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Márcia Gobbi1
Resumo
Este artigo aborda diferentes infâncias apresentadas pelo poeta modernista Mário de
Andrade em seus contos: Cai, cai, balão, Tempo de Camisolinha e Piá não sofre,
sofre? Em ambos o poeta apresenta crianças e suas transgressões e diversas
formas expressivas, antecipando de forma original estudos cujas preocupações
voltam-se para conhecer mais profundamente as infâncias, trazendo contribuição
inestimável para a constituição desse campo de pesquisa: educação e infância, em
especial a primeira infância.
Palavras chave: infâncias; literatura; modernismo; Mário de Andrade.
Abstract
This article discusses different childhoods made by modernist poet Mário de
Andrade in two of his many stories: Cai, cai, balão, Pia não sofre, sofre? Tempo de
Camisolinha. In both the poet gives children and their various transgressions and
expressive forms in anticipation of an original studies whose concerns turned to know
more deeply the childhoods, bringing invaluable contribution to building this field of
research: education and childhood, especially the first childhood.
Keywords: Childhood; modernism; Mário de Andrade; literacy.
Resumen
Este artículo aborda las distintas infancias presentadas por el poeta modernista
Mário de Andrade en sus cuentos: Caí, caí, balão, Tempo de Camisolinha y Piá não
sofre, sofre? El poeta da a los niños y sus transgresiones y diferentes formas, en
previsión de un estudio original cuyo foco se desplaza a saber más sobre la infancia,
con lo invalorable contribución a la constitución de este campo de investigación: la
educación y la infancia, sobre todo La primera infancia.
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Introdução
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Vale lembrar que não foi com os modernistas que a criança surgiu pela primeira vez como temática
nas artes. No Renascimento, as crianças surgem também na biografia de artistas, trazendo o tema da
precocidade com que o gênio se manifestará. Ressalto que a criança-prodígio foi um dos temas
abordados por Mário de Andrade. O surgimento do gênio estava atrelado ao desenho de maneira
disciplinar adestrando a mão do desenhista. O interesse pelas expressões plásticas das crianças
remonta ao século XVI com o artista Giovan Francesco Caroto, com a obra Fanciullo con Pupazzetto.
Caroto pinta uma criança segurando um desenho que, pelos traçados que se assemelham aos
desenhos infantis, parece ter sido criado pelo próprio menino que o mostra. No entanto, somente
séculos depois, as crianças serão concebidas como aquelas cujas criações podem e devem inspirar
alguns artistas, sobretudo devido ao caráter transgressor encontrado em ambos: artistas modernos e
crianças (Russo: 1988).
por que não dizer, também nos educam sobre o que deviam ser meninos e meninas
na cidade que se constituía a época.
Ao trabalhar com os textos escritos por Mário, o que é possível encontrar,
entre tantos aspectos, é que esses contos nos fazem ver os objetos narrados, a
partir do contato com um denso lado imagético presente em ambos os textos. Essa
característica provoca-nos a ler vendo imagens, criando-as em profusão diante de
nossos olhos. Embora sabendo não existir uma arte puramente textual ou visual,
Mário de Andrade diz e descreve em seus contos, deixando o sabor de querer
conhecer e perquirir os diferentes espaços, as variadas infâncias, os sujeitos que
surgem em tantos contextos. Com isso fazem ver, com a qualidade visual existente
nas linhas escritas, nas maneiras como as temáticas são abordadas e as tramas
amarradas. Temos um texto que pode ser compreendido como imagem e do qual
saltam imagens, figuras a desvelar infâncias esquecidas ou que fazemos por
esquecer.
As afirmações que constam em alguns de seus artigos, cartas e contos
apontam para o que será característico de épocas posteriores, quando, num esforço
teórico, se muda a perspectiva sobre a infância, que começa a ser dita e percebida
por si mesma. Mário4 não apresenta diretamente as vozes das crianças, mas
consegue trazer aspectos de suas vidas que revelam muito do imaginário da
infância. Mário de Andrade, no período histórico em que escreve encontra-se na
intersecção entre concepções que apontam a criança vista e dita somente por
adultos, que, ao traduzirem seus comportamentos, revelam a percepção da criança
como uma não falante, logo, não desenhista, não expressiva, e outros modos de
compreender a infância que procuram representá-la em seu universo, ouvindo suas
vozes para apreenderem suas formas de ver o mundo. A infância é retirada do
silêncio que tanto a ocultou na história, e que conseqüentemente ocultava suas
criações, conquistando um espaço e um status diferenciado.
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Tomo a liberdade de tratá-lo apenas pelo primeiro nome em algumas passagens do texto desta
obra, imbuída pelo sentimento de proximidade que fui construindo à medida que lia seus estudos,
poesias e, principalmente, algumas cartas.
(...) o homem, nas alturas sábias dos quarenta anos, vai e pratica um
ato de menino de grupo. (...) mas por outro lado, a realização
espontânea duma faculdade infantil num homenzarrão meditabundo
que já enterrou a infância num cemitério repudiado, mostra que o
indivíduo, por maior técnica que possua, guarda pra sua riqueza a
inexperiência do aprendiz. (1963,p.126)
É, numa cidade aqui não denominada, que Mário afirmará sua presença de
adulto refletindo a criança e, ainda mais, sobre a própria infância. Provocação.
Provoca-nos ao apresentar práticas cotidianas de uma infância que ficou enterrada,
Revista Múltiplas Leituras, v. 3, n. 1, p. 70-85, jan. jun. 2010
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devolve a criançada, afinal, como afirma no conto, o que fazer com um balão? O que
fazer? Sua pergunta faz entrever: o que fazer com práticas infantis do passado
quando elas nos são restituídas? Com um outro tempo nas mãos? Trabalha
mostrando-nos a presença inequívoca da cidade que cresce e destitui, sob tantos
aspectos, o humano do ser humano de todas as idades, e a infância, que quando
reencontrada evidencia a necessidade, cada vez maior, de sua existência.
Restabelecer imagens de uma infância que numa cidade, em suas ruas tortuosas e
cheiros de rosas, como o poeta dizia, se perde e vem se perdendo há décadas,
desde o descrito no início do século XX. Não se trata, em hipótese alguma, da
constatação pura e simples de lembranças de um passado remoto e idealizado, nem
mesmo de defender a infância idílica, avizinhando-a da natureza, como alguém
espontâneo naturalmente, mas sim de problematizar a insistência com que nos é
colocada a impossibilidade de manifestações lúdicas, tidas como infantis, o que por
vezes é dito, até mesmo, de forma pejorativa. A figura da criança e as práticas
infantis que a envolvem, surgem aqui como para provocar o adulto a pensar sobre o
quanto tem que estar apto a viver somente com o espírito da racionalidade, que
ainda não conseguiu domar totalmente a criança e suas singularidades.
Em Cai, cai balão, Mário de Andrade subverte a ordem estabelecida há
tempos e já naturalizada, tais como aquelas fundadas na idéia de dominação e total
prevalência dos conhecimentos dos adultos sobre as crianças. Propõe a submissão
da lógica ou dominação do mais jovem, subvertendo então a ordem presente com a
modernidade onde o homem vai mascarar sentimentos, não reagindo a certas
solicitações, evocando um ar blasé, distanciado de seu cotidiano mais imediato, ao
mesmo tempo em que lidar com a pluralidade das relações sociais, especificamente
aqui, entre adultos e crianças, e deste primeiro tendo que tomar parte de aspectos
subjetivos tais como a volta de práticas infantis não vividas em sua inteireza.
Destaco que se trata também da influência da dinâmica da cidade que ao crescer
exige daqueles que nela habitam que adquiram determinadas posturas – que
desconsideram propostas mais lúdicas ou reflexivas – que podem gerar o se
convencionou chamar de “perda de tempo”. Perder o tempo instituído pelo capital,
que inequivocamente, deve ser rápido, produtivo, onde brincar e pensar mais
detidamente são ações percebidas como escolhas feitas pelo mero prazer.
Pode-se assinalar a capacidade de recriar, em Mário de Andrade, um tempo,
no qual disputas nas ruas em brincadeiras de crianças aconteciam com mais
Mário traz para seu texto elementos já vistos em poesias, tais como a que o poeta
Olavo Bilac, diz não perder seu senso, e que abre as janelas, conversando toda
noite com as estrelas, enquanto a via láctea cintila. O sentido poético do poeta é
aqui restabelecido junto à criança. Trata-se de uma, entre tantas experiências
infantis, das quais por vezes, não participamos ou mesmo não compreendemos,
fechados em nossas visões adultocentradas que estamos. Compreensão que
implica negar a maneira linear como explicamos o mundo, implica rever as
concepções que tomam como princípios explicativos da realidade a separação entre
mão e cabeça, fazer e pensar, hierarquizando concepções, práticas e relações
sociais que estabelecemos com os outros, e as crianças em particular. Essa mesma
centralização de práticas, olhares e definições do que são as crianças e do que as
mesmas devem ser futuramente aparecem no primeiro parágrafo de Tempo de
Camisolinha:
A feiúra dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura de
sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência
da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação
mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me
desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos,
alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: você ficou um
homem assim! Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo
lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e
recomecei a chorar. (1996. p:102)
Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da camisola, as
calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de inverno em
levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar. Mamãe se incomodava
muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no varal
enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha
madrinha, Nossa Senhora do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra
Santos aquele quadro antigo de que falei e de que ela não se separava
nunca, quando me via erguendo a camisola no gesto indiscreto, me
ameaçava com minha encantadora madrinha — “meu filho, não mostra isso,
que feio! Repare: sua madrinha está te olhando na parede”, e descia a
camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda.(1996,p, 103)
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Vale lembrar, que Mário de Andrade em 1918 é noviciado na Ordem Terceira do Carmo,
posteriormente chamada de Venerável Ordem Terceira do Carmo. O conto foi escrito décadas mais
tarde e talvez tenha também sido resultado desse episódio passado em sua vida de menino.
mais peculiar nos escritos de Mário de Andrade sobre a infância: não distanciar-se
daquilo que expõe a singularidade da criança e o que a difere do adulto (a). Não a
identifica com organizações preocupadas com propostas comerciais, padrões de
consumo nos quais as crianças se vêem como alvos constantes, tantas vezes
caracterizadas apenas como consumidoras de culturas.
Não tendo desenvolvido teorias a respeito, Mário de Andrade tem na
literatura a presença marcante de sua voz sobre a infância, apresentando crianças
de todas as idades, sexo, etnia, classe social. Em sua obra, a presença marcante
das múltiplas infâncias dialoga com tantos Mários e se põe a conversar conosco em
promissoras ofertas de criticas aos nossos atos, em que não paramos para refletir
sobre quais são as concepções de infâncias que pautam as relações sociais que
estabelecemos com meninos e meninas em nosso cotidiano. Urge pensar e
considerar nossas práticas educativas na família e nas instituições de ensino.
Referências bibliográficas
Andrade, Mário de. Cai, cai, balão. In: Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins
Fontes,1963. p. 123-126.
_________________. Piá, não sofre, sofre? In: Os Contos de Belazarte. São Paulo,
1939.
_________________. Tempo de camisolinha. In: Contos Novos. São Paulo: Martins
Fontes, 1939/1996.
_________________. Vestida de preto. In. Contos Novos. São Paulo: Martins
Fontes, 1939/1996.
_________________. Crônicas de São Paulo. SESC São Paulo e Editora SENAC
São Paulo. 2004.
Baudelaire, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra.
1996.
Candido, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro. Editora Ouro sobre o azul.
2008.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Educação pré-escolar e cultura. São Paulo. Editora
Cortez. 2002.
Russo, Lúcia Pizzo. Il disegno infaltile:storia, teoria pratiche. Palermo. Itália. Editora
Aesthetica. 1988.
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Personagens dos contos “Piá não sofre, sofre?” (1939/1996), “Tempo de camisolinha” (1939/1996) e “Vestida de preto”
(1939/1996), respectivamente, nos quais apresenta crianças como protagonistas em diferentes contextos.