera rostro, mas/ pera chagas, & os almiscres &
algaleas en fedor de fedorentas meizinhas/ & os alterozos & dourados
chapins de ualenca em que se asobradauam, em/ palmilhas por não
cairem & manquirarem, & os que folgauão de mostrar/ peis pera serem
cobicados, os mostram agora aborrecidos./
Outros que por falta de iustica uiera a de deos a castigar maos
leuandolhe/ bons pera iuizes seus como os de niniue. pera que os que
escapasem ficasem/ sem elles aas escuras em tempos tam nocturnos
& temerarios sem tais lumi/narias & alampadarios nos montes altos
da igreia de deos que com tanta/ caridade & santo exemplo de suas
pesoas eram certas guias de nosas con/quistas tam duuidosas pera
o ceo fauorecidos do espirito do senhor que nelles/ residia com que
mais pareciam spiritos Angelicos que homens em carne/ na terra./
Outros que pela sensualidade que dentro nesta nao se fabricaua
tam des/aforada & em pesoas de calidade com titulo de uirtude, &
pelos pubricos/ & secretos adulterios. & amancebados de tantos anos
& em pecado mortal/ em cuia proua dão pubricar o vigairo de santa

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212
Anexo 3

Justa os dias pasados que/ so na sua fregesia faleceram de Epedimia


corenta & huma pesoas & em estado de condenação./
Outros que pelos cambios, recambios. & usuras que tem dester-
rado ho empres/timo proximal & amigauel tam antigo & honrado qual
foi o dos pasados/ anos da era doirada, tendo huns tudo & outros nada
não lhes lembrando/ que são despenseiros do talento dado de deos pera
com elle tratarem com os/ pobres, & que ainda que lhe custou trabalho
aquirir o que tem que a industria/ foi dada de deos pera pelo seu amor
fazerem bem aos necesitados grangean/do tizoiro pera o ceo.//
[20]
Outros que pelo Fauor real que se dera a pesoas sospeitas por
mexericos foriados com/ suas malicias com cuio fauor cometem tudo
o que querem como preueligiados sanian/dose com os auizos serem
de proueito real ainda que ciuil fazendo elles mais o seu/ proprio pelo
qual respeito fingem que zelam contradizendo a lei de deos da rezan.
et/ da natureza. & ao mesmo intento das cousas, pois negam nele a
caridade fraternal/ de quem se não espera treição./
Outros que por cursos naturais & ynfluencias dos ares & pla-
netas dando em proua/ que ia ha muitos anos que esta era estaua
frenosticada & que ia o cristianisimo/ prinçipe infante dom luis em seus
dourados dias a tinha notada & chorado sobre ella como/ cristo sobre
Jerusalem como quem tinha espirito de deos para por merçe sua ter
in/teligencia de alguma cousa futura como então ho era esta. os quais
Juizos lhe/ recapitolei não aprouando nem reprouando nenhum deles
concluindo esta com o meu/ <saluo mehori indicio> o qual declaro
admitindo a correicão fraterna, que he iustica de/ deos por pecados
meus & alheos que elle por sua infinita misericordia nos perdoe tendo
nos/ da sua mão dando nos nesta uida sua graça pera o seruirmos. &
na outra termos/ gloria. amen./
Outro Prologo desta mesma obra atraz/
Deos que a sua mui magnifica pesoa comunicou os talentos
de suas graças gratis datas/ permita a ache meu ester atreuimento
ante seu seuero & real animo pera ser/ perdoado de tam tibia oferta
perigrina de sciencia a quem nela estaa tam/ laureado asim terrestre
como celeste. mas lembrandome aceitar hum famoso/ Emperador
huma caueira de agoa encharcada oferecida com amor & singeleza/
que esta leua por padrinhos me faz confiado aceitara este breue su-
mario/ como fruito de tam manencolizada pranta como Epedimia de
que noso senhor/ salue sua tam caleficada pesoa, & a toda sua ditosa
congregacão. cuio discurso/ he aquilo quoo uiderunt oculi mei muitas
uezes que he o termo que o euange/lho daa pera se poderem chamar
uerdades que foi uer huma nao etcoetera./

O poder nos tempos da peste.indb 212 19/8/2009 19:02:05


PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)


após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenham, corpo 10.


Impresso na Gráfica e Editora Progressiva Ltda.,
em Papel Reciclato 75g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa),
em agosto 2009. Tiragem: 400 exemplares

O poder nos tempos da peste.indb 214 19/8/2009 19:02:05

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