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A história das ideias, sendo assim, analisa muito mais as opiniões do que o saber, muito mais
os erros do que a verdade, “não das formas do pensamento, mas dos tipos de mentalidade” [2].
Uma de suas qualidades é a possibilidade de mostrar em quais momentos noções filosóficas
se transformam em pauta para discussões científicas. É, para além de um certo tipo de análise
material, um estilo. Ela descreve
A história das ideias tem como grandes temas a gênese, a continuidade e a totalização. É
assim que hoje, segundo Foucault, ela se liga a maneira tradicional de fazer história. Através
de sua descrição, também fica difícil entender o porquê da necessidade de romper com este
estilo de pesquisa histórica, já hegemônica.
Segundo Foucault, é normal que qualquer um que se baseie nos métodos da análise histórica
tradicional ou na história das ideias, acuse a análise do discurso como traição à história. Mas
é necessário demarcar espaço, “ora, a descrição arqueológica é precisamente abandono da
história das ideias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa
de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram[4]”, salienta o
autor.
Foucault enumera quatro diferenças marcantes entre as duas formas de fazer história:
Para realizar este tipo de separação, a história das ideias precisa descrever dois tipos de
conformações: no primeiro caso, ela descreve uma sucessão de acontecimentos de
pensamento, e o analista, por sua vez, irá reconstituir a emergência das verdades ou das
formas; no segundo, descreve camadas ininterruptas de efeitos, local em que o arqueólogo
deve remeter o discurso a sua relatividade.
A maneira específica da história das ideias de estabelecer a oposição acima indicada apresenta
problemas para caracterizar a originalidade. São duas questões metodológicas de difícil
resolução: a da semelhança e a da sequência.
Afinal, como é possível indicar a sequência de autores até se chegar num autor específico? A
linha do tempo e a delimitação espacial seriam os determinantes, além do próprio discurso
expresso pelos autores? Foucault não considera que a precedência seja um dado irredutível e
primeiro,
Em relação à semelhança fica mais claro ainda a dificuldade de aplicá-la corretamente. Como
se pode dizer que algo é semelhante a outra coisa? Como se pode afirmar que um enunciado
é semelhante a outro? Qual é o critério que deve-se utilizar para afirmar que um enunciado já
foi dito?
Não há como falar que uma frase se parece com outra somente por atender às mesmas regras
gramaticais; ou que uma proposição é idêntica a outra por atender às mesmas regras lógicas.
No nível dos enunciados, não é simples demonstrar uma semelhança. A semelhança entre
dois autores, entre dois conceitos, não é evidente em si, mas sim uma analogia que nasce
como efeito do campo discursivo em que a delimitamos.
É por isso que indagar o valor de originalidade de um texto é mais ou menos irrelevante. Só
serve quando traçamos uma série muito bem delimitada, em campos discursivos
suficientemente homogêneos. Isso porque, a arqueologia não se importa com sucessões
cronológicas ou semelhanças aparentes, já que ela se dirige às práticas discursivas a que os
fatos que se sucedem, precisam se referir.
A Arqueologia não traça hierarquias de valor. Seu objetivo é estabelecer a regularidade dos
enunciados, “designa, para qualquer performance verbal (extraordinária ou banal, única em
seu gênero ou mil vezes repetida), o conjunto das condições nas quais se exerce a função
enunciativa que assegura e define sua existência”[3].
As invenções não são do interesse do arqueólogo, que se dedica não a encontrar uma lista
sucessiva de fundadores e marcos simbólicos de uma teoria, mas sim a identificar a
regularidade de uma prática discursiva que é exercida pelos sucessores (pequenos ou vistoso)
e até mesmo pelos predecessores dos autores analisados. Essa regularidade dá conta desde o
original até o repetido, sem perder nenhuma enunciado do discurso.
Foucault adianta os possíveis rumos de uma pesquisa das regularidades enunciativas, que
pode começar com:
Mas as ramificações não são deduções axiológicas dos enunciados reitores, pelo contrário,
devem (e podem) ser descritos em sua autonomia e sem a referência à base da árvore de
derivação enunciativa. A análise daformação discursiva, assim, não pode ser rebaixada a uma
“periodização totalitária”, como se todos pensassem de um jeito determinado em um dado
momento.
Pelo contrário, ao lidar com a raridade dos enunciados, com as árvores de derivação
enunciativa, ela trata da diversidade que um discurso possibilita aos sujeitos que, através dele,
precisam se expressar. A prática discursiva, portanto, não é uma camisa de forças, mas sim o
exercício de um sistema regular que não toma o objeto para se mostrar, porém vive em seus
interstícios.
A história das ideias, diferente da arqueologia, tem na contradição uma certeza da coerência.
As contradições são encontradas, isoladas, separadas para que, no fim, seja possível encontrar
o núcleo de coerência. O papel da contradição, portanto, é o do caos. A contradição esconde,
atua num limiar entre o dito e o pensado e precisa ser superada para que a planície da
coerência seja encontrada.
A contradição não está, portanto, já no próprio desejo do homem, das influências que sofrem,
nas condições que vivem. É necessário sempre admitir que a própria comunicação tem como
objetivo desfazer uma contradição aparente.
1. O primeiro tipo mostra uma coesão profunda que denuncia a superficialidade das
contradições. O discurso é, portanto, uma figura ideal que deve ser separada dos
objetos acidentais que lhe comprometem;
2. O segundo tipo mostra dois pontos de contradição, o superficial, que precisa ser
quebrado para que se encontra aquilo que fundamenta o discurso – e o que o
fundamenta é a contradição que aprece no fim da análise, que serve ao discurso como
princípio.
A arqueologia, por sua vez, não brinca com contradições. Não são nem aparências nem
princípios fundamentais. “São objetos a ser descritos por si mesmos, sem que se procure saber
de que ponto de vista se podem dissipar ou em que nível se radicalizam e se transformam de
efeitos em causas”[3].
Sendo assim, não importa para a arqueologia resolver as contradições ou reduzi-las ao seu
mínimo: ela as descreve conforme suas funções e variações. Em vez de buscar coerências e
temáticas comuns, a arqueologia descreve espaços de dissensão.
Esses espaços são descritos após a identificação das diferentes contradições, que se separam
em:
1. Contradições que se localizam no plano das proposições. Como “no século XVIII, a
tese do caráter animal dos fósseis opõe-se à tese mais tradicional de sua natureza
mineral”[4]. Essas contradições nascem da mesma formação discursiva, segundo as
mesmas funções enunciativas: sãoarqueologicamente derivadas.
2. O segundo tipo Foucault chama de contradições extrínsecas. São aquelas
pertencentes às formações discursivas diferentes, como o fixismo de Lineu e o
evolucionismo de Darwin, que se encontram nos limites da história natural do
primeiro com a biologia propriamente dita do segundo.
3. O terceiro tipo é denominado de contradições intrínsecas. Estão no meio termo das
duas descritas acima. Se desenrolam na mesma formação discursiva e seu nascimento
gera subsistemas dentro dos sistemas de formações. O exemplo de Foucault são as
análises “metódicas” e “sistemáticas” na história natural, já que esta contradição não
é terminal, não trata do mesmo objeto, não coloca diretamente em oposição final os
termos que se contradizem; na verdade, são duas maneiras diferentes de se formar
enunciados, com objetos que podem ser diferentes, conceitos, posições de
subjetividade, escolhas estratégicas, enfim, tudo aquilo que é importante na análise
arqueológica.
As contradições arqueologicamente intrínsecas também são descritas pelo seu nível e a
contradição da história natural acima exemplificada pode ajudar a entender essas nivelações.
Este é o tipo de contradição que permanece na formação discursiva e abre novas
possibilidades com subsistemas, podendo surgir de:
A formação discursiva, Foucault afirma, não é um texto ideal, não é uma folha de
contradições que pede por ajuda para encontrar a coerência que lhe é de direito, nem mesmo
um poço profundo que pede a descoberta da contradição fundamental que lhe dá possibilidade
de ser o que é.
Como a arqueologia trata as mudanças? Michel Foucault não teme ao afirmar que, para a
arqueologia, o tempo cronológico não importa, não é assim que se observa o conjunto de
enunciados que, mais tarde, podem se agrupados como um discurso.
Da mesma forma, apesar dos enunciados sempre carregarem aformação discursiva, eles não
mudam com a frequência de sua repetição. É possível observar conceitos iguais em 100 anos,
como no caso da história natural, que manteve suas regras de formação por mais de um século,
até a ruptura em Darwin e a biologia.
Sendo assim, a arqueologia não se preocupa em enumerar acontecimentos em linha
sucessória, obedecendo a cronologia de suas emergências, mas trabalha com séries de
enunciados, que podem se cruzar ou não. Esta série de enunciados não retém uma cronologia,
ela é feita a partir da análise do campo discursivo. É esta análise, aliás, que encontra as regras
da formação do discurso.
Não interessa, portanto, para a arqueologia, dizer porque um dado enunciado foi dito, explicar
um fenômeno político ou relacionar um acontecimento histórico com o desenvolvimento de
uma ciência. O que ela quer é explicar como é possível a escolha de determinados objetivos
para se analisar ou determinados métodos para análise.
A arqueologia não explica a relação entre um evento e o discurso, mas sim expõe quais
sãos as condições para haver tal relação específica.
É necessário dizer também que as regras de formação que a arqueologia observa em uma
dada formação discursiva não são do mesmo tipo. Umas podem ser mais específicas ou mais
gerais que outras e é uma hierarquia que as classifica assim. Os discursos se relacionam,
portanto, horizontalmente, mas também verticalmente.
Eles podem, aliás, variar ao longo do tempo, mas dentro de uma temporalidade própria do
discurso. Foucault admite que o discurso não é uma figura sincrônica, encontrada após o
isolamento de várias amostras diacrônicas, como no estruturalismo. Na verdade, o discurso
não precisa, como já dito, da cronologia que o estruturalismo pede em suas análises ao longo
do tempo.
As diferenças são o objeto a ser encontrado na arqueologia. Elas não podem ser ignoradas e
nem ser colocadas como erro, como a mentira, como o caos. Pelo contrário, é a diferença que
vai delimitar o discurso, que vai mostrar a serialidade específica de um conjunto de
enunciados.
Mas essas mudanças, por sua vez, não são “criativas”. Elas não criam novos objetos, novos
conceitos ou novas estratégias forçosamente. Elas colocam esses objetos, conceitos,
estratégias e modos de enunciação sob regimento de novas regras, sendo assim, um discurso
que acaba substituindo outro tem como fardo os resquícios do anterior.
A descontinuidade, para a arqueologia, nunca é tempo perdido, nunca é um caos que atinge a
ordem do discurso. Pelo contrário, a descontinuidade acontece devido a um certo número de
transformações que podem ser especificadas, analisadas, observadas e organizadas.
A ruptura, vai dizer Foucault, não é um ponto de limite da análise arqueológica, mas sim parte
da análise, uma das partes principais. Um dos pontos mais sublimes para conseguir entender
o discurso.
Primeiramente, é interessante entender que Foucault não concebe o conhecimento como algo
dado: não há conhecimento natural, não faz parte da natureza humana conhecer as coisas e,
no limite, não há objetos de conhecimento. Tudo isso, que é considerado como algo dado, é
afastado da arqueologia foucaultiana. Aqui, faremos uma pequena resenha sobre a relação do
saber, da ciência e da ideologia proposta pelo autor francês na Arqueologia do Saber.
Veja também: Foucault e a cultura do eu
Mas como ele concebe o conhecimento? Ou melhor, o que pode ser “relativo” ao
conhecimento? Talvez o “saber”. E o que é saber em Foucault? Como o próprio diz na
Arqueologia, “ao invés de percorrer o eixo consciência-conhecimento-ciência (que não pode
ser liberado do index da subjetividade), a arqueologia percorre o eixo prática discursiva-
saber-ciência”. O que isso significa? basicamente que o que interessa na arqueologia é um
conhecimento como dominação, como prática discursiva e como pano de fundo para um
discurso científico, não para uma verdade científica.
[Os elementos do saber] são a base a partir do qual se constroem proposições coerentes (ou
não), se desenvolvem descrições mais ou menos exatas, se efetuam verificações, se
desdobram teorias. formam o antecedente do que se revelará e funcionará como um
conhecimento ou uma ilusão, uma verdade admitida ou um erro denunciado, uma aquisição
definitiva ou um obstáculo superado […] Um saber é aquilo que podemos falar em uma
prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes
objetos que irão adquirir ou não um status científico [Foucault, Arqueologia do Saber].
O saber também é o espaço em que o sujeito pode tomar posição para agir dentro do discurso.
Ou seja, é um conjunto de funções que articulam um dado discurso – segundo o mestre, “neste
sentido, o saber da medicina clínica é o conjunto das funções de observação, interrogação,
decifração, registro, decisão, que podem ser exercidas pelo sujeito no discurso médico”. Além
disso, o saber é “o campo de coordenação e subordinação dos enunciados em que os conceitos
se definem, se aplicam e se transformam [e o saber] se define por possibilidades de utilização
e de apropriação oferecidas pelo discurso.
O saber só nasce com uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode se definir
pelo saber que está formado sob ela.
O saber, então, muito menos estrito que os discursos, é um conjunto ordenado e sistêmico de
enunciados que podem ou não fazer parte dos discursos que emergem do saber e que podem
ou não fazer parte da ciência. O saber também, indo além dos enunciados, são as técnicas
utilizadas para conseguir as enunciações necessárias – como no exemplo do autor sobre a
medicina psiquiátrica, exposto acima).
Saber e ideologia
Quando a ciência emerge num dado saber, ou seja, quando ela se localiza dentro de um campo
de saber e quando ganha um papel definido (que é variável em cada diferente formação
discursiva), aparece a ideologia.
A influência da ideologia sobre o discurso científico e o funcionamento ideológico das
ciências não se articulam no nível de sua estrutura ideal (mesmo que nele possam traduzir-se
de uma forma mais ou menos visível), nem no nível de sua utilização técnica em uma
sociedade (se bem que esta possa aí entrar em vigor), nem no nível da consciência dos sujeitos
que a constroem; articulam-se onde a ciência se destaca sobre o saber. Se a questão da
ideologia pode ser proposta à ciência, é na medida em que esta, sem se identificar com o
saber, mas sem apagá-lo ou excluí-lo, nele se localiza, estrutura alguns de seus objetos,
sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns de seus conceitos e de suas
estratégias [ibidem].
A ideologia, portanto, deve ser analisada como prática discursiva, não como algo que pode
ser utilizado ou que é consciente para os sujeitos. Para se analisar a ideologia é necessário
passar pela formação discursiva que possibilitou sua existência, além dos conceitos, objetos,
formas de enunciação e escolhas teóricas que estão presentes na formação analisada.
Foucault ainda termina com um número de quatro proposições sobre a ideologia que resume
sua discussão: