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"Os amigos da Cruz afirmam que a cruz é boa e que as obras são
más, porque mediante a cruz as obras são derrubadas e o velho
Adão, cuja força está nas obras, é crucificado."
(Martinho Lutero)
A Palavra de Deus
É de todos sabido que Lutero tratou de fazer da Palavra de Deus o ponto
de partida e a autoridade final de sua teologia. Como professor das
Sagradas Escrituras, a Bíblia tinha para ele grande importância, e nela
descobriu a resposta para suas angústias espirituais. Porém isso não
quer dizer que Lutero fosse um biblicista rígido, pois para ele a Palavra
de Deus é muito mais que a Bíblia. A Palavra de Deus é nada menos que
Deus mesmo.
Essa idéia da Palavra de Deus como Jesus Cristo era a base da resposta
de Lutero a um dos principais argumentos dos católicos. Estes
afirmavam que, como era a igreja quem tinha determinado quais os
livros que deviam formar o canon, a igreja tinha auotirdade sobre as
Escrituras. A resposta de Lutero era que, nem a igreja havia criado a
Bíblia nem a Bíblia havia criado a igreja, mas que o evangelho é que
havia criado. A autoridade final não está na Bíblia, nem na igreja, mas
no evangelho, na mensagem de Jesus Cristo, que é a Palavra de Deus
encarnada. Posto que a Bíblia dá um testemunho mais fidedigno nesse
evangelho do que a igreja corrompida do papa, e que as tradições
medievais, a Bíblia tem autoridade sobre a igreja e essas tradições,
mesmo que seja certo que nos primeiros séculos foi a igreja que
reconheceu o evangelho em certos livros, e não em outros, e determinou
assim o conteúdo do cânon bíblico.
O Conhecimento de Deus
Lutero concorda com boa parte da teologia tradicional ao afirmar que é
possível ter certo conhecimento de Deus por meios puramente racionais
ou naturais. Este conhecimento permite ao ser humano saber que Deus
existe, e distinguir entre o bem e o mal. Os filósofos da antiguidade o
tiveram, e as leis romanas mostram que de modo geral os pagãos
sabiam distinguir entre o bem e o mal. Além disso, os filósofos chegaram
à conclusão de que há um Ser Supremo, do qual todas as coisas derivam
sua existência.
A Lei e o Evangelho
A Deus conhece-se verdadeiramente em sua revelação. Porém em sua
própria revelação, Deus se nos dá a conhecer de dois modos, a saber: a
lei e o evangelho. Isso não quer dizer simplesmente que primeiro vem a
lei e depois o evangelho. Nem quer dizer tampouco que o Antigo
Testamento se refira à Lei e o Novo Testamento ao evangelho. O que
quer dizer é muito mais profundo. O contraste entre a Lei e o evangelho
dá a entender que quando Deus se revela, essa revelação é, de uma só
vez, palavra de condenação e de graça.
Quando escutamos essa palavra de perdão, a lei, que antes nos era
onerosa e até odiosa, se nos torna doce e aceitável. Comentando sobre o
evangelho de João, Lutero nos diz:
"Antes não havia na lei nenhuma delícia para mim. Porém agora descobri
que a Lei é boa e saborosa, e que me tem sido dada para que eu viva, e
agora encontro nela meu prazer. Antes me dizia o que devia ser feito.
Agora começo a ajustar-me nela. E por isso agora adoro, louvo e sirvo a
Deus".
Esta dialética constante entre a lei e o evangelho quer dizer que o cristão
é ao mesmo tempo justo e pecador. Não se trata de que o pecador deixe
de ser pecador quando é justificado. Pelo contrário, quem recebe a
justificação pela fé descobre nela mesma o quanto é pecador, e não por
ser justificado é que deixa de pecar. A justificação não é a ausência do
pecado, mas o fato de que Deus nos declara justos ainda que em meio
ao nosso pecado, de igual modo ao evangelho que acontece sempre em
meio à lei.
A Igreja e os Sacramentos
Lutero não foi nem o individualista nem o racionalista que muitos
desejam. Durante o século XIX, quando o individualismo e o racionalismo
se fizeram populares, muitos historiadores deram a impressão de que
Lutero havia sido um dos precursores de tais correntes. Isto ia
freqüentemente unido com o intento de mostrar a Alemanha como a
grande nação, mãe da civilização moderna e de tudo quanto há nela de
valioso. Lutero se converteu então no grande herói alemão fundador do
modernismo.
Porém tudo isso não se ajusta à verdade histórica. O fato é que Lutero
distanciou-se mutio de ser racionalista. Para provarmos basta
observarmos suas freqüentes referências à "porca razão" e "essa
rameira, a razão". E quanto ao seu suposto individualismo, a verdade é
que este era mais poderoso entre os renascentistas italianos do que no
Reformador alemão, e que em todo caso Lutero dava demasiada
importância à igreja para ser um verdadeiro individualista.
Apesar de seu protesto contra as doutrinas comumente aceitas, e de sua
rebeldia contra as autoridades da igreja romana, Lutero sempre pensou
que a igreja era parte essencial da mensagem cristã. Sua teologia não
era a de uma comunhão direta do indivíduo com Deus, mas sim de uma
vida cristã no meio de uma comunidade de fiéis, a qual repetidamente
chamou de "igreja mãe".
Se bem que seja certo que todos os cristãos, pelo simples fato de serem
batizados, se tornam sacerdotes, isto não quer dizer que cada um de nós
deva isolar-se em si mesmo para chegar a Deus. Certamente há uma
comunicação direta com o Criador. Porém há também uma
responsabilidade orgânica. O ser sacerdotes não quer dizer que o
sejamos somente para nós mesmos, mas que o somos também para os
demais, e os outros o são para nós. Em lugar de abolir a necessidade da
igreja, a doutrina do sacerdócio universal dos crentes a aumentava.
Claro está que não necessitamos já de um sacerdócio hierárquico que
seja nosso único meio de chegarmos a Deus. Porém necessitamos desta
comunidade de crentes, o corpo de Cristo, dentro da qual cada membro
é sacerdote dos demais e nutre a cada um deles. Sem essa relação com
o corpo, o membro não pode continuar vivendo.
Dentro dessa igreja, a Palavra de Deus chega até nós pelos sacramentos.
Para que um rito seja um verdadeiro sacramento, tem de ter sido
instituído por Jesus Cristo, e há de ser um sinal físico das promessas
evangelísticas. Portanto há somente dois sacramentos: o batismo e a
ceia. Os demais ritos que recebem esse nome, mesmo que possam ser
benéficos, não são sacramentos do evangelho.
Porém, por outro lado, Lutero também não estava disposto a dizer que a
ceia era um mero símbolo de realidades espirituais. As palavras de Jesus
ao instituir o sacramento: "isto é o meu corpo", lhe pareciam
completamente claras. Portanto, segundo Lutero, na ceia os fiéis
participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo. Isto não indica,
como na transubstanciação, que o pão se converta em corpo, e o vinho
em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho. Porém agora
estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se
alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. Se bem que mais tarde se deu
a essa doutrina o nome de "consubstanciação", Lutero nunca a chamou
assim e preferia sim chamá-la de a presença de Cristo em, com,
debaixo, ao redor e por trás do pão e do vinho.
Os Dois Reinos
Antes de terminar essa brevíssima exposição dos principais pontos da
teologia de Lutero, devemos nos referir ao modo pelo qual o Reformador
entendeu a relação entre a igreja e o estado. Segundo ele, Deus tinha
estabelecido dois reinos, um sob a lei e outro sob o evangelho. O estado
opera debaixo da lei, e seu principal propósito é pôr limites ao pecado
humano. Sem o estado os maus não teriam freios. Os crentes por outra
parte, pertencem ao segundo reino, e estão debaixo do evangelho. Isto
quer dizer que os crentes não vão esperar que o estado apóie a sua fé e
persiga aos hereges. Além disso, não há razão nenhuma para que
esperemos que os governantes sejam cristãos. Como governantes, sua
obediência se deve à lei e não ao evangelho. No reino do evangelho as
autoridades civis não têm poder algum. E no que se refere a esse reino,
os cristãos não estão sujeitos ao estado. Porém não esqueçamos que os
crentes, ao mesmo tempo que são justificados pela fé, continuam sendo
pecadores. Portanto, enquanto somos pecadores, todos estamos sujeitos
ao estado.
Isto não quer dizer que Lutero foi pacifista. Quando os turcos
ameaçaram a cristandade, Lutero chamou seus seguidores às armas. E
quando diversos grupos e movimentos, tais como os camponeses
rebeldes e os anabatistas, lhe pareciam subersivos, não vacilou em
afirmar que as autoridades civis tinham o dever de esmagá-los. O que se
quer dizer é que Lutero sempre teve dúvidas sobre como a fé devia
relacionar-se com a vida civil e política. E essas vacilações têm
continuado a aparecer em boa parte da tradição luterana até o século
XIX.