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Harry Potter e a política

Acreditamos ver em Theodor Adorno, pensador alemão, e um dos fundadores


da Escola de Frankfurt, um possível interlocutor para os debates que faremos
aqui, a respeito da saga Harry Potter.

Em seu artigo “Educação após Auschwitz”, escreve o filósofo:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a


educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser
possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje
mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de
toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação
a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade
não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de
que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência
das pessoas.

Adorno defende que o holocausto, episódio ocorrido no contexto da Segunda


Guerra Mundial, em que milhões de pessoas foram perseguidas, destituídas de
seus bens materiais, de seus familiares e, finalmente, de suas vidas, é a medida
de toda educação após essa catástrofe. Toda educação depois dos campos de
concentração deve ter como fim, isto é, finalidade, evitar que tal barbárie torne
a acontecer.

Em outro trecho do mesmo artigo, lemos:

Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e


importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie
contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma
regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a
regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm
de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora.
Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se
impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos
termos da história mundial, culminaria em Auschwitz.

Para Adorno, a própria falta de consciência sobre a o fundamento de que toda


educação deve ser resistência contra a volta da barbárie é, em si, sinal de
barbárie. Se é preciso criar essa consciência nas pessoas, é porque as
condições da barbárie - em que foram mortas, de maneira planejada, milhões de
pessoas - já estão instaladas em nossa cultura.

Mais adiante, no mesmo artigo, Adorno nos diz:

É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vitimas,


assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que
a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É
preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de
cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios,
procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na
medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses
mecanismos. Os culpados não são os assassinados (...) Culpados são
unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram Contra aqueles seu
ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de
consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem
refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como
educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.

A escola de magia e bruxaria de Horgwarts é o cenário para a maior parte das


aventuras dos livros da série Harry Potter. À exceção do último, “As relíquias da
morte”, em que Harry, Hermione Granger e Rony Weasley não voltam para
cursar seu último ano escolar – ocupados que estão em deter Voldemort -, os
demais volumes é Hogwarts o espaço em que quase todas as aventuras dos três
bruxos acontecessem.

Mais que palco das histórias principais, Hogwarts é também o lugar da


resistência, em Harry Potter. É na escola que Hermione, já no livro IV, “O Cálice
de Fogo”, inicia sua cruzada em favor da libertação e pelos direitos dos elfos
domésticos, cobrando de todos os colegas uma posição – e com mais veemência
de Harry e Rony. O Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos-Domésticos (FALE)
não é mencionado nos filmes.

É em Hogwarts também que ocorre a fundação da Armada de Dumbledore,


grupo que passa a se reunir todas as semanas na Sala Precisa para treinar
feitiços de defesa contra as artes das trevas e contra o próprio Voldemort e seus
Comensais da Morte. Em segredo e burlando as determinações da nova
administração da escola, agora não mais dirigida por Dumbledore, conhecido por
seus posicionamentos pró-trouxas e a favor dos mestiços de sangue, mas por
Dolores Umbridge, que no futuro não esconderá mais suas preferências pelos
valores do Lorde das Trevas e de seus asseclas, alunos e alunas treinam feitiços
como Expeliarmus, de desarmamento, e Resistir à Maldição Imperius.

Hogwarts é ainda o palco da batalha final entre os Comensais da Morte e a


resistência. Ela é praticamente posta abaixo, já que as forças de seres de toda
natureza, como gigantes, dragões, bruxos poderosos, com alto poder de
destruição – e também os professores, que tomam de suas varinhas para
defender os alunos e a escola do horror do autoritarismo - são medidas fora e
dentro de suas muralhas.

Ainda assim, Hogwarts aparentemente é reconstituída, como percebemos ao fim


do último livro. Nessa cena, Harry, Hermione e Rony levam seus filhos à estação
9 e ¾ para mais um ano letivo na escola, onde agora Neville, um dos principais
nomes da resistência e da Armada de Dumbledore, é professor de Herbologia e
Diretor da Casa Grifinória.
Alvo, Rosa, Hugo e Lílian riram. O trem começou a se deslocar, e Harry
acompanhou-o, olhando o rosto magro do filho já iluminado de excitação.
Continuou a sorrir e acenar, embora tivesse a ligeira sensação de ter sido
roubado ao vê-lo se distanciando dele...

O último vestígio de vapor se dispersou no ar de outono. O trem fez uma


curva, a mão erguida de Harry ainda acenava adeus.

– Ele ficará bem – murmurou Gina.

Ao olhá-la, Harry baixou a mão distraidamente e tocou a cicatriz em forma de


raio em sua testa.

– Sei que sim.

A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos. Tudo estava
bem.

Despedimo-nos do universo de Harry Potter nessas últimas linhas do livro. Harry


toca novamente a cicatriz na testa, que não lhe deixa esquecer dos horrores
vividos, ainda que ela não doa mais.

O simples gesto de tocá-la, no entanto, deve deixar, a nós, leitores, em alerta, a


respeito do receio silencioso, e possivelmente constante, por parte do agora
adulto Harry, de que eles, aqueles horrores, em algum momento tornem a
acontecer, se repitam.

Daí parece advir a importância dada a Hogwarts, em todos os momentos e


também agora, no final do último livro, pois, ainda que a cena transcrita não se
passe naquele ambiente, é para lá que os filhos dos personagens se dirigem:

Hogwarts, a escola, talvez exista com o único propósito de evitar que Voldemort
retorne.

Hogwarts aparece, sempre, como um signo de resistência ao autoritarismo e ao arbítrio,


primeiramente ao ministério da magia, e, finalmente, a Voldemort. O que significa para a
trama e para os significados profundos da obra, a importância dada, no livro, à escola de
magia, e sua representação como o lugar da civilização contra a barbárie?
Gostaria de chamar a atenção aqui para as metáforas políticas contidas na série de livros
escritos pela autora britânica J. K. Rowling. Essas metáforas apontam para significados
profundos da obra, que, a despeito de ser lida como metáfora política por muitos leitores, não
creio que o seja pela maior parte dos que conhecem a saga do “Menino que sobreviveu”.

Uma possível explicação para isso é que, diferente dos livros, os filmes praticamente
eliminaram as discussões políticas, atendo-se quase que tão somente à história principal, e
ainda a privando de um conjunto de elementos que de fato deixam os filmes vazios dessa
dimensão política.

Vou aqui tentar trazer algumas dessas metáforas presentes no livro e possíveis significados
para elas na obra. Quero acreditar que isso pode contribuir para estimular leitores a voltarem
aos romances da série com um interesse renovado.

A primeira metáfora para a qual chamarei a atenção é para o debate sobre a servidão dos
“elfos domésticos”. Essa discussão surge de maneira mais sistemática a partir do terceiro livro,
ainda que já estivesse implícita desde o segundo, pelo menos, com a presença de Doby, elfo
doméstico que visita Harry para alertá-lo de que não deve ir mais Hogwarts.

No terceiro livro, acompanhamos Hermione decidindo-se por iniciar uma campanha na escola
a favor da libertação dos elfos domésticos. Sensibilizada com a situação desses seres, que
devem se submeter às vontades dos bruxos, a menina produz botons, cartazes e palavras de
ordem para convencer os colegas e professores de que os elfos deveriam ser livres.

Hermione tem discussões acaloradas com Rony Weasley sobre o assunto, por exemplo, uma
vez que o garoto sustenta que os elfos servem por prazer, e que tirar isso deles, esse dever,
pode deixa-los deprimidos, já que servir os bruxos é que dá sentido a vida deles. “Eles gostam ,
Hermione”.

Harry, que antipatiza menos com a iniciativa de Hermione, acaba por também não ter o
mesmo olhar para a causa que a amiga. Harry de fato demonstra mais de uma vez que sua
simpatia por elfos domésticos, ao menos até aquele momento, é apenas por Doby.

A metáfora é bastante óbvia. Trata-se de criticar o trabalho escravo. Mas isso, na verdade, é
apenas uma parte da interpretação, e poderíamos, e deveríamos avançar para outra parte,
que é, na verdade, a reflexão crítica sobre como é possível aceitar a existência de situações
bárbaras, comodamente, sobretudo quando essa situação mostra-se cômoda para todos. (Os
elfos domésticos são responsáveis por preparar todas as lautas refeições em Hogwarts, que
aparecem “magicamente” nas mesas das casas, na frente dos alunos.

Também assim ocorre conosco, quando vamos almoçar ou jantar , ou apenas petiscar em
bares e restaurantes, e a comida nos chega, trazida pelos garçons. Quem as fez? Sob quais
condições? Vez por outra, quando vamos ao banheiro, topamos com a porta da cozinha aberta
e olhamos lá para dentro. A beleza do restaurante não se estende para aquele ambiente, nem
o ar condicionado, nem os sorrisos das pessoas. As cozinhas em geral são quentes, o ar é
abafado, há um ambiente de correria e a decoração da casa não se estende até ali. Além de
tudo, não nos interessa as condições de trabalho daquelas pessoas, desde que nossa comida
venha em bom prazo, e quente.
Naturalmente, quem trabalha em restaurante não pode ser chamado de escravo, mas é
possível imaginar pessoas do nosso mundo agindo como Rony, dizendo que

Uma segunda metáfora política está ligada à discussão sobre a pureza do sangue. É preciso
observar que nos livros resta bastante evidente a existência de um grupo de defensores dessa
crença, que precisa esconder sua crença após o desaparecimento de Voldemort. Os comensais
da morte voltam a se assumir quando o Lorde das Trevas ressurge.

Os de sangue mestiço, isto é, que nasceram de trouxas com bruxos, são combatidos, bem
como os de sangue puro que renegam sua origem nobre para defender mestiços e trouxas.

Em português, perdeu-se na tradução do sexto livro, The half blood prince, a referência a essa
questão, já que o livro saiu com o título de O enigma do príncipe.

As discussões sobre pureza do sangue pelos alemães ainda ressoam em nossos ouvidos
contemporâneos, e por isso é impossível não ver na marca negra uma referência à suástica e o
fato de o próprio Voldemort não ter sangue puro uma analogia a Hitler, que também não o
tinha.

Uma terceira metáfora é a própria Ordem da Fênix. Criada para a defesa contra os comensais
da morte e Voldemort, a Ordem se reúne secretamente em locais ignorados pelos que seguem
a marca da caveira. Uma de suas últimas localizações secretas foi a casa da família Black.

A Ordem da Fênix é uma analogia a grupos de resistência que precisam se reunir em tempos
sombrios, isto é, em momentos em que a barbárie, o crime, se institucionalizam, isto é, são
perpetrados pelo próprio Estado. No universo de Harry Potter, o ministério da magia é
responsável por incontáveis horrores, primeiro por medo de Voldemort, segundo por
influência direta dele e de seus Comensais, que tomam a instituição, a partir do último volume
da saga. No nosso mundo, em muitos momentos da história, brasileira e mundial, grupos
existiram na clandestinidade para resistir a políticas de destruição e contra direitos
fundamentais.

Não deixa entretanto de ser desalentador constatar que a versão cinematográfica elimina ou
ao menos dilui consideravelmente os temas propostos. Em última instância, dá-lhes
considerável menos atenção ou crédito. A interpretação fílmica dos livros, sobretudo a partir
da quarta película, abre mão da maior parte do subtexto político, tratando de contar a história
de um herói quase que solitário e muito menos problemático do que as páginas dos volumes
trazem.

Vale lembrar também, por último, da magia Expeliarmus, uma das mais conhecidas dos
leitores de Harry Potter. Vemos em nossa época aumentar a defesa do uso de armas - aqui no
Brasil e internacionalmente - muito graças ao incentivo estatal dado a empresas dessa
natureza. Nesse contexto, dizer o nome do feitiço Expeliarmus, que serve justamente para
desarmar o adversário, em um combate, tirando-lhe a varinha da mão, e assim impedindo-o
de fazer lançar magia, é também um bom exemplo da postura ética e política de Rowling
frente aos horrores de nosso tempo. Quando, como se disse, o próprio estado incentiva armar
a população, e faz, como imagem dessa prática com a mão de uma criança um símbolo
universalmente conhecido da destruição: uma arma apontada para matar.

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