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7:95-111, 1984.
Silvia M . S. C A R V A L H O *
RESUMO: O artigo aborda o mito de Édipo procurando inicialmente desvendar o código calêndri-
co — astronômico do mito. Uma segunda leitura realça o tipo psicológico de Édipo no retrato que dele
faz Sófocles, retrato que parece corresponder ao espirito da nascente filosófica grega. Finalmente, reto-
mando análises de Luc de Heusch, R. Cohen e Yamagushi, procura desvendar um código político, ten-
tando acompanhar as transformações da organização política dentro do contexto histórico do surgi-
mento da polis, seguindo a mesma linha de investigação de Jean-Pierre Vernant.
Penso que nenhum mito da Antigüi- engano de Édipo, o de pensar que conhe-
dade Clássica p r o p õ e de forma melhor cia a si mesmo, o de que poderia reconhe-
que o de Édipo uma reflexão sobre o que é cer o H o m e m para, no fim de sua vida,
o Homem, o que é esta entidade a que constatar que só após n ã o ser mais nada
pertencemos e que se tem autodefinido, se transformara verdadeiramente num ser
desde sempre, como Humanidade. É que, humano?
apesar de todos os meios de conhecimento O conhecimento é sempre um proces-
a nosso dispor, de todos os progressos que so doloroso e uma arma de dois gumes.
as diversas ciências e a filosofia têm apre- Só o tolo pensa que sabe. O É d i p o de Só-
sentado para um melhor conhecimento do focles teve que aprender esta lição a duras
Homem, continuamos buscando respos- penas e, a toda reinterpretação do mito e
tas diante de Esfinges sempre prontas a do enigma corre-se o mesmo risco. A bus-
devorar, n ã o só a nós enquanto in- ca do conhecimento se resume, assim, em
divíduos, mas t a m b é m a Humanidade e última análise, violência feita contra o
ao mundo enquanto um todo. que se quer conhecer, justamente por
A contribuição da Antropologia nes- sujeitá-lo ao arbítrio do nosso conheci-
ta busca de respostas é bem conhecida. mento. Neste sentido, o conhecimento é
Voltada inicialmente para as culturas n ã o - pecado, é sacrilégio (18). E é pensando no
ocidentais, a Antropologia resgatou os mito de Édipo como uma representação
traços fundamentais dessas culturas, na dessa tragédia do saber humano, que me
medida mesmo em que estas foram sendo assusta um pouco a responsabilidade de
destruídas ou vilipendiadas pelo processo inaugurar este ciclo de palestras.
da colonização — no bojo da qual os pró-
prios antropólogos se aninharam, em E m todo caso, sinto a Antropologia
grande parte com ela coniventes. Aos como um campo muito fecundo, capaz de
poucos, a dicotomia " n ó s e os outros" traçar pontes entre as várias áreas do co-
(gregos e b á r b a r o s , cristãos e pagãos, civi- nhecimento e com uma tarefa específica
lizados e selvagens) foi sendo questionada pela frente, a de tentar construir, junta-
e recolocada, até que nos tempos de hoje, mente com as outras disciplinas, a difícil
tristes Édipos que somos, chegamos à Ciência do Homem, que deve mostrá-lo
conclusão que os " o u t r o s " somos nós como ele é, como foi e mesmo como po-
mesmos. N ã o foi este t a m b é m o grande deria ter sido e, principalmente, apontar
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to, dos Ofaié-Xavante, mostra um dos he- da América, África e Oceania continua-
róis culturais transformando em animais ram caçadores muito bem sucedidos até
alguns dos homens primevos, a fim de so- os tempos modernos, até a destruição vio-
lucionar o desespero causado por uma fal- lenta trazida pela colonização, destruição
ta absoluta de caça (20). Fica claro, assim, não só dos povos aborígenes como tam-
que os povos sem m a q u i n á r i o , pré- bém do próprio meio ambiente.
agricultores, não perceberam como ines- A atividade de caça e coleta baseia-se
gotáveis os recursos disponíveis para sua justamente numa técnica de realimenta-
sobrevivência, ainda que estes fossem ção da natureza que os arqueólogos ame-
abundantes. Tendo em vista que a huma- ricanos chamaram de "negative feed-
nidade primeva baseou sua existência nu- back", isto é: procura-se reequilibrar os
ma exploração sistemática, cuidadosa do recursos naturais por atitudes negativas
território tribal e que, durante milênios, de consumo. P o d e r í a m o s dizer que o cine-
os deslocamentos de uma área para outra gismo do grupo dentro do território tribal
foram muitíssimo lentos, pode-se imagi- responde justamente a essa necessidade
nar que a própria sobrevivência do grupo básica de reposição negativa, determinan-
através da reprodução dos seus sistemas do um escalonamento de recursos apro-
adaptativos de caça/coleta teria que de- priados, coincidindo a época de seu apro-
pender de uma avaliação muito natural, visionamento justamente com o mês ou o
objetiva, dos recursos existentes, dos ci- período em que esse aprovisionamento
clos de reprodução de animais e plantas, pode redundar em maior proveito para o
de um conhecimento profundo dos siste- grupo, mas t a m b é m e principalmente pre-
mas adaptativos de cada planta, de cada judicar o menos possível o ciclo de repro-
animal. Que este conhecimento existia en- dução da espécie vegetal ou animal em
tre os caçadores históricos, e superava questão. Para canalizar determinadas ati-
mesmo os conhecimentos científicos dos vidades exclusivamente para certas épocas
ilustres botânicos e zoólogos visitantes do ano, é preciso, naturalmente, proibi-
modernos dos impérios coloniais, mostra- las nas demais. Os tabus exercem, portan-
nos a leitura do primeiro capítulo de O to, importante função reguladora das re-
Pensamento Selvagem. lações entre o Homem e a Natureza. O es-
Creio, assim, que o universo simbóli- paço pouco profundo que o cinegismo
co e os mitos que o estruturam são decor- anual do grupo delimita é visto, portanto,
rentes de uma reflexão profunda e coeren- como um universo formado por uma mas-
te sobre a experiência social mais impor- sa de energia que n ã o é inesgotável e da
tante do homem: as relações em que se qual o homem tira o seu sustento, dando
funda a sobrevivência de seu grupo (ou de morte aos animais. A mulher, por sua
"nós, os humanos"). É hoje indiscutível vez, se encarrega do filho, amamentando-
o extraordinário sucesso alcançado pelo o por muitos anos, uma vez que n ã o existe
sistema de caça e coleta, capaz de garantir substituto para o leite materno. Além dis-
a sobrevivência da humanidade durante so, ela se volta fundamentalmente para as
milênios, sem comprometer o equilíbrio atividades de ?oleta, o que implica no uso
ecológico. Se refletirmos que a área do de um instrumental menos agressivo que o
Mediterrâneo j á estava povoada por caça- utilizado pelo homem (cesto em vez de
dores há mais de 500.000 anos passados e lança). Seu trabalho poderia, pois, ser
que somente há cerca de 10.000 anos A . C . simbolizado pela coleta de frutos (traba-
se desenvolveu uma fixação do homem lho que n ã o implica em matar a árvore) e
em torno de uma agricultura de jardina- pela procriação de seres humanos. Te-
gem, percebemos que os povos do "Cres- mos, assim, uma auto-representação mui-
cente Fértil", onde primeiro surgiu a agri- to arcaica da sociedade, como que dividi-
cultura, permaneceram caçadores/coleto- da em uma metade masculina, que dá a
res durante 97% dos tempos que transcor- morte, e outra, feminina, que dá a vida.
reram até os dias de hoje. Outros povos, As cerimônias religiosas n ã o são, em últi-
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ma análise, senão uma dramatização de bais, contados pelos mais velhos, noite
um equilíbrio entre a Natureza e o após noite, para as gerações mais novas,
H o m e m - C a ç a d o r , a Natureza e a Mulher- são ilustrados pela ascensão de constela-
Coletora e, representando Homem e M u - ções, coincidindo o relato, com o passar
lher, cada qual, partes distintas do U n i - de um ano para, em seguida, tudo reco-
verso, mantendo Homem e Mulher em meçar. É fácil entender, assim, que a
oposição antagônica e complementar no Deusa-Terra é, ao mesmo tempo, uma
interior do mundo humano. Deusa-calendário cósmico, composta de
Além disso, homem e mulher, cada partes femininas e masculinas. É fácil
qual dentro de sua prática de vida, encon- compreender t a m b é m que quando outras
tram certos competidores animais que formas de atividade se tornam dominan-
acabam assumindo, a nível simbólico, as tes, as gerações novas n ã o consigam mais
funções de senhores vingativos do mundo compreender toda a complexidade dessa
da Natureza. A mulher se opõe, assim, visão cosmológica e se recusem a sacrifi-
principalmente à Serpente, numa relação car as velhas divindades. A vitória de Édi-
antagônica e complementar, ao mesmo po contra a Esfinge pode, portanto repre-
tempo. N o universo simbólico do Caça- sentar algo mais complexo que a revolta
dor é algum carnívoro (leão, onça, lobo), contra o autoctonismo, embora este signi-
que freqüentemente desempenha essas ficado ressaltado, por Lévi-Strauss tam-
funções. Acontece t a m b é m que a caça a bém esteja presente (14:250).
determinados animais ou a m a t u r a ç ã o dos Voltemos ao quadro do sistema de
frutos ocorrem numa época fixa. É fácil caça-coleta, agora para tentar entender a
perceber, então, que certos períodos do questão do infanticídio. A regeneração da
ano se individualizam nas concepções de Natureza, numa economia pré-agrícola e
um determinado povo como época marca- sem criação de gado se faz pelas forças da
damente feminina ou marcadamente mas- própria Natureza, no decorrer do ano. A
culina, isto devido a intensificação das contribuição intencional do homem para
atividades atribuídas à mulher ou ao ho- o restabelecimento do equilíbrio reside so-
mem, pela divisão sexual do trabalho; ou, mente no nomadismo e no escalonamento
devido à incidência maior dos acidentes de produtos coletados, reforçado por inú-
fatais nesta ou naquela categoria sexual... meros tabus. C o m o a vida do grupo de-
(Pode-se imaginar, por exemplo, o que se- pende da morte que os caçadores d ã o aos
ja colher frutos num oásis onde as palmei- animais, a compensão do Homem para
ras geralmente estão infestadas de serpen- com a Natureza é representada da mesma
tes)... Finalmente, é por aí que se com- forma, pois, na realidade, os cadáveres
preende a representação dos períodos sob humanos que voltam à terra, dispersos em
o signo de um determinado animal vários pontos do território, alimentam os
(animal-espécie, "senhor dos animais", animais e os vermes e fertilizam a vegeta-
ser mítico, portanto) cuja essência eterna ção. Evidentemente, sacrifícios humanos
está patente nas constelações. A s mortes institucionalizados de pessoas adultas só
ocorridas no grupo são, naturalmente, surgem quando uma religião baseada no
sentidas e lembradas como compensações culto dos ancestrais desenvolve uma classe
da Humanidade à Natureza, uma vez que sacerdotal, e isto só acontece tempos de-
as vítimas são transformadas nas entida- pois da sedentarização em torno da agri-
des que as vitimaram. E a epopéia vivida, cultura. Mas o infanticídio e mesmo o
ano após ano, por gerações de heróis e he- abandono dos velhos ocorrem nas socie-
roínas, eterniza-se na m e m ó r i a do povo dades de caça/coleta e são dramatizados
que a lê no grande livro aberto que é o céu nos mitos e nos ritos como sacrifícios. O
estrelado, modelo do drama existencial homem pré-agricultor que ainda n ã o de-
que se desenrola aqui embaixo. É curioso senvolveu um sentimento de propriedade
constatar, assim, que os grandes mitos tri- sobre as vidas que pertencem à Natureza
só pode sacrificar, devolvendo à terra, a
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única coisa que ele produz: a vida huma- humana, quando se compara esta às so-
na. ciedades dos demais primatas; bem enten-
Podemos dizer assim, que, embora dido, a partilha é a conseqüência normal e
não sendo a única representação possível, necessária da organização da economia de
a representação dominante na ideologia caça/coleta, a divisão do trabalho encar-
dos povos caçadores/coletores é a das re- regando o mesmo homem da caça e a mu-
lações entre o Mundo Humano e o M u n - lher da coleta. É, pois, desta organização
do da Caça, como relações de uma troca da economia, do trabalho que se originam
recíproca de mortes. Essa forma de conce- o princípio de participação, o sentimento
ber as relações Homem-Natureza (primei- de fraternidade, a reciprocidade "positi-
ro membro da equação da " p r a x i s " hu- v a " pelas trocas, "positivas" desta vez,
mana) é responsável, como j á vimos, pela pois o que é trocado são bens (bens e ser-
representação, na mitologia, dos "senho- viços).
res" do mundo exterior (que é também o Além disso, outro aspecto que preci-
mundo da morte propriamente dita), pre- sa ser levado em consideração é que, com
ferencialmente, sob a forma de carnívo- a formação dos Estados Teocráticos, o
ros, de outros animais que d ã o a morte, rei-sacerdote ou o rei encarnação de deus
ou ainda de divindades "tricksters" como é, antes de tudo, tido como um "ser que
o nosso M a k u n a í m a indígena, como C r o - se sacrifica", um mediador entre o seu
nos que come seus filhos. O u , ainda, co- povo e os deuses ou o mundo exterior, e
mo os deuses oraculares que pedem sa- esta mediação se consegue no esquema ar-
crifício ou que procuram induzir as pes-
caico de representações, assumindo o rei
soas a fazê-los, como ocorreu com os pais
um status de "vítima-sacrificial". Este sa-
de Édipo. Aparentemente é este sentimen-
crifício, numa sociedade de linhagens, em
to de um reequilíbrio entre o Homem e a
Natureza, concebidos como estando em que os mortos — os ancestrais — são os
relações antagônicas e complementares, mediadores entre os mundo- humano e o
que se encontra na origem do sentimento Cosmos (Natureza e Além) caracteriza-se
de justiça. O sacrifício n ã o decorre, como um rito que visa transformar o che-
parece-nos, diretamente de um complexo fe num ancestral vivo e por isso rei sagra-
de culpa como querem certos psicanalistas do ou encarnação ae deus, pois a linha ge-
(8), mas da necessidade de assegurar o fu- nealógica ascendente leva naturalmente
turo: uma Natureza que n ã o se reequili- ao herói civilizador, que é, em última ins-
bra, não mais permitirá a sobrevivência tância o deus criador dos nomens e do
do grupo. mundo humanizado.
Esta transformação ritual em ances-
O segundo membro dessa " e q u a ç ã o " tral caracterizava muitos reinos africanos
elaborada pelas trocas imagináveis e reais, e os seus significados e funções passaram
é o próprio mundo humano analisado a ser objeto de estudo de vários a n t r o p ó -
através de suas relações internas de trocas logos. A teoria nativa (ou ideologia) desta
efetivas. Nada justifica a violência que o realeza pode ser enunciada da seguinte
Homem faz à Natureza, salvo se esta vio- maneira: diferente dos iniciados comuns,
lência se fizer, n ã o em nome do indivíduo, que ganham nova vida humana, o rei divi-
mas em nome do grupo: o produto da ca- no, não renasce como homem com mais
ça é dividido com os outros, o caçador se poderes. Ele se torna um ancestral. Por is-
"sacrifica" repartindo o fruto do seu tra- so a vida dele é concebida como um ver-
balho como se repartisse a si mesmo*. dadeiro hiato, como se os anos de seu rei-
Muitos antropólogos, entre eles Morton nado fossem uma fração de segundo entre
Fried (6:52), identificam a partilha como a entronização (isto é, o início do sa-
uma característica distintiva da sociedade crifício) e a c o n s u m a ç ã o de sua morte.
* Aliás, nas sociedades cinegéticas, toda caça deve ser amplamente distribuída — (4); e entre alguns caçadores, o homem
nunca come do animal que ele mesmo abateu.
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Canetti (2) se refere a uma tradição za arcaica, e é com este mito que Sófocles
bambara que reflete claramente esta con- trabalhou.
cepção: uma faixa de algodão é posta em a) A Esfinge e a representação cósmica do
torno do pescoço do novo rei e, enquanto período anual
duas pessoas puxam nas pontas da faixa Robert Graves (7), seguindo a trilha
em sentido contrário, retiram-se pedri- de Nilson (Primitive time reckoning) ten-
nhas de uma cabaça, cada pedrinha repre- de a reconhecer na Esfinge uma deusa
sentando um ano de vida que o rei terá, a pré-helênica, venerada em Tebas pela es-
partir de e n t ã o . N o fim do reinado, cuja tirpe de Cadmos, tendo Jocasta como sua
duração é assim determinada, ele será es- sacerdotisa-mor. Deusa lunar, símbolo de
trangulado (2:444). um calendário também lunar, seu aspecto
A desordem, o caos se instauram en- feminino se identifica com a constelação
tre a morte do rei e a entronização do su- da Virgem. Levando em conta que as
cessor. Mas isto significa, t a m b é m , que se divindades-Terra realmente são símbolos
concebe o seu reinado como uma suspen- cósmicos, a identificação é perfeitamente
são do tempo histórico, um equilíbrio en- válida. O autor levanta, assim, a hipótese
tre as forças da Natureza e o H o m e m . O de Édipo ter sido um estrangeiro, repre-
imprevisível, o caos se instauram entre um sentante dos invasores aqueus que, pene-
sacrifício e outro, isto é, quando n ã o há trando na Grécia por volta de 1.300 A . C . ,
rei, quando n ã o se sacrifica. Este " c a o s " , acabaram por redefinir os velhos cultos
evidentemente, pode ser evitado numa si- creto-micênicos, introduziram a religião
tuação de "estabilidade" política, de alta olímpica, marcando a passagem de uma
homogeneidade de concepções religiosas, sociedade matriarcal ao patriarcado e
onde os direitos ao poder da linhagem ou substituíram um calendário lunar de três
dinastia real n ã o são questionados. O her- estações por um calendário solar de qua-
deiro do trono sacrifica ritualmente seu tro.
pai, como se este fosse seu alter-ego: Quanto à questão da substituição ca-
transforma-se no pai, por isso mesmo co- lêndrica, outros estudiosos retomaram es-
metendo incesto com a própria m ã e ; ela ta análise, trabalhando com mitos diver-
mesmo sendo concebida como deusa, sos. Jean Richer (21) trabalhou com o mi-
quando o herdeiro representa seu papel de to de Gerião, o gigante de três cabeças,
pai dos humanos. "Deusa-terra" ou morto por Herakles, juntamente com os
"deusa-lua", nesta ideologia da realeza, seus dois companheiros (Ortrós e Euri-
ela representa ao mesmo tempo, no seu tiâo), numa história de roubo de gado,
aspecto humano e jovem, a Bela entregue que encontra um paralelo numa outra,
à Fera (arcaica imagem de uma aliança que atribui o roubo dos bois de Apoio a
simbólica com a Natureza). A Fera, natu- Hermes. Jean Richer, numa análise fasci-
ralmente, é o jovem rei, revestindo a pele nante, demonstra que a eliminação de Ge-
de leopardo ou de leão que é um substitu- rião marca a substituição de um calendá-
to para a própria pele do pai na qual, lite- rio tiipartite por outro com divisão do
ralmente, o filho penetra. Pois a realeza ano em quatro estações.
arcaica implica evidentemente numa
Os monstros hesiódicos seriam, pois,
transformação simbólica do rei, simulta-
segundo Graves e Richer, na sua maioria,
neamente, em ancestral vivo e em senhor
guardiães de signos do zodíaco, os perso-
do mundo extra-humano, mundo extra-
nagens menores representando os decana-
humano assumindo a forma do mais feroz
tos de cada signo, e sua m a t a n ç a dando
dos carnívoros, capaz de justiçar o mundo
origem a novos seres mitológicos repre-
humano, restabelecendo o equilíbrio cós-
sentaria, t a m b é m , um lento deslocamento
mico.
dos solstícios, provocado pelo movimento
Esta é, portanto, a significação reli- lento de declinação do eixo terrestre. A
giosa, e estas são as funções do parricídio argumentação de Richer é muito convin-
e do incesto com a mãe, no mito da reale- cente e n ã o se pode duvidar que ele conse-
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guiu decifrar o código astronômico do mi- preza como secundários, ou seja, o episó-
to. Naturalmente n ã o se pode concordar dio do desvio por Herakles dos bois de
com ele quando sugere que a simbólica do Gerião para Tirinto, façanha paralela à de
mito "era inteiramente a s t r o l ó g i c a " . É Hermes, raptando os bois de A p o i o . N u -
verdade que, como já ressaltamos aqui, ma análise do mito de Hermes (12), Kahn-
não só os mitos gregos estavam inteira- Lyotard mostrou que este episódio repre-
mente representados no céu, como apa- senta a passagem de um mundo pré-
rentemente o estavam os mitos de todos pastoril para o pastoreio, representando
os povos arcaicos. É só atentarmos para os animais de A p o i o um rebanho selva-
as análises de Lévi-Strauss: há um código gem, pertencente ao Sol, à Natureza, ao
astronômico, j á decifrado ou por decifrar mundo n ã o - h u m a n o e daí, por que não?
e freqüentemente os mitos se referem a se- — também ao mundo dos mortos. São,
res sacrificados ou partes de vítimas sacri- portanto, as atividades humanas que se
ficiais transformando-se em estrelas ou transformam e que imprimem novas sig-
constelações. C o m o j á ressaltamos, há nificações aos meses, às estações. E a
testemunho que entre certos grupos substituição de um calendário de ano tri-
indígenas sul-americanos, os mitos são partite por um calendário de quatro esta-
contados ao longo do ano, cada episódio ções, deve-se, naturalmente, n ã o simples-
encontrando no céu noturno um modelo mente a um deslocamento dos solstícios,
eternizado na ascensão de novas constela- mas a novas atividades essenciais à vida
ções. Não há dúvidas que, passadas mui- humana que enfatizam diferentemente de-
tas e muitas gerações, os movimentos se- terminados períodos do ano**.
cundários do globo terrestre introduzem Voltando, agora, às idéias desenvol-
neste universo simbólico alterações que vidas atrás sobre a associação mulher-
são notadas pelos povos e que precisam frutos-serpente-outono convém lembrar
ser explicadas, constituindo, assim, um que a esfinge é a guardiã do solstício de
dos " c o n t e ú d o s científicos" do mito (no outono e do homem com a caça, em opo-
dizer de Jean Richer). Mas, como bem sição complementar com os grandes
percebe o leitor das Mythologiques, a de- carnívoros (lobo ou c ã o , leão), e teríamos
codificação astronômica não invalida ou- inicialmente um ano dividido em duas es-
tras leituras. Essas leituras se complemen- tações, possivelmente simbolizadas pelo
tam, representando vários níveis ou esfe- leão e a serpente, ou ainda (como parece
ras de um drama existencial. N ã o tem ter sido o caso dos povos do México e da
fundamento, portanto, a crítica de Jean América Central, se pensarmos em Quet-
Richer a mitógrafos que aproximaram zalcoatl, a Serpente emplumada), pela ave
Gerião de Hades (também possuidor de e pela serpente, as duas estações concebi-
grandes rebanhos) e que viram em Gerião, das possivelmente como masculinas e fe-
por isso, uma divindade infernal. Os doze mininas, ainda que o simbolismo sempre
trabalhos de Herakles podem, perfeita- se desbobre t a m b é m em outros significa-
mente, t a m b é m ser entendidos como ritos dos. A esfinge, na descrição de Hesíodo,
de iniciação e de há muito se sabe que to- com um corpo de leão, serpente e pássaro,
do rito de passagem implica em morte e representava certamente um calendário de
ressurreição dramatizadas, o que eqüivale três estações, introduzido aos poucos des-
a dizer que uma boa parte das façanhas se de o neolítico, na medida em que se desen-
realiza teoricamente no reino dos mor- volveu uma outra atividade econômica: o
tos*. cultivo dos cereais, com sua m a t u r a ç ã o no
Examinemos, pois, outros detalhes verão, com ritos sacrificiais
do mito que Richer, em sua análise, des- concentrando-se na época da semeadura
* Deodoro de Souza observa, a este respeito, que "o Jardim das Hesperides e uma forma do reino da morta" e associa a
conquista dos pomos de ouro a da imortalidade, em arcaicos ritos iniciaticos, possivelmente eleusinos (24 201-5)
** No Hino homerico a Demeter (10), o ano aparece ainda tripartite Persefone e condenada a permanecer no Hades sempre
1/3 do período anual (correspondendo ao inverno), voltando com a primavera.
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pria " h y b r i s " que, se criada, atrairia a seus tribunais leigos? com a justiça que é a
desgraça para o grupo todo (1:820). dos homens, pelos homens? numa época
Supõe-se que a hybris que o grupo come- em que Hesíodo é criticado porque parece
te, colocando uma boca a mais no mundo ainda acreditar nos mitos e nesses deuses
(um caçador a mais, uma futura m ã e a tão caprichosos, que tratam os homens
mais) se voltará contra o grupo todo, as- como se estes fossem marionetes?
sim como é o grupo todo que é castigado Mas Sófocles mostra os dois lados do
quando um caçador infringe um tabu e problema: as velhas crenças n ã o estão
comete uma hybris contra o animal caça- mortas. Se estivessem realmente mortas,
do. precisariam Laios ou Jocasta desfazer-se
Quando o sacerdócio se torna uma do filho? Bastaria simplesmente n ã o crer
instituição, naturalmente se tende a con- no oráculo. Se fossem mais amorosos,
sultar o vidente, a pitonisa, o oráculo. Es- ainda sabendo do oráculo, crendo nele,
te processo de institucionalização do sa- não poderia ter criado o filho, assumindo
cerdócio acompanha a transformação o risco?
política da sociedade. N o reinado teocrá- Embora o infanticídio tenha sido
tico, a ideologia da realeza faz do rei a en- praticado tradicionalmente pela Grécia
carnação do Estado: ele e seu povo são arcaica, ou pela exposição nos montes, ou
um só. O rei, através da dramatização do pela entrega às águas (como aconteceu,
seu próprio sacrifício, assume a condição no Egito, a Moisés), o problema da trans-
de um "ancestral v i v o " , evidentemente ferência de responsabilidade aparece no
concentrando nele simbolicamente a es- Édipo-Rei como análise profunda: man-
sência de todos os ancestrais e, como tal, dar matar é crime maior que matar com as
logicamente, tem que ser concebido como próprias m ã o s . E continua sendo, mesmo
invulnerável, perfeito. Qualquer imperfei- que a ordem n ã o tenha sido executada.
ção neste "deus v i v o " traz consigo a trá- Jocasta n ã o soube ser m ã e , nem mesmo
gica constatação de que deus está abando- da forma negativa de m ã e que imola o fi-
nando seu povo, abandonando o corpo lho como ocorria outrora entre os Boro-
em que se encarnou. Pelo menos, estas ró.
idéias estão entrelaçadas de tal forma que
se faz sentir ao povo que a ameaça que Existem, portanto, dois problemas a
paira sobre o soberano como uma ameaça considerar: — um, é a crença no orá-
a este mesmo povo, a terra-solo se tornan- culo que, de certa forma, passa para
do estéril, a Natureza nega-se à reprodu- um plano secundário diante do ou-
ção. Que outra ideologia poderia ser invo- tro, que é o problema universal das
cada para a imolação, t ã o parecida com a decisões humanas, que devem ser
dos Bororó, determinada por Herodes? amadurecidas, responsáveis, aceitan-
Existe realmente um paralelo entre as do, ou a imposição do oráculo, ou a
causas do sacrifício dos bebês Bororó, do possibilidade de seu p r ó p r i o sa-
determinado por Herodes e do destino crifício, criando o filho.
anunciado a É d i p o : os bebês morreram
porque um deles, destinado ao sacrifício, Curiosamente, como que marcado
não deveria viver, assim como Édipo n ã o por ter sido recusado como filho e recusa-
deveria viver. Édipo é um bode expiató- do como vítima sacrificial, É d i p o recusa-
rio, impregnado do crime que o oráculo se, durante toda a vida, às duas coisas.
lhe atribui a priori, ele deve morrer*. Para Toda a sua juventude é de teima para ser
a racionalidade que está despertando na filho de quem n ã o é, mas nessa teima
Grécia na época de Sófocles, isto n ã o tem abandona os supostos pais, para n ã o cor-
sentido. C o m o pode alguém ser condena- rer o risco de ele, É d i p o , ser vitimado pelo
do a priori, quando a polis j á surge com vaticínio. E acredita que o seu saber hu-
* Esta característica de "bode expiatório" aparece enfatizada na analise de Vernant & Vidal-Naquet (26:93).
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mano lhe permitirá fugir ao destino que investigações. O que ocorre a Édipo? que
os deuses lhe quiseram imputar. sua mulher n ã o quer que ele torne pública
Na realidade Édipo se condena, n ã o uma origem humilde porque se envergo-
porque matou o pai, n ã o porque casou nharia de tê-lo por marido (22:110). Co-
com a mãe, mas porque sempre só pensou mo toda pessoa que só pensa em si, Edipo
em si mesmo e porque foi soberbo a ponto transfere para os outros a sua maneira de
de acreditar em sua própria sabedoria. ser e n ã o acredita em ninguém, nem nos
Vernant (25) já apontou para essa soberba deuses, nem nos homens (e é este o pro-
de Edipo: " M u i t o seguro de si, confiante blema fundamental). N ã o pensa Edipo
demais em seu conhecimento, seu julga- que seu cunhado conspira para se apode-
mento, ele n ã o é levado a por em dúvida a rar do trono, apesar dos protestos de
sua própria interpretação dos fatos: de Creonte e do repúdio do coro? N ã o amea-
uma natureza orgulhosa, ele se pretende ça ele Tirésias, o vidente, depreciando-o
sempre e onde queira, líder, o primeiro. por se julgar mais sábio que este? Não
Aparecem aí as razões d'ordem mais pro- ameaça a todos que n ã o querem fazer-lhe
priamente psicológicas, às quais Sófocles as vontades, sempre imaginando que
obedece". Édipo se define com uma segu- agem de má-fé?
rança altaneira: aquele que decifra os Mas, o que mais acentua o caráter de
enigmas. anti-herói de Edipo é justamente o episó-
Assim é que, quando lhe sugerem pe- dio da Esfinge. O "tema de Jonas" (ser
la primeira vez que n ã o é filho legítimo de devorado por um animal, um monstro) é
Políbio e Mérope (22:63) vê nisso apenas um símbolo conhecido de iniciação, refe-
a tentativa de rebaixá-lo, insinuando n ã o rido em muitos mitos com uma distribui-
ter tido ele uma origem nobre. N ã o sente ção quase universal. Muitos povos drama-
pelos pais, sente tão-somente por ele. tizaram mesmo este sacrifício, levando os
Tanto é assim que é quase com alívio que iniciandos a passarem por dentro de uma
toma conhecimento da morte de quem su- máscara gigantesca de um animal fantás-
põe seu pai: só procura saber dos últimos tico. T a m b é m a morte pode ser concebida
sentimentos de Políbio a seu respeito, pa- como uma passagem obrigatória através
ra certificar-se que este realmente n ã o do bojo de um monstro, como o demons-
morreu por culpa dele, É d i p o . Sente-se vi- tram as figuras zoomorfas de crematórios
torioso, não órfão (22:107). da ilha de Bali. Na Grécia havia uma anti-
Embora a todo momento protestan- ga crença de que, para que as almas pu-
do sua preocupação por Tebas e pelos f i - dessem entrar no outro mundo, teriam
lhos de Tebas, comprometendo-se com a que se deixar engolir por um monstro,
sua causa, deixa claro que é por si próprio guardião do mundo dos mortos.
que o faz pois, qualquer que seja o assas- Ora, se lembrarmos que Édipo se ne-
sino, ele poderá um dia eliminá-lo da mes- gou a ser devorado pela Esfinge, decifran-
ma maneira que eliminou a Políbio. O do o enigma por ela proposto estamos no-
discurso é narcisista: dirigindo-se a um vamente diante da ambigüidade tão típica
deus, A p o i o e a seu cunhado Creonte, do mito. Deveria ele ter vencido a Esfinge
Edipo define o seu empenho em descobrir para derrotá-la ou deveria ter aceito o sa-
o criminoso nestes termos: " E justo que crifício? pois n ã o parecia ela estar espe-
ambos encontreis apoio em m i m " ... para rando justamente por Edipo, a vítima sa-
logo adiante colocar-se novamente, expli- crificial negada?
citamente, em primeiro lugar: ele o fara Resta analisar a forma pela qual Edi-
por si mesmo, por A p o i o , "por esta terra po venceu a Esfinge. A solução de enig-
que morre, privada de suas colheitas, es- mas é uma prova de iniciação, tanto
quecida de seus deuses" (22:81). quanto o sacrifício ao monstro e, aparen-
Novamente pensa somente em si temente, Édipo saiu-se bem da prova. So
quando Jocasta, pressentindo a tragédia que, nas cerimônias de iniciação religiosa,
toda, lhe pede que não prossiga em suas a decifração do enigma representa a com-
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* Perseguido por uma onda gigantesca, encimada por um monstro marinho (enviados por Posidão a pedido de Teseu). Hipó¬
lito acaba por ter seu carro despedaçado nos rochedos e ele mesmo, preso nas rédeas, encontra a morte pisoteado pelos cavalos
(7:357) Graves identifica esta morte como rito sacrificial do rei-sol
** Fedra se enforca, tal qual Jocasta, mas não por horror a algum incesto cometido, e sim por paixão n ã o correspondida e pa¬
ra inculpar como incestuoso o inocente Hipolito, seu enteado (7-357). Graves reconhece em ambas sacerdotisas de um arcaico
culto lunar.
*** Vernant & Vidal-Naquet analisaram, em A caça e o sacrifício na 'Orestia' de Esquilo, essa passagem de uma ideologia da
caça para uma visão do mundo da domesticação. "de uma maneira impressionante se passa do vocabulário da caca ao vocabu-
lário da agricultura e da criação" (26-123 e segs.) Veja-se também Eumêmides e a diacosmese da Terra Mãe (24 73-94). para a
comprensão da transformação das Erínias em Eumênidas
**** A hierogamia eleusina diamatizava, efetivamente, a união do Hierofante com a Deusa-mãe Ver, a este respeito (6)
***** Edipo morre em terras consagradas às Eumênidas
******"...pois os animais de criação, que são precisamente as vitimas normais do sacrifício, devem por um sinal indicar o
seu assentimento o que e exatamente o contrario de uma morte por emboscada . . " (26.119) Evidentemente isto também se
aplica ao sacrifício humano (como sacrifício religioso).
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ABSTRACT: The aríicle concerning a discussion over Oedipus myth, tries ftrst to infer the astro-
nomic — calendrical code of the myth. A second lecture indents Oedipus psychological type as pamted
by sophocles, which corresponds apparently to the risind Greek philosophical spirit at lasl, retaking so-
me other analysis (as these of Luc de Heusch, R. Cohen and Yamagushi), the article intends to discover
the political code, trymg to pursue the transformation of political structures, in the historical context of
Greek urbanisation, followmg some research — line as Jean-Pierre Venant.
R E F E R E N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
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