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Título: “No princípio era o verbo, mas o verbo era um só: punir”.

Autor: Graziela Paro Caponi. Pós-graduada em Ciências Penais pela Universidade


Anhanguera/UNIDERP. Defensora Pública do Estado do Pará.

CPF: 08184745648

Endereço para Correspondência: Travessa Mario Curica, 365, Centro. CEP 68800-
000. Breves/PA.

Telefone: (35) 99881-0769


No princípio era o verbo, mas o verbo era um só: punir

O brasileiro é um povo que tem orgulho de se afirmar cristão. De fato: dados


divulgados pelo próprio Vaticano, em seu “Anuário Pontifício 2018”, dão conta de que
o Brasil é o país com o maior número de católicos do mundo. Ao lado disso,
denominações protestantes apresentam crescimento vertiginoso - o que se constata
inclusive ante o estrondoso impacto de sua representação política, hoje com bancada
própria no Congresso.

O que o brasileiro finge não saber é que, vandalizando as tábuas de Moisés, ele já
colocou outro “deus” acima de todas as coisas, há um bom tempo. Isto porque, em
momentos de dor ou sofrimento, nem todo religioso é capaz de reter suas crenças
inabaláveis; é comum externar lamúrias, impropérios ou heresias que sugerem, ainda
que em arroubos de raiva, que o Todo-Poderoso deixou de ser tão poderoso assim.
Enfim: além dos céticos que nunca acreditaram em nada, há os crentes que,
esporadicamente, se tornam incrédulos e desgostosos. Ao lado destes há os que,
constantemente, duvidam de Deus (ou dos deuses, ou mesmo de seus profetas e
santos). As coisas tristes e inexplicáveis deste mundo colocam à prova,
constantemente, a tal da fé - que, infelizmente, contradizendo a canção, costuma sim
falhar.

Um único “deus” resiste, firme e inabalável, a todas as provações, para ele confluindo
todas as religiões, todas as crenças e descrenças deste mundo. Porque é nele que o
brasileiro médio, o “cidadão de bem” - e também o brasileiro que não se diz tão
cidadão de bem assim - ardorosamente confia, com inflexível estabilidade: o “deus”
Direito Penal.

Sim, o Direito Penal é nosso poderoso deus, alocado acima do Brasil, de todos e até
do próximo - aquele próximo mesmo, que deveríamos amar acima de todas as coisas.
Não há mais hierarquia em nosso ordenamento: subvertemos a pirâmide de Kelsen e
cobrimos a Constituição com um manto de leis penais, porque o Direito Penal se
sobrepõe à norma hipotética fundamental e está, hoje, acima próprio Deus - inclusive
porque persiste, válido e efetivo, mesmo naquilo que conflita com as sagradas
escrituras. Eu diria que o Código Penal, essa retalhada e insossa herança de uma
década de 40 dita “fascista”(mas, talvez, menos fascista que a nossa), se une às
legislações criminais esparsas, assim como à onda de súmulas e precedentes
reacionários, para formar uma espécie de Panteão Tupiniquim. Frequentado, também,
por normas fundamentalistas, ainda sem respaldo legislativo próprio, mas que se
consolidaram (valha-me Deus!) pelo costume. E se orientam pelo mesmo condão
excludente, ainda que sob o pretexto de ser “normalizador”.

Aí estamos, servindo ao deus Direito Penal e nele alocando nossas expectativas,


desesperos e esperanças. Todos os nossos problemas serão resolvidos
milagrosamente, sejam eles sociais, econômicos ou morais. Se algo precisa ser
mudado, a fórmula é simples: criminalize! Criminalizar não resolveu? Aumentem a
pena, oras. Aumentar a pena não resolveu? Pois dê uma mexida na execução penal,
tornando-a mais rígida. Comece a prender mais cedo. Crie novas regras à prisão
cautelar, aumente a fiança, encarcere os mais jovens. O Direito Penal vai lapidar o
caráter dos desajustados, vai educar, ressocializar quem nunca se socializou. O medo,
ah, o medo dessa violência estatal, tão deliberada e efervescente, vai “ensinar esses
vagabundos!” – a serem, hum, menos violentos.

O Direito Penal vai salvar a Terra, e a expansão dessa seita com uma ilógica e
irracional adesão dos novos punitivistas amplia o coro. Daqui debaixo nós, os
pisoteados, já conseguimos ouvir as trombetas dos anjos e seus cânticos descendo do
céu. Ainda que esse som, essa luz... tenham cheiro de pólvora. Ora, o preço do louvor
é o sacrifício, então é necessário sempre, e o tempo todo, queimar alguma coisa. O
mundo não é um moinho não, Cartola estava errado: o mundo é uma máquina de
moer carne, e humana. Preferencialmente preta, pobre. Enquanto pudermos atirar, de
nossos helicópteros, nas crianças que saem da escola, tá tudo bem. “Só não vale
sacrificar meus próprios filhos, né. Afinal de contas, eu não sou Abraão”.

Homens de pouca fé nas reformas políticas que realmente precisam ser feitas, na
capacidade transformadora da educação, ou no resultado positivo cientificamente
comprovado pela implementação de medidas de longo prazo... mas de muita fé no
efeito arrebatador do discurso punitivista. A indústria do medo nos torna apáticos à
compaixão, mas deslumbrados ante o processo penal do espetáculo. Nossos
legisladores bradam, com o enérgico vigor próprio dos pastores evangélicos: “Mais
penas! Mais punição! Mais cadeia!”. Abafam-se, assim as vozes dos que gritam:
“Escolas! Creches! Empregos! Direitos! Hospitais!”.

É algo tão sedicioso que até a esquerda se rende. A esquerda lacradora, a esquerda
moderada, novas e velhas esquerdas, todas elas cingidas em uma ruptura que parecia
intrespassável no curso da tragédia eleitoral de 2018, agora se abraçam com
otimismo: “Agora vai prender! Vai criminalizar! Vai resolver tudo!”. A fé cega na
punição como única resposta, para tudo e todos, é mesmo uma coisa grandiosa. O
Direito Penal é, acreditem, quase que uma espécie de deus ecumênico.

Mas o que os fiéis dessa religião estranha desconhecem é que seu deus não tem
nada de justo ou misericordioso. Embora também onipresente, ele se materializa muito
longe dos templos que se dedicam a seu culto – como as mesas de bar, grupos
inocentes de whatsapp e discursos eleitoreiros. O direito penal, longe disso, se
materializa pavoroso.

E, no final do dia, é aquele juiz criminal cansado, sobrecarregado, amparando sozinho


todos os problemas sociais não resolvidos, todas as políticas públicas ineficientes,
toda a miséria do Estado, que lhe é jogada, de súbito, sobre os ombros. O juiz criminal
constantemente bombardeado por apelos ininteligíveis dos que babam raivosamente
por justiça – alguém me ajuda aqui, o que é “justiça”? Pressionado por uma sociedade
que, contrastando com o aumento de sua capacidade de comunicação e expressão,
sempre opta por deixar de lado a reflexão, e lhe aponta os dedos exigentes: “Prende,
meritíssimo! Prende!”. O juiz criminal está ali todo dia, oras, na Comarca; os políticos
em quem votamos não. Isso é justo – justiça?! – para ele? Homem das ciências e da
prática, o juiz criminal sabe, mesmo quando se faz de desentendido, que prisões
irrefletidas não resolvem verdadeiramente o problema. É um conforto momentâneo,
abafado – que só dura até a próxima audiência de custódia, o próximo flagrante, a
próxima sentença. Um constante enxugar de gelo. Ou, que me perdoem a expressão,
um contínuo limpar de merdas. Afinal, o sistema de justiça penal é a latrina pra onde
se lançam todas as podridões da sociedade contemporânea. É onde expiamos nossos
próprios pecados, fustigando o corpo do outro.

O juiz criminal se torna, a contragosto, o ministro deste culto insano. Pressionado,


coagido, confrontado... Entre dois caminhos, somente pode optar por um deles: ou
vive angustiado, assombrado porque o que lhe parece certo pode contradizer os
dogmas dessa malfadada religião... ou desaba e cede ao fanatismo colérico dos
demais. O juiz criminal, quando toma posse, não sabe que, ao lado de suas inúmeras
e cada vez mais complexas funções, terá de repartir a hóstia, espalhar o vinho,
separar as ovelhas, sentar-se diante do confessionário… e ainda dar conta de, na hora
do sacrifício, cortar ele mesmo as cabeças.

O “deus” Direito Penal também surge no fórum cada vez mais abarrotado de
processos, com reduzido quantitativo de servidores e um prognóstico sombrio. Se as
políticas públicas que dão errado obrigatoriamente desaguam no sistema de justiça
criminal, meus amigos, se preparem: está pra vir um novo dilúvio. Não há verba para
construir uma nova arca tão boa. Ainda que se use madeira ilegal, sempre haverá
suprimentos de péssima qualidade superfaturados. Mas... veja pelo lado bom: os
animais que conseguirão embarcar, ao menos, terão armas.

O Direito Penal está, do mesmo modo, na delegacia que não investiga nada –
algumas delas, aliás, que não investigariam nem se pudessem. Denúncia anônima é
nossa pastora, punição não nos faltará. Ainda que eu não ande pelo vale da sombra
da morte, sempre posso distribuir oitenta tiros e alegar legítima defesa. Autos de
resistência, aleluia! Nenhum policial se feriu com a arma forjada que nunca atirou - é
um milagre, irmãos! Tristemente, o Direito Penal está, também, nos bons policiais que
não dão conta do recado e adoecem, tanto quanto nos maus policiais que mergulham
na oportunidade e se corrompem. O Direito Penal elege governantes, o Direito Penal
arregimenta poderes... o apóstolo que executa os mandamentos na rua não quer
comungar nem pagar o dízimo, mas almeja enfiar sua própria cadeira na mesa da
Santa Ceia. A letalidade policial é a fogueira da inquisição dessa igreja “moderna”,
com ares de medieval.

O Direito Penal se manifesta ainda na vítima e na testemunha, constrangidas, jogadas


de audiência em audiência, forçadas a reconhecer qualquer um às seis da tarde no
distrito, porque não tem mais servidores na repartição e é preciso fechar, já que o
bairro é perigoso. O Direito Penal é o dar de ombros do Ministério Público, porque
afinal de contas “alguém tem que pagar”... se a gente forçar um pouquinho vai caber
mais um. E é o sistema de Justiça, ele todinho, cumprindo à risca a lógica do
encarceramento em massa, pautado em valores cada vez mais abstratos,
expressados em decisões cada vez mais genéricas. É preciso excomungar os infiéis,
pronto. Ih, não cabe mais gente? Calma: logo voltam as doenças que a gente não
erradicou, porque cortamos os direitos sociais e as pesquisas. Ou eles morrem de
fome. Pra alguma coisa, além de atender os interesses escusos dos bancos, deve
servir a reforma da Previdência. “Por enquanto ainda não temos novas vagas, senhor.
Estamos aguardando, na verdade, as dez pragas do Egito voltarem”. Eu acho que as
pragas já estão aí, apenas mudaram um pouco o formato. Afinal, já temos rios de
sangue correndo nas ruas, rios de lama das barragens rompidas…

E no fim do dia, no fim de cada dia, o Direito Penal também está nesse defensor
público criminal extenuado, sem forças, chorando sobre a pilha de processos e
petições, porque não sabe se deve se dedicar integralmente ao trabalho abdicando de
todo o resto (família? Saúde? Vida pessoal?) ou se joga a toalha e apenas assume o
posto burocrático que se espera dele. No seminário a teologia era tão diferente... O
que a gente faz, agora? Adianta... rezar?

O Direito Penal se materializa na impotência, e na constante frustração, diante de


restrições orçamentárias evidentes enfrentadas por quem sonha em fazer alguma
coisa. É o excesso de trabalho, o descaso, o menoscabo, a ironia... e ainda assim o
constante desejo de tentar transformar essa realidade que massacra, emociona, dói,
ao mesmo tempo em que violenta e extermina defensores de direitos humanos. O
dilúvio anunciado ainda nem chegou, mas já tem gente se afogando.

Só que o Direito Penal regularmente aparece nesse lavrador enrugado, calejado, que
se senta todo dia à minha frente, tentando explicar desajeitadamente seu endereço
para alguém que passou a vida inteira acreditando que “morar” era ter um número de
casa e um nome de rua - e agora é obrigado a entender que existem rios, passagens,
invasões, caixas de papelão, estradas. É, existem os que não possuem endereço
nenhum, mesmo. O Direito Penal é essa pessoa que foi ensinada a vida inteira que
poderia encontrar uma pequena de boa família e de bons valores, casar com ela. A
própria família dela pensa que ela é um fardo, ainda que não usem exatamente essa
palavra. Melhor pra todo mundo botar ela nesse barco e começarem os dois uma nova
família, onde fatalmente alguma hora vai nascer outra pequena como ela – que, se
não for levada pelos altíssimos índices de mortalidade infantil, vai crescer e se tornar
um fardo, e nesse momento vai precisar encontrar um homem de valor, pra ser jogada
pra dentro do barco dele, e recomeçar o ciclo. O “deus” Direito Penal também está
nesse “pobre diabo”, digamos assim (com o perdão do trocadilho) que não sabe
escrever o próprio nome, nem números, que só aprendeu a contar pra explicar
quantos filhos estão vivos e quantos já enterrou, mas que arregala o olho quando lhe
digo que pode pegar no mínimo oito anos de cadeia... E a gente já sabe quem vai
sofrer a sanção, junto com ele: a tal pequena (“minha muié”), que não vai ter o que
comer. E nos outros pequenos, incontáveis pequenos, que ficaram lá fora com ela.

Como é que a gente explica pra essa pessoa que é assim que funciona - porque nós,
brancos arrogantes, saímos de nossas capitais e cidades grandes, de mundos que ele
nunca ouviu falar para vir aqui... Não pra ensinar, esclarecer ou educar, muito menos
pra tentar mudar a fria e dura realidade que condicionou as coisas a serem assim, mas
para, simplesmente, impor nossos valores? É a nossa catequese: as penas. Mas se
eles dizem que estão ali pra “salvar” as almas, porque a sentença fala em
“CONDENAÇÃO”? Ai de quem não oferece a outra face para ser esmurrada… vai ter
que pagar, setenta vezes sete.
O Direito Penal não ressuscita Lázaros, não anda sobre as águas, não multiplica pães.
A gente é que se vire pra enfrentar as águas caudalosas desse mar vermelho, se
quiser atravessar pro outro lado. O único milagre que esse “deus” dito indefectível
consegue fazer é transformar água em vinho... um vinho do qual todos parecem beber
sem restrições, até o ponto de se embriagar e falar obscenidades. A missa do Direito
Penal é sempre essa profusão de línguas estranhas e ébrios irascíveis, incapazes de
dobrar os próprios joelhos, pregando o que parece ser o único mandamento possível:
“Prenderás!”. O fiel penal não quer saber de mais nada, ou ao menos finge não ser
capaz de assimilar mais nada, como se fosse capaz de, desse jeito, ascender ao
paraíso... Falta juízo (inicial e final). É fato que já ultrapassamos o purgatório: estamos
no inferno. Embriagados, os fiéis ainda não perceberam, e prosseguem em sua
loucura: “Prenderás! Prenderás!”. De vez em quando, um ou outro muda um pouco o
mandamento: “Matarás!”. Jesus Cristo, é o senhor?

Só quando estivermos queimando todos, atingidos cedo ou tarde em nossas cifras


negras, verdes e douradas, afinal ardendo e nos consumindo em fogo e enxofre, é que
então perceberemos que nos curvávamos, todo esse tempo, a um altar de ilusões,
erigido sobre falácias apregoadas por falsos profetas. Um dia, conheceremos a
verdade, ainda que seja tarde demais para que ela venha a nos libertar… Pois,
enquanto adorávamos delirantemente esse “deus” Direito Penal, em verdade,
estávamos justamente cultuando o próprio Demônio.

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