A prática parresiástica, como bem descrito por Foucault em seu livro
“A Coragem da Verdade”, como modo de dizer a verdade sobre si e, principalmente, sobre o plano social e seus costumes, a tradição, começa desde os tempos de Sócrates e estende-se, porém de forma diferente, até os dias de hoje. Essa diferença, ou a metamorfose sofrida ao longo do tempo, é mais bem ilustrada ou, mais precisamente, materializada, em Confissões de Agostinho e o Ecce Homo de Nietzsche. Analisar essas diferenças não só no conteúdo parresiástico mas também na forma estilística que o último implica será o tema deste trabalho. Parresía. Como já dito no parágrafo anterior, essa prática é, não fundamentalmente, mas em seu significado primário o ato de dizer a verdade sobre si e/ou sobre o valor da tradição corrente. Foucault diz que essa definição da parresía antiga não basta, falta algo, pois que qualquer um poderia dizer a verdade, ou melhor, todos na pólis grega seriam inconscientemente parresiásticos. O missing link seria o dizer a verdade e, por dizê-la, entrar automaticamente numa zona de perigo, poder ser morto, expulso da cidade. Aqui também seria preciso a própria consciência do indivíduo de, ao dizer, estar entrando nessa zona de perigo, e portanto estar ou não preparado, ou disposto, a enfrentar as consequências. Esses receberam o nome de “cínicos”. Sócrates, é claro, é um ótimo exemplo. Diógenes é ainda mais, com o famoso caso em que Alexandre, ao vê-lo deitado na rua como um mendigo, diz a Diógenes que este poderia pedir qualquer coisa que ele, Alexandre, o daria, e Diógenes responde: pare de barrar o meu sol. Por mais inusitado que isso seja, a parresía como dizer a verdade, até mesmo na frente de um monarca, foi sendo moldada, principalmente com Diógenes, como modo de rebelia, de cinismo mesmo, de “subversão da moeda”, como já diz o ditado. Cunhou-se o termo de “cuidado de si”, dizer a verdade à todo custo como cuidado de si, e depois o princípio de que o corpo é a única e principal morada do homem, ou seja, começa então a renúncia e desprezo de todos os bens materiais que não sejam naturais, como ouro, vestimentas e afins. Delineia-se então esse modo parresiático como único modo de vida verdadeiro. Foucault, após descrever esses e outros exemplos, passa a falar sobre a metamorfose sofrida da parresía com o advento da Igreja cristã e sua mudança, quase até que se poderia dizer drástica, de significado. Porém esse mesmo advento implicou dois novos significados, o primeiro, cronologicamente, implica a prática da parresía como confiança em Deus, sendo sincero consigo mesmo e com Ele para alcançar a felicidade, a fórmula lacaniana aqui seria “minha vontade é a vontade Dele”. A segunda, mais nova, relaciona-se com o temor e tremor à Deus, fundada na desconfiança de si mesmo e dos outros, centrada muito mais na ética individual do sujeito, tendo em vista os desejos carnais humanos quais corrompem a alma, seus vícios e prazeres que afastam o ser da voz de Deus. A parresía, é bom ressaltar, não é aqui a mera desconfiança de si e dos outos, o temor à Ele; ela é vista agora sob um ponto de vista completamente diferente. A parresía, inusitadamente, é vista nesta última como algo ruim, que negligencia o cuidado de si, já que o homem por si só não é capaz de cuidar de si ou viver adequadamente sem a mão de Deus, o sujeito, agora sob o olhar cristão, é essencialmente corrupto, e por isso a necessidade de pastores e instituições monásticas, para guiar o indivíduo. Um dos maiores exemplos é, claro, que não obstante engloba ambos os tipos parresiásticos, Confissões. É muito simples ver aqui como a mudança do significado da parresía adquire corpo com essas confissões, essa autobiografia, na qual Agostinho faz questão de, quando não está em temas mais “filosóficos”, como a memória ou a origem do mal, citar Deus em praticamente todos os parágrafos, dedicando tudo, sua obra e sua vida à Ele, o qual é provedor de todo o Bem e fonte de toda a felicidade. Isso pode até soar repetitivo, porque é mesmo, mas é precisamente nessa repetição de apostos que se instala a nova parresía, que, mesmo dizendo a mais profunda e sincera verdade ao interlocutor, não deixa de ser também um ato de desprezo e desgosto à si mesmo, ou desconfiança de si mesmo, como condição de possibilidade para o campo confessional. Em outras palavras, é apenas a partir do momento em que o sujeito pecador se assume como pecador, como culpado, que se tornam legítimas as confissões. Afinal, os que nunca pensaram, fizeram, ou desejaram o mal não costumam se confessar. Talvez o trecho mais conhecido de Confissões seja a narrativa de quando Agostinho, ainda garoto, juntou-se com outros rapazes para roubar peras. Isso por si é bobeira, mas aos olhos do pecador que assume a posição de confessor, não é. Tudo vale aqui, até mesmo o roubo de uma pera. Porém o que é de certa forma surpreendente é que Agostinho não pede perdão única e exclusivamente pelo roubo per se, mas pelo fato de que, segundo ele, “roubei por roubar”, o maior mal aqui foi a prática da transgressão sem nenhum fim degustativo, a prática da transgressão como fim em si mesma. E isso se repete ao longo do livro, como sua falta de controle de gula, ou práticas religiosas antigas como indecentes, como o seu antigo apego ao maniqueísmo. E Nietzsche? Nietzsche também escreveu uma autobiografia (se todas as suas obras não forem também já uma espécie de), intitulada Ecce Homo, no qual, exceto partes em que ele fala sobre seus livros anteriores, ele se dispõe a falar sobre seus gostos em literatura, música, filosofia, e... comida. Por mais que saibamos a óbvia diferença e o abismo insuperável que separam os dois escritores, ainda assim é possível traçar paralelos na própria escrita, e analogias entre os conteúdos. Nietzsche é ateu, dizendo que Deus está morto, ou que nós o matamos, ou que ele não tem mais poder simbólico nenhum capaz de salvar a perdição em que nos encontramos, ou salvar a eterna corrupção que é o Homem. A semelhança se encontra aqui no fato de que Nietzsche, automaticamente depois de negar a luz transcedental, Deus, também abre espaço para a sua parresía, seu dizer sincero, mas uma perresía que não se contenta, não se volta para algo exterior, mas únicamente para si, mas, é claro, sem deixar de se referir ao mundo em geral. Parresía, com o Ecce, não vem a ser o discurso interior voltado à Deus com o objetivo de alcançar o perdão e se redimir. Nietzsche assume uma postura de linguagem jocosa, com jogos de palavras, bem vaidoso, e isso, como a virada de Descartes na filosofia, simbolizaria talvez uma nova virada na literatura autobiográfica: o Si como o que é mais importante, o sujeito como o centro, dando espaço agora não para o cogito, mas para o übermensch. Enquanto que em Confissões temos a tentativa excessiva de evitar os desejos dos mais variados, como a gula, onde Agostinho diz evitar comer após um período de fome só para ter um maior prazer, Nietzsche lista uma série de suas comidas preferidas, simples ou não, sem nenhum tipo de “cuidado” ao escrever perante à alguma autoridade, pelo contrário, ele aqui, a partir dessas listas, passeios que faz em montanhas, preferências de ambientes, preferência musical e literária, tudo isso é voltado como que para uma melhora a ser alcançada do sujeito. Aqui, como em Agostinho, não temos uma atitude desregrada em relação à tudo, mas sim atitudes que o sujeito pode adotar para ter uma melhor qualidade de vida. A diferença é que em Nietzsche já temos uma independência muito maior do sujeito para com si próprio, podendo, sozinho, mesmo não envolvendo Deus ou qualquer tipo de exemplo moral Superior, alcançar uma medida ética e intelectual “sobre- humana”, algo novo, melhor, como a luz transcendental que Agostinho tenta alcançar; a diferença é uma simples diferença formal.