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A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos. Tudo estava
bem.
Hogwarts, a escola, talvez exista com o único propósito de evitar que Voldemort
retorne.
Uma possível explicação para isso é que, diferente dos livros, os filmes praticamente
eliminaram as discussões políticas, atendo-se quase que tão somente à história principal, e
ainda a privando de um conjunto de elementos que de fato deixam os filmes vazios dessa
dimensão política.
Vou aqui tentar trazer algumas dessas metáforas presentes no livro e possíveis significados
para elas na obra. Quero acreditar que isso pode contribuir para estimular leitores a voltarem
aos romances da série com um interesse renovado.
A primeira metáfora para a qual chamarei a atenção é para o debate sobre a servidão dos
“elfos domésticos”. Essa discussão surge de maneira mais sistemática a partir do terceiro livro,
ainda que já estivesse implícita desde o segundo, pelo menos, com a presença de Doby, elfo
doméstico que visita Harry para alertá-lo de que não deve ir mais Hogwarts.
No terceiro livro, acompanhamos Hermione decidindo-se por iniciar uma campanha na escola
a favor da libertação dos elfos domésticos. Sensibilizada com a situação desses seres, que
devem se submeter às vontades dos bruxos, a menina produz botons, cartazes e palavras de
ordem para convencer os colegas e professores de que os elfos deveriam ser livres.
Hermione tem discussões acaloradas com Rony Weasley sobre o assunto, por exemplo, uma
vez que o garoto sustenta que os elfos servem por prazer, e que tirar isso deles, esse dever,
pode deixa-los deprimidos, já que servir os bruxos é que dá sentido a vida deles. “Eles gostam ,
Hermione”.
Harry, que antipatiza menos com a iniciativa de Hermione, acaba por também não ter o
mesmo olhar para a causa que a amiga. Harry de fato demonstra mais de uma vez que sua
simpatia por elfos domésticos, ao menos até aquele momento, é apenas por Doby.
A metáfora é bastante óbvia. Trata-se de criticar o trabalho escravo. Mas isso, na verdade, é
apenas uma parte da interpretação, e poderíamos, e deveríamos avançar para outra parte,
que é, na verdade, a reflexão crítica sobre como é possível aceitar a existência de situações
bárbaras, comodamente, sobretudo quando essa situação mostra-se cômoda para todos. (Os
elfos domésticos são responsáveis por preparar todas as lautas refeições em Hogwarts, que
aparecem “magicamente” nas mesas das casas, na frente dos alunos.
Também assim ocorre conosco, quando vamos almoçar ou jantar , ou apenas petiscar em
bares e restaurantes, e a comida nos chega, trazida pelos garçons. Quem as fez? Sob quais
condições? Vez por outra, quando vamos ao banheiro, topamos com a porta da cozinha aberta
e olhamos lá para dentro. A beleza do restaurante não se estende para aquele ambiente, nem
o ar condicionado, nem os sorrisos das pessoas. As cozinhas em geral são quentes, o ar é
abafado, há um ambiente de correria e a decoração da casa não se estende até ali. Além de
tudo, não nos interessa as condições de trabalho daquelas pessoas, desde que nossa comida
venha em bom prazo, e quente.
Naturalmente, quem trabalha em restaurante não pode ser chamado de escravo, mas é
possível imaginar pessoas do nosso mundo agindo como Rony, dizendo que
Uma segunda metáfora política está ligada à discussão sobre a pureza do sangue. É preciso
observar que nos livros resta bastante evidente a existência de um grupo de defensores dessa
crença, que precisa esconder sua crença após o desaparecimento de Voldemort. Os comensais
da morte voltam a se assumir quando o Lorde das Trevas ressurge.
Os de sangue mestiço, isto é, que nasceram de trouxas com bruxos, são combatidos, bem
como os de sangue puro que renegam sua origem nobre para defender mestiços e trouxas.
Em português, perdeu-se na tradução do sexto livro, The half blood prince, a referência a essa
questão, já que o livro saiu com o título de O enigma do príncipe.
As discussões sobre pureza do sangue pelos alemães ainda ressoam em nossos ouvidos
contemporâneos, e por isso é impossível não ver na marca negra uma referência à suástica e o
fato de o próprio Voldemort não ter sangue puro uma analogia a Hitler, que também não o
tinha.
Uma terceira metáfora é a própria Ordem da Fênix. Criada para a defesa contra os comensais
da morte e Voldemort, a Ordem se reúne secretamente em locais ignorados pelos que seguem
a marca da caveira. Uma de suas últimas localizações secretas foi a casa da família Black.
A Ordem da Fênix é uma analogia a grupos de resistência que precisam se reunir em tempos
sombrios, isto é, em momentos em que a barbárie, o crime, se institucionalizam, isto é, são
perpetrados pelo próprio Estado. No universo de Harry Potter, o ministério da magia é
responsável por incontáveis horrores, primeiro por medo de Voldemort, segundo por
influência direta dele e de seus Comensais, que tomam a instituição, a partir do último volume
da saga. No nosso mundo, em muitos momentos da história, brasileira e mundial, grupos
existiram na clandestinidade para resistir a políticas de destruição e contra direitos
fundamentais.
Não deixa entretanto de ser desalentador constatar que a versão cinematográfica elimina ou
ao menos dilui consideravelmente os temas propostos. Em última instância, dá-lhes
considerável menos atenção ou crédito. A interpretação fílmica dos livros, sobretudo a partir
da quarta película, abre mão da maior parte do subtexto político, tratando de contar a história
de um herói quase que solitário e muito menos problemático do que as páginas dos volumes
trazem.
Vale lembrar também, por último, da magia Expeliarmus, uma das mais conhecidas dos
leitores de Harry Potter. Vemos em nossa época aumentar a defesa do uso de armas - aqui no
Brasil e internacionalmente - muito graças ao incentivo estatal dado a empresas dessa
natureza. Nesse contexto, dizer o nome do feitiço Expeliarmus, que serve justamente para
desarmar o adversário, em um combate, tirando-lhe a varinha da mão, e assim impedindo-o
de fazer lançar magia, é também um bom exemplo da postura ética e política de Rowling
frente aos horrores de nosso tempo. Quando, como se disse, o próprio estado incentiva armar
a população, e faz, como imagem dessa prática com a mão de uma criança um símbolo
universalmente conhecido da destruição: uma arma apontada para matar.