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H I S T Ó R I A

E ANTOLOGIA
DA L I T E R AT U R A
P O RT U G U E S A
S é c u l o
XVI

N.º 25

FUNDAÇÃO
CALOUSTE
GULBENKIAN
1

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


HALP N. 25

Professores/Investigadores

Aníbal Pinto de Castro


António José Saraiva
Fidelino de Figueiredo
José Adriano de Carvalho
José Augusto Mourão
Lúcia Liba Mucznik
Óscar Lopes

Agradecimentos

Centro Cultural de Paris/FCG


Editora Sá da Costa
Lello & Irmão
Of. Gráfica Paz
Porto Editora, Lda.
Vega Editora

Ilustrações

Samuel Usque. Consolação às Tribulações de Israel.


“Diálogo Primeiro”. Edição de Ferrara, 1553.

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna 45A – 1067-001 Lisboa
Autora: Isabel Allegro de Magalhães
Concepção Gráfica de António Paulo Gama
Composição, impressão e acabamento
G.C. Gráfica de Coimbra, Lda
Tiragem de 10.000 exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal n.º 206390/04
ISSN 1645-5169
Série HALP n.º 25 – Julho de 2003

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PROSA RELIGIOSA:
ASCÉTICA, MÍSTICA
E
D O U T R I N A L

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Índice
Nota Prévia .......................................................... 7 Diálogo III:
Caps. 26. Ano 5252. Quando entraram os judeus
Introduções de Castela em Portugal (f. cxcix-cc)
27. Quando mandaram os meninos aos
“Quatro escritores de prosa doutrinal religiosa” lagartos (cci-ccii)
A. J. Saraiva e Óscar Lopes ................................. 11 28. Quando os fizeram cristãos por
força (cciii-ccv)
“Como é que a Consolação consola?” 29. A matança de Portugal (ccv-ccvii)
Lúcia Liba Mucznik ............................................. 18 30. Da inquisição de Portugal (ccvii-ccix)
31. Dos que saíram e saem de Portugal
“A Ars Orandi de Frei Heitor Pinto e as raízes
desde o ano 5291 (ccix-ccxi)
culturais da Imagem da Vida Cristã”
Consolo humano nas tribulações de Israel
José Adriano F. de Carvalho ............................... 22
(ccxxxii-ccxliii)
“Tendência política e patriótica nos Diálogos de Cap. Como todolos mortos de Israel hão-de
Frei Amador Arrais” ressuscitar (cclxiiii)
Fidelino de Figueiredo ....................................... 25 Bens de Israel (cclxxx-cclxxxi) ........................ 39

“A erótica do afectus, em Trabalhos de Jesus” Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã
José Augusto Mourão .......................................... 29 Prólogo
Vol. I: “Diálogo da Justiça”, cap. I;
“Traços da obra de Frei Bartolomeu dos Már- Vol. II: “Diálogo da vida solitária”, cap. VIII;
tires” Vol. IV: “Diálogo das causas”, cap. VI e VIII ... 57
Aníbal Pinto de Castro ....................................... 33
Frei Amador Arrais, Diálogos
Textos Literários 1º: cap. VII; 2º: cap. IX; 3º: cap. I, II, XXX;
4º: cap. XXI ................................................. 65
Samuel Usque, Consolação às Tribulações de Israel
Prólogo Frei Tomé de Jesus, Trabalhos de Jesus:
Diálogo I: I Parte:“Motivos que podem acender a alma
Um lamento de Israel (f. i-vi) em amor...” – 1º - 3º; 6º;
[Origem e] vida pastoril [de Israel] (f. vi-viii) “Trabalhos VII e XIII .................................. 72
Caça de coelhos: e lebres; Caça de cervos
(viiii-xii) D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Compên-
A caça de cervos em vida de maus transfigurada dio de Doutrina Espiritual:
(l-liii) 1ª Parte: Cap., II, VIII; 2ª Parte: & 1º .............. 77
Consolo no Cativeiro dos dez tribos (lvi-lviii)
Diálogo II: Bibliografia ........................................................ 83
Bens que faltam na casa segunda (xciii-xciiii)
Lamento na perda da segunda casa (cxliii-clvii)

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Nota Prévia
Os textos reunidos neste volume fazem parte singular; conforme a expressão deYosef H.Yerishalmi:
daquilo a que poderemos chamar uma literatura “um clássico judaico em língua portuguesa”. A Consola-
de inspiração religiosa (de cariz místico, ascético e ção parece condensar essa matriz futurante, utópica
doutrinário) do século XVI português. Outros tex- no sentido próprio, da cultura judeo-cristã e, nesse
tos existem, alguns deles escritos em castelhano, mas sentido, talvez possa dizer-se que neste texto de al-
serão estes seguramente os mais significativos. gum modo se enraíza o topos sebástico, que marcará
Esta antologia começa por dar a ler um con- a nossa cultura de quase todos os tempos.
junto de estudos breves, ou de excertos de traba- Samuel Usque escolheu escrever em português.
lhos mais extensos, com o objectivo de poderem E essa decisão é por si justificada no “Prólogo” da
introduzir quer os textos e os autores quer os seus obra: “desconveniente era fugir da língua que mamei e
contextos. A seguir figuram aqui selecções de qua- buscar outra prestada pera falar aos meus naturais.”
tro obras, cada uma de seu autor:
– Imagem da Vida Cristã, de Frei Heitor Pinto, de
– Consolação às Tribulações de Israel, publicado em 1572, é um texto que dá a ver, por um lado, a atitu-
Itália, em Ferrara, em 1553, por um autor judeu de de um humanista fiel a Erasmo e, por outro,
português, Samuel Usque. Na forma de um diálo- aquela do monge que era (um carmelita descalço),
go pastoril ficcionado, o texto – que é de uma com um pensamento ascético-místico marcado em
grande beleza poética – propõe-se “consolar” os grande parte pelo neoplatonismo. Através do trata-
judeus portugueses, mantendo viva, perante as tri- mento de vários temas (justiça; vida solitária, enga-
bulações sofridas pelos judeus em Portugal, a pro- no e vaidade do mundo; causas, etc.), aponta ao
messa messiânica de paz e libertação para o povo sentido da transitoriedade da vida, da figura vã deste
de Israel – hoje ainda, e de novo, tão ameaçadas. mundo: “o mundo é como uma farsa”, e apela a um
Começando por evocar a história dessas tribula- modo afectivo da oração. O texto obteve imediata-
ções ao longo dos tempos, o narrador descreve o mente traduções para outras línguas, nomeadamente
modo específico delas pelo terrível tratamento dado para espanhol, logo em 1577, e a seguir para latim,
aos judeus, ditos “Senhores do Desterro em Portugal” francês, italiano, inglês, tendo mantido uma diversi-
bem como noutros países europeus, durante a dade de traduções e de edições durante os séculos
Inquisição e mesmo antes, no tempo de D. João II. XVIII e XIX.
Trata-se, segundo Lúcia Liba Mucznik, de “um cate-
cismo judaico para uso de cristãos-novos em ruptura com – Os Diálogos de Frei Amador Arrais (1528-
a tradição judaica”, para o qual o Autor utiliza a sua 1600), publicados em 1589, têm um carácter
melhor “arte de persuadir” com um propósito di- predominantemente doutrinal, apesar de se apresen-
dáctico. O estilo de Usque repercute uma forte tarem como “conversas”, mais do que como
intertextualidade com textos bíblicos, mostrando “debates”. Trata-se de dez conversas entre um
ritmos, imagens, construções do discurso, que o li- interlocutor e dez seus visitantes, que parecem estar,
gam à literatura hebraica. Isso, juntamente com as em geral, mais próximas de uma atitude catequética
formas da sua imaginação, confere ao texto, dentro e de um preceituário moral e doutrinário do que
do contexto da literatura portuguesa, uma posição propriamente de qualquer posição humanista. Aliás,

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em alguns desses diálogos, sobressai uma atitude de – Compêndio de Doutrina Espiritual, de D. Frei
fechamento perante aqueles que se situam fora do Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), escrito em
Cristianismo, manifesta numa forte hostilidade latim, congrega um conjunto de “máximas da vida
perante o Judaísmo e sobretudo para com os judeus, espiritual”, atravessadas por uma pedagogia que as
chamados “míseros” e considerados maus. No diálogo torna também um guia espiritual prático. Por exem-
sobre esta matéria, como sobre outras, o Autor plo, no capítulo contra a soberba, fala das honras,
espelha uma mente quase fanática e militante de dizendo: “Considera que as honras a ninguém tributam
um patriotismo retrógrado. Em algumas das falas, pela pessoa de cada um, mas pelo lucro que os aduladores
porém, há um acutilante crítica, na voz de algumas daí se prometem: [...] quando tiverem comido tudo até
personagens, dirigida, por exemplo, contra os fidalgos aos ossos, deixam-nos sem sequer lhes dizerem adeus.”
do reino: “Os fidalgos portugueses são muito mimosos, Tendo sido lente de Artes e Teologia, arcebispo
todos se têm por parentes de Rei; e parece a cada qual que de Braga e, enquanto tal, com assento no Concílio
caiu do Céu e que não há para ele justiça.” (Diálogo III, de Trento, o Autor (que elaborou a lista de livros
cap. II) proibidos pelo Concílio) escreveu obras várias de
teologia mística e doutrinal, sempre em latim. Ape-
– Trabalhos de Jesus, de Frei Tomé de Jesus (1529- sar da sua cultura humanista, o Compendium spiritualis
-1582), publicados em duas partes (1602 e 1609), é doctrinae, bem como outras obras, mostra um dis-
um dos poucos textos portugueses de natureza mís- tanciamento da cultura renascentista. Para além do
tica. (Noutro destes Boletins (o nº 9), foram já in- seu impacto doutrinal e espiritual, é de notar a
cluídos textos dessa natureza, em particular, o Boosco qualidade literária da escrita. Outras faces estão ins-
Deleitoso, do século XV). O Autor percorre os “tra- critas nos textos: a do crente e a do conhecedor da
balhos” de Jesus, do seu nascimento à Paixão (I Par- alma humana. É por isso que, sabendo da impor-
te) e durante a sua Paixão (II Parte), trabalhos que, tância dos afectos para um movimento de elevação
como diz, “se mediram pelo grande gosto que [Jesus] do espírito, Frei Bartolomeu irá pautar a sua escrita
tinha de os passar” (I, 1º). Trata-se aqui da expressão por essa convicção fundamental, que o fará dizer:
literária de uma atitude experiencialmente mística, “a perfeição consiste na parte afectiva”. A julgar pelo
concretamente expressa através de uma meditação número de traduções publicadas, em francês, em
sobre “os trabalhos” padecidos por Jesus. Por essa italiano, espanhol, alemão, sobretudo durante do
via, o seu autor, frade eremita de Santo Agostinho, século XVII ao XIX, a sua recepção europeia terá
procura contribuir para que, aqueles que padecem, sido de grande dimensão. Foi seu biógrafo Frei Luís
individual ou colectivamente, saibam erguer a sua de Sousa.
dor à imagem do Jesus em quem se centra, formu-
lando uma espécie de “mística da dor”. Ao mesmo
tempo, os seus textos apontam à prática de uma Isabel Allegro de Magalhães
ascese, através de “exercícios” indicados. Essa ascese é
descrita por vezes através de imagens de metonímias, Julho, 2003
por exemplo, nestes termos: “Como a ovelha que, que-
rendo estar descansada, remoendo e gostando do que tem
comido, não pega de outra erva por boa que seja, porque
não pode o estômago com tanta coisa” (citado por J.A.
Mourão). Significativo também é o acolhimento que
a sua obra teve no estrangeiro, até em Espanha, país
tão rico em autores místicos.

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ESTUDOS BREVES.
I N T RO D U Ç Õ E S .

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Quatro de língua castelhana, mas que viveu e editou em
Portugal, é significativo da existência de um público
numeroso para este género de obras.
escritores de Entre as poucas obras de inspiração religiosa que
seguidamente vamos examinar, inclui-se uma de
cunho hebraico e publicada em Itália. Embora
prosa doutrinal adoptando a ficção pastoril, a sua inspiração é
fundamentalmente bíblica, e o seu tema nada tem

religiosa que ver com o bucolismo, excepto a descrição


idealizada de um lugar ameno campestre.

A. J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES * SAMUEL USQUE

A Consolação às Tribulações de Israel (Ferrara, 1553),


Prosa Doutrinal Religiosa do judeu português emigrado em Itália Samuel
Usque, é constituída por três diálogos entre pastores
Consideraremos à parte da prosa de ficção um (Icabo, Numeu e Zicareu – anagramas de nomes
conjunto de obras que, embora contenham judaicos) e tem como propósito rememorar as
elementos ficcionistas, tais como a alegoria, o perseguições sofridas pelo povo bíblico e recor-
diálogo e a descrição de visões, se caracteriza dar-lhe as divinas promessas de resgate. Parece à
todavia pelo predomínio dos motivos religiosos. primeira vista estarmos simplesmente em presença
Não pode falar-se, na literatura portuguesa, de de um livro de forma bucólica e de fundo religioso:
uma literatura propriamente mística, entendendo-se tudo são reflexões e queixumes acerca das matanças,
como tal aquela que exprime, por meios estilísticos das escravizações, vexames, padecimentos sofridos
tendentes à sugestão emocional, uma experiência pelos Israelitas, em constante paráfrase de textos
imaginada ou experimentada de contacto directo bíblicos e históricos, ou sobre recordações familiares,
com a divindade. Nada na literatura portuguesa mitigando-se o sofrimento com a consolação das
se pode comparar às Moradas de St., Teresa de profecias e dos mistérios cabalísticos (a trans-
Ávila ou às obras de S. João da Cruz. Não parecem migração das almas, os poderes ocultos). No entanto,
numerosas as obras que é usual classificar como o pastoralismo de Usque vai talvez mais fundo do
ascéticas, isto é, as que se ocupam dos preceitos que o dos outros bucólicos portugueses, dado que
que levam à perfeição espiritual e preparam para a Bíblia, em que as suas alegorias se apoiam
o gozo da união com Deus (género que tem a constantemente, elabora a história e as crenças de
sua melhor expressão na Imitação de Cristo). Deve um novo nómada, ao passo que o bucolismo de
todavia ressalvar-se que os textos de devoção não Teócrito e Virgílio é muito mais evoluído em
têm sido sistematicamente explorados pelos relação às raízes do género. A imaginação literária,
historiadores da literatura. O grande êxito que o estilo de Usque constituem talvez por isso um
tiveram as obras de Frei Luís de Granada, autor caso único na nossa literatura quinhentista, se des-
cartarmos um certo parentesco com a obra em
prosa de Bernardim.
* In História da Literatura Portuguesa. 17.ª ed. corrigida e Depara-se-nos em Samuel Usque o estilo bíblico,
actualizada. Porto: Porto Ed., s.d., pp. 409-418 em que o liame lógico é indirectamente dado por

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alegorias e metáforas simples (ao nível suposto de HEITOR PINTO
uma cultura de pastores), com repetições insistentes,
com descrições pitorescas de circunstâncias que, É ainda sob uma reconhecível influência do Huma-
logicamente, nada fazem ao caso, mas inculcam nismo renascentista, como vamos ver, que Heitor
uma representação imaginosa das ideias. Este Pinto redige a Imagem da Vida Cristã, cuja publi-
processo é sobretudo sensível no 1.° diálogo, Diálogo cação se conclui no próprio ano em que se
pastoril sobre as cousas da Sagrada Escritura, o mais imprimem Os Lusíadas (1572).
abundante em descritivo campestre, traçando um
quadro paradisíaco anterior às atribulações israelitas. Heitor Pinto é contemporâneo de António Ferreira,
Icabo (anagrama de Jacob), que no simbolismo quer dizer, formou-se na época em que estava no
bíblico se confunde corporeamente com o próprio apogeu o Humanismo em Portugal, sob o impulso dos
povo judaico (também representado, aliás, pelas Bordaleses do Colégio das Artes. Nascido na Covilhã
suas ovelhas), não entra na matéria histórica dos em 1528, professou, ainda adolescente (1543), na
seus lamentos sem primeiro nos dar todo o lento Ordem dos Jerónimos, e fez a primeira escolaridade na
desenrolar de um dia de pascigo, parece que hora afamada escola humanística do Convento da Costa de
a hora, rês a rês, numa contemplação logicamente Guimarães, que chegou a ter privilégios universitários,
preguiçosa que mal suporta substantivo sem até que por 1551 foi transferido para a Universidade
adjectivação pitoresca, verbo sem adverbiação de Coimbra. Deve ter sido notavelmente completa a
esmiuçadora, em longos períodos enumerativos sua educação humanística, a ajuizarmos pelos autores
que, ainda assim, não dispensam um espraiamento que cita na sua obra: não apenas os Antigos mais
parentético de longe a longe. conhecidos (Aristóteles, Platão, Ptolomeu, Homero,
Sannazzaro não deixou de concorrer para este Diógenes Laércio, Pitágoras, Anaxágoras, Eurípides,
pastoralismo, pois certas paráfrases suas já foram Zenão, Plutarco, Cícero, Xenofonte, Plotino, etc., etc.),
reconhecidas pelos eruditos. Mas, mais do que a mas ainda os de menor tomo e mais raramente conhe-
écloga, domina a inspiração do autor o versículo cidos; numerosos autores medievais, como (além dos
imaginoso e ritmado dos cânticos das Escrituras, Padres Santos e de S. Tomás) Hugo de S.Vítor, Nicolau
o que ainda mais se evidencia se desse trecho de Cusa, o pseudo-Areopagita; numerosíssimos
descritivo passarmos às lamentações. Aí parece até humanistas, como Petrarca, Lorenzo Valla, Pico della
que a exigência de melopeia, o tom agridoce dos Mirandola, Luis Vives, Bessarião, Eneias Sílvio
lamentos e interrogações, ritmo de balanceamento Piccolomini, Guilherme Budé, Marsílio Ficino,
ou intensificação gradativa preexistem à própria Castiglione, o próprio Tomás Morus, embora deva
significação das frases e a comandam: ter-se em conta que muitas destas citações se encon-
travam em compêndios como o de Ravísio Textor.
«...Quando cansarão meus males e fadigas, minhas Em 1567, já conhecido como comentador das Escri-
enjúrias e ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas turas, concorreu à regência da cadeira respectiva em
n’alma e minhas magoas, as bem-aventuranças longas Salamanca, mas foi preterido, ao que parece, porque,
e tão cansadas? E quando terá paz tanta guerra contra no critério dos examinadores, «era mais pregador que
o fraco sujeito, temor, suspeita, receios de minhas entra- teólogo». Já então publicara (1566) o primeiro volume
nhas? Té quando gemerei, suspirarei, matarei a sede dos seus diálogos. Após um doutoramento em Teologia
coas lágrimas de meus olhos?» na Universidade de Siguenza, ascende ao alto cargo de
Provincial da sua ordem em Portugal, no mesmo ano
em que sai o 2.° volume da Imagem. O livro teve um

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êxito fulminante, dando lugar à concorrência dos homem saber muita teologia sem ter esta ciência
editores: em 32 anos publicaram-se 10 edições. Heitor [a verdadeira sabedoria unida com a caridade]; e
Pinto, talvez no exercício do seu cargo, pôde por vezes ser-lhe-ia melhor ser simples com virtudes que
viajar no estrangeiro. Assim, estanciou em Roma, onde teólogo com vícios.» (diálogo Da Discreta Ignorância,
se interessou pelas ruínas da cidade antiga, como bom capítulo V). Isto não o impede, naturalmente, de
erudito que era. Conta-se entre os raros eclesiásticos nos seus diálogos dar em geral a última palavra
portugueses que se opuseram ao domínio filipino em a um interlocutor teólogo, que nem por o ser
Portugal, o que lhe valeu, em 1583, um desterro para deixa de acudir em defesa de Platão, contra um
Castela. A partir de então perdem-se definitivamente precipitado estudante de Teologia (diálogo Das
as suas pegadas. Causas, capítulo XX). No ideário social de Heitor
Pinto encontra-se também um eco, embora já
A Imagem da Vida Cristã, constituída por 11 diálogos, muito amortecido, do Humanismo. Manifesta-se
é ainda uma importante expressão do Humanismo contra as distinções hierárquicas – «bem pobre é
português, marcando embora já, como a lírica de de honra quem a anda mendigando de seus ante-
Camões e no mesmo grau que esta, a inflexão passados...». Mas a ideia da igualdade da condição
para o ascetismo e o barroco da época seguinte. humana aparece numa perspectiva ascética, como
O autor é um platonizante convicto, que cita, sucederá em El gran Teatro del mundo de Calderón:
constantemente e com reiterados encómios, Platão
e discípulos seus, como Plotino e o pseudo- «O mundo é como uma farsa, onde entram diversas
-Areopagita. O panegírico de Platão acompanha-se figuras, umas de príncipes, outras de mecânicos e
mesmo de críticas a Aristóteles. No diálogo I, Da lavradores, e acerta-se que os mecânicos entram por
Verdadeira Filosofia, trata-se de inferiorizar o conhe- figuras de nobres, e os nobres por figuras de mecânicos.
cimento sensível colhido pelos «olhos corporais Dura isto enquanto dura o auto, e, acabado ele, fica
perante o conhecimento» que se obtém pelos cada um no que era.» (diálogo Dos Verdadeiros e Falsos
«olhos do entendimento». No diálogo Da Justiça, Bens, capítulo IV)
capítulo IV, desenvolve expressamente a teoria
platónica das Ideias, que nos permite «pintar e Heitor Pinto exalta, no diálogo Da Justiça, uma
descrever um princípio justíssimo e perfeitíssimo, imagem idealizada do absolutismo, seguindo nisto
não como retrato dos que aí há, mas como ideia uma corrente em que também se inserem Camões,
que em nossa alma conhecemos». E, dentro da Amador Arrais, toda a série dos «Regimentos de
mesma concepção, afirma que «as cousas do mundo Príncipes» que na Península se escreveram em
não são substâncias estantes, mas figuras que latim, castelhano ou português, as cartas de
passam». A «verdadeira filosofia» é definida socratica- Jerónimo Osório para D. Sebastião, e em geral as
mente como o autoconhecimento moral, única crónicas, epopeias, novelas cavaleirescas, e muitas
maneira de nos erguermos ao conhecimento de dedicatórias, incluindo as dos Humanistas.
Deus. Este «conhecimento de si» faz-se, segundo O platonismo de Heitor Pinto não é incompatível
a interpretação cristã, no sentido de um refúgio com a tradição teológica, mas aparece também
ascético, identificado com as esperanças sobrena- associado a certa sabedoria estóica, de impassibi-
turais da religião. Pelo que fica dito, não admira lidade perante os instáveis bens mundanos, o sofri-
encontrarmos neste concorrente preterido à Uni- mento físico e a morte, e de contemplação espiri-
versidade de Salamanca um discreto mas inequí- tual de um mundo que constitui o fundo da
voco ataque à teologia escolástica: «Bem pode um consciência individual. Mais de um capítulo da

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Imagem faz pensar no ensaio de Montaigne «Que como em vidros transparentes e, estendendo-se por
philosopher c’est apprendre à mourir», de tradição eles, fazem parecer ao Sol mor do que parece ao
medieval. As coincidências são frequentes mas meio-dia, e doutra cor [...]. Estes vapores que sobem
breves, porque a «vida espiritual» é para Heitor da terra são nossas afeições que saem de nós, que somos
Pinto uma introdução à vida eterna. terra, e eles são os que, atravessando-se-nos diante dos
Pela concepção literária, a obra lembra, mais do olhos da alma, fazem parecer-nos as cousas vistas
que os Diálogos de Platão (não há na Imagem o maiores e doutra cor.» (diálogo Da Justiça, capítulo
efectivo diálogo socrático, mas simples discursos, às III).
vezes entrecortados de silogismos), o Cortesão de
Castiglione: e por esse facto convirá aproximá-la O parelelismo entre a vida física e a vida moral
da Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo. Cada é normalmente o eixo destas comparações, como
diálogo enquadra-se entre uma abertura e um se vê aqui:
remate, por vezes saudosista, com ar bucólico. É
sensível a influência da Menina e Moça de Ber- «Assim como as verdes canas vão crescendo, mas de
nardim Ribeiro, que aliás não aparece citado, em quando em quando vão fazendo uns nós como
certas frases, por vezes decalcadas palavra a palavra, descansos, em que parece que a natureza repousa, não
como esta: «quão azinha se mudou aquilo que em para ficar ali, mas para com maior força tornar a subir,
longo tempo se buscou e para longo tempo se assim os homens disciplinados no trabalho vão às vezes
buscava». interpondo repouso a suas moléstias como nós.»
(diálogo Da Discreta Ignorância, capítulo I)
O aspecto mais saliente da forma literária deste
livro é a profusão, variedade e interesse das imagens, Mas acontece por vezes que o autor vai muito
que por vezes surgem aos cachos para dar corpo além das analogias pitorescas, e procura termos de
a um mesmo pensamento: assim, a atribulação comparação para conferir rigor a relações con-
onde se revela a fortaleza de ânimo compara-se, ceptualmente estabelecidas: assim, para definir a
num breve trecho, à «noite em que resplandece o igualdade a que são obrigados os príncipes, relativa
luar da virtude», à sacudidela que faz rescender aos méritos e deméritos de cada súbdito, o Teólogo
um frasco de água de flor, à percussão que faz do diálogo Da Justiça encontra esta expressão:
soar um instrumento musical. Algumas destas
imagens são de origem literária, colhidas na Bíblia, «O Sol, quando bate na frontaria de um alto edifício,
na Patrística, em Platão ou ainda em outros autores entra por todas as janelas abertas daquela banda,
clássicos; outras provêm do ambiente físico quo- enchendo-as de sua claridade, mas, como umas são
tidiano: muitas da vida do mar, e numerosas da grandes, outras pequenas, por umas entra muito
geometria, da geografia, da cosmografia. Algumas esplendor e por outras pouco. E dizemos que o Sol
captam com viveza a ideia em vista. entra igualmente por todas aquelas janelas, não porque
Um exemplo: tanto entra por uma como pela outra, mas porque
entra igual e conforme ao tamanho e capacidade de
«O Sol, quando nasce e quando se põe, parece maior cada uma.» (capítulo 3)
que ao meio-dia, sendo ele sempre de um tamanho:
mas enganam-nos a vista os vapores que pela manhã Sem dúvida que a técnica medieval da pregação
e à tarde se nos põem ante os olhos, os quais vapores e da exegese bíblica, que Vieira levará ao extremo,
nos servem de óculos, em que os raios visuais batem exerce influência neste gosto de imagens tão

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característico da Imagem da Vida Cristã. Mas outras faz a demonstração da existência, nos pólos, de
fontes concorrem para o mesmo resultado, parti- dias e noites de seis meses. Um protagonista «mate-
cularmente a leitura dos Diálogos de Platão, de que mático» faz o elogio da sua ciência, onde ressalta
Heitor Pinto aproveitou e até justificou algumas esta afirmação curiosa: «Deus fez o mundo, e
imagens (como a que compara a Alma a uma Ptolomeu o descreveu e matizou.» A cultura
recta e a uma circunferência); e, além disto, ainda, científica de Heitor Pinto (como, por exemplo, a
uma grande vocação metafórica a trabalhar espon- de António Ferreira) é de origem humanística,
taneamente sobre os dados correntes, como com base em Ptolomeu, Aristarco, Plínio, etc., mas
quando diz: «é tão pequeno o pavio de nossa vida também lembra conhecimentos geográficos impul-
e vai-se consumindo com tanta ligeireza a cera da sionados pela náutica portuguesa, incluindo o
idade...». Há sem dúvida muito conceptismo nas matematicismo platónico de Pedro Nunes.
inúmeras comparações de Heitor Pinto. Mas, de Heitor Pinto como humanista é o representante
maneira geral, não encontramos nele o artifício de uma elite clerical que não anda muito longe
engenhoso que no século XVII caracteriza autores do ideal proposto por Erasmo. Não pode consi-
como o Padre António Vieira e D. Francisco derar-se um místico, nem mesmo, em todo o
Manuel de Melo. O cultismo de Heitor Pinto, sentido, um asceta. Para ele a religião consiste na
que não vai além do de Camões e de Bernardim caridade, e o primeiro passo para o conhecimento
Ribeiro, serve em geral para sublinhar conceitos de Deus está no conhecimento socrático de nós
contraditórios, particularmente o do fluir do próprios. O saber é por ele considerado impres-
tempo. «A vida que sempre morre, que se perde cindível a um verdadeiro cristão, embora um saber
em que se perca?» Por isso, literariamente, Heitor temperado de «discreta ignorância» (de que dá
Pinto está neste ponto mais perto de nós do que como exemplo S. Francisco de Assis) relativamente
Vieira: as suas imagens interessam-nos muito mais a certos livros mundanos e a certas subtilezas dos
como símiles sugestivos e motivos de reflexão do disputadores teólogos.
que como exercícios de engenho; apoiam-se numa Mas já na sua prosa há uma superabundância
observação naturalista sem precedentes no seu barroca de imagens e ressoam ecos saudosistas de
género literário. Bernardim, que não falam já da saudade da carne,
A própria cultura humanística variada e profunda, mas da de «aquela Santa Cidade» a que também
derramada ao fio das considerações por um pro- se refere Camões, convidando ao isolamento e ao
cesso de associação que lembra alguns dos ensaios desprendimento do mundo, notas ambas que vamos
de Montaigne, torna Heitor Pinto inconfundível encontrar acentuadas na época seguinte.
e dá-lhe uma atitude mental bem diversa da que
possibilitará a Vieira a sua erudição jesuíta. E este AMADOR ARRAIS
caudal humanístico não era – em Heitor Pinto,
como em Camões, como em António Ferreira, ou Não pode deixar de sentir um grande desnivela-
em qualquer grande humanista – exclusivamente mento quem passa da leitura da Imagem da Vida
literário, de espírito mítico. Ressaltam na Imagem Cristã aos Diálogos (1.ª edição 1589) de Frei Amador
da Vida Cristã as constantes referências mate- Arrais, da Ordem dos Carmelitas Calçados, nascido
máticas (entendendo-se por tal um conjunto de em 1528 e falecido em 1600, após ter desem-
conhecimentos aplicados à cosmografia). O inte- penhado importantes cargos eclesiásticos, entre eles
resse por esta ciência evidencia-se através de com- o de bispo de Portalegre. Se aquela ainda conserva
parações e de digressões, como aquela em que se algo do impulso humanístico, estes cingem-se ao

15
critério da Contra-Reforma. Os Diálogos foram a dilatação da fé de Cristo pela pregação como
começados, segundo declara Frei Amador, por seu pela espada. A cobiça e usura, sobretudo da gente
irmão, o doutor Jerónimo Arrais. Não são propria- judaica, seriam os responsáveis pela decadência
mente arquitectados como debates entre teses portuguesa, até mesmo (o que raia o absurdo)
opostas, ao modo da Imagem, mas por simples pelo desastre de Alcácer Quibir. Por outro lado,
conversas à beira de um doente, que é sucessiva- Arrais defende a subordinação do poder político
mente visitado por dez amigos (um médico, um aos preceitos da religião, dentro de uma tendência
pregador, um fidalgo, legistas, etc.), limitando-se teocrática. Nestes moldes de nítido recorte socio-
por vezes os interlocutores a reforçar entre si as político se articula o regimento do bom Príncipe
opiniões comuns. A erudição clássica constituída com que termina a primeira parte da obra, a mais
por exemplos, anedotas, ditos de filósofos, é nestes concreta e significativa.
diálogos simples excrescência, exterior ao Os diálogos que consideraremos como formando
pensamento do autor. O interesse da discussão uma segunda parte da obra constituem um tratado
rasteja, chegando a discutir-se se devem merecer moral, onde se dão, por exemplo, regras precisas
preferência os santos nacionais ou os santos estran- sobre o testamento, a maneira de suportar a agonia,
geiros. Amador Arrais não é já um humanista, mas etc.
um catequista com a memória recheada de pre-
ceitos da cadeira de Retórica. A sua prosa limita-se
a ser correcta e acessível, evitando o conceptismo FREI TOMÉ DE JESUS
barroco; o próprio autor declara: «quis usar de
Ficou atrás notado como o fervor místico encon-
estilo comum e vulgar, que serve para todo o
trou muito poucas manifestações originais na lite-
género de gente, e deixar muitas cousas que são
ratura portuguesa, se descontarmos o Boosco Delei-
das escolas e dos entendimentos nelas exercitados».
toso. Isto apesar de se ter criado entre nós o culto
Sob este aspecto, preludia a melhor prosa dos
das atitudes sentimentais: a saudade (cujo portu-
autores religiosos seiscentistas que, apesar do
guesismo já D. Duarte sublinhava), o finar-se de
arcaísmo ou ingenuidade da sua ideologia relativa-
amores, usados quase como emblemas nacionais
mente à mais evoluída cultura europeia, apresentam
por diversos escritores dos séculos XV, XVI e
um progresso literário na medida em que, para se
XVII.
dirigirem a um público leitor mais largo, assimilam
Em rigor, não há nenhum escritor místico portu-
a disciplina gramatical e os recursos estilísticos
guês no século XVI, se aceitarmos a definição
clássicos ao uso das formas correntias do idioma.
atrás dada. Mas, se definirmos o misticismo literário,
Mas está por averiguar a originalidade literária da
sem ter em conta a experiência mística, como uma
obra: páginas inteiras e seguidas são, sem aviso ao
efusão emocional, poderemos incluir dentro daquela
leitor, transcritas ipsis verbis dos Panegíricos de João
designação os Trabalhos de Jesus de Frei Tomé de
de Barros.
Jesus, obra publicada postumamente (1.a parte
O que pode interessar neste livro é o testemunho
1602, 2.a 1609).
de certa problemática típica da época. O Diálogo
terceiro é uma extensa diatribe contra os Judeus, Irmão do cronista e poeta Francisco de Andrade, a que
em que se lhes censura a consabida ânsia de lucro já temos feito referência, e do teólogo Diogo de Paiva
usurário. Pelo contrário, o Diálogo quarto faz a de Andrade, e, por parte daquele, tio do escritor também
glorificação dos rasgos cavaleirescos e cristãos da chamado Diogo de Paiva de Andrade, Frei Tomé de
história portuguesa, na qual o autor tanto admira Jesus professou, em 1547, na Congregação dos Eremitas

16
de Santo Agostinho, acompanhou D. Sebastião a África, Deste modo, Frei Tomé de Jesus, estimulado pelas
foi capturado e morreu na prisão (1582), depois de circunstâncias históricas nacionais, elaborou em
escrever os Trabalhos de Jesus, quando aguardava o resgate. especial uma mística da dor, centrada na Paixão
Antes compusera uma biografia do padre Luís de de Cristo. Os muito amados de Deus são os que
Montóia, concluíra uma Vida de Jesus iniciada por este muito sofrem e muito se humilham, vítimas de
seu biografado e ainda redigira um manual para o «um amor, o qual, se muito dá, também muito
noviciado na sua ordem. crucifica». É ainda esta mística, embora desvestida
do seu invólucro teológico, que preside, uns séculos
Os Trabalhos de Jesus destinam-se a consolar o mais tarde, a Os Pobres de Raul Brandão: a cons-
autor, os seus companheiros de infortúnio e, em ciência de uma comunhão colectiva de dores, sem
geral, toda a «Nação Portuguesa, no tempo horizontes, emparedada por determinadas circuns-
daqueles grandes trabalhos da jornada de África», tâncias, só consegue superar-se divinizando-se.
como diz o endereço da carta prefacial. Escritos Mentor, dentro da sua Ordem, de uma campanha
às escondidas, sem livros de consulta, embora acusem de afervoramento piedoso que, no conjunto, se
leituras anteriores da escola de místicos flamengos pode considerar falhada, Frei Tomé de Jesus é, em
e alemães dos séculos XIV e XV, os Trabalhos de Portugal do seu tempo, um caso pouco típico. A
Jesus são constituídos pela reconstituição imaginária orientação tridentina, de que os Jesuítas e o Santo
de cinquenta dos padecimentos (ou trabalhos) de Ofício se fizeram campeões, olhava com descon-
Cristo, e ainda de outros passos da sua vida, fiança uma tal interiorização religiosa de tradição
seguidos de exercícios ou preces de resignação e agostiniana, e o Índex chegou a abranger alguns
humilhação. O contraste medieval, e maneirista, dos seus mestres flamengos, alemães e franciscanos
entre a sublimidade dos padecimentos voluntaria- italianos. Só em pequenos círculos, e sobretudo
mente aceites pelo Deus-Homem e o negrume do entre mulheres, se registaram então entre nós
pecado humano, ou entre as promessas de infinita alguns sinais, logo inquisitorialmente reprimidos,
Glória post-mortem e as misérias e provações da de um misticismo ardente e até visionário compa-
existência carnal, forma a medula deste livro, que, rável ao dos Alumbrados espanhóis seus contem-
ao contrário das obras dos Carmelitas Descalços porâneos. Há que ter em conta, no entanto, a
espanhóis e de tantos outros místicos, se não salienta enorme difusão, já referida, das obras de Frei Luís
pelo pitoresco nem pela energia da imagem, mas de Granada, editadas em Lisboa.
apenas pelo quente arroubo com que procura
erguer toda a amargura dos companheiros de
cárcere e de uma nação inteira à comunhão das
dores daquele que serviu de Mediador entre a
natureza humana e a natureza divina. Os períodos
de Frei Tomé de Jesus parecem muitas vezes querer
prolongar-se até aos limites do fôlego, numa
enumeração (dir-se-ia sadomasoquista) dos sofri-
mentos de pormenor que os Evangelhos não
registam, mas que Cristo teria provavelmente
padecido. Este tipo de evocação realista e tortu-
rada dos sofrimentos carnais da Via Sacra tinha já
então uma longa tradição.

17
Como é que even the most terrible events are somehow less
terrifying when viewed within old patterns rather
than in their bewildering specificity.»
a Consolação Mas a verdadeira razão que preside à composição
deste gigantesco quadro vem logo a seguir:

consola (excerto) ou o que creo e desejo, por esta tormenta que tee gora nos
perseguio e persegue começasse jaa Amainar, e a desejada
manhaã depois da tempestuosa noute do ynuerno quererse
LÚCIA LIBA MUCZNIK * nos aparecer. [Prólogo, f. iii-v]

O messianismo: «a desejada manhaã» A narrativa histórica insere-se num objecto clara-


mente messiânico. Samuel Usque, a exemplo de
O Prólogo em que Samuel Usque expõe os moti- muitos judeus da época, acredita e deseja que o
vos que o levaram a escrever a Consolação inti- tempo do Messias e o fim das tribulações está
tula-se «Da ordem e razam do livro» e abre com próximo, e que a sua realização depende do envol-
um exórdio convencional: seguindo o conselho de vimento e participação de todos os judeus. É para
Sócrates, para o qual a «consolação» se obtém esse projecto, a que a seguir me referirei com mais
cotejando os males que atrás ficam com os presentes, pormenor, que a Consolação apela aos seus desti-
Samuel Usque propõe-se relatar as tribulações do natários. E quem são eles?
povo de Israel desde os tempos bíblicos até à
época das tribulações contemporâneas da Inqui- Os destinatários
sição, procurando em primeiro lugar e, como parece
óbvio, reavivar a memória da nação portuguesa, Vimos já, na introdução a este trabalho, que a
cortada das suas raízes ancestrais. Por outro lado, questão da identidade dos destinatários é o pro-
e como a referência a Sócrates torna claro, trata-se blema fulcral deste livro, ao qual se liga, ine-
de um processo retórico típico do género das vitavelmente, o da língua em que vai escrito.
consolações, cujo objectivo é o de relativizar e Convém, pois, proceder a uma leitura atenta da
neutralizar o carácter de acontecimentos únicos texto, a fim de compreender o significado das
dos infortúnios presentes pela sua inclusão na contradições acima apontadas.
série geral. Segundo Yerushalmi, esta concepção O Prólogo dirige-se «Aos Senhores do Desterro
não difere muito da que era seguida pelos judeus de Portugal», a quem o autor designa também
na Idade Média, para os quais, citando este autor, pelas perífrases, «nossa trabalhada e corrida naçaõ»,
«[...] there is a pronounced tendency to subsume «esta nossa naçaõ seguida e afugentada», ou, sim-
even major new events to familiar archetypes, for plesmente esta nossa naçaõ», e, finalmente apenas
por «Portugueses». Saliento a ambiguidade criada
pela utilização da primeira pessoa do plural «nossa»
* In Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian (33). aplicada à dita nação 2, que não só inclui o pró-
Lisboa-Paris: CCP/FCG, 1994, pp. 39-135. Texto elaborado
prio autor como visa confundir-se com os «nossos»
a partir da diss. de Mestrado: Ficções e Contradições da
Identidade na Consolação às tribulações de Israel de Samuel expressão que designa o povo de Israel no seu
Usque. FLUL, 1993. Foram retiradas do texto, para facilitar conjunto. A continuidade nacional e religiosa que
a leitura, todas as suas notas. esta «confusão» gramatical pretende estabelecer,

18
vem claramente sugerida na parte do Prólogo ocorrida nesse ano, em Pesaro, «t~edoas [chagas]
relativa à construção ficcional do livro: bem sangrentas como o çurugiaom as quer pera
lhe aplicar sua meizinha» 8, Icabo está pronto
A ordem que no mais desta composiçaõ tiue, foy, que fingindo para receber os remédios adequados ao seu mal:
o grande patriarcha yahacob com nome de ycabo e em habito «razo~es e prophecias. autenticas» 9, com que os
de pastor como ho elle foy, chora o mal de seus filhos, filhos médicos lhe satisfazem muitas dúvidas e «per-
por sangue, filhos em ley, filhos em esprito e muitas vezes suadem como os males sam passados e o bem tam
todo o corpo de ysraet representa elle com muita razaõ pois desejado esta cerca, [...]». No final das que retor-
ambos somos hum soo sogeito, [...] [f. v] navam ao judaísmo, mudou para Israel, «sayra
alegre [...] pois entrou triste».
A ARTE DE CONSOLAR Eis a ficção com que o livro encobre ao mesmo
tempo que descobre a intenção performativa que
[...] o título enuncia e que o Prólogo, como lhe com-
A Consolação às Tribulações de Israel encena, em três pete, justifica e antecipa, prometendo «darlhe em
longos diálogos que lembram aulas de catequese escrito aquelle felice fine que nos lhe esperamos em
ou ainda, passe o anacronismo, sessões de psicanálise, effeito». A acção pedagógica e de cura que os
um dramático processo de aprendizagem, de cura, profetas, pastores exercem sobre Icabo é uma «figura»
ou mais precisamente, de conversão religiosa. O ou exemplo da consolação que o autor diz querer
«doente, como o seu nome – Icabo – sugere, é um fazer aos «Senhores do Desterro de Portugal».
descendente longínquo do patriarca Jacob que os Como a alegoria mostra, a Consolação às Tribulações
sucessivos exílios do povo de Israel conduziram ao de Israel é um manual, um catecismo judaico para
«fim da terra» que é Portugal. Para além de se uso de cristãos-novos em ruptura com a tradição
exprimir em vernáculo, anda disfarçado de pastor judaica. Empenhado na espinhosa tarefa de
e, em conformidade com a figura literária que persuadir um público que não partilha a mesma
representa, recolheu a lugar ameno e afastado da crença que ele, o autor arma-se de uma estratégia
conversação humana para chorar os seus males. argumentativa que, na expressão de Martin A.
Mas, à diferença dos pastores da época, não é de Cohen, lembra a de um pregador engenhoso.
amores que sofre; a sua doença, comum entre os Tanto no que diz respeito à matéria ou inventio,
«mal bautizadas e nouos cristaõs», é bem menos como à sua elaboração e ordenação, a dispositio, e,
romântica e ele próprio a define ao dizer que traz finalmente, à arte de falar, às figuras que utiliza, a
«o animo tam desasossegado e duuidoso». elocutio, o livro de Samuel Usque pode con-
No solitário refúgio o encontram dois compa- siderar-se um modelo clássico da arte de persuadir,
nheiros, «prophetas é habito e nome de pastores.», que revela por parte do seu autor um domínio
cujas artes curandeiras estão inscritas na etimologia perfeito da techné rhétoriké. É, pois, tendo como
do respectivo nom hebraico: Zicareo-Zacarias, a pano de fundo estas três categorias da retórica
Memória e Numeo-Nahum, a Consolação. Por escolar que me proponho analisar o discurso da
sugestão de Zicareo para quem «aos males he Consolação. E, a exemplo do que já fiz na primeira
aliuio e comunicaçam delles», Icabo narra, como parte deste trabalho, procurarei seguir o prólogo
se de lembranças pessoais se tratasse, as tribulações que, como vimos, é um verdadeiro modo de usar,
do povo que finge representar, desde a infância na medida em que responde quase ponto por
dos tempos bíblicos até ao ano de 1553. ponto às perguntas tradicionais dos loci da inventio
Terminada a narrativa com a última tribulação clássica.

19
No prosseguimento dos objectivos convencionais praesentia, desde o estádio de «cegueira» inicial até
da inventio: convencer e comover, Samuel Usque à revelação e transfiguração finais, e da cena dia-
recorre à enciclopédia disponível e aos instru- logada, remete para a tradição da arte do diálogo
mentos adequados à defesa da sua causa: as con- e da controvérsia, cuja função maiêutica e pro-
cepções históricas e messiânicas e o seu enquadra- pedêutica é bem conhecida.Vimos já, no capítulo
mento polémico, a tradição retórica e a argumen- anterior, que o «diálogo» é um mero artifício que
tação pela exegese, e, last but not least, os códigos visa permitir a exposição sistemática e metódica
literários da época. Quanto à argumentação em dos argumentos escriturários. De facto, as inter-
sentido restrito, Samuel Usque não difere dos venções das três personagens resumem-se a longos
exegetas cristãos ou mesmo judeus, como é o caso monólogos históricos e proféticos por detrás dos
de Isaac Abravanel: serve-se da reserva tópica da quais ressoa, omnipotente e omnipresente, uma
polémica cristã anti-judaica e da metodologia exe- voz única, a do teólogo. O que leva a suspeitar,
gética tradicional: a etimologia, a exegese alegórica de acordo com a tradição da convenção pastoril,
in factis e in verbis e, nalguns casos, mesmo tipológica, que os disfarces são, como já referi, máscaras do
a analogia e o exemplo. A singularidade ou novi- próprio poeta e sugere uma dimensão auto-
dade da sua inventio está precisamente na forma biográfica que H. P. Salomon já assinalou ao
como combina elementos provenientes de várias interrogar-se sobre a relação entre o autor que
fontes ou tradições numa estrutura ficcional assina com o nome de Samuel Usque e que diz
própria. «eu» no prólogo, e a personagem principal que
Uma das armas, senão a principal, da estratégia diz «eu» na ficção, Icabo-Jacob-Israel, e que eu
persuasiva é, de facto, a construção ficcional do alargaria às personagens dos profetas-pastores,
livro, que a didascália resume nos seguintes termos: Numeo e Zicareo.
Para além de procurar comover o seu público,
Ysrael em nome de Ycabo pastor auendose recolhido em, levando-o a identificar-se com os acontecimentos
hum lugar afastado da conuersaçam humana lamenta seus e figuras da história de Israel, a Consolação recorre,
males, ao qual acham per caso Nahum e Zahariahu prophetas como acima disse, a todo um arsenal de argumentos
é habito e nome de pastores aquem conta todos seus trabalhos e provas, com a objectivo de convencer, pela razão.
e elles o consolam. Considerando os destinatários cristãos-novos, em
ruptura com a tradição judaica, e vivendo, nalguns
A utilização de um, disfarce poético, o diálogo casos, na dualidade interior e exterior, fé implícita
pastoril, para relatar as tribulações do povo judaico, e explícita, propícia, de acordo com Marcel
procura ir ao encontro do gosto dos destinatários, Bataillon, à dúvida e ao questionamento da
e, acima de tudo, fazer com que estes se iden- ortodoxia, surge a necessidade de apresentar um
tifiquem e reconheçam nos acontecimentos e universo textual acabado, uma totalidade sem falhas
figuras de uma história remota de cuja cadeia de e evitar a todo o preço qualquer margem de
transmissão estavam desligados. Trata-se, em última ambiguidade. Ao objectivo didáctico corresponde,
análise, de uma tentativa para eliminar a distância ainda, a adopção de uma estratégia demonstrativa
histórica, através de uma ficção de identidade. É rigorosa, veiculada por uma forma de exposição
essa a função da alegoria com que a Consolação sistemática, a fim de que a matéria recordada ou
se dá a ler e a que a figura literária do pastor se ensinada surja progressivamente em toda a sua
presta particularmente, como acima tentei mostrar. limpidez e credibilidade.
A representação do processo de aprendizagem in [...]

20
Considerando, pelo que acima fica dito, que a no Primeiro Diálogo, por uma cena bucólica e
análise do conteúdo argumentativo do livro é alegórica – a única verdadeiramente pastoril do
indissociável da forma como esse conteúdo é livro – e termina sensivelmente a meio do Terceiro
elaborado, disposto e ordenado numa estrutura Diálogo, o maior, com o relato da última tribulação
coerente, vou, a partir de agora, descrevê-los e ocorrida em Pesaro, dando lugar a um longo final
comentá-los em paralelo. profético e messiânico. Todos os Diálogos estão
O princípio que organiza o discurso da Consolação divididos em capítulos.
é a analogia, forma típica do pensamento medieval, Os interlocutores são também, como já disse, três,
segundo a qual o universo criado é, necessaria- e correspondem a funções diferenciadas: Icabo
mente, análogo ao criador. Como diz Samuel narra as tribulações do povo que representa, e
Usque, no Prólogo: lamenta-se ou insurge-se contra elas; Zicareo
recorda-lhe os bens ou vinganças que por amor
Verdadeiramente sendo todalas cousas pello enfinito criador dele foram feitos; e Numeo consola-o. Tripartida
perfeitamente regidas e sem nenhüa tacha compostas, he de é ainda a ordem formal sistematicamente, seguida
creer que assi como teuerom principio nã careceram de fim no relato de Icabo, como esclarece o Prólogo:
por que soo elle he o enfinito e sem principio. [f. iii-v e iii]
relatar as triaulaçoés [sic] e fadiguas [...] cõ as causas por
É esta ideia que explica, de acordo com, Etienne que cada mal se moueo; [...e] a prophecia que parece auerse
Gilson, «le thème familier au moyen-âge d’un aly cõprido, [...] [f. iiii r e v]
univers où se lisent en toutes choses les vestiges de
la divinité», que fundamenta o sistema de Imagem da ordem divina que se pretende imitar,
correspondências e analogias entre o macrocosmo a tripartição enquadra-se na função retórica do
e o microcosmo, e o alegorismo exacerbado que livro, que segue o cânone tradicional da dispositio:
caracterizam a mundividência medieval. um exórdio, constituído pela dedicatória, pelo
A Consolação às Tribulações de Israel procura prólogo, aos quais é possível, dada a função pare-
construir-se à imagem e semelhança da perfeição nética da obra e apesar de se tratar já do texto
do mundo superior. Daí a estrutura tripartida – ficcional, acrescentar o preâmbulo bucólico com
três diálogos, três personagens – que, segundo que Icabo introduz o relato do Primeiro Diálogo;
Lausberg, acentua o estado completo e sem lacunas. uma parte central cuja estrutura cumpre as funções
Assinalo, por curiosidade, que a ordem ternária de narração e refutação e, finalmente o epílogo
simboliza, para pensadores medievais, como Hugues messiânico e profético. Em conformidade com a
de Saint Victor e São Boaventura, a trindade do tradição clássica, o exórdio destina-se a expor os
Deus cristão. Também na Consolação há uma tota- motivos que conduziram à feitura da obra, e a
lidade com princípio, meio e fim. O Primeiro conquistar, pelo apelo aos sentimentos, a adesão
Diálogo começa com as origens de Israel e narra emocional do público. O Prólogo, intitulado «Da
os acontecimentos do período do primeiro Templo Ordem e Razam do Livro», realiza a primeira
até à sua destruição por Nabucodonosor; o Segun- parte do objectivo, enquanto a dedicatória e o
do, que é o mais curto dos três, cobre a época do início do texto ficcional cumprem a segunda,
Segundo Templo, e o Terceiro vai da destruição da recorrendo aos tópoi próprios do exórdio, como,
«Casa Segunda» por Tito, até à profanação da na dedicatória a D. Gracia Nassi, a oferta do
sinagoga de Pesaro, em 1553. Esta narrativa histórica «ramo de fruta noua» que Curtius diz ser um
que preenche a maior parte da obra, é introduzida, topos baseado no Levítico, 23-10, e, já no texto, a

21
descrição do locus amoenus, com a invocação da
natureza, o lamento e a interpelação dos quatro
continentes e dos países da Europa, «lobos» das
A Ars Orandi de
«ovelhas» judaicas e, finalmente, a interrogação que
inspira e atravessa todo o livro, o quando da Frei Heitor Pinto
libertação final. As interpelações interjectivas e a
profusão adjectiva com que se configuram, «Tu
montanhosa aspera e queimada Africa, [...] E tu
e as raízes
guerreira sabia e temperada Europa, [...] são, como
diz Pina Martins «um convite ao leitor no sentido culturais
de se associar ao lamento pelos eventos terríveis
que ocasionam o pranto».
O epílogo, introduzido pelo último lamento de
da Imagem
Icabo que, em simetria com o início do livro,
repete as interpelações e acusações aos povos
europeus e aos continentes, corresponde ao final
da Vida Cristã
messiânico e consiste na repetição pormenorizada
e sistemática das consolações e bens oferecidos ao
(excerto)
povo, à terra mãe de Israel, à cidade santa de
Jerusalém, apresentadas num despique entre os JOSÉ ADRIANO F. DE CARVALHO *
dois profetas pastores que procura criar um
paroxismo profético e apocalíptico, destinado a
[...]
amplificar o pathos e mover os ânimos à compaixão.
Imagem da Vida Cristã, é antes de mais, uma obra
O paralelismo entre o Primeiro e o Terceiro
de carácter religioso, devoto, por vezes até, escrita
Diálogo, patente na simetria que existe entre a
não por um leigo, não por um frade, mas por um
descrição bucólica da Idade de Ouro com que se
monge, e não por um beneditino ou cisterciense,
inicia o Primeiro Diálogo, e o final messiânico do
mas por um jerónimo... Por tal, participa não só
Terceiro Diálogo, que aponta para o Fim dos
duma tradição espiritual cristã e católica, mas
Tempos, é, sem dúvida, uma das características da
ainda especificamente duma tradição monástica. E
estrutura formal do livro, que manifesta uma con-
dentro desta tradição duma espiritualidade até
cepção de arte na qual a ordem, a harmonia, e
certo ponto própria.
a proporção, constituem elementos fundamentais
Com efeito, a Ordem de S. Jerónimo, fundada em
que se contrapõem ao caos da existência real dos
1373 em Espanha, viu-se logo esplendidamente
destinatários cristãos-novos.
adaptada à Península Ibérica, como no-lo revelam
não só as inúmeras fundações por toda a Espanha,
e depois por Portugal, mas também a protecção
real e aristocrática que dum e doutro lado da

* In Humanística e Teologia. t. V, Set.-Dez. 1984, fasc.,


pp. 291-318. Para facilitar a leitura, as notas foram retiradas
do texto.

22
fronteira lhe foi dispensada. Em Portugal como Não queremos, porém, sequer insinuar que da
ponto alto e até síntese dessa protecção, ergueu-se Devotio Moderna – do seu espírito difundido
o mosteiro, de Belém, el más ameno sítio de templo... posteriormente por muitos meios, especialmente
[...] através da Imitação de Cristo – não tenham os
Esta espiritualidade revelaria uma confluência de Jerónimos, como muitos outros, assimilado orien-
águas antigas que passam por S. Francisco de Assis, tações e temas... Apenas tentamos lembrar que
pelos franciscanos «espirituais» receptores de esta componente não é a única, nem talvez a
algumas coisas de Joaquim da Fiore, pelos espirituais principal da espiritualidade jerónima no século
italianos da Idade Média, pela leitura muito atenta XV como gostava de insinuar Dom Américo
de S. Bernardo, e de S. Jerónimo, naturalmente!, Castro.
com as águas mais recentes da Devotio Moderna. De todos os modos, poderá a Imagem da Vida
Convém, no entanto, advertir que, quanto a este Cristã reflectir alguns destes caminhos cruzados da
último momento, quase tudo parece resumir-se a espir itualidade jerónima? Como podemos
sugestões de certas constantes comuns derivadas descobri-los através da compacta – aceitemos
do mesmo fundo monástico e a certas coincidências mesmo o apavorante com que já se viu classificada
cronológicas ainda não totalmente explicáveis. Com – erudição dessas páginas escritas na segunda
efeito, a tradição literária monástica pode fazer metade do século XVI? Como situar a Imagem
compreender muitas das características da espiritua- em relação ao Recogimiento, essa orientação, que
lidade tanto da Devotio Moderna em geral, como herdeira confessa de tradições antigas e das reformas
dos jerónimos, em particular, durante os fins do franciscanas do século XV, se dizia invadir toda a
século XIV e ao longo do século XV. Nunca se espiritualidade do século XVI peninsular, carac-
acentuará demasiadamente que ambos os movi- terizando até alguns jerónimos espanhóis con-
mentos são leitores assíduos de S. Bernardo e de temporâneos de Frei Heitor? Numa palavra: como
outros autores monásticos, e ainda que tanto os situar a Imagem da Vida Cristã em função das
devotos modernos como os jerónimos estavam em correntes de espiritualidade do seu tempo?
contacto, contacto às vezes até «modelar», com a [...]
cartuxa de S. Bruno. E do facto de alguns grupos
da Devotio Moderna se terem colocado sob a invo- *
cação de S. Jerónimo, não parece, como assinala
Post, poder concluir-se, por agora, mais do que a Cremos [...] ser possível começar a esclarecer esta
constatação do facto, Aliás, também comum a questão através do ensaio de temas precisos que,
outros grupos eremíticos. por dizerem respeito directamente à história da
Finalmente, convirá lembrar que a Devotio Moderna espiritualidade, podem permitir algumas conclusões.
nórdica não só encontrou a sua correspondente Um tema ideal, porque central de qualquer
meridional no movimento reformador aglutinado espiritualidade, para lograr tal desiderato, é a
por Ludovico Barbo – movimento que, é certo, atenção dada às questões da oração, isto é, à
não está totalmente isento de contactos com o maneira como um autor – neste caso Heitor
Norte – como também teve na Península Ibérica Pinto – dispõe a sua arte de orar. Esta expressão
os seus momentos precursores: na tradução, por quer sugerir os meios e os processos de organizar
exemplo, da Scala Contemplationis de Hugo de S. a oração individual (pessoal), para a tornar eficaz
Victor pelo dominicano catalão António Canals. como via de união com Deus. É um ideal que,
[...] desde os fins do século XIV, enforma esforços

23
diversos, coagula na Imitatio Christi... no Rosetum focados, há outro Fr. Heitor Pinto de claro pendor
de Mombaer... no Ejercitatotorio dela Vida Espiritual místico, embora a voluntária contenção da sua
de Garcia de Cisneros..., nos Ejercicios de Inácio linguagem e das suas propostas não lhe permita
de Loyola, e culminará em grandes manuais como acentuar essa orientação. Mas alguns textos, prin-
a Arte de Orar (1630) do P.e Diogo Monteiro, obra cipalmente ao nível da prece revelam-na clara-
esta que pode bem representar – aceitamos todos mente.
os riscos da expressão – a barroquização da oração Tocamos, deste modo, uma perspectiva que
metódica. julgamos fundamental na sua arte: o carácter
Ora, justamente num livro que de acordo com afectivo do método de oração que recomenda.
um complexo aproveitamento de teorias platónicas Não apenas as lágrimas, suspiros e desejos nos
– desse Platão tão exaltado nas suas páginas – se introduzem nas sendas da espiritualidade afectiva.
propõe reflectir uma imagem da vida cristã, a O seu permanente apelo à interiorização, à guarda
oração (entenda-se, a oração, meditação e contem- do coração, à meditação na humanidade de Cristo
plação) tinha de ocupar algum lugar, ainda que sofrente, à universalização da contemplação per-
geralmente, por razões várias, o tema passe des- mitem aproximar H. Pinto dos Recogidos tal como
percebido. E há, neste caso, alguma razão para essa se foram afirmando sobretudo depois do Tercer
desatenção. Com efeito, de acordo com a prática Abecederio de Francisco de Osuna, ao longo do
expositiva de Heitor Pinto, os grandes temas, século XVI. Neste momento pensamos não só na
contrariamente ao que podem sugerir os títulos estadia de Heitor Pinto em Espanha, mas também
dos diálogos e dos capítulos, não são tratados na passagem de alguns mestres do Recogimiento –
sistematicamente mas sim enunciados e só muito um Bernardino de Laredo... e um Fr. Juan de los
lentamente, através de múltiplas alusões, desenvol- Angeles por Portugal e na longa permanência
vidos. Por outro lado, a aparente ausência de entre nós de Luís de Granada, outro representante
posições polémicas sobre a matéria, tão caracterís- dessa corrente, ainda que não tão teórico como
ticas dos seus dias, como que retira à obra, não os franciscanos anteriores... E por isso mais próximo
só certo tipo de referências cronológicas, mas do autor da Imagem... Naturalmente, esta obra
também um certo dramatismo que tantas vezes não recolhe os aspectos mais abstractos e polémicos
determina a investigação e a crítica. do Recogimiento, pois nada há nela que se assemelhe
Contudo, Heitor Pinto – há que dizê-lo – ocupa-se ao no pensar nada de F. Osuna..., ao cuadrar el
largamente da oração. Insiste, sobretudo, na sua entendimiento de Fr. Bernabé de Palma... E não
permanente necessidade, Mas como andava bus- será preciso dizer que da obra do monge português
cando e propondo uma imagem, com tudo o que estão ausentes «os exageros» e as indiscrições, de
esta implica de ideal, logo de não polémica, evitou palavra e de devoção, do autor de Via Spiritus...
cuidadosamente entrar em distinções teóricas sobre Por outro lado junto a esta corrente mais recente
a oração mental e a oração vocal, de descrever os é relativamente fácil detectar na obra outros débitos.
seus diversos graus e modos. O mesmo se dirá da Não só para com a Imitaçãm de Cristo – o próprio
contemplação. A Imagem, como sabemos, não é título da obra de Fr. Heitor pode muito bem
um tratado de oração. É um livro que quer incitar passar por uma perífrase, sub platonico signo, do
a orar... [...] título de obrita de Kempis... – mas também para
com a tradição monástica que os jerónimos, por
[...] o seu modo de pôr a questão da oração caminhos mal conhecidos, recolhem nos fins do
mostra como ao lado do moralista e asceta sempre século XIV. [...]

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Desejamos terminar chamando de novo a atenção
para como nos apelos que faz H. Pinto à oração
e à contemplação subjaz a tese de que o monge
Tendência
é, como na mais pura tradição monástica, o cristão
ideal, o verdadeiro filósofo cristão. [...] política
e patriótica
nos Diálogos
de Frei Amador
Arrais (excerto)
FIDELINO DE FIGUEIREDO *

[...]
Se a Renascença das letras clássicas proporcionou
a forma de escrita artística, a Reforma Religiosa,
quase contemporânea sua, proporcionou a matéria.
Foi só quando Lutero quebrou a unidade católica
e abriu na Igreja Romana a sua maior crise que
dela surgiu o ardor defensivo da fé, já não somente
com as velhas armas das cruzadas ou guerras
santas e as do Santo Ofício, mas também com as
armas novas da milícia jesuítica e da inteligência.
Como no século XVI é que se exacerbou o
problema religioso, é então também que nasce a
literatura mística.
Designo por este rótulo o conjunto dos escritos
que têm por dilecto fundo a exaltação apologética
do sentimento religioso, a disputa intelectual e a
pura contemplação na mais serena beatitude: o
diálogo, a parenética, as cartas espirituais e todas
as narrativas de proveito e exemplo. Mas esta

* “Prefácio”. In Frei Amador Arrais. Diálogos. Vol. I 2.ª


edição; Lisboa: Liv. Sá da Costa, 1988, pp. IXss. O texto
figura aqui sem as suas notas.

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designação não é rigorosa, porque nessa literatura activa ou militante; a mística é passiva, como espelho
prontamente se distinguem duas direcções: a ascética fiel do que o autor em si acha, sente ou vê.
e a mística propriamente dita. A primeira é inten- Distinguem-se, pois, em que a primeira busca
samente activa e visa à reforma da vida interior artifícios para influir e conduzir os espíritos, é
ou à sua santificação e à identificação da criatura pedagógica e aproveita da experiência mundana
com o Criador. Tudo o que a sugestão da arte do autor; e a segunda é só uma sondagem pro-
literária, pela magia da palavra, pode fazer para funda do mundo interior.
conformar o espírito e a acção moral a uma Isto basta para confirmar que os verdadeiros mís-
doutrina religiosa e a uma atitude ética de obe- ticos dos países ibéricos são predominantemente
diência e paz interna – constitue o motivo central espanhóis: Santa Teresa, S. Juan de la Cruz, Fr. Luis
dessa literatura. de Granada, até chegar a Unamuno, grande místico
[...] heterodoxo: As duas posições de espírito podem
Sentir-se em graça ou ter a inspiração criadora coincidir no mesmo autor: Santo Ignácio foi genial
do artista da palavra para atingir a expressão asceta e algumas vezes profundo místico. E S.
relevante, especulando com a metáfora feita argu- Francisco de Assis terá sido o maior dos místicos,
mento analógico – era a condição única dessa mas privado do dom da expressão literária. Perante
literatura, que não tinha antecedentes teóricos, a história literária nasceu três séculos antes da sua
nem modelos que imitasse. Para chegar ao conceito oportunidade.
de epopeia, que o nosso Camões realiza, a crítica Pelo contrário, os autores portugueses são mais
italiana gastou um século de reflexões e de ensaios: propriamente ascetas. E ainda essa literatura ascética
de Vida a Torquato Tasso. A literatura mística ou portuguesa é mais realista que nenhuma outra. A
ascética não tinha antecedentes. Era o aparecimento sua terapêutica espiritual não se aplica só aos
da matéria que determinava a opção prática por problemas da casuística, mas também aos rumos
certos géneros: o diálogo de tipo platónico, políticos do país; é solicitamente patriótica. O
dissertivo, preocupado de erudição histórica e de místico espanhol cada vez se desprende mais da
elevação filosófica; o sermão, que cristianizava a terra e até da vida; o asceta português enraíza-se
oração clássica; a carta de receita moral; e a nos interesses reais da sua terra e da sua gente.
meditação marginal sobre as Sagradas Escrituras. Samuel Usque, um judeu, adverte os correli-
Os exemplos confirmadores ia buscá-los à gionários de que tantos sofrimentos formam um
experiência dos antigos e às mesmas Escrituras, caminho tergiversante, mas seguro para a recupe-
como o teatro, fechando-se à observação do meio ração da pátria, para a paz da alma e a glória aos
ambiente, tomava temas da vida mumificada nas pés do Senhor, a contemplar-lhe a face luminosa.
comédias de Gregos e Latinos. [...]
Mas, quando o escritor ou o simples fiel, iluminado Frei Amador Arrais, carmelita descalço, ensina o
pela graça ou pela inspiração, deixava de objec- caminho da pacificação interior em plena obe-
tivamente forjar armas literárias e intelectuais para diência à Madre Igreja, depositária do pensamento
a restauração da fé e apenas descrevia as suas de Deus, revelado por seu Filho. Fá-lo em seis
visões e os seus êxtases, os seus arroubos e as suas diálogos, mas em outros quatro ousa opôr a medi-
misteriosas comunicações com Deus, então o autor cina do espírito à do corpo – e é êsse talvez em
era verdadeiramente um místico a consumir-se no nossa língua, o primeiro combate doutrinário entre
fogo celeste, já não um asceta combatente. Este a Igreja e a Medicina – ousa discorrer sobre a
procura Deus, aquele tem-no em si. A ascética é história do povo português, realizador de prodí-

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gios com a graça de Deus, derimir o candente ligência e multiplicar os temas da disputa: todos
problema dos hebreus e delinear um retrato do aqueles com que não está conforme ou que lhe
Perfeito Príncipe Cristão, emoldurado numa difusa impugnam os visitantes, gentes da mais variada
teoria da arte de governar. proveniência ou formação. Não se pode afirmar
[...] que esse Antíoco jeremiador seja o modelo pessoal
Mas de todos os ascetas portugueses do século do bom Cristão que Frei Amador Arrais propõe,
XVI o mais típico representante da tendência porque Arrais está umas vezes com ele e outras
política e patriótica ou do realismo terreno é Frei contra ele, mas o que será certo é que os Diálogos
Amador Arrais nos seus diálogos III, IV e V. condensem o idearium dum prelado português do
Frei Amador Arrais é um teólogo político a dis- século XVI, bem identificado com as ideias gerais
putar na praça pública, sem desconhecer a exaltação do sector dominante ou sejam as de um católico
e o fanatismo. O diálogo “Da gente judaica” tem posterior ao Concílio de Trento, quando a Con-
franca actualidade. Três séculos e meio depois da tra-Reforma estava organizada e a funcionar na
redacção do escrito vibrante do Bispo de Por- península ibérica, sob o ceptro unificador de Filipe
talegre o convívio dos judeus em meio dos Cristãos II. É, pois, um precioso documento para a história
ou a sua reunião pacífica nalgum recanto do das ideas condutoras ou da cultura.
mundo continua a ser um problema candente e [...]
ao parecer insolúvel, que dá o pretexto para perió- Os Diálogos de Frei Amador Arrais são dez conversas
dicas explosões de barbárie. dum mesmo interlocutor com dez visitantes. O
Nesse quarto diálogo há três partes nítidas: uma interlocutor permanente está doente e é entretido
de história dos actos dos reis Portugues D. João com debates de ideas pelos amigos que o visitam.
II e D. Manuel I sôbre os imigrados hebreus, Este gosto da conversa e das ideas é coisa típica
provindos de Espanha; outra de rememoração da da Renascença. O homem, crescendo subitamente
história dos judeus na Judéa e na dispersão; e no tempo e no espaço, descobrindo a sua história
ainda outra de carácter psicológico, porque expõe e devassando a sua terra, e, mais que isso, atingindo
e justifica os sentimentos e opiniões dos Cristãos critérios de estimação, que lhe renovavam a seus
sobre os judeus. Lembra o dizer dos autores ro- olhos o que já sabia ou conhecia, teve muito que
manos do século V sobre os bárbaros: que cheira- dizer e rectificar no seu sistema de ideias. E
vam mal. conversou ou pensou em voz alta.
Através dos dez diálogos há um interlocutor cons- O século XVI é um período áureo do convívio
tante, Antíoco, homem doente ou neurasténico, social, inicia a literatura de ideas. Na Idade Média
pessimista, expatriado e nostálgico, o qual se não se conversava, disputava-se. As cantigas satíricas
entretém a dissertar com as gentes várias que o de gosto provençalesco são dialogais, mas não
visitam. A palavra «neurastenia» é nova, mas a expõem ideias, não têm longo fôlego expositivo.
enfermidade é velha, porque a doença do des- Inauguram a emoção violenta da injustiça cómica
contentamento, da falta de confiança e da ina- e sobem, ou descem, até à mais bravia descom-
daptação e das fobias irraciocinadas é muito antiga. postura. As «disputas», assim mesmo chamadas, de
Precisamente a Renascença, pelo seu carácter revo- que falam as histórias literárias, têm grande impor-
lucionário, deve ter multiplicado esses casos. tância para a compreensão da mente dos homens
[...] medievos e para a descriminação dos seus juizos
Antíoco é um neurasténico disputador. A sua de valor, mas nada têm de comum com a augusta
doença não faz mais do que excitar-lhe a inte- serenidade que os conversadores italianos da

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Renascença herdavam dos diálogos platónicos. As grave brevidade, ser acomodada ao que neles se
«disputas» poéticas da Idade Média opõem-se «aos trata, minha principal tenção foi aproveitar a todos
diálogos» em prosa da Renascença e os «ensaios», os nossos, que não têm notícia de línguas estranhas.
que eram conversas de um só interlocutor consigo E pelo mesmo respeito quis usar de estilo comum
mesmo ou «auto-diálogos», como preferia e vulgar, que serve para todo o género de gente,
Unamuno dizer a respeito dos seus próprios e deixar muitas coisas que são das escolas e dos
ensaios. As epístolas métricas, que os poetas entendimentos nelas exercitados. Todavia procurei
quinhentistas entre si trocavam, eram ainda conversa, eleger matérias graves, dar seu lugar às coisas e
mas conversa por via postal ou a distância, sem o pôr concerto nas palavras, para que soando bem
elemento essencial da presença, portanto sem aos ouvidos, não somente dissessem com clareza
improvisação no pensar e no dizer, verdadeira ou o que se trata, mas também com harmonia e
simulada. Quando os diálogos se ampliam para modo de dizer fizessem atento ao leitor e satis-
«colóquios», o número dos interlocutores cresce e fizessem, não só ao gosto dos simples, bons de
a natureza deles também pode variar: em vez de contentar, mas «a la par» ao dos letrados curiosos
homens, coisas e animais, mas humanizados nos em o examinar. Impresso tenho na memória aquele
seus sentimentos. Há então uma convergência entre dito de Marco Túlio; no princípio das suas
o colóquio e o velho apólogo. Tusculanas; «Querer o homem escrever seus
Nos Diálogos de Frei Amador Arrais há a tradição conceitos sem os saber explicar, ordenar, ilustrar e
nova do platonismo do amor às ideias, com a sua com alguma deleitação mover o leitor, é de homens
simulação meio novelesca da conversa, mas há que sem nenhuma temperança usam mal do ócio
também sobrevivências medievas da «disputa» nada e das letras». E posso com verdade afirmar que na
platónica e aderências locais, ao encolerizar-se composição deles não pus tanto estudo em buscar
contra os Judeus e ao assumir uma posição rigo- o mais fermoso quanto em o mais proveitoso. É
rosamente tridentina ou intolerante nas questões tanta a força da ordem e juntura das palavras que
religiosas que abeira. Como autor asceta, é um podendo-se uma coisa dizer de diversos modos,
espírito português do século XVI, que adopta a tem tanta graça o que a conta e escreve que inda
forma neoclássica do diálogo de áurea tradição que seja mui sabida move com mais eficácia os
platónica, para lhe vasar matérias nitidamente anti- corações dos leitores e ouvintes que o primeiro
-platónicas. Os diálogos, que lera e que lhe suge- que a escreveu ou falou, acrescentando muita
riram a adopção desse instrumento de exposição novidade às cousas velhas, muita luz às claras,
de ideas, não eram portugueses. Poderiam ser muito ar e lustre às fermosas».
italianos ou espanhóis, sem falar nos gregos, em Este breve louvor da estilização formal dos temas
que Sócrates, o maior conversador do mundo, já versados, estilização que os renova ou lhes dá
seria o avô distante de Antíoco. Mas Arrais, já relevo maior, faz pensar no papel desta literatura
orgulhoso da força expressiva da língua, nem por ascética na evolução geral da língua e da literatura
um momento pensa escrever os seus diálogos portuguesa. Se comparamos a pobreza da prosa
noutra língua que não fosse a sua. E declara-o historiográfica do século XVI com a riqueza da
neste passo, que encerra algumas ideas de interesse prosa mística do século imediato, em que florescem
crítico sobre o poder da forma, principalmente os maiores mestres dela na época clássica, percebe-
por estarem à frente duma obra em prosa: remos o papel desempenhado por este púgilo de
«Não os quis escrever em língua latina, mas em a autores ascéticos do fim do século XVI. Eles
nossa portuguesa, porque além desta, com sua desempenham um papel muito análogo ao dos

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poetas do Cancioneiro Geral de Resende. Este dá
a passagem das ingenuidades provençalescas para
o esplendor lírico do quinhentismo. Sem a elabo-
A erótica
ração dos poetas do Cancioneiro, o maior dos
quais é Duarte de Brito, o idioma português não do afectus,
poderia ter aceitado e gestado os germenes ricos,
oriundos da Itália. Também sem a elaboração dos
ascetas quinhentistas se não chegaria a Frei Luís
em Trabalhos
de Sousa e ao P.e Manuel Bernardes. Mas é bom
recordar mais alguma coisa. Os novelistas, ao des- de Jesus (excerto)
fiarem um argumento e ao dialogarem as suas
ficções inverosímeis, não contribuíram pouco para JOSÉ AUGUSTO MOURÃO *
abrir o idioma ao vento da realidade.
[...]
Ora a literatura ascética foi, entre nós, o primeiro A erótica do afectus
grande esforço de penetração moral. Mesmo como
criatura de Deus, que a Deus deveria voltar ou Se a leitura, do mesmo modo que a escrita, é uma
que em cada momento quereria deshumanizar-se, viagem por mar aventuroso, mister será haver perícia
esses autores ascéticos estudaram a vida interior o que atravessa, para a bom porto conduzir o
do homem. Eram jardineiros práticos, mas alguma barco. Mas não a perícia que aproveita a quem se
coisa tinham de saber de botânica para poderem lança ao mar da escrita ou da leitura.
guiar o crescimento e embelezamento das plantas. Não se trata, nesta parte, de competência inter-
Pela mesma razão que o catecismo de S. Carlos pretativa, de saber do texto, mas do efeito que a
Borromeu era uma obra-prima de psicologia geral leitura imprime naquele que se lhe abandona, no
do homem abstracto ou do homem médio, como tempo presente da leitura. Trata-se da presença do
se diz agora no reinado da mediocracia, as obras exercitante àquilo mesmo que a si aplica,
de ascética, glosas do idearium desse catecismo, e as exercitando-se. Questão mais de afectos, de vontade
obras de mística, descrições da realização do e de amor, do que de entendimento ou de
mundo desse catecismo, tinham de analisar e imaginação. A tradição monástica cistercience
estudar o homem. E estudaram. E tinham de insinua desde São Bernardo a erótica do afectus
procurar forma idiomática nova para expressar os no Trabalho dialógico. A reserva que Gerson nutria
seus achados novos. E esse conteúdo novo e essa relativamente às expressões da vida espiritual de
forma nova é que dão importância histórica aos certa Maria de Valencianas decorria do facto de
nossos autores ascéticos, tão pouco lembrados ou que para ele tais expressões eram demasiado
tão mal julgados como foi outrora o Cancioneiro apaixonadas e carnais para as inspirar o Espírito
Geral de Resende. Santo. Mesmo se a oração apela para a ultra-
[...] passagem da palavra, das ideias, das representações

* In Sujeito, Paixão e Discurso: Trabalhos de Jesus. Lisboa:


Vega, 1996, pp. 171-180; 181-182. Foram retiradas do texto
as referências bibliográficas, para facilidade de leitura.

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e das lembranças, como um tender-para sem Ler sem rede (sem mediação textual) será imagi-
tensão, um estar-com e um amor para além do nariamente estimulante, mas que “figura” desenho,
afectivo: no caso da oração, as palavras só para nós são que mímica executo, se o instrumento” deixa de
necessárias, a fim de nos reunirmos no movimento do ser o mesmo? Se a fala se tornou irreconhecível
nosso ser; de nos formularmos o nosso desejo, de lutarmos enunciação glossálica? Eu tomo parte numa lin-
contra a multidão e a dispersão dos afectos, das imagens guagem no sentido em que tomo parte num jogo.
e dos pensamentos, de fazermos partilhar a outros a E nas linguagens, como nos jogos, há regras,
nossa oração ou de a unirmos à sua (Jossua, 1989). havendo mesmo regras de interpretação dos textos.
O sentido duma expressão é independente de
A suspeita de que a lectio se torne festim (“feriatus”) mim ou de uma qualquer pessoa particular. Ler
solitário ou jardinagem ritual fútil, a reflectir a (interpretar) equivale a abrir os ouvidos e o
falta de seriedade da graphé, remonta pelo menos coração àquilo que na letra fala e constitui a
ao Fedro de Platão e à reacção de Santo Agostinho verdade (ou a mentira) do sujeito, o seu nascimento
ao modo de ler de Santo Ambrósio. É a suspeita ou o seu abortar. Na leitura destacaria as seguintes
de que, não havendo diálogo com o escrito, não coordenadas:
há diálogo com Deus, como bem viu Blanchot.
Tomé de Jesus não deixa de manifestar certa descon- a) uma procura (desejo de): movimento interior
fiança relativamente aos livros, às humanas línguas, que Deus dará (é assim que Tomé de Jesus
à atadura das palavras e escrituras, às doutrinas até, define a posição do sujeito presente ao seu
que deverão figurar, no percurso do sujeito para a desejo). O texto é um espaço ordenado pelo
perfeição, como adjuvantes ou entrada “para o desejo que a lectio acende.
amor fazer seu oficio”. Mas a cor desta suspeita b) a resposta faz parte da procura.
não é já a que tingia a leitura de solipsismo. Tomé c) a re-criação do leitor, como refiguração, apelo
de Jesus escreve numa altura em que esta suspeita veemente a sair de si e a votar-se a outro.
de solipsismo se ultrapassara, pois recompila os d) os possíveis da obra (o mundo do texto que
Trabalhos de Jesus com a intenção clara de em se desdobra diante do leitor, não tanto como
primeiro lugar serem alívio certo de suas aflições objecto de compreensão de si, como convite à
ou se aproveitassem deles outros atribulados. Alar- existência).
gando este círculo a quem souber ler, o autor e) crente/descrente: o poder transformante da
propõe ao leitor a vir, vários níveis de cooperação leitura é uma das formas de performativização
textual, acreditando, portanto, no poder trans- do sujeito (como se a função deíctica do texto
formante do livro e na conversão pela leitura. O comportasse em si um elemento prescritivo, ou
que ficou escrito, e dá importância extraordinária como se a “mostração” se mudasse em obrigação,
a este livro, é funcionar ele como “deixa” para a em acto).
improvisação ou jogo criador do leitor, programa f) admirar/amar exprimem a distância ou a
de uso em vista ao poder-saber-fazer do “exer- proximidade da focalização e dos afectos.
citante”, visando acima de tudo instaurar um acto g) é o texto que fala do sujeito no momento em
de fala. que este lê; o discurso é organizado pelo “outro”;
nos Trabalhos, diz Tomé de Jesus, é Deus que de
Retomo o postulado que preside a este trabalho, dentro ensina.
segundo o qual o texto põe em cena uma língua, h) falar das implicações estésicas do corpo próprio
uma visão do mundo e a fala do sujeito (leitor). é insistir em que momento se passa esponta-

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neamente à acção, e em que momento a mor- nas suas Confissões – uma psicoterapia. As invocações
fologia dos sentidos se faz processo, não estado que Tomé de Jesus constantemente faz às figuras
– aplicatio –; momento sem palavras, tempo dos do “médico” e do “remediador” da alma devem
afectos, das aspirações, das lágrimas. ser vistas no mesmo sentido. Vergílio Ferreira
i) é a agogia (agogé) que decide da escansão das acredita nesse “milagre”: O leitor ideal é de uma
componentes patémicas e actanciais (no nosso subsecção, de um compartimento especialíssimo de leituras
texto é Deus que dispõe, inclina, habilita, de especialíssimas, de cuja existência me tenho dado conta.
dentro). Não é só admirador da obra, ama-a. A obra de arte
j) o místico “somatiza”, isto é, interpreta a música estabelece uma circulação de possíveis e o leitor, de
do sentido com o repertório corporal: o logos acordo com a sua própria procura, a partir do que está
primeiro do corpo é ritmo. em si, encontra-se com diferentes possíveis. Por isso é
l) o texto é um objecto de prazer, lugar da que alguém já se tornou descrente a partir da leitura
relação amorosa e da fruição, e caminho para do Cântico Final (...) E assim... nem me admiraria
o amor fazer o seu ofício. que alguém viesse dizer-me, ao contrário, que se tornou
m) trata-se de falar este texto, e não apenas de se crente por via da mesma leitura, como o Claudel disse
tornar “orante”, à imagem de Tomé de Jesus, a da poesia do Rimbaud.
quem se deixa à distância duma citação. A
subsidiária escrita. O suplemento. Podem o amor e a admiração por uma obra não
n) ler não é ver, é escutar e falar, o que Tomé de andar juntos. Mas é previsível que entre a obra
Jesus indica com o modalizador como: “como e o leitor se estabeleça uma relação de sedução.
se o visse com seus olhos”. O discurso do leitor transforma-se no efeito
o) o texto acorda em mim o que não poderia assumido da operação de sedução que exerce
dizer de mim sem ele: como o Grande Código sobre si o texto. Se a curiosidade tem essencial-
que nos interpreta primeiro só porque primeiro mente a ver com a razão teórica e com a figura
o interpretámos. do espelho (figura do mesmo), o entusiasmo ou
o reconhecimento definem-se a partir da razão
A escrita e a ascese estética; passagem do “outro” pelo corpo próprio.
É preciso não esquecer que estamos diante de um
Aproximar o exercício da escrita, o ensaio, por texto religioso, relativo a acontecimentos fun-
exemplo, da “ascese” de um exercício de si, como dadores – a Cristo, como salvador. O texto está
queria Foucault (1983), implica uma relação com por isso investido de dimensão escatológica e de
a escrita que não seja puramente informacional, verdade. Trata-se de um texto auto-implicativo, de
instrumental, antes “reformação” do sujeito que natureza figurativa, que vive da alteridade e da
escreve. Os exercícios espirituais são a isosthénia e a presumível interlocução. Desde o começo, a fé
epoché que os cépticos cultivavam, visando obter a cristã manteve com a história uma relação íntima;
paz da alma. Assim deve fazer o exercitante que a fé é lembrança, anamnese. A consequência é que
Tomé de Jesus compara a uma ovelha: Como a a hermenêutica cristã, por definição, é histórica,
ovelha, que quando está descansada, remoendo e gostando aplicada ao presente do leitor. O problema de
do que tem comido, não pega de outra erva por boa que fundo da leitura é o da temporalidade e do devir
seja, porque não pode o estomago com tanta coisa. do sujeito. Como escreve Ricoeur (1985): O relato
Os Trabalhos prevêm um sujeito em exercício e tem o seu sentido pleno quando é restituído ao tempo
esperam da leitura o mesmo que Santo Agostinho do agir e do sofrer na mimesis III. O presente real

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não reitera o passado, mas relê-o de maneira patémico e do fiduciário. O objecto constrói-se
criadora. O texto remete para o texto da vida, em através da interacção mediadora entre os sujeitos.
que a vida é vista como texto ou palimpsesto, Quanto ao espaço entre o Sujeito e o Objecto, é
intertexto. É aí que se faz a intersecção do o das modalidades; não é um espaço neutro em
momento do texto e do momento do leitor: que os actantes, despidos da sua roupagem afectiva,
Momento decisivo e indeciso o da leitura do se reconstruam como simples agentivos.
texto: patamar de um visível (que o mostra) e de Costuma-se definir a experiência mística como
um invisível. Na fórmula de Freud (1937): Onde atitude passiva. Tal operação leva a reduzir a relação
o isso reinava, deve o Eu advir. amorosa a um dos seus pólos. Esta é a economia
Para compreender o momento do texto religioso parasitária da relação amorosa. A aporia observada
é necessário invocar uma palavra anterior, revelante, no estatuto do discurso religioso, em que a iniciativa
advento do texto; e uma palavra confessante, que da relação amorosa promana de um criador, não
responda à palavra revelante, inseparável de uma invalida que a perda de si no reconhecimento do
conversão do coração. A leitura do texto religioso outro (como sujeito) só seja possível como fusão
é considerada via, no sentido iniciático do termo, junção, e não como fusão por assimilação (de um
prescrita ou recomendada como “exercício” e re- objecto) ou comunhão (com um objecto-sujeito).
conhecimento (agnition). O presente real não se Tomemos por adjuvante Mestre Eckhart (1984)
imagina sem memória, como revisitação dos que diz: O ser é o Verbo através do qual Deus diz
arquivos do corpo em que o “outro” deixou todas as coisas e conversa com elas. Se o Verbo se
traços. dirige a todas as criaturas e lhes fala é porque, sem
E porque a paixão do Mesmo é o maior obstáculo dúvida, as coisas gozam dum ouvir fundamental
para o devir do sujeito, mesmo o texto deve ser que as põe à escuta da voz do seu criador. A
abandonado, não vá ceder o leitor ao espelho da relação vertical do Verbo induz uma segunda
repetição. O texto é necessário e caduco. O relação, em virtude da qual os seres, de uma ponta
encontro que não se funde no acto de fala está à outra do cosmos, exercem uma escuta, se
votado ao fracasso da vida e da morte porque falam, no concerto de advérbios unidos ao Verbo
visa a fusão de dois eu. Só é boa a aliança fundada fundador. O Verbo é palavra, mas é também acto
numa palavra criadora, que separa e autoriza o de falar a alguém.
incessante encontro: Para viver, o ser humano deve Não se trata de reproduzir o texto, antes de
obedecer à palavra que atravessa a imagem e o separa produzir sentido, interlocução, fazendo transmigrar
dela. A refiguração da sua experiência só é possível o texto na minha vida, como dizia Barthes. Para
através da mediação do relato, mas o momento do além da voz narrativa, sem boca nem rosto, alguém
encontro remete o sujeito para si mesmo, quer interpela o leitor, para restabelecer o equivalente
dizer, para o processo de constituição da do laço que a viva voz preserva no plano da fala.
intersubjectividade. Para que tal processo aconteça, Por causa disso, o leitor não apenas lê, também
tem de haver alguém que fale. Ora essa é a pres- reza.
suposição de base da fé: a interiorização da relação
de correspondência entre o pólo divino do apelo
e o pólo humano da resposta. Destinador e des-
tinatário do encontro devem gozar do mesmo
estatuto de “máquinas desejantes” para que a rela-
ção seja possível. Esta é o fundamento do sentido

32
Traços da Obra Cumpre finalmente lembrar a versão portuguesa
do Padre Francisco Osório (Lisboa, António Álvares,
1653), onde não raro a fidelidade semântica do
de Frei vernáculo se viu sacrificada à floreada preocupação
estilística do gosto barroco, com grave prejuízo da
venustez que, no pensamento de Fr. Bartolomeu,
Bartolomeu constituia arma retórica tão eficaz.
O acentuado ritmo editorial do original latino e,

dos Mártires sobretudo, a publicação de versões nas principais


línguas da Europa, parecem-me sinais deveras
eloquentes do interesse que a obra despertou em
(excerto) quantos apostavam na formação espiritual de clé-
rigos e leigos, ao longo da época barroca. Depressa
o livrinho se converteria num guia prático de
ANÍBAL PINTO DE CASTRO * vida espiritual, finalidade bem patente na alteração
que A. Godeau introduz no título da sua versão
[...] para francês, ao chamar-lhe Abrégé des maximes de
Com efeito, à edição princeps, em latim seguir-se-iam la vie spirituelle, correspondendo assim aos desígnios
mais doze, tendo a segunda sido impressa no do autor e do confrade que avisadamente promo-
Colégio da Companhia de Jesus em Amakusa, no vera a sua publicação.
Japão, em 1596. A esta sucederam-se as de Madrid É o que se deduz da leitura do Prólogo que, bem
(Luís Sánchez 1598), Paris (Guillaume Chaudière ao estilo da época, Fr. Luís de Granada dirige «ao
1601), Brescia (1602), Roma (Cario Vullietto, 1603), amável Leitor».
Colónia (apud Quental, 1626), Tolosa (Bernard Era-lhe o douto granadino, cuja presença na lite-
Dupuy, 1682 e 1684), Veneza (Pietro de ratura e na espiritualidade portuguesas viria a
Orlandis,1711), de novo Roma (1734) e Eisiedeln atingir grau tão significativo, companheiro e amigo
(1864 e 1869). de longa data.
Igualmente numerosas e não menos significativas Face aos textos e aos documentos, torna-se por
foram as traduções, a primeira das quais para demais evidente que ambos se estimavam e
castelhano, da responsabilidade do Beneditino Fr. mutuamente admiravam, numa emulação própria
Plácido Pacheco de Ribera (Valladolid, Sebastián das almas apostadas na edificação do reino de
Cano, 1601).Viria depois uma versão para italiano, Deus entre os homens. Fr. Luís de Sousa 1, com a
do Dominicano Fr. Agostino Alessi (Genova, sua habitual perspicácia, afirma-o com insistência
Giuseppe Pavoni, 1616). Para francês, tenho notícia bem elucidativa. [...]
de duas – a primeira, de Jean de la Rivière Com efeito, a Granada se ficou a dever a edição
(Douay, Baltasar Beller, 1620) e a segunda, do de duas das obras de Fr. Bartolomeu que maior
Padre Godeau (Paris, Delaulne, 1699). projecção deram às suas concepções sobre a vida
espiritual e a acção pastoral dos Bispos em toda
a Europa pós-tridentina – o Stimulus Pastorum,
* “Introdução”. In Obras Completas (1514-1590) de Fr. Barto-
lomeu dos Mártires. Fátima: Of. Gráfica Pax, 1962. Do texto * Frei Luís de Sousa a Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires
foram retiras quase todas as notas. – nota de edição.

33
pela primeira vez impresso em Lisboa, por Granada foi buscar o original do Compendium. O
Francisco Correia, em 1565, e este Compendium texto compõe-se, na verdade, de uma extensa colec-
Spiritualis Doctrinae, que hoje de novo vem a público ção de apontamentos recolhidos de vários autores.
e em cujo prólogo deixou, aliás, nova e bem Lá encontramos uma extensa e copiosa «biblioteca
eloquente expressão da devotada admiração que patrística» [e tantos outros...]
lhe merecia o Bracarense. Remetendo embora Pela frequência e extensão das transcrições e adap-
para o juizo dos vindouros, já que tinha «em tações, ganham especial relevo nesta «biblioteca» as
conta a sentença de não louvar ninguém em obras de S. Bernardo, de S. Boaventura e Jean
vida», nem por isso vai deixando de enaltecer as Gerson. [...]
suas virtudes, a extrema modéstia do seu viver, o E, claro está, a envolver e vivificar toda uma gama
cuidado que lhe merecia a formação cultural do vastíssima de leituras, o conhecimento profundo e
clero e a sua entrega total à oração, no silêncio a contínua meditação da Sagrada Escritura.
das noites, depois de, na agitação dos dias, se ter Estabelece-se deste modo uma cerrada rede de
consagrado todo aos cuidados pastorais próprios aproveitamentos intertextuais, que muito importará
de tão extensa e trabalhosa diocese. estudar em ocasião mais oportuna. É certo que os
Entre as qualidades que exornavam o santo Arce- processos de tais aproveitamentos variavam muito,
bispo, tanto na sua condição de humilde frade, pois iam da transcrição literal à síntese, passando
como no fiel exercício do seu múnus episcopal, pela adaptação dos originais às finalidades imediatas
avulta, com traço significativamente carregado, a que o colector tinha em mente; mas convirá sempre
profundidade e segurança da sua actividade inte- ter em conta que Fr. Bartolomeu não era um
lectual, a sua formação teológica e a metodologia simples compilador de apontamentos. A sua forte
que seguia para continuamente a actualizar. [...] personalidade e as suas ideias muito próprias acerca
O texto do Compendium e a própria formulação da vida espiritual condicionavam inquestiona-
do título confirmam, com efeito, este método, que velmente, não apenas as suas leituras, mas também
Fr. Luís de Sousa igualmente testemunha. os passos que das obras lidas aproveitava e, sobre-
Ledor infatigável, manuseava Fr. Bartolomeu com tudo, a reinterpretação a que as submetia, através
mão diurna e nocturna os seus livros, mais manus- de um seguro trabalho hermenêutico ou para-
critos do que impressos, que conservava na sua frástico, marcado por alguns vectores principais,
própria câmara de dormir, onde tinha «ao longo entre os quais avultam a sua cultura, o seu saber
da parede ~ uas estantes a uso fradesco, que diziam teológico,’ a sua sensibilidade afectiva e a sua
com a mesa na feição e pobreza. Poucos livros experiência.
nelas, mas cartapácios muitos, e cadernos de sua Já noutro lugar tive ocasião de salientar como,
mão escritos, argumento de seus estudos: uns de sendo Fr. Bartolomeu um homem indiscuti-
matérias que ditara, sendo leitor por tantos anos; velmente culto, o fulgor da latinitas renascentista,
e outros de notações que ia fazendo e tirando dos tão presente e actuante no perfil intelectual de
Padres e Santos antigos sobre diversos intentos». um Damião de Góis ou de um D. Jerónimo
Dessa maneira, como refere o mesmo biógrafo a Osório, não exerceu particular sedução sobre o
propósito do Stimulus Pastorum, «colhia como seu espírito, todo voltado que estava para as coisas
solícita abelha em campo de flores, quanto achava de Deus. Tal não significava, porém, que tivesse
pertencente à matéria, disposto com ordem e ficado desatento em relação à dinâmica cultural
curiosidade, e com o seu engenho». tão característica da época em que viveu, ignorando
Foi certamente a um desses cadernos de mão que ou sequer minimizando as potencialidades que a

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cultura profana de matriz greco-latina encerrava do capítulo XX que «a perfeição consiste na
para a formação dos quadros da Igreja, dos simples parte afectiva». É que ele conjugou, com
religiosos ou dos leigos. E até de uma obra com harmonioso equilíbrio, a visão que da realidade ia
as características do Compendium essa cultura não tendo, com a sensibilidade através da qual a sua
está ausente. Não admira por isso que, para além alma interpretava os dados apreendidos por essa
de Aristóteles, cuja importância na formação filo- visão e com uma singular capacidade de, já alheio
sófica de clérigos e leigos era, na época, fundamental a essa realidade, por difícil ou desagradável que
e, por conseguinte, perfeitamente compreensível, fosse, elevar a mente às alturas da contemplação,
encontremos citados, nas suas páginas, historiadores numa escalada em cujo cume o esperava a face
como Valério Máximo, ou comediógrafos como luminosa de Deus. Dessa ascese retemperadora da
Terêncio. [...] sua vida interior traçou Fr. Luís de Sousa um belo
Fr. Bartolomeu conhecia como poucos os mistérios quadro ao narrar as suas deambulações pastorais
do coração humano e sabia bem como os afectos pelas Alturas de Barroso. Vale a pena recordá-lo:
constituíam o caminho mais adequado para atingir
a conversão da alma pecadora ou para a fazer «Como saía pola manhã da pousada, chamava um cape-
progredir na ascese pela qual atingia o seu encon- lão com quem ia rezando as Horas menores. Acabadas,
tro amoroso com Deus. Também aqui a sua sen- despedia-o, dizendo:
sibilidade aproveitava, com delicada argúcia, a lição – Agora recolhamo-nos com Deus.
de Aristóteles e de quantos, no período imedia- E ~uas vezes deixava-se ficar detrás de todos, outras, se
tamente subsequente ao primeiro Renascimento, o tempo era áspero de ágoas ou frios, tomava a dianteira
faziam do movere a mais profícua estratégia para e logo fazia que dezia, servindo-lhe quantas cousas via
o docere. Não é, aliás, por acaso que nestas páginas polo caminho de ocasião pera acender e levantar o
deu tão demorada e solícita atenção ao Cântico espírito em alta contemplação em que de ordinário ia
dos Cânticos, o texto que, no Antigo Testamento, tão engolfado que pouco ou nada sintia o trabalho, por
representa a expressão por excelência do lirismo larga que fosse a jornada. Com os braços cruzados e os
amoroso. Por isso a sua teologia mística se trans- olhos no céu, e as rédeas da mula lançadas em banda,
forma com significativa frequência num amoroso caminhava muitas léguas sem dar fé de nada, e às vezes
colóquio da alma com Deus, traduzido em termos por passos bem perigosos».
que, por vezes, se nos afiguram demasiado próximos
daqueles que os poetas usavam na expressão do A familiaridade é marca característica do seu estilo,
amor profano; mas era nos efeitos desse mesmo que poderia definir-se pelo frequente recurso à
amor humano que encontrava o crisol purificador qualificação, ao diminutivo e à metáfora, como
onde os sentidos, através da meditação e da con- quando, para intitular o capítulo XVI se serve da
templação, se superavam a si próprios, num movi- expressão: Dulces bucellae ex D. Bernardo in varits
mento a que não eram estranhos certos ditames locis collectae, aqui traduzida por Doces bocadinhos
do neoplatonismo, filtrado embora pela tradição colhidos de vários lugares de S. Bernardo.
da espiritualidade augustiniana. Num discurso cuja organização sintáctica se mostra
É essa sensibilidade que, fecundada pela sua própria muito marcada pelos hábitos da escolástica, che-
experiência da meditação e da oração, representa, gando a recorrer, com frequência, à ordenação
em meu entender, a marca mais pessoal do apro- numérica, estes recursos contribuiam poderosa-
veitamento interpretativo que Fr. Bartolomeu faz mente para dar ao texto um poder convincente
dos textos que lê e compila. Por isso diz no título de fundamental importância na estratégia retórica

35
do Autor. E foi essa tão acentuada marca de
coloquialidade que procurei manter na versão
portuguesa que agora se traz a lume, aceitando
inclusivamente repetições ou insistências sinoními-
cas, que se convertiam, na pena do autor (até pelas
alterações que introduzia nos originais copiados),
em deliberada estratégia de comunicação, ao mesmo
tempo profunda nas formas de conteúdo e acessível
nas formas de expressão.
Compreende-se, pois, que o Compendium fosse tão
facilmente recebido como uma espécie de manual
de mística prática, para iniciados e não iniciados,
para religiosos e leigos, merecendo, em Portugal e
na Europa tridentina, uma projecção a todos os
títulos notável e que as numerosas reedições do
original e as traduções bem comprovam, como
acima sublinhei. Mais uma vez Fr. Luís de Sousa
sintetizou, com pena de mestre, as características e
finalidades da obra, ao dizer dela:

«Pera os homens espirituais escreveu um


excelente volume que todo religioso devia
trazer de contino na mão, e a doutrina dele na
alma. É ~ua guia ou escada‘pera com facilidade
se sobir ao alto monte da contemplação.»

36
T E X T O S
L I T E R Á R I O S

37
38
grande que seja cuja força agora nos atormenta,
Consolação que já não hajam os passados visto e padecido
maiores; e se em alg~ ua gente isto se entende e
às Tribulações pode vereficar é na nossa trabalhada e corrida
naçaõ, a qual, inda que nestes nossos dias padeça

de Israel graves tribulações, todavia muito mores foram


aquelas que já pelos nossos antigamente pasaram,
pelo que estas se podem reputar por piquenas. E
SAMUEL USQUE * segundo meu juizo facilmente se pode isto crer,
ou por esta gente ser já tão deminuida que os
males, posto que sejam grandes, não acham sogeito
DA ORDEM E RAZAM DO LIVRO
pera neles empregarem suas forças; ou, o que creo
PROLOGO.
AOS SENHORES DO DESTERRO e desejo, por esta tormenta que te’gora nos per-
DE PORTVGAL. seguio e persegue começar-se já a amainar, e a
desejada manhã depois da tempestuosa noute do
inverno quererse nos aparecer. Verdadeiramente,
AOS aflitos ânimos soe a memória dos males
sendo todalas cousas pelo enfinito criador per-
passados em parte demenuir o trabalho dos
feitamente regidas e sem nenh~ ua tacha compostas,
presentes, especialmente se os que passaram eicedem
é de creer que assi como teveram princípio não
aqueles em que se acham, e posto que mamente
carecerão de fim por que só ele é o enfinito e sem
se cura um mal com outro, todavia esse género de
princípio.
meizinha foi aprovado por aqueles excelentes
Pois sendo como se vê os trabalhos tantos e de
barões que com sua muita ciência remédios pera
tanto tempo ha principiados, e havendo envalecido,
as aflições d’alma nos deixaram, e como as pessoas
certo está que se os pecados nossos não lhe dão
podiam soportar os trabalhos a que esta miserável
nutrimento em que se sostenham, presto virão a
vida que vivemos tanto sogeita é e sometida; pelo
fim, e começará de mostrar-se aquela bonança
que Sócrates (espelho e norte por onde se guiaram
que esperamos.
não somente os Atenienses, inventores de toda
Pelo que eu, comovido e vendo esta nossa naçaõ
doutrina, mas o resto da gentilidade, possuidora
seguida e afugentada agora dos reinos de Portugal,
de todalas boas artes) dezia que vendo-se as pessoas
ultimamente uns por pobreza, outros por temor,
em fadigas cotejassem os males que atrás ficavam
e os mais deles pela pouca costância que já de
co’s presentes e facilmente lhe achariam consolação.
abinicio em nossos ânimos repousa, vacilar e mais
Por que nenhum seria tão piqueno que assaz mor
do dever someter-se aos trabalhos e deixar-se
a respeito do presente não se achasse, e certo se
vencer deles, propus relatar as tribulações e fadigas
bem quiséssemos oulhar e nos não deixássemos
que a nosso povo socederam co’as causas por que
vencer da paixão d’alma, não há trabalho por
cada mal se moveo; recolhendo-os por certo não
com pouca fadiga e trabalho de diversos e mui
* Samuel Usque. Consolação às Tribulações de Israel. Edição de aprovados autores, como nas margens se pode ver,
Ferrara, 1553. Edição facsimilada. Lisboa: Fundação Calouste
e os mais modernos trabalhos autorizados co’as
Gulbenkiam, 1989. O texto, facsimilado, foi editado agora
por José Miguel Martinez-Torrejón que modernizou ligei- memórias dos velhos que neles se hão achado. E
ramente a ortografia (para melhor legibilidade) e alterou a por que não era razaõ ficarmos com as lástimas
marcação dos parágrafos. abertas e assi cruas, detreminei cerrá-las co’aquelas

39
consolações que nosso Senor nos oferece e dar- a nosso Senhor que podera tanto com minha
-lhe sem escrito aquele felice fim que nós lhe pena escrever quanto o alto sogeito da obra o
esperamos sem efeito. merece, porém consolo-me que nas grandes cousas
Cada tribulaçaõ leva ao pé a prophecia que parece e dinas de memória, o menos que os bons juizos
haver-se ali comprido, pera vermos que assi como notam é a língua ou estilo, por que a cousa em
os que prophetizaram nossos males saíram verda- si mesma se estima, e as palavras não é outro que
deiros, necessariamente creeremos que nos bens ~
ua declaração, as quais importam pouco serem
assi mesmo o saíram, pois um e outro manou de elegantes ou mal ornadas. Movi-me também a
~
ua mesma fonte. Não por que em real verdade escrever este piqueno livro, pera tentar se alguns
entenda ser aquela prophecia a propia que foi nobres engenhos, dos quais não há poucos nesta
dita por aquele trabalho, pois só é do Senhor este nossa nação se espertariam a dizer mais copiosa-
segredo, e é de creer que nem o propheta repartio mente e com maior felicidade o que eu neste
sem sua fantesia e tenção onde e em que partes piqueno volume aceno. E certo que minha con-
cada cousa havia particularmente de comprir-se; dição é tanto inclinada ao bem público, que daria
mas narrando eu o que nos aconteceu, sirvo por bem empregado este meu trabalho ser tido
somente de confrontá-lo com o que as prophecias por vão, se de pouco momento, em comparação
nos deixaram dito socederia, e isto sem perjuizo das boas e louvadas composições que depois dele
do que nossos sábios hão escrito que não haviam fazem.
realmente de acontecer assi alg~ uas delas, mas que Os nomes dos pastores não deixam de ter algum
eram figura de outra cousa ou estilo de prophetas, fundamento, por que Ycabo, que representa nosso
em ampliar às vezes a prophecia. Verdade é que padre, tem as mesmas letras de Yahacob e além
têm alg~ ua ou muita autoridade os que provam disso na língua santa quer dizer “passou-se a
com esperiência que somos nós outros os deste gloria de Israel”, que foi o nome que a nora do
tempo, porém não quero que me sirva pera alterar Sacerdote Elí pôs ao filho que pario com a triste
a tenção daqueles espritos diurnos que já doutra nova da arca pelos Palestinos cativa. Numeo é
maneira o entenderam. derivado de Nahum, “consolador”, que é o efeito
A ordem que no mais desta composiçaõ tive, foi, que ele faz nesta obra; e Zicareo, de Zahariahu,
que fingindo o grande patriarcha Yahacob com que lembra os bens que recebeo Israel em desconto
nome de Ycabo e em hábito de pastor como o de seus males, e as vinganças que per amor dele
ele foi, chora o mal de seus filhos, filhos por foram feitas.
sangue, filhos em lei, filhos em esprito e muitas Alguns senhores quiseram dizer, antes que sou-
vezes todo o corpo de Israel representa ele com bessem minha razão, que fora milhor haver
muita razão, pois ambos somos um só sogeito, ao composto em língua castelhana, mas eu creo que
qual consolam Nahum e Zahariahu com os nomes nisso não errei, por que sendo o meu principal
um pouco demudados à maneira do que os antigos intento falar com portugueses e representando a
ecritores soem fazer, os quais, sendo prophetas tão memória deste nosso desterro buscar-lhe per
excelentes como em suas palavras se mostram, muitos meos e longo rodeo algum alívio aos
além de lhe satisfazerem muitas dúvidas que Israel trabalhos que nele passamos, desconveniente era
move, finalmente com razões e prophecias autên- fugir da língua que mamei e buscar outra prestada
ticas, persuadem como os males são passados e o pera falar aos meus naturais. E dado caso que a
bem tão desejado está cerca, e da calidade que há volta houve muitos do desterro de Castela, e os
de ser dão muitas e verdadeiras novas. E prouvera meus passados dali hajam sido, mais razaõ parece

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que tenha agora conta com o presente e maior tuas creaturas. De maneira que todos os que cria
cantidade. em si cada ~ ua região, debaixo de suas asas amo-
rosamente os conserva. Mas vós, o minha antigua
Israel em nome de Ycabo, pastor havendo- heredade, e piadosa mai que já fostes senhora das
se recolhido em um lugar afastado da gentes, e como a águia entre as volátiles, princesa
conversação humana, lamenta seus males, ao sobre todalas provincias, onde irei buscar vossas
qual acham per caso Nahum e Zahariahu, passadas glórias? Desfalecidos são vossos altos
prophetas em hábito e nome de pastores a mistérios, aos céos fugiram vossos incomprensíveis
quem conta todos seus trabalhos e eles o milagres, e torpes abominações vossos divinos
consolam. sacreficios corromperam as alegrias e festas san-
tíssimas de dó e tristeza se vestiram; os mimos da
maravilhosa abundância da terra em duro cativeiro
DIALOGO PRIMEIRO de crueis se mudaram; os contínuos favores do
YCABO, NUMEO E ZICAREO, céo, em ira e esquecimento se trastornaram; o
PASTORES. santo repouso e sossego de espírito de vossos
amados filhos, em crueis desterros d~ ua noutra
YCABO província co’um mizquinho temor e contínua
Ó CONVENIENTE lugar pera chorar meus lazeira se converteram; os saborosos frutos em
males, e sobir ao derradeiro céo meus gimidos! peçonhentas bíboras se transformaram, as claras
Vós outros sós, árvores e mansas ágoas despostas ágoas do divino Jordão e fonte de Edumea tintas
a me ouvir, ouvi, e doei-vos de minhas lástimas: em natural sangue correram; pois a que parte do
desfalecidos espíritos, lassos e quebrantados mundo me virarei que ache meizinha a minha
membros, grave peso de soster. Esforçai-vos, olhos chaga, alívio a minha dor, e consolação a tam
cansados, da já tão seca vea soltai mil a mil lágrimas impacientes e graves males? Ó atrebulado corpo,
de sangue. Altas e cerradas ramas que os raios da se toda a terra é chea de minhas misérias e
debilitada vista me detendes, afastai-vos um pouco, trabalhos; nas riquezas e deleites da felice Asia, ali
sairão sobelas nuves meus continos e lastimosos me acho pobre e afanado pelegrino, na abundância
sospiros, e dai lugar que se ouçam meus bramidos do ouro, e grossura da terra da abrasada África,
em todalas quatro partes da terra: lazrado, faminto, e sequioso desterrado. Pois Europa,
Tu, larga, bemaventurada e grande Ásia, de preciosas Europa (meu inferno, na terra) que direi de ti, se
joias semeada, de nobres e ricos árvores plantada, de meus membros tens feito a mor parte de teus
com infinita riqueza, com suaves e maravilhosos triunfos? De que te louvarei, viciosa e guerreira
cheiros, teus tostados moradores deleitosamente Italia?, em ti os famintos liões se cevaram espe-
recreas. Tu, montanhosa, áspera e queimada África, daçando as carnes de meus cordeiros. Viçosos
prenhe de finíssimo ouro, de doces e fermosos pastos franceses, peçonhentas ervas pasceram em
tamaraes vestida, em parte de leite e mel regada, vós minhas ovelhas. Soberba, áspera e montanhosa
con soterrada prosperidade, naturaes e saborosos Alemanha, em pedaços caíram do cume de teus
mantimentos, contentes ostentas teus filhos. E tu, fragosos Alpes minhas cabras. Ingresas doces e
guerreira, sábia e temperada Europa, de engenhosas frias ágoas, amargas e salobras beberagens bebeo
polícias, soberbos e maravilhosos triunfos cevada, de vós o meu gado. Hipócrita, cruel e loba Espanha,
e num terreste paraíso convertida, com desmedido rapazes e encarniçados lobos tragaram, e inda
viço de tuas cheas tetas mimosamente mamam tragam em ti o meu veloso rabanho.

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NUMEO: guerra contra um fraco subgeito, temor, sospeita,
Ó Zicareo, ou me eu engano, ou alguém anda receos de minhas entranhas, té quando gemerei,
dentro neste bosque, por que eu ouço um som sospirarei, matarei a sede co’as lágrimas de meus
como de voz humana; por amor de mi que olhos?
esperes um pouco e ouvi-lo-emos. ZICAREO:
ZICAREO: Por certo bem sentiste tu, irmão Numeo que era
Deve ser Iránio, que de outra banda apacenta; ou criatura racional, e não é este aquele Iránio o que
correram os seus raseiros algum lobo, apressêmo- a nossa divina e incomparável perda tanto sentio,
-nos por que vão lá muito adiante nossos rabanhos, (por que bem conheço eu a sua voz) mas outro
y estes passos por aqui não são muito seguros. pastor é que por aqueles mesmos tons se lamenta.
NUMEO: NUMEO:
Boa goarda levam dos mastis; espera que não nos Inda que muito aventurasse não deixaria de saber
deteremos tanto, e está atento, por que ele prossigue se quiçaes é este o pastor que tanto há desejamos
em sua prática, quem quer que seja. d’encontrar; vamo-lo, por tua fé, Zicareo, saber
YCABO: dele.
Ó mundo, mundo, já que tuas racionaes creaturas ZICAREO:
não consentes se doíam de minhas tribulações e Vamos.
lazeiras, se nas insensíveis influiram os céos algum YCABO:
modo secreto de piadade, dá licença aos rios que Pera mais sossegadamente disputar comigo minhas
d’altas montanhas com espantoso rumor vêm que- fortunas, sem que o rumor dos pastores me empe-
brar suas escumosas ágoas em baixo, que detendo disse, só entre esta espessa arvoreda que a natureza
o seu arrebatado passo, com manso e lamentoso ao pé deste áspero monte produzio, desviando-me
roido, acompanhem o contínuo curso de minhas me recolhi; mas se a fortuna me não privou do
lágrimas, e em seu correr cansado mostrem novo ouvir junto co’s outros bens de que me deixou
sentimento de minhas longas misérias, e vós outros nú, por seu meo, passos e prática mais que d~ ua
príncepes de todos eles, Nilo, Ganges, Eufrates, só criatura não longe de mim sinto.
Tigre, que desatando-vos do paraíso terreste, desen- [...]
freados vindes abrevar os sequiosos Egípcios, os
moles e cheirosos Indios, e torcendo o passo, Vida pastoril.
escondendo-vos nas areas por muitos dias, saís
depois a mostrar-vos aos bárbaros e queimados Sabereis irmãos, que eu sou aquele antiquíssimo
guineos, e sobindo e descendo por ásperos e pastor, que com pescoço e mãos velosas, pera
montanhosos desertos, is tambem saudar os soceder na benção seu pai enganou; e pelos amores
guerreiros e crueis tártaros, pois lá vos comunicaes d~ua fermosa pastora sete e sete anos nos viçosos
co’aquele tão desejado mensageiro que em carro pastos de Mesopotâmia apascentei; dali partindo
e cavalos de fogo arrebatado foi levado aos céos, com um rico e fermoso rabanho de cabras e
rogo-vos que aqui me digaes este segredo: quando ovelhas de diversas e manchadas cores, vim a
cansarão meus males e fadigas, minhas enjúrias e heredar os espaçosos campos e felice terra de
ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas n’alma Quenaã, bens de meus padres. Recebi da divina
e minhas mágoas, as bemaventuranças em sonhos, mão doze filhos, robustos barões; e com tantas e
as desaventuras certas, os males presentes e esperanças tão viçosas riquezas entre eles alegre me gozava;
longas e tão cansadas; e quando terá paz tanta e uns, mais deleitando-se da guarda das simpres

42
e graciosas ovelhas, em rompendo a alva da manhãa, a alegre mesa cada um de ~ uas viandas gostosas e
antes que no oriente o sereno céo de sanguínea naturaes, e juntando-as co’ mel, que neste bom
cor se manchasse, saíam com seu rabanho; e com tempo estava dos árvores grossos fios estilando, e
vagaroso passo pisando as orvalhadas ervas, e co’ branco leite que as gordas ovelhas, das mamas
ouvindo o doce chilrar dos passarinhos, pacífica sobelas ervas pascendo lhe gotejava, saborosamente
e sossegadamente o guiavam contra algum fresco comiam. E já que eram da fome despedidos, sen-
e deleitoso prado, onde arribados que eram, tiam um fresco ar, que com suave roido o cume
sentando-se sobela verdura dalgum piqueno dos altos álemos, e dos viçosos e grandes freixos
outeiro, pera milhor contemplarem na manada, andava movendo, e docemente as mais altas ramas
viam as ovelhinhas: ~ uas em prado chão as verdes brandindo, com um descanso e tão mavioso com-
e miudas ervas suavemente pascendo, outras sobindo passo, que parecia darem-se ~ uas a outras paz,
em lugares ásperos se despenduravam a roer algum secretamente. E neste meo, as palreiras mélroas, os
novo arvoresinho que então tenro se levantava da namorados e músicos rusinoes, com muitos outros
terra; outra se empinava pera alcançar um ramo graciosos passarinhos, que à sombra se vinham
de figueira; qual mordendo os tenros gomos das acolhendo da áspera calma, todo aquele lugar
parreirinhas bravas, qual tascando a penca do (respondendo-se uns a outros com diversas vozes,
salvático cardo; ali os piquenos e tenros cordeiros ajudando-lhe o murmúrio da viva fonte) enchiam
de poucos dias antes nacidos arremetiam as cheas d’armonia, e deles tangendo, uns docemente com
tetas das piadosas madres, a presurosamente suas frautas e vilanescos instromentos, outros ao
mamando, co’aquele gosto e sabor que quasi parecia som contra as namoradas pastoras, amorosamente
lhe quererem as longas mamas arrancar; muitas cantavam, quaes com rústicas manhas e pés lutando,
outras já contentes do pasto, bebendo nos claros e quaes os fortes e ousados carneiros, uns contra
ribeiros se alegravam verem-se no fundo como outros atiçando, estavam vendo duramente marrar:
vivas; e alguns carneiros, airando-se, arremetiam de e alguns vencidos do sono, co’a cabeça junto do
quando em quando a sua figura, e achando-se roido da clara fonte, de viçosos se dormiam. [...]
depois escarnecidos, ficavam co’a cabeça molhada
como atónitos. Caça de coelhos: e lebres
Ora assi viçosamente passando a fresca manhã,
quando já o Sol e sua seca calma embebido havia Passando assi alguns tempos esta idade d’ouro,
nas verdes ervas o orvalho, se abalavam e punham debaxo do cajado do sumo pastor, cujos rebanhos
en caminho com o rebanho de suas mansas ovelhas, pascem todo o universo, e d’outros terrestes, que
a buscar as deleitosas sombras, onde a fresca e de ~ua mão postos eram, e fielmente guardavam as
temperada viração os recreasse. E lá ao cabo de ovelhas, levantou-se destes própios meus filhos
um alegre vale um fermoso e mui vasto arvoredo dali a alguns anos, ~ ua companhia de péssimos
os recebia, regado, e viçoso co’as doces ágoas d~ ua pastores, que não se curando do gado, o deixavam
fonte que ao pé dum altíssimo acipreste a bor- pascer ervas peçonhentas, e beber ágoas amargas,
bolhões e com alegria rebentava, junto da qual, e eles tomavam outra vida áspera e gentia, caçando
vinda a hora de comer, ordenadamente se sentavam, e perseguindo silvestres animaes, e pela frescura da
e abrindo seus velosos surrões, que ao esquerdo madruguada, antes que o Sol descesse sôbelo orva-
lado do pescoço lhe pendiam (qual feito da branca lho dos ásperos cerros e verdes outeiros, com seus
pele do tenro cordeiro que o cruel lobo arrebatou, forões em trela, os cajados às costas, as redes nas
qual da ruiva pele do movido bezerro) tirava pera cevadeiras, e ante si seus cães presos de dous em

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dous, metendo-se no espesso mato, iam tocando garça vinham abaixo, e de suas pombinhas penas
a~ ua e outra parte té que o podengo pelo rasto ~
uas por aqueles craros e frescos ares andavam
vendo comer na verde erva o manso coelho, a seu vagando, e outras sôbela verdura aqui e ali espa-
latido os outros cães acodindo e todos furio- lhando-se desciam. Alg~ uas vezes neste passo (pera
samente correndo, alg~ uas vezes escapando-lhe té mais saborosamente se fartar a vista) aos lastimosos
o encovarem presurosamente o seguiam; [...] Por gritos da ferida garça, acodia grosseiro e grande
outra banda, os gentis e delicados galgos, descobrin- milhano a socorrê-la, e os astuciosos caçadores,
do-lhe os cães as medrosas lebres que pela estrada lançando-lhe um deles o animoso Bafory, outro
real ligeiramente se punham em fugida, tras elas o forçoso Saacri, este o bicudo gerifalte, e aquele
como voando mea e ~ ua légoa as corriam, té que o grande e fermoso Tagarote, e assi juntos ani-
já de cansadas e medrosas vendo-se o imigo junto, mosamente os imigos acometendo todos uns co’s
muitas vezes no caminho, ~ uas nas abas da mon- outros estreitamente tecidos, vinham a fazer ~ ua
tesinha molher, e outras aos pés do afadigado mui travada batalha: mas ao fim as forças dos
caminhante, piadosamente se acolhião. poucos enfraquecidas, já se rendiam aos contrairos,
e acabando de espirar aquela fermosa ave, de seu
Caça de cervos. corpo partecipavam todolos companheiros, levando
cada um parte da presa com mui grande alvoroço.
Estes caçadores neste viço passando a fresca manhã, [...]
empinando-se o sol nas forças da calma, nas mãos
seus longos remessões, na cabeça verdes gualteiras, A caça de cervos em vida de maos
ao lado as cheas borrachas e alforjes, em suas bem transfigurada.
acevadadas égoas nua~ grandíssima e fermossa gandra
de piquenos cervos e tenros corços toda semeada, Esta é até qui a figura da vida dos outros filhos
a lugares rasa, de cheirosos poejos e doce madresilva meus, que nos costumes da gentilidade, e caça
e d’outras montesinhas ervas coberta, [...] segunda de cervos, como vos ei contado se exer-
E por mais que a perseguida garça se ia infu- citavam; já depois que teveram reis sobre seus
nando em alteza já pela grande ponta do imigo cavalos, nas forças da calma, passada a fresca manhã,
ficava sopeada, e tanto, que achando-se tão junta em que nosso senhor só lhe era rei e governador,
do perigo à sua defesa pelo derradeiro remedio saindo vinte ou trinta monteiros, cujos nomes
corria, e virando pera riba a delicada ave seu eram: Geroboam, Nadab, Bassa, Ela, Amri Achab,
tenro peito co’ duro bico e longos pés esperando, Ocosias,Yoram,Yehoahas,Yehoas,Yohas, Zahharias,
irosa se armava. A ~ ua e outra parte sobrela o Salum, Mahhem, Pechahia, Pehha, Hosea, reis de
animoso falcão arremando-se, e a nobre caça não Israel, e todos com seus longos remessões nas
podendo resitir seu furioso ímpeto da primeira mãos, ceptros do reino de comprido poder pera
pelotada que recebia humana e piadosamente se matar; na cabeça verdes gualteiras, coroas com
queixava; e ao mais alto por se escapulir grandes esperanças e ao lado as cheas borrachas
impinando-se, e após ela o imigo sempre subindo- e alforges, ventre de defesas viandas atestado; e em
-se e sogigando-a, ásperamente a tornava a ferir, ~
uas bem acevadadas égoas, de falsas e torpes opi-
de tal maneira aqui ligeiramente saindo e ali ma- niões sobre que vinham cavalgados; então apareciam
nhosamente acometendo a ia com suas longas e naquela grandíssima e fermosa gandra de cervos
agudas unhas contino acotilando, que muitas e e corços toda semeada; aprazível, largo e espaçoso
muitas vezes os pedaços da vencida e cansada reino de Yudea, todo de Israelitas ocupado e cheo

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e com disputa de más imaginações entre si, de a peçonha de mal obrar; mas esperto co’ reino, assi
suas idolatrias a seu padar gostosas, tomando o inda meo sonolento, súbito tras o veado seguia; e
vento a emprazada caça e pobre povo, pera lhe desta maneira cada um e um dos que a coroa
cortar os governos e meos de salvarse, apartándo- tomavam ao alcance do perseguido povo (bem
-se e socedendo cada um ao outro por certos convertido já em animal silvestre) igualmente como
espaços de tempo, armavam um cerco de pestíferas os outros maos corriam sua parada e carreira,
abominações; Geroboam tinha a capitania, e como tanto que a cansada caça facilmente o último a
principal com seus dous bezerros estava em parada, matava, afastando-a de todo ponto da face e favor
e junto dele seu filho Nadab, depois os seguiam divino, cuja graça me dava vida pera a alma e
os péssimos Bassa, Ela, Simiri, e Amri, que pelo prosperidade e descanso a este aflito corpo, da
sobrepujar muito se afadigavam. Algo afastado se qual privado que fui por Hosea, rei último, com
pôs Achab, que de se ver monarca nas maldades, grande alegria do imigo e nosso atorcedor, todos
havendo-o vencido, mostrava estar inchado e meus filhos de seus estados se deciam, e com festa
prosuntuoso com sua molher Yzebel. A mão direita, e grande regozijo de Salmanasar e seu exercito, co’
entre bosques [d’]estatuas e sujos altares e estendidos veado morto, e mizquinho povo per terra derri-
a seus pés gran número de corpos de profetas do bado, ai aflito e já como mortal, a suas terras me
Senhor, em cujos sangues os rostos e mãos tinham levaram cativo, onde té’ gora jaz morta minha
banhadas, Ocosias, seu filho, das fraldas de ambos memória neste mundo. [...]
com ambalas mãos estava aferrado, e inda com
Yoram seu irmão os olhos co’ amor tinha a Consolo no cativeiro dos dez tribos.
Geroboam encarados; e todo o mais resto da
companhia se pôs naquela paraje em que os havia NUMEO
o primeiro capitão encaminhado; e assi, já bem Não ha dúvida alg~ ua, Israel, que num profundo
aparelhados com suas abomináveis obras, desde mar de pecados te engolfaste, e que só as tuas
Samaria batiam o santíssimo monte de Yerusalaim, mãos hão sido homicidas de ti mesmo: co’elas o
onde o divino templo fundado estava, pera lhe fogo a tua terra puseste, os muros que dela foram
derribarem aquele altíssimo e milagroso edefício derribados assolaste, entregaste-a às gentes que a
que sobre si tinha, desembocando dele o ligeiro gozasem, encadeaste com grilhões e ferropeas de
veado e mudável povo, que algum pouco de cativo teus pés, e finalmente tua perpetua perdição
divino serviço ali inda, amparado e recolhido o ao estremo chegaste, num delgado cabelo já do
tinha; o qual saído que era de suas casinhas e merecimento de teus padres a puseste. Mas aqui
abrigo, desatinado teu favor, abrevou-te de ágoas, neste ponto onde ao presente estás arribado, ouve
forçancorria pelas idolatrias, sem saber tomar tino a misericórdia do Senhor que contra o norte vem
qual delas escolhesse. Mas o sagaz monteiro e bradando. Se se poderem midir os céos darriba,
astuto na maldade Geroboam, trabalhando de o e escuadrinhar os fundamentos da terra que estão
meter pelo meo de sua armada e péssima via dos debaixo, então eu enjeitarei a semente de Israel,
dous bezerros d’ouro que enventou, a ~ ua e outra por todo o pecado que fizeram. O que deu o Sol
parte astuciosamente o acareava, té o chegar (já por luz do dia, a lua e as ordens das estrelas por
naquele mao estado) ao posto do segundo luz da noute, o que faz bramar o mar que se
companheiro que no reino lhe socedia; que de alvoroce e co’as ondas faça roido, o Senhor dos
esperar com desejo pão tão saboroso pera ele Exércitos é o seu nome. Pois se estas leis (do Sol,
estava enfadado, tanto servia no peito de cada um lua, estrelas e mar) cessarem, assi cessará a semente

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de Israel de não ser gente ante mi tôdolos dias. YCABO
Por que farei consumição em tôdalas gentes onde Suficiente era esse seu consolo que a esta minha
te empuxei, mas contigo não farei em consumição. tribulação de Babilonia aplicaste, e o primeiro
A todalas linages de Israel serei Dio, e eles a mi felice estado que antes possuía inteiramente me
serão povo, assi que eu são contigo, diz o Senhor, fora restetuído; porém mui estreita e curta foi a
pera te goardar, que achou graça no deserto, o vestedura com que o Senhor me tornou cobrir
povo que restou da espada, por tanto não temas, os largos e compridos bens de que fui despido,
meu servo Yahacob, nem hajas medo, ó Israel, que por que as mais principaes joias assi esprituaes
eu te guardarei de longe, e a tua semente, na terra como terrestes de minha passada riqueza me falta-
onde os têm cativos. Vês aqui essas tuas dúvidas ram nesta segunda casa. A profecia com que se
curadas com palavras e meizinha divina a este alcançavam os segredos de quanto nosso Senhor
efeito somente vindas do céo, e se a queres terreste detreminava fazer a benefício ou dano de tôdolos
pera tua mayor satisfação, e teu atemorizado esprito mortaes, desemparou-me, e não tornou mais a
asegurares, quero evidentemente mostrar-te que vesitar-me; o fogo celeste que dos céos sôbelos
não ha merecimento doutra gente alg~ ua cá baixo sacrefícios descia e os queimava cessou; a arca do
na terra sobre quem deva a graça e favor divino testamento co’as távoas que fez Mossé da lei
repousar, pera que de sua privança te afaste. [...] desapareceo, por que ela e as cortinas que foram
por ele feitas no deserto escondeo Yermiahu na
YCABO concavidade de ~ ua lapa do monte Nebo; o vaso
Bemaventurada seja a hora que aqui arribaste e de Maná que manteve Israel no deserto, Urim e
os pés que ante mi te trousseram; divinas são as Tumim, os Krubim, e madeixa de seda faltaram;
razões de tua boca, e como cousa celeste obram não mal pario alg~ ua molher já mais do cheiro da
em minha alma; mui satisfeito me deixa tua razão carne da santidade; não houve moça na casa onde
nesta parte, mas já que me meizinhaste ~
ua ferida, se degolavam os sacrefícios; não aconteceo desastre
e me certificas que não é passado nem se passará ao sacerdote grande no dia das perdoanças; as
jamais o Senhor a outra gente, que cura me darás chuvas não amataram o fogo das lenhas da orde-
a estoutra chaga? Ó mizquinho de mi, como nança; o vento nunca venceo nem desviou o
levantarei a esperança aos bens que traz as azas dereito pilar do fumo que ao céo subia; não foi
abatidas e quebradas? Não vendo em mi obras achada falta na primícia das espigas, e nos dous
justas onde a arrime, e posto que o senhor a pães nem no pão das faces; estando apertados na
outra gente se não mude, eu como esperarei casa santa pela multidão do povo, quando se
decerem sobre mi favores do céo como soía? E humelhavam achavam-se largos havendo de ser
de minha parte não há merecimentos que me pelo contrairo pois dobrando-se o corpo ocupa-
ajudem? [...] vam mais lugar; não perjudicou em Yerusalaim a
nh~ua criatura, cobra, escorpião ou qualquer outro
DIÁLOGO SEGUNDO, bicho venenoso, nem disse homem a outro quando
no qual se trata a redeficação da segunda iam a Yerusalaim: “Estreito me é este lugar”: todo
casa e todo seu sucesso té ser por Titos isto na primeira casa gozava, e nesta segunda não
destruida, e a consolação de tal perda. aconteceo assi, antes pelo contrairo todas estas
Zicareo, Ycabo, Numeo, interlocutores. cousas socederam. Pois como se pode mitigar a
dor, ficando-me tantas feridas abertas e por soldar?
Bens que faltaram na casa segunda.

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ZICAREO merecessem, a promesa feita a teus padres nela te
Confesso-te que a meizinha da segunda casa não comprisse, e perpetuamente durasse, e queres ver
bastou curar todo o mal que na primeira recebeste, os sinaes desta verdade.
mas foi ~ua visitação e um comprimento que Não te lembra? Vindo Alexandre Macedónio,
contigo quis nosso Senhor ter pera mostrar-te emperador de toda Grécia, sobre Ciro, rei dos
que por ele não faltava, e assi to disse por boca persas, e endereçando seu exército a Yerusalaim
de Yermiahu. Depois que forem compridos os com tenção de offender-te pela confederação que
setenta anos em Babilonia, eu vos vesitarei e tinhas com Dario [...]
comprirei minha boa palavra pera vos reduzir Não te lembra? A alta maravilha que dahi a
neste lugar, mas já que assi seja, inda deste bem pouco tempo o Senhor fez ante teus olhos, indo
que possuías, qualquer que fosse muito desejo malsins israelitas a Seleuco, um dos quatro succesores
saber o que fizeste dele? de Alexandro, encarecer-lhe a riqueza d’ouro, prata
e pedras preciosas que tinhas neste segundo templo,
YCABO e mandou a Eliodoro seu capitão que lhe trouxesse
Mas milhor seria, irmão, que o não soubesses, pois todo o thisouro que nele achasse, e vindo que foi
te há de dar pena em ouvi-lo, e a mi muita a Yerusalaim, entrando no templo pera de todas
desconsolação em lembra-lo. Porém, obedecer-te- suas riquezas o despir, fez-lhe o Senhor ouvir lá
-ei já que assi queres. [...] dentro no santo santorum a ele e aos que consigo
levava, um som de tão terrível e espantoso terre-
Consolo à perda da segunda casa. moto, que desfazia os montes e espedaçava as
pedras, de cujo temor todos começaram a fugir,
ZICAREO. e deixaram só a Eliodoro [...]
Assaz dura e carregada foi esta roda, pois te pisou Não te lembra o primeiro vencimento que deu
os terrestes membros, e te maguou a divina alma, o Senhor a Mathathia Machabeo contra Felipo,
e confesso-te que a carne não pode deixar de capitão de Antiocho, que com só pouca companhia
sentir o que padece, mas não por isso o esprito dos bons de Israel e seus filhos arremeteram contra
celeste nela influido deve engeitar em tal tempo o poderoso exército do imigo (que sobreles viera)
a razão que lhe offeresce consolo, assi que se tuas ao monte donde se havia retirado pera suas
carnes hão padecido, não te haja por isso cegado crueldades, e fizeram nos gentios tão cruel matança
a dor o entendimento. E deixando por agora de que não ficou daquela vez relíquia nh~ ua deles em
disputar se merecias a pena que recebeste nesta terra de Yehudá; e foram circuncisos tôdodos
segunda casa, pois a verdade disso se pode por tua machos israelitas que estavam por circuncir tres
história comprender, venhamos às razões que neste anos e meo havia pela defesa de morte que o
teu lamento moveste. enemigo Antiocho tinha feito? [...]
Dizes que não era necessário levantar quem havia
de tornar a cair, e podera passar sem senhorio
quem havia de tornar a ser escravo dos romanos, DIÁLOGO TERCEIRO,
pois o era já dos Babilónios. Falas apassionado e 26. Ano 5252. Quando entraram os
sem razão; e ouve-me, verás como te enganas: judeos de Castela em Portugal.
quando o Senhor quis que a casa segunda se
fabricasse, não foi com intenção que necessaria- E dos que foram lançados daquele reino sempre
mente se perdesse, antes que se tuas obras o contantes no judesmo, a mór parte se veo a

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Portugal, acordando-se seis centas casas com el-rei olhos e viram sobre si vir ~ua grande multidão de
dom João, segundo daquele nome, em dous cru- mouros a cativá-los porque eram entrados sem
zados cada pessoa que no reino entrasse delas, e salvo conduto nem licença alg~ ua em sua terra; e
ele lhe prometia de os deixar viver em sua lei, e posto que com grandes avexações os arrebataram
aos que se quisessem partir dar-lhes embarcação. e prenderam, segundo o mal e temeroso estremo
Como foram entrados estes corridos israelitas em em que se achavam, receberam o cativeiro por
Portugal, veo logo peste como mensageira do mal vesitação divina e grande remédio. Estes, despois
que ao longe os estava esperando, de que morreram que foram entrados na terra, os outros irmãos
muitos deles à volta dos cristãos. D’ahi a poucos que nela habitavam os resgataram e em sua
dias que arribaram houve alguns que temendo liberdade os puseram, socorrendo-lhes a sua
mais os crueis males dos cristãos inda que tardam necessidade e miséria. Vinda esta triste nova a
que os continos enconvenientes dos mouros detre- Portugal, posto que muitos de meus filhos tinham
minaram passar-se a África e Turquia e pidiram desejo de passar antes seu cativeiro em poder de
a el-rei embarcação segura pera o fazer assi como mouros que na cristandade, espantados do caso
lhes ele era obrigado per sua promessa. Porém, temeroso não ousaram pidir pasaje nem per outra
tendo alg~ ua má tenção concebida, detinha-os em via bolir consigo.
palavras, não lha concedendo nem negando, té Ai de mi, mizquinho, que estas desventuras com
que tão emportunado se vio que a deu qual meus que tu, Mossé e Yermiahu me ameaçastes aqui se
dilitos mereciam e a mi me foi profetizado, porque compriram!
embarcados que foram, cuidando os desventurados Ajuntarei sobre eles males, minhas setas gastarei
israelitas que iam em poder de amigos mui con- neles; queimados serão, com fome e consumidos.
fiados e seguros acharon-se enganados, porque Entrega seus filhos à fome. Não haverá prosperidade
levando-os em alto mar, onde seus gritos e clamores em teus caminhos, mas padecerás força e enjuria
não movessem a piadade a pessoa alg~ ua, ali os e depois serás arrebatado sem haver quem te
ataram de pés e mãos, desonrrando-lhe as molheres possa livrar; molher desposarás e outro dormirá
ante os olhos, e despojando-os de té os últimos com ela; filhos gerarás e não os terás porque irão
hábitos que levavam vestidos. Ó Senhor, já que em cativeiro.
fugiam da vergonha das gentes de tamanha traição
e crueldade como acometeram, assaz consolo nos
era seres tu dela testemunha de quem eles não 27. Portugal Ano 5253.
podiam fugir nem esconder-se e donde o remédio Quando mandaram os mininos
de todos nossos males esperamos. aos lagartos *.
Depois que os assi tão cruamente trataram a
enmenda que a isto deram foi levarem-nos dali às DEPOIS desta assi temerosa fortuna e tempestade,
terras de África no mais deserto lugar delas e ali, não tardou outra sobre mi muito maior, porque
como a gente de peste, os lançaram na praia erma desejando este rei achar alg~
ua razoada ocasião de
e desemparada de todo o socorro humano. Viras avexar-me, mandou saber se havia entrado mais
aqui as criaturas pidir pão e as madres levantarem gente no reino que aquelas das seis centas casas
os olhos ao céo que lhe acodisse, outros convi-
dando-os à deseperação da fome e grande desem- * Este episódio foi ponto de partida para uma narrativa
paro, vireis pera se enterrar fazer as covas; e estando recente de Mário Cláudio: o romance Oríon (Lisboa Don
já nestes últimos fios de suas vidas levantaram os Quixote, 2003).

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como fora o acordo, e como quer que a pressa hábito com que todos meus filhos se cobriram; os
com que de Castela saíam estes corridos filhos sospiros, as lágrimas, os ais com sangue e fogo
meus não lhe deu lugar a entrar por conto nem mesturados que em todas suas casas se ouvia, não
esperar algum a ser o derradeiro, acharam-se mor havendo palavras de consolação pera alívio de
número; todos estes que sobejaram disse El-rei tamanha dor, porque cada um tinha causa pera a
que lhe ficavam cativos e escravos seus, porque esperar; a muitos convidava esta monstruosa cruel-
como a taes os podesse magoar a sua vontade, e dade talhar-se a vida antes do termo que lhe era
esecutar neles sua má tenção, e não bastando pela vontade divina constituído, e outros de sua
quererem-se resgatar pelo preço que os mais míngoa não penderam, mas os maridos, a viuvez
haviam entrado nem per outro algum, havendo- e soledade entre enemigos de suas amadas molheres
-se por minha desventura descuberto naquele arreceavam, e a elas alg~
ua esperança de verem inda
tempo a ilha de São Tomé, cujos moradores eram nalgum tempo suas criaturas as detinha. Finalmente,
lagartos, serpes e outras muito peçonhentas bichas chegados aqueles inocentes ao lugar deserto de
e deserta de criaturas racionaes, onde desterravam San Tomé, que sua sepoltura havia de ser, tiraram-
os malfeitores que à morte eram já obrigados per -os em terra, e ali despiadosamente deixando os
justiça, em sua companhia quis também que entras- foram dos grandes lagartos de que a ilha era
sem as inocentes criaturas de todos estes judeos, povoada tragados quasi todos, e o resto que no
cujos paes parece que ante o juizo divino eram ventre daquelas bichas não entrou, à fome e desem-
condenados. paro se consumiram, somente algum que milagro-
Chegada esta infelice e miserável hora em que se samente daquela temerosa fortuna foi escapado.
havia ~ ua tão fera crueldade de esecutar, vereis Ó Senhor, cujo poder o domínio de todo o
ensanguentar os rostos com as mãos as coitadas universo comprende, de que paciência queres que
madres que dos braços lhe tiravam seus filhos de arme o coração e alma que a não faça pedaços
até tres anos, depenar as barbas os honrados velhos a muita força e ímpeto de semelhantes tribulações?
porque lhe arrebatavam suas entranhas de ante os Vê que nos opremiste e quebrantaste em terra de
olhos, e as mal afortunadas criaturas levantar seus dragões e cobriste-nos com sombra de morte
vivos gritos té o céo, vendo-se afastar tão des- como antes o havia antevisto e lamentado com
piadosamente de seus amados padres em idade estas palavras meu filho David. E sôbelos males de
assi tenra e lastimosa. Lançavam-se aos pés de El- Ingraterra tornaram inda aqui a esecutarem-se
-rei alg~uas, cramando que ao menos as deixassem outra vez estes teus ameaços que contra mi fizeste.
ir acompanhar seus filhos, e nem inda a isto sua Teus filhos serão entregues a outros povos, e
piadade se inclinava. Entre estas houve ~
ua mai que, quando isto virem teus olhos destilarão contínuo
considerada a horrenda e nova crueza sem mestura lágrimas e não terás esforço pera podelo soportar.
de alg~ua misericórdia a seus cramores, arrebatando Por que os dentes das bestas arremesarei neles e
seu filho nos braços da alta nao, dentro no tem- a fúria das serpentes no pó.
pestuoso mar se lançou e fundio com a sua única E eu não ouvirei neste tempo que me chamardes
criatura abraçada. se fordes afligidos.
E já que com estes estremos tão inhumanos e Por isso, cíngete, ó filha de meu povo, com saco
crueis aquelas inocentes almas do mavioso bafo de e envolve-te no pó, toma dó como por um único
seus padres apartadas foram e no poder dos despia- filho, e planto amarguíssimo.
dosos enemigos entregues, quem vos poderia, Ora, pois que tão ásperas penas hei de tua ira
irmãos, contar o luto das entranhas e do exterior padecido, socorre já Senhor e não tardes.

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Quando os fizeram cristãos por força. d’outra se diziam, e os uivos e bramidos dos paes
28. Portugal. Ano. 5257. e maes que fendiam as pedras, e os tigres moveram
a piadade.
ACABADO que houve a morte de arrebatar este Como os tiveram divisos fizeram-lhe ~ ua prática
rei dom João que perseguido me havia tão cruel- de venenosas palavras cubertas de triaga, prome-
mente neste mundo, outro tal meu imigo recebeo tendo-lhes muitos favores no reino se per amor
logo o ceptro em seu lugar. Este não se deteve se convertessem; mas tampouco isto pera move-los
muito como houve a coroa que me não afadigasse, um ponto de sua costância não bastou. De maneira
antes mandou apregoar que todos aqueles judeos que achando-os tão firmes como a seus padres, a
que em seu reino se achavam se fizessem cristãos eles com grandíssima ira arremeteram aqueles
ou se saíssem de Portugal em um certo termo e, executores de minha tentação, e a uns pelas pernas
não se saindo, achados que fossem sendo inda e braços, e a outros pelos cabelos e pelas barbas
judeos, morressem morte natural e perdessem as arrastando per força os levaram té dentro as igrejas,
fazendas por isso. Este pregão muito entristeceo e ali lhe deitaram a sua ágoa, e tocando com ela
todos meus filhos, porque a alma já lhe adevinhava uns e mal alcançando outros lhe impuseram sobre
que mor mal outro que desterro queria aquele isso nomes da cristandade e os meteram em poder
imigo meu acometer, e deliberaram se partir, e de velhos cristãos pera os sogigar à relegião e
com perda de suas fazendas se mal entrouxaram guarda de sua fe.
pela brevidade do termo, e puseram-se aponto de Como teveram esta enjusta e violente obra acabada,
sair-se, mas entendida que teve El-rei a resolução tornaram aos padres que tão angustiados sostinham
dos judeos, e quanto pouco mostravam estimar o já a vida que aborreciam, a dar-lhe outro trago
desterro em lugar da troca de sua lei, começou mortal, dizendo-lhe que seus filhos se haviam
dar a entender sua má tenção, mandando que convertido já cristãos, que o divessem eles assi
todos que no reino havia se recolhessem a Lixboa, fazer se queriam ter vida em sua companhia. Nem
com fama que ali lhes queria dar embarcação; e a isto os velhos se abalaram, té que El-rei lhes
como os teve juntos mandou que os metessem em mandou tirar o comer e beber por tres dias
~
uas grandes casas per nome os Estaos, onde depois contínuos, pera com a angústia da fome os tentar,
que os vio no curral, como ovelhas ao degoleo o que eles também mui animosamente soportaram.
aparelhadas, acabou suas peçonhentas entranhas Vendo El-rei que inda isto não bastava, e que se
de descobrir, e mandou-lhes ali noteficar que ele mais com fome os penasse pereceriam, detreminou
queria se tornassem todos cristãos, e que o dives- usar com eles a violência que havia usado com
sem fazer per amor, ou que fariam últimamente seus filhos; e arrastando-os pelas pernas, outros
per força. Não bastou estes ameaços pera voltarem pelas barbas e cabelos, dando-lhes punhadas no
meus filhos as costas a seu D., antes com costância rosto, e espancando-os, às igrejas onde lhe deitaram
responderam que tal não fariam.Vendo El-rei que a ágoa os levaram. De muitos que grandes estremos
mores forças eram necessárias pera os abalar, entrou fizeram por se defender foi asinalado entre eles
em conselho e acordaram apartar de entre os um, o qual fazendo cobrir a seis filhos com seus
velhos os mancebos de até vintecinco anos, no taleciod, com ~ ua sabia prática esforçando-os a
qual apartamento, lembrando-se daquele fero e morrer pela lei, um a um, com eles todos ao cabo
inda tão fresco mal dos filhos aos lagartos, e se matou, e outros molher e marido se enforcaram,
temendo-o muito, com que palavras tristes vos e aqueles que os quieram levar a enterrar foram
poderei contar as lástimas que de ~ ua parte e matados pelos enemigos às lançadas. Muitos houve

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que se lançaram em poços, e outros das janelas destruir e arrancar do mundo, pregoando os
abaixo se faziam pedaços. E todos estes corpos pregadores nos púlpitos, e dizendo os senhores
israelitas assi mortos os levavam aos algozes de em lugares públicos e os cidadinos e vilãos nas
meus membros a queimar ante os olhos de seus praças, que qualquer fome, peste ou terremoto
irmãos, pera maior medo e temor de sua crueldade que vinham à terra era por não serem bons
os comprender. Com esta violência, contras as leis cristãos, e que secretamente judaizavam; assi que
divinas e humanas ficaram feitos cristãos muitos alcançando alguns intrínsicos imigos a vontade do
corpos, mas nunca nas almas lhes tocou mácula, povo quanto inclinada estava em seu dano, acharam
antes sempre tiveram emprimido o selo de sua aparelho pera meterem em efeito seus maos ânimos,
antiga lei. Quem poderá escapar de tua ira, ó entre os quaes houve dous frades dominicos que
Senhor? Quando com tanta causa se move como saíram pela cidade de Lixboa com crucefixos às
meus dilitos a espertaram; que té cá nestas últimas costas amutinando o povo, e cramando viessem
partes da terra m’abranje, pera terem execução todos em sua companhia vingar a morte do seu
estas crueis sentenças que por boca de teus profetas deus, e com muitos preversos ociosos e gente
has contra mi dado dizendo: macânica que a eles se recolheram, com lanças e
Lançar-te-á o Senhor em tôdolos povos de um espadas nuas em suas mãos, arremetendo contra
cabo da terra até finis terre, ali servirás deuses o fraco e desproveido povo dos mal bautizados e
outros, que tu nem teus padres conheceram e novos cristãos, mataram quatro mil almas deles,
servirás a teu imigo e sede; o qual jugo de ferro roubando, usando todas aquelas crueldades que
porá sobre com fome teu pescoço. em um saco de ~ ua cidade se faz, atassalhando os
E tôdolos que ficarem desta geração má, antes homens, arremesando as criaturas às paredes e
escolheram a morte que a vida, e no dia desta sua desmembrando-as, desonrrando as molheres e
trebulação na terra alhea voltar-lhe ei as costas e corrompendo as virgens, e sobre isso tirando-lhe
não a face assi como eles me voltaram as costas a vida. Houve muitas que prenhes as lançaram das
e não a face, e adoraram deuses alheos em suas janelas, sôbelas pontas das lanças que já em baixo
terras. as estavam esperando, e assi atalhavam o caminho
Porém a verdade é que se nos esquecemos do às inocentes criaturas antes que arribassem ao
nome do nosso D., e alevantámos nossas palmas mundo onde o céo piadoso as mandava. Entre
ao deus alheo; não deixa o Senhor de escuadrinhar estas se achou ~ua que esforçando-a a muita ira e
isto, que é com força, porque ele sabe os secretos sua honra a um frade que a queria forçar, matou
do coração. com ~ uas facas que o mesmo frade trazia. Se este
assi terrível mal durara daquele ímpeto acabaram
29. A matança de Portugal. tôdolos novos cristãos que na cidade de Lixboa
Ano 5266. habitavam, mas proveendo a misericórdia divina
com as justiças da terra que acodiram, e tras isso
NÃO bastou have-los trazido com tanta sem El-rei, que com diligência veo a socorro da vila
razão e injustiça à sua fe, afastando-os da lei com de Abrantes, onde então se achava, cessou aquela
que naceram, mas inda assi os não deixavam viver matança temerosa.
quietamente, denostando-os, enjuriando-os, Ó Senhor piadoso, olha de tua altíssima morada
abatendo-os, e tratando-os com baixeza e desprezo, o que padecemos e socorre; e pera testemunha
e isto já o levaram em paciência se lhe não que o secreto de nossos corações nunca de teu
levantaram aleives e falsos testemunhos pera os conhecimento se mudou.

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Vê que per amor de ti somos mortos cada dia, este rei dom João, achando em sua vontade apa-
e somos reputados como ovelhas pera degolar relho disposto pera isso. E porque nhum mal
aparelhadas, e esta irosa sentença que por teu podia ser mais riguroso que o de Castela, acordou
mandado sobre mi deu Yehaschel. que fosse também este o castigo e pena de meus
Espada, espada, aguçada e açacalada pera matança dilitos em Portugal, mandando a Roma por outro
se aguçou e açacalou, esta será no meu povo, esta semelhante monstro como o de Espanha, o qual,
se desbainhará contra os principaes de Israel, esta inda que ao presente há poucos anos que é
é espada de matança grande que os penetrará arribado, tem feito já um estrago cruel e temeroso
pera lhes desleixar os corações, e pera que muitos naquele mal bautizado povo. Sua vinda lhes
caiam ante suas portas; vela aqui esecutada nesta decorou logo a figura, desenquietou o repouso de
matança. seus espritos, e as almas de dó e triteza lhes
Ora, pois tua ira padecemos, esperta, porque cubrio; tirou-os do descanso de suas casas, e nas
dormes? Ó Senhor esperta-te, não te alongues de escuras prisões os faz morar, onde com ânsia e
nós pera sempre. Por que escondes tua face? Por contínuo sospiro vivem; porque ali lhes arma o
que te esqueces de nossa aflição e opressão? Sendo laço com que caiam no fogo em que se queimem;
já nossa alma espojada no pó e nosso ventre à ali os marteriza de maneira que vêm a matar seus
cara, da terra pegado, levanta, ajuda-nos e rime- filhos com suas mãos, a arder seus maridos, privar
nos por tua bondade. da vida a seus irmãos, a fazer orfãos, multiplicar
Tras já sobre eles o dia mao, e com dobrado viúvas, empobrecer ricos, destruir poderosos, de
quebrantamento (do que nós havemos padecido) bem nacidos fazer ladrões, e de recolheitas e
quebranta tu a eles, ó D. das vinganças. honestas molheres semear os lugares torpes e
infames, pela pobreza e desemparo a que os traz;
tem com fogo consumido té’gora assaz grande
Ano 5291. Cap. 30 número, não um a um, mas de trinta em trinta
Da Inquisição de Portugal. e de cincoenta em cincoenta juntos lhes dá a
pena; e ao tempo que os abrasa e destruie reduze
DESTA tribulação a quinze anos socedeo no grande povo cristão, que se glorea e alegra de ver
reino el-rei dom João, terceiro deste nome, e com estar ardendo meus membros na fogueira que
sua vinda muito maiores receos e angústias em atiçam e acendem com as lenhas trazidas deles às
minha alma sobrevieram pela má inclinação que costas de até mui longe. Andam estes mal bau-
sendo príncipe contra este aflito povo mostrou; té tizados tão cheos de temor desta fera, que pela
este tomar a possissão do reino, haviam-se os rua vão voltando os olhos se os arrebata, e com
novos cristãos tanto engolfado no mundo e seus os corações incertos e como a folha do árvore
enganos que quasi iam esquecendo sua antigua lei movediços caminham e se param atónitos, com
e perdiam o temor daquela fonte donde nos temor se deles vem travar. Qualquer pancada que
mana a vida, com a muita riqueza que adqueriam dá esta alimária, por longe que seja, os altera e
dinidades e ofícios nobres que no reino alcançavam, como se lhes dera nas entranhas a recebem, porque
e acharem-se já pacíficos porque imitavam muito neste mal são todos um corpo a padecer; com
ao povo cristão, dado caso que o secreto de suas receo metem o bocado na boca em suas mesas, e
almas nunca o mudaram. Estando eles neste estado, a hora que o repousado sono a tôdalas criaturas
detreminaram minhas culpas desenquietar-me e é concedido, esta os desenquieta nele e sobresalta;
perseguir-me, e tomaram por verdugo e esecutor as alegrias e festas de casamentos ou partos, em

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tristeza ou torvação lhes trastorna; finalmente mil o Senhor: “Pois assi é, eu esconderei minha face
tragos mortaes lhes faz englutir cada momento, deles, e já que me provocaram a endinação naquilo
porque não basta dar a entender por exteriores que não é D. medo e pavor haverá dentro em suas
sinaes serem cristãos té que lhe vê com fogo as casas.
entranhas. Um de mil males que lhes acarrea esta Porque a terça parte trarei ao fogo e cozê-los-hei,
alimária, não vos saberia, irmãos, por estremo como a prata é cozida, e prova-los-hei assi como
explicar, por que são enfinitos os modos do seu soe ser provado o ouro.
marteiro; sei vos dizer que com seu temor são E seu ouro será em desprezo, sua prata e seu ouro
saidos muitos deste mal bautizado povo fugindo os não poderá livrar no dia da ira do Senhor;
da terra que pisava tão peçonhenta bicha, e deles, porque segundo seus caminhos usarei co’ eles, e
antes que entrassem nas barcas, com suas molheres segundo suas justedades os julgarei té que conheçam
e filhos os arrebatou, e das amargas prisões os que eu sam [sou] o Senhor, que pois pera trás
entregou ao fogo; outros antes que chegassem à foste, por isso estendi minha mão e destruí-te.
nao que pera trazê-los os esperava, com a soberba E quando levantardes vossas mãos esconderei meus
do mar foram fundidos; muitos de dentro delas, olhos de vós, e posto que multipliqueis oração, per
e do mais secreto lugar onde se escondiam os nhum modo vos ouvirei, porque vossas mãos são
tirou e em suas englutidoras chamas os ardeo; de cheas de umicídios, e pela ventura algum destes que
maneira que aqui fui preso com os mesmos laços eu quiser punir poder-se-há esconder nas encobertas
que armado tinham contra mi tôdolos profetas lapas ou escondedouros que eu o não veja, por
tanto tempo antes: disseram e comprio-se. certo não, pois eu encho o céo e a terra, diz o
Lançar-te-há o Senhor em todolos povos de um Senhor, e sam [sou] D. de cerca e não de longe.
cabo da terra té o fim da terra. Ali servirás deuses
outros que tu nem teus padres não conheceram, 31. Dos que sairam e saem de Portugal
e entre estas gentes não acharás repouso nem desd’o ano 5291
haverá onde possas pôr a planta do teu pé segu-
ramente e farte-há o Senhor que contino te basta DOS que com tanta angústia e perigo das cruas
o coração, e tragas os olhos húmidos, e tristeza na unhas desta alimária escaparam e ultimamente do
alma, e estará pendurada tua vida num fraco fio reino português se saíram, alguns em estranhos
ante ti; temerás de noute e entre dia; e não te reinos pararam mal, sendo presos na Espanha,
fiarás de tua vida, antes dirás pela manhã, “Ó detidos em Frandes, mal vistos e recebidos em
quem me desse a tarde”, e à tarde dirás, “Ó quem Inglaterra e França; co’as quais avexações muitos
me desse a manhã”, pelo grande temor de teu suas fazendas consumiram, e co’elas as vidas e os
coração que temerás, e pelo que verás com teus corpos acabaram; estas fortunas já que os arribava
olhos. em Alemanha de trabalhados e afligidos assaz
E inda que tu, Israel, sejas costrangido, e adorares morreram por esses Alpes co’estrema miséria e
deuses outros e os servires, denuncio-vos hoje que desemparo; a muitos ficando-lhe as molheres viúvas
certíssimamente morrereis; e eu inorante, escondido e chegadas a hora de parir, as quaes parindo
já no hábito de cristão, parecia-me que com isso naqueles frios e destemperados caminhos viras um
salvava a vida, e é pelo contrairo. novo modo de desaventura padecer; e não bastando
Engordou e repostreou Israel, desemparou o D. inda estas fadigas, levantou-se-me o mais cruel
seu fazedor e foi ingrato à pedra de sua salvação. perseguidor que desque perdeo a casa teve Israel,
Da pedra que te gerou te esqueceste, e disse então cujo nome era João dela Foia. Este os esperava no

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estado de Milão, e ali prendia carros cheos deles, que fiz, como tanto tempo desatinei e inda agora
e porque seu poder não se estendia a matar, de duro”. Antes cada um deles vai com seu mao
té o derradeiro hábito os depojava, dando às caminho adiante como cavalo na guerra já revolto
fracas molheres mil tormentos porque confessassem, e desatinado. Na verdade, a cegonha no ar conhece
e aos cansados velhos por que descobrissem o que seus tempos apropiados, a rola, o grou, a andorinha,
levavam e dissessem d’outros que vinhão pera os guarda cada um o tempo de sua partida, e o meu
ir esperar e prender, de maneira que este empo- povo não conheceo isto do Senhor (que este é o
breceo a muitos e os trouxe a término de dese- tempo que se partam a servi-lo). E dizeis em
peração co’a miséria; assi que saindo daquela desculpa: “Sábios somos, a lei do Senhor nós a
venenosa bicha, cai nas mãos e aspereza de outras temos connosco”.
estranhas gentes, e uns comeo o mar e inda vai Pois eu, o Senhor que o coração escuadrinho e
comendo, e outros nas terras povoadas e desertas os rinhões enquiro, pera galardoar cada um segundo
se consumiram e consumem. sua via e conforme ao fruto de seus pensamentos,
E dos que co’a vida escaparam a maior cantidade ao que aparelha as riquezas sem justiça e dereitidade,
conheceo logo a mercê que do Senhor haviam ajuntando-as sem meu serviço, no meo de seus
recebido; e pasaram-se às terras onde a liberdade dias as deixará, e per derradeiro ficará necio e
lhes concede tornar à antiga e verdadeira lei de pobre de conselho.
seus padres, que por tantos anos atrás haviam já E não fartarão sua alma nem suas entranhas satis-
deixado e esquecido. Outros, saídos que foram da farão, porque foram suas riquezas tropeço de sua
tormenta, em muitos portos da cristandade anco- maldade. Assi que purgarei de vós outros os reveis
raram de novo e neles morrem e acabam alguns e os desobedientes contra mi; da terra de suas
com tristeza e secura de suas almas sem chegarem moradas os tirarei e à terra de Israel nhum virá.
à fonte, não sabendo desenviscar as asas do muito E acontecer-lhe-há como àqueles que no deserto
viço e riquezas com que o mundo os acena e ficaram por seu pecado; afirmando-se esta profecia,
inda chama; assaz bem craro e mostra haver-se todos os que me agravam não verão a terra
aqui comprido todas estas proféticas palavras: prometida a seus padres.
Farei que, atemorizados rodeem pelegrinando Serão vinte mil almas as que são passadas fora dos
tôdolos reinos da terra e sejam maldição, espanto, termos da Europa a receber o jugo do judesmo,
escárnio, e deshonra em todas estas gentes entre desistimando os ameaços que o espritual imigo lhes
quem andarem afadigados e corridos. faz, mostrando-lhe a estrema pobreza de Turquia
A terça parte chamará o meu nome, e eu a que co’a boca aberta os espera, e o trabalhoso
ouvirei; eu disse “Povo meu és tu?” e ele dira: cativeiro dos turcos e mouros. Aquele misericordioso
“Senhor D. meu.” rei e de tôdolos mundos senhor universal por
E lembrar-se-hão de mi os que de vós outros sacrefício de suas culpas lhe receba. [...]
escaparem entre as gentes onde estão cativos e
conhecerão que eu sam [sou] o Senhor e que não Consolo humano nas tribulações
ei falado em vão quando sua tribolação lhes de Israel
profetizei.
E os outros que inda não querem tornar à minha [...]
lei e se desculpam não falam verdade em quanto A quarta via com que te consoles inda desta
dizem, e nhum deles há que se arrependa do seu misericórdia pende, e é que além de lhe fazer
mal, pera que diga em seu coração: “Ó coitado nosso Senhor estes degraos à grande montanha

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de castigo que tu necessariamente de passar havias, de fogo que hás recebido; e verdadeiramente, se
pera que a podesses inda com menos fadiga subir, bem olhares, foi grande a sua misericórdia em te
de quando em quando com alg~ uas salvações de ser cruel, porque segundo te ia penetrando as
vesita, e com vingança dos que te offendem te entranhas a peçonhenta chaga, em poucos anos
consola, pelo mao ânimo com que esecutam a mais matara a memória do judesmo em teus
pena de teus delitos, [...]. filhos, e os membros que tens já fora do perigo
Sisebuto, rei de Epanha que depois dos Romanos nhum outro remédio mais piadoso bastara salva-
foi dos que te ofenderam o primeiro, na mor -los: deixa pois cortar a carne que se vai apodre-
felicidade de seu estado e glória de seu reino com cendo se queres vida; amansa a esquiva dor que
peçonha foi morto, poucos dias depois que te a rigorosa cura te acarrea com o grande benefício
avexou, e pôs logo nosso Senhor outro em seu que recebes, e deita estas ágoas de consolo sobelas
lugar que te favoreceo. Felipe, rei de França que labaredas da Inquisição, com que o ardor que
de toda tua riqueza te despio, e com tanta miséria padeces se enfraqueça. [...]
e pobreza de seus reinos te mandou desterrar, dali
a nove anos saindo à caça o levou um cervo trás Capítulo como tôdolos mortos de Israel
si por lugares ásperos e desviados, té dar com ele hão de resuscitar.
de ~ ua montanha abaixo onde se fez com seu
desatinado cavalo em mil pedaços. El-rei dom NUMEO.
João o segundo de Portugal, que mandou os Por estas razões que sobre esta tua dúvida co’o
mininos aos lagartos, casando depois seu filho Senhor passei, veras como inda té hi sua mise-
dom Afonso com a filha de el-rei dom Fernando ricórdia se estendeo contigo. Veo sobre mi a mão
de Castela, no milhor tempo de seus contenta- do Senhor e em esprito me tirou fora, e deixou-
mentos correndo o noivo ~ ua carreira se lhe atre- -me no meo de um campo raso que estava cheo
vessou o demónio e do cavalo abaixo o derribou, de ossos, e fez-me andar ao redor deles; e havia
de que ao seguinte dia pereceo; e não nos tomando grandíssima multidão na sobre face daquela planura,
inda por castigo este rei lhe foi dada logo peçonha os quais eram em estremo secos, feito que isto
com que o privaram da vida e grandeza, porque houve, dise-me: “Filho de homem, pela ventura
havendo-lhe já seu pecado morto seus heredeiros, estes ossos parece-te que vivirão?” Eu respondi:
ficou o seu reino na mão do maior enemigo que “Senhor D., tu o sabes”. Tornou-me a dizer: “Pro-
ele tinha [...]. phetiza pois sobre estes ossos e dize-lhes: ‘Ossos
O quinto caminho é o grande bem que resulta secos, ouvi a palavra do Senhor que assi diz: ‘Eu
dos males de Espanha e Portugal que tu tanto influirei em vós outros esprito e vivireis, porei
choras, porque quando os membros de erpes se sobre vós nervos e vestir-vos-hei de carne e cobrir-
vão comendo, razão é que com ferro ou fogo -vos-hei, de couro, e pôr-vos-hei alma e vivireis,
sejam talhados pera que se salve o mais do corpo, e conhecereis que eu sou o Senhor’”. Prophetizei
e não passe tanto mal adiante, e em tal tempo o assi como fui mandado, e prophetizando subio
çurugião cruel é meizinha. Assi que estando tu já um sono, e trás ele logo um terremoto, e chegaram-
de tua antiga lei esquecido, fingindo com todas -se os ossos, osso a seu osso, e esperei, e vi logo
tuas forças cristandade por salvares a vida e fazenda sobre eles nervos, trás isso subio carne que de
somente, em memória da alma que nisso arriscavas, couro sobre ela estava cuberta, mas não era porém
razão era que sem doença tão perigosa e mortal neles esprito. Disse-me então:“Prophetiza ao esprito,
não arreceasse o Senhor curar-te com os botões prophetiza ao filho de homem”. E dize ao esprito:

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“Assi diz o Senhor D.: ‘Vem, o esprito, das quatro ZICAREO. Pois começa. Psalmo
regiões e assopra nestes matados pera que vivam’”. YCABO.
Prophetizei da maneira que me havia mandado, e Quando nosso Senhor restetuir
veo neles o esprito, viveram e estiveram sobre seus a Ziom a sua antiga glória,
pés um exército poderossíssimo e grande. Levan- cuidaremos que o bem não é de siso
tados que foram, imaginando eu em ~ ua tamanha e que estamos sonhando entre dia,
maravilha o que seria, disse-me o Senhor: “Filho mas depois que espertarmos a memória
do homem, estes ossos são toda a casa de Israel e a verdadeira remissão se descobrir
que dizem: ‘Secaram-se nossos ossos, pereceo nossa encheremos nossa boca de riso,
esperança, talhados somos sem falta’. Por isso nossa língua de música e alegria.
prophetiza e dize-lhes: ‘Assi diz o Senhor D.: ‘Eu E nas gentes se andará dizendo:
abrirei vossas sepolturas e tirar-vos-ei de dentro “Grandes maravilhas fez o Senhor co’estes”.
delas, o povo meu, e meter-vos-ei na terra de E nós assi de certo o confessamos,
Israel, e sabereis então perfeitamente que eu sou que grandes bens nos há feito o Senhor,
o Senhor quando abrir vossas sepolturas e vos com os quais, de descontentes e tristes
tirar donde estais sepultados, o povo meu, e darei dos males que fomos padecendo,
meu esprito em vós outros e vivereis e assentar- mui alegres já agora nos tornamos,
-vos-hei em vossa terra e sabereis que eu sam vitoriossos e cheos de louvor.
[sou] o Senhor, o que falei e farei’.” [...]
E sem dúvida fará nosso Senhor
Bens de Israel restauração ao nosso cativeiro
como ele rega o árvore em secura
[...] e os que vão com lágrimas semeando.
NUMEO. Tarde é, recolhamo-nos. Com prazer segarão por derradeiro,
ZICAREO. Que te parece, irmão Ycabo, das vivas choroso vai o bom semeador,
e doces razões que Numeo te ha dado, certo mas ele tornará d’outra figura
foram divinas. trazendo molhos e feixes e cantando.
YCABO. Nem as tuas foram de menor importância,
espero naquele inmenso e todo poderoso Senhor FINIS LAUS DEO.
que ~ uas e outras mensages arribem presto.
ZICAREO. Eu o desejo.
YCABO. E eu o espero.
NUMEO. E eu o tenho por certo.
ZICAREO. Irmão Ycabo, por este piqueno
caminho nos ser mais agradável, começa, rogo-te,
alg~ua doce cantiga daquelas que as tuas antigas
serranas pelos outeiros de Ziom acareando seu
gado costumavam de cantar, e bem te lembrará
inda, pois muitas delas recopilou o filho de Isai.
NUMEO. Mui bem has dito, Zicareo, sairá alegre
Israel pois entrou triste.
YCABO. Quem reusará o que mandais?

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cousas vãs, que a ociosidade descobre aos homens
Imagem enfadados, que, de não terem que fazer, andam
traçando na fantasia mil castelos de vento, tão
da Vida esquecidos de si, que, nascendo para verdadeiro
trabalho, não buscam senão falso descanso.
Donde vêm a não fazerem cousa com que deixem
Cristã de si memória. Assim como é necessário fundir no
fogo o metal, para se dele fazer uma imagem e
estátua que depois fique e permaneça, assim é
FREI HEITOR PINTO * necessário fundir nossas vidas no fogo dos trabalhos
e bons exercícios, para daí sair uma imagem de
boa fama, dirigida à honra e serviço de Deus, a
DIÁLOGO DA JUSTIÇA
qual depois da nossa morte dê testemunho de
nossa vida. Eurípedes diz que o trabalho é pai da
Interlocutores: Um Doutor Teólogo, um Matemático,
boa fama, e Hermiónio afirma que do trabalho
um Jurista e um Cidadão
e experiência aprendeu a ciência.
Lêde o II capítulo do Génesis, e achareis estas
CAPÍTULO I
palavras: «Pôs o Senhor Deus o homem no paraíso
da deleitação, para que obrasse, e o guardasse». Diz
Da perda do tempo e da definição da justiça
S. João Crisóstomo na Homilia XIV sobre o Génesis,
declarando este lugar, que a razão por que Deus
Achando-se um dia quatro amigos praticando,
quis que Adão no paraíso terreal obrasse, e não
um deles doutor em Teologia, outro filósofo mate-
estivesse ocioso, é porque a ociosidade é mestra de
mático e um estudante em Leis, e um cidadão,
toda a malícia. S. Jerónimo em uma Epístola diz
disse o teólogo, em cuja casa eles estavam:
que havemos sempre de trabalhar, para que o
– Eu sempre tive para mim, e tenho ainda agora,
diabo nos não ache ociosos. S. Agostinho, no
que uma das grandes perdas que há no mundo
primeiro de De Civitate Dei, tem que foi pior a
é a do tempo: porque é ele precioso muito, e, vale
Roma destruir Cartago, porque a seguridade, que
a peso de ouro, e, perdido, não se pode mais
lhe ficou, pariu a ociosidade que foi causa de sua
cobrar. E por isso o pintaram os antigos calvo na
perdição. S. Bernardo chama à ociosidade sentina
traseira parte da cabeça, significando nisto que
e bomba, onde todos os males se ajuntam: e
depois que se nos passa não achamos em que lhe
noutra parte madrasta das virtudes. E a sentença
pegar para o determos. Por isso diz S. Paulo na
de Seneca é que a ociosidade é morte e sepultura
Epístola aos Gálatas: «Em quanto temos tempo,
do homem vivo.
gastemo-lo em boas obras.» Faz-nos o apóstolo
Donde se colhe que os homens ociosos são inimi-
esta lembrança, para que com ela, e com a termos
gos de si mesmos, pois, deixada a diligência dos
de nossas obrigações, não percamos o tempo. E
bons trabalhos, que é uma mina de bens, se dão
perde-se ele, quando se gasta em vícios e em
à ociosidade, que é um abismo de males. E o que
pior é, que não cuidam que ganham o tempo,
senão quando o perdem: e eles não ganham com
* Frei Heitor Pinto. Imagem da Vida Cristã. Com prefácio e
notas pelo P.e M. Alves Correia Lisboa: Liv. Sá da Costa esta perda senão sua perdição. E, havendo de
Edit., I-III: 1940; IV: 1941. buscar tempo para passar cousas, buscam cousas

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para passar tempo. E, enfim, eles não o passam, daí me ficar alguma cousa, de que me possa
mas ele passa por eles. Para que é mais, senão que nalgum tempo aproveitar.
Heráclides Lício fez um livro dos louvores do – Pois o senhor doutor teólogo, disse o matemá-
trabalho, como o refere Ravísio Téxtor no segundo tico, começou a falar do tempo, será bom disputar-
proémio da sua Oficina. mos se o há aí e que cousa é. Porque o tempo
– É tão fundado, disse o jurista, esse juízo, que não tem senão duas partes, passado e futuro, que
sem ele será quem lhe contrariar. E daí vem que o instante, como dizem os filósofos, não é tempo,
quase todos os homens de engenho se queixam mas um ponto, onde se as suas partes se ajuntam,
da perda do tempo como de cousa preciosíssima. ca segundo sentença de todos os matemáticos o
– É verdade, disse o teólogo, mas deviam-se queixar instante se há com o tempo da maneira que se
de si, quando se disso quisessem queixar: porque há o ponto com a linha, porque tão indivisível é
eu vejo-os chorar porque perdem o tempo, e um como o outro, e pois o ponto não é linha,
calar a culpa, por que o perdem. E para nos nós logo nem o instante é tempo. Assim que, pois o
aproveitarmos dele, e não caírmos na culpa dessa tempo não tem mais que duas partes, passado e
perda, já que aqui estamos juntos, pratiquemos futuro, e o passado já se acabou, e o vindouro está
nalguma cousa de doutrina, e tratemos alguma por vir, parece que o não há aí, pois das quan-
boa questão. tidades somente aquelas se dizem ter existência,
– Isso, disse o matemático, será muito bom, por que cujas partes têm ser em sua realidade.
se não possa dizer por nós o que diz Platão, que – Nessa primeira questão, disse o jurista, não
os amigos são ladrões do tempo. E não podem eles tenho eu nenhuma dúvida, porque, pois nós
fazer-nos mor dano, que roubar-nos o tempo de estamos em tempo, e o temos para nele praticarmos,
nossa. vida, sendo tão breve e irreparável. claro é que o há aí. Quanto mais que vós, para
– Não sei, disse o jurista, como se pode chamar provardes que não há aí tempo, mostrais que o há
breve o tempo da vida, pois o tempo de dez anos aí, pois dizeis que tem ele duas partes juntas a um
se chama longo, como tem comummente os nossos ponto e não se podem chamar partes, senão em
doutores, segundo Bártolo na Lei Primeira, ff. de respeito do todo. E para os argumentos não faltarão
superficiebus. E a vida dura muito mais. respostas: Não me pesaria praticarmos nesta
– Não é inconveniente, respondeu o matemático, matéria, se cá os senhores nisso consentirem.
chamar-se uma mesma cousa longa e breve – Consentirão, disse o matemático, porque a
segundo diversos respeitos: um monte pode-se amizade consiste principalmente no consentimento
chamar alto em respeito doutro baixo, e baixo em das vontades, como diz Platão, de quem o tomou
respeito doutro alto, como afirma Aristóteles nos Cícero na sua Amicitia. E como todos sejamos
Predicamentos: assim o tempo de dez anos é longo amigos, quererão eles o que nós quisermos.
cotejado com um mês, mas em comparação da – Eu, disse o cidadão, quero o que vós quereis,
eternidade, diz Séneca, escrevendo a Lucilo, que é mas queria que quisésseis vós o que eu quero.
tão breve que se compara a um ponto, e menos – É tão longa, disse o teólogo, essa matéria do
ainda. E dele parece que o tomou Plutarco no tempo, que ela no-lo não dará para lhe darmos
livro que fez do ensino e criação dos meninos, fim. E os mesmos filósofos parece que a trataram
onde escreve a mesma sentença. a fim de nunca lha darem. Essoutra matéria de
– Eu, disse o cidadão, não sei nada de disputas, justiça é proveitosa e parece justiça tratarmos dela.
mas folgarei muito de as ouvir, principalmente se [...]
forem da justiça e governança da república, para

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DIÁLOGO DA VIDA SOLITÁRIA como nossos conceptos são vários, convém comu-
nicá-los com várias pessoas, porque a prática há-de
CAPÍTULO VIII se acomodar aos ouvintes. E isto têm os que
andam nas côrtes dos príncipes, e servem a senhores,
Do proveito do silêncio, e do perigo da que acham diversas pessoas com que praticar, o
muita prática, e do engano e vaidade do que têm todos os que tratam negócios, e têm vida
mundo política, que é impossível na solitária. E, pois nela
se perde o bem da prática, cousa tão proveitosa
– Se é verdade, disse o italiano, o que diz Aris- e necessária para a vida humana, não sei que
tóteles, que ao sábio nenhuma cousa, é nova nem razão aí há para dar tão excessivos louvores a
peregrina, eu confesso que o não sou, porque quem está longe de os merecer.
dissestes vós muitas para mim de muita novidade – Uma árvore, disse o português, se lhe alimpais o
e admiração em louvor da vida solitária. Mas um tronco, sobe mais para cima, e faz-se mais frutífera,
defeito acho eu nela, e é falta de prática e conver- quanto se lhe corta das vergônteas de baixo, tanto
sação, e parece que um solitário não terá conten- se lhe acrescenta nos ramos de cima: assim o solitário,
tamento, por não ter com que o ter, porque, sem quanto vai mais cortando das conversações e
dúvida para mim não há cousa mais gostosa que contentamentos humanos, tanto vai mais acres-
praticar e conversar com homens discretos, em centando e subindo por contemplação aos divinos.
especial se são lidos, e de rara erudição. Assim como Deus não deu o maná e pão do céu
– Isso é verdade, disse o framengo, porque onde aos filhos de Israel, senão depois que se lhe gastou
não há prática, não pode haver gosto perfeito. E, a farinha do Egipto, assim não dá Deus aos homens
para prova disto, não quero mais que esta que consolações espirituais, senão depois que deixam as
aqui tivemos. ¿Que gosto há aí que se possa corporais, ca repugna haver em uma alma no mesmo
igualar com o desta prática? ¿Como pudera eu tempo duas consolações contrárias uma a outra: e
saber quantas cousas boas aqui ouvi, se não fora quanto mais os solitários deixam as da terra, tanto
esta comunicação? mais alcançam as do céu.
– Mas ¿como as dissera eu, disse o português, se E, pelo contrário, os que andam nos paços dos
as não aprendera no repouso solitário? príncipes inquietos e derramados, servindo a senho-
– Dizei vós, disse o framengo, o que quiserdes, que res, ou negociando suas cousas, quanto mais buscam
eu digo que a conversação e boa prática é um doce descanso, tanto menos o acham, porque querem
pasto para a alma, e que deixá-la, e tomar vida repousar em cousas que não têm repouso, e estancar
eremítica, é grande tormento, pois é tirar ao coração com suas pequenas mãos os grandes rios das
aquela familiaridade e doce companhia, que foi cousas do mundo, que vão com contínua fúria e
largo tempo o mantimento, com que ele se sus- inundação dar consigo no mar da morte. E as
tentava, por onde está claro que o solitário, apartado mesmas práticas e conversações os vascolejam, e
de toda a conversação, sempre lá andará suspirando inquietam, e entristecem, e lhe geram mil desgos-
por cousas de seu contentamento, salvo se de todo tos, e contendas, e ódios, e invejas, e dissensões, e
o perdeu das do mundo. muitos outros males. Os rios nas fontes se podem
– Não há aí que debater, disse o italiano, senão tapar ou desviar, mas, depois que se ajuntam águas
que é a prática cousa excelente, pois nos foi dada com águas, cheias com cheias, é tamanho o ímpeto,
para explicar nossos conceptos, assim como nos que leva e destrue quanto acha diante: assim as
foi dada a escritura para explicar nossa prática, e contendas, e porfias se podem logo atalhar no

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princípio, e soldar quaisquer quebras, mas, depois rio aprender a calar. E, à verdade, ele a diz, porque
que se ajuntam palavras com palavras, injúrias o silêncio não dana a ninguém, e o muito falar
com injúrias, erros com erros, vem tão arrebatado faz mal a muitos. Não há espadas no mundo que
o rio da indignação, e com tanta fúria, tendo mais sangue tirem, e que mais gente matem que
tantas acolhidas de ira, e rancor, que destrue os más línguas. A língua é de feição de ferro de
campos das vidas e das almas. Não sei qual é a lança, mas muito mais perigosa é danosa, porque
causa, por que tanto louvais a língua e a prática, a lança fere o corpo, e a língua a alma: a lança
porque, caso que algumas vezes aproveitam, pela põe em risco a vida, e a língua destrue a honra:
mor parte danam. Dizia Simónides, como refere a ferida da lança fàcilmente se cura, mas a rotura
Plutarco, que de calar lhe não pesara nunca, e de da fama tarde ou nunca se solda. Muita conta se
falar se arrependera muitas vezes. No livro da deve ter com a língua.
Criação dos Filhos, diz o mesmo Plutarco que o Boca que sempre fala é bolsa sem cerrais, e porta
silêncio bem ordenado é grande sabedoria, e de sem ferrolho. No livro dos Números mandava Deus
mor excelência que a prática. Plínio diz que não que a panela do defunto que estivesse sem
é menos de orador saber calar que saber falar. sapadeira fosse imunda. ¿Que cousa é mandar
Pítaco diz que quem não sabe calar, não sabe Deus que a panela não estivesse com a boca
falar. E daqui veio Pitágoras, aquele que foi tão descoberta, senão mandar que cerremos as bocas,
avaro de palavras como pródigo de obras, a ensinar e tenhamos grande recado na língua? Mas isto
a calar, assim como outros ensinam a falar: de não fazemos nós: e o que pior é, que, pela mor
maneira que a sua retórica mais consistia em saber parte, quanto cada um tem menos de ciência,
calar que em saber falar: porque entendia ele bem, tanto tem mais de prática, e às vezes tão salobre
quanto mal faz a língua e as muitas palavras. E, por cima de escandalosa, que se não pode nem
porque não seja tudo alegar com as dos gentios, deve sofrer, em especial quando os que falam se
digo que Salomão, o mor sabedor dos mortais, diz põem a desembocetar seus maus pensamentos, e
nos Provérbios que o muito falar não é sem pecado, seus ódios e iras, e invejas, porque a inveja é a
e que o que refreia sua língua é prudentíssimo. E pedra de aguçar, em que se afiam as línguas dos
noutro lugar dos mesmos Provérbios diz que a maldizentes, para cortar famas e honras alheias,
morte e a vida estão nas mãos da língua. A boca tendo nas suas bem que coser e cerzir, e ainda que
há-de ser fechada com aldraba da prudência, de remendar. E é cousa estranha que, como os
tal maneira que primeiro as palavras toquem na praguentos encetam as honras dos bons, não des-
razão que na língua, e não saiam sem licença do cansam até que de todo as não atassalhem e
juízo, que há-de guardar a porta da boca. Isto é espedacem, e assim andam matando famas vivas, e
o que dizia o Profeta no salmo: «Ponde, Senhor, fazendo delas anatomia no mundo, sem se
guarda à minha boca, e porta de circunstância a lembrarem da conta que lhe Deus há-de pedir,
meus beiços». como homens que cuidam que nunca hão-de
Lêde a Divina Escritura, tomai na mão os livros morrer, e que têm a vida por sua para sempre de
dos santos doutores, e vereis claramente quão juro e herdade. E daqui vêm a nunca se emen-
grande conta devemos ter com as palavras, como darem, antes murmuram cada vez mais, cevan-
com descobridoras dos corações, ca, como diz o do-se em roer famas de virtuosos: e assim gastam
antigo provérbio: «pelo canto se conhece a ave», suas vidas em falar nas alheias, roubando e pondo
Santo Ambrósio, no seu primeiro Dos Ofícios, diz a saco as honras dos homens, falando tão sem tino
que sábio é o que sabe calar, e que nos é necessá- que o perdem, tirando as rédeas à língua. Assim

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como os vasos vãos tinem mais que os cheios, que de colóquios, porque os muitos colóquios,
assim os ignorantes, pela mor parte, falam mais em especial se são odiosos, causam muita torvação,
que os discretos, e fazem mais mal. Assim como e os muitos negócios e tráfegos geram dosgostos,
o rio que muito enche e sai de madre, faz muito escalam a consciência, e inquietam o coração,
lodo, assim o que muito fala, e se espraia em fazendo-o andar à caça com grande porfia, sem
palavras supérfluas e odiosas, suja a muitos e muito matar com ela senão a si. E daqui vem viverem
mais a si. S. Jerónimo diz que havemos de consirar muitos mui descontentes, e dizerem mal da vida
muito tempo o que houvermos de dizer em que têm, e quererem emendar o mundo, cada um
pouco, porque depois nos não pese de termos ao seu modo, conforme a sua tenção, sendo eles
falado. E nisto não há aí que debater, pois está os que haviam mister emendados. Diz S. Gregório
claro que há aí tais que lhe seria melhor não ter Nazanzeno que assim como um homem muito
língua, pois o melhor que dizem é o que não enjoado, saindo do mar em terra, fica embaraçado,
dizem. S. Gregório diz que bem fala quem bem e parece-lhe que tôda a terra se move, e anda ao
cala. As muitas palavras são muitas vezes danosas redor, não porque a terra se mova, senão pelo
e perniciosas, ou ao menos ociosas e desnecessárias, movimento que ele traz consigo, causado do movi-
e por isso se devem evitar, porque, como diz S. mento do mar, que lhe moveu os humores, assim
Paulo: «As palavras más corrompem os costumes um cortesão murmura do paço, e dos príncipes,
bons.» E por não gastar muitas palavras em as e blasfema da pouca justiça, e quere reger e
repreender, ato todas estas com aquele nó das de emendar os vivos e os mortos, parecendo-lhe que
Cristo, que diz que de toda a palavra ociosa anda tôda a terra errada e torvada, como à verdade
havemos de dar conta no dia do juízo. isto lhe venha de ele ser o que anda torvado e
Se nos hão-de pedir conta das ociosas, ¿que será enjoado, movido de mil ímpetos e desconten-
das pestíferas? e pois as muitas vêm a parar muitas tamentos. ¿Que gosto pode ter quem há cada dia
vezes em pestíferas, ou quando menos em ociosas, de ouvir más respostas, haver maus despachos,
¿para que é desejá-las, nem louvá-las, senão indignar-se contra uns, sofrer contra vontade os
teme-las? Logo, pois a prática é perigosa e o outros, ver perdidos seus próprios serviços, e
silêncio seguro, não me parece que tendes razão cortados pela raíz todos os garfos de suas
de vituperar a vida solitária, por lhe faltar a esperanças? ¿Com que repouso pode viver o triste
prática e conversação. Quanto mais que os solitários, do coração, que está feito frágoa, onde se forjam
calando, falam com Deus, e andando sós, estão seus desejos nunca cumpridos e uma bigorna,
acompanhados de virtudes. E, pelo contrário, os onde se martelam seus trabalhos nunca acabados?
distraídos e transtornados, falando, estão mudos e, Quanto eu, não sei que contentamentos podem
acompanhados, estão sós, porque nem falam com ter homens que ora ardem com desejos, ora se
Deus, nem têm companhia de virtudes. Mas, se congelam com desesperações.
com tudo isto vos não contentar a vida totalmente
solitária, nua de toda a prática e conversação,
como é a eremítica, ao menos contente-vos a vida
solitária dos retraídos, que têm a seus tempos suas
honestas e doces conversações com pessoas raras
e virtuosas, alheias de interesse e negócios munda-
nos, gastando a mor parte do tempo em seu
recolhimento e solidão, usando mais de solilóquios

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DIÁLOGO DAS CAUSAS Reis está escrito que a cruel rainha. Jezabel escreveu
aos príncipes de Jerusalém em nome de el-rei
CAPÍTULO VI Acab, e asselou a carta com o seu anel, na qual
lhe mandava que matassem Nabot, sem haver justa
Por que causa o esposo dá à nova esposa o causa para isso. No terceiro capítulo de Ester se
anel, que se costuma dar em Itália, e em conta que mandou o injusto Amã, privado de
algumas partes de Espanha el-rei Assuero, escrever cartas asseladas com o anel
de el-rei aos governadores das províncias, fulmi-
Acabado isto, disse o canonista: nadas para destruição dos filhos de Israel. Diz o
– Pois todos conhecem vosso valor, não é neces- profeta Daniel que foi trazida uma pedra, e posta
sário querê-lo eu autorizar com palavras: mas sobre a boca do lago, dos leões, onde ele foi
pedir-vos que com as vossas respondais às minhas. metido: a qual pedra el-rei asselou com o seu anel,
E, pois falastes dos que fogem do mundo, falemos e com o dos grandes de sua côrte.
um pouco dos que andam nele. O matrimónio – Para isso, disse o canonista, além dessas auto-
não o pode contrair senão quem pode consentir: ridades irrefragáveis, há, aí um texto na lei argu-
porque o consentimento é de sua essência. E há mento, §. ornamenta, ff. de auro et argento legato, onde
aí diversos costumes em diversas terras, por que se Ulpiano, entre os ornamentos das mulheres, como
manifesta este consentimento. Mas não se invali- são arrecadas e braceletes, e outras jóias, conta
dará o matrimónio, ainda que se deixe de guardar anéis, salvo os que forem de asselar. Donde se
algum costume da terra, que não é substancial ao infere que há aí uns aneis que servem de selo,
matrimónio: segundo a determinação do concílio outros de ornamento: e que, deixando o testador
Triburicense relatada no primeiro capítulo de a certa pessoa todos os seus ornamentos mulíebres,
Sponsalibus et Matrimoniis: contanto que se guarde lhe é visto deixar todos os aneis, tirando os de
o que determina e manda a Santa Madre Igreja asselar. E na lei Ad testium, ff. qui testamenta facere
Romana. Digo isto, porque em Itália e em algumas possunt, diz o mesmo jureconsulto que a testemunha
terras de Espanha é costume, quando o homem pode asselar o testamento com o anel do testador:
casa, tirar um anel do seu dedo e dá-lo à noiva: porque naquele tempo em lugar de sinais usavam
com o que ambos, além das palavras, mostram o de selos que traziam por pedras nos anéis. Donde
consentimento das vontades. O que agora queria se colhe claramente que os antigos soíam trazer
saber é qual é a causa deste costume: por que anéis para asselar.
razão o anel significa consentimento: e por que – Pois, disse o doutor, como o selo se pusesse para
lho põem mais na mão esquerda, que na direita: dar fé e crédito, e para se não faltar a cousa
ca parece que deve isto ter algum fundamento, de asselada, e o anel servisse de selo, daí veio enten-
cuja notícia pode resultar algum proveito. der-se pelo anel a fé e lealdade. E esta é a causa,
– O anel, disse o doutor, se soía trazer em tempos por que se dava antigamente à esposa, e se dá
antigos para asselar cartas, ou outras cousas. Assim ainda agora nalgumas partes, para entender quão
o diz Ateio Cápito, e refere-o Macróbio no sétimo fiel e leal deve ser a seu marido. Deste anel que
dos Saturnais: e di-lo Plínio no 33 da História o marido dava, ou mandava à mulher, faz menção
Natural, e Blondo no nono da sua Roma Triunfante: Plínio no livro 33, e Blondo no nono de Roma
porque a pedra, ou o que estava, em seu lugar, Triunfante: e Septímio Tertuliano lhe chama, pró-
servia de selo. Isto se mostra claramente em muitos nubo, e refere-o Célio Rodigino no terceiro das
lugares ela Santa Escritura. No Terceiro Livro dos Lições Antigas. E rainda nas Divinas Letras pelo

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anel se entende a fé, como em S. Lucas, onde diz respeitos, pode ter diversas significações, e às vezes
Nosso Redentor que, tornando-se o filho pródigo contrárias. A águia, enquanto vive de rapina, e
para seu pai, conhecendo seus erros, e pedindo despreza as outras aves, significa o tirano soberbo:
misericórdia, o pai o recebeu benignamente, e lhe e enquanto voa ao alto, e tem fitos os olhos no
mandou dar um anel. O filho esperdiçado é o Sol, significa o justo, contemplativo e humilde, que
pecador: o piedoso pai é o misericordioso Deus, emprega o entendimento em Deus. Daqui vem
que recebe os que se convertem a ele: o anel que que em Ezequiel aos dezasete capítulos o soberbo
lhe dá é a fé, a que Santiago chama viva, e de que e profano Nabucodonosor é chamado águia: e no
diz S. Paulo que obra por caridade. Assim inter- primeiro capítulo é chamado águia o humilde e
preta o Lirano aquele lugar, e esta é a significação contemplativo S. João Evangelista. Da mesma
em que toma o anel. Este anel havemos de trazer maneira o anel, enquanto aperta o dedo, e tem
nas mãos, que são as obras: porque, como diz alguma feição de grilhão, significa subjeição: e
Santiago: a fé sem obras morta é. Deste anel dizia enquanto é de ouro, e orna a mão, e é de grande
Santa Inês, como refere Santo Ambrósio na sua valor por via da matéria e forma, e da pedra
lenda: que com o anel de sua fé, que lhe Deus preciosa, significa nobreza, e liberdade. E pode ser
dera em arras, confirmara seus desposouros. Por que quando se inventou o costume de dar o novo
onde parece que o anel que a esposa recebe mais casado à nova mulher o anel, de que falamos, se
significa a fé e lealdade, que deve ter a seu marido, teve respeito a todas estas três cousas, à lealdade
‘que o consentimento de casar com ele. que ela lhe deve ter, e à subjeição, a que é obrigada,
– O anel, disse o humanista, diz Plínio que segundo é à honra e liberdade com que ele a deve tratar
alguns procedeu dum grilhão de ferro, com que a ela todos os dias de sua vida: pois o matrimónio
um homem estava preso a uma pedra, pela qual é um nó que se não pode nunca desatar senão
causa no anel, que é um pequeno grilhão; se traz por morte. Portanto se não deve fazer sem grande
a pedra engastada. Donde veio pelo anel ser acordo: porque para cousas que depois de feitas
entendida a subjeição. E o Valeriano diz que sem se não podem desfazer grande conselho se requere.
debate ela é significada pelo anel. Por onde parece
que por isso o noivo o dá à noiva, para saber que CAPÍTULO VIII
lhe há-de ser subjeita.
– Antes me parece, disse o canonista, que o anel Da interpretação do fogo e água, em que
significa liberdade: porque antigamente o direito antigamente a mulher que casava tocava
e privilégio de trazer aneis não era concedido aos com a mão
servos: e, impetrando-o, impetravam com ele
nobreza, e uma, certa maneira de liberdade. Assim – Pois tratais, disse o humanista, dos novos casados,
o dizem os jureconsultos Papiniano; e Marciano, sobre esse mesmo propósito quero pôr uma dúvida.
e Paulo, e Ulpiano nos Digestos no título de jure Costumavam os antigos, tanto que a mulher casava,
aureorum annulorum. Naquele tempo dar a alguém mandarem-lhe que tocasse com a mão na água e
liberdade de trazer aneis era como fazê-lo nobre no fogo. Assim o conta Plutarco por cousa certís-
ou cavaleiro. Donde diz Ascónio Pediano que o sima. O que agora queria saber é a causa desta
anel é sinal de fidalguia. antiga cerimónia.
– Não é inconveniente, disse o doutor, ser pelo – O ouro, disse o doutor, se está sujo, para o
anel entendida a subjeição e a nobreza, porque lavarem metem-no na água: e para o apurarem
uma mesma cousa, consirada segundo diversos metem-no no fogo: a água lava, e o fogo purifica.

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Daqui veio mandarem à noiva que metesse a mão trabalhos. Porque então alcançaria fama de nobre
na água, e no fogo, para lhe darem a entender matrona, quando, desterrada a ociosidade e vãos
que havia de ter limpeza na vida e pureza na contentamentos, se desse a honestos exercícios, e
castidade. Se se isto requeria entre os gentios, se armasse de paciência para sofrer os trabalhos
¿com quanto mor cuidado se deve guardar entre e angústias do jugo do matrimónio, obedecendo
os cristãos, cuja lei é cheia de limpeza e pureza com amor ao marido, regendo com cuidado sua
e castidade? Daquela cerimónia não temos neces- família, criando com resguardo seus filhos, sendo
sidade: mas o que por ela se entendia, isto é o temperada e comedida em seu comer e vestir,
necessário. Há aí uma pedra branca, chamada, acautelada nas palavras, prudente nas obras, solícita
quernita, semelhante ao excelente marfim, que diz no bom concerto de sua casa, honesta na vida,
Plínio no livro 36 que preserva de corrupção os pura na consciência, e finalmente amadora de
corpos nela sepultados: da qual dizem que foi Deus, e de suas cousas, e guardadora de seus
feita a sepultura de Dario, rei dos Persas, como o mandamentos.
refere o mesmo Plínio. Assim a excelente e alva Eis aqui a significação do fogo e da água, que é
pedra da castidade preserva os corpos da podridão de tribulações e nojos e tormentos e trabalhos: os
da incontinência. Dario quer dizer fértil e quais, sofridos com tolerância cristã e ânimo esfor-
acrescentado: e quem quiser ser fértil nas boas çado e constante, são meios para a espiritual for-
obras, e acrescentado nos merecimentos, meta-se mosura, e perfeição da vida. Assim como para se
na gloriosa sepultura da verdadeira castidade. Mas fazer um formoso e excelente vaso de ouro ou
é necessário que a castidade ande junta e unida prata há-de ser fundido no fogo, e muitas vezes
com o divino amor: porque, como diz S. Bernardo martelado, ora com dureza, ora com brandura:
numa epístola, a castidade sem caridade é lâmpada assim para sede nossa vida ordenar um glorioso
sem azeite: tirai o azeite, a lâmpada não dá lume, e magnífico vaso de virtudes, e verdadeira nobreza,
tirai a caridade, a castidade fica às escuras. E, há-de ser fundida no fogo dos trabalhos, ferida
porque a castidade e pureza se entendiam pela com o martelo das tribulações, ora ásperas, ora
água e pelo fogo, metia a noiva a mão nestes dois brandas, sofridas com paciência. Porque dos tais
elementos. Era também costume antigo pelo fogo pesares nos resultam verdadeiros prazeres, e dos
e água entenderem os trabalhos e angústias da falsos prazeres nos resultam verdadeiros pesares:
vida. Donde dizia o profeta: Passamos por fogo e sem nos ficar da vã alegria mais que o arrependi-
água, e levastes-nos a refrigério, como se dissera: mento por despojo.
Depois de padecermos grandes moléstias, e sermos
acossados de terríveis tribulações, vós, bom Deus,
nos consolastes.
Diz Santo Hilário, declarando este lugar, que por
estes dois elementos de contrárias qualidades se
entende todo o género de tormentos, que os
justos passam nesta vida. Por isso os antigos
punham à entrada da porta da casa, por onde a
mulher novamente casada havia de entrar, fogo e
água, onde lhe mandavam que tocasse com a mão:
para entender que não casava para delícias e des-
cansos, mas que se aparelhasse para angústias e

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fontes de Tamarico em Biscaia e sempre as achou
Diálogos vazias – o que se tinha por mau agouro; porém,
não lhe veio por isso mal algum. E estas se secavam
no dia doze vezes, segundo testemunha Plínio, e
FREI AMADOR ARRAIS * algumas vezes vinte. Tal foi minha ventura: sempre
a vi minguada e seca, e nunca chegou a hora que
DIÁLOGO TERCEIRO estilasse água clara. Não fui eu ditoso para beber
da fonte de Cabura em Mesopotâmia, à qual só
DA GENTE JUDAICA à natureza concedeu privilégio de cheirar suave-
mente, entre tõdalas fontes do mundo, como
Interlocutores: ANTÍOCO, enfermo testifica, o mesmo Plínio. Mas quem chama a essa
AURELIANO, fidalgo. porta?
Aurehano – Salvé Deus, Antíoco, e lhe dê a saúde
CAPÍTULO I que deseja. Topei hoje com o Dr. Apolónio e dele
soube de vossa enfermidade. Compadeci-me de
Quem trouxe os Judeus à Espanha e os vós, como a razão e conhecimento requere. Mas
lançou dela haveis-me de perdoar, se minhas palavras vos agra-
varem. Um homem de honra e letras e autoridade,
Antíoco – Já não espero remédio senão daquele que saúde espera de gente suspeita? Fiais dela a
médico celestial, pelo qual se disse: «Bem fez todalas vida como que vos não dá nada perdê-la. Já
cousas, fez ouvir os surdos e falar os mudos.» Mas passou o tempo de Telefo e Aquiles.
até quando, Senhor, me dilatareis vossas mise- Antíoco – Ah, senhor, essas palavras não são de
ricórdias? Já canso de gemer. Já não posso chorar, quem vós sois.
por falta de humor radical. Já a febre em que de Aureliano – Não me digais nada, porque me sobeja
contino arço me tem estilado a carne e secos os razão. Também entendo o que entendo e tenho
ossos, e negado a cópia de minhas costumadas meu pedaço de latim e grego, e de tópicos e
lágrimas. Já meus olhos não podem ajudar com elencos, e dos meteoros. E sei algo da Esfera,
elas os soluços que da alma me saiem. Já a virtude porque, quando Pedro Nunes a lia a certos homens
animal e a imaginação, que é causa eficiente delas, principais, eu me achava presente. E li as Décadas
e a virtude, que os médicos chamam expulsiva, de João de Barros e o Petrarca em sua língua; e
está tão fraca e debilitada que poucas vezes posso essa mercê me fez Deus, que pronuncio e escrevo
verter a multidão e arroios de lágrimas que meus o italiano como que fora um dos naturais.Também
tristes cuidados despertam. Tão intolerável é o li as histórias de Jóvio em latim e as antiguidades
mal, que padeço, que já me gastou as forças, e de Florião de Campo em castelhano e o sumário
tanto tempo há que choram meus olhos, que já de Estêvão de Garibay, biscaínho, e a História
têm perdido boa, parte de sua vista. Imperial do vizinho de Sevilha e a Pontifical de
Laércio Licínio, servindo de Legado em Espanha, Illescas de Dueñas, e as Repúblicas e os letreiros
depois de ser pretor, foi ver por sete dias as três do Morais cordovês. E sabei que meus sonetos
correm por este Reino e são festejados, sem se
saber o nome do autor.
* Frei Amador Arrais. Diálogos (1589). Selecção pref., notas
por Fidelino de Figueiredo. Lisboa: Sá da Costa, 1981. (2.ª Deixo o saber do Paço, estimado de muitos, por
edição). ser galante e não ganhado ao fumo da candeia,

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como o escolar dos bachareis. E cuido ninguém agora algum que por ele pusesse mulher, filhos e
me fazer vantagem em saber cometer com arte fazenda, e a própria vida; antes, por não perderem
uma mó de cortesãos. Também sou lido nas Cró- cada qual destas cousas, o escondem e encobrem
nicas dos Reis e sei as linhagens dos fidalgos de e dissimulam quando podem e fazem quanto lhe
sua casa e os modos por que alcançaram medran- mandam, como persuadidos não ser pecado negar
ça, cousas essenciais do Paço. com a boca o judaismo, que têm no coração e
Antíoco – Estais bem aproveitado. Ao João de reputam por crença verdadeira.
Barros não posso eu agora dar os louvores que Antíoco – Esses eram os judeus. E eu tenho todos
ele por sua diligência e lição merece. O Petrarca os outros, que agora vivem, por Cristãos em quanto
está tão louvado que não pode crescer mais sua se não provar o contrário, em especial ao Doutor
glória; e quiçá lhe deu Itália mais vento do que Apolónio, meu médico.
lhe convinha. E mais vos quisera bem exercitado Aureliano – Ora vos digo que têm em vós os
no latim e grego que no italiano. E tenho por judeus bom patrono para perorardes suas causas.
melhor linguagem a nossa portuguesa que a de Não acharei eu quem me diga de raiz quem
Itália, porque em menos palavras contém móres trouxe esta praga a Espanha?
conceitos e com menos rodeios e mais graves Antíoco – Metastenes e outros com ele dizem que
termos descobre o que se pretende, além de con- Nabusodonosor, Rei dos Caldeus, precedeu a
servar manifestos vestígios da antiga língua latina, Hércules em fortaleza e glória de ilustres feitos, e
que foi uma das três do mundo mais esclarecidas. que subjugou Espanha e a mór parte de África,
Paulo Jóvio foi homem honrado, teve bom estilo. e que, quando navegou com mão armada a
Se Solimano lhe deu alguma cousa para o aparo Espanha, trazia no seu exército muitos judeus, dos
das penas, não no sei. Mas mostrou-se-lhe afei- quais ficaram nela algumas colónias, que ele não
çoado. E o pior é que vos gabais de poeta, grande quis na sua armada nem para cativos. Tão mal lhe
parte para vos chamarem doido e ficarem vossos cheirava esta nação!
sonetos assaz remunerados. Se vivera agora Ovídio, Porém, o mais certo é que, rebelando os judeus
metera-vos nas suas transformações, porque de contra o Imperador Adriano, foram desterrados
Português vos transfigurastes em Italiano e para Espanha de seu mandado, por perderem a
Castelhano. saudade de Hierusalém e do Templo de Salomão,
Aureliano – Não é tempo de donaires. Vós sois que pretenderam três vezes restaurar, como é autor
peregrino neste Reino e não sabeis as cousas que S. João Crisóstomo. Em Espanha duraram té o
nele passaram de cinqüenta anos a esta parte e tempo d’El-Rei D. Fernando, que os lançou de
quão dados são os Portugueses à língua italiana seus Reinos e Estados, movido da sentença do
e à Poesia vulgar. E quão excelentes se têm mos- Concílio Sexto Toledano, onde se ordenou que
trado alguns em uma e outra. dali em diante todo o príncipe, que sucedesse no
Dizei: não fora melhor terdes mais cuidados de Reino, antes de tomar o ceptro prometesse de não
vossa saúde e considerar sem afeição as qualidades consentir morar em seu Reino pessoa que não
da pessoa, de que confiais vossa vida? Nunca fosse católica. E se depois de governar, não
vistes queimar judeus em Portugal? Não sabeis cumprisse o tal prometimento, que fosse anatema
que se achou por experiência que muitos dos que e pasto do fogo eterno, e todos os que com ele
tinham melhores mostras de Cristãos estavam mais consentissem. E o caso foi este: sabendo o dito
entregues à perfídia judaica? E é de notar que, Rei Católico que os judeus moradores nos seus
estando obstinados em seu erro, não vimos até Reinos e Senhorios cometiam nefandas abo-

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minações contra a santíssima religião do Filho de CAPÍTULO II
Deus, mandou que todos se saíssem fora deles.
Isto foi no ano do Nascimento do Redentor de Como se houve El-Rei D. Manuel com os
mil quatrocentos e oitenta e dois. Vendo isto os Judeus que ficaram em Portugal e quão
judeus, alguns alumiados pelo Espírito Santo rece- danosa é a companhia dos maus
beram a Fé Católica de verdadeiro coração; outros,
por não deixarem as fazendas ou as não venderem Antíoco – Morto El-Rei D. João, o Segundo, D.
por baixo preço, fingidos e simulados a profes- Manuel, que lhe sucedeu, vendo que os judeus
saram. Todos os mais foram desterrados. não deixaram passar o tempo por sua vontade,
A maior parte destes impetrou d’El-Rei D. João, concedeu a todos liberdade. Eles, em graça do
o Segundo, sob certas condições, que os deixasse benefício, lhe ofereceram grande soma de ouro,
morar em Portugal, por tempo limitado. E as que o Rei não aceitou, porque seu intento era
principais foram que cada judeu pagasse ao Rei obriga-los com mercês e atraí-los com brandura
oito cruzados e dentro de certo tempo se saíssem e humanidade à obediência da religião cristã. Daí
de Portugal, sob pena de perderem a liberdade, e a pouco tempo se consultou qual seria melhor:
que El-Rei entretanto desse passo seguro aos que expelir logo os Judeus de Portugal ou deixá-los
se quisessem ir. morar no Reino.
Em quanto El-Rei D. João viveu guardou sua Os reis de Castela avisaram El-Rei D. Manuel que
palavra, mandando que os judeus fossem passados não consentisse em seus Estados a gente judaica,
às províncias que quisessem, por frete tolerável, e cega e em sua cegueira obtinada, tanto que, tra-
ninguém lhes fizesse injúria, nem agravo – o que tando o Cristianíssimo Rei D. Manuel de casar
se fez muito doutra maneira. Que os pilotos e com a Princesa D. Isabel viúva, ela se escusou por
mercadores, em cujos navios embarcavam, os três ou quatro vias, E uma delas foi que não
tratavam no mar indignamente e vexavam com queria vir para Reino que estava cheio dos infiéis
várias afrontas, detendo-se mais tempo do neces- que seu pai lançara de seus Reinos e Senhorios,
sário e levando-lhes por força mais dinheiro ao que El-Rei respondeu que também os lançaria
daquele em que se haviam concertado pelo frete. dos seus. E porque a Princesa, depois de consentir
E com as detenças, que no mar faziam, gastados no casamento, replicou que sobrestava a execução
os mantimentos, eram forçados os miseráveis a deste negócio. El-Rei D. Manuel lhe satisfez,
comprá-los dos donos ou mestres dos navios por escrevendo-lhe que, vindo ela para Portugal, os
preço injusto. E sobretudo, como homens desal- mandaria lançar fora.
mados e crueis, por força lhes deshonravam as Sobre isto houve entre os do Conselho várias
filhas e mulheres, esquecidos do nome cristão. sentenças. Alguns disseram que não era razão lançar
Os judeus, que ficavam em Portugal, ouvindo tão do Reino os Judeus, pois o Papa os permitia
tristes novas, parte com mêdo de tão atrozes injúrias, morar nos estados da Igreja Romana; e, seguindo
parte compelidos da pobreza, faltando-lhes o este exemplo ilustríssimo, faziam o mesmo muitas
necessário para a navegação, entretiveram-se em cidades em Itália e muitos Príncipes Cristãos em
Portugal tanto que se lhes passou o tempo cons- Alemanha, nas Panónias e outras regiões da Europa;
tituído e ficaram como cativos. O Rei vendia e que, vivendo entre Cristãos, não se perdia de
alguns, mas isto era a homens que os tratassem todo a esperança de alguns se converterem à nossa
com clemência e brando cativeiro. fé, com a conversação, exemplo e doutrina dos
nossos. E que também era para sentir o muito

67
dinheiro que consigo levavam para terras de são a doença do enfermo; e a este não se pega
inimigos. Outros, em contrário, disputavam que a saúde daqueles. O rio Jordão, entrando com a
era gente infelice, miserável, aborrecida em todo doçura de suas águas em o pestilencial lago da
o mundo, que trazia o sangue de Jesus Cristo Palestina, perde o seu doce; assim perdem sua
sobre sua cabeça e o fel e vinagre, com que o bondade os bons que comunicam com os maus
enxaroparam, expelida de Castela, e Aragão, e das e pela maior parte ficam infeccionados dalgum
Gálias, porque os bons Príncipes estimaram mais dos seus vícios e incorrem em perda de alguma
a pureza e sinceridade da religião que o acres- virtude.
centamento de suas rendas. E tinham sabido que Nem me diga ninguém que muitos vivem mal,
os judeus tentavam a fé dos homens simples e que aconselham bem, dos quais como de bichas
falavam contra o nome santíssimo de Jesus Cristo, e serpentes se há-de tomar o útil para triaga e
e semeavam erros entre os rústicos; e que nada se enjeitar o inútil – que o mais seguro é não tomar
podia fiar dos inimigos do nome cristão, nem dos maus nem o conselho, que parece bom, e
servia ter inimigos domésticos, pois Portugal os fugir deles à rédea solta, pois danam e infamam
tinha sempre nas fronteiras de África. Item que mais com seu comércio do que podem aproveitar
menor mal seria irem-se então com seu dinheiro com seu conselho. E se alguma vez o dão bom,
que depois de chuparem todo o Reino com suas em tal caso permite Deus que o não tomemos e
usuras e lhe consumirem as entranhas com suas o julguemos por mau, como se viu em Absalon,
manhas e onzenas. que, servindo-lhe o de Achitopel para prevalecer
Aureliano – Os que deram esse voto eram homens contra seu pai David, houve que não lhe convinha.
de prudência. E com esses me tenho eu. E olhai Não temos o poder e virtude de Cristo, que
por vós que com parecer desses vos hei-de meter conversando os publicanos os trazia a estado de
no fundo. penitentes. O certo é que mais prestes se tornam
Vós falais em conversação de má gente? Por mais os bons maus conversando-os do que os maus se
limpo e lúcido que seja o espelho, não deixa de melhoram tratando com os bons; e quando menos
se escurecer com o assopro contaminado dos cir- sempre a amizade dos viciosos desacredita e põe
cunstantes. Assim por mais que resplandeça um mácula na fama dos virtuosos. Porque tal é a alma
em virtudes, com a familiaridade e conversação qual é a vida de cada um; e tal é esta qual é a
dos maus fica mascavado, segundo aquilo do sua companhia. Portanto, na escolha desta, assim
Eclesiástico: «O que tratar com o pez, ficará para a alma como para a honra, convém que haja
empezinhado; e o que comunicar com o soberbo, tanto exame quanto cada qual destas duas cousas
pegar-se-lhe-á a soberba.» Por mais benévolo e tem de preço e estima. Sempre das más conver-
saudável que seja um planeta, se se ajunta com sações se nos pega alguma tinha, e das boas se nos
estrelas malévolas, más serão suas influências: comunica algum bom cheiro. E esta causa teve S.
tornar-se-á mau o que particularmente tratar com Tomás para dizer que se devia mandar aos símplices
maus. Séneca alegava com Fédon, dizendo que e fracos na fé (da subversão dos quais se pode
havia uns animais pequenos, que não eram sen- com razão ter justo temor) que não comuniquem
tidos, quando mordiam. Isto tem a familiaridade com judeus, nem com outros infiéis, ao menos
dos maus, porque mais facilmente se pegam os mui familiarmente e sem muita necessidade. E pela
vícios de um sujeito em outro que as virtudes: mesma razão S. João Crisóstomo amoestava com
acham-se com ela os homens danados sem sentirem tanta instância aos fracos que fugissem dos coló-
quando lhes entrou o dano pela porta. Pega-se ao quios e ajuntamentos dos Anomeus, por que a

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amizade estreita não parisse error de impiedade. e blasfemar do Senhor Jesus Cristo? Eu não sei
Porém, não proibia isto aos de ânimo mais assentado qual é o Príncipe cristão que os sofre em seus
e constante na fé, que da familiaridade dos tais Estados, se não é porque fazemos mais caso do vil
não podiam receber detrimento. S. Paulo, seguro, interesse que da honra de Deus. Agora dizei
tratava com judeus e Gentios, e todavia avisava quanto quiserdes, porque em semelhante argu-
seus discípulos mais fracos que os maus colóquios mento, e tão justificado pela minha parte, não me
corrompiam os bons costumes. O mesmo aviso faltará defesa.
nos dá Isaías da parte de Deus: «Saí do meio dos Antíoco – Pareceis Doutor Teólogo, que sai nova-
maus, apartai-vos deles» – diz o Senhor. mente dos Ginásios da Sorbona, inchado de con-
Parece que esta causa rnoveu o Concílio Toledano clusões paradoxas. Os fidalgos portugueses são
Terceiro para proibir aos judeus que se não ser- muito mimosos, todos se têm por parentes de Rei;
vissem de Cristãos cativos nem tivessem mulheres e parece a cada qual que caiu do Céu e que não
ou concubinas cristãs. O mesmo estatuiu o Concílio há para ele justiça. A um ouvi dizer que não havia
Provincial Matisconense; e que qualquer Cristão inveja a todos os príncipes do mundo senão de
pudesse remir por doze soldos o escravo cristão uma só cousa e era que se serviam de homens que
que estivesse em poder de algum judeu. Tão mal o eram mais que eles.
cheiravam os judeus naqueles bons tempos que o Aureliano – E isso não é verdade?
mesmo Concílio Matisconense e o Aurelianense Antíoco – Outro conheci que não ia ao Paço por
Terceiro, também provincial, vedaram que nenhum não tirar a gorra a El-Rei.
judeu saísse às praças e ruas públicas, nem pare- Aureliano – Não sou de tantas graças, mas tudo
cessem onde estivessem Cristãos, desde quinta-feira vos levo em conta, porque estais doente.
da Ceia até a segunda depois do Domingo da Antíoco – A vossa sentença seguiu El-Rei D.
Ressurreição, porque eram tão pérfidos e desaver- Manuel. E mandou que dentro em certo tempo
gonhados que alrotavam dos Cristãos e escarneciam se saíssem de seus Reinos e Senhorios todos os
de suas solenidades. E por isso ordenou e mandou judeus e Mouros, que não quisessem professar
o Concílio Toledano Quarto que os filhos dos nossa fé; e, não se indo passado o dito tempo,
judeus, recebendo o Sagrado Baptismo, fôssem ficassem sem liberdade, como da primeira vez.
logo separados do consórcio dos pais, por que se Apercebendo-se os judeus para o caminho e
não envolvessem em seus errores; e que os judeus sofrendo El-Rei muito mal a perdição de tantos
conversos à fé não comunicassem com os remanes- milhares de almas, ordenou com ánimo e propó-
centes nas cerimónias da lei velha, por que se não sito não mau que os filhos dos judeus, que não
subvertessem com sua participação. passassem de catorze anos, fossem tomados aos
Que mais há mister?’ Inda agora alguns deles, pais e apartados deles estivessem onde os instruíssem
habitando entre Cristãos, escrevem livros ímpios e nos princípios e documentos da doutrina cristã.
blasfemos contra o Filho de Deus, qual é o seu Os movimentos que sobre isto houve e alterações
Nazaor. Isto se pode sofrer? A quem não porá de ânimos não se podem contar. Houve pais que
espanto a pertinácia e desavergonhamento destes se mataram e outros que mataram seus próprios
pérfidos, que, vivendo entre Cristãos, de quem são filhos. E enfim os míseros judeus, vendo-se sem
tratados com mais humanidade que de todas as oportunidade para navegar e enfadados de dilações,
outras nações e onde eles receberá tantas comodi- cortados de necessidades e afrontas que padeciam
dades e ajuntam tantas riquezas com roubos e (e padeceram em pena do sangue do justo que
onzenas, ousarem inda pôr a boca contra o Céu tomaram sobre si) ou por vontade ou sem ela

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aceitaram ser cristãos. Esta foi a ocasião de haver e vejam sua polícia e limpeza, e que não recebam
em Portugal estes homens que chamamos Cristãos a verdade e luz do Evangelho? Deus seja comigo.
Novos, devendo já de ser velhos e nomeados por Roguemos-lhe que nos tenha em sua especial
esses. guarda e nos não deixe cegar.
Aureliano – Cuido que por essa causa castiga Povo, a quem Deus fez tantos mimos, a cuja
Deus este Reino, porque não quer Cristãos for- vontade obedecia a terra sem arado, sem ferro,
çados. E porque agora é mais ofendido desta sem suor de seu rosto e (como dizem) a boca que
gente do que por ventura foi no tempo que eram queres, que estava naquele pomar de judeia que
judeus, se o posso dizer. O sacramento do Baptismo lhe manava outro maná celestial, a quem nunca
da sua parte é profanado, as ofensas que cada dia faltaram Profetas, nem no cativeiro de Babilónia
contra ele cometem não são escondidas, e o proveito com que se consolasse, nem socorros particulares
que a sua cristandade faz ao Reino é possuirem de Deus que o confortassem – e que não caia na
todo o melhor dele, tanto que muita parte da conta, vendo que depois que crucificou o Senhor,
pobreza do Rei e Reino causa sua muita riqueza. nem tem regalos de Deus, nem Profetas, nem
As honras e ofícios da República, que segundo Reino, nem Cidade, nem Templo, nem sacrifícios,
regra de justiça distributiva se deve (sic) aos nem certo Rei, mas anda espalhado, por diversas
Cristãos velhos, não deixam de se lhes dar, cousa gentes cativo, menos prezado e aborrecido de
para se muito chorar. O sinal da Cruz eles o todas as nações da Terra e como malfeitor esquar-
trazem no peito. E parece-vos que será Cristo tejado com os quartos postos à vergonha, em
contente de ver a sua Cruz profanada e depen- quatro partes da Terra fugitivos [...]
durada do pescoço daquêles, cuja cristandade é De maneira que como bufarinheiros cobiçosos
fingida? tratavam em mercadorias baixas.
Antíoco – Não debalde se lhes meteu em cabeça
CAPÍTULO XXX aos soldados de Tito serem verdadeiros os rumores
que corriam, que muitos dos judeus, saindo de
Que a cobiça é causa da obstinação dos Jerusalém no tempo que a Cidade foi entrada,
Judeus engoliram a bocados quanto ouro lhes pode caber
nos estômagos, fazendo-lhes cofres de suas próprias
Aureliano – Tudo o que praticastes está santo. entranhas, afim de o salvarem consigo. Mas saíu-
Agora folgara que me dissésseis a causa por que -lhes ao revés, porque a eles lhes fez das entranhas
os judeus não recebem a Cristo, Nosso Redentor. cofres, fez também aos soldados das espadas chaves,
Antíoco – Meteis meu fraco engenho em tantas com que só em uma noite abriram as entranhas
dificuldades que, se não fora vossa pessoa, já vos a dois mil homens, como conta o seu Josefo.
lançára de mim, por importuno. Quereis que satis- Daqui entendo eu quanto chega sua cobiça.
faça aos desgostos que tendes de Cristãos Novos; Antes da vinda de Nosso Senhor (diz Filo) houve
e eu falo dos judeus, que é cousa muito diferente. muitos judeus que na virtude se conformaram
Aureliano – Não me ponhais culpa, porque estou tanto com a lei natural e divina, e com a sua lei
sem espírito e alheio de mim. É possível que e Profetas que pareciam a mesma lei que Deus
depois de tantos oráculos de Profetas Santos, tantos lhes dera, e os Profetas, que lhe enviara uma
testemunhos divinos, tantos sinais e maravilhas do história e comentários de sua vida e doutrina. E
Céu, tantas razões, e tão eficazes, vivam os judeus o mesmo Deus parecia seu cronista. Mas depois
entre Cristãos e que conversem suas ruas e praças, que porfiaram em não receber a Cristo por

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Messias, vieram a tanta devassidão e perversidade debaixo das quais passei os melhores dias da minha
de costumes que sofrem o mau tratamento e vida, conversando a nobreza destes Reinos, que
infame cativeiro que passam entre Mouros e Turcos, no mesmo tempo estudava na sua insigne Academia.
porque entre eles podem mais livremente mentir E pois ela foi o assento do primeiro Rei, cujas
e enganar. E em saindo das esnogas, confessam obras foram milagrosas, nem deveis passar por
que isto vão fazer e que a isto ordenaram suas elas.
orações, esmolas e jejuns, a que Deus os livre das Antíoco – Este foi o estado de Portugal até aos
guardas das alfândegas e dê boa venda a suas tempos do bem-aventurado D. Afonso Henriques,
mercadorias. O ganho das feiras é o que pretendem filho do Conde Henrique, que livrou quási toda
e não o remédio das almas. Não querem Deus, a Lusitânia do poder e tirania dos Mouros. Já
sem bens temporais. E com tal que sejam ricos sabereis a origem e tronco Real deste Príncipe, e
não temem ofendê-lo. Em pessoa deles diz Oseas: como sendo Espanha vexada e estragada com
Dives effectus sum, inveni Idolum mihi. «Adorem os guerras contínuas de Mouros, muitos Cristãos de
outros o deus que quiserem, que nós o achamos diversas partes, e várias regiões se passavam a ela,
nos bens que possuímos. Deixemos a lei de Deus afim de ajudarem os Cristãos contra os infiéis. [...]
(diziam alguns deles, segundo refere a história dos E por aqui consta, que o Reino de Portugal foi
Macabéus), pois com ela nos vêm perdas temporais aprovado sobrenaturalmente do Céu, como o
e com a dos Gentios logramos os bens da Terra». Reino de França pelos três lírios, e redoma em
Cuido que foi mistério serem os Judeus tão amigos tempo de Clodoveu seu primeiro Rei Cristão.
do ouro e darem a Aaron quanto tinham para lhes Mereceu D. Afonso Henriques para si, e para seus
fundir o Bezerro; e entendo que o deram, não para sucessores a Coroa Real destes Reinos, como
o perderem, mas para o adorarem, e que neste David a mereceu para os seus; e a ganhou com
particular a inclinação á idolatria os fez dissimular suas armas, e realengas virtudes. Com este glorioso
com a da cobiça. Rei conspiraram os corações generosos dos
Portugueses, para conquistar boa parte da Lusi-
DIÁLOGO QUARTO tânia. E com verdade se pode gloriar que eles
foram os primeiros, que em Espanha lançaram da
DA GLÓRIA E TRIUNFO parte que lhes coube, os Mouros além-mar, e lá
DOS LUSITANOS lhe foram tomar seus castelos, e Cidades fortalecidas
do sítio, e natureza da terra, cometendo com tanta
Interlocutores: HERCULANO, cavaleiro audácia, e segurança os que estavam por render,
ANTÍOCO, enfêrmo. como se já estiveram rendidos. E assim os feitos
heróicos deste Rei incomparável, e o destroçar
CAPÍTULO XXI tantos Reis Mouros com poucos Cristãos, não se
deve atribuir a forças humanas, se não ao arden-
De El-Rei D. Afonso Henriques o primeiro tíssimo zêlo da religião, e ao favor especial de
deste nome Rei de Portugal, e de sua Deus, que muitas vezes, nas maiores afrontas de
Cristandade. seus combates, sentiu presente, e favorável. [...]

Herculano – Sinto-me alvoroçado com a menção


que fizestes de Coimbra, e do seu saudoso
Mondego acompanhado de frescas sombras,

71
dos desta primeira parte são da mesma matéria doutros
Trabalhos que na segunda vão tratados; mas porque na Paixão
chegaram ao cume da aflição e pena, a que podiam

de Jesus chegar, merecia aquele sumo grau de dor, nome de novo


trabalho.
Repete-se muitas vezes, onde quer que pode vir a
propósito, a grande mercê que Deus fez ao género
FREI TOMÉ JESUS *
humano, em lhe mudar as penas e trabalhos desta vida
(que são justos castigos dos pecados) em ocasiões e
PRÓLOGO AO LEITOR matérias de merecimento de glória, com o ajuntamento
amoroso aos Trabalhos de Cristo que dão aos nossos
Esta minha obra dos «Trabalhos de Jesus», assim como virtude; e que os Trabalhos do Senhor são as verdadeiras
confessa a Deus e manifesta aos leitores minhas imperfei- consolações e alívios dos nossos; e que o amor muito
ções e misérias, assim lembra e descobre às almas mais se prova, e refina nos trabalhos se é verdadeiro,
desejosas de o contentar, as obrigações que lhe tem para que nos favores e prosperidades, posto que sejam
fugir dos pecados, que ele com tantos trabalhos procurou espirituais.
limpar e satisfazer. Quem quiser ler esta obra, só para aproveitar o tempo,
A primeira parte trata dos trabalhos que Cristo Nosso deve de ler os capítulos que tratam da história e dou-
Senhor passou desde a hora que foi concebido até o dia trina dos Trabalhos do Senhor, deixando os exercícios;
de sua sacratíssima Paixão. E porque não é possível porque estes, se devem ler com recolhimento em hora
ponderar cada particular trabalhos, eu, resumi-os em quieta, para tirar deles os afectos que levantam, e
vinte e cinco, como géneros em que padeceu. Alguns ajuntam a alma a Deus, que é o fim e matéria deles;
exercícios têm fora da matéria de que os trabalhos doutra maneira muito pouco proveito fará aos leitores,
tratam (como são: da Encarnação, Nascimento, Adoração passados só como história, como mais largo dizemos
dos Reis, Apresentação ao Templo) para que o que se nos avisos antes da obra.
exercita em tão assinalados dias tenha em que se ocupe As doutrinas e avisos, que no começo desta primeira
nas mercês que nele de Deus se recebeu. Trata esta parte pus, não escusam os principiantes e imperfeitos.
primeira parte de várias doutrinas e que provoca a pedir Mas aconselho-lhes que se tiverem mestres experimen-
várias virtudes, segundo os muitos exemplos delas que tados, deles como de divinos Oráculos tomem com
Nosso Senhor em seus trabalhos nos deu. humildade os ensinos necessários. Eu a todos peço
A segunda parte resume os trabalhos da Paixão do paciência em minhas imperfeições e emenda em minhas
Senhor em outros vinte e cinco por evitar prolixidade. ignorâncias pelo mesmo Jesus.
Porque cada dor de cada membro e de cada juntura,
e de cada açoute, espinhos e cravos, e cada hora daquele
dia, e cada injúria, e blasfémia que se ouvia se pode PRIMEIRA PARTE
com razão contar por particular trabalho e tamanho
DOUTRINA DOS FRUTOS DA CONSI-
que execede todas as forças de nosso amor para o poder
DERAÇÃO DOS TRABALHOS DE JESUS
justa e dignamente sentir e agradecer. Alguns trabalhos
PRIMEIRO

* Frei Tomé de Jesus. Trabalhos de Jesus, 2 vols. Porto: Lello Padeceu por pura vontade sem obrigação
& Irmão, 1951 (6.ª edição).

72
A primeira coisa que da parte do Senhor pode E se Jeremias o entendeu, pelo que as injúrias são
mover a alma a muito o amar é, que volunta- em si, pouco disse, porque muito pouco delas
riamente por puro amor, que nos tinha e tem, bastava, não só para fartar, mas para com razão
quis padecer por nós muitos trabalhos, sem enfastiar muito ao Senhor. Mas quis dizer, que o
nenhuma obrigação que a isso tivesse. Porque gosto com que o Senhor padecia por nós, seria
nem o obrigavam merecimentos nenhuns dos tamanho e causaria nele uma tamanha fome de
homens, nem rigor de justiça, pois todos os filhos trabalhos, que por serem as injúrias as mais penosas
de Adão eram devedores e pecadores. E ainda que da vida, seria necessário inventar novas maneiras,
suas promessas o obrigavam por sua verdade a e desacostumada soma delas para lha fartar. Porque
cumpri-las, e enquanto homem a obediência do grande fome e sede não se satisfaz com pouco,
Padre-Eterno, que tinha aceitado o obrigava a nem grande gosto da coisa se emprega em pequena
padecer, todavia sua, livre vontade e não dívida o parte dela. Por aqui fica entendido, que pois os
fez prometer, e obrigar-se a cumprir, e seu puro trabalhos grandes de Cristo se mediram pelo
amor, sem outra nenhuma obrigação, acabou com grande gosto que tinha de os passar, que a justiça
ele, que se oferecesse a padecer. Porque como não e razão está pedindo, que esse mesmo gosto seu,
era menor, mas igual ao Padre, a obediência que seja medida do amor que lhe devemos. [...]
teve não foi de pessoa mais baixa e sujeita, mas
de divina, e igual majestade, a qual como o mesmo
Padre e Espírito-Santo determinou de tomar nossa FIM DA DOUTRINA
carne e nela por obediência do Padre, não forçosa, E AVISOS PARA OS PRINCIPIANTES
mas amorosa e voluntária, padecer por nós. E
como as coisas puramente voluntárias, e que nascem TRABALHO VII
de puro amor, obrigam a muito, estamos obrigados
a muito amar e muito servir este Senhor: pois sem Circuncisão
merecimentos de ninguém, sem rigor de justiça,
nem dívida obrigatória, só pelo muito que nos Não quis Cristo Nosso Senhor depois de seu
queria, tomou sobre si nossas misérias e penas. nascimento passar muitos dias sem dor que lhe
custasse sangue e tormento, em que desse as pri-
SEGUNDO mícias do muito que havia de derramar e oferecer
ao Padre Eterno por nosso remédio. E assim aos
Padeceu com gosto oito dias da sua vida, que era o tempo em que
a lei, que Deus deu a Abraão, mandava circuncidar
O gosto com que se atribulou por nós: o qual os meninos, se submeteu ele à mesma lei, sendo
era tamanho, que ainda que a divina Escritura ele o autor dela: muitas coisas desobrigavam o
compara os trabalhos de Cristo Nosso Senhor a Senhor desta lei, afora o mesmo Deus que a deu.
grandes mares muito empolados, causava em seu Primeiramente por ser instituída para protestação
coração tamanha fome, de trabalhos, que foram da fé do Messias, que ia gente. Israelita esperava,
necessários quantos padeceu para lha satisfazer. (pela circuncisão confessavam viver na esperança,
Assim o profetizou Jeremias, quando disse, que fé e amor do que havia de vir a os salvar: E como
fartariam a Nosso Senhor de injúrias. Injúrias é Cristo era o mesmo esperado e prometido Filho
mantimento tão sem sabor, que bem olhado pelo ele Deus feito homem; não tinha outro maior que
que em si é, antes que chegue, já faz asco e enjoa. si, cuja fé e esperança protestasse de ter pela

73
circuncisão. E era também a circuncisão um sinal, dano, não houve por imprópria ocasião para se
que Deus deu a Abraão para todos seus descen- mostrar e refinar, abaixar-se à mais contrária coisa
dentes, pela linha de Isaac seu filho, do contrato à sua divina majestade. Por tanto sua força e
que com ele fez, em que Deus se obrigava a se grandeza fica mais realçada, quanto em coisas a si
chamar Deus daquele povo Israelítico, que dele mais impróprias faz suas divinas operações. Por
descenderia, e tê-lo a ele só por seu, e o povo se isso Cristo Nosso Senhor não houve por muito
obrigava a tê-lo a ele só por seu Deus. E assim mostrar-nos seu amor em obras e coisas soberanas
este só seria o povo escolhido de Deus no tempo, e altas; mas muito mais o deu a conhecer nas
que todos os outros povos, e nações do mundo coisas baixíssimas, a que por ele se submeteu. Das
seriam por suas idolatrias reprovados e por sinal quais a mais baixa de todas é tomar figura do
de ser povo escolhido usaria do sinal da circuncisão. pecador: não só em ser Filho e da carne do
E como Cristo Nosso Senhor veio acabar este tão pecador Adão, mas também em tomar as penas e
apertado contrato e fazer um curral e uma manada remédios instituídos para limpar pecados.
de todos os povos e nações do mundo, e a chamar Confunde Nosso Senhor nisso um género de
todos igualmente, e de todos escolher os que em soberba, que tem muito lavrado na mais da gente,
seu amor e fé quiserem viver e morrer sem dife- que não tendo nenhum pejo de Deus para cometer
rença de nações; já ficava desobrigado do sinal do muitos e gravíssimos pecados, o tem grandíssimo
contrato que ele havia como autor dele de mudar dos homens em parecerem quão pecadores são.
e alargar. Também pela circuncisão corporal os Donde vem, que sem nenhum sentimento das
obrigava Deus a cortar e a circuncidar de Seus chagas da alma por onde se perdem (como diz
corações toda a dureza e más inclinações que S. Bernardo) se correm das ataduras, e mezinhas
prejudicassem a seu amor e guarda da sua lei. E e muitas vezes as não sofrem. Conhecemo-nos
Cristo Nosso Senhor, pureza e perfeição infinita, pela maior parte muito mal, quão maus somos, e
não só não tinha em si interiormente que cortar, muito menos sofremos sermos tidos e conhecidos
mas ele é o que purifica todas as almas. Pelo qual por quem na verdade sabemos que somos. E
assim como não tinha em si que reformar, nenhuma enganamo-nos com o humano louvor aceitando
obrigação tinha do sinal, que a isso obrigava. por parecer aos olhos dos homens, o que somos.
Sobretudo a circuncisão era um sacramento da E enganamo-nos com o humano louvor aceitando
velha lei, no qual pela protestação que nele se por parecer aos olhos dos homens, os que desen-
fazia da fé, esperança do Messias e submetimento ganadamente de dentro sabemos que não somos.
à lei de Deus, se perdoava o pecado original: assim São isto desatinos (com outros muitos) de corações
que este sacramento era sinal e remédio de amigos de suas próprias chagas e descuidados dos
pecadores. E Cristo Nosso Senhor, que enquanto verdadeiros remédios delas. Por isso nosso verda-
Deus e enquanto homem era impecável, e era deiro remediador e Mestre, muda em claro esta
autor da graça e do perdão dos pecados, como peçonhenta inclinação humana em si e sendo
cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, tudo o que nele há, a verdadeira, pura e essencial
quão longe estava de os poder ter, tanto o estava santidade e saúde, que a todos cura, e encobre a
de obrigação de tomar em si o remédio dele: inefável perfeição de sina pureza divina e humana
antes parecia muito grande abatimento seu sub- e circuncida-se como pecador e toma sobre si o
meter-se à lei, que remediava coisa a ele tão remédio das culpas que não tem; e ensina com
imprópria e contrária como são pecados. Mas o público testemunho, que não pode ser confundido
divino amor, a que nenhuma coisa pode fazer o que for julgado por pecador, não o sendo: nem

74
honrado, diante de Deus o que for mau não o não obriga menos, por quanto mais se esqueceu
parecendo. nela de si por amor de nós.
Uma consideração me parece que realça muito a Quando não houvera outra nenhuma coisa na
obrigação em que estamos a este Senhor por circuncisão senão ser penosa, como era e trabalhosa
querer esta pena e forma de pecador da circuncisão, de sofrer, sem dúvida só por esse respeito o
pela qual parece que lhe devemos mais, que por Senhor se circuncidara. Porque vinha tão desejoso
todas as outras obras em que tomou a mesma de padecer, que mal acabara consigo deixar de
pena, ou forma. Que em todas as outras obras passar pelas dores, que os outros meninos passam,
sempre misturou coisas, que a voltas de sua baixeza, pois outras naquela tenra idade não podia tomar.
eram demonstração da majestade nela encoberta, Era esta dor da circuncisão muito grande, porque
salvo na circuncisão. Quando nasceu chorando e parece que se fazia com cutelos de pedras agudas,
estalando com frio, como os outros pecadores, os como fez a mulher de Moisés a seu filhos, e como
Anjos, Pastores e Reis, o adoravam por Deus. Deus mandou fazer a Josué, quando lhe mandou
Quando se ofereceu no Templo com oferta de que circuncidasse todo o povo dos Judeus, antes
pecador, o santo velho Simeão e a santa Profetisa que entrasse na terra de Promissão: e por este
Ana, publicaram sua divindade. Quando se fez respeito seria a dor gravíssima e muito mais o era
baptizar no rio Jordão como pecador, a voz do ao terceiro dia, segundo diz a sagrada Escritura.
E o que os outros meninos sentiam sem saberem,
Padre, o Espírito-Santo em figura de Pomba, e o
nem entenderem o que passavam, que lhes fazia
Baptista, deram testemunho de ser ele Filho de
a pena muito mais leve, em Cristo Nosso Senhor
Deus. Quando se deixou tentar no deserto, os
não teve alívio nenhum, porque a idade não
Anjos o vieram servir como a seu Deus. Quando
desfazia em seu entendimento, e saber; mas sentia
cansava e suava como fraco, os milagres publicavam
a pena com todos os quilates dela e sofria com
sua grandeza. Quando se deixou prender, de sua
o mesmo amor, com que depois se pôs na Cruz
Paixão, posto entre ladrões na Cruz, o Sol que
e derramava seu sangue com o mesmo gosto, com
com o seu nome, fez cair em terra os algozes. Até que depois o deu todo [...]
o dia escureceu, a terra que tremeu, a grande voz Todos estes extremos faz Cristo por uma gente,
com que espirou, o véu do Templo que se rompeu que gasta a meninice em puras ignorâncias e a
e o Centúrio que o guardava, deram dele teste- mocidade em começos de toda a vaidade, e toda
munho, que os que o tinham crucificado se reco- a mais idade em fazer a vontade ao corpo e a
lheram batendo nos peitos e confessando-o por tudo o que mata a alma, com que a morte não
Filho de Deus. De maneira que assim afigurava tem outro melhor ofício, que lágrimas da vida
pecador, que havia juntamente outras coisas que passada. Da qual vida, tendo tantas coisas fora de
manifestavam sua grandeza; só na circuncisão parece Deus, e a ele contrárias tanta parte: Deus a quem
que de todo se esquece de si e de sua honra; nem toda se deve, fica com a mais pequena e muitas
há ali Anjos, nem Sol, nem milagres, nem gente vezes sem nenhuma. Quem tiver os olhos abertos,
que o publique por outro do que ele quer parecer. muita razão tem de se envergonhar deste cuidado
Porque quis por então satisfazer seu amor no deste Senhor, que nem quer ter idade, nem dia de
gosto de se amassar muito connosco: porque se vida desocupado de nosso remédio, nem de
com isto nos apegasse muito a si, tempo lhe ficava demonstrações do muito que nos quer, pois desde
para se nos dar mais a conhecer. Por onde posto nascido até glorificado se resume todo em muito
que outras penas tomou depois maiores, esta nos padecer, e em dar de si muito. [...]

75
TRABALHO XIII aqui começa com aquele mantimento de que
Cristo se mantinha quando disse: «Meu comer, é
Fome e sede de justiça fazer a vontade a meu eterno Padre», e com
aquela água, que também disse, que nos corações
Faz Deus tanta conta da fome e sede de justiça, dos fiéis nasceria uma fonte de água viva, que
em que os santos, e justos, que deveras desejam correria até a vida eterna. Porque as almas famintas
contentar a Deus vivem; que a contou por uma das virtudes, que lhes faltam, recebem de Deus
das mais perfeitas virtudes evangélicas, e um os humilde sujeição a sua vontade, com que com
mais certos, e seguros caminhos da bem-aventurança, gosto exercitam todas as virtudes e vivem, e se
dizendo no sermão do monte: «Bem-aventurados mantêm de cumprir em tudo a vontade de Deus;
os que tem fome e sede de justiça, porque serão e recebem também fervor de amor divino com
fartos.» Por justiça se entende a santidade das que arrancam de si os vícios, e sempre seu interior
virtudes e guarda da lei e doutrina de Deus; a como água viva, corre e caminha às coisas sobe-
qual justifica as almas, as tiras de pecados, as ranas. Mas a perfeição deste prémio, na vida eterna
converte a Deus, as alumia e purifica, e faz capazes o terão.
e dispostas para o perfeito amor de Deus, e para A segunda fome e sede, pela maior parte tem sua
receber os bens eternos. É de tanto merecimento satisfação reservada para a outra vida, por quão
a vida ocupada, e gastada na fome, e sede (isto é) geralmente reina, nesta frieza da caridade, e a
em ferventes desejos desta santidade e virtude, que continuação dos vícios. E por isso não podem ter
aparece que não pode ser remunerada com menos plenária fartura, senão onde, nem haverá vícios
que quanto Deus pode dar. [...] que arrancar, nem frieza que acender, nem mais
Porque prometeu o Senhor naquele grande sermão que desejar para as almas dos próximos, que os
do monte (como diz nosso Santo Padre Agosti- eternos bens que já tem. Esta é uma das virtudes
nho) um mesmo reino do Céu por prémio dos que com mais trabalho os Santos exercitam e que
oito caminhos que nele ensinou da bem-aventu- os mais cansa. Porque no que toca a si mesmos,
rança, por diferentes nomes e atributos, conforme todos seus trabalhos são por desarreigar de si o
à qualidade de cada virtude. Por isso ao reino do amor terreno e os vícios, a que a natureza os
Céu, que por esta virtude dará, chamou fartura, inclina, e em nenhuma coisa mais suam e cansam,
própria satisfação da fome e sede: porque naqueles que em vencer suas tentações e mortificar sua
bens eternos, onde sem imperfeição, será Deus carne, por fartar o desejo que tem de contentar
amado e obedecido, fartarão os justos plenària- a Deus e o amar. E quanto maior é este desejo
mente a fome e desejo de seu amor; e obediência e fome, tanto maiores são os trabalhos, que por
em que vivem. De duas maneiras se entende esta isso tomam. E para nenhuma outra coisa trabalhosa
fome e sede de justiça. Uma (como diz o mesmo hão mister maior paciência, que para sofrer os
Santo) é fome e desejo de tirar o ânimo, e espírito defeitos de sua fraqueza e os estímulos, que em
próprio das coisas baixas, arrancar de si mesmo o sua natureza sentem contrários à fome e desejo,
amor das coisas terrenas, em que com pestífero que tem de em tudo contentar a Deus, e acudir
gosto está cativo, e empregá-lo só em Deus. Outra inteiramente a quanto Deus deles quer, que sempre
é fome e desejo, que todas as almas façam o interiormente por eles tira. E no que toca à
mesmo, e esta nasce da primeira, e tanto é maior, salvação dos próximos, depois fique as almas
quanto a primeira mais pura e perfeitamente se chegam a de todo o coração amar ao Senhor,
acende no amor de Deus. O prémio da primeira cresce nelas luz e conhecimento de quanto esse

76
Senhor merece ser de todos amado, e custa-lhes
muita pena ver a perdição dos que vivem em
pecado e ardem em desejo de ver tudo reformado,
Compêndio
submetido à obediência da lei do Senhor, e não
sentem menos ver os homens apartados dele, que
de Doutrina
o tempo em que elas próprias o estiveram. E
apelo muito que uma e outra fome aos Santos, se
lhes dá por prémio fartura, como refeição e esforço
Espiritual
a cansados do trabalho, como diz nosso Padre
Santo Agostinho. E diz ele mesmo que o quarto D. FREI BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES *
dom do Espírito-Santo, que é fortaleza, é próprio
dom desta virtude. Porque muito esforço divino CAPÍTULO II
é necessário para a força, com que o coração
há-de arrancar de si o amor terreno, e para os SEGUEM-SE OS REMÉDIOS PARA CADA
trabalhos com que se adquire o amor divino. E UM DOS VÍCIOS, E EM PRIMEIRO LUGAR
muita fortaleza do Espírito-Santo há mister a CONTRA A SOBERBA
alma presa do amor de Deus, para sofrer a pena,
que lhe dá a perdição das almas que vê, e para O primeiro remédio consiste na meditação da
se oferecer a todo o trabalho pela salvação delas, nossa vileza de corpo e de alma. Quem foste?
quando for necessário, sem estimar perdas temporais, Quem és por dentro, de onde as fezes em ebulição
desonras, nem morte, pelas ajudar a salvar. E se escoam pelo orifício rectal, além de outras
segundo isto, é esta virtude fonte de todas as coisas semelhantes? Considera que as honras a
virtudes dos santos e gloriosos trabalhos, que por ninguém se tributam pela pessoa de cada um, mas
contentar a Deus e ajudar os próximos passam. pelo lucro que os aduladores daí se prometem: são
[...] semelhantes aos abutres e aos cães que se lançam
sobre os cadáveres, porque esperam saciar a fome
com eles, mas quando tiverem comido tudo até
aos ossos, deixam-nos sem sequer lhes dizerem
adeus. Considera além disso que, embora haja em
nós coisas boas, estas não são nossas; são dons de
Deus, e embora nos obriguem a objectivos maiores,
a verdade é que as conspurcamos maldosamente,
manchando de muitos modos o sacrifício das
orações e das acções.
Quanto ao mal, esse é puramente nosso e digno
de castigo.

* Frei Bartolomeu dos Mártires. Compêndio de Doutrina


Espiritual. In Obras Completas, Fátima: Of. Gráfica “Pax”,
1962.

77
Pensa igualmente nos muitos perigos a que azeite no fogo, quando acrescentas o rancor ao
estamos expostos, e sobretudo no maior de todos, espinho da injúria? São tantos os que por toda
que é o da condenação eterna. a parte se opõem a nós que, se quisermos esmagá-los
O segundo remédio consiste em nos exercitarmos e guardar as ofensas que de todos recebemos,
em obras humildes e desprezíveis, em andarmos teremos de sucumbir sob o fardo pesadíssimo,
com hábito humilde, em professarmos costumes antes de conseguirmos exterminá-los todos. Mas
humildes, em proferirmos palavras humildes, em se os venceres pela mansidão e pela paciência,
escolhermos o último lugar e em não ambicio- obterás uma vitória incruenta, coisa muito para
narmos nada que saiba a jactância ou a ostentação. admirar.
Se porventura sentes que tais humilhações mais te
acicatam a soberba, prossegue com maior fortaleza § II – Remédios contra a tristeza e a tibieza
no exercício da virtude, pois com a sua prática
assídua essa gloríola desaparecerá. Deve em primeiro lugar advertir-se que, para falar
O terceiro remédio consiste em considerares com com propriedade, há diferença entre estes três
todas as veras da tua alma na humildade de sentimentos, a saber: uma coisa é a tristeza, outra,
JESUS CRISTO e de todos os Santos: em com- a preguiça, e outra, a tibieza.
paração com eles (por mais que nos humilhemos) A tristeza é uma amargura do espírito, que nada
seremos como gafanhotos ao pé de um gigante, aceita de alegre nem de saudável, antes se entrega
como um seixo junto de um monte, como uma ao aborrecimento, foge do convívio humano e
gota em comparação com um rio; entre nós e detesta qualquer forma de prazer.
eles é difícil estabelecer proporções. A preguiça é também uma espécie de torpor
mental que ama o sono e todas as comodidades
§ I – Remédios contra a inveja e o ódio corporais, tem horror ao trabalho, foge de tudo
o que é duro, como o frio e a fadiga, para se
O primeiro e principal remédio consiste em não deleitar apenas com a ociosidade.
amar nem desejar as coisas terrenas; é delas que A tibieza detesta o que é de Deus, mas mostra-se
nascem a inveja e o ódio. sempre ágil e alegre para tudo o mais. A oração
O segundo é teres como certo que, embora o é-lhe insípida e desagradável; apressa-se a acabar
que invejas não estivesse na posse dos outros, nem com a maior brevidade possível a oração que tem
por isso te seria dado para que o possuísses. de fazer; foge aos louvores de Deus; apascenta-se
O terceiro é teres como certo que a inveja não de rumores; delicia-se em jogos; só pensa em
passa de um verme do teu coração que só a ti ocupar-se de negócios; a cela é para ela um
é prejudicial e mortífero. Para extirpares pela raiz cárcere; gosta de divagar com o espírito e o
o ódio ao teu próximo considera atentamente corpo; nada lhe é mais molesto do que aplicar-se
que, enquanto não te reconciliares com o teu a Deus e às coisas relativas ao proveito espiritual;
irmão, serás odiado pelo bom Deus e que, entre- todo o rigor da disciplina espiritual lhe é insu-
tanto, nenhuma das tuas obras terá o menor valor portável; murmura contra ele; queixa-se constante-
junto d’Ele. Procura, pois, ser mais agradável e mente da dureza dos prelados e da disciplina dos
mais afável para com aquele que sabes estar mais zeladores.
acerbamente contra ti. Assim abrandarás o seu O primeiro remédio é, portanto, obrigar-se cada
coração e o teu. Há muitas coisas que te molestam um (mesmo com violência!) ao amor e à prática
e perturbam. Por que é que tu, infeliz, deitas da virtude que mais lhe repugne, principalmente

78
à oração e à celebração dos ofícios divinos, até o esgoto de todos os males, tentações e maus
que, com a graça de Deus, o tédio se converta em pensamentos. Como, pela fenda na quilha, a água
prazer. E é preciso perseverar, ainda que a graça se infiltra calada e secretamente, até que o navio
seja diferida, pois o trabalho e a luta aumentam se afunda, assim, pelo ócio, se multiplicam os
o mérito, a virtude robustece-se e pouco a pouco pensamentos concupiscentes até que a barca da
o tédio diminui. Deus não nos pede o que não nossa mente consente no pecado. Fecha, pois, as
recebemos, isto é, a graça da devoção sensível; mas janelas dos sentidos às coisas ilícitas. David pecou
o que Ele quer sobretudo é que a procuremos por ter visto a mulher de Urias; Eva, porque viu
com todo o afecto do nosso coração e, depois de que o fruto era bom; o mesmo aconteceu a Dina
no-la dar, a conservemos e lha agradeçamos. por ter sido curiosa com a vista. Não é lícito
É possível que do combate provenha mérito maior olhar o que se não pode desejar sem pecado.
para obter a devoção (ainda que aquele que ora Quanto menos vires e ouvires coisas mundanais,
pareça não a aproveitar), do que, sem esforço tanto menos se inflamará o teu desejo delas; e
próprio, ter muita devoção interna. É que tal quanto mais te deleitares no trato das coisas pro-
devoção poderia causar desvanecimento e, por fanas, tanto mais as poeiras profanas te mancharão,
conseguinte, diminuir o mérito; com aquela, porém, te obscurecerás e entibiará o teu afecto para com
o coração humilha-se e o mérito sobe mais alto. Deus. É quase impossível estarmos no moinho
O remédio contra a tristeza reside na lembrança sem nos enfarinharmos. Do mesmo modo devemos
frequente da bondade de Deus e na recordação procurar reprimir todas as sugestões interiores,
dos Seus benefícios, no convívio com os bons, na pois com familiares pérfidos toda a guarda à
ocupação do espírito e do corpo com leituras, porta se nos torna inútil. Mais do que tudo,
ensino, disputas, estudo, trabalhos braçais, cansaço porém, aproveita o exercício da devoção para
do corpo e outros sacrifícios deste género. alcançar o celeste orvalho, capaz de desarmar todas
A tristeza desencadeia por vezes o espírito de as investidas do inimigo.
blasfémia que, no dizer de Gersão, não só é sugerido
pelo espírito maligno, como tem também causas
naturais, a saber, o vazio cerebral causado pelo
jejum ou a sua saturação proveniente dos vapores
da bebida em excesso, da glutonaria e da ocio-
sidade. Esta tentação da blasfémia (que contém
mais de molesto que de perigoso) repeliu-a muito
prudentemente um certo religioso que, pergun-
tando-lhe alguém como poderia vencer este figadal
inimigo, respondeu: «Meu filho, não faças caso
desses aguilhões de Satanás; todos esses pecados,
eu os tomo à minha conta.»

§V – Remédios contra a luxúria

Fugir da familiaridade de mulheres e homens


desonestos, não regalar o corpo, nem (como dizem)
acariciar a pele, fugir da ociosidade, são na verdade

79
80
BIBLIOGRAFIA
S U M Á R I A

81
82
Bibliografia Frei Tomé de Jesus. Trabalhos de Jesus (1602 e 1609)
6.ª edição. 2 vols. Porto: Lello & Irmão, 1951.

1.ª edição: Trabalhos de Jesus. Primeira parte.


TEXTOS LITERÁRIOS Trata dde XXV trabalhos que o Senhor passou
desde hora em que foy concebido até a noite de
Samuel Usquel. Consolação às tribulações de Israel. sua pr isão. Tem considerações nouas &
(fl. 1553). Com estudos introdutórios por Yosef proueitosas aos pregadores quanto tratam da vida
Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa: de Christo nosso Senhor. Lisboa, por Pedro
Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. Edição Craesbeeck, 1602;
facsimilada da 1.ª edição – Ferrara: Abraão Usque, Segunda parte. Que passou desde o Orto de
1553. (Contém bibliografia.)* Gethesemani, até sua morte, que são os trabalhos
da sua sacratíssima payxão. Continuão-se nesta
segunda parte os capítulos & exercícios dos
Frei Heitor Pinto. Imagem da Vida Cristã. (1563- trabalhos de Señor pela orde da primeira
1572) 1941; Lisboa: Livr. Sá da Costa, 4 vols., comelando no trabalho 26 até os 50. Lisboa, por
1952-58. Vicente Alvarez, 1609.

1.ª edição: Imagem da vida christam. Ordenada Frei Bartolomeu dos Mártires. Compêndio de
per diálogos como memberos de [s]ua com-
Doutrina Espiritual. In Obras Completas (1514-1590)
po[s]içam. O primeyro he da verdadeira phi-
lo[s]osophia. O [s]egundo da religiam. O terceyro
de Frei B. dos Mártires. Fátima: Of. Gráfica “Pax”,
da justiça. O quarto da tribulaçam. O quinto da 1962.
vida [s]olitaria. O [s]exto da lembrãça da morte.
Compo[s]tos per frey Hector Pinto, frade de 1.ª edição: Compendium spiritualis doctrinae [...].
Ieronymo. Impre[ss]os em Coimbra por Ioão de Olysippone, expesis Ioannis Hi[s]pani Biblio-
Barreira. MD.LXIII [1563], 1.ª Parte; 2.ª Parte: polae, 1582.
1572.
Edição Crítica: Imagen de la vida cristiana. Introd.
y notas por E. Glaser. Barcelona: 1967. GERAL

Frei Amador Arrais. Diálogos. (1589). Selecção, pref., AAVV. Antologia de Espirituais Portugeses. Apres. por
notas por Fidelino de Figueiredo. Lisboa: Sá da Maria de Lourdes Belchior, J.A. de Carvalho e
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1.ª edição: Dialogos de Dom Frei Amador Arraiz, Breton, D. le.“Dualisme et Renaissance. Aux sources
Bispo de Portalegre. O.C. fl. 1580. Coimbra: Em d’une représentation moderne du corps». In
Casa de Antonio de Mariz, 1589. Diogène (142).

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