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Esta colectânea é parte integrante do projecto

A Cidade como Civilização: Universo


Urbanístico Português 1415- 1822 que
a Comissão dos Descobrimentos tem v· ndo
a promover desde inícios de 1997. •
A sua publicação assume significado especial
dentro da cronologia e metodologia que lhe
são específicas, mas não deixa de ser
importante no âmbito mais vasto da cultura
portuguesa. Com efeito, aqui se agrupam
trabalhos que, pela sua variedade de origens,
enfoques e temas, oferecem uma rara
oportunidade para o conhecimento
actualizado de uma das mais objectivas
e perenes marcas da portugalidade no mundo.

ES T U DOS PUBL I C ADOS NESTA COLE C TÃNEA

A Paisagem Urbana Med ieval Portuguesa: Uma Aprox.imação


AMÉLIA AGU IAR AND l tADE

Urbanism o de Traçado Regul ar nos Do is Prime iros Séculos


da Colon ização Brasi leira - O ri ge ns
PAULO ÜRM I N OO OE AZEVE D O

Storia della Città Come Storia dclle Uropie, da San Leucio


all'Amazzon ia Pombalina
G 10VANNA Rosso DEL BnENNA

A Ico nografia dos Engenheiros M ili tares no Século XVII 1:


Instru men to de Conhecime nto e Con trolo de Territó rio
BEATRI Z P. SJQUEIRA BUENO

Geo metria Bélica: C1rtografi a e Fortificação no Rio de Jane iro


Setecentista
RommT CoNou nu

Urbanismo da Época Barroca em Portugal


j osÉ EDUARDO I-IORTA CORREIA

Rural & Urbano. Espaços da Expansão Med ieval: O ri gem


da O rgan ização Espacial Ibero-Americana?
CLENOA PEREIRA DA CRUZ

O Início da Profissionaüzaçã.o no Exé rcito Brasileiro: Os Corpos


de Engenheiros do Sécul o XVl I
RoornTA M ,\RX DELSON

(> CONTINUA NA IIAl)ANA DA \ O NTIL\CAl'A)


UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A PAISAGEM URBANA MEDIEVAL PORTUGUESA

aglomerados urbanos, à disponibilidade de espaço. Simultaneamente, a habitação podia Mas, se o espaço abundava, as soluções empregues na construção de moradias ti-
servir como uma exteriorização da posição social de quem a habitava. Razões mais do que nham de ser forçosamente outras. As fachadas alargavam-se, rasgavam-se mais aberturas
suficientes para conferirem à casa uma variabilidade extrema que tinha, necessariamente, para o exterior e toda a habitação podia ser mais ampla. Enquanto os logradouros disponí-
que se repercutir no aspecto adquirido por uma rua, por uma praça ou por uma viela. veis nas traseiras podiam atingir dimensões mais avantajadas, estabelecendo um forte con-
Uma vez que a pedra, a telha e a madeira eram materiais de construção de boa quali- traste com os das casas das artérias congestionadas, que quase sempre se reduziam a sim-
dade e por isso mais dispendiosos, era provável que fossem utilizados em maior quantida- ples nesgas de terreno de diminuta superfície. Aí se constituíam, verdadeiras hortas fami-
de nas residências dos que dispunham de réditos mais significativos. Para a maioria, o liares, que chegavam até a dispor de algumas árvores de fruto, de um pombal ou de um
recurso à madeira, à taipa devia ser regra, a qual contudo podia assumir algu- poço. Onde se obtinham legumes frescos, frutas e por vezes flores. Onde se podiam fazer,
mas adaptabilidades regionais, como a que, em resultado da influência islâmica, permitia cómoda e discretamente, os despejos familiares que forneciam a essas culturas mimosas os
a utilização, na região a sul do rio Tejo, de tijolo para a construção de paredes e de ladrilho fertilizantes que elas tanto necessitavam.
miúdo para pavimentar o chão. Mas, uns mais do que os outros, todos eram materiais Manchas verdes que alegravam a monotonia dos tons adquiridos pelos edifícios
perecíveis, mesmo no tempo curto de uma ou duas gerações. O que podia fazer de uma construídos - o uso da cor nas paredes exteriores não era raridade, mas não constituía, de
casa pardieiro. E assim transformava os núcleos urbanos medievais em espaços em perma- forma alguma, uma regra - , estas hortas e jardins, situadas na parte de trás das casas,
nente construção, pois era sempre preciso reparar uma parede, substituir um telhado, traziam a ruralidade para o interior do espaço amuralhado. Mas tratava-se de uma ruralidade
converter de novo um pardieiro em casa. diferente da que se vislumbrava nos horizontes que se perdiam muito para além da linha
Mas, a destruição ou apenas a deteriorização de um edifício podia ser ocasionada por de muralhas. Aprisionados entre muros e sebes, inteiramente criados pela mão do homem,
outros motivos. Comum a todos os centros urbanos medievais, o fogo era o agente des- ajudavam a apaziguar um pouco da alma de camponês que havia em cada citadino.
truidor mais temido, que em pouco tempo podia aniquilar completamente fiadas de imó- Mas, tal como já foi afirmado anteriormente, a casa também servia para distinguir os
veis que, por serem tão compactas, se tornavam mais vulneráveis. Mas não era o fogo o homens. E para os que viviam nas cidades e vilas medievais bastava um simples olhar para
único inimigo a recear. Recorde-se que muitas das cidades e vilas do Portugal medievo reconhecer essas diferenças, resultantes de distintas disponibilidades económicas. Assim acon-
vizinhavam com cursos fluviais ou com o mar, o que as colocava em risco de sofrerem as tecia quando na sua construção se utilizavam maiores quantidades de materiais caros e de
consequências de periódicas inundações, por vezes demasiado violentas para serem conti- melhor qualidade, como a pedra e a telha. Ou quando as fachadas ganhavam individualida-
das pela presença da muralha. Mas até os próprios homens podiam ser os responsáveis de com a adição de pormenores decorativos, como uma escada, um alpendre ou um pórtico.
pelas destruições. Quando pretendiam alterar o tecido urbano mediante a abertura ou a Sinais que revelavam bolsas mais abastadas que mais não eram do que o corolário de uma
transformação de artérias e praças ou quando traziam para o interior do perímetro urbano adaptação melhor sucedida às exigências da economia urbana.
os seus sempre ruinosos conflitos militares. Às vezes, essas casas tinham adossada uma torre que a aproximava, morfologicamente,
O intramuros, tal como já foi salientado anteriormente, era um espaço limitado e na do tipo de habitação utilizada pelos privilegiados, ou seja, do paço. Um acréscimo que não
maior parte dos casos irregularmente ocupado. Por isso, as casas localizadas no seu interior se destinava apenas a expressar a prosperidade e o prestígio social de quem a habitava,
apresentavam formas diversas, resultantes da sua tentativa de se adaptarem, da melhor ma- fazendo-o notabilizar-se perante os outros moradores, sobretudo os menos afortunados.
neira, às disponibilidades de terreno. Nas artérias mais concorridas, onde todos queriam Este aproximar ao paço trazia em si um outro desejo, que, no entanto, nem sempre era
viver, o espaço faltava, tornando as casas mais exíguas e fazendo da construção de novos confessado: o de ombrear com os privilegiados, o de pertencer à nobreza. A,pirações que o
edifícios uma raridade, geralmente só possível à custa de demolições. Os prédios eram assim dealbar da centúria de quinhentos veio tornar realidade, para muitos dos que conseguiram
obrigados a crescer em altura, podendo ter um sobrado, isto é, um andar ou até mais. fazer parte das oligarquias urbanas.
Mas, como o crescimento em altura tinha, como é óbvio, limites, foi necessário re- A distintas fachadas tinham de corresponder, necessariamente, interiores também
correr a um outro estratagema: a expansão do prédio no sentido oposto ao da sua fachada, eles diferentes. Nas casas de melhor qualidade, os compartimentos eram mais numerosos
originando uma casa estreita e comprida. Esta tendência, mais acentuada nos núcleos e tendiam a adquirir alguma da especialização que hoje é familiar a qualquer citadino, a
urbanos nortenhos, originava habitações bastante compridas - podiam ser quatro ou até qual, como é sabido, passa pela atribuição de um destino específico a cada aposento. As-
cinco vezes mais compridas do que largas-, que chegavam a estender-se de uma rua a sim, os andares superiores, propícios ao recolhimento, reservavam-se para as câmaras ou,
outra e a ter até serventia para ambas as artérias. As traseiras, por seu lado, podiam ainda como se diria em linguagem actual, para quartos, enquanto o andar térreo podia albergar
ser aproveitadas para a construção de uma outra casa, mais pequena e sem saída directa as áreas da casa mais abertas ao exterior, à sociabilidade. Uma diversidade que, todavia,
28 para a rua, o que permitia aumentar as possibilidades de alojamento. não se encontrava com muita frequência. 29
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Com efeito, o tipo mais vulgarizado de habitação medieval caracterizava-se por uma Daí os frequentes apelos ao rei, repetidos através de petições e/ou nos capítulos espe-
estrutura simples, pouco especializada e sem particularidades arquitectónicas exteriores. ciais apresentados nas cortes do reino. Onde, insistentemente, acentuando a sua penúria e
Formava-a uma casa dianteira, que na maior parte das vezes servia de oficina ou de local de a urgência da obra, requeriam ajuda para construir uma igreja, um paço concelhio, um
venda e um compartimento traseiro, onde a família se recolhia e tomava as suas refeições. açougue, uma residência para acolherem os oficiais régios que estanciavam na sua vila ou
Os mais ditosos podiam ainda contar com o primeiro andar, ou seja, com o sobrado, que cidade. Na verdade, sem os generosos contributos do rei, nunca conseguiriam fazer frente
permitia acrescentar à casa uma ou duas divisões. A individualidade desses edifícios assen- às despesas acrescidas resultantes da compra de materiais de qualidade, do recurso a artí-
tava por isso, muito mais, na identidade de quem a habitava e sobretudo nas actividades fices e artistas conceituados e até da vinda de arquitectos, como acontecia quando se
artesanais e comerciais qu~ aí1-inham lugar, as quais, devido à escassez de aberturas - as reformulava ou construía uma igreja. Cuidados que valiam bem a pena. Uma vez que
raras janelas, sem vidraças, apenas com portadas, eram de reduzida utilidade - e à tinham como resultado a valorização do espaço urbano, que assim se tomava mais atracti-
consequente insuficiência de luz, tinham lugar, na maior parte dos casos, na soleira da vo, passando a dispor de edifícios elaborados de acordo com os padrões de gosto mais
porta ou em poiais e tabuleiros amovíveis, que se recolhiam quando a jornada de trabalho difundidos e actualizados e que vinham satisfazer um conjunto diversificado de necessida-
chegava ao fim. des urbanas.
Isolada, a casa, sobretudo a de características mais correntes, desempenhava um pa- Associado à muralha, o castelo herdava dela a altura e o aspecto fortificado que lhe
pel diminuto na paisagem urbana. O mesmo não acontecia com algumas construções que conferia uma imagem de autoridade, aparato bélico, bem como a certeza, por todos intuída,
tendiam a emergir como protagonistas indiscutíveis de qualquer cenário urbano. Até uma de protecção certa e segura nos momentos de perigo. Na maioria dos casos, com efeito,
criança saberia apontar e distinguir a silhueta do castelo, as torres das igrejas e de outros tinha acompanhado, desde sempre, os bons e os maus momentos vividos pela comunida-
edifícios religiosos. Ou indicaria sem erros a localização dos açougues, da casa do concelho de instalada a seus pés - reservava-se para o castelo o ponto mais elevado do sítio da
ou, no caso dos centros urbanos mais importantes, de alguns edifícios administrativos, dos instalação urbana-, podendo até ter funcionado como factor de origem da vila ou cida-
paços que acolhiam estadias do rei e da corte ou os que eram residência permanente de de. Mas, o castelo, onde se acolhia o alcaide nomeado pelo rei para seu guardião e defen-
grandes senhores e das suas comitivas. Construções que se distinguiam porque a sua sor, constituía ainda um sinal da presença tutelar do monarca sobre as gentes que ocupa-
edificação resultava, quase sempre, de necessidades colectivas, neles se expressando vam o espaço amuralhado. E que adquiria uma valor simbólico espacial em regiões de
vigorosamente a imposição do público sobre o privado. forte implantação senhorial como era o caso do Entre Douro e Minho.
Assim, a construção desses monumentos revestia-se de uma maior grandiosidade e pe- Mas se o castelo se impunha pela sua situação elevada e pelas suas grossas paredes, os
renidade do que a do tipo de edifício mais corrente - responsável, em certa medida, pela templos e mosteiros faziam anunciar a sua presença através das altas torres que se erguiam,
conservação de alguns deles até aos dias de hoje-, o que os fazia destacarem-se e constituir como que em prece, em direcção ao céu. Edifícios que expressavam não só a procura de
pontos de referência para os que habitavam no núcleo urbano, nas suas imediações e até para protecção divina por parte dos homens e mulheres que tinham promovido a sua constru-
aqueles que, com maior ou menor regularidade, o demandavam. Se a importância das suas ção mas também a sua prosperidade económica, traduzindo-se esta última em dádivas que
funções o justificava, esses edifícios podem constituir-se como pólos significativos da instala- permitiam tornar essas igrejas e cenóbios em algo de belo, como hoje ainda é comprovado
ção humana, gerando artérias e praças que com eles se articulavam. Referências obrigatórias pela admiração fascinada dos visitantes. Porque seguiram um estilo novo, que na sua busca
da paisagem urbana, a sua importância era tão evidente que chegavam a condicionar a das alturas, na sua maior riqueza decorativa, parecia ser o mais adequado para revelar não
toponímia, justificando apelações, tais como as das ruas do Castelo, diante da Igreja, do Paço só vaidades urbanas como para atingir a proximidade de Deus. Remetendo para o passado
do Rei ou da Alfândega, comuns à maioria das cidades e vilas medievais. esses templos mais despojados e menos elaborados que se disseminavam pelos campos e
A construção de edifícios - exceptuem-se os paços particulares que eram encargo dos que combinavam melhor com a austeridade e simplicidade do mundo rural. A presença
seus proprietários - , de tal dimensão e impacto, ultrapassava e muito as disponibilidades mais ou menos numerosa destes locais de culto, vigorosamente anunciada pelo som dos
das comunidades urbanas, mesmo quando se tratava de prósperos centros mercantis, como sinos a marcarem as horas de Deus, fornecia ainda um índice claro, sobretudo para foras-
Lisboa ou o Porto. Os réditos urbanos, nem sempre muito volumosos, tinham quase sempre teiros e viajantes, do dinamismo demográfico das localidades.
destino certo, pois as despesas correntes - manutenção de magistraturas locais, contactos e Em associação com estes templos e/ou mosteiros formavam-se áreas abertas, os adros,
negociações com outras localidades ou instituições, conservação de pavimentos e medidas onde não era raro encontrar-se um cemitério. Correntemente demandados pelas popula-
higiénicas, envio de delegações a assembleias de cortes, pagamento de festas e comemora- ções, sobretudo pelas que viviam nas redondezas, estes locais assumiam-se como espaços
30 ções, entre outras - absorviam ou até excediam esses quantitativos. primordiais de convívio. Muitos deles, com o correr do tempo, com maior ou menor 31
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espontaneidade, transformaram-se em praças. Onde se podiam encontrar tendas e boticas, Uma multiplicidade atractiva que ajuda a compreender a avidez sempre demonstra-
alpendres, e até edifícios de uso colectivo, como a casa do concelho ou o paço de audiência da pelas populações urbanas em relação às zonas centrais da localidade em que viviam e
dos tabeliães. que os fazia suportar apertos e exiguidades. Na verdade, aí batia mais forte o pulsar da vida
Espaço, múltiplas funções'; tinha o seu ponto de convergência no templo, onde a urbana. Estava-se perto de tudo, dos edifícios mais importantes, das principais actividades
comunidade dos vivos se sentia mais próxima dos seus mortos, dos seus antepassados. Aí económicas e até dos forasteiros que tinham como itinerário obrigatório essas artérias
podiam ter lugar negócios e actividades artesanais ou escrever-se um longo documento principais. Tratava-se de ruas e praças por todos conhecidas porque as demandavam com
recheado de depoimentos de iariadas testemunhas. Cenário mutável, engalanava-se para regularidade, muitos até diariamente, e que saberiam por isso descrever com riqueza de
festas e procissões, e acolhPh c~'~plicadas estruturas efémeras de madeira, com que se cele- pormenores. Viver fora do centro era um recurso, quase sempre encarado com pouco
bravam as entradas dos reis e as visitas dos bispos. Recebia forasteiros e era pouso de entusiasmo e apenas aceite quando se esgotava a possibilidade de alojamento nas artérias
marginais e pedintes esperançados numa esmola mais generosa. Nessas praças, por vezes mais antigas.
acanhadas para os padrões actuais, onde se sobrepunham espaços e se cruzavam vidas, Assim se compreende melhor que os espaços livres de construções - os denomina-
sedimentavam-se solidariedades nascidas das vivências colectivas que aí tinham lugar. dos rossios, campos, terreiros - sejam mais frequentes nas zonas excêntricas, sobretudo no
Distinguindo-se bastante menos no contexto global da paisagem urbana, os edifícios caso de cidades ou vilas que sofreram reamuralhamentos, o que gerava a existência de um
destinados ao paço do concelho, à audiência dos almotacés, dos tabeliães ou dos juízes, número mais elevado de espaços livres. De certa maneira, constituíam áreas de reserva,
bem como os açougues ou as residências-armazéns destinados aos que, em nome do rei, susceptíveis de contribuírem para minorar os problemas de alojamento gerados pelo con-
cobravam direitos e impostos, adquiriam relevância, não por características arquitectóni- tínuo fluxo de gentes em direcção aos núcleos urbanos, tão característico das últimas
cas específicas, mas devido a serem frequentados, por vezes com certa regularidade, por centúrias medievais. Mas, habitar nas zonas periféricas podia ser um sinal de desafogo
muitos moradores e por um número significativo dos que se deslocavam às vilas e cidades. económico. Porque aí, onde o espaço abundava, se podia construir uma casa mais espaço-
Conhecidas por todos, estas construções deviam seguir os padrões mais difondidos da sa, destinada apenas a habitação, o que afastava o seu proprietário do comum dos morado-
construção corrente, adquirindo, no entanto, maior volumetria ou apresentando, sobretu- res, daqueles que precisavam de viver nas artérias centrais por necessidades económicas,
do o seu interior, algumas adaptações, às funções que desempenhava. Assim acontecia numa apertada casa-oficina/loja, para poderem estar no caminho das suas clientelas.
com a casa da vereação da cidade do Porto, no século XV, cujo contrato de construção Para essas periferias podiam ainda empurrar-se as esterqueiras, esses terrenos abertos
continha cuidadas instruções, em que se previam não só a orgânica de funcionamento das onde as populações urbanas iam fazer os seus despejos, sobretudo aqueles que não podiam
reuniões como a necessidade de reservar espaço para a guarda de documentos (Vereaçoens. recorrer à horta das traseiras da casa para esse fim. Impondo-se pelo cheiro nauseabundo
Anos de 1390-1395, pp. 254-258). Ou com o edifício medieval da alfândega dessa mesma que afastava as pessoas, as esterqueiras eram locais isolados, preferidos por ladrões e malfei-
cidade, onde se registam compartimentos de armazenagem, alpendre para pesagem e sela- tores para se esconderem durante o dia, descansando antes de se lançarem nas suas
gem e aposentos de habitação destinados a oficiais régios e até capazes de acolher régios depredadoras incursões nocturnas.
visitantes (Manuel Luís Real, «Sobre o local de nascimento do infante D. Henrique», in Uma vez que estas zonas encontravam uma das suas confrontações na parede da
Henrique, o navegador, Porto, 1994, pp. 161-168). muralha, considerava-se que eram as mais convenientes para acolherem a comunidade
Ao concentrarem-se quase sempre nas áreas centrais dos núcleos urbanos, estes edifí- judaica, pois aí se podia reforçar o seu confinamento e favorecer a constituição de um
cios vinham tornar mais apetecível toda a zona envolvente, o que explicava as elevadas bairro autónomo. Nas cidades e vilas de pequena e média dimensão, no entanto, o núme-
concentrações de população que aí se pode encontrar e que ajudavam a conferir uma ro de judeus que aí habitava podia não ser suficiente para gerar a formação de judiarias
identidade própria à área por eles balizada. Quase sempre em conexão com as principais fechadas, o contrário do que acontecia com as cidades mais importantes, onde se desdo-
saídas e, consequentemente, com as vias de comunicação mais concorridas, o centro ten- bravam por uma ou mais judiarias. Bastava-lhes então apenas algumas ruas, mas dispostas
dia, nas vilas e cidades ribeirinhas, a associar-se à ribeira, ou seja, a vizinhar com o rio ou sempre de maneira a serem limitadas pela presença compacta do muro. Mas em qualquer
com o mar, que surgiam assim como elementos fundamentais de contacto. O que lhe dos casos, espaços hierarquizados pela sinagoga e identificáveis, sobretudo, pela identidade
imprimia outro colorido, marcado pelas chegadas e partidas dos barcos, pelo carregar e dos seus habitantes. Gentes que se distinguiam pela aposição obrigatória dos sinais verme-
descarregar das mais diversas marcadorias, pelo odor forte dos peixes e moluscos e pela lhos no seu vestuário, pelo uso dos chapéus cónicos, pelos nomes que recebiam de seus
presença de gentes vindas de fora, que chamavam a atenção pelos vestires diferentes e pelos pais. Que tinham poço próprio, uma forma diferente de talhar a carne e até um dia dife-
32 falares arrevesados que muito poucos conseguiam entender. rente para interromper o trabalho e louvar o senhor. 33
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A PAISAGEM URBANA MEDfEVAL PORTUGUESA

Desde sempre ambígua em relação a tudo o que precisava, mas que simultaneamente FONTES IMPRESSAS E BIBLIOGRAFIA
reprovava, a sociedade medieval procurava encontrar locais específicos para a instalação
das prostitutas, que, sem as expulsar do perímetro urbano, as mantivesse concentradas
num local específico, de preforência periférico. Daí que as vereações se preocupassem em Fontes impressas
determinar, com certa rigidez, as zonas onde essas mulheres podiam habitar, e que eram
Actas das Vereações de Loulé, vol. I, ed. H. Baquero MORENO, L. Miguel DUARTE e J. Alberto MACHADO,
denominadas de mancebias ou, mais cruamente, deputarias. Uma forma de arruamento Porto, Câmara Municipal de Loulé, 1984.
sempre recebida com protestos, uma vez que se lhe atribuíam artérias afastadas do centro, Chancelarias Portuguesas - Chancelaria de D. Afonso IV, cd. A. H. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Centro
de Estudos Históricos da UNL, 1990.
pouco propícias, na opi~iãó'tias visadas, para as suas actividades. Ao remeter-se as mulheres Chancelarias Portuguesas- Chancelaria de D. Pedro I (1357-67), vol. !, ed. A H. Oliveira MARQUES, Lisboa,
que faziam pelos homens para a periferia do espaço amuralhado, pretendia-se afastá-las dos INIC/Cemro de Estudos Históricos da UNL, 1984.
Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-51), ed. AH. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Cemro de
olhares honestos e circunscrever as arruaças e barulhos que sempre acompanhavam os
Estudos Históricos da UNL, 1982.
bandos masculinos que frequentavam essas zonas quentes. Mas não deixava de se estar a Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-83), vol. I, ed. AH. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/
conferir à periferia uma acentuada marginalidade, que ajudava a transformá-la no local /Centro de Estudos Históricos da UNL, 1990.
Cortes Portuguesm. Reinado de D. Pedro (1357-1367), ed. AH. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Centro de
menos apetecido de qualquer cidade ou vila. Estudos Históricos da UNL, 1986.
Feita de pedra, madeira, adobe e taipa, a paisagem urbana era também, e muito, Documentação medieVCll do Arquivo Pm·oquial de S Pedro de Miragaia, ed. L. Miguel DUARTE e L. Carlos AMARAL,
sep. do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, Porto, 1984.
devedora dos homens que a habitavam. Porque lhe emprestavam, através dos seus quotidia-
Documentos do Arquivo Histórico da Câmara lvfunicipal de Lisboa, Livros de Reis, vol. I (1957), vol. II (1958) e vai. III
nos plenos de vida, grande parte da sua identidade. Porque com ela partilhavam a prospe- (1959).
ridade e pobreza, a guerra e a paz, a alegria e a tristeza. E que tanto se revelava ostensiva Documentos históricos dz cidade de Évora, ed. Gabriel PEREIRA, Évora, I parte (1885), II parte (1887), III parte (1891).
Livro do Alrnoxarifado de Silves (século XV), ed. H. Baquero MORENO, Maria José LEAL e J. Garcia
como discretamente no aspecto das casas de moradas, na traça dos edifícios notáveis, no DOMINGUES, Silves, 1984.
perfil das ruas, na grossura das paredes da muralha. Livro das Posturas Antigas, ed. Maria Teresa Campos RODRIGUES, Lisboa, 1974.
MARQUES, José, Os pergaminhos da Confiaria de S. João do Souto da cidade ele Braga (1185-1545), Braga, 1982.
-A Confiaria de S. Domingos de Guimarães (1498), Porto, 1984.
« Vereaçoens». Anos de 1401-1449. O mais antigo dos «Livros de Vereações» do Município do Porto existente no seu
arquivo, ed. A. Magalhães BASTO, 2.ª ed., Porto, 1937.
« Vereaçoens». Anos de 1401-1449. O segundo Livro de Vereações do Município do Porto existente no seu arquivo, ed.
J. A. Pinto FERREIRA, Porto, 1980.
« Vereaçoens».Anos de 1431-1432, ed. L Miguel DUARTE e J. Alberto MACHADO, Porto, 1985.

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* Este artigo foi publicado, originalmente, sob o título «Urbanismo dcTrazado Regular en los Dos Prirneros
Siglas de la Colonización Brasilefia», em Estudios sobre Urbanismo Iberoamericano, Siglas XVI al XVIII. Sevilla,
Junta de Andalucia, 1990, pp. 306-22. Sua realização resultou de pesquisas em arquivos e bibliotecas portugue-
sas, no ano de 1982, graças a urna bolsa concedida pela Fundação Guggenheim, de New York, a quem o autor
agradece. Escrito em espanhol, o texto foi gentilmente traduzido pclaArq. Alejandra Hernández Mufioz e revisto
38 pelo autor.
Embora existam exemplos de cidades de traçado regular no Brasil nos dois primeiros
séculos de colonização, é só a partir do Setecentos que essas cidades tiveram maior difusão
no país. O contraste entre as cidades coloniais brasileiras, localizadas em sítios acidenta-
dos, com ruas estreitas e sinuosas, e as cidades hispano-americanas, planas, regulares e com
vias retas e largas, tem provocado uma série de especulações por parte de historiadores,
geógrafos, urbanistas e arquitetos. Em geral, estes autores tenderam a considerar o urba-
nismo luso-brasileiro como medieval ou «espontâneo» e, consequentemente, não planifi-
cado, ao tempo que as cidades regulares, que, aliás, sempre coexistiram com as espontâ-
neas, eram ignoradas ou consideradas exceções. Expressivas desta posição são as palavras
do historiador Sérgio Buarque de Holanda:

«... a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental,


não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha
da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, sempre esse significativo aban-
dono que exprime a palavra 'desleixo' ... »1

Não menos radical é a posição do historiador de arte Robert Smith:

«Os portugueses estabeleceram no Brasil, quase intacto, o mundo que haviam


criado na Europa ... A ordem era ignorada pelos portugueses, como assinalavam
deleitados os viajantes. Suas ruas, ironicamente chamadas 'direitas', eram tortas e
cheias de altos e baixos, as suas praças de ordinário irregulares ... Desta sorte, em
1763, quando deixou de ser a capital do Brasil, era a Bahia uma cidade tão medie-
val quanto Lisboa na véspera das grandes reformas de Pombal. Nada inventaram
os portugueses no planejamento de cidades em países novos.» 2

Segundo este autor, os portugueses reproduziram nas cidades do seu império ultrama-
rino o urbanismo medieval da Metrópole, em especial o das cidades de Lisboa e Porto,
estruturadas em dois níveis3 • Deste modo, enquanto os espanhóis, nas suas colônias, realiza-

1
HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil 12.' ed., Rio de Janeiro, José Olympio Ed., 1978, p. 76.
2
SMITH, Robert, As Artes na Bahia, 1 parte, Arquitetura Colonial Salvador, Prefeitura Municipal de
Salvador, 1954, pp. 11-2.
3
Esta idéia é desenvolvida pelo autor em Baroque Architeccure, in LIVERMORE, H. (ed.), Portugal and
Brazil, London, Oxford Universicy Press, 1953, pp. 349-84. 41
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR

vam a mais importante experiência urbanística da Renascença, os portugueses, atavicamente, 1. Construção de novas capitais em conseqüência da criação de um novo estado ou
retornavam ao passado. O mesmo fato, a espontaneidade de nossas cidades, é interpretado da busca de um símbolo ou centro de equilíbrio nacional. Os mais antigos exem-
de forma diametralmente oposta por autores como Luís Silveira e Paulo F. Santos. Argumen- plos de cidades novas são capitais, como Akhetaton (El Amarna) (1745-1358
tam eles que a razão de os portugueses não adotarem os traçados geométricos resultava da sua a.C.). No outro extremo temos Brasília que, apesar de sua modernidade, repete
longa experiência na criação de cidades orgânicas, superiores como desenho à quadrícula, uma motivação antiqüissima.
4
porque estavam sujeitas aos princípios naturais da biologia e da sociologia . 2. Coloni:zaç:ão externa ou interna com propósitos geopolíticos ou econômicos. São
Este equívoco só começou a ser esclarecido com os trabalhos de Nestor Goulart Reis F." exemplos das primeiras, as colônias gregas fundadas na Magna Grécia e na Sicília, e
e, em especial, Roberta Marx belson, que mostraram ser relativamente freqüentes cidades de das segundas, as «bastides» francesas e inglesas, na Gasconha (século xm).
traçado regular no Brasil, especialmente a partir do século xvm 5. Neste artigo procuraremos 3. Descongestionamento de grandes metrópoles, com a criação de cidades satélites, como
demonstrar que os portugueses dominavam os traçados regulares desde a Idade Média e os as «garden cities» e «new towns» inglesas, fenômeno característico do século atual.
aplicaram durante o Ciclo dos Descobrimentos na Metrópole, nas Ilhas do Atlântico e no 4. Cid11des industriais criadas, a partir do século passado, para maximizar a explo-
Oriente. O que explica sua aplicação em algumas circunstâncias e seu abandono em outras ração de recursos naturais, fontes energéticas e acessibilidade a certos mercados.
são, aparentemente, fatores de natureza sociopolítica, mais que culturais. As mesmas razões
explicariam as diferenças entre o urbanismo hispano-americano e filipino. A esta relação devemos agregar uma quinta categoria, constituída pelas cidades
Não devemos esquecer que cidades regulares podem resultar de fatores naturais e histó- reconstruídas ou transladadas em conseqüência de catástrofes naturais, como a Lisboa
ricos e não, necessariamente, de processos de planificação, que antecedem a sua fundação. pombalina, ou por razões de segurança ou acessibilidade, como Carcassone, na França.
A orientação de ruas por motivos topográficos, climáticos ou religiosos; a existência de estrutu- Mas a grande maioria das cidades novas são cidades resultantes de programas de
ras fundiárias e territoriais preexistentes, relacionadas com sistemas de irrigação e circulação, colonização. Assim ocorreu na Antigüidade, com a expansão da Grécia e de Roma; na
podem condicionar a formação de cidades de traçado razoavelmente regular. Morris, por exem- China, durante a dinastia Chou; na Idade Média, com as bastides, e durante os séculos XVI
plo, contesta que Ur (2500 a.C.), na Mesopotâmia, era uma cidade planificada6 • O mesmo e XVII, com a colonização hispano-americana. Tudo indicava que o mesmo processo qeve-
pode-se dizer de muitos centros cerimoniais Olmecas e Maias, na América Central. ria repetir-se na colonização do Brasil. Seu não cumprimento põe em dúvida o próprio
Temos que reconhecer, porém, que a grande maioria das cidades de padrão geomé- caráter da colonização brasileira.
trico, especialmente em quadrícula, são cidades novas, ou sejam, fundadas para satisfaze- O descobrimento do Brasil não revelou, de imediato, nenhuma grande riqueza e os
rem objetivos políticos bem definidos. Devido ao seu caráter artificial e, em muitos casos, produtos exportados, durante o primeiro meio século, resumiam-se a madeiras e animais
localização em territórios despovoados, estas cidades requerem um plano de desenvolvi- exóticos, como o pau-brasil, macacos e papagaios. O país servia mais como ponto de apoio
mento prévio, com a realização de grandes investimentos públicos e oferecimento de van- à rota da Índia que como provedor de produtos de exportação. Durante trinta anos não
tagens e privilégios a novos moradores, que lhes permitam atingir uma dimensão mínima, houve nenhuma tentativa de colonização por parte da Coroa portuguesa. Em 1530, uma
em pouco tempo, tornando-se viáveis e irreversíveis. A satisfação de todas essas condições primeira expedição colonizadora, comandada por Martim Afonso de Souza, funda São
exige que as cidades novas sejam apoiadas em uma decisão política muito forte, sem a qual Vicente, no atual estado de São Paulo, onde se fazem os primeiros experimentos de plan-
elas não vingam. Galantay enumera quatro motivações básicas para as cidades novas7 : tação de cana-de-açúcar.
Quatro anos mais tarde, D. João III, reconhecendo as dificuldades de ocupar um
4
SILVEIRA, Luís, Ensaio de Iconografia dt1s Cidades Portuguesas do Ultrmnm: Lisboa, s.d., v. 4. Na mesma território tão grande e despovoado, abdica de seu direito e dever de colonizador e o delega
linha coloca-se Paulo F. Santos, em Formação de Cidades no Brasil Colonial, in V Colóquio Internacional de a particulares, através do sistema de capitanias hereditárias. Os donatários tinham, entre
Estudos Luso-Brasileiros. Coimbra, 1968 (separata), pp. 6-9. O autor faz a apologia do urbanismo informal da
Idade Média citando em seu apoio Gallion, Saarinen e Munford.
outras atribuições, as de criar vilas, fazer a defesa e administrar a justiça. Mas seus titulares,
5 O tema da planificação de cidades no período colonial é natado de forma genérica por REIS FILHO, membros de uma nobreza empobrecida, já não tinham condições de exercer tais atribui-
Nestor Goularc, em Evolução urbana do Bmsil. São Paulo, Pioneira/USP, 1968, e desenvolvido em profundidade ções e muitos deles não chegaram a tomar posse de suas terras.
por DELSON, Roberta Marx, em New Tinuns for Colonial Brasil: Spatial a11 Social Planing of the Eighteenth
Century. Michigan, University Microfilms International, Ann Arbor, 1979.
6
MORRIS, A. E. J., History ofurban jórm, London, Geo Goldwin, 1972. «A política portuguesa para o Brasil, em meados do século xvr, procurava utili-
7 GAIANTAY, Erwin, Nuevas Ciudades, de laAntigiiedad a 1,ue,tros dias. Barcdona, Gustavo Gili, 1977,

pp. 15-9 e 21-118. Consulte-se, também, LAVEDAN, Pierre, Histoire de l'Urbanisme. Paris, Henri Laurcns,
zar ao máximo os recursos de particulares - colonos e donatários - sem pre-
42 pp. 1926-52, 3 v.; MUMFORD, Lewis, La Ciudad en la Historia. Buenos Aires, Ed. Infinito. judicar os programas das Índias, que ocupavam então o melhor de seus esforços. 43
URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS

velhos assentamentos romanos, como Silves, Mértola, Badajoz, Alcácer do Sal, Santarém,
Pode-se afirmar que o estabelecimento do regime das Capitanias, estimulando a
10
Lisboa e Coimbra, muitos dos quais de traçado regular • Mas estes centros foram muito
fixação de europeus nas novas terras, visava alcançar não somente sua ocupação
destruídos, em conseqüência das lutas da Reconquista, e pouco preservaram de sua fase
como também a urbanização, como a solução mais eficaz de colonização e do-
mínio ... Como resultado dessa política, das trinta e sete povoações, entre vilas e islâmica.
Segundo alguns cronistas da época, como Sebastião, bispo de Salamanca, Afonso I ao
cidades, fundadas entre 1532 e 1650, apenas cerca de sete o seriam por conta da
reconquistar a Galícia, o Minho, o Douro e parte da atual Beira Alta liquidou os muçul-
Coroa, correspondendo as demais aos donatários e seus colonos ... », afirma Nestor
8 manos e trouxe consigo para as Astúrias os cristãos que encontrou. Isto levou alguns histo-
Goulart Reis Filho •
riadores a desenvolverem, talvez com certo exagero, a teoria do «ermamento», segundo a
qual esses territórios ficaram desertos até serem incorporados definitivamente aos novos
Atribuída a particulares, sem uma vontade política que a respaldasse, a colonização se
transformaria em um processo de ocupação espontâneo, onde não havia lugar para cidades reinos cristãos 11 •
A estas condições, comuns também à Espanha, juntou-se outra, no caso português, a
novas, tal como foram conceituadas anteriormente. Mas, mesmo nos séculos XVI e xvn, nas
Independência, que além de demandar a ocupação dos territórios reconquistados aos
poucas vezes que a Coroa decidiu intervir na colónia para garantir a integridade territorial,
mouros, ao Sul, exigia a definição da fronteira leste, com Castela. A ocupação do espaço
o resultado foi o aparecimento de cidades regulares, como veremos adiante. A partir do
século xvm, quando Portugal revê sua política com relação ao Brasil, em conseqüência da reconquistado se fez com gente do Norte, não muito numerosa, acrescida de mudéjares e

descoberta do ouro em Minas Gerais e do declínio do comércio com o Oriente, os exem- judeus, segregados em bairros próprios, e colonos estrangeiros, especialmente franceses e

plos de cidades regulares se multiplicam na colónia. flamengos, atraídos pelos privilégios oferecidos.

Antes, porém, de discutir estes casos, queremos demostrar que não foi por falta de Imperativos militares, mais que a presença de um mercado, como acontecia no resto

conhecimento e experiência prévia que não se aplicou, de forma generalizada, o traçado da Europa, são responsáveis pelo nascimento de vilas e cidades no Portugal da Reconquis-
ta. Estas eram, na realidade, a aglutinação de pequenas aldeias e casarias isolados dentro de
geométrico nas vilas e cidades brasileiras.
uma mesma cerca, ou a reconstrução de velhas cidades destruídas ou abandonadas durante
as lutas contra os árabes.
Como se pode verificar, existiam ali todos os pré-requisitos para o surgimento de
cidades novas que, como veremos, vão aparecer em pontos estratégicos, nas cumeadas de
Antecedentes portugueses
colinas ou em vaus de rios, sempre vizinhas à fronteira espanhola. Segundo Orlando Ri-

Portugal medieval tinha uma história urbanística muito semelhante à da Espanha, beiro, uma das primeiras cidades portuguesas com traçado regular é Guarda, situada a
1000 m de altitude, em um contraforte oriental da serra da Estrela. Guarda havia sido,
com duas grandes vertentes. Uma mais antiga (século vm), muçulmana, que se desenvol-
sucessivamente, uma fortaleza de romanos, visigodos e árabes. Tomada aos mouros por
veu no Sul, e uma mais recente, cristã, que se difundiu, a partir do século XII, no Norte,
Afonso Henrique, foi ampliada e fortificada por Sancho I, o Povoador, em 1119 12 •
com a Reconquista. São duas tradições antagónicas. A primeira de cidades de traçado
Mas o grande ciclo de reconstrução e fundação de cidades em Portugal tem lugar a
caprichoso, de ruas tortuosas e sem saída. A segunda tendente à regularidade e à
partir da segunda metade do século xm, quando inicia-se um longo período de coloniza-
racionalidade9 •
ção interna. Superado o estado de guerra constante em que viveu Portugal durante seu
A Reconquista ofereceu oportunidades excepcionais para a criação ou reconstrução
primeiro século, contra mouros, leoneses e castelhanos, experimenta o país um crescimen-
de cidades. As vilas haviam-se desorganizado durante o período visigodo, devido a obriga-
to económico resultante da difusão da moeda, formação de novas feiras e do comércio
ção de os nobres acompanharem o rei na guerra. Muitas vilas ficaram sem senhor, entre-
marítimo, que se refletiria na construção e/ou ampliação de castelos, vilas e cercas. Só
gues aos servos. Por outro lado, os mouros não criaram grandes cidades em Portugal, ao
contrário da Espanha, senão favoreceram, mediante o comércio, o desenvolvimento dos

10
SARAIVA, José Hermano, História concisa de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-América, 7.ª ed.,
1981, pp. 36-7.
8
REIS FILHO, Nestor Goularr, op. cit., pp. 66-7.
9 Sobre o assunto, ver TORRES BALBAS, Leopoldo, La Edad Media, em Resumm Histórico dei Urbanismo
" Ibidem, pp. 39-40.
12
RIBEIRO, Orlando, Em torno das origens de Viseu. Coimbra, Fac. de Letras da Universidade de Coimbra,
en Espaiia. Madrid, Instituto de Estudios de Adminisrración Local, 1968, e OLIVEIRA MARQUES, A. H. de,
1970. 45
44 «Introdução à História da Cidade Medieval Portuguesa», in Bracara Augusta, 35 (79/80). Braga, 1981, pp. 367-87.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR

nesse momento, as vilas e cidades, um simples aglomerado de casas, alcançam uma certa Vila Viçosa (Fig. 2) apresenta o mais perfeito traçado urbano deste ciclo de cidades
consistência e unidade 13 • Além do mais, a consolidação das vitórias militares contra os regulares: muralha retangular com o castelo em uma extremidade, largo com igreja no
árabes e a definição da fronteira com Castela exigiam o repovoamento rápido do território, meio e ruas retilíneas que se cruzam ortogonalmente. Arruinada e despovoada com a to-
especialmente das regiões menos ocupadas e produtivas, distantes do litoral. mada aos árabes, é repovoada por D. Afonso III, que lhe deu foro. Mas o castelo e a
Este período coincide com os reinados de Afonso III e seu filho D. Dinis. A fatores muralha só seriam reconstruídos por D. Dinis. Contudo, não está descartada a possibili-
militares e econômicos somam-se, também, razões de ordem política, que favoreciam a dade de que seu traçado seja uma reminiscência do antigo castrum romano. De qualquer
criação de vilas e cidades. D. Afonso III assume o poder no âmbito de uma revolução, modo, a vila nova (Fig. 3), criada por D. Afonso III, em 1267, junto à antiga, apresenta o
cujas lutas, ocorridas eni,[e f:.245 e 1247, conduziriam a uma aliança entre o Rei e o cha- mesmo traçado geométrico da primitiva 16 •
mado Terceiro Estado, o povo, em oposição ao clero e à nobreza. As forças populares D. Dinis, conhecido como o Lavrador, continua a obra do seu pai. Consolida o
organizaram-se em torno dos conselhos locais e D. Afonso III (1245-1279) adota uma poder régio e unifica administrativa e culturalmente o novo país; desenvolve a agricultura
política de valorização do poder municipal e garantias cidadãs. Pouco depois do fim da em regiões pouco povoadas, especialmente no Alentejo; reforma burgos arruinados e fun-
guerra civil, o Rei convoca as cortes, com a participação de representantes das vilas e da outros, concedendo privilégios, como feiras livres 17 • Seu programa de governo resume-
cidades, ou seja, da burguesia urbana e rural que o havia apoiado. O resultado prático -se na colonização interna.
desta política é a fundação ou concessão de foros e privilégios a numerosas vilas e cidades. Preocupado em recuperar zonas de pântano para a agricultura, drena uma grande
Algumas são cidades criadas «ex-novo», como Viana do Castelo (Fig. 1), no estuário do extensão do Ribatejo e funda Salvaterra de Magos, outorgando-lhe foro em 1295. Esta vila
Lima, que logo transformou-se numa base para escaramuças entre portugueses e galegos. com nome e forma de «bastide» é constituída por cinco ruas longitudinais, orientadas na
A fundação de Viana é um ato primordialmente político, destinado a prestigiar o Terceiro direção norte-sul, cruzadas por quatro transversais formando um retângulo quase perfeito.
Estado. Seu foro, de 1258, estabeleceu privilégios que se contrapunham às prerrogativas dos A Rua Direita conduz o visitante a um largo, na extremidade sul, que tem ao centro o
grandes mosteiros e famílias nobres da região. Entre outras disposições, estabelecia que ne- pelourinho e ao fundo o Paço Real. Na mesma praça situa-se a casa de câmara e cadeia.
nhum homem rico, como no Porto, poderia viver na vila. D. Afonso III não se intimidou A igreja abre-se para um largo pequeno, anexo ao primeiro.
com as pressões e declarou que estava decidido a dar-lhe crescimento e força, enquanto Mas a maior preocupação de D. Dinis é povoar a parte oriental do Alentejo, fronteira
14
estivesse vivo • Sua planta, delimitada por uma cinta oval, está constituída por sete ruas com Castela.
orientadas no sentido leste-oeste cortadas a 90° por transversais. O largo principal, onde se
situa a casa de câmara e cadeia, não está muito longe da matriz, vizinha ao centro da cidade. «Este rei en seu tempo, fez quasi de novo todas as vilas e castelos de Riba de
D. Afonso III preocupa-se também com a definição das fronteiras e, em 1267, assina Odiana ... E fez, de novo, e do primeiro fundamento, Vila-Real, que fazem nú-
em Badajoz um primeiro tratado com Castela. Inicia-se, assim, uma política de valoriza- mero de quarenta e quatro vilas, castelos e fortalezas do Reino, de que algumas
ção das vilas de fronteira. Este trabalho é continuado e ampliado pelo seu filho, D. Dinis fez novamente, e outras reformou ... »18
(1279-1325), que conclui as negociações com Espanha sobre limites territoriais, através
do tratado de Alcafiices, de 1297, e inicia a fortificação da fronteira. Neste «fazer quase de novo», D. Dinis adeqüou as plantas daquelas vilas às exigências
É muito difícil precisar em que momento essas vilas e cidades receberam seu traçado militares e de administração civil e religiosa, ou seja, a planos regulares. Estas vilas apresen-
regular. A concessão do foro, depois das lutas da Reconquista, correspondia, na maioria tam dois tipos de plantas, como observa Jorge Gaspar. Uma, onde a rua central corta a
dos casos, a uma nova fundação. Mas a maior parte das povoações que recebeu foro de povoação ligando as duas portas opostas, como em Redondo, e outra, onde existe somente
D. Afonso III foi fortificada pelo seu filho, D. Dinis. Alguns autores, como Jorge Gaspar, uma porta, com uma rua central que a liga ao castelo, situado na outra extremidade.
o primeiro a chamar a atenção sobre estas vilas, afirmam que a reestruturação das mesmas
se deve a D. Dinis 15 .
16 Vila Viçosa teve grande desenvolvimento no século XIV, sob o senhorio de Nuno Álvares Pereira. Sobre

o assunto, ver: ALMEIDA, João, Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa, Ed. do autor, 1984, vol.
13
Idem, Cidade, in Dicioudrio de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão. Lisboa, Iniciativas Edito- 3, pp. 269-72; BARBOSA, I. Vilhena, As Cidades e Villas ela Monarchia Portuguesa que teem Bmsão d'Aml(ls.
riais, 1963, vol. I, pp. 574-80. Lisboa, T do Panorama, 1971, vol. l, pp. 170-7.
" Viana do Castelo in Guia de Portugal, 2.ª parte. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1965, vol. 4, p. 982. 17 FERREIRA, Maria Emília Cordeiro, D. Dinis, in Diciondrio de História de Portugal, dirigido por Joel
15
GASPAR, Jorge, Morfologia de padrão geométrico na Idade Média, in Revista Finistemz, Lisboa, 1969, Serrão. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, vol. I.
46 2(8); pp. 198-213. 18 PINA, Rui de, Crónica ele D. Dinis. Porto, Liv. Civilização, Biblioteca (série Régia), 1945, cap. 32, pp. 322-3. 47
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À margem dessa rua está, geralmente, o largo, ponto de reunião social, mas sem as propor- O último exemplo de urbanismo regular deste ciclo é Sesimbra, localizada à margem
ções das praças renascentistas 19 • São exemplos deste último modelo os núcleos primitivos de um porto natural, perto de Lisboa. Sesimbra foi tomada aos mouros por D. Afonso
de Vila Viçosa, Alegrete e, em certa medida, Salvaterra de Magos. Um dos melhores exem- Henrique, mas só elevada a vila em 1323. Um levantamento de meados do século XVII, do
plos conservados deste tipo de.vila é Monsaraz (Fig. 4), localizada a 323 m sobre o vale do engenheiro militar Nicolau de Langres, revela um traçado bastante regular de ruas perpen-
Guadiana. A vila teve foro de D. Afonso III, mas foi fortificada por D. Dinis, quando diculares à costa, que não se perdeu, totalmente, com a expansão da vila24 •
recebeu, provavelmente, a planta regular. Mas o urbanismo regular medieval não acaba com os reinados de D. Afonso III e
Algumas das vilas fundadas ou fortificadas por D. Dinis encontram-se muito des- D. Dinis. Sines, situada na costa, perto de Lisboa, elevada a vila por D. Pedro I, em 1362,
caracterizadas. Assumar lilerd¾u o castelo e a muralha, mas conserva seu traçado. Veiros só apresenta um traçado típico da época, com quarteirões retangulares muito alongados.
mantém a cerca. O interior foi convertido em terras de cultivo, mas a vila que se desenvolveu A tendência geométrica manifesta-se também na expansão de algumas cidades. São exem-
fora dos muros reproduz seu traçado em quadrícula. plos desse fenômeno a mouraria e a judiaria de Évora. Situadas fora dos muros da cidade,
A preocupação defensiva de D. Dinis não se restringiu ao Alentejo. Chaves, ponto seus traçados regulares denunciam, segundo Jorge Gaspar, uma planificação prévia para a
estratégico para o controle do Norte de Portugal, recebera foro em 1258 de D. Afonso III, instalação daquelas minorias segregadas com a dominação cristã. Outro exemplo é o bair-
mas teve sua cidadela construída por D. Dinis. Como se pode verificar, em desenho de ro de Santana, em Lisboa, anterior à criação da cerca fernandina 25 •
Duarte D'Armas do final do século XV, seu perímetro era retangular e suas ruas paralelas Tal como aconteceu em Vila Viçosa, também pequenas vilas ou cidades expandem-se
cortadas por transversais conformam quarteirões alongados que correm em direção ao rio segundo traçado regular, como o burgo que se desenvolveu em direção à capela de Santia-
Tâmega20 . Também no Norte, um pequeno povoado situado no estuário do Minho, onde go, em Estremoz (Fig. 6), e o que cresceu extramuros em Veiros (Fig. 7). O mesmo se pode
existira remotamente um castrum romano, é transformado em praça-forte pelo mesmo rei, dizer de Moura (Fig. 8), cuja expansão segue tramas retangulares com diferentes orienta-
recebendo foro em 1284. Caminha (Fig. 5) apresenta uma planta semelhante às das vilas ções. Curiosamente são todas cidades situadas no Alentejo, próximas à fronteira com a
do Alentejo, já descritas: muralha oval com uma porta em uma das extremidades e três Espanha.
ruas perfeitamente paralelas cortadas por duas transversais. Como Viana do Castelo e A, vilas e cidades portuguesas medievais de padrão geométrico são praticamente con-
Salvaterra de Magos, possuía dois largos, Corpo da Guarda e Matriz, ambos de formato temporâneas às «bastides» francesas e às vilas e cidades regulares espanholas de Navarra,
retangular 21 • Levante e Biscaia. Suas influências recíprocas não estão suficientemente estudadas, mas não
Procurando impedir o cruzamento do mesmo rio, D. Dinis funda, em 1320, pouco seria por acaso que nomes como Vila Nova, Vila Real e Salvaterra em suas respectivas
acima de Caminha, a Vila Nova de Cerveira, trocando terras reais por «courelas» particula- línguas - designam cidades novas nos três países. É preciso que se esclareça que as cidades
res e prometendo foro, desde que se juntassem pelo menos cem vizinhos para formá-la. ibéricas de traçado regular têm risco menos rígido que as «bastides» francesas coevas, o que
Sua localização excêntrica não facilitou seu desenvolvimento. Apesar de haver mudado de não significa uma inferioridade. As «bastides» são cidades construídas em terras virgens. Suas
sítio, não passa, ainda hoje, de uma aglomeração de umas poucas ruas 22 • D. Dinis inter- equivalentes ibéricas resultam, na maioria dos casos, de reconstruções ou fusões de aldeias e,
vém, também, em Lisboa, dando-lhe a Rua Nova, a única obra de modernização da capi- como tal, têm compromissos com núcleos preexistentes.
tal, anterior à reforma pombalina, da segunda metade do século XVIII. A peste negra de 1348, provocando uma grande queda demográfica, interrompe o
processo de crescimento e expansão de vilas e cidades, tanto em Portugal, quanto no resto
«A Rua Nova de El Rei tinha a largura fabulosa de trinta palmos, mas ainda as de Europa. Mas a expansão marítima subseqüente deflagra um período de crescimento
mais anchas não teriam mais de oito a dez.» 23 demográfico e urbanização ligado às modificações estruturais da economia portuguesa.
A desorganização da sociedade rural provocaria um processo de urbanização e inchaço,
19
GASPAR, Jorge, op. cit. transformando profundamente os núcleos urbanos existentes.
20
Chaves, in Dicionário Chronográphico de Portugal Continental e Insular, de Américo Costa. Vila do Conde, Esta é uma fase de grande centralização do poder. No período que antecede a expansão
1936, vol.5; Guía de Portugal, Tds-os-Montes e Alto Douro. Lisboa, F. C. Gulbenkian, s.d., pp. 407-14.
21 marítima, Portugal viveu uma grande crise econômica, conseqüência da guerra de D. Fernando
CRUZ, Maria Alfreda, Caminha. Evolução e estrutura de uma antiga vila portuária, in Finistem1, 2 (3).
Lisboa, 1967.
22
L. Lúcio de Azevedo, citado por GASPAR, Jorge, op. cit., p. 208. Ver, também, Vila Nova ele Cerveira,
in Guia de Portugal. Lisboa, F. C. Gulbenkian, v. 5 e BARBOSA, I., op. cit., v. 3, p. 157. 24
A reprodução desta planta encontra-se em MATTOS, Gastão de Mello, Nicolau de Langres e a sua obra
23
Alexandre Herculano citado por COSTA LOBO, A. de Souza Silva, História da Sociedade em Portugal em Portugal. Lisboa, Comissão de História Militar, 1941.
48 no século XV.Lisboa, 1903, p. 123. 25
GASPAR, J., op. cit., p. 213. 49
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com Castela, da depreciação da moeda, da desorganização da produção rural, dos reflexos da menos a metade do mesmo, dentro de três anos. Desta maneira, os novos bairros são
depressão económica norte-européia associada à Guerra dos Cem Anos, e da concorrência dos ocupados em poucas décadas 28 .
mercadores italianos, que dispunham de mais capital e maior acesso aos mercados europeus. Estas são, tipicamente, intervenções de expansão urbana, e o traçado geométrico
Para fazer frente a este qúadro, a Coroa opta pela centralização, tanto política, quan- respondia a uma preocupação de maximização da ocupação do solo. Os quarteirões, ainda
to económica, encampando empresas e administrando seus lucros. O grande mercador é o retangulares, já tendem para o quadrado e os largos, simples expansões ou convergências

Estado, através dos feitores do Rei, dos donatários das ilhas e dos capitães de fortalezas, de ruas, no período medieval, dão lugar a praças no espírito do Renascimento.
Em Braga, o arcebispo D. Diogo de Souza, vindo diretamente da Roma de Júlio II,
onde se fazia o escambo dos produtos africanos. Não é por acaso que a primeira grande
em 1505, reforma completamente a velha cidade medieval, abrindo novas ruas, dentro e
iniciativa expansionista~ a 1onquista de Ceuta, em 1415, rica região de cereais do Norte
fora dos muros, inclusive a ampla Alameda de Santana. Constrói novas portas, fontes e
da África 26 .
templos e enche a cidade de esculturas, ao gosto da Renascença 29 .
Sintomaticamente, um dos mais antigos e expressivos exemplos de plano regular
deste ciclo é a cidade de Tomar (Fig. 9). À sombra de um castelo do século XII, entre a
colina e a margem direita do Nabão, surge, no início da segunda metade do século xv, em
terreno previamente drenado, uma povoação de ruas quase perfeitamente paralelas, orien-
Ilhas Atlânticas e África
tadas de nascente a poente, com uma praça central, que substitui um quarteirão, à mar-
gem do cruzamento das duas vias mais importantes. A arquitetura também é regular, como
Desde a Antigüidade, a colonização tem sido um campo fértil para a criação de cidades
se pode observar nas ruas dos Arcos, Estaus e Rua-de-Trás. Isto não é uma coincidência.
novas. Portugal não seria uma exceção. A aventura ultramarir:a substitui e continua o esforço
É evidente que sua construção foi precedida de um plano.
de colonização interna, que vinha desde os primeiros anos da Monarquia Portuguesa, quan-
Naquele período, foi governador da Ordem de Cristo, que desde um século antes tinha
do os traçados geométricos foram utilizados para racionalizar o processo de colonização. Mas
sua sede no castelo, o infante D. Henrique, o grande empreendedor da expansão marítima.
a aplicação deste modelo não se faz de uma forma universal, no ultramar. Em alguns conti-
Foi a Ordem que lhe forneceu os recursos materiais e humanos para realizar as primeiras
nentes seu emprego é amplo, em outros, restringe-se a poucos exemplos.
aventuras náuticas. De Tomar e vizinhanças sairiam não só os primeiros navegantes como os
A expansão portuguesa, segundo a maioria dos historiadores, começa com a conquis-
primeiros colonos para as Ilhas Atlânticas. Durante os quarenta anos de gestão da Ordem, o
ta de Ceuta (1415), prossegue com a ocupação das Ilhas Atlânticas e o reconhecimento da
Infante reformou a cidadela e construiu ou ampliou muitos edifícios para os cavaleiros, cujo
costa africana, com observações geográficas, identificação de recursos naturais e busca de
número crescia a cada ano. A nova vila deve ter sido projetada para acolher uma parte dos
uma rota marítima que conduzisse ao lendário reino do Prestes João, ou Etiópia, para a
habitantes leigos que foram deslocados da cidadela e, por outra parte, abrigar populações que formação de uma aliança contra os muçulmanos.
vinham se estabelecer sob a proteção da crescente ordem militar27 • A primeira cidade nova deste ciclo surge no arquipélago dos Açores. Em 1460, a
As novas atividades ligadas ao tráfico marítimo refletir-se-iam também em Lisboa Coroa envia à Ilha Terceira Álvaro Martins Homem, com a missão de ajudar ao primeiro
que, no final do mesmo século, já não cabia dentro da cerca fernandina. Em dezembro de donatário, o flamengo Jácome de Bruges, na colonização do arquipélago. Martins Ho-
1500, D. Manuel ordena o corte das oliveiras intramuros para expansão da cidade e, na mem escolhe e drena o sítio da cidade de Angra do Heroísmo, traça as ruas e constrói os
beira do Tejo, conquistava-se, a cada dia, mais espaço ao rio. Antevendo oportunidades de primeiros edifícios. Com o misterioso desaparecimento de Bruges, alguns anos mais tarde,
negócios, dois particulares, Bartolomeu de Andrade e Lopo de Atouguia, um senhor do a ilha é dividida em duas capitanias, sendo doada a primeira, Angra, ao marinheiro João
domínio direto, o outro, do domínio útil das herdades de Bela Vista e Santa Catalina, Vaz Corte Real, e a segunda, Praia, a Álvaro Martins Homem. Corte Real prossegue a
vizinhas ao porto, as loteiam, a partir de 1513, segundo um plano de ruas ortogonais, urbanização de Angra do Heroísmo, seguindo um plano de ruas perfeitamente paralelas,
dando origem aos atuais bairros Alto de São Roque, Santa Catalina e das Chagas (Fig. 1O). que correm para o mar, com transversais ortogonais. Constrói sua primeira fortificação, o
Seus moradores são, em grande parte, a próspera gente do mar: mestres de naus, pilotos, Castelo de São Luís, o Hospital do Espírito Santo, a Alfândega e o Convento Franciscano 30 •
cartógrafos e marinheiros, que ali constroem a igreja de sua confraria, em 1542. Os que
compravam um terreno eram obrigados a construir casa de pedra e cal, ocupando pelo
28
CASTILHO, Júlio de, Lisboa Antiga, o Bairro Alto, 3." ed., Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1954.
29
Braga, in Guia de Portugal, Entre Douro e Minho, 2.a parte. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1965, v. 4, p. 792.
30
GYGAX, Katharina Elisabeth, Contribuição para a Geografia de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo
"' SARAIVA, J. H., op. cit., pp. 139-42.
e Hosta (Açores), in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (27/28). Angra do Heroísmo, 1977, 51
50 27 SANTOS SIMÕES, J. M., Tomar ea suajudaria, Tomar, Museu Luso-Hebraico, 1943, pp. 28-32.
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Com O estabelecimento da rota marítima para as Índias, a pequena vila expande-se recinto fortificado, Benedetto di Ravena tratou de alargar e retificar as antigas ruas, mas
rapidamente como ponto de apoio às frotas de retorno do Oriente e centro de trocas fiel ao traçado preexistente, salvo na parte leste, onde apresenta maior regularidade.
comerciais. Seu plano regular, registrado em 1589 pelo holandês Jan Huyghen van Linshoten A despeito de seu avançado sistema defensivo, sua manutenção tornou-se insustentável.
e publicado seis anos mais tarde, mantém-se até hoje (Fig. 11). Convém lembrar que esta Isolada num meio hostil e longe da Metrópole, foi abandonada pelos lusos em 1769,
experiência estava intimamente relacionada com aquela de Tomar. D. Henrique, o Nave- depois de uma investida dos marroquinos.
gador, é, em última instância, o responsável pelo descobrimento e colonização dos Açores. No ano seguinte, toda sua população, aproximadamente 340 famílias, foi transferida
Seus colonos são, na maioria, gente de Tomar e vizinhança. para a Amazónia brasileira, onde se constrói uma cidade nova, que recebe o nome de Nova
Somente a partir de 1-Zf4 l começaria a exploração da África Negra, com o tráfico de Mazagão (Fig. 13). A velha Mazagão permaneceu abandonada meio século e uma vez
mão-de-obra escrava, complementado pelo de ouro da Guiné e pelo marfim. Os portugueses repovoada pelos mouros perde seu caráter de cidade ocidental, para transformar-se numa
não tinham competidores na África e as trocas daqueles produtos na costa da Guiné, Congo típica cidade muçulmana de ruas sem saída, negando a famosa lei da persistência do plano.
e Moçambique por sal, tecidos e, mais tarde, fumo e cachaça do Brasil, fazia-se pacificamente Do antigo traçado resta somente a via que ligava a Porta da Terra à Porta do Mar33.
com os chefes locais, intermediários do tráfico negreiro. Não se opta pela colonização, senão
pela criação de pequenas fortalezas e feitorias para a troca de produtos e apoio à navegação.
A rigor, Portugal só começaria a colonizar a África Negra depois que perde o Brasil. É isto o
que explica por que não aparecem, também ali, cidades regulares, nos três primeiros séculos. O Império Oriental
Faltava a decisão política, a vontade ou as condições para colonizar.
No Norte da África a situação não é a mesma. Os conflitos crescentes com os árabes Nas Ilhas Atlânticas, na África e no Brasil, que numa primeira etapa serviam fundamen-
exigem uma atitude diferente. É justamente ali que vamos encontrar o único exemplo de talmente como apoio à rota para a Índia e onde era inexistente ou irrelevante a resistência local,
cidade portuguesa, com ruas largas e retas, nos três primeiros séculos de presença portu- as vilas e cidades desenvolvem-se espontaneamente e só raramente são de traçado regular. No
guesa na África. Trata-se da praça-forte de Mazagão. Seu traçado, ainda que não completa-
Oriente, para onde a Coroa dirige todo o esforço de conquista e colonização, o padrão geomé-
mente reticulado, deve-se a uma intervenção da Coroa visando sua modernização e refor-
trico é praticamente a norma.
ço, um quarto de século depois de sua fundação. Chegar à Índia passa a ser um objetivo nacional, a partir de 1474, quando o herdeiro
Devido às crescentes dificuldades de manter os pequenos estabelecimentos fundados
da Coroa, o futuro D. João II, assume o comando das navegações. Efetivamente, em 1488,
na costa marroquina, D. João III decide concentrar suas forças no pequeno reduro funda-
Bartolomeu Dias contorna o cabo da Boa Esperança, descobrindo a rota marítima para a
do em 1514 por Francisco de Arruda31 • Para este fim solicita ao imperador Carlos V um
Índia e pondo em cheque o tradicional «caminho da seda», dominado pelos muçulmanos,
arquiteto à altura do empreendimento e este põe à sua disposição o italiano Benedetto di
que ligava o Oriente aos portos do mar Negro ou diretamente a Constantinopla. Pelo
Ravena. Participam também do projeto os arquitetos Miguel de Arruda e Diogo de Torralva,
tratado de Alcázovas, dividiu-se o Atlântico em duas partes. Acima do paralelo das Canárias
num verdadeiro trabalho de equipe 32 • As obras são executadas pelo mestre de obras João de
para os espanhóis; abaixo, para os lusos, o que garantia a Portugal o monopólio sobre a
Castilho, nos anos de 1541 e 1542, e consistiram em criar uma nova muralha quadrangular,
rota para o Oriente, de onde vinham as custosas especiarias.
com baluartes nos ângulos, mantendo o velho castelo no centro. Três lados da fortificação
A intenção de D. João II de repetir a experiência africana, travando amizade com os
eram contornados por um fosso e o quarto abria-se para o mar, dentro da técnica italiana
chefes locais e desenvolvendo um comércio mutuamente proveitoso, não funcionou. Os
mais avançada de defesa contra as novas armas de fogo.
mercadores árabes tinham profundas relações com os príncipes locais e as hostilidades se
Tratava-se de uma fortificação muito diferente das anteriormente construídas pelos
estabeleceram desde o início, na medida em que os árabes tentavam cortar o tráfico portu-
portugueses no Norte da África e, inclusive, na Metrópole (Fig. 12). Além de ampliar o
guês e estes aniquilar a frota moura 34 • Durante dez anos (1500-151 O) os portugueses vive-
ram praticamente a bordo, mas logo compreenderam que só com uma rede de fortifica-
pp. 170-4. Sobre sua arquitetura, ver BOTTINEAU, lves, earchitecture auxAçores, du manuelin au baroque, in
ções, feitorias e cidades fortes poderiam levar adiante o tráfico comercial.
Colóquio-Artes, Lisboa, F. C. Gulbenkian (35), 1977.
li GASPAR, Jorge, A propósito da originalidade da cidade muçulmana, in Finisterra 3 (5): 19-31. Lisboa,

Centro de Estudos Geográficos, 1968.


32 MOREIRA, Rafael, A arquitetura militar do Renascimento em Portugal -A introdução da arte da

Renascença na Península Ibérica, in Actas do Congresso Iutenutcional do IV Centenário da morte de João Ruão. 33 GASPAR, J., op. cit.
52 Coimbra, Epartur, 1981, pp. 292-3. 34 SARAIVA, J. H., op. cit., pp. 134-7 e 147-55. 53
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Criaram, assim, um impeno sem território, no Oriente, baseado no domínio do «... mandou Don Constantino fazer ahy huma muy fermosa cidade, dando a
oceano Índico. O segundo governador da Índia, Afonso de Albuquerque (1508-1551), seus moradores muytos privilégios, que com tempo se foy muy bem fortifican-
executa um plano ambicioso. Submete Ormuz, porta do golfo Pérsico, Málaca, entrada do e ficou cousa nobre e habitada de muytos portugueses» 38 •

para os mares da China, e conquista Goa, ponto estratégico para o controle do Índico,
Ambas possuíam uma cerca abaluartada em forma oval, com uma trama de ruas
excelente porto e entrada para o interior da Índia. Afonso de Albuquerque a transforma no
ortogonais como recheio. Forma, aliás, muito semelhante a Portalegre (Fig. 15), na Metró-
centro do novo Império. Durante os séculos XVI e XVII Goa era três vezes maior que Lisboa,
pole, na mesma época, quando ganha foral novo e é, pouco depois, elevada a cidade. Baçaim
com aproximadamente 300 900 habitantes 35 . D. Manuel acrescenta ao antigo título de
i> ,
apresenta quarteirões retangulares e uma praça resultante da eliminação de um quarteirão,
Rei de Portugal e Algarve a expressão «e Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da
como nas cidades hispano-americanas. Damão, ao contrário, possui um castelo no meio, à
Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia».
maneira medieval, mesmo que seus quarteirões já sejam quadrados, à Renascença.
Esta decisão inquebrantável constituía um dos pré-requisitos para a criação de uma
Com base nesses exemplos, o historiador de arte Mário Cbicó conclui que houve
rede de cidades fortes, que não eram, necessariamente, criadas ex-novo, mas, na maioria
influência das cidades ideais italianas nas cidades coloniais portuguesas do Oriente. Como
dos casos, reestruturadas para atender às necessidades da Coroa, como ocorrera durante a
já vimos, esses traçados já eram praticados em Portugal desde a Idade Média. Por outro
Reconquista. Desta ação participaram também grandes armadores privados e ordens reli-
lado, os tratadistas, quase em sua totalidade, propugnavam o traçado radial como sendo o
giosas, especialmente os Jesuítas, já que uma das técnicas de dominação era a aculturação
mais aconselhável para as cidades ideais. Só posteriormente, Pietro Cataneo ( 1560) e Vicenzo
e a conversão religiosa.
Scamozzi (início do xvu) proporiam a retícula. Já então, Baçaim e Damão estavam conso-
Cochim, o primeiro núcleo urbano europeu na Ásia, onde Pedro Álvares Cabral
lidadas. Segundo Chicó, no Brasil, onde a conquista e a colonização se faziam lentamente,
estabeleceu feitoria fortificada em 1503, já apresentava quarteirões retangulares. São Tomé
segue-se a tradição medieval portuguesa, enquanto na Índia era necessário caminhar mais
(Meliapor), fundada em 1504 e integrada hoje ao estado indiano de Madras, apresentava rápido e dar maior monumentalidade aos edifícios. Chicó reconhece, implicitamente, o
as mesmas características. Muitas outras cidades fundadas ou conquistadas pelos portu- caráter de «cidade nova» da maioria dos assentamentos portugueses no Oriente, embora
gueses apresentam também planos razoavelmente regulares, como Cbaul, Craganor e não percebesse que nesse fato, e não na influência italiana, estivesse a explicação do seu
Mangalor. No Ceilão, atual Sri Lanka, podem-se citar Colombo (1517), Jafanapatão (1560) traçado reticulado:
e Negapatão. Na Indonésia, Amboyno 36 • Estas são cidades contemporâneas às primeiras
cidades em «damero» da América Espanhola, o que demonstra que o urbanismo portu- «... a verdade é que nas cidades construídas de golpe é abandonada a tradição e
guês não era mais atrasado que o espanhol. aceita abertamente a cidade ideal» 39 .
O traçado regular português também foi levado ao Japão. Nagasaki, fundada «ex-
-novo», em 1567, pelos jesuítas, seguiu a tradição lusa de localização de cidades. Fundada
sobre uma colina, à margem de uma baía, desenvolveu-se segundo um plano de ruas para-
lelas cortadas por transversais, embora não muiro rígido, como se pode verificar em uma As cidades reais brasileiras
planta de 1637, guardada na biblioteca da municipalidade local. Nagasaki permaneceu em
poder dos jesuítas por vinte anos e, em 1579, possuía aproximadamente 400 casas37 • Como vimos, quando a Coroa portuguesa decide adotar o sistema de capitanias he-
Mas o urbanismo geométrico português alcançou sua maior regularidade em Baçaim, reditárias no Brasil, empenhada que estava com o comércio do Oriente, o planejamento
fundada por Nuno de Cunha, em 1536, e Damão (Fig. 14), conquistada por Constantino urbano já era uma prática consolidada, não somente na Metrópole, como nas feitorias e
de Bragança, em 1559: cidades orientais.
O sistema de colonização privado mostrou-se, desde cedo, pouco eficiente no Brasil
e a Coroa percebeu que, sem seu apoio, os Capitães-Donatários não seriam capazes de
35 RIBEIRO, Orlando, Aspectos e Problemas de Expansão Portuguesa. Lisboa, Junta de Investigação do Ul-
38 VALIGNANO, Alessandro, Historia del Principio y Progreso de ia Compaíií,1 dejestÍs en las Indias Orientales.
tramar, Série Estudos de Ciências Políticas e Sociais, 59, p. 103.
36 As plantas desras cidades estão reproduzidas em SILVEIRA, Luís, op. cit., 1956, vol. 3. Roma, Bibliotheca lstituti Historiei S. J., 1944, vol. 2, p. 363.
37 Sobre o assunto, consultar MOURA, Carlos Francisco, Nagasaki, cidade portuguesa no Japão, in Studia, "CHICÓ, Mário T, «A cidade ideal do Renascimento e as cidades portuguesas da Índia», in Garcia de Orta,
54 (26). Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969. &.,;,ta da Junta das Missões Geográficas e de Investigações de Ultntmar, número especial. Lisboa, 1956. 55
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e que tenha abastança de águas e porto em que possam amarrar os navios e


levar adiante a missão colonizadora, ao tempo em que crescia a cobiça de outras nações,
vararem se quando cumprir, porque todas estas qualidades ou as mais delas que
especialmente da França, pela colónia americana. Esta nova política, iniciada em 1548
puderem ser cumpre que tenha a dita fortaleza e povoação por assim ter assen-
com a decisão de criar um Go',;erno Geral para o Brasil com sede na Bahia de Todos os
tado que dela se favoreçam e provejam todas as terras do Brasil, e no sítio que
Santos, ampliar-se-ia, nos anos seguintes, com a formação de uma verdadeira rede de
vos melhor parecer ordenareis que se faça uma fortaleza da grandura e feição
cidades cabeças de região, as chamadas cidades reais. A regularidade dessas cidades, em
que a requerer o lugar em que a fizerdes, conformando-vos com as traças e
contraste com as criadas pelos donatários e colonos, demonstra, claramente, que a morfologia
amostras que levais praticando como os oficiais que para isso lá mando e com
dos dois tipos de núcleos ~rb~pos está, fundamentalmente, associado à vontade política de
quaisquer outras pessoas que o bem entendam e para esta obra vão em vossa
colonizar.
companhia alguns oficiais, assim pedreiros e carpinteiros como outros que po-
Para implementar um programa de ocupação e fortificação da costa brasileira, Portu-
derão servir de fazer cal, telha, tijolo ... »41
gal envia ao Brasil um número crescente de arquitetos e engenheiros militares. Este m'tme-
ro cresce à medida que diminui a importância das feitorias da Índia e do Norte da África.
O sítio escolhido foi a borda de uma falha geológica, 60 m acima da baía. A pedido
No início de século XVII já existiam mais arquitetos no Brasil que na Índia e, em meados,
do Rei, Luís Dias enviou duas maquetas do plano à Metrópole, que, infelizmente, se
superavam os existentes em toda a África40 • Alguns desses profissionais intervêm, direta ou
perderam com o naufrágio do barco que as conduzia. A primeira planta conhecida de
indiretamente, no desenho das cidades reais, como veremos a seguir.
Salvador está inserida no Livro que dá Razão do Estado do Brasil em 1612, atribuído ao
Mais que colonizar, estas cidades destinavam-se a vigiar e fortificar a costa brasileira,
sargento-mor Diogo de Campos Moreno e ilustrada com um atlas da costa brasileira de
e a escolha de seus sítios obedecia a critérios mais defensivos, ainda que superados, que
autoria do cosmógrafo João Teixeira Albernoz 142 • Não se sabe com certeza quem é o autor
urbanísticos, o que condicionou, em muitos casos, sua regularidade e expansão.
do levantamento de Salvador compilado por Albernoz.
A fundação de uma capital é um caso típico de cidade nova. Salvador não foge à
Sabe-se apenas que foi enviada a Lisboa para que Leonardo Turriano e Tibúrcio
regra. Sua fundação é planejada, nos mínimos detalhes, na Metrópole. Thomé de Souza,
Spanoqui, respectivamente engenheiro-mor de Espanha e de Portugal, projetassem uma
primeiro Governador do Brasil, parte de Lisboa com cerca de mil homens, entre funcioná-
muralha abaluartada, mais segura que a primitiva, capaz de proteger o novo bairro desen-
rios, soldados, religiosos, operários e colonos, com a missão de fundar uma capital colonial
volvido em torno da Sé e do colégio jesuíta (Fig. 16). As duas Coroas estavam então
à margem da Bahia de Todos os Santos. O Governador traz consigo o mestre de obras Luís
unidas. Já nesta planta verifica-se a existência de dois setores perfeitamente caracterizados.
Dias e «traças e amostra» da cidade, que deveriam se ajustar às condições topográficas
O primeiro, fundacional, desenvolvido em torno do Largo do Paço, em que o traçado
locais, além de um regimento com instruções, que vale por um primeiro código de urba-
geométrico se ajusta a uma topografia muito acidentada, e o segundo, desenvolvido em
nismo. O regimento previa a instalação provisória dos colonizadores em um pequeno
torno do Terreiro de Jesus, seguindo uma quadrícula perfeitamente regular, que persiste
povoado, criado pelo antigo donatário, durante a construção da nova cidade em sítio
até hoje.
apropriado, escolhido pelo Governador e seus auxiliares. Deste regimento reproduzimos o
Dentro do mesmo programa de fortificação da costa brasileira, quatro outras cidades
seguinte trecho:
de traçado regular são construídas, coincidentemente com o período de união das Coroas
portuguesa e espanhola e da vigência das Ordenanças de Povoação, de Felipe II (1573).
«E assim sou informado que o lugar em que ora está a dita cêrca não é conve-
Mas o traçado dessas cidades não parece seguir aquela norma, senão a tradição de cidades
niente para aí se fazer e estar a fortaleza e povoação que ora ordeno que se faça e
regulares portuguesas, com quarteirões geralmente retangulares, praças não centrais e
que será necessário fazer-se em outra parte mais para dentro da dita Baía.
inexistência de separação entre paróquias de brancos e de índios, como era comum na
E portanto vos encomendo e mando que como tiverdes pacífica a terra vejais
América Espanhola. Nossas praças, ao contrário das hispano-americanas, não resultam da
com pessoas que o bem entendam o lugar que será mais aparelhado para se fazer
eliminação de uma quadra, senão de condições topográficas e funcionais específicas, sen-
a dita fortaleza forte e que se possa bem defender e que tenha disposição e
do freqüente a existência de duas, uma representativa do poder civil e outra do religioso.
qualidade para aí por o tempo em diante se ir fazendo uma povoação grande e
tal qual convêm que seja para dela se proverem as outras capitanias como com
ajuda de N. Senhor espero que esta seja e deve ser em sítio sadio e de bons ares " Regimento de Tomé de Souza, in História Administnztiva do Bmsi{. Rio de Janeiro, DASP, vol. 2,
pp. 223-6.
42 SANTOS, Paulo F., op. cit. 57
56 "' REIS FILHO, N. G., op. cit., pp. 67-8.
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Não se adotou também no Brasil o loteamento em solares, isto é, a divisão do quarteirão Seu primeiro assentamento foi no Morro Cara de Cão, na entrada da baía, então em mãos
em quatro lotes iguais e simétricos. dos franceses. Com a expulsão destes, dois anos mais tarde, a cidade foi transferida para o
De qualquer modo, estiveram no Brasil a serviço dos dois Reinos, no final do século Morro do Castelo. A praça-forte, corno era chamada, era uma povoação de traçado irregu-
XVII e início do seguinte, técrí:icos da mais alta qualificação, como o engenheiro italiano lar e muralha tipo medieval.
Batista Antonelli, responsável pela projetação de numerosas fortificações no Caribe e no Contudo, no final do século XVI, a cidade já expandia-se na planície, onde foram
estreito de Magalhães, e o português Francisco Frias de Mesquita, ambos executando projetos construídas várias ermidas e o Hospital da Misericórdia, em torno dos quais foram surgin-
de fortificações e levantamentos de cidades, como veremos mais adiante. do casas, formando, pouco a pouco, uma trama de ruas normais à orla da baía da Guanabara,
A primeira dessas ~dádes é, ainda, do último quartel do século XVI. A atual cidade de cortadas por transversais paralelas ao mar. Paulo F. Santos destaca a presença na cidade,
João Pessoa teve sua fundação decidida na Metrópole em dezembro de 1583 e seu nome durante sete meses de 1581, de Batista Antonelli, quando este realizou projetos para seu
primitivo, cidade Filippea, era urna homenagem a Felipe II de Espanha e I de Portugal. porto. Sua permanência no Rio deveu-se às más condições do tempo, que atrasaram a
Sua fundação se deu depois de três expedições, a partir de 1574, para expulsão dos france-
viagem da armada de Diego Flores Valdez ao estreito de Magalhães.
ses aliados dos índios portiguar. A conquista definitiva só se concretizou em 1585 ou
No início do século XVII, Antonelli foi encarregado pela Coroa espanhola de levantar
1587, com as expedições de João Travassos e do ouvidor Martins Leitão. A nova cidade
todas as obras de fortificação que se fizeram desde o Caribe até o extremo sul do continente.
seria fundada no plató de urna colina, na margem direita do rio Paraíba, a três léguas de
Nesta oportunidade, ou seja, em 1604, esteve novamente no Brasil e consta que realizou levan-
sua barra.
tamentos topográficos da cidade, lamentavelmente perdidos4". Como sugere Paulo Santos, é
A construção do forte, que protegia a cidade, foi dirigida pelo oficial alemão Cristó-
provável que ele tenha influído no traçado da cidade, cujos quarteirões retangulares perpendi-
vão Linz (ou Lins) e sua situação foi escolhida com a opinião favorável de Manuel Fernandez,
culares à praia sugerem a preocupação de drenagem própria de um técnico (Fig. 18).
Mestre de Obras de El-Rei 43 • Embora sua fundação fosse iniciativa da Coroa, seu desen-
Um outro engenheiro é responsável pelo risco de uma cidade regular nordestina. No
volvimento deve-se, em grande parte, ao dono de um engenho de açúcar, Duarte Gomes
início do século XVII, os franceses ocuparam a ilha do Maranhão, onde fundaram um forte,
da Silveira, que oferecia a cada construtor de casa de pedra e cal a quantia de dez mil réis e
em 1612, que deveria ser a cabeça de um projeto ambicioso, a criação da França Equato-
o dobro para a construção de um sobrado. Foi ele quem construiu, às suas expensas, a
Misericórdia44 . rial. Sua expulsão serviu de motivo para a construção da mais regular das cidades deste
Quando foi tornada pelos holandeses, em 1634, era uma cidade consolidada de quar- ciclo, São Luís do Maranhão. A reconquista da região começa em 1613, com a expedição
teirões retangulares, corno registram gravuras da época (Fig. 17), entre outras a atribuída a de Jerónimo de Albuquerque, acompanhado do engenheiro Francisco Frias de Mesquita,
Vingboons (ca. 1637), guardada no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de que construiu ali alguns fortes. Seguiram-se as expedições de Francisco Caldeira Castelo
Pernambuco, e a reproduzida por Gaspar Barleus, em 1647, no seu livro sobre a obra Branco, em junho de 1615, e a do Governador de Pernambuco, Alexandre de Moura, em
realizada pelo Conde de Nassau no Nordeste brasileiro. Os holandeses mudaram seu nome outubro do mesmo ano, diante do qual os franceses capitularam, entregando seu último
para Frederica em homenagem ao Príncipe de Orange. A única mudança verificada nas baluarte, o forte de São Luís.
duas plantas é a transferência da praça do mercado, da margem do rio para o centro da O engenheiro-mor do Reino, Francisco Frias de Mesquita, foi encarregado de reali-
cidade, trazendo consigo a Casa de Câmara e Cadeia, mas deixando na sua posição primi- zar não só o levantamento do pequeno povoado existente à sombra do forte, como elabo-
tiva a igreja 45 . A autoria de seu plano não está documentada, mas é provável que seja a rar um plano urbanístico para seu desenvolvimento futuro 47 • Seu povoamento se faz de
mesma do forte, corno admitem alguns autores. forma dirigida. Quatro anos mais tarde, chegavam 300 açorianos à cidade, na expedição
O segundo caso não é propriamente de criação de urna cidade, senão de expansão. de Jorge Lemos Bittencourt. O capitão de uma das suas naves, Simão Estácio Silveira, faz,
A cidade do Rio de Janeiro havia sido criada em 1565, dezesseis anos depois de Salvador, pouco depois, uma convocatória aos pobres de Portugal para que emigrassem para a ilha.
também na margem de uma baía, com a finalidade de vigiar a costa sul da extensa colónia. Ao contrário das cidades anteriormente analisadas, S. Luís apresenta um plano em quadrí-
cula quase perfeita, não obstante a topografia do sítio. Frias se preocupa, inclusive, com a
uniformidade da arquitetura, construindo uma casa para servir de modelo aos moradores,
43
Sobre a fundação de João Pessoa, ver TRAVASSOS, Simões, Conquista da Paraíba, p. 84 e ss. e PINTO, lrineu
Ferreira, Datas e Notas pam a História da Parahyba. Parahyba do Norte, Imprensa Official, 1908/16.
46
44
Idem, ibidem. SANTOS, Paulo F., op. cit., pp. 89-91.
58 45
MENEZES, José Luís Mota, Algumas notas a respeito t:Út evolução urbana de João Pessoa. Recife, Pool, 1985. 47
Idem, ibidem, pp. 99-1 O1. 59
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cuja obrigatoriedade passa a ter força de lei pelo regimento deixado pelo fundador, capi- «Divide-se em dois bairros, um chamado Cidade da parte do Poente, e outro, da
tão-mor Alexandre de Moura, a seu sucessor, Jerónimo de Albuquerque. parte do Nascente, chamado a Campina. Em um e outro bairro se vêem todas as
ruas direitas, à corda e ornadas de casas nobres e muitos palácios ... Na parte do triân-
«Terá particular cuidado elo acrescimento desta cidade de S. Luís fazendo que gulo em que está o bairro da Cidade, tem uma bela praça ornada com suntuosas casas
fique bem arruada e direita conforme a traça, que fiqua em poder, e para seu e com a Igreja e Colégio da Companhia de uma parte, e, defronte, a Catedral.»52
exemplo o fação to dos os mora dores, 1ara hua caza, e V!Vera
e , . , ne 11 a ... »48'
Para que a relação de cidades brasileiras de traçado regular dos dois primeiros séculos
Não se conhece a pianrI1 de Frias, senão uma publicada por Barleus, em 1647 (Fig. esteja completa, devemos mencionar uma quinta, de origem holandesa, Recife, ou Cidade
19), trinta e dois anos depois de sua fundação portuguesa. Curiosamente, nessa planta, Maurícia (Mauritiópolis), em homenagem ao conde Maurício de Nassau, governador de
49
como em sua cópia reproduzida por Santa Tereza, em 1698, não aparece nenhuma praça • Pernambuco. Quando os holandeses, em 1630, invadiram a província, no Nordeste brasi-
A atual Pç. João Lisboa é representada, pela primeira vez, na planta de A Veiga, de 1838, leiro, então um dos maiores centros de produção de açúcar da colónia, constataram a
não se sabendo exatamente quando foi criada 50 • Alguns autores têm visto nessa planta dificuldade de defesa da cidade de Olinda, construída pelos portugueses sobre uma colina.
influência das Ordenanças de Povoação de Felipe II. Decidiram, então, fundar uma nova cidade na ilha de António Vaz, cerca de uma légua de
Curiosamente, uma das cidades brasileiras que mais se aproxima do «damero» hispano- Olinda, e destruir a antiga 53.
-americano é Salvador, com seus quarteirões quadrados e praças moduladas em função dos O projeto, atribuído ao arquiteto Pieter Post, seguindo a tradição holandesa, apre-
mesmos. Mas devemos recordar que Salvador foi concebida 25 anos antes das célebres
sentava três canais, um longirudinal e dois oblíquos, para facilitar o acesso de barcos e a
ordenanças e 33 anos antes da fúsão das duas Coroas. O mesmo traçado foi utilizado na
drenagem. Seus quarteirões retangulares seguem a diretriz do canal principal e, parcial-
Índia com anterioridade às referidas normas. Depois dos exemplos de Salvador e cidades
mente, a costa da ilha. A cidade dispunha ainda de parques com espelhos d' água, laranjais
indianas, tentar explicar a regularidade do traçado de São Luís como resultante da aplica-
e renques de palmeirais. Estas foram transplantadas já grandes do continente, operação
ção das Ordenanças de Felipe II parece-nos no mínimo simplista.
pioneira na América 54 . Toda a cidade estava rodeada por uma muralha abaluartada,
Continuando o plano de fortificação de toda a costa brasileira, funda-se, em 1616, na
construída segundo a técnica mais avançada da época, na qual os holandeses eram mestres.
entrada do rio Amazonas, a cidade Feliz Lusitânia, atual Belém do Pará (Fig. 20). Saindo de
Pontes articulavam Maurícia com o continente e outras ilhas. Mas Recife é uma interven-
S. Luís do Maranhão, no natal do ano anterior, Francisco Caldeira de Castelo Branco, que já
ção estrangeira, divorciada da tradição portuguesa. Curiosamente, o traçado do Recife e
havia participado da conquista e fundação portuguesa de S. Luís, desembarca dezoito dias
alguns sobrenomes famosos são os únicos vestígios significativos da presença dos holande-
mais tarde numa ribeira da Baía de Guajará, onde fundou um forte - Presépio de Belém -
ses no Nordeste brasileiro, durante um quarto de século.
e a cidade de Feliz Lusitânia. Até a metade do século, já estavam construídos o hospício do
Una, dos Capuchinos da Província de Santo António, conventos do Carmo (1626) e das Embora o Seiscentos não seja um século de fundações e ampliações de cidades na
Mercês (1640), e primeiras casas dos jesuítas (1653), além da alfândega (1653). As primeiras Metrópole, nas poucas vezes em que isto ocorre, o traçado é geométrico. Peniche é o
plantas que se conhecem do novo núcleo datam da segunda metade do século x:vm • Nelas
51 melhor exemplo de cidade nova, deste século, em Portugal. Depois que os ingleses tenta-
se vê uma cidade razoavelmente regular, formada por dois setores separados pelo igarapé ram desembarcar nesta península doze mil homens, para vingar a pretensão de D. Antó-
Piry, um correspondente ao núcleo fundacional, e outro, a sua expansão. Seus quarteirões nio, Prior de Crato, à Coroa, as autoridades portuguesas descobriram a importância estra-
são predominantemente retangulares e a orientação das ruas, nos dois setores, são distintas, tégica deste porto de pescadores, que se transformou em empório comercial com o tráfico
seguindo a inflexão do rio, A cidade era assim descrita em 1760: com o Oriente e o Brasil. Uma vez restaurada a autonomia portuguesa, em 1640,
D. João IV, rei escolhido pelos líderes do movimento de emancipação, temendo represá-
lias, transfere a vila para um sítio mais seguro. Peniche de Baixo (Fig. 21) é deslocada mais
48 Regimento que o capitão-mor Alexandre de Moura deixa ao capitão-mor Hieronirno D'Albuquergue

por serviço de sua Magestade para bem do Governo desta província do Maranhão, in Anais da Bibliotect1 Nt1cio-
nr1l, 1935, p. 235 e ss. 52
'"SANTATEREZA, lstorit1 delle guerre de! Regno dei Brasil. Roma, 1698. MORAES, José, História da Companhia de Jesus na Província de Maranhão e Pad, in ALMEIDA,
50 SANTOS, Paulo F., op. cit., p. 101. Cândido Mendes de, Memórias. Rio de Janeiro, 1860, vol. 1; LEITE, Serafim, História da Compa11hit1 de Jesus 1w
51 A primeira planta conhecida de Belém data de 1753 e foi publicada por Lúcio Azevedo na l ." edição de
Brt1sil. Lisboa/Rio de Janeiro, 1938, vol. 3, p. 211.
53 Sobre o assunto, ver CASTRO, Josué de, Fatores de Localização da Cidt1cle de Recifé. Rio de Janeiro, 1947.
Os jesuítt1s no Grão-Parrí; segue-se uma executada por ordem do governador Bernardo de Mello e Castro, em 54
1761, e outra de cerca de 1773, levantada pelo sargento-mor Eng. Gaspar Geraldo de Gronsfeld. As duas últimas BARLEUS, Gaspar, História dosféitos recentemente pmticados durante oito t1nos no Bmsil. Recife, Prefeim-
ra da Cidade de Recife, 1980. 61
60 estão reproduzidas em Paulo F. Santos, op. cit,
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para o sul e transformada em praça-forte de traçado regular, continuando a experiência Conclusões


adotada em outras cidades novas de ultramar 55 •
O século de ouro das cidades de risco regular no Brasil é o XVIII. Mais uma vez, o fato O caso brasileiro demonstra que o surgimento de vilas e cidades de traçado regular

se deve a razões políticas. O descobrimento do ouro em Minas Gerais, no interior do está associado, fundamentalmente, a razões sociopolíticas. Sem uma decisão sustentada

Brasil, na última década do século XVII, desperta a Coroa para a necessidade de ampliar seu por um forte poder político, não se fundam, nem progridem, cidades criadas artificial-

controle sobre aquela área, mediante uma política mais efetiva de colonização, com a mente e, na maioria dos casos, em sítios virgens ou hostis. O traçado geométrico não é só

distribuição de sesmarias e fr1pdação de vilas em locais estratégicos. A exploração do ouro a expressão desta decisão férrea, como um requisito de racionalidade indispensável à eco-

brasileiro substitui o outtor~~'lucrativo comércio de especiarias e artigos de luxo do Impé- nomia, controle e êxito do empreendimento.

rio Oriental Português. Todo o esforço da Coroa concentra-se, agora, no Brasil. Uma nova Não obstante os portugueses conhecerem e praticarem, com anterioridade, o urba-

política económica e administrativa centralizadora, iniciada em 1668, com o advento da nismo regular na Metrópole e no Oriente, as cidades regulares não se proliferaram no

monarquia absoluta em Portugal, vai ganhando corpo e chega a seu ápice na segunda Brasil, durante os dois primeiros séculos, devido ao modelo de colonização descentraliza-

década do século seguinte, propiciando as condições para a formação de uma verdadeira do e privado adotado. Mesmo assim, nas oportunidades em que a Coroa foi forçada a

rede de cidades novas no interior do país. fundar cidades no Brasil, para apoiar e viabilizar o sistema de capitanias hereditárias e

Em realidade, tratava-se de um vasto programa de interiorização da colonização, até então defender sua costa, estas são regulares. Do mesmo modo, o florescimento de um ciclo de

concentrada na costa, com base em três pontos: evitar a evasão do quinto, o imposto que cidades regulares, durante o século XVIII, é resultado da mudança dessa política visando a

incidia sobre o ouro; controlar a ação dos bandeirantes, grandes latifundiários e ordens religio- ocupação efetiva, controle e expansão da colónia, que só foi possível graças a ascensão do

sas e expandir a colónia em direção ao poente, através do povoamento de territórios situados absolutismo em Portugal.

além do meridiano de Tordesilhas, mas não ocupados pela Espanha. Portugal força, assim, a Por estas razões não podemos comparar o urbanismo colonial brasileiro, inclusive o do

aceitação internacional do princípio da uti-possidetis, deslocando a fronteira brasileira nas dire- século XVIII, com o hispano-americano. São fatos inteiramente distintos, que refletem con-

ções oeste e sul, o que acabaria sendo reconhecido pelo 1i-atado de Madrid, de 1750 56 • textos políticos, sociais e culturais muito diferentes. A conquista e a colonização da América

Durante o século À'VIII, são fundadas no Brasil mais de trinta vilas ou cidades de Espanhola foram altamente militarizadas e centralizadas. Elas representam a continuidade

traçado regular, muitas das quais projetadas por engenheiros militares, cujo número come- do movimento de unificação e afirmação nacional, com expulsão de mouros e judeus, mas-

çara a crescer desde o último quarto do século XVII e aumenta, consideravelmente, a partir sacres e saques. Trata-se, em grande parte, de um processo de dominação, aculturação e

de 1699, com o estabelecimento do ensino de engenharia militar nas principais cidades reurbanização, como ocorrera no Sul da Espanha, já que os Aztecas e Incas eram povos
brasileiras. Este movimento, que tem caráter puramente colonizador, iniciado em 1716, urbanizados. A apropriação de recursos minerais e a exploração de uma mão-de-obra bastan-

com a fundação da Vila de Mocha, atual Oeiras, no estado do Piauí, atingiria a Metrópole te qualificada produziriam resultados económicos imediatos para os espanhóis, o que tornou

durante o reinado de D. José (1750-1777) e seu todo-poderoso primeiro-ministro, Sebas- a colonização uma empresa rendosa para a Coroa.

tião José de Carvalho e Melo, depois Marquês de Pombal. Sem entrar em detalhes de uma discussão muito complexa, podemos dizer que a
Em seguida ao terremoto de Lisboa, de 1755, implanta-se em Portugal uma política expansão portuguesa teve caráter predominantemente mercantilista. Como não se conhe-

urbanística de inspiração nitidamente iluminista, com duas vertentes: reconstrução de cia os verdadeiros recursos do Brasil, durante os dois primeiros séculos, ele foi marginaliza-

cidades destruídas por acidentes naturais, como Lisboa e Setúbal, e fundação de novas, do nesse processo. Tornar a colónia produtiva exigia grandes investimentos que não esta-

para fortalecimento da fronteira sudeste com Espanha, como a Vila Real de Santo António vam ao alcance da Coroa, pois tratava-se de ocupar territórios baixamente povoados e com
(1773) e Porto Covo, todas de perfeita regularidade, não somente no traçado, mas tam- uma mão-de-obra muito pouco qualificada. Daí a solução de privatizar a colonização e

bém na arquitetura 57 • Seria muito interessante analisar as influências recíprocas desses dois consequentemente a urbanização.

movimentos, mas isto é tarefa que foge aos propósitos e limitações deste estudo. A implantação da agro-indústria açucareira exigiu grandes investimentos privados e a
importação de 3,5 milhões de escravos africanos. A Coroa só interveio em casos extremos,

55 Peniche, em Diciondrio Chronographíco de Portugal Continental e Jmular de Américo Costa. Vila do Con-

de, 1943, vol. 8.


5"DELSON, Roberta Marx, op. cit., pp. 15-8. Sobre a fundação da Vi lia de Santo Antonio, no Algarve, ver OLIVEIRA, francisco Xavier d'Athaide, Monografia
57 Sobre as reconstruções de Lisboa e Setúbal, consultar fRANÇA, José Augusto, Lisboa Pombalina e o do Concelho de Vila Real de Santo Antonio. Porto Figueirinhas, 1908, e IRIA, Alberto, Vila Real de Srmto António
62 Iluminismo. Lisboa, Bertrand, 1977 e CRUZ, Maria Alfreda, A cidade de Setúbal, in Finisterra, 3 (6), 1968.
reedificada pelo Marquês de Pombal (1173-1116), in separata Ethnos. Lisboa, 1948. 63
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para viabilizar o sistema privado e evitar a invasão da colônia por outras potências euro- século XIX, quando as investidas de piratas argelinos e holandeses diminuíram. O traçado
péias. A urbanização oficial se fazia, menos como forma de controle político da escassa geométrico dessa parte contrasta com a irregularidade do núcleo primitivo, localizado sobre
população local, do que para vigiar uma costa muito extensa e cheia de tocaias. a rocha. Tanto Fuzeta quanto Nazaré apresentam quarteirões muito estreitos e alongados que
Mesmo depois da descoberta do ouro, a colonização brasileira se faz com objetivos correm em direção ao mar, como na mancha matriz do Rio de Janeiro.
distintos da hispano-americana. Agora sim, para o estabelecimento de um controle polí-
tico efetivo sobre o território e sua expansão. As cidades novas são apenas um componente «Inclino-me a crer que o esquema reticular pode ser descoberto por qualquer
da política de interiorização da colonização, que incluía ainda a concessão de terras, a civilização que tiver chegado a uma certa maturidade evolutiva. Determinados
elevação de povoações li: vifas e a fundação de fortalezas em sítios avançados. Das 118 sistemas agrícolas de irrigação e recuperação de terrenos levam, quase inevita-
povoações elevadas a vila, naquele século, pouco mais da quarta parte apresenta traçado velmente, ao uso do eficiente esquema de quadrícula. Todos os países que utili-
regular 58 . Sua forma também é distinta das cidades hispano-americanas. zaram métodos de irrigação em grande escala parecem tê-los descoberto: a
Na Espanha, desde a Idade Média, as cidades de traçado geométrico foram objeto de Mesopotâmia, o vale do Indo, o Egito, a China e a zona costeira do antigo
discussões e tratados, como o Código das Sete Partidas, de Afonso, o Sdbio, e a Enciclopé- Peru», afirma Galantay 61 •
dia de Eximenic (1381-1386). Estas teorias, que se somaram a outras anteriores, como a
de Santo Tomás de Aquino, parecem ter fundamentado um modelo geométrico que se Esta não é, porém, uma situação comum em Portugal e no Brasil, o que não exclui
difundiria a partir da nova fundação de Santo Domingo, em 1502, e seria institucionalizado que quando estes fatores se fizeram presentes eles tenham condicionado a forma da cidade.
com as Ordenanças de Povoação, de 1573, quando grande parte das cidades hispano- Os exemplos citados servem apenas para sublinhar o caráter pragmático do urbanismo
-americanas já haviam sido fundadas e encontravam-se consolidadas 59 • português. Pragmatismo que se manifesta em outros aspectos da vida urbana, como a
As cidades luso-brasileiras, pelo contrário, não são precedidas de teorias ou modelos adaptação à topografia, ao trópico e às demandas sociais. Adaptação que se reflete na
rígidos. Sua regularidade, quando existe, resulta, mais de razões pragmáticas, do que ideo- flexibilidade da trama urbana, na articulação das praças e na informalidade dos loteamentos.
lógicas. As mesmas razões que fazem com que cidades novas, em todo o mundo e épocas, A topografia foi, aliás, por razões de segurança, o elemento determinante da localiza-
sejam regulares, visando a racionalização dos recursos, a simplificação dos procedimentos ção das cidades portuguesas de além-mar, durante os séculos XVI e XVII, condicionando não
e a padronização dos lotes para evitar disputas entre colonos. Isto quando não se tratam de só sua forma original como sua expansão. A regularidade, quando existe, restringe-se à
cidades espontâneas, cujo traçado regular resulta de condicionamentos físicos e históricos, mancha matriz, perdendo-se, à medida que são superadas as dificuldades de implantação e
como topografia, drenagem e estruturas fundiárias preexistentes. o assentamento deixa de ser uma cidade nova.
Em pelo menos seis casos, dos aqui analisados, o traçado urbano parece estar diretamente Em Salvador, as «traças e amostras» trazidas da Metrópole por Luís Dias foram adapta-
relacionado com preocupações de drenagem: Chaves, Salvaterra dos Magos, Sesimbra e To- das ao sítio, seguindo recomendações contidas no próprio regimento de Tomé de Souza,
mar, em Portugal; Angra do Heroísmo, nos Açores, e Rio de Janeiro, no Brasil, todas vilas dando origem, em alguns casos, a quarteirões triangulares, que se articulam, de forma orgâ-
edificadas em terrenos pantanosos. Suas ruas longitudinais seguem as linhas de maior declive nica, com o resto da quadrícula. Este fato confirma, ao nosso ver, que existiram princípios
do terreno, formando quarteirões alongados perpendiculares ao mar ou a um rio. Fuzeta reguladores, mais que modelos geométricos preestabelecidos, como o «damero» hispano-
(Fig. 22) e Nazaré são exemplos mais recentes de povoações portuguesas cujos traçados refle- -americano, imposto de maneira vertical, muitas vezes em conflito gritante com a topografia.
tem a mesma preocupação com a drenagem. Ambas são vilas de pescadores desenvolvidas na Esta flexibilidade frente às condições locais, se, por um lado, conduziu a uma menor
praia. A primeira situada no Algarve, de origem pouco conhecida, mas que em 1784 já regularidade e homogeneidade dos traçados portugueses, demonstra, por outro, uma pla-
possuía 132 vizinhos 60 . A expansão de Nazaré na parte baixa data somente do início do nificação mais integrada e independente com respeito a um modelo virtual preconizado
pela Metrópole. É esta postura flexível e pragmática que, ao nosso ver, caracteriza o urba-
nismo português, como de resto todo o processo colonizador.
"AZEVEDO, Aroldo, Vilas e Cidades do Brasil Colonial, in Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letms. S. Paulo, USP (208); Geografia (11), 1956.
59
Sobre o assunto, conferir TORRES BALBAS, Leopoldo, op. cit.; GUARDA, Gabriel, Samo Tomas de
Aquíuo y ÍtlS Fuel/tes del Urbanismo ludiano. Santiago de Chile, Univcrsidad Católica de Chile; LLUBERES,
Pedro, El Damero y su cvolución en e! mundo occidental, in Boletin rlel Centro de luvestigt1cio1tes Histórirt1s y
Estétiet1s (21). Caracas, 1975.
64 6
°Fuzeta, in Dicionário Chronographico de Portugt1l Continental e Insular, já citado, vol. 6. 61
GALANTAY, Erwin, op. cit., p. 44. 65
' ;;. ~."
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MAR'

F 1 d O Castelo na Id ade Média,


/
. _ Viana 'ki d fnternationa
ig. A E. Gut n , l 3.
segundo . Developrnents, vo .
History of:City

. 6-
Fig. Estremoz.

2 .
o de Vila Viçosa. ln Livro
. __ Castel NL ' man. 7445).
Nicolau de L,a, Igres (Il
Fig.
de

67
Fig. 16- Planta da Cidade do Salvador, em 1612, segundo o Livro que dá Razão do estado do Brasil.
Fig. 11 -Angra do Heroísmo. Fig. 12 - Mazagão. No segundo quartel do
século XVIII, Instituto Geográfico e Cadastral.

.....
' ~..o~,. .....
,,,' I

Fig. 13 - Planta da nova Vila de Mazagão. Fig. 14- Damão, Índia. Planta reproduzida
Arquivo da Casa da Ínsua. por Chicó, M., op. cit.

POim1. LEGKf, Fig. 17 - Fornessan van Parayba. Actual João Pessoa. Atlas van Stolk, Roterdan, 1635.
, c,;,,1a,1 ,k .!1,-,a/,5,.,
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2E!Ca.m'!lo
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68 Fig. 15 - Portalegre, século XVlil, in Praças Fortes em Portugal (BNL, reservado 604-P). Fig. 18 - Cidade do Rio de Janeiro, cerca de 1712, M. Massé (AHU). 69
;

í STORIA DELLA CITTÀ COME STORIA DELLE UTOPIE,


/
DA SAN LEUCIO ALL: AMAZZONIA POMBALINA*

/ Fig. 19 - São Luís do Maranhão cm 1647, segundo G. Barleus.


GIOVANNA Rosso DEL BRENNA
Istituto di Studí Latino-Americani
della Biblioteca Franzoniana di Genova

Fig. 20 - Iconografia da Cidade de Belém. Mandada executar pelo governador


Manoel E. de Mello de Castro (Casa da Ínsua).

* Comunicação apresentada ao Congresso Internacional de homenagem a Eugenio Battisri, Milão, 27 a


31 de Março de 1991. Publicada in Metodologia dei/a ticerm: orientmnenti r1ttuctli, Atti dei Congresso fnternazionale
70 Fig. 21 - Peniche. Levantamento actual. Fig. 22 - Fuzcta. Levantamento acmal. in onore di Eugmio Battisti, Arte Lombarda, 1993, n. 2-3-4, pp. 95-1 O1.
N e! 1988, appena rientrata in Italia da un lungo periodo di lavoro e di ricerca all'este-
ro, venni invitata da Eugenio Battisti a riparlare della ricerca compiuta molti anni prima,
come sua assistente, sulla colonia borbonica di San Leucio di Caserta in una sezione dei
convegno «Spazio tempo simultaneità in Utopia» (un convegno itinerante, indimentica-
bile, che ci porto da Roma alla reggia di Caserta e da Caserta a Reggio Calabria passando
per que! luogo utopico straordinario che ê l'abbazia di Padula).
L:occasione era fornita da! progetto di costituzione dei futuro «museo della colonia»
(a cura degli arch. Paolo Caputo e Claudio Fazzini, allievi partecipanti alia ricerca negli
anni 70 e ora docenti dei Politecnico di Milano), nell'ambito di un programma di restau-
ro, già avviato, dei complesso della residenza reale e delle manifatture della seta, promosso
dall'amministrazione comunale di Caserta.
Ipotizzai un museo che comenesse - ai posto di armadi, vetrine e scaffali - video e
tastiere: attraverso i quali i visitatori e soprattutto i discendenti dei Leuciani avessem
accesso al numero enorme di informazioni generali e particolari che erano state raccolte e
in tal modo rese disponibili, per conoscere elo rivivere e/o trasmettere la propria storia e la
propria esperienza. E ne feci - nel teatro vanvitelliano della reggia - un racconto-simu-
lazione immaginandone l'uso a partire da alcuni nomi di persone e di luoghi.
Continuavamo a muoverci - di fatto nel territorio di utopia, come le successive
vicende de! progetto de! museo della colonia avrebbero confermato.
Riprendere in mano dopo vent'anni - la metà dei quali spesi in attività di insegna-
mento e ricerca in paesi dell'America Latina - una cronaca pazientemente ricostruita
negli archivi di Napoli e di Caserta in funzione di un progetto di museo, fu un' esperienza
curiosa, e per certi aspetti un po' amara: ma rappresento anche una sfida ad avventurarsi,
ancora una volta, sul terreno della riflessione comparativa. Là dove al ripara dalle ine-
vitabili distorsioni e strumentalizzazioni - la metodologia di Eugenio Battisti ê stata e
continua ad essere piu feconda di stimoli e di risultati.
Quando, proprio durante il convegno a Caserta, accennai al fatto che per molte
ragioni - che probabilmente si possono ricondurre a una sola fondamentale, la fonte
com une degli esperimenti - l' esperimento di San Leucio e il suo contesto risultavano
illuminanti per capire, per esempio, «il processo di colonizzazione che avviene quasi negli
stessi anni lungo il sistema di affluenti de! rio Amazonas, e le componenti utopiche degli
esperimenti avviati nella regione da! marchese di Pombal», Eugenio si entusiasmo - come
sempre faceva quando gli si prospettavano fenomeni nuovi connessi con i tanti filoni di
ricerca a !ui congeniali - e mi propose di presentare una seconda comunicazione su 73
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS STORIA DELLA CITTA COME STORIA DELLE UTOPIE

questo tema durante la successiva tappa de! convegno a Reggio Calabria. Rifiutai - non fatto di fondere elementi delle diverse categorie di utopie (tra cui spiccano una forte com-
avevo schede né appunti con me chiedendogli di rinviare la cosa a una fase piu avanzata ponente etico-religiosa e preoccupazioni educative e sociali).
de! mio studio, a un'altra occasione. Ormai, non puo essere che questa: anche se, per Anche se, di fatto, esso appartiene alia categoria delle riforme che muovono dall'alto, e
ragioni «tecniche», la ricerca 11011 ha progredito nel frattempo quanto speravo. in particolare si inserisce - seppure come episodio complesso e atípico - nel solco dell'in-
tensa attività di pianificazione economica e urbanística e sociale promossa da Carlo di Borbone
* * nel Meridione d'Italia e quindi, a partire dai 1759 quando abdico in favore dei figlio
* Ferdinando, nei suoi domini spagnoli.
Fu proprio Battisti - seguendo il suo metodo di indagare a fondo il fenomeno
Risultato di una ricerca interdisciplinare condotta presso le Facoltà di Architettura de! oggetto di studio allargando contemporaneamente ai massimo i confini dell'universo a cui
Politecnico di Milano e della Pennsylvania State University, lo studio della colonia borbonica di il fenomeno in questione appartiene - ad indicare per primo le connessioni della
San Leucio di Caserta - diretto da Eugenio Battisti tra il 1971 e il 1975 - mise in luce, tra sperimentazione iniziata a San Leucio nel 1776 conquanto avviene circa dieci anni prima
l' altro, i complessi rapporti che legano nel Settecento progettazione urbanística e architettonica, nella Spagna di Carlos III : e in particolare con l'iniziativa di fondazione - con emigranti
pensiero utopico (a fondo laico o religioso) e sperimentazione sociale ed economica. già esperti tedeschi, svizzeri, fiamminghi - delle nuevas pob!r1Ciones dell'Andalusia e della
Secondo Battisti, le utopie settecentesche si posso no dividerc in piú categorie, riducibili
Sierra Morena aventi come capitali La Carolina e La Carlota. Osservando caratteristiche
pero a poche classi: «da un lato abbiamo il riemergere a piena luce, specialmente in conse-
comuni anche nel loro impianto urbanístico, «con grandi strade che tagliano perpendico-
guenza della libertà di culto e della immigrazione negli Stati Uniti, delle tendenze oggi
larmente gli isolati e che si aprono ritmicamente in piazze rotonde o poligonali in modo
diremmo di 'democrazia di base'», che danno luogo a comunità autosufficienti basate sulla
da creare prospettive scenografiche pur in un tessuto edilizio modesto».l_
rígida collettivizzazione dei beni o il sorgere di nuovi movimenti religiosi e sette attorno a
Fu ancora Battisti, conformando la tesi contenuta nell' opera di un eccezionale stu-
capi carismatici (sempre negli Stati Uniti); ai polo opposto abbiamo «i tentativi di riforma
dioso locale, il Tescione, a suggerire come possibile fome di tutto il sistema gli esperimenti
e ristrutturazione degli Stati esistenti, che muovono dall'alto e intendono, in modo prima-
- divulgati in Italia da] Muratori e seguiti con appassionato e spesso oscile interesse in
rio, risolvere problemi economici locali e nazionali, puntando sul commercio, sull'indu-
tutta !'Europa illuminista e soprattutto nel mondo iberico - condotti con successo, e su
stria, sulla preparazione di tecnici o il !oro reclutamento forzoso [... ] oppure su meccani-
vastíssima scala urbana, dai Gesuiti nelle !oro missioni dei Paraguay4 •
smi fiscali [... ]»ln questo secondo caso «le prime mosse sono, in genere, imponenti lavori
a carattere pubblico, se non addirittura la fondazione di città nuove, o la ristrutturazione
E grazie ai metodo di ricerca che Battisti ci ha trasmesso, che lo «sfondo delle ideolo-
di alcune antiche, la colonizzazione di terre improduttive» 1

gie settecentesche» su cui l' episodio San Leucio estato descritto e interpretato puo essere
ancora ampliato, fino a includere - oltre i domini americani della Spagna5 - anche il
La particolarità deli' esperimento avviato a San Leucio tra il 1776 (anno di introdu-
zione nel luogo recintato riservato alie cacce dei sovrano della prima manifattura di veli) e Brasile portoghese.
il 1789 (promulgazione dei Codice di Leggi che regolavano la vita della Real Colonia di Nel suo importante lavoro sulla «Lisbona di Pombal» José Augusto França ha indica-
artigiani della seta), e sviluppato nei decenni successivi - che mi limito a rievocare con to nel «fatto urbanistico» della ricostruzione di Lisbona dopo il terremoto dei 1755 il
un'immagine (Fig. 1) e per il quale rimando all'abbondante bibliografia, in parte prodotto
della ricerca, che gli ha assicurato un posto stabile tra le città realizzate di utopia 2 - e il un progranuna che si proponeva di (,introdurre nel discorso relativo ai rapporti tra archirettura e società una serie
di espcrienze utopiche, o meglio, altcrnative, rispetto ai tcntativi di realizzazione piü nori e divulgati»), ricordia-
mo -- oltre al doppio catalogo San Leucio, vitalità di una tradizione. Traditions in trawition, rcalizzato in occasio-
ne della prima mostra allestita nell' agosto 1973 per la popolazionc di San Lcucio ( a cura di Richard Plunz, New
1
Eugenio Battisti, «San Leucio sullo sfondo delle ideologie settecentcsche», in San Leucio: archeologia, York, Wittenborn e della Facolrà di Architettura del Politecnico di Milano) - la raccolra di saggi «San Leucio
storia, progetto, Milano, Edizioni il Formichicre, 1977, p. 15. presso Caserta, recupero di un'mopia» pubblicati in Controspazio, n. 4, dicembre 1974 e il libra catalogo che
2
La piü antica descrizione a starnpa della colonia borbonica di San Leucio equella di Ferdinando Patturelli, accompagnava la mostra milanese dcl luglio 1977 alia Rotonda della Besana: San Leucio: archeologia, storia,
Caserta e San l,eucio, Napoli, Starnperia Reale, [826. Lopera di riferimento generale e l'esemplare studio cli progetto, Milano, Edizioni il formichierc, 1977. Per Lma sintesi recente vedi ora Hanno-Walter Kruft, Stadte in
Giovanni Tescione, L'arte de!!a seta a Napo!i e la colonia di San Leucio, Napoli, 1932. Vedi inoltre S. Srefani, Una Utopia. Die ldealst,1dt vom 15. bis zum 18. Jahrhundert zzuischen Staatsutopie zmd \Virklichkeit, Munchen, C.H.
colonia socialista nel regno dei Borboni, Roma, 1907; Jolanda Donsl Gentile, «Le fonti archivisriche della colonia Bech, 1989 (edizione italiana Le città utopiche, Bari, Laterza, 1990).
3 Op. cit., p. 23. Cfr. L. Torres Balbas et tdii, Resumert historico dei urbanismo en Espaiia.
di S. Lcucio nell'Archivio di Stato di Napoli», Notizie degli Archivi di Stato, 1942; Armando Schiavo, «San
4
Leucio», Atti de!l'Vlll Convegno Nazionale di Storia de!!'Architettura (Caserta, 1953), Roma, 1956; R. De Fusco Madrid, 1954; P. Sica, Storirt de!f'urbmtistica. ll Settece11to, Bari, Laterza, 1976, p. 149 e seg. e recentemen-
F. Sbandi, «Un centro cornunitario del Settecento in Campania», Comunità, n. 86, 1961. te Pablo Dianez, «Urbanismo andaluz y americano: siglas XVI al XVIII", in Estudios sobre urbanismo iberoamericrmo,
Tra i contributi della ricerca ideata e diretta da Eugenio Battisti a partire ela! 1970 pressa la facoltà di Sevilla, Junta de Andalucia, 1990, pp. 94-97 (pumoppo senza bibliografia).
74 Architettura del Politecnico di Mibno e in collaborazione con la Pennsylvania State Universiry (nell'ambito di
5
Ibidem, pp. 23-24. Cfr. G. Tcscione, op. cit., cap. V, pp. 148 e seg. 75
STORIA DELLA CITTÀ COME STORIA DELLE UTOPJE
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS

principale, e sui generis, contributo dei Portogallo allo spirito dell'Illuminismo europeo 6 • di Tordesillas sarebbe appartenuto tutto il territorio amazzonico ad ovest dei rio Tocantins e
Ma la ricostruzione della «Baixa» di Lisbona informe regolari, secondo inediti principi di e quindi anche !'intera zona delle miniere dei Mato Grosso)9.
razionalità e di funzionalità, non e l'unico episodio «illuminista» della cultura portoghese L'immenso sforzo di reconhecimento di un territorio di migliaia e migliaia di chilome-
in epoca pombalina. Se ê vero che e relativamente inutile cercare antecedenti e effetti tri - condotto in Amazzonia tra secolo XVII e secolo XVIII da parte di missionari, militari,
pratici o teorici dei «caso» Lisbona nell'urbanismo europeo, e che tutto accade in Portogal- avventurieri cercatori d' oro e cacciatori di schiavi portoghesi - viene cosl a fornire l' ele-
lo in «circuito chiuso»7, e importante ricordare che questo circuito chi uso include il mon- mento base dei grande piano di unificazione territoriale della colonia, lungo le linee della
do delle colonie americane sua rete fluviale, elaborato dal diplomatico Alexandre de Gusmão durante i negoziati dei
,, e prima di tutto, nel XVIII secolo, il Brasile: come immenso
laboratorio per i pri~ td: e campo di applicazione delle nuove idee. Trattato di Madrid (1750) 10 ; e il supporto per le importanti opere di cartografia e di inge-
E qui, di fatto, che si realizzano i primi programmi di organizzazione sistematica dei gneria militare svolte nella regione, in occasione dei lavori per definire in forma stabile le
territorio, come quello impostato a partire dai 1740 nel sud dei paese, alio scopo di conso- fromiere tra i domini americani di Portogallo e Spagna.
lidare il possesso della vasta regione disabitata alle spalle della Colonia do Sacramento ln base ai trattato di Madrid il bacino amazzonico, secando il principio dell' uti
attraverso la creazione di una rete di piccole città accuratamente pianificate, dove vennero possidetis, sarebbe stato infatti riconosciuto nella sua maggior parte ai Portogallo, compen-
avviate coppie di coloni delle isole Azzorre 8
; equi che statisti «illuminati» come Alexandre sando, insieme a vasti territori a sud che includevano le missioni gesuitiche dei Sete Povos,
de Gusmão tentano di applicare piani geopolitici di incredibile audacia, come appunto l' abbandono alla sovranità spagnola della Colonia do Sacramento (nell' attuale Uruguai) e
quello da cui deriva il programma di ricognizione e colonizzazione dell'Amazzonia. la rinuncia alie pretese portoghesi sul bacino dei Rio de la Plata. Garamendo in tal modo
Un progetto globale che, a partire dalle esigenze politico-militari di demarcazione il possesso definitivo degli altopiani auriferi con le !oro grandi vie fluviali di accesso e di
delle sue frontiere - e di realizzazione di un eccezionale sistema difensivo prevede rifornimento.
l' esplorazione e il rilevamento cartografico dei territorio; lo studio della fauna e della flora; Anche se gli accordi di Madrid verranno sospesi nel 1761 e la demarcazione definiti-
la sperimentazione di nuove colture e come in Terra di Lavoro e nella Spagna di Cario va delle frontiere avverrà soltanto alcuni decenni piü tardi, gli anni successivi alia firma dei
III di Borbone - l'utilizzazione e il potenziamento razionale delle risorse naturali me- trattato rivestono un'importanza eccezionale per l'Amazzonia, che diventa una delle aree
diante una rete di città e villaggi di nuova fondazione, la ristrutturazione di quelli antichi chiave della política coloniale dei ministro de! nuovo re, Sebastião de Carvalho e Melo (il
e la conversione dimano d' opera da aree 11011 piu redditizie (isole delle Azzorre distrutte da futuro marchese di Pombal), e il principale teatro della sua lotta accanita contro il potere
terremoti, piazzeforti africane espugnate) ad aree produttive o strategiche. dei Gesuiti, conclusasi con la !oro espulsione dai Brasile nel 1759.
La storia dell'Amazzonia portoghese comincia nel secolo XVII, con la fondazione (1616) E appunto dallo scontro violento, in piena epoca dei «lumi», tra il progetto di «sal-
dei primi avamposti contro i francesi sulla costa ele lotte per eliminare le basi commerciali vezza» spirituale e temporale degli índios realizzato della Compagnia di Gesu e i piani di
che francesi e olandesi avevano installato alla foce dei rio Amazonas. sfruttamento economico e politico della regione elaborati dai governo di Portogallo, che
La penetrazione sistematica all'interno, risalendo il corso dei rio Amazonas e dei suoi prende il via il primo progetto di colonizzazione della regione.
affluenti, Rio Negro, Rio Branco, Rio Madeira - dove i portoghesi spesso erano accompa- La lunga missione nella regione dei fratello dei ministro, Francisco Xavier de Mendonça
gnati o preceduti dai Gesuiti che vi avevano fondato numerose missioni indigene - risale Furtado, nominato nel 1751 governatore dei Pará e Maranhão, e il suo episodio centrale
tuttavia soltanto ai primi decenni dei secolo successivo, in coincidenza con i primi tentativi - il viaggio ai Rio Negro in qualità di primo commissario responsabile dei lavori di
della corona di organizzare il controllo dell'interno dei paese dopo la scoperta delle prime demarcazione, per incontrarvi a Mariuá la corrispondente commissione spagnola -
miniere d' oro (e di tenerne lontani gli Spagnoli a cui teoricamente, in base alla linea diviso ria costituisce in questo senso una esemplare dichiarazione di intenzioni, e fornisce un buon
campione della strategia pombalina 11 •

6
AI tema sono stati dedicati nell'88 a Cadice un seminario internazionale e una mostra in cui i casi di San
Leucio, delle nuevas poblaciones in Andalusia e delle nuove città nei do mini americani di Spagna, dalla Louisiana 'Vedi Roberra Marx Delson, Tózun Planning in Coloniaf Brazil (Columbia University, Ph.D., 1975), Xerox
ai Rio de la Plata, sono stati per la prima volta presentati insieme, nell'ambiro di un programma di srudi compa- University Microfilms, Ann Arbor, 1975, pp. 173 e segs.
rativi sui modelli urbani a cui stiamo lavorando da qualche armo (Modelos territoriales durante e! reinado de Cttr!os '" Sul tema esiste un poderoso lavoro in 9 volumi di Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o tratado de
III, Cadiz, 10-12 novembre 1988. Coordinamenro di Pablo Dianez). Madrid, Rio de Janeiro, Ministerio das Relações Exteriores, 1950-1960. Cfr. soptattutro la parte I, como 2,
7
José Augusto França, Une vil/e de lumieres. La Lisborme de Pombal, 2.a ed. rivedura e accresciuta, Paris, pp. 231 e segs.
Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culrurel Pormguais, 1988. 11
Cfr. R. Marx Delson, op. cit., pp.116-127. 77
76 'Ibidem, pp. 142-151.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS STORIJ\ DELLA CITTÀ COME STORIA DELLE LJTOP!E

Mentre da un lato la commissione si reca con apparato degno di un film di Herzog si tenta la fondazione di nuovi centri in posizioni strategiche di frontiera come Maca pá,
(circa 900 persone su 27 canoe) nel Rio Negro, effettivando l'occupazione dell'alto 1755 - , dove vengono inviati povoadores (coloni) portoghesi tratti dalle Azzorre e Nova
Amazonas, dove viene creata nel 1755 la nuova capitania di São José do Rio Negro - e si Mazagão dove vendono trasferiti gli abitanti (340 famiglie) deli' omonima piazzaforte sulle
aprono le ostilità con i gesuiti accusati di ostacolarne le operazioni e i rifornimenti - , coste atlantiche del Marocco, abbandonata dai portoghesi nel 1769 14 •
viene creata dall'altro - a spese degli stessi gesuiti - una rete di municipi che dovranno Come era accaduto nei due secoli precedenti con la fondazione delle feitorias e dei
attestare !' occupazione effettiva dei territorio amazzonico, avviarne lo sfruttamento eco- centri urbani del li to rale, I' occupazione del territorio avviene per punti strategici, che de-
nomico a vantaggio dei coloni portoghesi, e garantirne stabilmente il collegamento con la finiscono (e in molti casi forzano) un perímetro e una frontiera e avviano l'organizzazione
regione dei Mato Grosso , leá1e miniere d' oro. delle aree retrostanti.
Soppressa nel 1755 la giurisdizione temporale dei gesuiti sulle aldeias, il primo villaggio a Ma a differenza di quanto avveniva anteriormente, all'azione pragmatica si accompa-
passare dall'amministrazione dei religiosi a quella civile e- nona caso - !'aldeia di Trocano gna questa volta l'attività «promozionale», e il potere assume (e ostenta) forme visibili.
sul rio Madeira, «fondata» con il nome Vila de Borba a Nova da Mendonça Furtado in persona II marco di frontiera diventa un obelisco di marmo 15; gli insediamenti adottano non
il 1 gennaio 1756 e destinara a registro (posto fiscale) di conteggio dell'oro proveniente dalle solo il nome ma anche l'immagine di città: la pianta regolare, il prospetto monumentale; il
lminiere dei Mato Grosso 12 ; a cui seguono, nella «universal promoção dei 1757» - come la forte, che era tradizionalmente costruito in terra battuta , con cortine e baluardi che accom-
defin1 ironicamente il padre João Daniel tutte le principali riduzioni della Compagnia. pagnavano !'andamento dei terreno, diventa una straordinaria perfetta forma geometrica,
Sono, iniziando dalla foce dei rio Amazonas, Maracanã, Curnçá, Cabu (Vila de costruita secondo le regole dei trattati dell'arte militare e depositara in piena selva 16 •
Colares), Mortigura (Vila do Conde); Araticu (Vila de Oeiras) Aruçará (Vila de Portel); e E in questa nuova fase culturale deli' espansione portoghese, gestita direttamente dai
sugli affluenti Itacuruçá, Piraviri e Aricari sul rio Xingú (rispettivamente Vila de Veiros, governo centrale, che l'apporto di scienziati e tecnici europei, diventa - non a caso -
Pombal e Sousel, oggi semplici denominazioni geografiche); Gurupatuba (Monte Alegre); preponderante.
Tapajós (nel 1758 Santarém, oggi una delle città principali dello stato); Borari (Vila de La presenza di specialisti stranieri, incaricati di aggiornare e «europeizzare» la cultura
Alter do Chão); Trocano (Vila de Borba); Abacaxis (Vila de Serpa oggi !tacoaquatiara) sul scientifica portoghese (e soprattutto di introdurre in Portogallo le nuove conoscenze astro-
rio Madeira, ultima base di appoggio del percorso che, lungo lo stesso rio Madeira, il rio nomiche, geografiche e cartografiche indispensabili a garantire !' espansione e la sovranità
Mamoré e il Guaporé, giungeva fino alia mítica Vila Bela, la remota (e ancor oggi quasi politica nelle colonie d' oltremare) era stata pro mossa da João V fin dal 1722, anno in cui
inaccessibile) capitale dei Mato Grosso, fondata nel 1752 da Rolim de Moura proprio sul vennero fatti venire dall'Italia gli astronomi e cartografi Domenico Capassi e Giovanni
confine con i domini spagnoli 13 . Battista Carbone, gesuiti napoletani 17 •
La rete e l'organizzazione urbane create dai religiosi della Compagnia in funzione Ed enuovamente verso l'Italia - soprattutto all'Università di Bologna famosa per gli
deli' evangelizzazione degli indigeni diviene cosl, con alcuni ritocchi formali e giuridici, il studi matematici - , e verso i domini asburgici - paesi non direttamente coinvolti nella
supporto funzionale per lo sfruttamento dei territorio e per il suo inserimento permanente
nel sistema economico portoghese.
Del sistema fanno parte anche gli índios sottratti alia protezione dei gesuiti e in teoria
14
L ordine equello della bella descrizione lasciataci dai padre gesuita João Daniel, Tesouro descoberto 110 Rio
Amazonas, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1956, vol. !, pp. 78-85 e 284-296. Sui criteri cli fondazione, e
!iberamente inseriti nelle nuove comunità grazie a misure che ne favoriscono l'«emanci- sulla forma degli insediamenci le informazioni delle fonti sono scarse, ma sufficienti per supporre che fossero,
pazione» e incentivano i matrimoni misti. almeno nella maggioranza, a pianta regolare.
15 Lidea di colonizzare !'interno dei Brasile con gli abitanti delle isole risaliva al secolo XVI, ma fu applicata
Contemporaneamente, sull' esempio di quanto fatto dai governatore di Mato Grosso
sistematicamente solo durante il regno di João V, prima nella Colonia do Sacramento (1717) e quindi nelle regioni
con la fondazione della capitale Vila Bela ai margini della frontiera sul rio Guaporé (Fig. 2), di Sanca Catarina e Rio ele São Pedro (Cortesão, op. cit., parte!, tomo II, pp. 249 e segs.) Lesperimento servl di
riferimento per il Ceará e per la regione Amanonica. Fa eccczione il caso di Nova Mazagão, fondara ncl 1770 sulle
rive del Mutuacá affluente dell'Amazonas, che venne popolata dai red,1ci della piazzaforte africana omonima, ab-
bandonata dai portoghesi alcuni anni prima. (Vedi Anconio Ladislau Monteiro Baena, Compendio das Eiw da
12
Le vicendc dclla missione sono documcnratc da un eccezionale cartcggio tra i due fratelli, pubblicato Província do Pará, 1831, ed. a cura dell'Universidade Federal do Pará, 1969, p. 184; Isa Aclonias, A cartogwfia da
(purtroppo con insufficiente apparato critico) da Marcos Carneiro de Mendonça,A Amazo11ia ntt Eln Pomba!iwt. região mnazonica, Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia, 1963, vol. II, pp. 337-38).
Correspomlmcia inédita do Governador e Capitão-General do Estctdo do Grão Pará e Mam11hão h,mcisco Xavier de 16
Come quello in forma di piramide quadrangolare su alto piediscallo, che si trova oggi sulla piazza
Mendonça Furtado, 1151-1759, Rio de Janeiro, 1963, 3 vols. di Cáceres, e in origine fu eretto (1754) alia confluenza dei rio Jauru con il rio Paraguai a sud ovest di Vila Bela
13
Cfr. Carneiro de Mendonça, op. cit., vol. 3, lettcra n. 151, pp. 939 segs. e Cortesão, op. cit., parte V, doe. (cfr. Aires do Casal, Corogl"tlphia Brasilica, Rio de Janeiro, 1817, pp. 290-291).
CXX, pp. 318-320. Lepisodio eriportato diffusamente da tlltte le fomi gesuitiche e laiche dei tempo, a cui sembra 17
Cfr. Giovanna Rosso Dei Brenna, «Architecri e ingegneri militari nell'Amazzonia portoghese», comunica-
78 generalmente sfuggirc - farta eccezione per il padre João Daniel - il significa to strategico dcll'iniziativa. 79
zione ai Ill Convegno lnternazionale di Stucli Americanistici, Gcnova, Villa De Mari-Gruber, l 2-15 maggio 1989.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS STORIA DELLA CITTÀ COME STORIA DELLE UTOPIE

lotta per il controllo dei domini coloniali iberici in America - , che si dirigono nel 1750 João Schwebel, cartografo della stessa divisione, aurore dei Mappa Geográphico che fu
le missioni incaricate di contrattare gli ingegneri, geografi, astronomi, cartografi e mate- il principale prodotto cartografico della spedizione di Mendonça Furtado ai Rio Negro ed
matici che avrebbero dovuto integrare le commissioni demarcatrici delle frontiere concor- e ritenuro, dopo quella di La Condamine, la prima carta dei rio Amazonas rilevata
date nel trattato di Madrid, trasformando, nelle intenzioni dei suo ideatore, un' operazione astronomicamente; di una raccolra di vedute che documentano la stessa spedizione e di un
militare in un contributo ai progresso scientifico 18 . album de! rio Amazonas comprendente 41 carte manoscritte e acquarellate, conservato in
Ne presentiamo qui di seguito una prima schedatura, limitandoci in quest'occasione ai una collezione privara portoghese 23 ;
tecnici e agli uomini di scienza contrattati in Italia e a Vienna, che dovevano integrare le tre II maggiore ingegnere Gaspar João Geraldo Gronfeld (o Gronfelt o Grunspheld),
pctrtidas (divisioni) della Çonfulissione Nord, e che divennero in seguito, ad eccezione dei cartografo della terza divisione destinara al fiume Japurá, che esegul progetti per i forti di
padri gesuiti, efficaci strumenti della política del marchese di Pombal nella regione amazzonica: Gurupá e Macapá e sarà !'aurore nel 1773, di una serie di progetti per fonificare «col
Il gesuita Szentmartony, nominato da Furtado astronomo della prima divisione - metodo piú semplice e la minore spesa» Ia città di Belém 24;
destinara a operare sui fiumi Madeira e Guaporé, area fino ad allora «sconosciuta alia mag- Larchitetto bolognese Antonio José Landi (Bologna, 1731-Belém, 1791) senz'altro il
gior parte della gente di Europa» e altamente strategica «perché immediatamente collegata piu conosciuto de! gruppo, che, contrattato inizialmente come disegnatore della commis-
alle miniere e al centro di tutto il Brasile» 19 ; sione25, venne scelto da Mendonça Furtado come colono della nuova città di Borba e per
Lingegnere militare Felipe Sturm, cartografo della prima divisione; aurore dei pro- altri incarichi di fiducia, sposà la figlia di un militare portoghese e finl per radicarsi a
getti per le costruzioni ufficiali di Barcelos (cioe dei villaggio di Mariuá, quando venne Belém, dove realizzà - in un sofisticato linguaggio in cui si rivela fedele alla cultura tardo-
26
eletto sede del governo della nuova capitania di São José do Rio Negro e luogo di incontro barocca bolognese - progetti per i principali edifici pubblici e religiosi della città, tra
delle Commissioni portoghese e spagnola e di proposte per regolarizzare la pianta della
futura città 20 • 23
Su Brunelli vedi Cortesão, op. cit., parte V, doe. XV, p. 41 e Carneiro de Mendonça, op. cit., I, pp. 400-401, 431.
24
Che ritroveremo nella selva amazzonica ancora 20 anni piu tardi, quando realizza Mappa Geographico dos Rios por onde navegou o Ili.mo e Exc. mo Snr. Francisco Xavier de Mendonça fttrtado,
sahindo da cidade do Pará pam o Arrayal do Rio-Negro no dia dous de Outubm de 1754, com a exacta delineação ela
(nel periodo inrermedio tra I'annullamento dei Trattato di Madrid e la firma de! nuovo maior parte do Rio das Amazonas, e Rio Negro por onde o mesmo Senhor continuou a viagem ate a Aldea ele Mariua.
trattato di São Ildefonso) una missione militare ai rio Branco documentara da ricca produ- E-.:ecutado pela direccão e di!igenàas elos Engenheiros ela Expedição, o Sm: to mor Sebastião ]os,~ o Cap. m João André
Schwebel, oAjud.e Philippe Stunn, e o Ajud.e Adam Leopoldo de Breiming e ratificado pelas obseruaçoes astronómicas
zione cartografica 21 ; elo Padre lgnacio Sernartoni, Rio de Janeiro, Arquivo Historico do Exército (cfr. Artur C. Ferreira Reis, Limites e
II matematico Giovanni Angelo Brunelli contrattato a Bologna dal padre Alvares de demarcações na Amazonia Bmsileira, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, tomo 2, 1948, pp. 81-82). Una copia
ottocentesca della carta (riprodotta anche in Carneiro de Mendonça, op. cit., 11, p. 612) si trova a Rio de Janeiro
Gusmão e nominato da Furtado astronomo della seconda divisione destinara ai fiume Javarí22 .
pressa la Mappoteca dell'!tamarati (Adonias, op. cit., li, 506 segs.); Colleçam dos aspectos tÚzsAldeas e lugares mais
notaueis que se acham em o Mapa que tiraram os Engenheiros da Expediçam, principiando da Cidade do Pará the a
Aldea de 1'vfariua no Rio-negro, onde se acha o Arrayal. Feitos por ordem do illustrissimo e l::,xcellentissimo Senhor
Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1756, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional; Mapa Geographico elo Rio
"Sulle circostanze della venuta dei due «padres matematicos», come venivano comunemente chiamati, Amazonas ,zthe donde conserva este nome, e toma o do Rio dos Solirnoes chamado assim pelas Nações q. nelle habitam.
e sulla [oro attività in Portogallo e in Brasile, vedi Cortesão, op. cit., parte!, tomo], pp. 90 e segs. e 286-287; Juntamente com a grande parte do Ryo Negro the a Cachoeira grande, compreendendo-se neste ultimo todas as Missoe
tomo II, pp. 7-26. que administram os PP. Carmelitas. Com os prospectos dos lugares ceronvizinhos dos ditos Ryos, 1758,
'"Vedi !e «lscruzioni» ricevutc da João Alvares de Gusmão, capo della missione, dai fratello Alexandre de Lisbona, Casa Duque de Palmela, codice di 6 fogli e 41 carte (cfr. Adonias, op. cit., li, pp. 4-5).
25
Gusmão e il «·frattato delle lstruzioni ai Commissari della parte dei Nord», in Cortesão, op. cit., parte IV, tomo II, Adonias, op. cit., li, pp. 228-229.
26
pp. 284-296, in particolare l'articolo XX (p. 293): «Que os Commissarios, Geografos, e mais Pessoas intelligentes Non si conoscono, fino ad oggi, particolari sull'ingaggio- come sem piice disegnatore della commissio-
da Tres Tropas, vão comando por apontamento os rumos, e distancia das derrotas; as qualidades naturaes dos ne - di Landi, che a differenza della maggioranza degli altri candidati non era un tecnico militare, ma allievo
Paizes; os habitantes q.e nelles vivem e os seus cosrnmes; os Animaes, Aves, Plantas, Rios, Lagoas, Montes, e stimato di Fernando Galli di Bibbiena, «Accademico Clementina e professore di architettura e prospettiva"
outras similhances cousas dignas de se saberem [... ] e procurando que as suas observações, e diligencias sejam (come !ui stesso si definiva in un diario manoscritto esistente, fino a qualche anno fa, nell' archivio dell'lnstituto
exactas, não só pelo que pertence a demarcação da Raya, e Geografia do Paiz, mas tambem no q.e pode servir Historico e Geografico Brasileiro di Rio de Janeiro. Cfr. Revista do Instituto Historico e Geografico Brasileiro, tomo
para o adiantam.to das Sciencias, o progresso q.e fizerem na Historia Natural, e observações Physicas, e XLVIII, 1885, pp. 163-175). Documentano la sua attività di disegnatore «naturalista» in Amazzonia un codice
Astronómicas.>, manoscritto della Biblioteca Municipale di Porto (Descrizione di varie Piante, Frutti, Anirnali, Passe,·i, Pesei,
'ºCarneiro de Mendonça, op. cit., li, lettera n., pp. 744-746. Biscie, Rr1zine e altre simili cose che si ritrovano in questt1 Capitania dei Gmn-Pará pubblicato per la prima volta da
21
Rio de Janeiro, Mapoteca do lramarati (cfr. Adonias, op. cit., vol. II, pp. 5-6; Id., Mapas eplanos manuscritos Augusto Meira Filho, Landi, esse desconhecido (O naturalista), Belém, Conselho Federal de Cultura, 1976 e una
relativos ao Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, 1960, n. 86). I piani per Barcelos serie di tavole provenienti dall'archivio personale di Luís de Albuquerque governatore di Mato Grosso conservate
sono stati esaminati da Paulo Santos, Formação de cidades no Brasil colonial (Comunicazione presentara ai nella Casa da lnsua a Castendo (Portogallo) (pubblicate e attribuite da Isa Adonias, Flora e Fauna Brasileira.
V Coloquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros), Coimbra, 1968, pp. 56 e tavola IV e da Delson, op. cit., Século.XVIII, Rio de Janeiro, Odebrechc S.A., 1986). Numerose informazioni sul primo período deli a sua attivi-
pp. 220-226. tà, ivi comprese alcune curiose annotazioni sul suo carattere, sono contenute nella corrispondenza di Mendonça
80 22
Adonias, op. cit., vol.11, pp. 148-151. Furtado (cfr. Carneiro de Mendonça, op. cit., vol. II, pp. 647, 761, 764; vai. III, pp. 880,941,987, etc.). 81
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS STORIA DELLA CITTA COME STORIA D E LL E li TO PIE

cui il Palacio dos Governadores, la facciata principale e alcuni interni della Cattedrale, le sul margine sinistro dei rio Amazonas , e di Sancuém3 2 , esegul . ·1 · d' ec
. , , 11 ume10s1 avon 1 cartograua
chiese della Mercés e del Carmo, di São João, di Sant'Ana e dei Rosario 27 (Fig. 3); tra cu1 una carta dei Rio Madeira (1773)3-1, e termino i suoi giorni nel 1780 ai servizio dei
L«aiutante ingegnere» Henrique Antonio Galluzzi, mantovano, ufficiale deli' esercito governa tore di Mato. Grosso Luís de Albuquerque , per 1·1 qua•] e prngetto
• ' ed eresse a partJre
·
.
asburgico 28 , aurore nel 1759 di una grande Mappa Geral do estado do Pará, realizzata all'indo- dai 1774, «~econdo il sistema Vauban», la grandiosa fortezza Príncipe da Beira, sulla riva
mani dell'espulsione dei gesuiti 29 e del progetto per la fortezza e la colonia di Macapá (Fig. 4 ~estr~ dei no Guaporé, destinara a vigilare la comunicazione (e ]'aff1usso dell'oro) tra i
e 5), nell'atmale territorio del\'Arnapá (dove morl di febbri malariche nel 1769, dopo vani f'.um1 Paraguay~Par~ná e il bacino dell'Amazonas. Un'opera smisurata in rapporto alle
tentativi di ottenere un congedo,
,, quando !'opera - do sistema Vauban, de oitavr1 classe, em nsorse della · 1·1a1a
· d'1
. . capitarna,
. . che veniva rifornita di materiali , mano d'opera e col on1· am1g
quadrado, com baluartes}entagonaes nos vertices - era ancora in costruzione) 30 ; chilo_metn d1 d1sranza, - da Belém, lungo il rio Amazonas e ]e rap ide dei rio Madeira e
Domenico Sambuceti, genovese, che giunse nel Pará nel 1753 come aiutante del- da Rio de Janeiro - e fo ben presto ricoperta dalla foresta.l1_ '
l'astronomo Brunelli 1 1; diresse dopo il 1760 i lavori di ricostruzione delle fortezze di Gurupá, Sulla lo~o _attività esiste nelle raccolte, archivi e biblioteche dei Brasile e dell'Europa
(t1:a cu_1 la Bibl10teca Nacional di Rio de Janeiro, !'Arquivo Publico do Pará, !'Arquivo
17
Cfr. Anna Maria Mattcucci, «Esiti bolognesi dell'architetrnra tardo-sencccntesca in Portogallo)), in Archi- H1stonc~ do _E~ercito, !'Instituto Historico e Geografico Brasileiro, la Mapoteca do
tettum in Emitia Romagna dal!'f!lumiuismo al/11 Restrwmzione, Fircnze, 1977. 11 giudizio, basato sull'esame dei dise- ItamaratJ, la Bibl10teca Nacional di Lisbona, ]'Arquivo Histórico Ultramarino, la Bibliote-
gni di Landi conscrvati alla Biblioteca Nacional di Lisboa (codice 740, conrcnentc 22 discgni di cui 17 relarivi a\
Palacio dos Governadores di Belém, divulgato per la prima volta da Robert Smith, «El Palacio de los Cobermdores ~a Municipal _di Porto, l' Archiginnasio di Bologna) una ricchissima documentazione gra-
de Cran Pará)), Anafes de! Instituto ele Arte Amerirano e Investigacio11es Esteticas, n. 4, Buenos Aires, 1951 ). fica, cartograbca e documentale. Oltre, naturalmente, alle opere stesse realizzate: forte:ze
28
Documen tati, nel loto aspetto originale, dai rliscgni chc lo stcsso Landi esegul per il na ruralista Alexandre
Rodrigues Ferreira (capo di una spedizione «filosofica» che percorse l'Amazzonia tra il 1783 e il 1792 su incarico
edi~ci pu_bblici, in genere preservati, e intere cittadine e villaggi (Bragança, Borba, Sã~
dei governo portoghcse) e inseri ti ncl codice Prospectos ele Cidades, Vil/as, Pouoações, Fortalezas e Edijicios, Rios e Jose do R10 Negro (Barcelos), São José de Macapá, Nova Mazagão, Balsemão, Óbidos).
Cachoeil'as da Expedicão Philosophiw cio Pard, Rio Negro, Matto Grosso e Cuyabà, della Biblioteca Nacional cli Rio Nonostante la sua elevara qualità - che suscito dopo gli anni 60 ]' ·
de Janeiro (pubblicati in Alexandre Rodrigues l'erreira, Viagem Filosofica às Capitanias do G1·ão--Pard, Rio Negro, . . . . ) appassionato
1
m_ceresse ~ alcu_m ~tud10si locali - questo materiale rimane tuttavia praticamente scono-
}dato Grosso e Cuiabd, vol. l, São Paulo, Graficos Brnnner Ltda., 1970). Trai principali studi sull'attività di Lamli
in Brasile vanno ricordari quelli di Robert Smith, «El Palacio de los Gobernadores», cit., e «Antonio José Landi, SC!uto agl1 studios1 e al pubblico europeo, e alla grandíssima maggioranza dei pubblico
arquiteto italiano do século XVIII no Brasil», Atas do 111 Coloquio lntemacional ele lcstudos Luso-Brasileiros, Lisboa, latinoamericano.
1957, vol. ll, Lisboa, 1960; di Ccrmain Bazin, Làrchitecture bt1roque ,tu Brésil, Paris, Plon, 1956-58,
vol. I e II, passim; di Paulo de Albuquerque, «Arquiteto Anronio José Landi», Habitt1t, n. 12, São Paulo, 1953; di E, sopratrutto, resta in attesa di uno studio multidisciplinare, che 11011
soltanto ne
Donato Mello Junior («Antonio José Landi, arquiteto de Belém I. Documentação existente no Rio de Janeiro»,
~onga in rilievo il valore storico, scienrifico, anistico, a livel!o regionale, ma permetta di
Arquitetum. Revista do Imtituto dos Arquitetos cio Bmsil, n. 63, settembre 1967, pp. 17-21; !d., «Anronio José
Landi, arquiteto de Belém 11. Documentação existente em Lisboa», ibidem, n. 64, ottobre 1967, pp. 7-12; situado nel suo straordinario contesto culcurale e di interpretado come elemento di un
A11tonio José Lmtcli, rtrquiteto de Belém, Belém, Governo do Estado do Pará, 1973, con ricca bibliografia commen- universo piu ampio.
tata; «Barroquismos do Arquiteto Antonio José Landi em Barcelos, amiga Mariua' e cm Belém do Grão-l'ará»,
Barroco, n. 12, Belo Horizonte, 1982/3, numero dedicaro al «Congresso do Barroco no Brasil», Belo Horizonte, Quello appunto della storia delle ideologie dei xvm secolo 0, secondo una felice defi-
settembre 1981, pp. 99-111); di Leandro 1àcantins («bndi, um italiano luso-tropicalizado», Revista Brasileim de nizione di Pierre Francastel, dei pragmatisme des furnieres: storia dei modi, cioe, secondo
Cultura, armo!, n. 1, luglio-agosro 1969, pp.13-27); di Augusto Meira Filho (Landi esse desconhecido, cit.; O bi-
secular Palacio de Lancli, Belém-Pará, 1973); di Yves Bottincau, «La transmission des sources archirccturales vers
le Brésil du XVIII siecle: des certitudes aux ipothéses", Colóquio-Artes, n. 25, Lisboa, dicembre 1975 e di Mario
Barata («Giuseppe Antonio Landi, arquiteto italiano do 700, no Pará", Atti de! Simposio Intemazionale sul Brtroc-
:ondazione di una colonia agrícola popolata a varie ri prese con concadini clclle Azzorre (cfr. Carneiro de Mcndon a,
co Latino Ameriamo (Roma, aprilc 1980), Roma, lstituto !ralo btino An1ericano, 1982, vol. !, pp. 235-241, 'Í'· ctt., I, PP· _115, 122, 207-211, 238) erctta a categoria di vila nel 1758 con il nome di 5- Jos • J M , ç
ri preso in «Aspectos tardo-barrocos na obra de Giuseppe Antonio Landi no Pará e sua ligação com a arquiternra 11 · , • d fi · · , .l . . . . ,30 e e e acapa.
italiana», Barroco, cit., pp. 93-98). La rcalizzazione di una mosrra su Landi, coordinata ela chi scrive, ealio srudio (ibidem iJ1~gOe~t~3;. \~t';Jer. a fortezza, nchresta a prü nprese ela Mendonça Furtado al governo cenrrale,
Tei , , , . , .· , 9 ) e commrssronata a Ga'.luzzr dai nuovo governadore Fernando da Costa de Atha de
presso il Solar Grandjean de Montigny, centro culturale deli' Universirà Cattolica di Rio de Janeiro.
·11 l;e; iel ~;64.] lavo 11, condom con relatrva celerna (considerando le difficilissime condizioni ambienrali) li,o
"'11 suo nome consta nella lista di candidati inviata da Vienna nel marzo 1750 dal diplomatico portoghese
Manuel Telles da Silva al segrerario di Sraro Marco Antonio de Azevedo Coutinho (Lisbona, Arquivo Histórico
l. , r~ entadrono con la caduca dei governo Pombal e si concluscto ufficialmente sol tanto nel 1782. Dirigeva
a cosrr,u~rone, . opo la morte dr Galluzzi, l'ingegnerc Gronfelt.
Ultramarino, Documentos do Brasil. Cfr. Cortesão, op. cit., V, doe. 2, p. 18).
. Seu lavon d, Calluzzi a Maca pá la fome fondamenralc, Arrrrr Viana «As fortificações da A · !·A.
30
Jvlappa geral do estado do Pard repartido nas suas.fi-eguezias... cvmtruido e reduzido as regras de Geograp/Jia fort1fic-1ço I p , A · .1 B ·b ,. ' ' , mazorna. . s
' cs e O ara», na,s aa z ao tem e do Arquivo Publico do Parti tomo]\/ 190') Al · · · 1· ·
com observações geometricas, e astronomims: l'ello ajudante engenheiro Henrique Antonio Galuzzi, 1759, Rio de d •11 e . ' , • cum ptogem 111cc rn
e a rorrezza sono conscrvarr nell'Arquivo Historico do Exército R'10 d J ·. ' '
Janeiro, Biblioteca Nacional, in 4 fogli. · Vedi 1a lettcra dei n
12
. h . d' T: , .' a e aneu º·
31 33 Sullc d b . 1arc ese r ancas ª_Mendonça Furtado, llt Carneiro de Mendonça, op. cit., I, PP· 400-401.
Della necessità di fortificare Maca pá - sul lato dei rio Amazonas confinante con la Guiana francese- con
ue 01 tezze e suglr 111tervent1 dr Sambuceci, vedi Viana, oo. rit. PI'· 227-302 (A 260 bl 1·
una fortezza in grado di proteggcre i coloni, si parla nclla corrispondenza dei governatori dei Pará con Lisbona a un 1,rogerro d 11 . s l · . . l' ' · • 11 • , pu J reato
34
e º_H:sso am ,ucetr per la ncostn1z1one della forrezza di Santarcm, 1762.)
partire dai 1738. Nel 17 40 venne inviata da Lisbona una pianta per un fortino di terra, chc non fu costruito. Solo
rr. Ad Dalla «mrssaollde B6a)lsamão» fino alia face nel rio Amazonas (Rio de Janeiro, Mappotcca dell'Jramanri ·
82 con l'arrivo di Mendonça Furtado come governatore (1751), ebbe inizio l' occupazione stabile della regione, con la C u. oruas, op. ut., , p. . < '

83
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

i quali un fermento ideologico generà nell'Europa dei sec. XVIII una serie di «cambiamenti
e di creazioni originali, assolutamente contradittorie nei dettagli, diseguali negli effetti,
ma che procedono tutte da una stessa utopia, e che contribuiscono tutte alla formazione di
quella società moderna di cui siamo gli ultimi eredi» 35 .

Fig. 1 - San Leucio, pressa Caserta.


Laccesso ai palazzo-manifattura dei Belvedere.

Fig. 2 - Pianta di Vila Bela,


capitale di Mato Grosso, 1777.
Castendo, Casa da Ínsua.

-' 5 Della forrezza Príncipe da Beira esistono numerosi progetti in collezioni brasiliane e portoghesi, cli cui la
principale, quella della Casa da lnsua a Castendo, in Ponogallo (srudiata da Isa Adonias in Real Forte PrinciJ,e
da Beira, Rio de Janeiro, Fundação Emilio Odebrecht, 1985, pp. 236-244). S,t!la sua costruzione, vedi Vir-
gílio Correa Filho, «Luís de Albuquerque», Anais do III Congresso de Historia Nacional, Rio de Janeiro, 1942;
ld., As raias de Mato Grosso, vol. IV, São Paulo, 1926.
Su Sambuceti (e sugli alrri architetti e ingegneri citati) vedi inoltre Sousa Viterbo, Diccionario Historico e
Documental dos Arquitecto,; Engenheiros e Construtores Portugueses ou ao serviço de Portugal, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1899-1922, 3 vol. (ed. facsimile, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988), a cui si deve
tutt' ora il maggior numero complessivo di dati sui personaggi in questione, tratti da archivi pubblici e priva ti
tanto portoghesi che brasiliani; e il contributo recentíssimo di Miguel Faria, «Engenharia militar no Brasil
setecentista», Atti dei convegno internazionale La costruzione di un 11Uovo mondo (Genova, 1993), Genova,
84 Fig. 3 - Facciata dei Palazzo dei Governatori a Belém, progettato da Antonio José Landi.
Sagep, 1994.
Disegno di J. J. Codina, 1784. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. 85
A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES
NO SÉCULO XVIII: INSTRUMENTO DE CONHECIMENTO
E CONTROLO DE TERRITÓRIO*

BEATRIZ P S!QUE!RA BUENO


Faculdade de Arquitectura e Urbanismo
da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Fig. 4 - Pianta della fortezza di Macapa. Rio de Janeiro, Arquivo Histórico do Exército.

* Trabalho inédito realizado no âmbito do programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitectura da


86 Fig. 5 - Pianta della fortezza e delle città di Macapa. Rio de Janeiro, Arquivo Histórico do Exército. Universidade de S. Paulo, 1997.
Introdução

O trabalho de Ana Maria Belluzzo O Brasil dos Viajantes 1


chamar a atenção para a necessidade de um estudo aprofundado da iconografia legada
- foi o pnme1ro a

pelos engenheiros militares do século XVIII. Em certo sentido, este trabalho constitui-se no
início de uma resposta a esse apelo.
O estudo desses desenhos implica em certos cuidados metodológicos. Em termos
gerais, nossa abordagem fundamenta-se nas diretrizes propostas por Ulpiano Bezerra de
Meneses 2 para o tratamento das fontes materiais na pesquisa histórica, e em termos
específicos, nas propostas de Christian Jacob3, Chandra Mukerji", Svetlana Alpers 5 e

1
BELLUZZO,Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. São Paulo/Metalivros, Salvador/Norberto Odebrecht,
1994. II vols. Agradecemos à Prof. Ana Belluzzo pelo estímulo dado para o desenvolvimento desta pesquisa e pelas
informações preciosas referentes à documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
2
Esta proposta merodológica foi amplamente discutida na disciplina «As fontes Materiais na Pesquisa
Histórica», ministrada pelo Prof. Ulpiano Bezerra de Meneses no primeiro semestre ele 1994, dentro elo progra-
ma cio curso ele pós-graduação do Deparramento de História da Fl'LCH-USP.
1
· JACOB, Christian. L'Empir-e descartes. Approche ele !ti à travers !'histoire. Paris, Albin
Michel, 1992. Trata-se de um dos estudos mais interessantes sobre a questão. Partindo de uma perspectiva histórica
e antropológica, C. Jacob analisa a natureza das cartas em função dos diferentes contextos socioculturais de produ-
ção, circulaÇ<1o e consumo que lhes conferiam sentido. Para tanto, o autor procede a uma verdadeira desconstrução
daquilo que ele denomina arquitetura visual do objeto, analisando cm minúcias os diferentes níveis de representa-
ção - grafismos, geometria, figurações, ornamentos, inscrições (título, ropônimos, legendas) - , verificando não
apenas sua lógica intrínseca, como as estratégias de poder e os níveis retóricos implícitos nas entrelinhas do discurso
visual. Agradeço a Prof.ª Heliana Angotti Salgueiro pela gentil indicação desta preciosa leitura.
4
MUKERJI, Chandra. «A New Worlcl-Picture: Maps as Capital Goods for the Modem World System», in
From Grrwen lmages. Problems ofMoelem JY!aterialism. New York, Columbia University, 1983, pp. 79-129. Esta pro-
fessora de Sociologia e Comunicação da Universidade da Califórnia, San Diego, defende a tese de que as informa-
ções geogníficas irnpressas ou manuscritas inserirarn-se num contexto de expansão polírica e econô1nica dos euro-
peus e entre tantas outras inovações na cultura material do período, contribuíram para o incremento desta econo-
mia capitalista internacional então incipiente. As inovações no desenho dos mapas ou nos demais objetos da cnlnua
material dos séculos XVI ao XVIII, teriam sido respostas, tanto político-económicas como técnicas, às solicitações
deste novo tipo específico de economia mundial e, ao mesmo tempo, desempenharam um importante papel no seu
incremento. Na perspectiva da autora, tais objetos tiveram um papel ativo, estimulando o processo que lhes conferia
raúo de ser. Ao invés de simples produtos desta conjuntura social, os mapas funcionaram como importantes vetores
de novas transformações.
5 ALPERS, Svetlana. E/Arte ele Describil: E! arte holandês me! sig!oXVJJ. Madrid, Hermann Blume, 1987

e ALPERS, Svetlana. L'oeil ele !'histoire. L'ejfet cartographique dans la peiuture hol!rmdtiise mt l 7e siêcle. Actes ele la
Recherche en Sciences Socitiles, n. 49, ser. 1983. Partindo de um ponto ele vista histórico e antropológico, a aurora
procura caracterizar a natureza da cultura visual holandesa q,,e condicionou um modo de representação visual
diferente da tradição albertiniana. Baseada em Ernst Gombrich, discute a questão da historicidade das esttuturas 89
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGEN!IEIROS MILITARES

David Woodward 6 , para o estudo da cartografia. Estes pesquisadores partem do pressu- desconstruindo sua linguagem, os níveis de representação e as estratégias de comunica-
posto comum que as cartas, como qualquer outro objeto da cultura material, precisam ser ção7. Conforme Michel de Certeau observa, a carta constitui-se em uma cena totalizante,
analisadas à luz do seu contexto social de produção, circulação e consumo. onde os elementos de origens diversas estão agrupados para configurar o quadro de um
f: preciso portanto historicizar este tipo de representação visual, analisando sua lógica «estado» do saber geográfico 8 • A materialidade do objeto representa as condições de possi-
intrínseca, desconstruindo sua materialidade, descodificando as convenções empregadas, bilidade científicas do seu tempo~, bem como o universo visual e estético partilhado pelo
autor do documento e seus destinatários 1°.
Não são portanto produtos de códigos universais, são objetos oriundos de um con-
perceptivas, contrariando un1~ f01:tL~ tendência da historiografia que insiste cn1 sub1netcr toda a atividade artística
ao modelo renascentista italiato. Partindo da pcrspectiva antropológica de Clifford Ceertz, aborda a arre como texto cultural específico cujas redes de relação não se reduzem às fronteiras de Portugal,
parte integrante de um sistema cultural mais amplo, decifrável a partir da análise da literatura circulante no articulando um conhecimento científico acumulado na Europa ao longo de séculos.
período, capaz de fornecer as chaves para a compreensão das condições, funções e significados que as imagens
Por outro lado, esses desenhos, além de uma dimensão puramente científica (matemáti-
apresentavam no interior daquela sociedade. Nessa ótica, enfatiza as diferenças existentes crn culturas visuais
distintas. Enquanto a arre italiana é un1a arte narrativa (baseada nos princípios da ((ut pictura poesis»)1 a arre ca/exata), apresentam uma dimensão retórica, por tratar-se de instrumentos de poder, cuja
holandesa é dcscririva e baseia-se no <íUt pictura, ira visio)), ou seja, princípio en1 que a visão retiniana é entendida eficácia não se reduzia à representação objetiva, prestando-se inclusive a manipulações (persua-
como pintura. Enquanto no modelo de representação albertiniano o homem é a medida de todas as coisas e o
quadro uma janela, na representação holandesa não há ponto de fuga, o observador insere-se no universo repre-
dir, enganai; seduzir, decidir, etc.) 11 . Nesse sentido, é imprescindível analisá-los à luz do seu con-
sentado e o quadro converte-se em descrição do real, sem demarcação de limites. Nesse contexto, o próprio texto social de produção, circulayfo e consumo, visto que, em Portugal, o estímulo às atividades
conceito de desenho diferia entre italianos e holandeses. Para os primeiros, desenhar significava selecionar e
geográficas foi parte de uma ampla política de ocupação e controle dos territórios do ultramar.
ordenar segundo uma concepção ideal de natureza, ao passo que, para os holandeses, desenhar significava descrevê-
-la, a partir da observação direta. Os holandeses, intermediados pelos artifícios mecânicos, tais como a camara- Retomamos assim a hipótese central da nossa dissertação de mestrado. Acreditamos
-escura, o telescópio e o rnicroscópio, comportavam-se como observadores in1parciais, ao passo que a veduta que a posse dos territórios portugueses no além-mar foi possível na medida em que a
albertiniana pressupunha um ponto de fuga e portanto um sujeito vidente e seletivo. Estes modos de percepçâo
Corôa investiu, entre outros aspectos, na formação de um quadro de técnicos especializados
culturalmente distintos, condicionaram inclusive noções de perspectiva absolutamente diferentes. O método de
construção de pontos de distância dos holandeses introduz o observador no interior do espaço representado, na construção de fortificações e cidades, e também habilitados para a realização de levan-
sugerindo a impressão análoga do próprio movimento do olho, a partir do acrímulo de vistas; ao passo que o tamentos geográficos. O estudo da iconografia legada pelos engenheiros militares é por-
observador no modelo perspéctico albertiniano encontra-se fora do universo representado e apresenra um olhar
tanto fundamental para o conhecimento dos instrumentos de urna ação política, visando
estático, fruto de um único ponto de vista. Sverlana explica que na Inglaterra corno na Holanda predominara um
tipo de cultura visual específico, no qual as imagens desempenhavam papel fundamental enquanto instrumentos aprimorar as práticas de colonização e controle do território.
de conheci1nento. Aficcionados pelas invenções tecnólogicas n1odernas - telescópio, 1nicroscópio, cârnara- Para interpretarmos esses documentos iconográficos, pretendemos nesse trabalho
-escura - , holandeses e ingleses debruçaram-se sobre a natureza para observi-la e consequentemente conhecê-
analisar os primeiros tratados redigidos em Portugal sobre o assunto 12 , a saber:
-la. A observação empírica intermediada por rodo o tipo de mecanismo artificial redundou em representações
visuais rnuito particulares. FORTES, Manoel de Azevedo. O Ti-atado do Modo o mafrfàcil e exacto de fi1zer as
Assim como a pintura holandesa do XVII, a cartografia também era uma forma de conhecimento sobre o cartas geographicas, msim de temi como de rnai~ e tirar as plantas das pmças, publicado em
inundo, já que não havia, segundo a autora, fronteira entre arte e cartografia neste contexto cultural. Analisando
Lisboa, em 1722.
as condições históricas nas quais se desenvolve as relações entre pintura e cartografia, Svetlana Alpers nos fornece
a chave para a compreensão da cultura visual holandesa.
6
WOODWARD, David (ed.). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago, The University of
Chicago Press, 1987. 'Cf. JACOB, C. Op. cit., pp. 18 e 19.
Confonnc o próprio título designa, trata-se de uma coletânea de seis ensaios, en1 que os autores, entre eles 'Apud JACOB, C. Op. cit., p. 164.
Svctlana Alpers (seu texto corresponde ao capítulo 4 do livro acima mencionado), analisam as vinculações entre 9
Conforme Michel de Certeau. ApudJACOB, C. Op. cít., p. 236.
arre e cartografia, procurando enfatizar a necessidade Je se historicizar estes objetos, analisando-os à luz das Ili JACOB, C. Op. cit., p. 240.

categorias específicas que nortearan1 a sua elaboração. Estes aurores aprcsenta111 elcn1cntos que nos perrnite1n "CC]ACOB, C. Op. cit., pp. 20 e 21.
avaliar como a prática de representação cartográfica esteve pautada en1 convenções derivadas da pintura. Estes 12
, É importan.te mencionar que estes rnanuais foran1 concebidos para funcionar co1no apostila que servisse
ensaios nos pern1ite1n verificar que cores, orna1nentação e letras estivcrarn expressamente codificados ern ma-
nuais que circulavan1 por roda a Europa, gerando uma base cornurn de conheci111ento que viabilizava a produc,·ão,
de_ metodo ªº:
praticantes da Academia Militar, da qual Azevedo Fortes era mestre. Conforme O ><Prologo ao
Leitor,, de O EJZgenhezro Portug1tez. Tomo 1, p. 5: "· .. Esta obra (amigo leitor) naõ foy feita para se dar ao publico:
circulação e consumo destes documenros geográficos nos diferentes países. Merecem destaque os ensaios de Ulla 0
pnmeiro fim, ljue me propuz, foy a minha propria insrrucçaõ; e passou depois em postila para servir de
Ehrensvard sobre o desenvolvimento histórico da cor na cartografia, bem como os ensaios de James Welu sobre methodo aos Prattcantes da Academia Militar, de que Sua Magestade foy servido encarregar-me[ ... ]. A ordem,
as fontes e o desenvolvimento da ornamentação cartográfica holandesa e de David Woodward sobre a tipologia ein que as JTIJ.tcrias se seguem, he natural, e vaõ tratadas ern seus proprios lugares, e o estilo farniliar, e claro.
das letras - caligráficas ou tipográficas -- aplicadas nos mapas em seus respectivos contextos ele utilização. Este
.. «E porque a escurida~,.e ambiguidade dos termos hc hum dos maiores obstaculos para poder chegar ao
livro nos fornece um quadro bastante importante para análise dos mapas do XVI ao XVIII a partir do repertório perfeito conhecimento das Sc1cncias; puz hum grande cuidado em os definir exacramentc, determinando-lhes a
disponível no seu tempo.
sua vcr.d~deira significaçaõ; e o mesmo obscrvey nas dcfiniç:ões: e como as da Ceornetria, e fortificaçaõ por claras
Nessa mesma linha de abordagem, merece destaque o ensaio da historiadora de Ane da Universidade
~ue sep.o, s~n1prc se rnculcaõ, e perccbern 111elhor por figuras 1 e por excn1plos; procurcy, que as figuras nas
de Pisa, Lucia Nuti. «Misura e Pittura nella cartografia dei secoli XVI-XVil», Storia Urbt111t1, XVII (62), jan/mar
F\Sta.mpas, a;udadas de exernplos conhecidos, dessen1 hun1a nova luz à 111ateria, e a fizessem lnteiraincnte
90 1993. perceptivel.» 91
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

O Engenheiro Portuguez: dividido em dous Tratados. Tomo Primeyro, que comprehende «[ ... ] Dizia eu: que fortaleza, ou cidades estrangeiras não tenho eu ainda no meu
a Geometria Pratica sobre o papel, e sobre o terreno: o uso dos instrumentos mais necessarios aos livro? Que edifícios perpétuos e estátuas pesadas tem ainda esta cidade, que lhe eu já não
Engenheiros: o modo de desenhar; e dar aguadas nas Plantas Militr1res; e no apendice a tenha roubado e leve, sem carretas nem navios, em folhas leves?» 16
7i·igonometria rectilinea. Obra moderna, e de grande utilidade para os Engenheiros, e inais O desenho era assim um meio estratégico e bastante eficaz de apropriação cttltuml,
officiaes militares. Composta por Manoel de Azevedo Fortes, Academico da Academia Real visando a atualização do conhecimento.
da Historia Portugueza, Cavalleiro Professo na Ordem de Christo, Brigadeiro de Infanta- O domínio desta prática era de suma importância sobretudo em tempos de guerra,
ria dos Exerci tos de Sua Mag<;;!tade, e Engenheiro mór destes Reynos, &c. Lisboa Occidental: seja no registro das condições topográficas dos territórios inimigos, seja no planejamento
Na Officina de Manoel l"'ern;ndes da Costa; Impressor do Santo Officio. MDCCXXVIII. estratégico da movimentação dos exércitos em campo. A, palavras de Francisco de Holanda
são bastante elucidativas neste sentido:
Com todas as licenças necessarias.
Porém, antes de abordá-los, optamos por proceder a uma breve retrospectiva históri- «Digo pois que [a] arte da Pintura e o Desenho se bem servem a república cristã em o
tempo da paz, que muito melhor a servem (onde se dela melhor sabem aproveitar que em
ca, visando analisar o processo de introdução da prática do desenho no âmbito das Acade-
Portugal) no tempo da guerra, e Re Militar, de que escreve Vegécio e outros. Bem sabe se é
mias Militares portuguesas.
isto verdade Itália e França e outras províncias, assim de fiéis como de infiéis. Porque se o
desenho da guerra vai bem desenhado, é vencida; mas se o desenho vai descomposto, dê-se
por perdida.
«Sirva-se pois Vossa Alteza do Desenho da pintura nas coisas da guerra: e verá quanto
Capítulo 1: O processo de introdução da prática do desenho
releva, e como nenhuma coisa sem ele será perfeita.
nas Academias Militares de Portugal
[... ]
«Sirva-se do Desenho em fazer bem armar e ornar seus capitães, cavaleiros e soldados.
[... ]
1.1. De quanto serve a ciência do desenho no serviço de el-rei 1.l «Sirva-se do Desenho no edificar das fortalezas, assim em Lisboa como lhe tenho
lembrado, como por todo o mais reino, cidades e vilas, que não têm nenhum forte ao
A leitura dos tratados de Francisco de Holanda 14 nos permite avaliar o papel que modo moderno ...
desempenhava a ciência do desenho na côrte portuguesa do século XVI e subsequentes. Na [ ... ]
ausência da fotografia, tratava-se de um importante instrumento de conhecimento, capaz «Assim como se serviu de mim El-Rei e o Infante na fortaleza de Mazagão, que é feita
de documentar e transportar objetos distantes, de outra forma inapropriáveis. Tal fun- por meu desenho e modelo, sendo a primeira força bem fortalecida que se fez em África, a
ção aparece claramente expressa no discurso deste artista, enviado em 1538 à Itália por qual desenhei, vindo de Itália e de França: de desenhar por minhas mãos e medir as prin-
D. João III, com a missão específica de «... ver e desenhar as fortalezas e obras mais cipais fortalezas do mundo ...
insignes e ilustres de lá» 15 : «[ ... ] Sirva-se finalmente do entendimento do Desenho em se determinar (com o
«... E o que me era sempre presente era o em que poderia servir com minha arte a El- divino favor e auxílio, sem o qual nenhuma obra pode ser perfeita) em passar a África e
-Rei nosso senhor, que me lá mandara, cuidando sempre comigo, como poderia roubar e tomar Fez como os Mouros temem e o forte nome de Sebastião promete.
trazer a Portugal roubados os primores e gentilezas de Itália, do contentamento de El-Rei «E nesta santa empresa se pode servir muito do Desenho, que o seu próprio objecto
e dos Infantes, e do Sereníssimo senhor Infante D. Luís. é no exército quando se move para tomar alguma grande cidade ou reino. Primeiro, em
fazer desenhados seus alardos e exércitos em Lisboa e depois nas formas das galês, e naus,
e galeões novos e nos mapas e cartas de África, como fiz já uma de muito preço para Roma
"Trata-se de parte do título do Capítulo 4 do tratado de Francisco de Holanda, D{l Ciência do Desrnho,
ao Arcebispo do Funchal: que do mar perdida ma tomou a mostrar o Infante.
redigido em 1571.
14
HOLANDA, f'rancisco de. Lembrança ao muito Sereníssimo e Ci·istianíssimo Rei Dom Sebastião de quanto «E sirva-se no tomar terra em África e no mover do exército contra Fez; e em mandar
serve (I Ciência do Desenho e Entendimento ela Arte ela Pintura, lltl República Cristã, assim na Paz como 11a G'uenri ir diante desenhar e pintar os campos, serras e vales, rios e lagunas, e lágias e arrifes, e
(1571). Lisboa, Livros Horizonte, 1985, pp. 27-39.
15 HOLANDA, Francisco de. Da Fábrica que Falece à Cielt1ele ele Lisboa (1571). Lisboa, Livros Horizonte,

92 1984, p. 3. "HOLANDA, Francisco de. Diálogos de Roma (1548). Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1955, p. 6. 93
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A JCONOCRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

penedos, e todos os outros maus passos estreitos ou perigosos para seu exército passar das extensas cartas naúticas e geográficas, como da instrução dos jovens fidalgos no exercí-
seguro; e assentar seu campo e real e tomar a forma da pintura dos cavaleiros e terra e cio da matemática e suas aplicações à geometria, astronomia, náutica, cosmografia e
entulhados e cavas de que há-de estar cercado para estar forte; e sirva-se na forma de como arquitetura. Entre eles, especialmente, cabe lembrar os nomes de Pedro Nunes 23 e João
há-de ordenar os esquadrões, ou em triângulo, ou em quadro, ou noutras formas, e assim Batista Lavanha 24.
as alas e vanguardas, e assim todas as mais ocorrências ou acontecimentos que podem Rafael Moreira 25 aponta a existência em Portugal de um centro de estudos teóricos de
acontecer em tal combate .. ,)) 17 náutica e cosmografia organizado entre 1536 e 1541 na casa do infante D. Luís em torno
Como menciona o autor, a importância do desenho não se restringe à tradição do matemático e cosmógrafo-mor Pedro Nunes. Ao que se sabe, essas sessões de estudo
9
renascentista, remontando à Antiguidade. O Rei Militaris instituta do militar romano incluíram leituras comentadas de textos de Sacrobosco, Ptolomeu e Aristóteles, bem como
18
Vegetius Flavius Renatus já instruía os jovens capitães nesse sentido. Outra importante observações científicas e recolha de informações práticas trazidas pelos mareantes. No cir-
referência clássica era a obra de Plínio, amplamente citada no Renascimento, sobretudo cuito dessa pioneira academia científica - possível origem da futura lição do cosmógrafa
no tratado li Corteggirmo (1528) do conde Baldassare Castiglione e na autobiografia estabelecida anos mais tarde na Ribeira das Naus - foram traduzidos os textos básicos
(1629 e 1631) do holandês Constantijn Huygens, quando ambos discutem a importância sobre o assunto, sinal de uma nítida orientação teórica. O resultado dessas atividades fo-
do desenho na educação dos gentil-homens 19 • Henry Peacham no seu livro The Compleat ram os tratados elaborados por Pedro Nunes - limado de Esfera, 1537, De Crepusculis,
20
Gentlemrm , publicado em Londres em 1661, também tratou da importância da 1542, e Livro de Álgebm em Aritmética e Geometria, 1535 - , bem como a tradução portu-
cosmografia na formação de jovens nobres, interessados na pdtica do comércio e no pra- guesa do tratado de Vitrúvio por ele realizada entre 1537 e 1541.
zer das viagens. Para tanto, menciona Ortelius, Hondius, Copernicus, Mercator, entre Essa iniciativa pedagógica teve continuidade em torno da figura do futuro sucessor
outros, cujas obras eram apropriadas para instruir jovens fidalgos neste assunto. de D. João III - o jovem D. Sebastião-, cuja educação exigiu a criação de um grupo de
Em Portugal, o infante D. Luís, irmão de D. João III, era o típico exemplo do corte- estudos orientado a partir de 1568 por Pedro Nunes. A Escola Particular de Moços Fidal-
são habilitado no exercício do desenho e Francisco de Holanda o típico representante de uma gos do Paço da Ribeira converteu-se assim na mais influente instituição de ensino não-
categoria de artistas - pintor, iluminador e arquiteto - que integrava as principais cortes euro- -universitário da época sebástica 26 •
péias do período, auxiliando reis e príncipes nos mais variados assuntos. Sua função não se res- É preciso esclarecer que as cartas realizadas pelos cosmógrafos desse período nem
tringia ao exercício da pintura, estendendo-se inclusive a opiniões nos projetos de forcificação21 _ sempre resultavam da observação direta. Quando se tratava de levantamentos de regiões
longínquas, estes eram realizados por viajantes, pilotos ou locais, ocupando-se o cosmógrafo
apenas da iluminação das cartas e preparação dos atlas manuscritos, que muitas vezes
1.2. A em dos cosmógrafas apresentavam um texto explicativo das imagens redigido pelo próprio encarregado do le-
vantamento. É o caso do Livro que dá rezão do Estado do Bmsil, de João Teixeira Albernaz,
Neste contexto de indefinição das profissões, merece destaque a figura do cosmógrafo-
22
-mor do reino , então responsável não apenas pela orientação e supervisão da preparação
conforme carta datada de Paris, a 8 de dezembro de 1839, endereçada ao historiador brasileiro Francisco Adolfo
Varnhagen, na qual diz: invento que aí se tem inventado tantas. Cf. ÁVILA, Cristina. Refação texto-
-imagem no Barroco mineiro. Breve estudo de 1co1w9m/u1 colonial. Dissertação de mestrado apresentada à ECA-
17
HOLANDA, Francisco de. Dtt Ciência do Desmho (1571), Jl. 42r-fl.44v, pp. 3 l--36. -USP, 1993, p. 11 O.
18
.A obra
, de Vegécio foi traduzida para o fJOrtuguês
._.. pelo infame D • Pedro , fill10 ele D . /0 ~°10 J e e·! ec1·rca
• d a ao 23 Este ilustre matemático judeu foi um grande renovador da ciência cartográfica em Portugal. De 1537 a

se'.i mnão El-~ei D.


Duarte. Trata-se de uma tradução datada do século XIV e portanto ~onternporânea das 1562 foi professor em Coimbra e, em 1572, estabeleceu-se na côrte com um excelente salário, incumbido de
primeiras ediçoes impressas deste tratado. Cf. comentário de José da Felicidade Alves, in Da Ciência do Desmho, acompanhar ele perto a educação superior elo rei D. Sebastião e de outros jovens fidalgos no estudo elementar das
p. 52. matemáticas e ciências afins na Escola de Moços do Paço da Ribeira, criada pela regente D. Catarina dez anos
19
ALPERS, Svetlana. E! Arte de Describir, p. 60. antes. O progran1a incluía noções de astronornia e cartografia e o uso dos principais instrun1entos de navegação.
Conforme MUKERJI, Chandra. Op. cit., p. 107. Cabe lembrar que Pedro Nunes dedicou .. se ao longo de toda a sua vida ao estudo ela matemática e da astronomia,
21
Po~erían10s citar un1a série de outros exen1plos, entre eles, vale 1nencionar Albeni, Leonardo da Vinci, ciências cujo conhecimento aprofundou em Salamanca, publicando em 1537 um 1ÍYltf/do de Cf. COR-
Donatelo, ha_ncesco di Giorgio Martini, Dürer e o próprio Michelangclo. Sobre o assunto consultar, MOREIRA, TESÃO, Armando. G1rtografia e Cartógrafos Portugueses dos séculos XV e XVI (Contribuição pam um estudo
Rafael. «Arquitectura militar do Renascimento» ' in História t"OJ't!Ti'Ctl<.'Oes ro.,w.ifu,-uJC Jl() J\1Ull{l(],
1 L'IS l)OJ, Al'ra, completo). Lisboa, Seara Nova, 1935, p. 54 e MOREIRA, Rafael. Um de mquitectunz do século
~989, PP·_
143-158 e DELUMEAU, Jean. «O Progresso Técnico«, in A Civifiwção do Renascimento. Lisboa, XVI. Dissertação de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1982, p. 55.
Editonal btampa, 1984. 24
Contcn1porâneo de Pedro Nunes, foi seu sucessor no cargo de cosrnógrafo-rnor do reino.
~ _.
22
25
Cab~ lc~~brar que ncsc: período in existi_an1 os terrnos cartógrafo e cartografia. A palavra cartografia foi
, MOREIRA, R. Op. cit., pp. 62-63.
94 c11ada pelo histo1 iador portugues Manoel Franosco - de Barros
·
7

e Sousa
, " ( 1791 ·- 1865) ) II Vi' sconcj e ej e Santarcn1,
' 26
Idem, pp. 65-70. 95
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

elaborado por volta de 161627 , a partir dos levantamentos realizados em 1612 pelo sargen- «Carta, em que se vê só a descripção de algum país, ou lugar. "Tabula Chorographica",
to-mor local Diogo de Campos Moreno 28
• ou "Tabula Topographica".
Quanto à linguagem destes desenhos, convém ressaltar que um processo de unifor- [ ... ]
mização iniciou-se na Itália e Holanda a partir do século XVI. Até então, as cartas, ainda «Cana de Marear. He a que representa em plano todo o globo da terra, ou parte delle,
pouco padronizadas, explicitavam o estilo pessoal de cada cosmógrafo, já que caracteriza- descrita cõ todos os rumos da agulha ele marear. Nela se conhece o tempo dos mares, & em
vam-se pelo predomínio das figurações livres e dos topónimos, visando preencher lacunas que se vem os penedos, cachopos, bãcos de area, & outras perigosas paragens elo mar. Por
que atestassem o desconhecimenro efetivo da região representada ou suprir a carência de ella sabe o piloto, qual o vento ha mister, & juntamente a altura, que tem o lugar, para
códigos capazes de subititâ!ír palavras e imagens. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, com a onde ha ele encaminhar sua nao. "Marina Tabula, &, ou Naútica Tabula, ae. Fem."»
consolidação de todo um sistema padronizado de representação cartográfica, tais figura- Além de Ptolomeu, outra importante referência era Vitrúvio, cujo capítulo II elo
ções livres, quando existentes, foram relegadas ao âmbito da ornamentação dos cartuchos Livro I do seu tratado, ao analisar as partes em que consiste a arquitetura (ordenação,
de legendas e títulos. disposição, eurritmia, simetria, decoro e distribuição), estabelecia os três tipos básicos de
A elaboração de convenções gráficas diferenciando espécies de árvores, por exemplo, representação de um edifício: planta (icnographia), elevação (onhographia) e perspectiva
foi introduzida pela edição ilustrada da [Geografir1] de Ptolomeu, publicada em Roma em (scaenographia).
1478 29 , e tal sistema de símbolos gráficos foi progressivamente aprimorado pelos tratados «A disposição é o arranjo adequado de todas as partes, de forma que, colocadas segundo
de agrimensura publicados pelos ingleses nos séculos subsequentes. John Norden no final a qualidade de cada uma, resultem num efeito elegante ela composição. As espécies de dispo-
do século seguinte introduziu outro complexo sistema de símbolos distinguindo catego- sição, chamadas em grego ideas, são a planta (icnographia), a elevação (orthographia) e a
rias de cidades ou edifícios significativos: cidades de mercado, paróquias, vilas, capelas, perspectiva (scaenographia). A icnografia é feita com o uso adequado do compasso e da
castelos, monastérios, etc. 30 régua, que servirá para descrever no terreno a área do eclíficio. A ortografia é a elevação
No que diz respeito aos tipos de representação cartográfica, a grande referência era o frontal numa imagem pintada, de tamanho reduzido, com as mesmas proporções que deve
tratado do célebre geógrafo grego. A nomenclatura proposta por Ptolomeu permaneceu 31 ter a obra futura. A cenografia é o desenho sombreado não só da fachada mas também de
válida nos séculos subsequentes. O dicionário de Raphael Bluteau 12 , datado de 1712, ex- uma das partes laterais do edifício, pelo concurso de todas as linhas ao centro do círculo ... » 31
plica as especificidades de cada um dos géneros ptolomaicos no verbete «cartas»: É, interessante observar que o matemático e cosmógrafo-mor do reino, Pedro Nunes,
«Carta geographica, em geral. He huma descripção, ou representação de toda a terra, esteve envolvido tanto no estudo ela obra de Ptolomeu como de Vitrúvio, sendo incumbi-
ou de alguã parte della em huma, ou em muitas grandes folhas de papel. do de transmitir seus conhecimentos aos jovens fidalgos. Ou seja, estes tratados foram
[ ... ] bibliografia de referência na formação elos gentil-homens desde princípios do século A'Vl.

«Carta Cosmographica - carta universal, em que o mundo todo está representado. Por outro lado, no que diz respeito às entrelinhas do discurso visual, as cartas desse
[ ... ] período - a despeito da progressiva sistematização dos códigos de representação - pres-
tavam-se a inúmeras manipulações retóricas. Cabe lembrar que esta cartografia quinhen-
tista portuguesa veiculou a noção ele que o Brasil seria uma ilha, deslocada do continente
27
Existe um outro original deste atlas manuscrito, datado de c. 1626, no Instituto Histórico e Geográfico pela união dos rios da Prata e Paraguay à foz do Amazonas. Esse mito da ilha Brasil
Brasileiro - RJ. indiretamente prestava-se às discussões geopolíticas em torno da polémica dos limites en-
28
MO REIRA, Rafael. O mgenheim-rnór e a circulação dasfónnas no Império Português, in Portugal e Fumdres. tre os territórios de Portugal e Castela na América. De certa forma questionava a abstrata
Visões da Europa (1550-1680). Lisboa, IPPC/ Mosteiro dos Jerónimos, 1992 (Cadlogo de Exposição), p. 202.
29
Localizamos no setor de reservados da Biblioteca Pública Municipal do Porto uma das mais antigas linha ele Tordesilhas, através da existência ele limites naturais 34. Por meio desta e de ourras
edições ilustradas do tratado de Ptolomeu encontrada em Portugal. Trata-se de uma edição de Roma, datada de estratégias, a questão ela legitimação da ampliação do território português para além de
1507. PTOLOMEU, Cláudio. [Geographia/. ln hocoperae [sic} haec conti11e11tur Geographirt Cf. Ptholemaei. Rome,
Tordesilhas esteve em debate muito antes da discussão efetiva do século xvm.
per Bernadinum Venetum de Vilalibus, 1507. Res.-XVI-C-6.
3
"NUTI, Lucia. Op. cit., p. 30.
31
Os conhecimentos cartográficos do mundo amigo alcançaram seu ponto culminante na obra de Ptolomeu.
Nascido em Alexandria no século li, dedicou dois volumes da sua Geografia ao estudo da construção de globos, VITRÚV!O. Les dix livres d'Architecture de Vitruue, corrigés et traduits en 1684 par Claude Perrault.
projeções e mapas. Considera-se, mesmo, ser este o primeiro atlas geral elaborado. Os textos de Prolomeu foram Liege, Pierre Mardaga Ecliteur, 1988. Estamos utilizando uma tradução desta edição realizada pelos Profs. Drs.
redescobertos no Renascimento e os humanistas italianos os traduziram para o latim por volta de 1400. Em Ivone Salgado e Mário Henrique Simão d'Agostinho do curso de Arquitetura da PUCCAMP.
34
Portugal a obra de Ptolomeu foi amplamente estudada e divulgada pelo cosmógrafo-mor Pedro Nunes. Conforme MARQUES, Alfredo Pinheiro. O imperitilismo português 110 Brasil nos séculos xv111-x1x. O papel
32
BLUTEAU, R. Vocabulario Portuguez e Latino ... Coimbra, Collegio elas Artes da Companhia de Jesus, dos cartógrafós e dos engenheiros milit,tres dos limites do Brasil, i11 ALBUQUERQUE, Luís de (dir.).
96 1712. vol. 3, p. 167. Portugal 110 lvfundo. Lisboa, Alfa, 1989, vol. V. 97
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

1.3. A era dos engenheiros militares «É nesessario hao arquiteto saber debuxar porque por hele amostre ho seu cõseito e
que amostre como he tam nesessario hao fabricar corno cada hua das outras couzas que o
Segundo Rafael Moreira35, uma das características da arquitetura italiana fôra a pro- emtemdimento declarou, e que declare as quatro hespesyas em que está devedido cada hua
gressiva diferenciação de especialidades entre o arquiteto de modelo vitruviano - cujo per sy, corno he "pramta", e "montea", e, "perfice", e mostrará por regra de prespetiva ho
principal exemplo era Palladio - e o engenheiro como técnico especializado - em mui- escursar das couzas.»
tos casos ex-soldados ou jovens fidalgos experientes nas práticas de guerra com reputação
[Falta a definição de «planta» - 4 ou 5 linhas deixadas em branco]
de peritos em fortificação.
«Pola momtea amostrará ho alevantado hou has alturas dos edefisios [da fortaleza]
O período que se ~eghlu ao final do século XVI marcou em Portugal o triunfo dessa nova
cõforme a proposão do sytio.
figura do engenheiro militar, que se impôs frente ao arquiteto, dominando a cena, invadindo
«Polo prefice amostrar,Í as grossuras dos muros de que ha de ser sercumdada [a forta-
áreas da competência daquele, tais como a hidráulica, a arte dos jardins e a própria arquitetura
leza] os edeficios, o qual perfice não o poderá fazer se não revir (sic) feito permciro a
efémera. A união das duas Corôas em 1580 intensificou esse processo. Foi contratada uma
plamta e a mõntea, porque por a plamta amostra as grossuras he por a momtea amostra as
série de engenheiros italianos que nos legaram uma iconografia primorosa, o que evidencia a
alturas.
gama de atividades exercida por esses indivíduos tanto na Metrópole como nas Colônias 36 •
«Comvem ao que houver de fazer profição de [forteficador] arquiteto hemtemdcr a
Data desse período o aparecimento do termo engenheiro, com um sentido preciso e como
prespetiva pera que por hela amostre ho esterior he ho ymterior de edefisio escursado, para
cargo oficial, cabendo inclusive a um desses italianos - Leonardo Turriano - encabeçar o
posto de primeiro engenheiro-mor do reino. Passados longos anos de indiferenciação, a espe- que escuze de se fazer despeza em modelo de pao, hou de sera, hou de terra.,, 40

cialização profissional dos construtores era então fato 37 • Quanto ao método de perspcctivar adverte:

Embora não denominados engenheiros, havia já no século XVI os chamados mestres «A prespetiua é hua siensia que milhor se aprende por demostraçois que por pratica.
38
das fortificações do reino, cabendo ao mestre-mor lecionar, na Escola Particular de Mo- [ ... ]
ços Fidalgos do Paço da Ribeira, questões específicas relativas à arte das fortificações. No «Sebastianus Sedio bolonhes todas as figuras que escursou no "Livro da prespectiua"
entanto, a prática do desenho geográfico permaneceu concentrada nas mãos do cosmógrafo- que fez escrusou por esta regra que aquy se vee prezente.» 11
-mor pelo menos até meados do século XVII. Ao que tudo indica, em fins do XVI, o O autor basicamente utiliza-se do método prático proposto por Sérlio no Il Secondo
cosmógrafo-mor João Batista Lavanha passou a lecioná-la no interior da recém-criada Aula Libro di Perspectiva42 , inspirando-se inclusive nos desenhos deste tratado para elaboração
de Esfenz do Colégio Jesuítico de Santo Antão 39 . dos seus. Sobre o assunto menciona conhecer também o tratado de Giacomo Lanteri 43 ,
No que diz respeito ao desenho, o tratado manuscrito de arquitetura militar atribuí- Due dialoghi dei modo di disegnare !e piante de!le fortezze secondo Euc!ide, publicado
do a António Rodrigues (1576 e 1579), então mestre-mor das fortificações e lente da Escola em Veneza em 1557 e 1559. Por sua vez, no que diz respeito à questão da trigonometria
Particular de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, atesta a adoção dos manuais de Vitrúvio em relação aos levantamentos topográficos, baseia-se no método de triangulação pro-
e Sérlio como principais referências para o seu exercício. No Capito!o dczs partes que ha de posto pelo académico florentino Cósimo Bartoli no seu tratado De! modo di misurare !e
ter ho arquiteto, assim define a sua importância e as diversas espécies de representação: distantie, le superficie, i corpi ... secondo !e vere regole d'Eucfide, publicado em Veneza
em 156444 .
35 Cf. MOREIRA, Rafael. «A Arquitetura Militar, in SERRÃO, Vítor. Op. ât., p. 150. Se o tratado de António Rodrigues atesta a dependência exclusiva da tratadística
36 Entre os engenheiros militares italianos contratados para trabalhar em Portugal durante o reinado dos italiana nas aulas da Escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, os tratados publicados
Felipes, destacam-se: Giovani Barrista Caira ti, Leonardo Turriano, Barrista Antonelli, Gaspar Sarnperc, Tiburcio
Spanochi, todos bastante atuantes sobretudo nas colónias. Cf. MO REIR.A., Rafael. O mgwheiro-mór e tl cirwf[l-
no século XVII pelos padres jesuítas encarregados do exercício da cadeira de Matemática da
ção das jóm1t1s no Império Português, in Port11g[lf e Flandres. Visões da Europa (1550- 1680). Lisboa, IPPC/Mosteiro
dos Jerónimos, 1992 (Cadlogo de Exposição), pp. 97-107.
37
MOREIRA, Rafael. A Arquitetura Militar, in op. cit., pp. 149-150. 'º MOREIRA, Rafael. Um tratado português de Arquitetum do séwlo XVI. Dissertação de Mestrado em
38 Cargo criado a partir de 1548, conforme MOREIRA, Rafael. O mgenheiro-mór e a circulação
História da Arte apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1982.
no Império Português, in op. cit., p. 100. Folhas 10 ell do tratado de António Rodrigues, transcrito na tese.
3'' ALBUQUERQUE, Luís de. A «Aula de Esfera" do Colégio de Santo Antão no Século XVII. Auais da
" Idem, fols. 47v e 49v do tratado.
AC(ldemia Portuguesa da História. Lisboa, 21, 337-391, 1972 e VITERBO, F. S. O Ewino dt1 Architectum, in 42
Idem, fols. 44v- 66v do tratado.
Dicionário histórico e documental dos arquitectos, engenheiros e comtrutoresportugueses. Lisboa, Imprensa Nacional/ 43
Idem, foi. 12 do tratado.
98 /Casa da Moeda, 1988, vol. II, p. VI. 44
Idem, foi. 29 do tratado. 99
A ICONOGRAFIA DOS ENCENHEIROS MfLITARES
UNIVERSO URBAN(STICO PORTUCUÊS

«Aula de Esfera» 45 do Colégio de Santo Antão, evidenciam progressivamente sua substitui- cosmógrafo João Teixeira AJbernaz, o arquiteto João Nunes Tinoco e o futuro engenheiro
ção pelos manuais neerlandeses. Merece destaque a presença de uma série de missionários e cosmógrafo-mor do reino Luís Senão Pimentel 5º.
contratados no estrangeiro, responsáveis pela introdução dos novos paradigmas, dentre os A contratação de importantes engenheiros franceses como Charles Lassart, Nicolau
quais sobressaíram-se o padre irlandês Ignacio Stafford 46
, responsável pela cadeira de ma- de Langres e João Gilot explica também a introdução dos tratados de Vauban, Antoine de
temática e fortificação entre 1630 e 1635, bem como seus sucessores, o padre flamengo Ville e Conde de Pagan no rol das leituras dos engenheiros militares portugueses. Quanto

João Cosmander (Sciermans) e o irlandês Simon Fallonio. a Monsieur Gilot, ao que se sabe, era filho de huguenotcs franceses refugiados na Holanda
Segundo Edwin Paar, o P.' Stafford, além de profundo conhecedor dos mais impor- e ex-aluno do mais importante estabelecimento de ensino da arquitetura militar dos Países
" tempo, como os de Nicola Tartaglia (1556-1560), Bonajuto
tantes tratados italianos ~o ;~·u Baixos - a Universidade de Leiden fundada em 1575 51 • Merece estudo futuro o tipo de
Lorini (1597) e Scala (1621), teria sido o possível introdutor dos tratados neerlandeses e ensino ministrado nesta instituição, sobretudo no que diz respeito à prática do desenho
franceses nas aulas do Colégio de Santo Antão, já que, ao que se sabe, era leitor dos trata- cartográfico.
dos do holandês Samuel Marolois (edição latina de 1633) e dos franceses Errard de Bar le Acreditamos que o contato com as escolas flamenga e francesa foi imprescindível
para o desenvolvimento da Matemática e ciências afins (incluindo-se aí geografia e
Duc (edição de 1620) e Antoine de Ville (1628).
4
Por sua vez, os padres João Cosmander e Simon Fallonio 7, além do exercício da arquitetura militar) em Portugal no século XVII. No entanto, cabe advertir que esse inter-
atividade de lentes de matemática e astronomia na Aula de J:,sfera, destacaram-se como câmbio foi de mão dupla. Segundo Chandra Mukerji 52 , no que diz respeito ao desenho
8
ativos engenheiros militares a serviço do rei. Coube inclusive ao P.' Simon Fallonio" exer- cartográfico, houve desde o século XVI um intenso intercâmbio entre Portugal e os Países
cer O cargo de «engenheiro-mor do reino» em 1642, por ocasião da guerra com Castela, no Baixos. Os desenhos portugueses, contendo preciosas informações referentes aos territó-
rios do ultramar, circularam seja na base do roubo seja na base da espionagem. Confor-
momento da Restauração do trono português.
Cabe lembrar que alguns ex-alunos do Colégio de Santo Antão destacaram-se na me dados fornecidos por Alfredo Pinheiro Marques 53, a obra de Luís Teixeira e do P.' Bar-
época pela qualidade da sua atuação, já que bastante ativos tanto na Metrópole como nas tolomeu Lasso - cosmógrafo e mestre de navegação do rei de Espanha (no período da
Conquistas do ultramar, a saber: os engenheiros Baccio di Filicaia" e Bartolomeo Zanit, o
9 união das duas Corôas) - foi amplamente utilizada nos Países Baixos. Os originais do
P" Lasso foram copiados por Petrus Plancius na elaboração do seu grande mapa (1592),
servindo posteriormente para ilustrar as edições do Itinerário de Jan Huygen Van Linschoten
"'ALBUQUERQ_UE, Luís ele. A «Aula ele Esfera» elo Colégio ele Santo Antão no Século XVIL Anés drt
Academia Portuguesa da História. Lisboa, 21 :337-391, l 972.
(1596). As cartas publicadas no Itinerário são cinco, e todas elas provêm dos originais
" Padre Ignacio Stafford. Varias Obras Mathematicas compuestas por el. P ~<:;1wcio Stafj(Jrd mestre de portugueses de Bartolomeu Lasso, copiados por Plancius. São três cartas do Oriente (ocea-
Mathematica En ef Colegio de S. Anton ele la Cornpa,tia de JESUS yno acavaclas por cauw de la muerte dei. Lisboa,
Anno 1633. Cf. PAAR, Eclwin. Luís Serrão Pimmtel and the 'Dutch school' ojji,rtijicatio11, 1995, p. 6. Este artigo,
no Índico, Costa Oriental Africana e Extremo Oriente) e duas cartas do Atlântico (Amé-
ainda não publicado, nos foi gentilmente fornecido pelo próprio autor. Eclwin Paar está preparando urna tese ele rica do Sul e África Ocidental). Linschoten esteve com os portugueses em Goa e ourras
doutoramento na Universidade ele Groningcn, Holanda, sobre as influências holandesas (ou flamengas) na
partes da Índia, desde 1583, regressando à Holanda em 1592. O seu livro e as informações
arquitetura militar portuguesa no século XVII. Agradecemos ao Paul Meurs por este precioso contato.
47 Cf. MOREIRA, Rafael. Do rigor teórico à 11rgbicia prática: a arquitetum militar, in História da Arte e1n que trouxera consigo foram de extrema importância para o início das navegações e con-
Portugal. O limiar cio Ba!1'oco. Lisboa, Alfa, 1986, v. 8, p. 69. quistas holandesas no Oriente, feitas em detrimento dos portugueses. Nos arquivos ho-
48 O p_c· Simão Fallónio é autor ela apostila «Matérias Matemáticas» e ele um «Cornpendio Especulativo elas
Esferas Artificial, Sublunar e Celeste», ambos localizados na Biblioteca Nacional ele Lisboa. Cf ALBUQUERQUE,
landeses encontramos ainda hoje exemplares manuscritos portugueses resultantes desse
L. Op. cit., p. 353. intercâmbio.
4''A biografia ele Baccio cli Filicaia é significativa, visto que ele atuou corno engenheiro-mor elo Brasil entre 1597
Por sua vez a recíproca é verdadeira, já que o sistema de representação aprimorado
e 1602. Filho de mercadores florentinos ele Lisboa, frequentou nesta cidade a Aula ele Esfera do Colégio ele Santo Antão
e estudou arquitetura militar, artilharia e cosmografia cm Plorença. Numa longa rnrta autobiográfica ele 30 ele agosto pelos holandeses no século XVII inspirou a partir de então a cartografia mundial, atraindo
ele 1608 conta ao Grão-Duque corno 11 ou 12 anos antes partira para o Brasil, onde (por morte do capitão Alexan-
dre?) o governador D. Francisco ele Sousa «mi ocupó cone! carico di ingegnero maggiorc di quello staro e anelando in
conpagnia á visitare tutto lo stato e sue forteze mi ocupé in reformare molte cli esse ct altri for fortificare cli nuovo, e
5
juntamente mi dcre i\ carico cli capitano d' arriglieria con el quale esercitai rnolri bonbardirei e acomodai tutta I' aniglieria Cf MOREIRA, Rafael. Do rigor teórico à urgência prática: a arquitectum militnr, in op. cit., p. 84.
"

cli dette Pi,12e forte». Após cinco anos de serviço (1597-1602 provavelmente) em que também dirigiu uma campanha
51
Cf. PAAR, Edwin. OJ,. cit., p. 9.
52
de exploração mineira cm S. Vicente, dedicar-se-ia por ordem do novo governador Diogo Botelho à conquista do MUKERJI, Chandra. «A New Worlcl-Picture: Maps as Capital Goods for the Modem World Systern»,
Cead e Maranhão, como smgcnto maggiore e capita.no di una compagnia na expedição de Pero Coelho ele Sousa in From Gravm Images. Problems ofModem Materialúm. New York, Columbia University, 1983, pp. 79-129.
53
(1603-4) e na missão elos jesuítas a Jbiapaba (1607), ambas frustradas tentativas ele chegar à Amazónia pelo interior. MARQUES, Alfredo Pinheiro. A influência ela Cartografia Portuguesa nos Países Baixos, in Portug,zl e
Conforme: MOREIRA, Rafael. O engenheiro-mór e r1 cirw!tzção das famuzs no Império Pvrtt1g11és, in Portugal e F!tmdres. Flandres. Visões ela liuropa (1550-1680). Lisboa, IPPC/Mosteiro dos Jerónimos, 1992 (Cadlogo ele Exposição),
100 Visões ela Ewvpa (1550-1680). Lisboa, IPPC/Mosteiro elos Jerónimos, 1992 (Catcílogo ele Exposição), p. 103. pp. 171-172. 101
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

inclusive o interesse dos portugueses. São exemplos desse intercâmbio de imagens, a repre- das do xvm, constituindo-se assim em documentos únicos de circulação bastante restrita,
sentação de Salvador publicada na obra jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, do não visando qualquer difusão em larga escala. Tais artefatos eram assunto de Estado e
P.' Bartolomeu Guerreiro, de autoria de Benedictus Mealius, datada de cerca de 1625, que basicamente destinavam-se ao engenheiro-mor - cujo parecer era imprescindível para a
provavelmente teria inspirado o desenho existente no Atlas do célebre cosmógrafo portu- execução de qualquer projeto - ou à Coróa, visando informá-la sobre as obras realizadas
guês João Teixeira Albernaz, datado de 1631 (Fig. 1). tanto nas Províncias do Reino como nas Colónias.
Em se tratando de uma representação simbólica do espaço real, tais desenhos não
Visando suprir a carêiy.;ia de profissionais nacionais, o que implicava na dependência apresentavam um código de domínio comum, cabendo a uma determinada categoria de
f!h .,,

exclusiva dos engenheiros estrangeiros remunerados com vultuosos salários, D. João IV indivíduos interpretá-los. Pressupunham portanto um produtor e um usuário capaz de
decidiu criar em 1641 a primeira instituição específica para o ensino da artilharia e fortifi- compartilhar de um mesmo saber, previamente estruturado em códigos e convenções. Os
cação, sediada primeiramente numa das salas do Paço da Ribeira - «Aula de Artilharia e manuais de arquitetura militar constituíam-se assim nos grandes veículos de difusão deste
Esquadria» - e transferida em 1647 para a Ribeira das Naus, com o nome de «Aula de saber e sua circulação restringia-se ao circuito das Academias Militares. Nas aulas, os mes-
Fortificação e Arquitetura Militar»; ambas encabeçadas pelo engenheiro Luís Serrão tres utilizavam-se das estampas publicadas no interior desses manuais, obrigando os alu-
Pimentel, ex-aluno do Colégio de Santo Antão. nos à copiá-las - procedimento didático que propiciava não só a assimilação das teorias
Seu tratado Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificaçoens das Praças Regulares, como das regras que presidiam a confecção dos desenhos. A análise do conteúdo destes
& Irregulares, Fortes de Campanha, e outras Obras pertencentes a Architectura Militar ... tratados é portanto fundamental para se caracterizar adequadamente O contexto cultural
(1680), concebido como apostila para orientar os alunos da Aula Régia, embora apresente de produção, circulação e consumo de tais artefatos no século XVJI!.

como referências básicas os atualíssimos tratados dos principais representantes da escola Para tanto, recorremos aos primeiros manuais publicados em Portugal sobre O
assun-
holandesa 54 (Mathias Dogen, Adam Freitag, Samuel Marolois) e francesa (Antoine de to, a saber: o Ti-atado do modo o mais ftzcil e o mais exacto de fazer as cartas geographicas, assim
Ville e Conde de Pagan), nada menciona sobre a prática do desenho. A introdução de uma de term como de mai; e tirar as planttts das praças (1722) e O Engenheiro Portuguez (tomo I,
disciplina específica sobre o assunto nas Academias de Portugal - tal como se fazia nas 1728), ambos elaborados pelo então engenheiro-mor do reino Manoel de Azevedo Fortes,
congêneres dos reinos do Norte - só ocorreria em princípios do século XVIII na gestão de designado, em 1720, membro da Academia Real de História encarregado das questões
Manoel de Azevedo f!ortes, sucessor de Luís Serrão Pimentel no posto de engenheiro-mor geográficas das Províncias do Reino e Conquistas.
do reino. Ao convocar Azevedo Fortes para o exercício de tal função, D. João V visava
No entanto, sabemos que Serrão Pimentel acumulou, ao longo do seu exercício pro- prioritariamente promover o mapeamento do território brasileiro de forma a fundamentar
fissional, as funções de cosmógrafo-mor (1647) e engenheiro-mor do reino (1663) 55 e que fot~ras negocia:ões com Castela, j,í que o mapa-mundi e a dissertação apresentados por
seu sucessor, ao assumir o posto de engenheiro-mor (l 720), foi encarregado de promover Gu11laume Del1sle na Academia Real de Ciências de Par1·s e'm 1720 - «D et erm111auon
· ·
a difusão dos conhecimentos geográficos. Ou seja, progressivamente o engenheiro militar Géograp~ique de la Situation et l' etendue des differentes parties de la Terre» _ aponta-
passou a assumir inclusive atribuições anteriormente legadas ao cosmógrafo. vam publicamente que a Colónia do Sacramento não fazia parte do território português
56
como se pensava • O resultado dos levantamentos franceses feitos por triangulação,
com latitudes e longitudes precisas, foram assim O sinal de alerta quanto aos foturos
~roblemas de soberania, obrigando o rei, ministros e técnicos a despertarem para a neces-
Capítulo 2: Manoel de Azevedo Fortes e a política ,~~,,,Ln~ sidade do estudo da geografia, deflagrando todo um processo de intercâmbio de homens,
de estímulo às atividades geográficas tratados, atlas e instrumentos entre Portugal e os centros divulgadores de modelos daquele
momento.
Diferentemente das cartas impressas nos Países Baixos, destinadas a auxiliar a atividade Visando suprir uma carência de manuais em língua portuguesa sobre a matéria e
mercantil, as plantas militares portuguesas permaneceram manuscritas até as últimas déca- necessitando constituir imediatamente uma equipe de trabalho orientada segundo um
método comum, Azevedo Fortes anunciou em maio de 1721, em sessão proferida na

54
PIMENTEL, Luís Serrão. Jvlethodo Lusitanico de Desenhar as Fortificaçoens das Praçm Regulares & Irregu-
lares . . 1680, p. 321.
102 55
Cf. PAAR, Edwin. Op. cit., pp. 7-8 e 18. '"CORTESÃO,]. Op. cit., pp. 273- 32l.
103
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

Academia Real de História, sua intenção de redigir um tratado sobre a teoria e a prática da dencia de Sua Magestade, que fez partido ao hum bom Desenhador, para instruir os Pra-
elaboração das cartas geográficas. ticantes da Academia Militar, entre os quaes se acha já hum bom numero, que imitaõ
Paralelamente, uma série de representantes da corôa portuguesa no estrangeiro pu- perfeitamente ao Mestre.
seram-se a servir o rei, transmitindo-lhe informações sobre as novidades científicas de «Como nesta materia se naõ acha nada escrito no nosso idioma, me pareceo seria de
maior interesse para os atuais desígnios da nação. Em março de 1722, D. Luís da Cunha naõ pequena utilidade, ensinar nesta Geometria a Pratica do Dessenho, e o que se deve
foi incumbido de adquirir uma cópia da dissertação de Delisle, bem como de estabelecer observar no risco das plantas Militares, para se poder fazer por ellas juízo das obras, que
contato entre o geógrafo francês e o cosmógrafo-mor português. No mês seguinte, o Mi- expreçaõ; porque como os Engenheiros saõ obrigados a dar aos Príncipes as plantas das
nistro de Haia, Conde del'Ti6uca, foi encarregado de comprar os melhores adas holande- obras das Fortificações, ou já feitas, ou projectadas, naõ devem ignorar as regras do Dessenho,
ses contemporâneos • 57 que saõ poucas, e faceis de perceber: porém naõ he taõ facil saber dessenhar huma planta
Em se tratando de uma questão premente e bastante delicada, ao invés de esperar os com primor, e ultima perfeiçaõ; porque requer genio particular, boa maõ, grande applicaçaõ,
resultados da ação de Azevedo Fortes, D. João V preferiu contratar, em Nápoles, João Batista e muito exercício; e assim nem todos os Engenheiros pódem ser bons Dessenhadores:
Carbone e Domingos Capassi, jesuítas astrónomos de profissão, que chegaram em Portugal porém devem saber as regras para julgar das obras, que se expressaõ nas plantas, e riscalas
em setembro de 1722. Até o momento efetivo da partida dos «padres matemáticos ao Brasil, segundo as mesmas regras, ainda que naõ com tanto primor.
com o intuito de realizar a primeira carta da Colónia com latitudes e longitudes precisas, «Nos Reinos do Norte, em que esta Arte se tem apurado, os Praticantes das Acade-
transcorreram-se sete anos (1729), período em que o rei montou um amplo Observatório mias Militares, que se destinaõ para a profissaõ de Engenheiro, começaõ pelo Dessenho; e
Astrônomico no Colégio de Santo Antão, visando dar suporte às primeiras experiências os que entre elles sahem bons Desenhadores, servem alguns annos com este exercicio,
nesse sentido. Cabe lembrar que, para equipar o Observatório com os instrumentos adequa- assistindo aos Engenheiros Directores das Províncias, para lhes riscarem as plantas, que
dos, a Corôa iniciou uma série de correspondências diplomáticas com seus representantes na projectaõ; e estas plantas constaõ sobre o papel de linhas, e aguadas.
Inglaterra e França, contatando membros da Royal Society of London e da Academia de «Neste Capitulo daremos recopiladamente o modo com que se deve riscar, e dar
Ciências de Paris para que confeccionassem os aparelhos necessários. aguadas nas plantas Militares, dando-lhe principio pelas regras, ou maximas, que se devem
Embora os serviços de Azevedo Fortes não tivessem sido utilizados num primeiro mo- observar.» 61
mento, sua atuação enquanto renovador e difusor das Academias Militares nas Províncias do Os tratados publicados por Azevedo Fortes, em 1722 e 1728, respectivamente, são
Reino e Conquistas
58 59 , bem como enquanto introdutor do ensino da prática do desenho no assim o resultado concreto do impulso de renascimento da ciência geográfica promovido por
programa das mesmas, acabou por formar uma nova geração de engenheiros-desenhadores D. João V e basicamente são uma síntese dos congêneres franceses Methode de lever les plans
·
capazes d e mtegrar . expe d'1çoes
as sucessivas ~ . ,e d emarcaronas
c1ent111Co- ' . 60 envia
• d
as ao Brasi·1 d u- et les cartes de terre et de me,; avec toute sortes d'instrumens, dr sans instrumens de Jacques
rante o século >,,'V!ll, legando-nos uma documentação iconogr,ifica primorosa. Ozamam62 (1693) 63 e L'Jngénieur ftançais ... , provavelmente de Naudin 64 (1696). Coloca-
No tratado O Engenheiro Portuguez publicado alguns anos mais tarde (1728), Fortes mos em paralelo os frontispícios dos tratados de Fortes e Ozaman, visto que, além da própria
analisa os resultados de tal iniciativa e complementa o Tratado do modo o mais facil de fazer estruturação do texto, apresentam basicamente o mesmo título (Fig. 2).
as cartas geogmficas ... (l 722), acrescentando um capítulo específico (cap. X, tomo I) sobre No que diz respeito à realização dos levantamentos em campo e preparação das plan-
as convenções referentes ao modo de riscar e aquarelar as plantas militares: tas militares, o índice do Tratado do modo mais fácil e exacto de fazer as cartas geograficas ...
«Esta Arte até o presente naõ tem sido praticada neste Reino, nem as suas regras (1722) atesta os procedimentos e instrumentos adotados (Fig. 3):
conhecidas, e só de sete, ou outo annos a esta parte se vay introduzindo, pela Real Provi-

61
FORTES, Manoel de Azevedo. O Engenheiro Portuguez, tomo], pp. 410-411.
62
57
Idem, p. 283. Localizamos um exemplar da edição de Paris, 1750, na Biblioteca Nacional de Lisboa (SA 3376P).
63
58 Conforme suas próprias palavras, foi responsável pela criação de duas novas Academias Militares no reino, Segundo Azevedo I'orres ... a este ultimo Author [... ]segui em muita parte, e naõ fiz escrupulo de copiar
uma em Elvas e outra em Almeida. FORTES, Manoel de Azevedo. O Engenheiro Portuguez, romo II, p. 433. aquilo, que me pareceu se não podia expor melhor. ln: Proemio do Tiataclo cio modo o mais facil, e o mais exacto de
59 No gue diz respeito ao Brasil, data de 19-08-1738 a criação da Aula do Terço de Artilharia do Rio de fazer as cartas geograficas, assim da terra, como do mar, e timr as plantas das Praças, Cidades, e edifícios com instru-
Janeiro, encabeçada por José Fernandes Pinto Alpoim e de 22-1-1752 a instiruição de uma Aula Militar em mentos, e sem instrumentos, para servir ele instrucçam a fábrica elas Carttls Geograficas ela Historia Ecclesiastica, e
Belém. Ao gue se sabe haveria desde c.1700 uma aula também na Bahia. Secular de Portugal. .. Lisboa, Oficina de Pascoal da Sylva, 1722.
6 °Consultar: VITERBO, Francisco de Sousa. l'.x;,ea1coes Ue'lltt,'1co-111111t,,res envitulas ao Bmsi!. Lisboa,
64
Localizamos dois exemplares do tratado de Naudin com o título L1ngénieur ftançais avec la methocle du
104 Edições Panorama, 1962, vol. I e li. ele Vaubtln, datados de 1696, na Biblioteca Nacional de Lisboa (SA 3081 P). 105
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

«Cap. I. Do petipé e das mais coisas necessárias para fazer as plantas ou as cartas É bastante significativo o fato de seu método ser citado inclusive no Termo de Demarcação
geograficas; Cap. II. Do círculo dimensório e do seu uso para tirar plantas ou cartas. do Terreno para ereção da Vila de Monte-mór o Novo da America, na capitania do Ceará
Problema I. Fazer sobre o terreno um ângulo de qualquer número de graus. Probl. II. Grande, datado de 17641,5:
Continuar uma linha reta sobre o terreno. Probl. III. Medir um ângulo inacessível com o «... e depois de ter examinado e visto todos os lugares da baixa d' ella, e ter assentado
círculo dimensório. Probl. IV. Sabida a distância entre dois pontos ou dois lugares sobre a o lugar que era mais conveniente para assentar e erigir esta futura villa, mandou virá sua
terra achar um terceiro ponto ou lugar sem o medir. Probl. V. Medir a distância entre dois presença Custodio Francisco de Azevedo, engenheiro de profissão e morador da serra dos
pontos inacessíveis. Probl. 'y'.l. Medir a altura duma torre a que se não pode subir. Probl. Coquos d' esta capitania, que para a dita demarcação mandou convocar, e como tivesse
VII. Medir uma altura tncli~ada ao horizonte. Probl. VIII. Medir uma altura a prumo vindo para a mesma demarcação, lhe ordenou trouxesse o instrumento chamado pranche-
sobre um monte. Probl. IX. Medir as posições ou fazer a carta dum terreno proposto; Cap. ta ou circulo dimensorio, e Antonio Gomes Freitas escrivão da vara do meirinho geral com
III. Do instrumento chamado prancheta; Cap. IV. Da prancheta circular moderna; Cap. a corda já encerada e capaz de medir qualquer terra com dez braças de comprido, como
V. Da bussola ou agulha de marear. Probl. I. Tomar os ângulos das fortificações ou quais- manda o novo methodo de fazer as cartas geographicas ... ».
quer outros com a bussola. Probl. II. Tirar as posições dum terreno com a bússola. Probl. Também o apêndice do Tratado de Ruação para emenda dm Ruas das cidades, víflas, e
III. Transferir ao papel as posições duma carta feita com a bússola. Probl. IV. Tirar com a lug11res Deste Reyno, de José de Figueiredo Seixas - pintor, arquiteto e mestre da Aula de
bussola as voltas, cotovelos e tortuosidades duma ribeira, dum caminho; Cap. VI. Do Riscar da cidade do Porto --, redigido provavelmente entre 1759 e 1769 61', apresenta
modo como se deve dar princípio à carta geográfica duma província ou bispado. Probl. menção explícita e cópia integral de parte do conteúdo do Tratado do Modo o mais jàcil e o
Descrever sobre o terreno uma linha meridiana ou linha de Norte a Sul; Cap. VII. Do mais exilcto de fazer as Cartas Geogmphicas, de Azevedo Fortes, o que reforça sua atualidade
modo de fazer as plantas sem instrumentos. Probl. I. Tomar o ângulo dum baluarte, dum também na Metrópole, cerca de quarenta anos após sua publicação, bem como a impor-
edifício, sem instrumento. Probl. II. Tirar sem instrumento a planta duma figura irregular. tância do desenho na formação do ruador 67 :
Probl. III. Tirar sem instrumento a planta duma figura em que se não pode entrar dentro «Nas Artes precizas para exercer o Ruador a sua ocupação será inteligente na Arquitetura
para lançar diagonais. Probl. IV. Tirar sem instrumento a planta dos lagos, matos fechados civil, assim theorica, como praticamente, sabendo traçar em papel quaesquer obras de
e outros terrenos semelhantes. Probl. V. Tirar sem instrumento a planta dum lugar com edificios mostradas em figura geometrica por planta, perfil e espaçado, e ainda terá bom
suas casas, ruas e edifícios e diagonais; Cap. VIII. Das cautelas com que se devem tirar as gosto em debuxar todos os ornatos e a escultura e intalha. E a qualquer obra de edificio
plantas das praças em paiz inimigo. Probl. I. Medir sem instrumento a distancia entre dois riscada geometricamente em papel, sabera fazer o orsamento, calcolamento do dinheiro,
ângulos flanqueados duma praça inimiga, ou qualquer outra distancia inacessível. Probl. pouco mais ou menos, que custará a fazer em obra verdadeira[ ... ] e tarnbem para medir os
II. Medir sem instrumento a largura dum rio. Probl. III. Medir a largura dum rio por meio campos que se hão de compensar em chãos e courelas. E para conseguir esta parte será
de dois paus desiguais. Probl. IV. Medir a distancia dum rio, lagoa ou outra qualquer bom contador na Arithernetica Dizima! e saberá os principais Problemas de Geometria
distancia semelhante sem instrumento algum. Probl. V. Saber a altura das muralhas duma pratica. E principalmente a Longimetria, que ensina a medir todas as linhas, e distancias
praça, sem as medir. Probl. VI. Saber a altura de qualquer corpo por meio da sua sombra; planas, profundas, e altas. E logo saberá tambern a planimetria, que trata de medir todas as
Cap. IX. Do modo com que se hão de tirar as cartas dos portos e costas marítimas. Apendix diversidades de figuras de superficies planas. Depois tambem estará prompto na
do modo de tirar as figuras das praças e edifícios, de outros quaisquer objetos em planta Esteriometria para saber medir todos os corpos, assim Regulares, como irregulares, saberá
para o borrador ou em perspectiva. Probl. I. Desenhar uma perspectiva pela quadrícula. a Metamorfose, ou Rededução de huas figuras em outras para converrer as superficies dos
Probl. II. Tirar uma perspectiva a olho sem quadrícula. Modo de iluminar e dar aguadas campos de qualquer figura, que sejão, à chãos, courelas Regulares, e ultimamente sabera a
nas plantas ou cartas geográficas.» Arte de edificar para poder dirigir quaesquer obras civis ... »
A novidade da obra de Azevedo Fortes reside na didática com que expunha o método
mais prático de proceder os levantamentos em campo, realizar a demarcação dos terrenos
e transpô-los para o papel, fruto da sua experiência pessoal e da síntese dos manuais fran- 65
O termo de demarca~-ão da Vila de Monte-mór o Novo da América está transcrito na obra de Paulo
ceses acima mencionados. É interessante ressaltar que seus tratados foram amplamente F. Santos. Formação de Cidades no Brasil Colonial, pp. 47-48.
66
consultados, tanto na Metrópole, como nas Colónias. Já pudemos constatar que em plena Conforme afirmações de MOREIRA, Rafael. «Uma Utopia Urbanística Pombalina: O "Tratado de
Ruação" de José de figueiredo Seixas», in SANTOS, Maria Helena Carvalho dos. Pombtd Revisitado. Lisboa,
segunda metade do século XVJII a obra de Azevedo Fortes continuava atualíssima, constituin- Editorial Estampa, 1984, v. 2, p. 141.
106 do-se em referencial básico no levantamento e demarcação dos terrenos de longa distância. "Parte introdutória do Apêndice deste tratado. 107
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊ,S A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

Capítulo 3: A arquitetura visual das plantas militares do século XVIII de quarenta e cinco gráos; e se deve advirtir, que ainda que a reprezentaçaõ da perspectiva
militar, ou cavalheira seja naturalmente impossível (por não poder a força da vista alcançar
Para uma análise dos diferentes níveis de representação das plantas militares do século huma distancia indefinita sem perder os objectos), esta supposiçaõ naõ deixa de produzir
XVIII,
68
partimos da metodologia de desconstrução proposta por Christian Jacob. Este autor hum bom effeito, que he o de conhecer distintamente o que por ella se representa.,/ 1
parte do pressuposto que as cartas são objetos culturais, onde coexistem e se justapõem No âmbito das representações cenográficas, incluía-se não apenas a representação em
diferentes códigos figurativos. Esta intertexrualidade pressupõe uma estudo análogo à análise perspectiva de edifícios mas também as cartas topográficas de vilas e cidades, merecendo desta-
morfológica e sintática de um texto. As particularidades gráficas revelam determinadas esco- que, nesse sentido, as instruções fornecidas no apêndice do Tratado do modo o mais facil. .. :
"' de mundo, um estado do conhecimento científico e do pen-
lhas culturais, uma con<'epçâo «Apendix do modo de tirar as figuras das praças e edifícios, de outros quaisquer
samento. Refletem ainda as convenções estéticas do seu tempo - códigos de figuração, objetos em planta para o borrador ou em perspectiva. Probl. I. Desenhar uma perspectiva
repertório de motivos, paleta cromática partilhados com as outras formas de artes gráficas. pela quadrícula. Probl. II. Tirar uma perspectiva a olho sem quadrícula. Modo de iluminar
e dar aguadas nas plantas ou cartas geográficas ... »72
Interessa-nos particularmente analisar este apêndice, na medida em que nos for-
3.1. Os diferentes modos de representação nece pistas importantes quanto aos procedimentos empregados na elaboração dos pros-
pectos. Segundo Fortes, estes eram fundamentalmente realizados com o auxílio de uma
Segundo Manoel de Azevedo Fortes, baseado seguramente em Vitrúvio, são três os quadrícula:

modos de representação de um objeto: «A Quadricula he huma grade, ou caixilho de madeira de quatro palmos e meyo de
«A Ichnografia he o modo de reprezentar huma fortificação segundo o plano que comprido, e tres de largo, e feita em boa esquadria; os quatro lados furados com furos
ocupa sobre a terra, conciderando a fortificaçaõ cortada junto do alicerce por hum plano miudos, e muy igualmente distantes huns dos outros, para passar por elles varios fios,
parallelo ao plano do horizonte, ou ao lível da campanha, ou tambem considerando pelo ficando huns horizontaes, e outros perpendiculares; os quaes fios formaõ hum grande
pensamento a fortificaçaõ levantada no ar, porque assim deixaria na terra os vestígios don- numero de quadradinhos perfeitos, e he tudo o que consta,
de fora tirada, e se conheceriaõ os comprimentos, larguras, e angulos: a este modo de «Para tomar a perspectiva de qualquer objecto se poem esta quadricula sobre hum pe
reprezentar se chama propriamente planta de uma fortificaçaõ.»" 9 na altura, que parecer de sorte, que olhando por elle, se veja o objecto, que se quer tirar em
«A Orthographia he o modo de reprezentar as alturas, e as grossuras das partes de perspectiva: e a palmo e meyo de distancia da quadricula se suspenderà hum circulo de
huma fonificaçaõ: como se concideracemos que huma fortificaçaõ he cortada por hum papelão delgado, que póde ser prezo à mesma quadricula por hum arame grosso, e poderá
plano perpendicular à sua baze, o cone mostraria a groçura, e altura das suas partes: este ter meyo palmo de diametro, e furado no meyo com hum buraquinho, e se puder ser, de
modo de reprezentar he o que propriamente chamamos perfil, e he o que dá hum perfeito modo, que se possa pôr em differentes situaçoens; mas em huma mesma vista deve estar
conhecimento, ou das obras já feitas, ou das que se intentaõ fazer.» º 7 firme, e no mesmo lugar.
«A Scenographia he hum terceiro modo de reprezentar huma forticaçaõ muy usado «No papel, ou borrador, em que se quer tirar a perspectiva, se terá riscado com lapis
dos Engenheiros dessenhando de tal sorte as obras que de hum jacto se lhe conheça a huma quadricula de outros tantos quadradinhos, e olhando pelo buraco do papelão para os
planta, e o perfil, ou elevaçaõ. objectos, que apparecem cada hum em seu quadrado, e sempre no mesmo lugar; porque o
«Este modo he huma specie de perspectiva chamada militar, ou cavalheira, em que as olho naõ póde mudar a respeito do buraquinho, em que se terminão todos os rayos visuaes;
cousas representadas naõ alteraõ as suas proporsições [sic], e nisto se destingue da perspec- e assim se vão desenhando nos quadrados do papel os objectos relativos aos da quadricula, e
tiva rigorosa, que representa as cousas, naõ como saõ, se naõ como paresem à vista, e na postos todos em seus lugares: as mais miudezas se podem aperfeiçoar à vista.» 73
qual se alteraõ as proporçoens das grandezas, e a quantidade dos angulos. Em suma, tratava-se do método proposto por Dürer no século XVI.
«Para conseguir esta perspectiva militar he necessario suppor, que a fortificação he vista É interessante observar que no título do Prospeto da Vila de Vitória,.. (1769), stct

de huma distancia indifinita, e que o raio vizual faz com o plano da campanha hum angulo autor, o engenheiro militar José Antonio Caldas, atesta o emprego de um instrumento

71
68 Idem, voL II, pp, 27-28,
JACOB, C. Op, cit., pp, 141-143,
72
69 Idem, tomo II, p, 27, Cf. CORTESÃO, Jaime. Op, cit,, p. 285,
108 70
Idem.
73
Tratado do modo mais Jtícil .. , pp. 184-185, 109
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

mais sofisticado para tal fim: a camt1ra obscura74 . De qualquer forma, a quadrícula devia ser &c., e tudo o referido, e o mais que se achar, deve ser configurado em suas justas distan-
o método mais fácil, menos dispendioso e portanto mais difundido e utilizado, o que cias, e posições.,,n
provavelmente explique a inexistência de menção à câmara-escura no tratado de Azevedo [... ]
Fortes. «As ravinas[ ... ] a sua figura se risca de tinta da China, e se lava de aguada de tabaco,
No âmbito das cartas topográficas, ·Fortes menciona também a vista de pdssr1ro como ajudada de hum pouco de vermelhaõ, e suavizada para o meio, como nota a letra D.»7 7
mais uma entre as categorias de representação: [... ]
«Ainda que o dessenho naõ seja perspectiva nao deixa de representar de algum modo «Os pumares se riscaõ com arvores iguaes, e igualmente compassadas humas de outras,
0 levantado, por exemplíi/s dos montes, e o profundo dos valles, mas de hum plano, de no que só se destinguem dos olivaes, e arvoredos, que naõ guardaõ regularidade: as letras
forma que se póde conhecer a superficie da terra, que os montes occupaõ: a este modo de HH, mostraõ a forma dos pumares: a letra I mostra hum olival; e as letras K, mostaõ a forma
representar chamaõ vista de passara, porque se suppoem vistos do ar, e as sombras nas dos bosques, ou arvoredos: as arvores se riscaõ de tinta da China, com penna bem delgada: o
plantas são necessarias como na pintura, principalmente nas elevações, e assim he preciso, corpo da arvore he de figura ovada maspontuda, a que se accrescenta hum pé curto com
que O Dessenhador concidere a parte dondo vem a luz; e ainda que se póde suppor vir de huma rabisca curta e delgada da parte opposta à luz: o corpo da arvore se lava de huma
qualquer parte, he melhor suppor, que vem da parte esquerda do papel, para que as som- aguada de meia tinta de verde-bechiga, ou verde-lírio, e depois da parte opposta da luz ...
bras fiquem todas da outra parte, oppostas à luz, como adiante diremos.,, 75 [... ]
Enquanto O Engenheiro Portuguez concentra-se em tratar das representações topo- «Os olivaes naõ differem dos bosques nas aguadas dos terrenos; porém as arvores saõ
gráficas, o Tratado do modo mais fiícil. .. enfoca as cartas geográficas, orientando os discípu- maiores, e quasi equidistantes humas de outras, particularmente nas terras planas em que
los quanto ao método mais fácil e exato de fazer levantamentos de terrenos de longa dis- saõ postas a cordel, excepto nos terrenos montuosos, em que differem pouco dos bos-
tância e transpô-los para o papel. ques ... )) 78
«Nas plantas inteiras, de que a Estampa 9 mostra huma parte, se dessenhaõ tambem
as casas, e ruas, que ficaõ dentro do seu recinto, e de fora as obras exteriores, que tem: as
3.2. As convenções quanto aos grafismos, cores e figurações empregadt1s cazas se riscaõ, e lavaõ de carmim, e como Armazeins, Corpos de guarda, Quarteis, Vedorias,
nas cartas geogrdficas Casernas, &c. e o mesmo se entende dos mais edificios, e casas da Architetura Civil, e em
tudo se deve observar, a respeito das linhas, o que fica dito, riscando sempre delgadas as
Diferentemente do desenho fruto da pura contemplação, as plantas militares aten- que forém expostas à luz.
dem a finalidades bastante precisas. Sendo impossível representar de forma naturalista «O vaõ das casas, e edifficios se póde lavar de huma meia tinta de carmim igual por
grandes extensões do território, foi necessário desenvolver um sistema de códigos para toda a parte; porém ficaõ mais engraçadas as plantas, dando-lhe huma aguada de tinta
viabilizar o entendimento daquilo que interessava ressaltar. É nesse contexto que foram inteira de carmim, adoçada por meio do vaõ: as ruas naõ levaõ aguada, e se deixaõ na
elaboradas, ao longo dos séculos XVI e XVII, as seguintes convenções, assim apresentadas no mesma cor do papel, como também os pateos, como mostraõ as letras A, e B: os quintaes,
capítulo X do tomo Ido Engenheiro Portuguez (1728) de Fortes: hortas, e jardins, que houver se devem notar as plantas, que se riscaraõ, e lavaraõ do modo,
«Quando o Príncipe manda tirar a planta de huma Praça, para por ella se poder fazer que aodiante diremos.» 79
juízo da sua força, segundo o terreno, que occupa com as suas obras, e o que tem arroda do [... ]
seu recinto em distancia dos tiros de Artilharia; alem do dessenho da Praça até a explana- «As hortas se riscaõ com a regoa sobre o papel, sem a aguada dara dos montes, terras
da, deve o Engenheiro Dessenhador configurar tambem o terreno, e nisto mostra mais a lavradas, a respeito da brancura, em que devem ficar os caminhos, fazendo os canteiros em
sua habelidade; porque lhe he necessario mostrar os montes, os outeiros, ou emminencias paralelogramos desiguaes, ou quadrados, de sote, que naõ affecte a regularidade dos jardins ... »80
do terreno, os valles, os arvoredos, as vinhas, as hortas, os casaes, que houver, os caminhos, [... ]
as quebradas, as ravinas, as pedreiras, os moinhos de agoa, ou de vento, as terras lavradas
76
Idem, ramo I, p. 431.
77
Idem, p. 434.
74
Sobre a câmara-escura, consultar ALPERS, Svedana. E! arte de describir. lil arte holandês en e! siglo XV!I. 78
Idem, p. 435.
Madrid, Hermann Blume, 1987. 79
Idem, tomo], p. 429.
110 75
Idem, p. 424. 811
Idem, p. 438. 111
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES

«O dessenho dos jardins, quanto aos canteiros, naõ differem do dessenho das hortas, aparecia representada por meio de pictogramas (sistema primitivo de escrita no qual as
se naõ na regularidade, e semetria.» 81
idéias são expressas por meio de desenhos das coisas ou figuras simbólicas), ideogramas
[... ] (sinal que não exprime letra ou som, mas diretamente urna idéia, tal corno os algarismos)
«Os prados se dessenhaõ dando em toda a sua extençaõ huma aguada unida, em meia e símbolos gráficos (tramas, variação de valor). Esta esquematização simbólica pressupu-
tinta sobre clara de verde-lirio; e depois com huma penna bem fina, molhada em tinta da nha a uniformização das convenções para que se tornassem apreensíveis nos diferentes
China se daraõ varios pontos ao comprido, dous a dous, ou tres a tres parallelos à baze da locais culturalmente afins.
planta, como mostraõ as letras P.» 82 Segundo Ulla Ehrensvard 84, ao longo dos séculos XVI e seguintes a cor, como qualquer
Também os projetos eclifícios ou obras pautavam-se sobre certas convenções, a outro código, perde progressivamente sua fimção decorativa, restringindo-se à sua dimensão
saber: puramente informativa. Os primeiros manuais sobre o assunto foram publicados na Itália,
«l Toda a obra de pedra, e cal nas Fortificações, que chamaõ alvenaria, se deve riscar, depois na Inglaterra, Holanda e França. Na Inglaterra estes vincularam-se à prática dos agri-
e lavar, ou dar aguada de vermelho. mensores responsáveis pelo levantamento e cadastramento das propriedades fundiárias lo-
«2 Toda a obra de terra, se deve riscar, e lavar de preto. cais-, entre os quais destacaram-se o de John Norden, Surveyor's Dialogue, redigido em 1607;
«3 Toda a obra em projecto para executar, se lava de amarello. Se o projecto naõ he o de A. Rathborn, The Surveyor, publicado em 1616; o de W Cuningham, Feudigraphit1, e o de
rezoluto, as linhas saõ de pontinhos com a aguada de amarello. Leybourn, The Cornpleat Survey01· 8'. Estes manuais86 são interessantes, pois apresentam toda
«5 A obra de pedra e cal arruinada se risca de linhas pontuadas de vermelho, e aguada uma metodologia de desenho das cartas topográficas, incluindo dicas quanto à preparação das
do mesmo. cores, sugestões quanto ao suporte, etc. Complementavam esses manuais ingleses de agrimen-
«6 As obras de terra arruinadas, se riscaõ de linha se pontinhos em preto, e aguada de
sura, alguns tratados específicos sobre aquarela publicados na França e Inglaterra, mesclando
tinta da China.
questões relativas à pintura a questões específicas da cartografia, a saber:
«7 A, linhas pontuadas de vermelho se devem usar para denotar os subterraneos do livel
GAUTIER, H. L'Art de lave,~· ou, nouvelle rnaniêre de peindre sur le papier. Lyon,
da Campanha para cima, e as pontuadas em preto do livel da Campanha para baixo; o que
1687.
facilmente se conhece pelos lugares em que se achaõ.
SMITH, John. «The Whole Art and Mistery of colouring maps and others Prints in
«8 As obras de qualquer qualidade, que sejaõ devem ser lavadas com tinta mais forte
Water Colours», in The Art ofPainting in Oy!, 3.ª ed., 170 l.
para a parte de cima, do que para o pé: masesta tinta deve ser deminuida, ou adoçada
Cabe lembrar que a partir do século XVIII a cartografia perde definitivamente o caráter
insencivelmente para o pé da obra.
decorativo em benefício da precisão científica. Neste contexto, acirra-se o debate sobre a ques-
«9 Em tudo que he mar, rio, ribeira, se deve dar aguada adoçada de verdete liquido,
tão das cores nos mapas que passam a reduzir-se ao mínimo, restringindo-se definitivamente
chamada aguada de rios.
aos aspectos funcionais e informativos. Esta campanha em prol de um realismo ou colorido
«1O Os foços secos se lavaõ de cor de terra diminuída, e havendo refocete, se deve
purista é amplamente encabeçada por Johann Hubner, autor do Museurn Geographicurn, publi-
riscar por duas linhas parallelas, e huma aguada cor de terra em meia tinta.
cado em 1726 em Hamburgo. O emprego de um código pressupõe sua estabilidade (para
«11 Os caminhos, as ruas das praças, ou das hortas, os jardins, os pateos, e tudo o
mais, que he descuberto dentro das Praças, se deve deixar com a brancura do papel. viabilizar sua assimilação) e portanto implica na uniformização de estilos. Estes manuais, entre

«12 Os Templos, Igrejas, Ermidas &c. se lavaõ em todo o seu vaõ de huma tinta inúmeros outros, contribuíram para tal processo de uniformização.
inteira de carmim, para destinçaõ de quaesquer outros edificios; e se o ponto da planta o Assim como as cores e os grafismos, a luz e a sombra também estavam convencionados
premitir, se lhe deixará huma Cruz no altar mor, formada de linhas de tintas da China. na obra de Azevedo Fortes (Fig. 4):
«Essas saõ as maximas, ou regras principaes, estabelecidas por convençaõ dos melho- «Os rios, e ribeiras se riscaõ com duas linhas de tinta da China, huma mais grossa, e
res Dessenhadores da Europa: as menos principaes severaõ no discurso deste Capitulo.» 83 outra delgada; a mais grossa da parte, que lhe naõ dá a luz, e a mais delgada da parte, que
Não se tratavam de convenções portuguesas, mas fundamentadas nos principais
manuais da Europa do mesmo tipo. Os motivos estavam convencionados e a natureza
84
EHRENSVARD, U. «Color in Cartography: A historical Survey», in WOODWARD, David. Op. cit.,
pp. 123-146.
85
81
Idem. Localizamos uma quarta edição deste manual, publicada em Londres em 1679, na Biblioteca Nacional
82
Idem, p. 439. de Lisboa (SA, 1456).
112 83 Idem, p. 412.
86
NUTI, Lucia. Op. cite, pp. 24-27. 113
A ICONOGRAFIA DOS ENGENHEIROS MILITARES
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

Quanto à figuração, se era abundante nas cartas do século xv e XVI - funcionando


lhe he exposta; e para que naõ haja equivocaçaõ se deve notar, que vindo a luz da parte
como meio de preeencher os espaços vazios que representavam o desconhecimento - ,
esquerda da planta, a mesma linha da borda da ribeira da parte esquerda he a que se deve
desaparece quase que completameme nas plantas militares do XVII e XVIll, restringindo-se
assombrar; porque ainda que fica da parte da luz lhe he opposta, por causa da altura da
sumariamente aos cartuchos.
margem do rio, ou ribeira, e a linha da outra parte fica exposta à luz.» 87
Na carta geográfica, corográfica ou topográfica, assim como nas cartas nciuticas, era
3.3. As inscrições
também obrigatória a introdução da rosa-dos-ventos ou da flor-de-lis, para orientar o
desenho, bem como do petipé para conferir-lhe uma escala. Azevedo Fortes adverte quan-
A parte escrita dos mapas restringe-se ao título, topónimos e legendas. Quanto a essa
to a necessidade desses~lefrlentos e quanto sua melhor posição:
dimensão do desenho, Azevedo Fortes apenas sugere a posição mais adequada para colocar
«Se as plantas forem particulares, como de huma tenalha de Fortificaçaõ, de huma
tais elementos. O título - nível de informação adicional que prepara a compreensão do
coroa, de hum hornaveque, de hum só baluarte, ou revelim, como também de hum só
documento, definindo sua natureza, deveria ocupar a parte superior do desenho. ]éí a
edificio Civil, naõ be necessario orienta-las pondo-lhes huma flor de liz, ou linha Norte
legenda «lugar da explicação» - poderia ser colocada tanto do lado direito, como do
Sul: porém sendo plantas inteiras, como de huma Praça, e seu terreno àrroda, ou qualquer
esquerdo, segundo o desenho, podendo inclusive ocupar a base da planta (Fig. 5).
carta Topographica de grande, ou de pequena extençaõ, sempre se deve orientar.
Segundo Christian Jacob, as legendas desempenhavam um papel fundamental nos
«Chamamos orientar huma planta, po-la de sorte, que se conheça a parte que olha ao
mapas do século xvm. A legenda era o que se lia, em oposição ao que se via. Ela trazia um
Norte, a que olha ao Sul, a que olha ao Nascente, e a que olha ao Poente; o que se consegue
conjunto de informações que excediam o conteúdo da toponímia e do título. A legenda
pondo-lhe huma flor da liz na direcçaõ da linha Norte-Sul daquelle lugar: e isto se faz com
dizia o que não era representável ou o que exigia, de urr,a maneira ou de outra, uma
huma bussola no terreno, e vendo as partes da planta a que corresponde a linha Norte-Sul,
tradução verbal. Tal como diz Azevedo Fortes, ela era o «lugar da explicação», lugar onde
emmendando-lhe a variaçaõ, ou fazendo huma merediana, do modo que ensinamos, no livro
terminava a utopia de uma linguagem visual, de uma simbologia gráfica imediatamente
das Cartas Geographicas.
inteligível e legível por todos, sem que fosse necessário recorrer à tradução verbal. A legen-
«Se na planta houver algum braço de mar, ou rio grande, he o lugar proprio, para
88 da oferecia uma série de equivalências entre os símbolos gráficos e a linguagem ordirníria,
nelle se colocar, a rosa dos ventos ... »
explicitando um liam e que podia ser mais ou menos evidente, segundo o grau de mimetismo
[... ]
ou abstração do símbolo.
«Toda a planta grande, ou pequena, deve ter seu petipé feito de modo que dicemos
A linguagem verbal (sobretudo os topónimos) foi progressivamente substituída por
no Capitulo precedente: o seu lugar he junto à baze da planta, ou por baixo do título, ou
signos convencionais, pictogramas e símbolos gráficos (trama, variação de valor, etc.).
este se ponha na parte superior da planta, ou por baixo da baze, sendo que os títulos das
A transição entre as cartas invadidas pela escrita (típicas do século xv e xvr) - clamando
plantas, sempre parecem melhor na parte superior, do que na inferior.» 89
mais pela leitura que pelo olhar- para aquelas que privilegiavam a visibilidade à lisibilidade,
No que diz respeito à ornamentação dos desenhos, Fortes pregava uma certa sobrie-
impondo ao desenho uma certa economia gráfica, é fruto de uma longa trajetória histórica
dade. Para o enquadramento das cartas, legendas e títulos, sugeria a elaboração de linhas
de três séculos.
retas de diferentes espessuras, excluindo os tradicionais cartuchos ornamentados. No en-
tanto, havia uma certa liberdade na ornamentação, desde que não comprometesse a di-
mensão informativa do desenho. A maioria das plantas militares portuguesas do século
XVIII apresentava uma aplicação moderada da ornamentação, que basicamente restringia-
-se à área do título e legendas. Os ornamentos empregados enquadravam-se na estética do
Conclusão: O discurso indireto das plantas militares
período, havendo uma estreita homologia entre os cartuchos dos mapas e os motivos deco-
Todas as virtualidades informativas deste importante instrumento de comunicação su-
rativos da arquitetura ou do mobiliário dos edifícios que lhe eram contemporâneos 9º.
gerem uma espécie de metáfora da ocupação e exploração do espaço real, com seus avanços
sucessivos'Jl. A análise das séries conexas de desenhos nos permite entrever, através da ima-
87
Idem, p. 439. gem, os diferentes momentos da política de colonização portuguesa. A leitura das entrelinhas
"Idem, tomo I, pp. 449-450.
89
Idem, tomo I, p. 451.
114 90
91
JACOB, C. Op. cit., p. 329. 115
Sobre o assunto, consultar ÁVILA, Cristina. Op. cit.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

do discurso visual é necessária, já que nos possibilita verificar o grau de manipulação a que se
prestaram tais objetos, utilizados como meios de persuasão, sedução e por vezes ilusão.
As negociações dos tratados de limites evidenciam este caráter retórico das plantas militares,
já que em grande medida fundamentaram-se nos levantamentos sobre papel realizados pelos
engenheiros militares, muitas vezes simulando informações, alterando limites territoriais, de
acordo com os interesses envolvidos.
Neste contexto de expansão dos tentáculos do império português nas entranhas do
Brasil, a figura do engerthd;b com prancheta e compasso na mão é bastante significativa.
Mais do que qualquer arma de fogo, era o desenho um dos mais eficazes mecanismos de
conhecimento, apropriação e controle do território; único veículo capaz de fornecer ao rei a
medida do seu império. A posse concreta fundamentou-se amplamente nestas folhas de
papel, já que marcos de pedra ou batalhões de engenheiros seriam insuficientes para garanti- Fig. 1 - Planta da Restituição da Bahia, Atlas de João Teixeira Albernaz, 1631, Mapoteca do ltamaraty, RJ.

-la face à vegetação profusa dos trópicos e à imensidão do nosso território. Daí sua importân-
cia ao longo destes três séculos. j ETHO E
RAT DO ·,, ,-1_{ DE LEVE!\
DO MODO 0/.IAIS F,·\CJL, 1
e o rn:i1s cxaélo de fazer
1 LES PLANS
ASCARTAS
GEOGRAFICAS, 1 LES C/1.R TES
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Fig. 2 - Frontispício, Instituto da Biblioteca Nacional do Livro, Lisboa.

Fig. 3 - Instrumentos e procedimentos empregados nos levantamentos geográficos,


Manuel de Azevedo Fortes, Biblioteca do SPHAN, RJ. O Engenheiro Portuguez, tomo 1, Lisboa,
116
Officina de Manuel Fernandes Costa, 1728, Estampa n. 0 7. 117
GEOMETRIA BÉLICA:
CARTOGRAFIA E FORTIFICAÇÃO
NO RIO JANEIRO SETECENTISTA*

ROBERT CONDURU
Universidade Estadual do Rio de janeiro
e Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro
Fig. 4 - «Plano da Capital de Villa Bella do Matto Groço ... 1777», Casa de Insua, Castcndo, Portugal.
Observar o emprego correcto das sombras, da posição da rosa-dos-ventos e elo petipé.

Fig. 5 - «Planta ele Vila Boa Capital da Capitania Geral de Goyás, levantada no ano de 1782, pelo lllmo.
e Exmo. Snr. Luís da Cunha Menezes, Governador, e Capitão Geral da mesma Capitania, Manoel Ribeiro
118 Guimarães fes.», 1782, Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, n. 0 85 do catálogo Alberto Iria. * Texto inédito entregue para publicação em 1997.
I

cidades podem surgir do acaso, de uma situação fortuita e até mesmo de um capri-
cho; ou não, podem ser criadas por razões bem precisas, por determinações e causas. Entre
estas razões pode estar a necessidade de ocupar um determinado lugar. Este tipo de cidade,
que surge e se desenvolve condicionada por determinado sítio geográfico, aponta para o
vínculo entre história e geografia, entre tempo e espaço, para o fato de que algumas fim-
ções inerentes à cultura humana em um dado momento implicam na ocupação de um
ponto exato na superfície da Terra e não de outro alguns poucos ou muitos quilómetros
adiante. O Rio de Janeiro, Niterói, bem como o urras cidades, pertencem a este grupo, cuja
razão primeira de existência é um acidente geográfico - a necessidade e a vantagem de
ocupar a baía de Guanabara as fez surgir.
A baía de Guanabara adequa-se totalmente à definição geográfica de uma baía: uma
pequena porção de mar, de boca estreita, que se alarga para o interior e entra fundo pela terra.
Assim, geograficamente, é um espaço intermediário, uma bacia onde desaguam os rios que
encontram por fim o oceano Atlântico. Em termos é a encubadeira da cultura
carioca. Certamente, é um lugar como tantos outros no globo terrestre - um ponto geográ-
fico em uma rede de fluxo constante-, mas é também um ponto de aglutinação - espaço
em si; um lugar cuja cultura é produto igualmente do trânsito e da condensação.
Algo que deriva de sua função inicial como porto de escoamento de matéria-prima
no mundo do mercantilismo. lógica portuguesa de exploração dos territórios ultramari-
nos necessitava de portos escoadouros defensáveis, levando à organização estratégica da
costa brasileira. Neste sentido, além da necessidade de acabar com a ocupação francesa na
baía de Guanabara, havia vantagem em ocupar este sítio fundando uma cidade: esta bacia
tanto servia como porto de alta qualidade quanto se apresentava como um ponto geográ-
fico favorável à defesa do território. Um lugar que, no mundo marítimo de saques e inva-
sões, aparecia como lugar de proteção.
Sobressai, assim, a questão da guerra; a lógica de conquista e defesa de territórios no
mundo do mercantilismo indica a razão das lutas por esta baía e de sua ocupação. E aponta
para a polaridade entre o religioso e o militar na colonização do Brasil, algo que se observa
desde o início da ocupação, mas que se intensifica no século XVIII.
Além da documentação escrita, a questão da guerra pode ser estudada com dois tipos
privilegiados de objetos iconográficos: os mapas e as fortificações. O estudo dos mapas e 121
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS GEOMETRIA BÉ,LICA

das fortificações garante um acesso especial à cultura militar, a suas especificidades e seus do, junto com as igrejas e os conventos, configuravam as principais referências construídas
desdobramentos no ambiente cultural carioca da época. De instrumentos práticos que da cidade em oposição às referências naturais. Mais do que a situação atual indica, as
possibilitaram a conquista, a garantia da posse e a colonização deste ponto do território, edificações militares, assim como as religiosas, são elementos fundamentais para melhor
chegaram a ser monumentos, já no século X)C, ao se tornarem peças de museus históricos e compreensão da situação urbana do Rio de Janeiro setecentista.
arquivos documentais, os primeiros, e obras tombadas pelo Serviço de Património Histó- O recurso aos mapas da época exatamente permite observar a especificidade desta
rico e Artístico Nacional, as últimas. Contudo, o historiador que elege estas fontes como situação. As fortalezas, baterias e redutos, em paralelo aos conventos, mosteiros, igrejas,
objetos de trabalho não deve simplesmente dessacralizá-las, fazendo-as retroceder de mo- capelas e oratórios, balizavam o fluxo da vida na cidade no século XVIII: as edificações
numentos à condição det:lot'~mentos; deve, sim, tratá-las simultaneamente como monu- religiosas marcando o compasso do cotidiano tempo da fé- com os ritos e cerimónias
mentos e documentos, podendo, assim, superar uma possível divisão de campo que existi- devocionais, as militares determinando o ritmo da excepcionalidade tempo da guer-
ria entre a nova história praticada com fontes iconográficas e a tradicional história da arte. ra - quando dos ataques e ameaças de invasão. Funções que se invertiam, pois os mostei-
Recorrendo à possibilidade destes objetos falarem tanto da classe de objetos a que perten- ros tinham papel determinante como fortificações temporárias nos momentos de contur-
cem quanto do momento e do lugar em que surgiram, pode chegar à história social da bacão e as fortificações auxiliavam na manutenção da ordem citadina ao funcionarem
cultura desenvolvida às margens da baía de Guanabara e, também, esclarecer sobre as como prisões. Imagens na paisagem, as edificações religiosas prometiam a proteção celeste
práticas da cartografia e da fortificação em particular e em suas relações com a história da enquanto as militares simulavam a paz terrena, aludindo à segurança em seus sentidos real
arte e da ciência. e virtual. Entre badaladas de sinos e tiros de canhões corria o medroso burburinho carioca
Assim como o oceanólogo que participa do projeto de despoluição da baía se depara setecentista.
com objetos e seres que deterioram a vida na baía, também o historiador que põe a baía de Essa polaridade obedecia à lógica de colonização adotada pela Coroa portuguesa no
Guanabara na mira do olhar deve lidar com objetos de estudo deteriorados: pranchas de Brasil, a qual determinou a razão planificadora da ocupação física do Rio de Janeiro. Como
desenho amarelecidas e fragmentadas, edifícios destruídos ou em ruínas. Para o historia- se pretendia a exportação de riquezas naturais ou de bens agrícolas cultivados, era funda-
dor, o quadro pretérito delineado pelos documentos é turvo como a as águas poluídas da mental o desenvolvimento de portos escoadouros de matérias-primas. A ocupação do Rio
baía de Guanabara hoje: os fungos, as manchas e as partes faltantes nos mapas, assim como de Janeiro deveu-se à notável qualidade do porto natural existente na baía de Guanabara e
o que foi demolido e o que foi acrescido aos edifícios, fornecem uma imagem embaçada sua posição estratégica no território brasileiro. O núcleo urbano foi criado com um caráter
do passado. A tarefa do historiador deve ser a de tentar desembaçar o vidro, o espelho essencialmente religioso para organização geral da vida e primordialmente militar para
d'água que a baía de Guanabara oferece como plano de projeção, sem, contudo, nutrir a garantir a posse do território. O estabelecimento da cidade tomou como pontos estruturantes
ilusão de restituir o passado como água cristalina capaz de novamente, como outrora, os edifícios devocionais e os estratégicos; seu crescimento adotou os mesmos referenciais:
receber as baleias em seu período de gestação e desova. uma nova capela ou bateria induzia uma direção vetorial de ocupação do espaço físico,
assim como a ampliação do tecido urbano implicava na construção de novas ermidas e
fortificações.
A essa dinâmica bipolar, observável desde o início da ocupação portuguesa, somou-se
II o caráter civiliza tório desenvolvido na cidade a partir do início do século À'VIII, quando foi
enfatizada sua posição de principal pólo receptor e difusor da política metropolitana no
É difícil perceber hoje a situação específica que as edificações religiosas tiveram na Centro-Sul da Colónia, notadamente após 1763, quando o Rio de Janeiro se tornou a sede
configuração espacial do Rio de Janeiro no século xvm, pois as diversas transformações do Vice-Reino. Entre os fatores que contribuíram para o maior interesse e investimento
ocorridas na cidade desde então (demolições e acréscimos dos edifícios ou dos respectivos nesse ponto do território estavam: os problemas com as fronteiras na região do rio da Prata
entornos, com alteração de função, estilo e escala) mudaram a situação das mesmas no e a fundação da Colónia do Sacramento, em 1680, a descoberta do ouro nas Minas Gerais
tecido urbano. Mais difícil é pensar as edificações militares no mesmo contexto a partir da e o conseqüente incremento do porto carioca, além das sucessivas ameaças estrangeiras de
situação atual. Não é fácil detectar hoje na cidade os vestígios do sistema defensivo im- saque e invasão. A crescente importância da cidade acentuou a necessidade de organização
plantado até os setecentos. As poucas fortificações do período ainda existentes não se cons- e segurança, reforçando o papel dos complexos arquitetónicos militar e religioso no con-
tituem mais como potências efetivamente defensivas nem como marcos do espaço urbano texto urbano carioca.
122 e da baía de Guanabara. Não drs:rr1,.ons_tra111, a importância que possuíam quan- 123
1
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGL/Ê,S GEOMETRIA Bf:LICA

III 1750 com Miguel Ângelo Biasco, José Maria Cavagna e Miguel António Cieira; a influên-
cia alemã na segunda metade da década de l 750 com Adão Wenceslau de Hadse e na
Quem foram os agentes desse campo diversificado e eminentemente experimental seguinte com João Henrique de Bóhm; bem como a figura isolada de Jacques Funck,
que se estendia da navegação 11 cartografia e à fortificação, tendo como fim o conhecimen- proveniente da Suécia em 1767. A partir da virada para o século xvrn tem início a época
to, a conquista, a garantia da posse e a ação no espaço? em que os agentes desse saber bélico foram sobretudo os engenheiros-militares. Com rela-
Ao longo do século XVI e da primeira metade do século XVII passaram pelo Rio de ção à presença religiosa, além dos já mencionados Joassar, Capassi e Soares, atuaram no
Janeiro fortificadores portugueses e estrangeiros, civis e religiosos, os quais, a serviço do Rio de Janeiro Francisco Tinoco e Francisco Rcgo 3 •
Reino e a partir de Salv~do:-: percorriam diversos pontos do território brasileiro cuidando Entretanto, ainda que ao longo do período colonial o envio de técnicos para o Rio de
de sua ocupação física, Eram estrangeiros como o francês Philip de Quitan e os italianos Janeiro tenha sido crescente, como observou Júlio Roberto Katinsky, "fl relação técnicos da
Battista Antonelli e Baccio de Filicaia, e portugueses civis como Francisco de l~rias Mes- Coroa-população, durante todo o Período Colonial, foi decrescente,,4, o que implicou em um
quita ou religiosos como o jesuíta Gaspar de Samperes 1, esforço sempre inferior à necessidade. Contudo, esta insuficiência não impediu que o
A partir de meados dos seiscentos, o Rio de Janeiro passou a ser um dos pontos do efeito de suas ações ultrapassasse o campo original a que se destinavam e se fizesse sentir
território brasileiro para onde convergiam técnicos com o fim de cuidar da segurança da por todo o domínio cultural carioca.
Colónia. Ainda atuavam na cidade profissionais sediados em Salvador, mas foram designa-
dos especialmente para o Rio de Janeiro alguns técnicos contratados no estrangeiro e mi-
litares formados nas Aulas de Fortificação que passaram a existir em Portugal, então com o
objetivo de formar um corpo técnico capaz de atender às necessidades da Metrópole rela- N
tivas ao território português e à conquista e administração das possessões ultramarinas.
Michel de Lescolle foi o primeiro engenheiro-militar enviado especialmeme para o Rio de Sediados no Rio de Janeiro, esses profissionais desenvolviam suas atividades por todo
Janeiro com o fito de cuidar de sua fortificação. Entre os portugueses enviados a partir o Centro-Sul brasileiro, embora os problemas na Colónia do Sacramento requeressem a
desse momento estão Manoel Gomes Pereira, Felipe Carneiro de Alcàceva e Gregório presença dos engenheiros-militares com maior freqüência no Sul do que nas demais áreas
Gomes Henrique". da região. Trabalharam no Sul a maioria dos engenheiros-militares que passaram pelo Rio
A convergência de engenheiros-militares para a cidade se intensificou no século XVIII de Janeiro, enquanto apenas uma minoria atuou em Minas Gerais e São Paulo5.
devido à insegurança e à necessidade de controle da região Centro-Sul da Colónia, conso- A atuação desses técnicos tinha relação direta com os problemas de garantia da posse
lidando o Rio de Janeiro como ponto fundamental da estratégia defensiva portuguesa no do território. Suas ações eram primordialmente vinculadas à questão da guerra - cuida-
território brasileiro. vam da implantação dos sistemas defensivos e participavam das campanhas militares.
Ainda que o fluxo de profissionais para a cidade tenha sido constante, em alguns Os ataques franceses do início do século e, principalmente, os conflitos ao Sul com os
momentos houve uma concentração maior de técnicos: os primeiros anos do século, aque- espanhóis exigiam-lhes incessante atividade guerreira.
les após o ataque do francês Duguay-Trouain, em 1711, a década de 1730 e o início da Além da questão defensiva, os conflitos entre Espanha e Portugal no Sul da América
seguinte, os anos 1750, 60 e 80 dos setecentos. A maioria dos técnicos era formada de fizeram com que se acentuasse ao longo do século a preocupação com o campo da carto-
militares portugueses, apesar de se manter a presença dos estrangeiros e dos religiosos em grafia com vistas à delimitação das fronteiras entre os respectivos territórios coloniais. Para
menor número. Entre os portugueses pode-se mencionar os formados em Portugal como tanto, foram contratados especialistas estrangeiros na matéria e traduzidos tratados sobre
José da Silva Pais e José Correia Rangel de Bulhões, entre tantos outros, e os formados no topografia, cartografia e matemática. Entre estes estavam os jesuítas italianos João Batista
Rio de Janeiro, caso de André Vaz Figueira e António Rodrigues Momezinho. Quanto aos Carbonne e Domingos Capassi, peritos em matemática e na observação de longitudes,
estrangeiros atuantes no Rio de Janeiro, observa-se: a influência francesa no início do contratados em 1722. A missão principal destes técnicos era elaborar a «Nova Carta do
século com as presenças de João Massé e do monge beneditino Estevão de Loreto Joassar; -------------
a influência italiana em 1730 com os jesuítas Domingos Capassi e Diogo Soares e em 3 ldem,
4
KATINSKY, Júlio Roberto, «Sistemas Construtivos Coloniais», in VARGAS, Milton (organizador),
São Paulo: UNES!'; CEETEPS, 1994, p, 88,
5
'SANTOS, Paulo, Rio de Janeiro: IAI3, 198L MARTINS, Judith, Rio de Janeiro: IPHAN, 1974. MARTINS, Judith (Inédito), LIMA DE TOLEDO,
124 2
FERREZ, Gilberto, Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1972, Benedito, São Paulo: João Fortes Engenharia, 1981, 125
GEOMETRIA BÉLICA
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no Rio de Janeiro ao submetê-las às questões palacianas da Corte e ao possível desconheci-


Brasil)), que se tornou necessária após a superação das demarcações convencionadas no
mento das necessidades e deficiências específicas da segurança e da atividade construtiva
Tratado de Tordesilhas e com a ocorrência de conflitos na Colónia do Sacramento. João
local. Como exemplo do primeiro caso, pode-se mencionar a querela entre o francês João
Batista Carbonne permaneceu em Portugal, com o título de «Matemático Régio», en-
Massé e os portugueses Pedro Gomes Chaves e Manoel de Melo Castro; do segundo caso,
quanto Domingos Capassi foi enviado ao Brasil, em 1730, em companhia do engenheiro
um exemplo é a constante preferência dos projetos de Carlos Mardel sobre os de José
e geógrafo jesuíta Diogo Soares, na missão conhecida como a dos «Padres lvfatemáticos»,
Fernandes Pinto Alpoim 9 •
expedição que foi pioneira na América em seu objetivo de definir os limites das soberanias.
A preocupação com o conhecimento e a delimitação dos territórios não ficou restrita ao Apesar das disputas internas na corporação dos oficiais técnicos e destes não terem
autonomia plena sobre suas atividades, os engenheiros-militares possuíam uma situacão
âmbito religioso e à influênéia estrangeira. No início dos setecentos, Manuel Azevedo Fortes
profissional diversa daquela dos demais artífices atuantes no Rio de Janeiro então. A r:la-
se ocupou de questões relacionadas com a fortificação e a cartografia, publicando textos que
ção estreita com o poder governante, a qualidade de seus vencimentos e, principalmente,
influenciaram a formação dos oficiais engenheiros ao capacitá-los para a pr;ítica da cartogra-
a condição de funcionários do Estado, a hierarquia estabelecida da carreira militar, a for-
fia marítima e terrestre. De tal modo que na «Expedição Científico-Militar da América Por-
mação institucionalizada e o saber teórico-prático de natureza científica que esses oficiais
tuguesa», enviada ao Rio de Janeiro, em 1750, com a incumbência de demarcar os limites
dominavam, os distinguiam na hierarquia social frente aos artesãos construtores, menos
com as possessões espanholas, ainda se encontravam estrangeiros, mas já se observava a pre-
valorizados profissionalmente e detentores de um saber de cunho prático e artesanal,
sença de oficiais portugueses. Faziam parte da Expedição os italianos Miguel Ângelo Blasco,
adquirido de modo assistemático 1º.
José Maria Cavagna e Miguel António Cieira, além dos portugueses Manocl Vieira Leão e
José Custódio de Sá e Faria".
As atividades de garantia de posse e manutenção do território faziam com que os enge-
nheiros-militares mantivessem um vínculo estreito com o poder local. Alguns deles chega-
V
ram até a governar: na administração do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Moraes, José da
Silva Pais e José Fernandes Pinto Alpoim; no Sul, José da Silva Pais, João Francisco Roscio e
Neste sentido, a "Aula de Fortificação» instituída no Rio de Janeiro no final do século
José Custódio de Sá e Faria7. A, ações dos oficiais técnicos eram diretamente relacionadas às
XVII foi uma novidade radical na história da formação profissional na cidade, se constituin-
dos governadores e, depois de 1763, dos vice-reis, criando um vínculo não necessariamente
do na primeira forma oficial e laica de ensino técnico, científico e artístico.
proveitoso para a causa da segurança da cidade, da região ou da Colónia. Constantes atritos
evidenciam que a racionalidade devia, por vezes, fazer concessões a caprichos ou interesses O estabelecimento no Rio de Janeiro, no final dos seiscentos, de uma «Aula de Forti-

particulares. Se Silva Pais e Alpoim são unanimidades ao tempo do Conde de Bobadela, o ficação» fez parte de um processo de desenvolvimento da cultura científica que se desen-

mesmo não ocorre com as relações entre Alpoim e o Conde da Cunha, bem como entre os volveu em Portugal a partir do século XVI, visando atender as necessidades geradas pela

vice-reis Marquês do Lavradio e Luís de Vasconcellos e os oficiais atuantes no período de suas aventura marítima, a conquista, a posse e a colonização das possessões ultramarinas.

administrações, principalmente Sá e Faria, Funck e de Bhóm8 • As atividades de conquista, defesa, conhecimento e ocupação destes territórios determina-

Também entre os engenheiros-militares a relação profissional não era tranqüila, prin- ram a criação em Portugal, nos quinhentos, de Aulas e Escolas destinadas a desenvolver 0

conhecimento científico que subsidiasse os estudos de artes navais, cartografia e engenha-


cipalmente entre os estrangeiros e os portugueses situados no Rio de Janeiro, mas também
ria militar. Estudava-se então a matemática e a geometria no sentido quase exclusivo de
entre os técnicos que estudavam a cidade in !oco e aqueles que o faziam sediados em Lis-
sua aplicação às atividades da navegação, da cartografia e da arquitetura militar.
boa. No primeiro caso, os conflitos derivavam da superioridade do soldo e da patente que
A falta em Portugal de uma tradição do pensamento científico determinou um pro-
recebiam os estrangeiros para atuar na Colónia disparidades financeiras e hierárquicas
não necessariamente correspondentes às qualidades profissionais dos oficiais. No segundo cesso de desenvolvimento do conhecimento submisso ao pensamento religioso e orienta-
do pelas influências estrangeiras. Muitas das Aulas e Escolas surgiram dentro das institui-
caso, os problemas provinham do fato das questões locais serem decididas, na maior parte
das vezes, em Portugal, pelo Conselho Ultramarino, dificultando a ação dos técnicos situados ções religiosas de ensino, já que a não existência de uma instituição militar organizada

6
'Idem.
TAVARES, Aurélio de Lira. Rio de .Janeiro: Estado Maior do Exército, 1965.
7 '" Sobre a questão, ver também PESTANA, Til Costa. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Escola
FERREZ, Gilberto. Op. cit.
ele BdasArtes da UFR.J, 1996, pp. 29-36. 127
126 'Idem.
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS GEOMETRIA BÊLICA

determinou, desde a expulsão dos árabes da península ibérica, uma tradição principalmen- decreto que determinava que cada regimento de infantaria tivesse uma companhia forma-
te religiosa nas atividades ligadas à questão militar. As bases do novo ensino científico da apenas por engenheiros. Como observa Potiguara Pereira:
foram as traduções de tratados estrangeiros e a contratação de professores no exterior. Só «Importante ressaltar que a indicação para a promoção dos oficiais, daquele momen-
em meados do século XVll observa-se uma relativa autonomia e secularização no ensino das to em diante, condicionava-se à freqüência nas aulas, num tempo mínimo de cinco anos,
artes militares em Portugal, com a criação de uma «Aula de Fortificação e Arquitetura e sua respectiva aprovação. Regulava-se, pois, a carreira dos oficiais, pelo menos em relação
Militar», em 1647, e na atuação do engenheiro-militar português Luís Serrão Pimentel e à parte teórica, ensinando-lhes Geometria, Trigonometria, Longimetria, Altimetria, bem
seu curso O Método Lusitânico de Desenhar Praças, fundamental para a formação dos enge- como noções sobre morteiros, pedreiros, obuses, petardos, baterias dos mosteiros, pirobolia
nheiros portugueses de enlíiio. '1:ntretanto, se a presença religiosa é encontrada apenas es- ou fogos artificiais de guerra.» 11
poradicamente, as influências estrangeiras continuam a ser a base da engenharia militar José Fernandes Pinto Alpoim foi designado como Lente, cargo que já ocupara na
portuguesa, variando apenas o foco irradiador da Itália para a França e, posteriormente, Academia de Viana em 1735, e permaneceu no cargo até sua morte, em 1765. O substitu-
também a Alemanha. to de Alpoim por ocasião de suas viagens às Minas Gerais ou ao Sul era António Eusébio
Na passagem para o século XVIII encontra-se em Portugal uma figura fundamental Ribeiro, que o sucedeu no cargo. Entre 1774 e 1795, António Joaquim Oliveira passou a
para o ensino da engenharia-militar, Manuel de Azevedo Portes, engenheiro-mor do Rei- ser o Lente. Em 1792, a «Aula Militar do Regimento de Artilharia» foi transformada em
no e considerado o maior engenheiro português dos setecentos, que teve sua formação no «Real Academia de Artilharia, fortificação e Desenho do Rio de Janeiro», sob inspiração
estrangeiro, onde também lecionou. Ao retornar a Portugal, em 1695, imprimiu rigor de Joaquim Correia de Serra, formado na Itália e autor de trabalhos sobre ciências, mate-
científico nos estudos de cartografia e engenharia, influenciando não só o ensino acadé- mática, arguitetma civil e militar e desenho 12 .
mico mas também o ambiente cultural português com a publicação de suas obras - As aulas tomavam como base os tratados dos principais fortificadores do período, como
Lógica racional geométrica e arudítica, obra utilíssima, limado do modo mais fiícíl e exato de Vauban, Carmontaigne e Carnot, ensinando a matemática e a geometria como subsídios aos
fazer as cartas geogrdficas, assim de terra como de mm; e tirar as plantas das praças e O Enge- estudos náuticos, cartográficos e bélicos. Os profissionais formados nessas aulas detinham
nheiro Portuguez. um conhecimento abrangente que possibilitava uma atuação diversificada nas artes navais e
O objetivo da criação no Brasil, no final do século XVII, de «Aulas de Fortificação», da guerra. Atuando sobretudo na fortificação, na cartografia e nas campanhas militares, os
primeiro em Recife e logo em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Luiz, era dotar estes engenheiros por elas formados também desenvolviam atividades paralelas no ensino, na
pontos da Colónia de uma instituição capaz de formar um corpo de profissionais que arquitetura civil e religiosa, interferindo direta e indiretamente (respectivamente, com ações
atendesse às necessidades técnicas da ocupação do território brasileiro e, assim, prescindis- e exemplos) no agenciamento do espaço urbano e na cultura da cidade.
se dos oficiais formados em Portugal em quantidade inferior à demanda de todas as pos- Antes que se começasse a ensinar a ciência, a arquitetura e as artes no Rio de Janeiro
sessões ultramarinas, dos estrangeiros contratados a alto custo e da discreta porém ainda no início do século XIX, com a criação das Academias, com a vinda da Corte Portuguesa e,
existente influência religiosa. O surgimento destas aulas assinala o início de um novo posteriormente, da Missão Artística Prancesa, foi no âmbito da cultura militar que essas
momento no processo de colonização do Brasil, quando se visava um maior controle dos disciplinas passaram a ser estudadas a partir do fim do século XVII. As aulas de fortificação
estabelecimentos no território, de modo a melhor explorar as riquezas naturais ou os pro- e artilharia foram as primeiras formas de ensino oficial não religioso a se ocupar das ques-
dutos cultivados. A criação no Rio de Janeiro de uma instituição de ensino não religioso é tões sobre o desenho e a construção das cidades, ainda que de forma condicionada pelas
sintoma também do processo de secularização da sociedade e do ambiente cultural cario- questões militares. Antes que o saber e a cultura fossem pensados de forma relativamente
ca, observável ao longo dos setecentos, quando, de porto estratégico, foi convertido em autónoma nos oitocentos, foi por meio desta relação dependente para com as questões da
ponto principal de recepção e irradiação da política metropolitana. guerra que surgiu a primeira oposição ao saber tradicionalmente derivado da religião, um
A partir de 1698, Gregório Gomes Henrique foi incumbido de ensinar os seus indicativo do processo de secularização por que passava o ambiente cultural do Rio de
conhecimentos técnicos aos condestáveis e artilheiros da praça do Rio de Janeiro, tendo Janeiro setecentista.
como substituto José Velho de Azevedo. Com a criação da «Aula de fortificação», em
1699, Gregório Gomes Henrique foi designado como Lente, sendo substituído no cargo
por Francisco de Castro Moraes, em 1701. Em 1738, foi estabelecida na cidade a «Aula do 11
PEREIRA, Potiguara. «Engenharia Militar». ln: VARGAS, Milton (organizador). São Paulo: UNES!';
CEETEPS, 1994, p. 167.
Terço» depois «Aula do Regimento e da Artilharia», que absorveu a «Aula de Fortificação». 12
TAVARES, Aurélio de Lira. Op. cit. TELLES, Augusto Carlos da Silva. «O Ensino Técnico e Artístico.
128 A engenharia era então uma das bases de sustentação do Exército, havendo desde 1721 um Evolução e Características. Séculos XVIII e XIX». /11: Arquitetura Revista, Rio de Janeiro, FAU/UFRJ, v. 6, 1988. 129
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VI Os mapas e as fortificações participavam das estratégias de defesa de um ponto espe-


cífico na geografia. Naquele momento, a cidade-região, bem como sua imagem, precisa-
Entre os muitos oficiais de atuação diversificada, duas figuras se destacam. O primeiro vam estar sob controle da Coroa Portuguesa; a segurança dependia de ações militares,
é José da Silva Pais, que além do cuidado no trato dos problemas inerentes à questão defen- assim como de esforços construtivos, fossem estes na concretude do espaço físico ou na
siva da Colónia - sobretudo por sua preocupação com o corpo da tropa, com as fortifica- organização do imaginário. A baía de Guanabara era o espaço que a cartografia traduzia
ções e, sobretudo, com o processo de fabricação das mesmas-, «é também importante por em imagem cénica e a fortificação, em palco da guerra. Estando vinculados ao processo de

meio cultural do Rio de"Janêiro -


..
exemplificar, de forma particular, a contribuição que os engenheiros-militares trazem ao
o desenvolvimento científico que as disputas político-
conhecimento e transformação do Rio de Janeiro, a cartografia e a fortificação participa-
vam, portanto, do processo cultural ali desenvolvido.
-económicas introduzem no ambiente colonial arraigado de religiosidade. Comentando O que aponta para a condição do saber que os engenheiros-militares detinham não
sobre a biblioteca do militar português, Wilson Martins afirma que Silva Pais é mais do que ser restrito às questões da guerra e da dominação de povos e territórios. As artes navais e da
apenas um técnico: com 20% dos livros de natureza profissional e o restante de História, guerra exigiam engenho com relação aos objetos (embarcações e edifícios) e domínio de
Filosofia, Letras e Medicina, ela é "alguma coisa mais do que uma simples biblioteca de traba- estratégias e táticas para defesa e ataque, nos mares e em terra, um conhecimento sobre o
lho, é o que se pode considerar como a biblioteca de uma pessoa culta na primeira metade do percurso, o estabelecimento e a ação no espaço. Neste sentido, a fortificação e a cartografia
século XVIII em Portugal e no Brasil". Silva Pais personifica a figura do militar recomendada se constituíam exatamente como arte de desenhar o espaço, transformando e representan-
por Yen Tzu quando este afirma que "o comandante ideal reúne cultura e temperamento do a situação física, alterando sua forma e instituindo sua imagem plástica.
bélico; que a profissão das armas exige uma combinação de dureza e suavidade"»u. Um saber que podia ser visto ora como arte da guerra ora como ciência militar.
Entretanto, José Fernandes Pinto Alpoim é quem melhor personifica a figura Construções e representações, as obras de fortificação e cartografia apontam para o proble-
multifacetada do engenheiro-militar atuante no Rio de Janeiro setecentista. Seu desempe- ma da funcionalidade na arte, mais evidente na arquitetura que nas demais artes plásticas.
nho profissional se estendeu por todos os campos que sua formação permitia: na arquitetura Desde suas formulações mais antigas, a obra de arte surge para durar, visa ultrapassar a
militar, religiosa e civil, no agenciamemo do espaço urbano, nas artes navais, nas campa- contingência; seu tempo é a eternidade. No século xvm, os mapas estavam destinados a
nhas militares e na administração do Rio de Janeiro. Sua atuação como Lente da «Aula serem substituídos devido ao utilitarismo inerente à cartografia; pois «um mapa desatua-
Militar» o levou a publicar O Exame de Artilheiros, em 1744, e O Exame de Bombeiros, em lizado perdia toda utilidade e era descartado» 15 . Ao serem idealizadas, as fortificações tam-
1747 - escritos sobre a questão das artes da guerra e da arquitetura militar que visavam bém incorporavam a questão da destruição; «"construir" e "destruir" têm valor aproxima-
transmitir seus conhecimentos práticos aos oficiais engenheiros e formar uma base para o do para estas máquinas destinadas à guerra» 16 • A cultura da obsolescência era inerente aos
ensino militar. Textos destacáveis, além do seu pioneirismo, pela reflexão acurada por par- artefatos vinculados ao avanço do progresso científico, sobretudo os vinculados à proble-
te do autor sobre as necessidades e deficiências dos oficiais a que se destinavam 11. mática da guerra. Os avanços na geometria e na matemática tornavam descartáveis os
mapas antigos e faziam com que os novos mapas surgissem para durar um curto período
de tempo. As inovações na balística paulatinamente desvalorizavam as estratégias de forti-
ficar e as táticas de guerrear tradicionais, alterando desde o comportamento das tropas até
VII a situação e a forma das fortificações. O período entre a Idade Média e o Iluminismo foi
exatamente quando a ambigüidade dos domínios da construção e da representação plásti-
Além da racionalidade prática que imprimiram na arte de fortificação, os engenheiros- cas se configurou e tendeu a se resolver com a clivagem do campo em vertente artística e
-militares introduziram modos de espacialização e percepção plástica não observados até o vertente científica, com a distinção entre artes e ofícios. Leonardo da Vinci, para quem a
século xvrn na cultura visual carioca. As fortalezas, as igrejas e as representações da cidade por cartografia e a fortificação faziam parte de sua investigação múltipla e ilimitada do reino
eles realizadas revelam formas inusitadas de conceber e agenciar o espaço do Rio de Janeiro. da Natureza, foi o limite último de uma ação unificada sobre este campo; paulatinamente,

5
IJ CONDURU, Roberto. «A Pólvora e o Nanquim». ln: Gdvea, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n. 0 7, dez. ' ALBUQUERQUE, Luís ele e SANTOS, Annie MarqLtes dos. «Os Cartógrafos Portugueses». ln:
1989, pp. 4-17. CHANDEIGNE, Michel. Rio ele Janeiro: Jorge Zahar Eel., l 992, p. 61.
"Sobre Alpoim, ver PARDAL, Paulo. «José Fernandes Pinto Alpoim. Nota Biográfica». ln: ALPOIM, "'CONDURU, Roberto. «A Pólvora e o Nanquim». ln: Gdvea, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.º 07, dez.
130 José Fernandes Pinto. Rio de Janeiro, Xerox do Brasil, 1987, pp. 13-39. 1989, p. 8. 131
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GEOMETRIA BÉLICA

estes domínios se especializaram, passando o fortificador e o cartógrafo a se alinharem No Brasil, não haviam os impedimentos históricos do espaço construído a constran-
mais próximos dos cientistas do que dos artistas, posicionando-se em um dos pólos do ger a aplicação da geometria exata da cidade ideal renascentista. Então porque esta não foi
campo reorganizado, que no século XIX se apresentaria como a oposição complementar de construída? Não parece ser possível que tivessem a idéia de fazê-lo e não tenham consegui-
engenharia e arquitetura, o que, no âmbito social, se institucionalizaria nos espaços da
do. A forte tradição dos padrões da arquitetura chão portuguesa e seu pragmatismo cons-
Escola Politécnica e da Escola de Belas Artes.
trutivo - o fato das formas serem condicionadas por materiais e técnicas disponíveis -
são fatores mais plausíveis. Assim como as especificidades da arquitetura militar da época.
O perfil geométrico das muralhas projetadas ou construídas no Rio de Janeiro é
indício de uma racionalidade pós-renascentista. Entretanto, as dimensões e os problemas
colocados por um sítio como a baía de Guanabara parecem ter incentivado o desenvolvi-
mento do sistema de fortificação de perfil aberto, em desenvolvimento na época. O Rio de
Neste sentido, a arquitetura militar ocupa uma posição inferior na história da arte.
Janeiro seria então, como outros pontos da América, um lugar para pôr em prática um
Segundo Roberto Segre 17 , até o século XIX a arquitetura era dividida com a trilogia clássica:
desenho do espaço que, ao invés da estaticidade da cidade fechada, fosse dinâmico, espaço
arquitetura civil, religiosa e militar. Entretanto, na tradição da disciplina, tanto os tratados
aberto e em movimento.
quanto a historiografia privilegiavam as construções civis e as religiosas. Entre as razões
A geometria da guerra deveria aplicar uma inteligência sobre o lugar. A forma devia
para o desprestígio da fortificação, a primeira é o fato da construção predominar sobre a
adaptar-se ao terreno, o potencializando e tornando interdependente desenho, forma e
destruição entre os ideais humanísticos. Depois, o predomínio de uma concepção estética
nos escritos sobre arquitetura, que viam nas obras militares apenas uma funcionalidade matéria. As fortificações pontuavam os limites entre o espaço natural e o construído, de-
estrita. A continuidade dos fatores que influenciaram no desenho das fortificações até a marcavam esse limite, estabelecendo uma ordem plástica artificial que se sobrepunha à
Idade Média - as técnicas construtivas e os meios de agressão implicava em uma certa ordem da natureza, pretendendo organizar o movimento que nela devia transcorrer.
atemporalidade da arquitetura militar, que a excluía da evolução estilística. Quando as Sintetizando o que já foi previamente formulado:
técnicas de guerrear se transformam e implicam em maior complexidade nas técnicas de «A ocupação arquitetônico-militar do Rio de Janeiro no século Àv!II confirma e cris-
construção dos sistemas defensivos, a partir do Renascimento, a fortificação se desenvol- taliza a forma de defesa que se delineia no século e meio anterior[ ... ] - pensar a defesa da
veu e foi pensada mais como «engenharia militar» do que como «arquitetura militar». cidade através de um conjunto articulado de edificações, onde o que garante a segurança é
Problemas ancestrais da estratégia da guerra tiveram que sofrer adaptações após o menos a potência específica de cada fortificação e mais a ação coordenada entre elas.
advento da balística. A defesa condicionada pela altura do sítio ocupado, característica da «Apropriando-se da configuração topográfica da região onde se situava a cidade, for-
Idade Média, foi paulatinamente substituída pela defesa com a organização geométrica do tificam-se e inter-relacionam-se os locais estratégicos de modo a melhor administrar os
espaço, traço que caracteriza a arquitetura militar moderna. conflitos e as batalhas.
A fortificação sempre foi e continuou sendo um modo de organização do espaço da guerra; «O sistema defensivo implantado constitui-se, como disse Vauban sobre a arte de
neste sentido, a fortificação era uma modalidade de desenho urbano. Os planos de fortificação fortificar, como "um conjunto de mecanismos capazes de receber uma forma definida de
eram planos de urbanização, planos prévios ou corretivos do processo de urbanização em curso, energia, de a transformar e finalmente de a restituir sob uma forma mais apropriada".
fossem ou não materializados em pranchas de desenho, tenham ou não sobrevivido a sua fun- Percebendo a especificidade da região - os pontos vitais e os estrategicamente ocupáveis,
ção prática imediata ou ao curso da história. Portanto, os planos para o Rio de Janeiro podem as potencialidades e as deficiências-, trata-se não de evitar o conflito, pois a guerra era
servir como os exemplos de projeto ou plano que a bibliografia sobre a urbanização no Brasil condição básica da situação político-económica, mas de constituir o lugar adequado para
tanto procura mas não encontra. O que indica que se não é encontrado no Brasil a planificação a realização das batalhas visando coordená-las. Pretende-se a racionalização das forças na-
regulamentada das cidades sob o domínio espanhol, existem as normatizações da Igreja turais com o objetivo de controlar os acidentes e de eliminar os riscos através do cálculo
para construção dos templos, que influenciam o desenho urbano, como analisou Murillo Marx18, antecipado das batalhas, pensando a guerra como questão a ser previamente administrada.
assim como uma lógica militar que também influencia no processo de arranjo espacial. Fortificar era um saber objetivado, uma técnica de organização apta a estruturar e contro-
lar os espaços a serem ocupados.» 19
17
SEGRE, Roberto. «Significación de Cuba en la evolución tipológica de las fortificaciones coloniales
de América». ln: SEGRE, Roberto. La Habana: Letras Cubanas, 1987, pp. 23-65. 19
CONDURU, Roberto. «A Pólvora e o Nanquim». ln: Gdvea, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n. 0 7, dez.
132 18
MARX, Murillo. São Paulo: Edusp; Nobel, 1991. 1989, pp. 4-17.
133
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Entretanto, as fortificações, assim como os mapas, desenvolviam uma cultura do do século, Aleijadinho, na segunda - indica que a intervenção de Gomes Chaves é não só
segredo. As primeiras tinham fachadas dominantemente cegas, os últimos deviam perma- pioneira como também pode ser um elemento fundamental, entre outros, para explicar o
necer inacessíveis. Espaços que deviam permanecer fora do alcance de visão. Assim, os florescimento de uma plasticidade tão exuberante nas recônditas Minas Gerais.
edifícios civis e religiosos eram os elementos construídos que faziam chegar mais diretamente No Rio de Janeiro, um bom exemplo é a Igreja de São Pedro dos Clérigos, projetada
a nova visualidade aos leigos, evidenciando como a atuação de Alpoim e dos demais enge- por José Cardoso Ramalho, em 1733. O maior domínio técnico-construtivo possibilitou
nheiros-militares influenciou a atividade arquitetónica do Rio de Janeiro. a construção de espaços com limites curvilíneos e a utilização da cúpula como cobertura
Com relação à arquitetura civil, Robert Smith já sublinhou«[ ... ] a similitude e falta do edifício, o que determinou uma maior complexidade na composição espacial interna
de imaginação caracterfsti[;is da maioria dos edifícios da autoria de arquitetos milita- que se estendia ao exterior, rompendo a plástica da massa construída da cidade de modo
res, [... ],,2°, tendo acrescentado que a Casa dos Governadores é um edifício «em sua forma similar ao efetivado pelos planos e volumes pontiagudos e esconsos das fortificações.
originária típico do estilo despretensioso, robusto e um tanto despido de graça, de Alpoim» 21 , Ainda poderiam ser citadas a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, projetada por
seu autor. Ausência de ambição estética, leveza, graça e criatividade, que derivava certa- Francisco João Roscio, em 1755, cuja monumentalidade é um indício excepcional das
mente do pragmatismo no qual se fundamentava a formação dos engenheiros- transformações que estes técnicos efetivaram na época, e a Igreja da Santa Cruz dos Mili-
-militares de então, mas que pode ser relativizada. O par formado pela Casa dos Governa- tares, projetada por José Custódio de Sá e Faria, cm 1780, desdobrando a linguagem
dores e a Casa dos Teles de Meneses, do mesmo Alpoim, exibe sim um rigor nos planos neoclassicista decantada pelo estilo pombalino, então em voga em Lisboa. Ou o caso do
contínuos de suas fachadas vazadas com ritmo constante que é quebrado apenas pelas chafariz do Largo do Paço, onde o Mestre Valentim interpretou com os dotes de entalhador
cimalhas de sob revergas curvas. O que pode ser visto como vontade de estruturar comedi- e escultor as indicações arquitetónicas do primeiro projeto de Jacques Funck, articulando
damente a praça de entrada do Rio de Janeiro, delineando este conjunto urbano, represen- em uma síntese própria as influências do movimento neoclássico francês, que chegou ao
tativo dos poderes atuantes, de modo dominantemente regular, em sua oposição à varieda- Rio de Janeiro com o engenheiro-militar sueco, com o estilo pombalino, que o Mestre
de pitoresca da volumetria do restante da cidade, mas sutilmente gracioso, devido às on- Valentim fruiu diretamente de Portugal21.
dulações com a pedra sobre os vãos. Um misto de racionalismo pragm,ítico e timidez Se a missão dos engenheiros-militares era proteger a região Centro-Sul do Brasil, no
inventiva que não é desprovido de interesse e se encontra também na arquitetura religiosa caso, a baía de Guanabara (o porto e a cidade), o alcance de suas ações não se restringiu ao
dos setecentos, onde a imaginação formal pode se manifestar mais livremente. seu objetivo inicial. O espelho d' água era o plano onde o fortificador projetava a geometria
Se, nos séculos anteriores, foram sobretudo os religiosos que dominaram a constru- virtual do entrecruzar dos fogos, antecipando as ações bélicas a serem ali desenvolvidas.
ção na cidade, devido à organização das ordens religiosas, no século XVIII foram os militares Uma geometria que ultrapassava os limites desta função. A fortificação construía ângulos
que se destacaram através das transformações que efetivaram na arquitetura local. Compa- na baía e na cidade - literais no caso dos planos esconsos das fortificações e virtuais no
rem-se as igrejas setecentistas de autoria dos militares aos mosteiros construídos nos sécu- caso da grade formada pelo entrecruzar dos fogos - , a arquitetura religiosa distribuía
los anteriores e encontrar-se-ão diferenças substanciais tanto na inserção das edificações chanfros e curvas na cidade. A massa horizontal e a geometria poligonal características das
no espaço urbano quanto na composição dos espaços internos e das fachadas, somadas a fortificações se contrapunham à volumetria vertical e ao risco curvilíneo ou multifacetado
um maior desenvolvimento técnico. das igrejas, em oposição à ortogonalidade severa dos edifícios civis públicos, à irregularida-
Neste sentido, é pouco explorado na bibliografia sobre a arquitetura religiosa no Brasil o de pitoresca das demais edificações civis e à «desordem» da natureza.
fato do engenheiro-militar Pedro Gomes Chaves, em sua estada em Ouro Preto, ter projetado
para a Igreja de Nossa Senhora do Pilar uma nave curva, construída em madeira, no volume
retangular exterior, construído em pedra e cal 22 • A bibliografia tende a ver a realização como
espacialidade ambígua, indecisão não encontrada nas obras do Aleijadinho. Contudo, o espaço IX
temporal entre as realizações destes construtores - Gomes Chaves atuou na primeira metade
A passagem do medievo para a cultura renascentista trouxe consigo a substituição do
mapa-símbolo pelo mapa-instrumento, mais atento à realidade física do que à realidade
20
SMITH, Robert. «Arquitetura Civil no Período Colonial». /11: Revista do Patrimônio Histórico e Artís-
tico Nacional, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, n. 17, 1969, p. 115.
21 23
Idem, ibid., p. 117. UNDERWOOD, David K. «The Chafariz do Largo do Paço in Rio de Janeiro». ln: DEL BRENNA,
134 BAZIN, Germain. São Paulo: Rccord, 1981, pp. 200,202. Giovanna Rosso (organizadora). Genova: Sagepe, 1994. 135
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espiritual. Assim, perderam força as «três grandes tradições cartográficas (que) convivem qualidades objetivas ou racionais» 27 , indicando que mesmo na cartografia dominantemen-

durante a Idade Média e se estendem até o início do século XVI»


24
- os mapas do tipo te científica existe uma semantização do espaço representado. Como sintetizou Luiz
Fernando Franco, «A cartografia é expressão simbólica do que foi visto» 28 •
«TIO», os do tipo «hemisférico» e os do tipo «intermediário» - em nome de uma carto-
Neste sentido, é certo, como afirma Rudolf Arnheim, que «um mapa é um instrumen-
grafia mais votada ao espaço geográfico que ao espaço do sagrado. A representação simbó-
to visual» 29 , mas a utilidade da cartografia não inviabiliza o surgimento de uma cultura
lica e a corografia, dominantes nas artes e na cartografia do medievo, foram dando lugar,
visual; nesta direção, E. H. Gombrich chega até a dividir a tradição das imagens represen-
respectivamente, à mímese e à topografia. O que permite observar um paralelismo entre
tativas do espaço em dois tipos: o espelho e o mapa30 • Continuando com Arnheim:
a missão do pintor, a partir de Giotto, que procura transpor par.i o espaço bidimensional
*' «Pensa-se que as qualidades estéticas ou artísticas dos mapas sejam pura questão do
a experiênci.i tridimensidhaf ao real, e a tarefa do cartógrafo, que tenta reduzir ao plano a
chamado bom gosto, de esquemas de cor harmoniosos e apelo sensorial. Em minha opi-
volumetria do espaço físico. Como sintetizou Thereza Baumann:
nião, essas são preocupações secundárias. A principal tarefa do artista, seja um pintor ou
«O novo sistema de representação espacial, ou seja, a perspectiva, levará o homem a
um cartógrafo, consiste em traduzir os aspectos salientes da mensagem nas qualidades
uma reflexão mais profunda tanto sobre a natureza divina, quanto sobre a humana, e o
expressivas do meio de expressão, de tal modo que a informação seja obtida como um
encorajará a pensar a distância, sobretudo, a distância organizada. Um exemplo é o quadro impacto direto de forças perceptivas. Isto estabelece uma distinção entre a mera transmis-
Anunciação, cujo piso quadriculado coloca em evidência esse aspecto da perspectiva: como são de fatos e a provocação de uma experiência significativa [nosso grifo]. [... ] Toda ima-
diz Edgerton, é uma carta ptolomaica traçando a rota do olhar do espectador desde os gem visual digna de existir é uma interpretação de seu tema, não uma cópia mecânica. Isto
pecados do mundo até a salvação do céu. é verdadeiro, independentemente do fato de a imagem estar a serviço da arte ou da ciência,
«Essa concepção de espaço emergirá no século XV, especialmente representada pelas ou, como um bom mapa geográfico, a serviço de ambas.» 31
obras de Brunelleschi e Toscanelli, coincidindo com o reaparecimento da Cosmogrefia de O mapa traz uma cultura do espaço: não apenas o representa virtualmente como o
Ptolomeu, obra que o mundo ocidental esquecera até então e que apresentava características engendra. A plasticidade que a representação deflagra deixa entrever uma cultura espacial
fundamentais para a ciência cartográfica. Ptolomeu resolvia o velho problema dos cartógrafos, que adere às fibras do suporte - tanto a cultura inerente ao espaço representado quanto a
como o de desenhar sobre um papel a superfície curva da terra, traçando uma série de linhas cultura de quem o representa. Pois as imagens, assim como os escritos, são parciais e
abstratas: meridianos verticais que convergiam sobre os pólos, cruzados por paralelos hori- subjetivas, ao contrário do que fez grassar o mito da capacidade do pintor renascentista de
zontais tendo, como centro do mundo, o equador. Além disso, os mapas da sua cosmografia, reproduzir a realidade com o paralelismo entre a tela de cavalete e a janela; algo agigantado
embora defasados em virtude de novos descobrimentos, poderiam ser facilmente atualizados após o advento da fotografia. Toda representação comporta, além do dado de realidade
graças ao seu sistema de projeções de coordenadas.» 25 que aprisiona, algo do preconceito que a tradição figurativa impinge à cultura e algo da
O cientificismo nascente e inerente ao processo de desenvolvimento desta nova car- imaginação condicionada pelo interesse que solicita a representação. Assim como toda
tografia delineou uma oposição entre simbolismo e empirismo geogdfico. Segundo Ugo imagem, toda cartografia traz uma ideologia.
Tucci, «certamente que também neste caso, como n' outros ramos do saber, era uma cuitura Na cultura portuguesa, a cartografia funcionava como elemento prático indispensá-
aristocraticamente erudita que se opunha a uma cultura positiva e funcional». Os mapas que vel no processo de conquista e dominação dos territórios ultramarinos. O mapa servia ao
compõem a série sobre a baía de Guanabara pertencem à tipologia dos mapas regionais, os conhecimento de um lugar onde os membros da corte talvez nunca pousassem os olhos.

quais, assim como as cartas náuticas, «tinham fins práticos imediatos e[ ... ] por isso tinham
É neste sentido que João Rocha Pinto afirma que os reis de Portugal e seus conselheiros
«tiveram uma compreensão mediatizada do real» 32 • Na ausência ou escassez de pinturas,
necessariamente de se basear em observações e informações concretas», em oposição aos
mapas que «pretendiam proporcionar matéria de reflexão mais do que um verdadeiro instru-
mento operativo» e, por isso, «falam uma linguagem alegórica» 26 . 27
KNAUSS, Paulo. «Imagem do Espaço, Imagem da História. A Representação Espacial da Cidade do
Paulo Knauss de Mendonça já ressaltou como a historiografia erroneamente desvalo- Rio de Janeiro». ln: Tempo, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, v. 2, n. 3, jun/1997, p. 138.
28
riza a cartografia científica por considerá-la «pobre em investimento simbólico, por suas FRANCO, Luiz Fernado P. N. «O Castelo de Cartas». ln: SCHIAVO, Cléia e ZETTEL, Jayme
(organizadores). Rio de Janeiro: EDUERJ, IPHAN, 1997, p. 87.
29
ARNHEIM, Rudolf. «A Percepção de Mapas». ln: ARNHEIM, Rudolf São Paulo: Martins Fontes,
1989, p. 205.
30
24 «Mirrar and Map: Theories of Pictorial Representation».
BAUMANN, Thereza B. «Imagens do «outro mundo»: o problema da alteridade na iconografia cristi 31
Idem, ibid., p. 213.
ocidental». ln: VAINFAS, Ronaldo (organizador). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. p. 63. 32
25 PINTO, João Rocha. «O Vento, o ferro e a Muralha. A Construção do Império Asiático no Século
Idem, ibid., p. 69.
136 '"TUCCI, Ugo. «Adas». XVI (1498-1548)». ln: CHANDEIGNE, Michel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 196. 137
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gravuras e desenhos, os mapas forneciam a tradução visual que se justapunha aos relatos de da à escala das demais edificações. Neste sentido, o plano de Massé «surge como um exer-
viajantes. O mapa feito por Lopo Homem a pedido de D. Manuel I era, «de certo modo, cício de dominação, cujo indício mais revelador é um desenho onde[ ... ] a urbe é suprimi-
um resumo ilustrado de tudo o que se deve saber sobre o Brasil em 1519»33 . O desenvolvi- da por aquele que pretende defendê-la. Para Massé, proteger e dominar são sinônimos,, 37 •
mento da cartografia fez com que «bem antes da morte do infante D. Henrique, Lisboa se O Rio de Janeiro era um lugar a conhecer e ocupar objetivamente, mas que devia ser
tornara o centro privilegiado dos conhecimentos geográficos» 34 • E na segunda metade do subjugado à necessidade de controle. A cidade ainda era, primordialmente, espaço a fortificar.
século XVI, «a difusão da cartografia portuguesa está [... ] em seu apogeu» 35 . Das intenções de Massé, se concretizaram apenas as Fortalezas da Lage e de Nossa
Nos mapas-múndi ou nos mapas do Brasil, o Rio de Janeiro era apenas um ponto na Senhora da Conceição, a idéia do muro fechando a cidade nunca se efetivou. Entretanto,
costa. Quando a escala v.iirioÜ e a prancha passou a conter uma extensão de mar e terra seu Plano cristalizou-se de tal modo como referência maior para as demais propostas
menor, o Rio de Janeiro se tornou uma região. Os mapas deste tipo produzidos ao longo setecentistas de fortificação do espaço urbano que se tornou a forma da defesa possível do
do tempo podem ser reunidos em série, formando um conjunto que se insere tanto na Rio de Janeiro, atravessando o século como imagem da segurança carioca, algo observável
tradição da representação cartográfica quanto no processo de conhecimento sobre o Rio em relatos escritos e em outras propostas de fortificação.
de Janeiro. A «Carta Topographica da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro)), de 1750 e
Nos mapas desta série, o centro de interesse inicialmente era a água, só depois a terra autoria de André Vaz Figueira, apresenta a cidade de maneira absolutamente racional ao
foi olhada com minúcia. Estes primeiros mapas, mais preocupados com os contornos da não privilegiar qualquer aspecto da mesma. A planta já se destinava exclusivamente ao
baía de Guanabara, eram herdeiros dos mapas-portulanos e seu delineamento das costas ambiente cultural carioca, não era um plano mas tão-só um levantamento, um relato
continentais. De início, a baía era o centro dos interesses, depois o foco deslocou-se para objetivo da condição física da cidade àquela altura. Ou quase: a prancha fora encomenda-
as suas margens, os núcleos citadinos que ali se cristalizaram. Antes do século À'VIII, todas da para servir aos estudos dos oficiais em suas Aulas e devia, portanto, ficar restrita ao meio
as representações da cidade demonstravam uma preocupação estritamente militar, forma- militar. Assim, ainda que a intenção fosse representar com isenção a urbe, o cientificismo
lizada com «anotações» descritivas em maior ou menor acordo com a realidade local, que a motivara acabava por ser operacionalizado militarmente. Representar a cidade não
onde importava a localização e a natureza dos seus fatores estratégicos. Quanto aos seus era um fim em si mas ainda um meio auxiliar à questão defensiva, mirava-se o Rio de
autores, nos séculos XVI e XVII foram sobretudo os cartógrafos do rei e os espiões estran- Janeiro com a guerra nos olhos - a objetividade contida na prancha ia pouco além dos
geiros que dominaram a representação da cidade; já no século À'Vlll foram os engenheiros- limites do papel.
-militares que se destacaram através das transformações que efetivaram neste tipo de A «Prospectiva da Cidade do Rio de Janeiro)), realizada por Miguel Ângelo Biasco,
iconografia. em 1762, apresenta a cidade através de uma visão panorâmica do seu porto, revelando um
Nos setecentos, estes oficiais realizaram sucessivas representações que configuram caráter pitoresco ao externar o deslumbre do observador diante do espetáculo do confron-
uma série que apresenta tanto um conhecimento mais acurado da região quanto formas de to entre o espaço construído e a natureza. Entretanto, deve-se ressaltar o destaque dado
vê-la segundo outros pontos de vista, além da questão defensiva 36 • pelo autor da prancha às embarcações, que aparecem em perspectiva, e às edificações mi-
A «Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com suas Fortificações», litares, que aparecem em vista e com suas plantas baixas representadas na parte inferior da
elaborada em 1713 por João Massé, é um dos primeiros planos de transformação do Rio prancha. O que indica o movimento do porto fortificado como verdadeiro tema,
de Janeiro. Sua novidade não se resume ao fato de inaugurar uma relação entre mapa e condicionando a liberdade do sentimento frente à paisagem.
projeto de urbanismo, de indicar a necessidade de conhecer o lugar para transformá-lo. O «Prospecto da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro)), de 1771 e atribuído a
Também imprimiu um novo olhar sobre a cidade - científico em sua analítica objetiva Luís dos Santos Vilhena, apresenta a cidade de forma tríplice: a sua localização na baía de
do tecido urbano, ao representá-lo em planta baixa com escala gráfica. Entretanto, Massé Guanabara, a configuração do núcleo urbano e uma vista do mesmo, atendendo aos anseios
não via a cidade de forma autónoma e indiferenciada mas sob a ótica da guerra, privile- de conhecimento classificatório das cidades do Vice-Reino. Somando diferentes visadas,
giando a questão da segurança - as fortificações aparecem em escala dobrada se compara- aglutinando modos de representação previamente elaborados o mapa da região, a plan-
ta baixa e uma vista da cidade-, a prancha evidencia que o olhar dos engenheiros-milita-
33
ALBUQUERQUE, Luís de e SANTOS, Anrrie Marques dos. Op. cit., p. 65. res podia ser ao mesmo tempo objetivo e sensível, desde que fosse sempre e fundamental-
34
ALBUQUERQUE, Luís de e SANTOS, Arrnie Marques dos. Op. cit., p. 64.
35 mente bélico, denunciando uma subjetividade não totalmente emancipada.
ALBUQUERQUE, Luís de e SANTOS, Annie Marques dos. Op. cit., p. 67.
36
Sobre a questão <la visualidade no Rio de Janeiro, ver PEREIRA, Margareth da Silva. Tese de
138 Doutoramento. Paris: École Superieur des Hautes Études en Sciences Sociales, 1988. 37 139
CONDURU, Roberto. Op. cit., p. 10.
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URBANISMO DA ÉPOCA BARROCA EM PORTUGAL*

JosE EDUARDO HORTA CORRE/1I


Departamento de História da Arte
da Faculdade de Ciências Soci11is e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa

• Este texto foi publicado no Diciomírio da Arte Ban·oca em PortugflÍ, Lisboa, Editorial Presença, 1989.
ão há um único urbanismo barroco, mas várias formas, por vezes convergentes, de
desenho urbano na época barroca que, tão-só por necessidade de sistematização e síntese,
convencionaremos associarem-se em duas grandes famílias de cidades:
-As que alguma coisa devem ao barroco romano, tal como se concretizou urbanistica-
mente entre o plano ordenador de Sisto V e a conclusão da Roma berniniana e onde avultam
o «efeito de surpresa», um novo uso da perspectiva, a transferência para o urbanismo de valo-
res até então especificamente arquitectónicos e uma vivencialidade teatralizada do «efémero»,
da «festa» e da própria arquitectura;
- As que alguma coisa devem, por genealogia das formas, às «cidades ideais» do
Renascimento em qualquer das suas vertentes radiocêntricas ou ortogonais, despidas agora
de conteúdo ideológico, mas mantidos os seus princípios no planeamento de cidades
cortesãs, ou os seus modelos nas cidades-fortalezas da Europa ou nas cidades de expansão
urbana no Novo Mundo.
Nesta segunda categoria poderá integrar-se a escola de urbanismo português que,
com raízes na nossa engenharia militar quinhentista e celebradas realizações na Índia e no
Brasil, conheceu novo alento com as reformas estruturais resultanres da Restauração, cuja
pedra-de-toque se poderá encontrar na Aula da Fortificação e Arguitectura Militar criada
por D. João IV em 1647 e que reata institucional e formalmente a tradição do ensino da
Arquitectura interrompida (pelo menos a nível superstrutura!) no período filipino.
Figura determinante desta época e desta escola foi Luís Serrão Pimentel, com o seu
Método Lusitânico de Fortificar as Praças Regulares e Irregulares, baseado no seu magistério e
manuseado durante mais de um século, e onde o mestre expressava a sua conhecida vontade
de ensinar e divulgar um modo português de fazer engenharia militar, revelando um
apuramento técnico e uma consciência profissional em nada inferiores aos grandes mestres
italianos, holandeses e franceses, que sintetiza, segue, abandona ou supera.
Se o ensino e a prática do urbanismo andara sempre, desde o século xvr, ligado à
figura do engenheiro militar, ao ponto de ser incorrecto dizer-se que os portugueses, ao
contrário dos espanhóis, não fundavam cidades regulares e modernas, antes transpunham
para o Novo Continente formas miméticas da cidade medieval, o impacto que o magisté-
rio directo ou indirecto de Pimentel representa na formação de novos quadros, consolida
de modo irreversível uma escola do urbanismo nacional, concretizado tanto na Europa
como nas Américas. A partir de então, não é só o prático em topografia ou cartografia
que, ao lado do matemático e do astrónomo, exibe cada vez maior qualificação técnica
para trabalhos de urbanização. É o próprio urbanista em que esse topógrafo ou esse ma- 145
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DA ÉPOCA BARROCA EM PORTUGAL

temático se transfigura, perante a lição teórica da escola lisboeta e o trabalho prático em teórica foi sempre confrontada com urna realidade concreta por vezes diversificada e plu-
que se vê envolvido. ral, os portugueses conseguiram, contraditoriamente, encontrar maior maleabilidade de
Fortificar é sobretudo construir «cidades-fortalezas», herdeiras formais das «cidades soluções, alicerçada numa maior rigidez teórica. É que, ao contrário dos espanhóis, esta-
ideais», em cujo interior, com malha radiocêntrica ou ortogonal, se desenha uma nova vam equipados com menor número de normas e maior número de princípios.
cidade. O próprio Luís Serrão não enjeita a lição urbana ao estabelecer verdadeiras nor- Não quer isto dizer que na Corte portuguesa também não existissem meia dúzia de
mas urbanísticas: «Primeiramente, no centro da Fortaleza ou povoação deve-se deixar um regras, muito simples e muito óbvias, que acompanhavam os decretos régios de criação de
terreiro ou praça grande que deve ser a principal das armas», a qual deve ter «os lados cidades, mas que permitem, uma vez cumpridos, uma certa maleabilidade na implantação
paralelos às Cortinas da For1ifié'fição regular» e de onde «devem sair umas ruas direitas aos no terreno. E é curioso exemplificar com casos tanto da época joanina como da época
Baluartes». E se do século XVII passarmos ao seguinte topamos com a herança académica pombalina. Escolhendo entre outros, pelo significado das datas, as Cartas Régias de 11 de
de Pimentel em Manuel de Azevedo Fortes com o seu Engenheiro Portuguez, ou em Ma- Fevereiro de 1736, de 5 de Agosto de 1746, de 3 de Março de 1755 e de 14 de Junho de
nuel da Maia, com as suas v,irias traduções ou o seu magistério imensamente vivido desde 1761, que fundam respectivamente Vila Boa de Goiás, Vila Bela da Santíssima Ti-indade,
os tempos de D. Pedro II até à implementação da nova Lisboa de Pombal. Não esquece- Vila Nova de São José (Rio Negro), Oeiras e outras povoações no Piauí, e fazendo uma
remos, todavia, os inúmeros tratados manuscritos que se guardam nas nossas bibliotecas leitura sinóptica destes documentos, deles respigamos um formulário comum, de lingua-
e de entre os quais se poderão respigar os que, versando «castrametação» ou acampamen- gem muito fixa e onde, em resumo, se assinala como primeira área a demarcar a Praça (com
tos, terão sugestionado os oficiais que praticam urbanismo. Aqui ter-se-á consolidado o o seu Pelourinho, Casa da Câmara, Cadeia e Igreja), a partir da qual se devem delinear as
espírito cartesiano dos nossos projectistas de vilas e cidades, muitas vezes apenas práticos ruas em linha recta. É imperativo que as casas revistam a mesma figura exterior para que se
enquanto arquitectos e urbanistas, mas quase sempre profissionais com formação teórica conserve sempre «a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas». Estão aqui
enquanto engenheiros militares, ou mesmo simples oficiais de infantaria com exercício portanto os princípios essenciais do urbanismo da época moderna, a linearidade, a unifor-
midade e o programa. E este último, pelo menos, é digno de nota pelo seu vanguardismo.
de engenheiro.
Mas é evidente que, tal como acontecera no século XVI, nem sempre as autoridades locais
Mas se nas cidades militares o conceito de espaço urbano é sempre, por definição,
terão podido respeitar escrupulosamente os ditames do governo central, por condicionantes
um espaço limitado e a cidade é concebida como obra acabada e completa, a sua
geográficas, políticas ou sociológicas, nem a implementação dos programas terá sido isenta
concretização ou a sua influência poderão, teoricamente pelo menos, afastá-la da cidade
de desvios com o decorrer dos anos. O caso de São Luís do Maranhão, planificado ainda na
aberta, que lhe é oposta, e sempre o modelo preferido para a expansão urbana no conti-
primeira metade do século XVI pelo engenheiro-militar Francisco de Frias de Mesquita,
nente americano, sobretudo de expressão espanhola. Estas são cidades constituídas por
será, pelo contrário, um bom exemplo de regularidade conseguida. Este exemplo pôde
uma quadrícula homogénea e repetível, gerada a partir de uma praça central que ocupa o
frutificar então a partir da segunda metade do século, à medida que as estruturas centraliza-
espaço de um quarteirão não construído, com um sistema modular de 3x3, 7x7 ou 9x9.
das do Estado absoluto se foram alargando à administração do Brasil e que a este território
Não é este porém o aspecto essencial da nossa tradição urbanística, o que a ajuda a definir
se estendeu o ensino da Engenharia Militar. São sobretudo estas experiências setecentistas
face ao sistema homogeneamente mantido pela tradição espanhola. Por outro lado, deve
de pequenas cidades e vilas que o surto desenvolvimentista do interior dinamizou, que
reflectir-se no modo corno, passada a premência da muralha à volta da cidade, ela poderá
permitem hoje, por exemplo (pela amostragem que o acervo de plantas coevas do Arquivo
perdurar ou não no subconsciente do projectista de formação militar. A tradição mais
Histórico Colonial constitui), alinhavar algumas conclusões provisórias mas significativas
divulgada no século XVIII, inclusive entre nós, é a malha ortogonal, mesmo em cidades sobre o urbanismo português ultramarino dos séculos XVII e XVIII.
com muralhas em relação às quais se vai criando um distanciamento progressivo. A forma Poucas vezes estaremos em face de um sistema de quadrícula perfeita como na Amé-
interior não depende directa e imediatamente da forma exterior, sendo o espaço urbano rica Espanhola. É frequente a coexistência de quarteirões quadrangulares com quartei-
definido não em função das muralhas, mas apesar delas. O exemplo mais divulgado deste rões rectangulares. Em muitos casos, a Praça Central, além das oito ruas que normalmen-
tipo de cidade é, sem dúvida, NeufBrisach de Vauban, que os cadetes portugueses copia- te nela se geram, servida ainda por uma outra que, cortando um dos lados, desemboca em
vam pacientemente na Academia da Baía em 1778, como o fariam nas múltiplas acade- frente da Igreja Matriz. Se em muitos casos a igreja se encontra integrada num lote,
mias militares que entretanto vieram a ser criadas um pouco por toda a parte, tanto na também é vulgar ficar ladeada por ruas, portanto, isolada. E se é possível encontrar o
Metrópole corno no Brasil. Entre o sistema aberto assumido e divulgado pelos espanhóis sistema «tratadístico» de a praça central ser acompanhada por duas mais pequenas de
e o sistema fechado europeu originado na «cidade ideal» terão os portugueses envereda- implantação periférica, não é inédito o alinhamento de praças sucessivas em enfiamento
146 do, por imperativo de formação teórica, pelo segundo. Mas como essa aprendizagem perspéctico, uma maior com a igreja, outra menor com o pelourinho. 147
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DA ÉPOCA BARROCA EM PORTUGAL

Se tudo isto indicia a forte implantação da engenharia militar, sugere igualmente a tentando para tal negociar com o Cabido da Sé o Campo dos Hortos. Para este novo local
tendência para a diversidade formal dentro de princípios universais ou gerais. E se passar- foi então projectada nova praça, agora quadrada, de proporções idênticas à Praça Maior
mos da teoria à prática, ou do projectado ao construído, poderão encontrar-se situações- de Madrid, igualmente fechada, com abóbadas de aresta assentes em arcarias. O acesso
-limite que favoreçam razões sem razão para o já denunciado lugar-comum do «sabor era feito por quatro grandes arcos abertos no centro de cada lado e que corresponderiam
medieval» de muitas cidades brasileiras, tal a diversidade, organicidade ou espontaneismo
à intercessão de dois novos eixos urbanos. Embora tivesse começo de execução e viesse a
detectáveis em alguns casos. É que ao radicar-se entre nós o predomínio do princípio
ter o apoio de D. Tomás de Almeida, entretanto nomeado para a Sé do Porto, esre segun-
sobre a norma, pode estar-se não só a abrir caminho à diversificação como a empurrar a
do projecto foi igualmente abandonado em 1715.
prática urbanística para si;uações de «brecha», por onde se podem instalar processos me-
Com a nomeação de D. Tomás para o primeiro Patriarca em 1719 e ficando vários
nos ortodoxamente cartesianos ou mais libertariamente organicistas, visualistas ou tea-
anos a diocese em situação de "sede vacante)) e portanto sob o governo do Cabido, este
trais, e por onde uma sociedade de mentalidade barroca poderá introduzir alguns dos
consegue acabar por levar a efeito a construção de uma terceira praça de características
seus valores espaciais mais queridos. Assim, a implantação isolada da igreja entrevista
diversas, a Praça das Hortas, de que a Praça Nova oitocentista veio a ser herdeira directa
como ponto de fuga e inserida no topo de conjuntos viários de sentido perspéctico, ou a
como centro vital do Porto contemporâneo. Mas foi também neste período de governo
sua colocação numa plataforma tangente ao eixo das ruas, ou no cimo de um escadório
capitular que o Porto acolheu a animação espacial de Nicolau Nazoni, com a densa im-
enquadrado por fundos paisagísticos geradores de situações visualmente dinâmicas, pode
plantação de edifícios barrocos que, destacando-se por cima do velho casario, como aliás
permitir interpretar certos casos aparentemente menos planificados do urbanismo brasi-
o tinham já pré-anunciado os grandes templos maneiristas do século XVII, alteram decisi-
leiro como portadores de um discurso espacial barroco.
vamente a imagem da cidade medieval, enquanto pontos focais de sentido barroco, cuja
Se a situacão ultramarina é dominada, quase exclusivamente, pela escola de enge-
intervenção urbanística não pode ser escamoteada.
nharia militar portuguesa construindo, além de fortalezas, novas vilas e cidades, na Me-
trópole a acção dos engenheiros militares, além da construção das estruturas defensivas, Encerrado este primeiro ciclo das novas experiências portuenses e voltando-nos
orientou-se mais para uma arquitectura utilitária de infra-estruturas, estradas, pontes, logicamente para a Corte, nada de semelhante encontramos aqui, à primeira vista. No
aquedutos, mas também para a correcção ou regularização de vilas ou cidades velhas. entanto, talvez seja de reflectir sobre a quase coincidência cronológica entre a primeira
E não esqueçamos que só no século XIX o engenheiro se distingue totalmente do arquitec- tentativa de acção urbanística no Porto (c. 1687) e a primeira intervenção da Coroa na
to. A história da arquitectura portuguesa anda de braço dado com a história da engenha- imagem da Cidade de Lisboa em termos de estética barroca. Trata-se da construção da
ria militar, sendo esta particularmente a marcar o século À'VII com a longa duração do Igreja de Santa Engrácia (l 681) pelo maior arquitecto do protobarroco nacional, a qual,
«estilo chão» e oferecendo resistências à afloração do barroco, mas dando oportunidade a pela perfeita adequação entre planta, altimetria, volumetria e implantação, constitui, sem
que, no seu seio, viesse a nascer o protobarroco nacional. dúvida, um marco importantíssimo na tímida transformação de Lisboa seiscentista, numa
O barroco aflora, então, não só por uma situação de «brecha», co1170 a sugerida para o cidade barroca, pelo singular efeito de dinamização espacial deste objecto arquitectónico
Ultramar, mas também pelo modo como os objectos arquitectónicos de feição barroca de feição única. É com este mesmo sentido fragmentário e pontualizante, tal como acon-
interferem, por si mesmos, no domínio do urbano. Estaríamos então em situações mais teceu no Porto nazoniano, que vão actuar as torres das igrejas lisboetas. Agentes de uma
afins à primeira das classificações apresentadas. poderosa dinamização espacial, elas constituem uma série que, partindo de um modelo
Vejamos, a título de exemplo, o que acontece no Porto. No seio de uma cidade seiscentista de remate bulboso e mediante tranformações qualitativas importantes, como
medieval em fase de expansão económica e demográfica, com uma tradição de consciên- a que resulta da construção da Torre do Relógio de Canevari, irá percorrer, em sequência
cia urbana extremamente aguda e por meio certamente de uma equipa dos melhores formal, o século das luzes, até às últimas e simplificadas torres pombalinas. E é ainda
arquitectos e engenheiros militares da época da Restauração, surge em 1687 o primeiro mediante o mesmo sentido pontualizante que irão decorrer as acções de D. João na sua
grande projecto de renovação da cidade. Este envolve o traçado de uma enorme praça capital. A chamada de Juvarra para projectar o frustrado complexo da Basílica Patriarcal,
rectangular fechada, um modelo novo entre nós, ligada ao exterior apenas por quatro o Palácio Real e o Paço Patriarcal, e de que resultaria um efeito retórico de arquitectura de
portas monumentais, que enquadram duas fontes barrocas colocadas nos topos. Pressu- poder. A conseguida monumentalidade do conjunto, aparentemente só utilitário, do Aque-
punham uma complexa obra de engenharia com canalização do Rio de Vila e expropria- duto das Águas Livres com o Arco do Triunfo, a Mãe de Água e a rede de chafarizes
ções ousadas de muitas casas nobres. colocados segundo um plano que implicava um programa urbanisticamente coerente,
Face à inviabilidade desta primeira experiência, logo a cidade do Porto se lança em
como é evidente, por exemplo, na estratégica colocação do Chafariz do Rato numa sensí-
148 segundo projecto, desta vez fora das muralhas, e, portanto, em área de expansão urbana,
vel área em plena fase de mutação do tecido viário e urbano, ou nas esplêndidas e urili- 149
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DA ÉPOCA BARROCA EM PORTUGAL

tárias meias-luas, cuidadosamente desenhadas por Mardel na Rua Formosa, junto à Casa água, ornamental e útil, transportada através de um novo aqueduto expressamente
dos Carvalhos, com uma elegante fonte de espaldar em edícula numa, com cortesãs num construído para o efeito.
desenho barroco na outra, programa que se desenvolve com o mesmo, para além da época Mas se nos reinados de D. Pedro II e D. João V a velha escola portuguesa de urba-
joanina, como na adequada preparação urbanística criada por Reinaldo Manuel para o seu nismo não deixou de criar novos centros urbanos no Novo Mundo e também não esteve
Chafariz das Janelas Verdes. Ainda a feição transformadora da imagem da cidade que 0
em hibernação na velha Europa, a sua grande oportunidade foi-lhe dada pelo Terramoto
conjunto das Necessidades consegue imprimir, como que concretizando com espírito ro- de 1755. Então, o velho engenheiro-mor do Reino, Manuel da Maia, já octogenário,
mano e escala lisboeta o frustrado projecto juvarriano numa coerente implantação de Palá- com a naturalidade de quem cumpre uma missão inerente ao seu cargo, é encarregado, de
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cio, Capela, Torre e Hospkio ássinalado face à cidade e face ao Tejo pelo Obelisco emerso imediato, de presidir à reconstrução de Lisboa. Depois de dissertar sobre as diversas hipó-
em fonte, o ornamento mais retórico do barroco romano da Lisboa barroca. teses de solução, e assente que a capital deverá ser reconstruída no mesmo sítio, escolhe,
Apesar do que se acaba de dizer das Necessidades, poderá ter sido Mafra o sucedâneo de entre os militares de sua confiança, aqueles que poderiam concretizar, em equipa e
imediato do programa juvarriano, mas tal só fará sentido pleno se se puder dar ao Palácio- sozinhos, seis programas com diferentes graus de correcção do tecido urbano da Baixa,
-Basílica-Convento de Mafra não só o estatuto de grande conjunto urbano como os efeitos onde estão patentes a prática, a competência e a celeridade de soluções que não se impro-
da sua implantação puderem ser lidos em termos urbanísticos. Por outras palavras, o Con- visam. Naturalmente que em nenhum caso é proposta uma quadrícula perfeita, conju-
vento apresenta-se como fachada urbana voltada à vila e ao mar, com os três elementos gando-se muitas vezes a quadrícula com a retícula e com a presença assinalável de praças
essenciais de composição de um grande palácio da Europa barroca: um corpo central, a octogonais, ou ainda de igrejas isoladas, inscritas em perspectivas lineares. Na solução
Basílica (frente à qual uma plataforma/escadório a projecta subtilmente na grande praça), adaptada, Eugénio dos Santos, conseguindo uma harmonização original entre as duas
dois corpos laterais, os palácios e os dois torreões terminais. Estes repõem a memória urba- praças preexistentes, sem que nenhuma delas tenha perdido o essencial da sua expres-
na do Paço da Ribeira, enquanto a Basílica sugere uma outra Basílica, a de São Pedro, em sividade urbanística, vai estabelecer uma malha ortogonal em que os quarteirões, de dese-
que outra «Sala das Bênçãos» será simbolicamente o ponto de fuga perspéctico ou de con- nho rectangular, se organizam em dois grupos: o Rossio comanda o sentido «vertical» das
vergência da visualização de todo o conjunto áulico. Já Robert Smith, aliás, associara esta cinco filas de quarteirões que lhe estão próximos e o Terreiro do Paço determina o senti-
fachada ao lado principal da Piazza Navona, lendo-a, portanto, como grande composição do «horizontal» das três séries de quarteirões, de tamanho decrescente de sul para norte,
de frente urbana, embora sem tirar da sua leitura positivista todas as possíveis decorrências. que lhe estão contíguas. Consegue assim, ao mesmo tempo, diversificar a rigidez da ma-
Foi precisamente no caminho, então obrigatório, entre Lisboa e Mafra, e como lha e aligeirar a sua inevitável monotonia. Este programa estende-se para oeste, com base
projecção indirecta do poder régio através da sua expressão mais desejada de imagem nos mesmos princípios, embora com condicionalismos diferentes, abrangendo quer a
exterior no conceito das nações - a criação da Patriarcal - que o I Patriarca promoveu zona ribeirinha quer a zona de S. Francisco. Ruas e praças são então preenchidas não por
a criação de um dos mais conseguidos trechos do urbanismo barroco de sabor romano do prédios individualizados mas por blocos de modelos uniformizados, cuja tipologia de
Portugal setecentista. Aproveitando a estada entre nós de António Canevari, D. Tomás fachada varia consoante o lugar hierárquico das ruas para onde deitam (principais as
de Almeida serve-se de um velho património da diocese na aldeia de S."' Antão do Tojal N-S de 60 palmos, secundárias as L-0 de 40, de acordo com a tradicional distinção entre
para sobre ele fundar uma vila com grande aparato senhorial. Restaurando a igreja, utiliza ruas e travessas). É o princípio de subordinação total da arquitectura ao urbanismo.
a sua fachada nobilitada como términos de uma nova via de acesso à povoação e seu A cobertura de uma tão vasta área por apenas três ou quatro tipos de fachadas (ou
imediato enquadramento perspéctico, à esquerda da qual e mediante um «efeito surpre- suas variantes), que constitui umas das mais interessantes características da Lisboa
sa» se abre uma praça dominada por um palácio com uma fonte monumental, a fachada pombalina, reveladoras do espírito de ordem, sobriedade e economia que presidiram à
restaurada do paço episcopal e a face esquerda da igreja dominada por um portal articula- sua edificação, dentro da nossa tradição de urbanismo de programa, foi viabilizado por
do com janela de balcão (simulacro da Janela de Bênçãos?), rematada pela torre que um sistema revolucionário de fabrico em série ou de estandardização de vários elementos
articula, como pivot, a praça com a igreja. Se a entrada da residência de veraneio do construtivos.
Patriarca se impõe pela dignidade do seu portal nobilitado pelas armas patriarcais, é a Para além destas tipologias, que se alinham disciplinadamente pelas ruas da Baixa,
fonte inscrita no centro do novo palácio enquadrado por dois torreões que marca profun- desenharam-se morfologias especiais, com intuitos de nobilitação para o Rossio, e sobre-
damente, com uma visualidade barroca, o notável conjunto. É ela que atrai o olhar de tudo para o Terreiro do Paço, que funcionará, a partir de agora, como a praça principal da
quem entra na praça, é ela que ostenta em maior profusão os elementos essenciais a uma cidade, onde se conjugam todos os efeitos retóricos de uma arquitectura de poder. Ape-
150 cenografia barroca, é dela que brota, como efeito de animação e como dádiva do poder, a nas para aqui se prevêem arcarias, num conjunto de grande eficácia cenográfica, centrado 151
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO DA ÉPOCA BARROCA EM PORTUGAL

por um Arco Triunfal de entrada na cidade e flanqueado por dois torreões, que funcional 1776. Enquanto em Mazagão e Vila Bela, um quarteirão modular quadrado marca toda
como duplicação por simetria do velho Torreão da Ribeira. Como Praça Real do Comér- a malha urbana, no projecto para Nova Goa tenta-se organizar o espaço urbano a partir
cio, será ao mesmo tempo o receptáculo para a estátua do rei (como em todas as praças dos Arsenais situados entre o rio e a praça principal, também quadrada. Nenhuma atinge
reais da Europa cortesã) e o símbolo do poder do Estado, neste caso do Estado iluminista, todavia a coerência formal de Vila Real de Santo António.
restaurador de uma cidade no contexto de uma sociedade nova. A dinâmica pombalina no campo urbanístico estende-se também ao Porco, onde logo
Além desta área efectivamente construída, com uma exemplar coerência urbanística em 1758 é constituída uma Junta dos Trabalhos Públicos, presidida por João de Almada e
que é bem a expressão do Absolutismo Esclarecido de Pombal, outras áreas da cidade Melo, um familiar de Pombal, que vai intervir profundamente no velho tecido urbano
foram também objecto de Il!rogl-amas de expansão urbana. É o caso de toda uma vasta medieval e dar início a um programa de renovação continuado por Francisco de Almada e
zona a noroeste da Baixa, cujo estudo foi entregue por Maia a Eugénio dos Santos, Mardel Mendonça. A peculiaridade da implantação urbana portuense aconselhou, ao contdrio de
e Poppe, coadjuvados por dois assistentes, António Carlos Andreas e Poppe filho. Esta Lisboa, à idealização de um plano radiocêntrico envolvendo a estrumra da cidade antiga.
equipa desenhou então para este sector um plano em que predominava o sistema reticular Partindo de uma nova Praça da Ribeira, que se pretendia monumental e reconstruída com
com ruas de largura variável consoante a sua importância, que se abriam em 14 praças, a arcarias, rasgou-se um novo eixo, a Rua de S. João, delineando-se para além da antiga cerca
maior das quais a das Águas Livres, de forma rectangular e que se conjugava habilmente fernandina sucessivamente três grandes eixos, entrecruzados, que haveriam de garantir o
com sistemas irradiantes, comandados por duas praças, uma octogonal, outra elíptica. desenvolvimento futuro da cidade: Rua do Almada, Rua de Santa Catarina, Rua de Cedofeita.
Este, como outros planos para outras zonas da cidade, foi posto de parte. Mas deve sublinhar-se que, ligando-se as antigas igrejas (Clérigos, Congregados, S.'º Ildefonso,
A projecção mais directa do urbanismo da Lisboa reconstruída deu-se vinte anos etc.), pela abertura de novas vias, ou abrindo largos nas suas imediações (Misericórdia),
depois em Vila Real de Santo António, com planos de Reinaldo Manuel dos Santos, ainda mais a arquitectura portuense se afirma como «arquitectura de objectos)), acabando
discípulo e continuador de Eugénio dos Santos. Também delineada na Casa do Risco, ela por sair reforçada a imagem do Porto barroco.
corresponde todavia a um programa intrinsecamente diferente, a construção de uma pe- É curiosamente oriundo do meio arquitectónico desta cidade e pela pena de um
quena vila «ex-nihilo». E assim como a velha escola portuguesa de urbanismo foi capaz de discípulo de Nazoni, que surge entre nós a única obra de teorização utópica do urbanis-
rapidamente engendrar uma pragmática, mas genial, solução para Lisboa, também sou- mo e do ordenamento do território. Trata-se do «Tratado de Ruação» de Figueiredo Seixas,
be, utilizando-a como capital de experiência acumulada, construir uma nova povoação interessante texto escrito nos anos 60 e indicador de uma mentalidade diferente do espí-
sob a forma de «cidade ideal», com uma estrutura coerentemente entendida como um rito da escola portuguesa de engenharia militar, quer pelos princípios de formação teóri-
todo. Planeada sob a forma de um rectângulo com os lados maiores virados a nascente e ca, quer pelos modos de actuação prática.
poente e os menores a norte e a sul, é cortada por cinco ruas no sentido norte-sul e seis no Talvez revelando-se ainda como fruto serôdio desta escola, através de uma possível
sentido leste-oeste, que se articulam ortogonalmente formando 41 quarteirões, dos quais influência de Vila Real, poderá definir-se a nova povoação alentejana de Porto Covo,
apenas 30 são rigorosamente iguais, constituindo os restantes dois modelos que se agru- mandada erigir por uma personalidade típica da nova burguesia de origem pombalina,
pam, entrecruzando-se numa praça quadrada, com o centro assinalado por um obelisco a Jacinto Fernandes Bandeira, com o impacte da sua praça quadrada com torreões nos
D. José I. Esta vila, cujo elemento retórico mais significativo é a sua «fachada de aparato» cantos, embora, ao contrário da vila algarvia, de ângulos fechados.
virada a Espanha, centralizada pela Alfândega e rematada por dois torreões, aparente- Distante desta escala, sobretudo ideologicamente, est,Í a intervenção de Diogo Inácio
mente simples na sua linearidade, é altamente racionalizada, organizando-se por meio de de Pina Manique, no seu prazo de Alcoentrinho, que D. Maria Ilhe doara em senhorio,
um sistema modular único que se estende da planimetria à altimetria e à volumetria, passando a chamar-se Manique do Intendente, com dignidade de vila, e centro de um
regendo-se por rigorosas leis de simetria, repetição, alternância, espelho e homotetia. ambicioso programa de colonização interna. O palácio do Senhor, pensado cm termos de
Praticamente contemporâneas de Vila Real são várias das novas cidades ultramari- cenografia barroca e implantado a norte da aldeia, constituiria o pomo de fuga de um
nas que continuam a construir-se, agora bafejadas pelo dinamismo que a reconstrução de enfiamento perspéctico, para o que se utilizava a estrada de Lisboa que, atravessando a
Lisboa veio proporcionar à Engenharia Militar Portuguesa, como Nova Mazagão, projec- povoação, se transformaria em via triunfal. De arquitectura ecléctica, cujo desenho origi-
to do capitão Inacio Mariz Sarmento de 1770, Vila Bela da Santíssima Trindade no Mato nal ainda hoje permite aquilatar a qualidade do projecto e o desvio na sua execução
Grosso, que o governador Albuquerque mandou melhorar pelo engenheiro Francisco (parcelar), este palácio apresenta uma composição inspirada em Mafra com a igreja ao
da Mota na continuação do primeiro projecto de 1572 e várias hipóteses de reconstrução centro, corpos intermédios centrados por entradas próprias e dois torreões nas extremi-

l
152 da cidade de Goa, de que salientaremos o programa do sargento-mor Antas Machado de dades. Um obelisco remata a igreja e seria acompanhado por um frontão interrompido, 153
UNIVERSO URilANfSTICO PORTUGUÊS

hoje abastardadamente arredondado. Com colocação propositadamente lateralizada em


face do grande terreiro do paço, situa-se uma praça hexagonal centrada pelo pelourinho
implantado em escadaria, que miniaturiza a forma da praça, ladeada por blocos de dois
pisos, onde se pode pressentir ainda o eco da formalização pombalina. O bloco norte
projectado para a Casa da Câmara da nova vila é enquadrado por amplo corpo central
rematado por frontão triangular assente sobre pilastras lisas. Um sistema irradiante de
ruas com nomes de imperadores romanos completaria o complexo urbanístico, único RURAL & URBANO
entre nós, e que poderá rec®'rdit algumas das novas povoações da colonização interna ESPAÇOS DA EXPANSÃO MEDIEVAL: ORIGEM
andaluza. Joaquim Fortunato de Morais, o casapiano que Pina Manique mandou estudar DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL IBERO-AMERICANA?
em Roma de 1758 a 1794, terá chegado a Portugal demasiado tarde para ter sido o autor
do projecto, embora tenha seguramente trabalhado nas obras desta frustrada vila barroca. Gl.ENDA PEREIRA D11 CRUZ
Faculdade de Arquitectum
da Universidade Fedem! do Rio Gmnde do Sul

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154 'Texto inédito entregue para publicação em 1997.


Considerações preliminares sobre o Medievo

A filiações às instituições do Medievo dos povos ibéricos, ao longo do período em


que se deu o processo da expansão atlântica (séculos XV e XVI, notadamente), é fato já
assumido pela historiografia contemporânea. Vários autores - sob os mais diversos aspec-
tos - levantaram questões relativas aos componentes medievais que se evidenciaram nos
processos de conquista e colonização da América, tanto por parte de portugueses como de
espanhóis que são as vertentes colonizadoras que balizam o interesse último da presente
exposição.
Leopoldo Torres Balbás, Francisco de Solano, Charles Higounet, Charles Verlinden,
Luis Weckmann, Pierre Chaunu, Roberto Lopez, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque
de Holanda, entre tantos outros, de uma forma ou de outra, chamaram a atenção para
algum aspecto medieval: instituições, atitudes, ações, políticas, etc.
Gostaria, contudo, de trazer à discussão um aspecto que, penso, não foi suficiente-
mente abordado e mesmo, em alguns casos, teve sua discussão indevidamente enfocada,
voluntária ou involuntariamente. Trata-se do aspecto relativo à organização espacial urba-
na dos novos assentamentos ibéricos na América, leia-se, Arquitetura e Urbanismo.
A discussão justifica-se na medida em que encontram-se, ainda hoje, obras recentes
da historiografia da Arquitetura e do Urbanismo com posturas relativas às organizações
espaciais ibero-americanas eivadas de conotações de natureza ideológico-cultural que, muitas
vezes, confundem a compreensão da História. Refiro-me, especialmente, aos conteúdos
ditos «renascentistas» dos padrões urbanísticos, que teriam sido adotados nos novos assen-
tamentos coloniais, principalmente os espanhóis.
Além disto, duas outras questões emergem desta justificativa: a primeira é tentar
colocar em outros termos a consideração de que a Península Ibérica não faz parte integran-
te da Europa - postura assumida por uma quantidade expressiva de autores, entre histo-
riadores, arquitetos, urbanistas, etc., tanto portugueses e espanhóis, como de outras nacio-
nalidades fato que espanta pela falta de relevância que é conferida ao fato geográfico e
sua interação com os fenómenos socioeconómicos no período medieval, e pelo seu eviden-
te, no meu entender, conteúdo ideológico. No Medievo a comunicação horizontal - ou
seja, os contatos comerciais, culturais, etc., entre as diversas regiões, se desdobraram por
todo o território europeu - esteve presente de maneira efetiva. Mesmo porque as «fron-
teiras» de um mundo ruralizado e politicamente fragmentado numa infinidade de reinos, 157
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS RURAL & URBANO

condados e ducados, tinham uma mobilidade muito grande e os Pirineus, apesar de se nhola, trata-se, isto sim, de procurar enquadrar essas realizações na seqüência do contexto
constituírem numa barreira geográfica considerável, nunca foram intransponíveis, e a histórico que antecedeu os Descobrimentos e, na medida do possível, na forma menos
integração do Norte da Península (Galiza, Astúrias, León, Navarra, País Basco, Aragão e ideologizada que se possa conceber.
Catalunha) com o Sul da França é comprovadamente marcante. Biget e outros, ao fazer A respeito das idéias preconcebidas sobre a Idade Média e o Renascimento, Jacques
sua exposição sobre a arte cisterciense do Midi toulousiano, ressaltam que: Heers4 esclarece o quanto herdamos da historiografia do século XIX posturas e atitudes em
«Quando se examina a arte religiosa da Idade Média no Midi da França, apercebemo- relação a estes períodos que, na maioria das vezes, não só não correspondem a uma realidade
-nos, rapidamente que, deste ponto de vista, não existem os Pirineus [o grifo é meu]. À aproximada e verificável pelas pesquisas e documentação como, também, padecem de uma
época romana, as trocas recwrd°bs se efetuavam entre a região Toulousiana e a Galiza ao grande simplificação. Segundo Heers, as idéias que identificam no Renascimento um «retor-
longo do caminho de Compostela e, mais tarde, o gótico catalão se inscreve na corrente do no» às fontes clássicas, na literatura, na filosofia, nas artes, etc., carecem de fundamento
gótico meridional.» 1 histórico à luz da historiografia contemporânea. Por exemplo, a arte antiga e a arte medieval,
Se atentarmos para o percurso do «Caminho Francês» - a rota de peregrinação em segundo a historiografia da arte tradicional, seriam de «naturezas» diferentes em função de
direção a Santiago de Compostela - verdadeiro eixo económico, sociocultural e religioso uma pseudoperfeição técnica em representar a natureza (adquirida no Renascimento). Como
que ligou os territórios da então «França» (que incluía, ainda nos séculos XII, XIII e XIV2, se os artistas medievais sofressem de um imperícia nata (todos!) e que só com o desenvolvi-
imensas áreas vinculadas ao reino da Inglaterra, na Gasconha e Aquitânia) ao Norte Ibéri- mento das técnicas de perspectiva, de observação da natureza, etc., é que teria sido suplanta-
co, chegaremos à conclusão de que, realmente, estas regiões foram extremamente ligadas. da, ou seja, aquelas «deficiências» teriam sido sanadas com o desenvolvimento das técnicas!
Numa primeira tomada de posição, frente aos estudos medievais do período da cha- Não pode haver maior absurdo: como se em cinco ou seis séculos o ser humano ocidental
mada «expansão urbana» dos séculos XI, Xll e XIII, torna-se necessário, sob o meu ponto de tivesse ficado menos inteligente e menos destro; relegam-se as motivações espirituais da arte
vista, alternar um enfoque abrangente, sob o ponto de vista geográfico, do território euro- medieval a um segundo plano, desconhecem-se os seus objetivos, suas justificativas, suas
peu ocidental, onde a Arte, a Arquitetura e o incipiente «Urbanismo», neste período de inspirações. Também a historiografia tradicional distorce as características e nuances regio-
transformações estruturais, demonstram uma certa unidade de programas, técnicas e pro- nais e as diversas fases da arte medieval, cunhando a sua última fase, a «gótica», com um
cedimentos3, e o enfoque regionalizado, onde cada região apresenta suas especificidades, termo depreciativo aludindo a uma arte «bárbara», portanto sem qualidade, rude e sem
suas interpretações características. perícia. Além disto, as contradições de tais posturas são evidentes, em todas as ;ireas do
Em segundo lugar, deve-se ressaltar, também, que a conotação de «medieval» atribuí- conhecimento, quando nos perguntamos se a Idade Média realmente «esqueceu» os funda-
da às instituições e materialidades da colonização ibérica na América não tem a conotação mentos da cultura clássica. Na Arquitetura, que é o nosso campo de atuação, além da eviden-
«obscurantista» que, até hoje, ainda perdura em grande parte da bibliografia sobre este te filiação da criação artística do período carolíngio com a Antiguidade greco-romana, filiação
período, dito «intermediário» entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento. Portanto, reconhecida por todos, ressaltamos como Heers, que:
tendo em vista o inegável e excepcional feito da descoberta e ocupação de um novo conti- «Dizer que a arte "românica" da Itália, da Espanha e da Provença se inspirou largamente
nente no Atlântico e a extraordinária obra que foi o processo de colonização, através da na Antiguidade Romana é simplesmente lembrar uma evidência. [... ] A arte gótica não rompe
política de implantação de sistemas urbanos, notadamente por parte da monarquia espa- absolutamente com esta fidelidade, bem ao contrário. É possível que nossa tradição historiográfica
tenha privilegiado um pouco as técnicas de construção acentuando sobretudo a célebre cruza-
ria de ogivas, criação certamente original, mas negligenciando ou colocando num outro nível
'BIGET, Jean-Louis, PRADALIER, Henri e PRADALIER-SCHLUMBERGER, Michele, L'Artcistenien
dam !e 1vfidi tou!ousian, in Les Cisterciens de Languedoc (Xllf-XIVe), vários aurores, Cahiers de Fanjeaux, Privat, de interesse a decoração e ornamentos, a escultura monumental entre outros.» 5
Toulouse, 1986.
2 Neste aspecto, gostaria de chamar a atenção, também, para filiação evidente ao mundo
Em meados do século XII, por volta de 1154, quase metade do atual território da atual I'rança estava cm
mãos da Inglaterra, sendo que, posteriormente, cerca de l 328, só uma pequena parte do Sudoeste francês, a clássico romano das organizações espaciais dos mosteiros, abadias e conventos que vão bus-
Gasconha, ainda estava em mãos inglesas. car nas «villas» rurais romanas os critérios para a organização dos seus espaços. As comunida-
J Ver a este respeito, CONANT, K. J., Arquitectura Carolíngia _y Románira, 800/1200, Cátedra, Madrid,

1982; FOCILLON, H.,Arte do Ocidente- a Idade Média Românica e G'ótica, Estampa, Lisboa, 1980; KUBACH,
des religiosas que dominam o cenário europeu, pelo menos até os finais do século X!, adotam
H. E., Architecture Romane, Galimard/Electa, Milão, 1992; FONTAINE, J., B prerrornáuico, Madri: Encuentro, claramente na sua organização espacial os padrões compositivos da arquitetura das vil/as
1982; BONET CORREA, A.,Arte Pre-RornanicoAsturimzo, Barcelona, Polígrafo, 1967; KOSTOF, Spiro, Historia
de la Arquitecttmt, Madri: Alíanza, 1988; DUBY, Georges, São Bemardo e rt Arte Cistercense, São Paulo, Martins
Fontes, 1990; CHUECA GOJTIA, Fernando, Historia de laArquitectura Occidenta!, Madri, Dossat, 1989, entre 4
HEERS, Jacques, Le Mo_yenAge, une imposture, Perrin, Paris, 1992.
158 outros. 5 Heers,J. Op. cit., pp. 85-86. 159
UNIVERSO URBANfSTJCO PORTUGUtS RURAL & URBANO

romanas, rurais e/ou suburbanas, e do desenho urbano colonial dos Romanos, adaptados ao Dificilmente, acredito, uma substancial alteração nas formas de organizar os espaços de
uso da comunidade religiosa, tendo o Cristianismo como pano de fundo. Depois de um vida nasce a partir de uma postulação teórica, de uma proposta abstrata. Tenho a convic-
largo período de formulação de procedimentos e modos de administrar a vida coletiva das ção de que a necessidade pragmática de resolver os problemas mais imediatos dos assenta-
ordens religiosas (nascidas no Oriente Próximo, por volta do século IV), a ordem beneditina, mentos de apoio à produção, distribuição de terras, ao estabelecimento de vias de comuni-
com Cluny primeiramente e, depois do século Xll, Cister, vai ser responsável por grande cação para o comércio dos produtos e aquisição dos utensílios, enfim para a manutenção
parte da salvaguarda da inspiração clássica em todas as áreas culturais. A regra de São Bernardo da vida cotidiana, é o fator primordial que leva ao estabelecimento de padrões de assenta-
6
nas casas de Cister vai ser a base de um grande desenvolvimento do Gótico: a severidade e o mento. É a experiência das colonizações medievais européias que vai ditar os procedimentos
despojamento das construções"'cle Cister, os detalhes construtivos são, evidentemente, uma mais eficazes para o atendimento das necessidades de curto, médio e longo prazo na Amé-
inovação - em pleno século Xll - na leitura dos padrões clássicos e, com isto podem ser rica. Por fim, a experiência medieval, por sua vez, reporta-se, muitas vezes, aos ensinamentos
considerados como um estilo renascentista «avant-!a-!ettre». Além disto - vou voltar ao das práticas dos assentamentos urbanos e/ou rurais da civilização romana. As formas de
tema adiante - muitos dos assentamentos urbanos que integram o movimento de expansão divisão e distribuição de terras de cultivo romanas, a centuriatio, permanece até hoje na
do mundo ocidental cristão a partir dos séculos XI e Xll foram empreendidos, por decisão paisagem dos campos europeus em muitas regiões 111 :
própria ou por solicitação de autoridades nobres e/ou eclesiásticas, pelas casas de Cister atra- «O tema da estruturação agrária romana, que permanece até a época moderna e
vés da fundação de cidades-novas ou bastides, a partir, muitas vezes, do aproveitamento das determina uma unidade de paisagem, hoje quase identificada com sua geografia, deve
suas antigas granjas produtivas, instaladas nas terras por elas arroteadas. Pode-se resumir a relacionar-se diretamente com o problema da propriedade do solo, e mais concretamente
questão com a colocação de Heers: com a permanência de seus instrumentos de divisão e parcelamento.» 11
«Do carolíngio ao gótico, em todos os domínios da expressão artística, da arte monu- Uma observação que se faça - ainda que inicialmente superficial, por querer ser
mental às pequenas figuras, às iluminuras e trabalhos de esmaltadores, esses homens da Idade abrangente das características, das motivações, das formas sociais, técnicas, políticas e
Média certamente cultivaram seus próprios registros de emoção, mas sabiam, numa quanti- económicas daquelas colonizações conduziram a esta convicção: Espanha e Portugal leva-
dade de ocasiões, sempre beber nas fontes antigas. A idéia de um esquecimento dessas heran- ram para a América não só as suas experiências de colonização no seu próprio território
ças e de modelos parece, como tantas outras tão definitivas, o fruto de uma visão simplista, mas, também, as experiências das colonizações da expansão econômica e territorial dos
artificial e errónea.,/ séculos XI e XII, no continente europeu, as colonizações mediterrânicas e atlânticas, com-
A ênfase da presente exposição situa-se na tentativa de buscar evidências de que, por partilhadas, talvez na maioria das vezes, com navegadores e colonizadores das outras re-
trás de toda a experiência urbana colonial ibérica, estão as práticas coloniais medievais, não giões européias.
só dos reinos 8 ibéricos, às voltas com os difíceis processos de repovoamento e/ou recon- Assim, o presente trabalho propõe-se a examinar alguns dos aspectos, fases, motiva-
quista dos territórios de ocupação muçulmana para os reinos e senborios cristãos mas, 9 ções e características das colonizações medievais, os quais chamam a atenção pela possibi-
também, as práticas dos reinos de outras regiões européias, como os situados nos territó- lidade de se constituírem em precedentes diretos das fórmulas conhecidamente adotadas
rios da atual França, Inglaterra, Alemanha, Itália, etc., embora, evidentemente, não seja na América. Aos traçados urbanos medievais, ditos de intuitivos ou espontâneos, mais
possível abordá-las como um todo, dentro dos limites de uma comunicação e da atual fase conhecidos como «tipicamente medievais», se contrapõem traçados racionais, regulr1res.
de pesquisa que ainda apresenta grandes dificuldades. Uma dificuldade que se apresenta aos pesquisadores das organizações espaciais na
Além disto, a convicção das origens imediatamente medievais das práticas america- história das formações económico-sociais, especialmente as da história medieval, hoje, é a
nas também é reforçada pela constatação de que as práticas sociais sempre antecedem a de se libertar da noção de «Estado-Nacional». Não é só o problema político que se mani-
formulação das teorias e das justificativas, técnicas ou ideológicas, que as referendam. festa, é, para o arquiteto e/ou urbanista, ou para o geógrafo, um grave problema para uma
correta visão físico-territorial. As «histórias» nacionais têm sido construídas a partir de

6
Ver a obra de George Duby, São Bernardo e a Arte Cistercieme, 1990.
7
Heers, J. Op. cit., p. 86. "'Ver BENEVOLO, Leonardo, Origenes dei urbanismo modenzo, Madri: H. Blume 1976; WEBER, Max,
8
Como reino estou englobando, aqui, todos os tipos de unidades territoriais dotadas de um poder local História agrária romana, São Paulo, Martins fontes, 1994; CRUZ, Glenda, tese Autecedentes... , op. cít., capí-
autônomo, como ducados, condados, reinados, repúblicas (caso típico das cidades italianas), etc. tulo 4, Os espaços coloniais da Península Ibérica romana, 1995.
11
9
O tenno «senhorio}), aqui, é en1pregado apenas no sentido de urn território conutndado por u1n ((Senhor», L!NAZASORO,José Ignácio, Permanencias y arquitectura urbana. Las ciudades vascas de la época romana
laico ou eclesiástico, não entrando na conceituação n1ais precisa da instituição socioeconôn1ica e política do à la llustrttción, G. Gili, 1978, p. 22.; ver principalmente, WEBER, Max, História agrária romt1w1, S. Paulo,
160 senhorio francês, germânico, etc., que incluía outras variáveis na sua composição. Martins Fontes, 1994. 161
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uma delimitação físico-territorial contemporânea, com fronteiras políticas efetivamente mento de vida material e cultural, integram uma única realidade. Assim a oposição «urbano
demarcadas, em detrimento da noção (muito mais comum na Idade Média Européia) de & rural» não entra nas cogitações da presente exposição porque se ela existe - e em
12
regiões amplas que se caracterizem como conjuntos de formações econômico-sociais • muitos casos pode acontecer - há apenas um peso maior, um grau maior ou menor de
Estas regiões amplas são áreas dotadas de um intenso relacionamento de trocas - produ- uma ou outra instância do mesmo espaço sociocultural, mas dentro da mesma realidade:
tivas, tecnológicas, comerciais, religiosas, culturais, etc. - , que nem sempre se detém nas não são mundos diferentes, são mundos complementares e a sua unidade é indissolúvel.
fronteiras políticas, extremamente variáveis no tempo e no espaço. Este aspecto se soma ao Diversas categorias de análise têm sido empregadas para definir a «cidade», especial-
acima aludido, o da interação horizontal, apesar das barreiras geográficas, constituindo-se mente a cidade medieval. Simone Roux faz um ensaio de classificação no qual discute a
em dificuldades a serem"'sup~radas com bom senso e a procura de apoio de imagens propriedade de utilização dos seguintes critérios: o número de habitantes, problemas
cartográficas sem demarcação de fronteiras atuais. comuns, atividades e funções urbanas (como funções religiosas, funções de justiça, atividades
de produção artesanal e sistema de trocas) 14 • Estes tipos classificatórios têm as suas vanta-
Dentro destes objetivos destaco, a seguir, os aspectos mais relevantes que deverão gens para determinados estudos, porém, no presente caso, estas categorias não dão conta
compor urna pesquisa mais ampla sobre o tema, ou seja, o dos processos de colonização dos tipos de espaços intermediários entre o «rural,, e o «urbano», que são os espaços que
medieval, suas organizações espaciais, dos quais pretendo abordar apenas alguns, na pre- mais nos interessam no momento. Sob o ponto de vista físico-material, por exemplo,
sente comunicação: poder-se-ia admitir como sendo uma cidade um assentamento que estivesse contido den-
a) As colonizações italianas no Mediterrâneo oriental e ocidental; b) As colonizações tro de um cercamento de muralhas, mas isto, muitas vezes, mostra-se relativo.
germânicas, arroteamentos e cidades-novas na direção leste da atual Alemanha; e) As colo- Uma das categorias normalmente utilizadas para definir a «cidade medieval» tem
nizações a partir dos assentamentos tipo bastides nos territórios da atual França, Aquitânia, sido a das cartas de franquia, os fiteros espanhóis, ou foros portugueses, as chartes francesas,
Gasconha, região do «Midi", do Sudoeste (região toulousiana e do Languedoc); dJ As etc. Esta instituição, constituindo-se em acordos e/ou concessões de privilégios aos
colonizações a partir da transformação das granjas das abadias, filiadas a Cister, em assen- povoadores de novas áreas de ocupação, tem sido considerada como um dos sinais de
tamentos urbanos ou semi-urbanos, principalmente no Sul da França; e) As colonizações grande avanço do sistema urbano medieval em relação ao sistema rural.
ibéricas na conquista cristã dos territórios muçulmanos ou no repovoamento de áreas Jacques Heers, no meu entender com grande propriedade, em sua obra Le Moyen
despovoadas: Catalunha, Navarra, Aragão, País Basco, Galiza, Portugal, Castela e León, Age, une Imposture, ressalta os conteúdos ideológicos e as distorções que têm comparecido
Valencia, até a Andaluzia. na bibliografia dos manuais de história medieval, onde a primazia conferida ao «urbano»,
Na presente e breve exposição, vou privilegiar o Sul francês e sua interação com o a tónica conferida aos privilégios e franquias concedidas às «cidades», têm escondido, ou
Norte ibérico, sendo que, para balizar os conteúdos a serem examinados, convém introdu- não têm dado a devida importância aos privilégios, franquias, e organizações coletivas
zir a discussão de algumas conceituações preliminares das categorias aqui utilizadas. concedidas e/ou assumidas por um grande número de comunidades rurais. Ele se refere,
basicamente, à historiografia francesa, porém as suas assertivas corroboram o que pretendo
Espaço urbano & espaço rural no Medievo: «cidade»? debater, que são as origens medievais na organização dos assentamentos urbanos das ocupa-
ções ibéricas no continente americano. Para Heers, colocar «cidade» contra O «campo»,
Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que não se pretende, mais uma vez, retomar a equivale, em termos de instituições sociais, a confrontar «senhores» e «camponeses», situa-
discussão sobre a famosa «dicotomia urbano & rural», seus antagonismos, existentes ou ção sociopolítica identificada como uma luta de classes da qual a cidade emergiria como o
não, os processos de dominação do urbano sobre o rural, etc. Quero deixar bem claro que, lugar da «liberdade», ou, nas suas próprias palavras:
ao longo de todos os trabalhos que tenho empreendido sobre a história dos espaços sempre «Dentro desta linha de pensamento, nossos mestres afirmaram constantemente que
adotei a postura de encarar a realidade de uma determinada formação econômico-social1 3 os habitantes das cidades muito cedo obtiveram, pela sua coragem face ao arbitrário, cartas
como um todo. Ou seja, o urbano e o rural, sejam quais forem seus estágios de desenvolvi- de comuna que lhes garantiam o livre exercício de seus trabalhos e de seus negócios assim
como o direito de se governar ou, pelo menos, de se administrar eles próprios.,, 15
12
Assumo aqui as conceituações e assertivas levadas a efeito no âmbito da Geografia, principalmente em
SANTOS, Milton, Espaço e Sociedade, Rio de Janeiro, Vozes, 1979 ou Técnica, Espaço, Tempo:globalizaçiío e meio
técnico-cimtíjico informacional, do mesmo autor, São Paulo, Hucitec, 1994.
13 O conceirn de ,lonnação econôrnico-sociahi aqui empregado, co1no já foi dito en1 nota acirna, é o 14
ROUX, Simone, Le Monde des Vi!!es au Moyen Age Xle-XVe siecles, pp. l 1-19.
162 ' 5 Heers,
]., op. cit., p. 184.
proposto pela Geografia, principalmente das obras de Milton Santos, entre outros. 163
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS RURAL & URBANO

Assim, ainda segundo Heers, na «euforia do discurso» apresentam-se as cidades medie- Entre as origens das comunas rurais deve-se destacar, ainda, o papel das confrariris
vais como verdadeiras repúblicas burguesas e comerciais e até apresentando, já, alguma espé- religiosas como elementos catalisadores dos habitantes. Através da imposição da paz nume-
cie de democracia. Ai ele mesmo pergunta: «Les libertés? Que!les libertés?» ou «Qui donne le rosos bispos ofereceram às aldeias refúgios considerados invioláveis: «As confrarias foram,
ton? Villes bourgeoises ou villages paysans?» 16 E isto se daria, ainda, sem levar em conta a enor- então, responsáveis pela manutenção da igreja, depois do recinto paroquial [um entorno
me diversidade das realidades regionais e cronológicas da época medieval; evidentemente, no cercado], depois, em definitivo, pela vigilância das comunidades e mesmo de todo o terri-
caso, o autor se refere aos manuais mais correntes e globalizantes (como a obra de Henri tório da aldeia.» 20
Pirenne) e não aos trabalhos monográficos, mais específicos, que, certamente, enfocam com Estas confrarias formulavam as normas e regulamentos de convivência, de policia-
maior clareza aspectos do tema, corno é o caso, por exemplo, dos escritos de Charles Higounet, mento rural e antecedem a administração municipal, sendo que o prefeito posterior é
ou dos estudos de caso de Georges Duby, só para citar dois autores. precedido pelo síndico ou pelo clérigo que guardava os registros. É interessante observar
Mesmo porque deve-se alertar, como o faz Simone Roux, que muitos reis, como é o que Heers refere-se às confrarias do Espírito Santo e sua importância no Sul da França,
caso dos Capetos: onde administravam numerosas vilas, fato que deve ter influenciado, talvez, o surgimento
«Sustentaram e reconheceram as comunas na medida em que elas lhes serviam para o dessas mesmas instituições em regiões ibéricas, notadamente Portugal. Essas confrarias
estabelecimento de sua autoridade em seu domínio. Mas assim que se sentiram bastante possuíam bens fundiários, terras, pradaria, vinhas, casas, moinhos:
fortes, eles quebraram e reprimiram os ensaios de comunas (Orleans em 1137, Poitiers em «Sociedades de auxílio mútuo, as confrarias foram, muito cedo, o estímulo de verda-
1138 ou Sens em 1146). Aquelas que não puderam ser suprimidas sem riscos de revolta deiras comunas, onde elas já detinham os poderes principais. A "casa do Espírito Santo",
foram reconhecidas, porém controladas pela outorga de canas que tomavam as instituições lugar de reunião e loja de víveres ao mesmo tempo, onde se guardava o cofre dos arquivos
municipais subordinadas.» 17 e a bandeira de procissão, tornou-se seguidamente a casa comunal.» 21
Toda regra geral, todo quadro de estruturas sicioeconômicas ou políticas que se intente Tradição, diga-se de passagem, que de Portugal passou às Ilhas, entre as quais os
aplicar à Idade Média, de uma forma territorialmente abrangente tendem, portanto, a ser ilusó- Açores, de onde veio para o Sul do Brasil com a colonização açoriana do século XVIII no
rios ou fantasiosos. O extraordinário do período é que isto - como já foi comentado acima - Rio Grande do Sul, onde permanece viva até hoje.
convive com uma certa unidade artístico-cultural que, evidentemente, deve-se à unidade religiosa,
à unidade do culto, à Llllidade do cerimonial litúrgico e, conseqüentemente, à unidade dos espa- Não pretendo entrar aqui na discussão, até hoje polémica pela infinidade de critérios
ços arquitetónicos e/ou urbanos necessários para a sua efetivação. Voltando às cartas tem-se que: possíveis, do conceito de cidade. Cidade, na presente exposição, vai ser considerada como
«Tudo leva a crer, por outro lado, que na maioria dos casos, a carta 18 não era o produ- sendo o espaço de concentração de atividades, de habitantes envolvidos com comércio,
to de formulação recente, não se apresentava absolutamente como uma grande novidade, serviços, produção artesanal, corporações, etc., cujos habitantes, por definição, não este-
mas simplesmente como a colocação em uso, de maneira clara, direitos já exercidos ante- jam diretamente ligados à produção e/ou exploração do meio rural; a cidade é o lugar
riormente. Não é para lutar contra o senhor que se forjou a comunidade camponesa; ela já onde, na Idade Média européia, existiu uma organização ou uma ordenação de direitos e
existia antes.» 19 deveres a serem cumpridos por todos os cidadãos. É o lugar onde passa a se constituir uma
Em diversas regiões francesas, como a Borgonha, a Alsácia ou a região do Mâconnais (estu- administração local que surge da defesa de interesses coletivos, comércio ou segurança.
dada por Duby), ainda segundo Heers, as estruturas aldeãs surgem fora do quadro do senhorio. Para a presente exposição vai prevalecer o critério físico-territorial da concentração de
Assim, as diversas situações de outorga das cartas de franquia formuladas pela própria habitantes, ou seja, de uma certa densidade habitacional que se reflete na existência de um
comunidade rural ou concedidas por autoridades civis e/ou eclesiásticas, demonstram o recinto cercado com muralhas ou de um tecido urbano com alguns quarteirões e praças
quanto o «urbano» e o «rural» se mesclam no período medieval, relativizando o próprio separados por ruas.
conceito de «cidade medieval», quando este é baseado no critério da instituição de cartas Contudo, os espaços que precedem a «cidade» são muito importantes, e é sobre essas
de franquias, foros ou instrumento similar. estruturas semi-rurais, esses espaços intermediários entre estruturas claramente rurais e
estruturas urbanas, que pretendo centrar a atenção, pois eles estão na génese de muitas das
cidades posteriores.
"Heers, J., op. cit., p. 184.
17
Roux, op. cit., p..31.
18
Refere-se o autor às cartas de franquias e/ou privilégios concedidas às comunidades rurais c/oLt cidades. 20
Heers, J., op. cit., p. 188.
164 ''' Heers, J., op. cit., p. 187. 21
Heers, J., op.cit., p. 189. 165
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Por outro lado, a existência de «cidades», propriamente ditas, com todos os requisitos concretas socioeconómicas e culturais de cada região, como pela imensa diversificação
para tanto, nunca deixou de ser reconhecida pela historiografia nos períodos do Baixo também ocorrida ao longo do tempo.
Império ou da Alta Idade Média (± entre os séculos IV e IX, digamos) apesar de sua reco- Assim, o tema que gostaria de propor à reflexão refere-se aos espaços que integraram
nhecida redução em área ocupada e em número (muitas desapareceram); permaneceram a passagem da categoria de um aglomerado de casas rurais, aldeia, vila ou povoado, para a
as cidades episcopais, as cidades portuárias mas, por outro lado, muitas cidades-novas categoria de cidade, propriamente dita. Estuda-se a cidade e o meio rural, o estágio inter-
foram fundadas, algumas tendo sua origem no rural. mediário - o semi-rural, ou semi-urbano - carece ainda, no meu entender, de melhor
Discute-se até hoje o grau de «decadência» e/ou «permanência» do sistema urbano enquadramento no contexto histórico, seus conteúdos e suas formas, sejam políticas,
europeu após a ruptura das irtstituições económico-sociais e políticas do Império Roma- económico-sociais ou físico-territoriais.
22 Esta categoria intermediária, este assentamento semi-rural ou semi-urbano, é uma
no. Georges Jehel e Philippe Racinet , por exemplo, defendem a tese de que a continuida-
de das estruturas urbanas esteve presente ao longo de toda a Idade Média, em que pese a das partes fundamentais da transformação da sociedade da fatropa Ocidental a partir de
evidente e comprovada decadência económica e que, apesar da constatação de fugas para finais do século XI, com o desenvolvimento comercial e renascimento económico dos sécu-
as áreas rurais e a conseqüente diminuição das densidades urbanas, há permanências re- los XII e XIII.
presentativas nas cidades. Apesar disso os autores reconhecem que: O processo da «Reconquista» e/ou repovoamento, na Península Ibérica, produziu
«O Império carolíngio, essencialmente rural, não teve por módulo de enquadramento espaços deste tipo, concomitante ao processo de incorporação de novas terras. Os novos
demográfico e económico senão o grande domínio, vil/a ou curtis, com apenas algumas arroteamentos acompanhados da fundação de cidades-novas, locais de privilégios conce-
cidades episcopais ou condais. Não será senão a partir do século x, com o surgimento da didos aos moradores pelos senhores respectivos, é também procedimento constante nas
castelania feudal e da retomada económica que propiciaram a formação de burgos-merca- demais regiões européias.
23
dos, que a cidade irá começar seu renascimento.» Duas outras categorias merecem alguma tomada de posição em relação à sua defini-
Por outro lado, Jehel e Racinet apoiam sua discussão no fato, comprovável em várias ção, trata-se dos conceitos de «colónia» e de «traçado urbano».
regiões européias, de que os povos germânicos, de uma maneira geral e abrangente, utiliza- Os processos de ocupação de novos territórios, reconquista, repovoamento, arrotea-
ram-se da estratégia de apoiar o seu poder no sistema urbano: mento de novas terras com fundação de assentamentos urbanos de apoio, etc., também
«Os Estados nascidos das invasões germânicas, franca, dos burgúndios, visigótica ou podem ser encarados como verdadeiros processos de «colonização». Estou entendendo,
lombarda que se posicionam no Ocidente entre ove o VIII século, o fazem sempre a partir aqui, então, como colonização, todo o processo de transferência, para um novo território,
de sítios urbanos: Paris, Soissons, Orleans, Pavia, Ravena, Saragoça, etc., que embora não de um contingente expressivo de habitantes de uma determinada área (lugar ou metrópole
sendo de sua criação, parecem aos conquistadores ser pontos de apoio necessários para de origem), com o objetivo de se fixar na nova implantação (colónia), ali viver, subsistir e
24 se desenvolver, seja qual for o motivo que tenha dado origem a este ato de vontade social
consolidar as suas empresas.»
Ou seja, há o reconhecimento, por parte dos povos bárbaros, da importância da de um grupo ou de uma formação social.
cidade como elemento de apoio físico-territorial, administrativo e económico ao poder O outro aspecto refere-se aos traçados. Cada novo assentamento, uma vez pensado ou
advindo da ocupação dos antigos territórios do Império Romano. A cidade medieval, planejado com anterioridade, requer um projeto de distribuição de terras não só rurais
portanto, em que, pese a crise económica e uma real evasão de habitantes urbanos para o mas, também, urbanas. Este projeto tem uma geometria, tem um traçado que se adapta,
campo, nunca ficou vazia totalmente, mesmo porque, em muitos casos, era na cidade que em maior ou menor grau, à topografia das áreas escolhidas. É através desses traçados que se
o habitante podia se sentir seguro e abrigado: «os soberanos bárbaros nelas se fixavam, podem inferir muitas das características e da natureza dos assentamentos, e de quem os
25 planejou ou executou, contribuindo o estudo dessa geometria para o melhor conhecimen-
alguns fizeram até obras de conservação» •

É muito difícil estabelecer tipologias correspondentes às cidades medievais européias, to da história daquela formação económico-social e de seus assentamentos.
dada a diversidade imensa de situações específicas, tanto sob o ponto de vista das situações Os traçados ortogonais, especialmente os urbanos, têm sido objeto de discussões
imensas, muitas vezes mal enfocadas. Busca-se quem foi o primeiro povo a utilizá-los, ou
22 La Ville Médievrtle - De l'Occident chrétien à l'Orient musulman - Ve-)(Ve sii:cle, Arman<l Colin, Paris, quem os inventou, ou quem mais os utilizou, etc., quando isto não tem, muitas vezes,
1996. importância maior. A discussão, no meu entender, deve se dar no âmbito dos significados
23 Jehel e Racinct, op. cit., p. 9.
da adoção deste tipo de traçado, os porquês e as formas de sua aplicação e os seus resulta-
24
Jehel e Racinet, op. cit., p. 15.
166 25 Jehel e Racinet, op. cit., p. 15. dos. Mesmo porque, segundo Ryckwen: «O traçado ortogonal aparece por todas as partes, 167
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na Sul-América, China, Índia, Egito ou Mesopotâmia, onde quer que se desenvolveram Europa medieval, as fontes foram controladas pelo poder civil político da nobreza ou
formas elementares de autoridade e como seqüência a qualquer sistema de assinalação de político-religioso dos bispados e das ordens religiosas.
terras.» 26 Pode-se avançar na discussão dos traçados em si e seus significados mais imediatos:
O traçado ortogonal é, através da História da Arquitetura e do Urbanismo, uma «Ao longo da Historia, o uso do sistema de ruas ortogonais tem sido a marca distin-
forma de controle do espaço, um instrumento para o exercício deste controle. Ele implica tiva das cidades coloniais. [... ] A retícula, mais que por um esquema ortogonal, está forma-
num conhecimento superficial ou mais profundo da geometria das formas. O traçado da pela intersecção de linhas paralelas e implica uma prioridt1de para o sistema dos movi-
ortogonal deve ter a sua origem 27 tanto nas necessidades de divisão de terras para a agricul- mentos públicos [o grifo é meu]. A urbanização reticular maximiza a eficiência; é o conmí-
tura como nas necessidadeii dêt1ma arquitetura mais elaborada, quando da sedentarização rio de uma planificação baseada na célula e orientada ao bem-estar (do indivíduo, da
dos povos primitivos e em decorrência de um material construtivo comummente usado, 0 família ou do bairro).» 29
adobe, que, com sua forma de paralelepípedo, impõe arquiteturas de paredes ortogonais. Com estas observações de Ervin Galantay introduzo outra questão a respeito do de-
O traçado ortogonal de um assentamento urbano, pela sua própria natureza e escala, senho, do traçado, que já não é uma mera questão técnica de geometria, topografia ou
implica, necessariamente, na utilização dos métodos aportados da agrimensura, na ques- facilidade técnica: é uma prioridade de natureza política, a relevância que assume, no
tão das medições e na noção de planejar ou projetar, isto é, todo um conjunto de previsões traçado ortogonal, o movimento público, o deslocamento do conjunto da população. A
que antecedem qualquer implantação no espaço. O ato de planejar um assentamento ur- simples comparação entre o desenho de um traçado reticulado urbano, Mileto ou Buenos
bano se opõe, pela sua natureza, também, ao assentamento orgânico, celular, ou espontâ- Aires, por exemplo, com um traçado muçulmano, Sevilha ou Granada, nos mostra a evi-
neo, seja qual for o nome que se dê àquelas formas naturais e gradativas com que os grupos dência do quanto esses espaços são diferentes entre si e o quanto eles expressam uma forma
humanos se sedentarizam em algum lugar ao longo do tempo. Com muito mais razão 0 de vida e um conceito de espaço diferenciado. Na cidade muçulmana predomina o privi-
assentamento urbano reticulado. légio ao espaço privado no meio urbano 30 • A expansão do tecido urbano se dá por acrésci-
Evidentemente que nem todo assentamento urbano planejado apresenta um traçado mos empreendidos por iniciativas individuais ou familiares, não há um controle público
ortogonal, mas este, parece que a História o demonstra, tem-se mostrado o mais utilizado do conjunto urbano.
em situações que exijam rapidez e controle. Além disto há que se referir às facilidades trazidas pela geometria ortogonal: é a forma
A idéia de planejamento, ao que parece, se perde no tempo, pois, à medida em que a mais simples e factível de dividir terrenos, utilizando a técnica de agrimensura, uma das
Arqueologia e outras ciências correlatas ou complementares avançam em termos de novas mais antigas. Qualquer outra forma geométrica é muito mais complicada, a ortogonal
contribuições, as datações dos assentamentos considerados «os mais antigos» recuam cada facilita a edificação de edifícios regulares que utilizem unidades de materiais também de
vez mais no tempo. O ato de planejar e implantar um assentamento de traçado ortogonal, formas ortogonais, como adobes, tijolos ou pedras lavradas; facilita os censos, as demarca-
também significa a necessidade do aporte de condições técnicas mínimas de trato com a ções e, portanto, a cobrança de impostos; facilita os registros, compras e vendas e facilita a
geometria e com instrumentos e utensilhagem de agrimensura, fato que muitas vezes é orientação das pessoas dentro da malha urbana, facilita a ampliação da malha urbana
minimizado por alguns autores. Porém, o mais importante a ressaltar, é que esta simples conforme o terreno ou, como refere Heers:
geometria significa a existência de um poder, de um controle, que estabelece uma organiza- «Evocamos de bom grado a perfeição dos planos bem traçados, com as ruas estrita-
ção na distribuição de terras rurais e/ou urbanas. mente paralelas, regularmente espaçadas e de larguras iguais. Mas, em muitos dos casos,
Outro aspecto a levar em consideração nos traçados é o mítico-religioso que sempre razões de pura comodidade ditaram tal escolha; estas disposições facilitam evidentemente
estará presente nas fundações de diversas formações econômico-sociais desde a Antiguida- a tarefa dos agrimensores e dos repartidores, seguros de ter, assim, lotes de mesma superfí-
de. Ou seja, o discurso ideológico, seja mítico-religioso ou político, sempre esteve presente cie e de mesma disposição destinados aos novos hóspedes.» 31
no esquema mental das civilizações através da História. Paolo Sica, entretanto, adverte Também, em alguns casos, o traçado regular e ortogonal é conveniente sob o ponto
«... que as fontes escritas e documentais estão em grande parte referidas às operações e de vista estético: «... e resulta uma configuração agradável em povoações pequenas ou
lugares de culto e refletem sobretudo a atitude de castas religiosas,, 28 . Assim, no caso da

29
GALANTAY, Ervin Y., Nuevas ciudades. De úzAntigüedad a nuestros dias, Barcelona, Gustavo Gili, 1977, p. 43.
26
Joseph Ryckwert, op. cit., p. 78. 30
Ver CRUZ, Glenda, Antecedentes.... tese citada, Capítulo 7 - Espaços coloniais da Península Ibérica
27
Cruz, G., tese citada, 1.° Capítulo. Muçulmana, pp. 554-675.
168 28
SICA, Paolo, La imagen de la ciudad De Esparta a Las Vegas, Barcelona, Gustavo Gili, 1977, p. 18. 31
HEERS, Jacques, La Vil/e au MoyenAge, Fayard, Paris, 1990, p. 132. 169
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médias. Só se faz insuportavelmente monótono quando se estende a superfícies muito mo porque todo aquele processo de assimilação constituiu-se, ele próprio, na parte subs-
grandes» 32 • tancial do que, posteriormente a partir de l 57Y4, passou a fazer parte do modo de agir
Outro aspecto a levantar sobre o traçado reticulado ortogonal é a sua eventual origem fundacional da Espanha.
militar. Segundo Galantay, por exemplo, está comprovada a influência helenística no ur- Há que se definir um período inicial, o dos assentamentos costeiros, do tipo empório
banismo romano, acrescentado que a colónia romana teria surgido da estrutura do castrum, fortificado, com vistas ao reconhecimento, exploração de riquezas e mercadorias para o
ou seja, do acampamento militar, aspecto que é contestado por Bernard Holtzmann33_ comércio europeu; e, posteriormente, uma segunda etapa, quando a Espanha define uma
É verdade que, em termos de organização espacial militar reticulada, os melhores exem- verdadeira política de colonização, através da urbanização e da tentativa de transformação
plos vamos encontrar na cr!Jtrametatio romana, ou seja, no sistema de organização espacial dos imensos contingentes de população indígena em cidadãos fiéis à monarquia castelhana,
das legiões romanas, cujos acampamentos formavam verdadeiras pequenas cidades e onde e da interiorização dos padrões europeus de ocupação do solo. É nesta segunda fase que
a logística e a necessidade de agrupar as tendas segundo as posições hierárquicas vão resul- começa a surgir o processo fundacional de cidades, através de um esquema espacial cha-
tar numa organização espacial que, ao longo da história da civilização romana, confunde- mado de «damero»: uma retícula de ruas configurando quarteirões regulares a partir de
-se com a própria origem das colónias romanas. Entretanto, é controversa a afirmação de ruas ortogonais, na qual o quarteirão central é ocupado por uma praça onde se localiza o
que as colónias romanas tenham surgido a partir da estrutura do castrum, só o que se pode cabildo e, eventualmente, a catedral com seu adro.
dizer é que muitas cidades romanas se originaram a partir de acampamentos militares. Portugal estabeleceu no Brasil, basicamente, feitorias, também do tipo empório for-
León, na Espanha é exemplar, surgiu do acampamento da Legio VII romana, legião ali tificado, exatamente como vinha fazendo, desde o século XV, nas Ilhas Atlânticas e na costa
estabelecida justamente para fortalecer as fronteiras com os povos ibéricos do Norte não da África. A feitoria portuguesa constitui inicialmente um castelo fortificado e a «cidade
romanizados. Porém o traçado da cidade medieval que ocupou o antigo acampamento baixa», área comercial junto ao porto, podendo ter ou não um traçado regular ou semi-
praticamente ignorou o traçado do acampamento romano, até onde se pode detectar. -regular. Ao não encontrar populações indígenas com o padrão de desenvolvimento como
O traçado reticular colonial romano é, talvez, o aporte mais próximo dos traçados das o encontrado nas áreas espanholas - os indígenas brasileiros não possuíam nem cidades,
cidades-novas medievais no Ocidente. nem centros cerimoniais e se constituíam em tribos nómades ou semi-nómades, assenta-
Vou propor a seguir, rapidamente, considerando o exposto, uma breve e generalizante das em aldeias provisórias - Portugal, um reino com um contingente populacional bas-
(portanto com simplificações evidentes) verificação prévia do que ocorreu no processo de tante ínfimo (em relação ao conjunto de reinos da Espanha), vai continuar - mesmo
ocupação, conquista e colonização da América pelos dois reinos Portugal e Espanha, para depois de 1530, com a missão colonizadora de Martim Afonso de Sousa - a ocupação do
depois voltar a examinar alguns aspectos do Medievo europeu. Brasil com assentamentos costeiros com empório fortificado.
Deve-se ressaltar que este assentamento, tipo empório comercial fortificado, é um
padrão de assentamento que teria surgido nas áreas mediterrâneas, milenarmente, tendo
sido adotado pelos Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, etc., pela sua praticidade e
As práticas iniciais verificadas na América condições de segurança35. Básica e resumidamente, este tipo procura a água potável, atra-
vés da desembocadura de um rio, canal, ou uma ria, pelo(a) qual também se possa adentrar
Sucintamente, torna-se necessário constatar quais os aspectos que, por antecipação, se no território em busca de mercadorias, contatos e trocas; é necessário que junto à desem-
consideram, nas colonizações ibéricas na América, como tendo suas raízes nas práticas me- bocadura do curso de água doce exista uma ou duas elevações, ladeando-a, de onde se
dievais: aqui, vou tratar, quase que exclusivamente, dos padrões de assentamentos urbanos. possa ter uma visibilidade que atenda à segurança do assentamento e, na parte baixa,
Nas áreas de ocupação espanhola há que se distinguir os diversos aspectos regionais condições de estabelecimento de uma área comercial e de um porto para o abrigo das
encontrados nas imensas áreas que constituíram parte integrante do Império Espanhol embarcações; a parte baixa junto à praia e o porto fica, portanto, de vocação comercial e,
posterior: as civilizações pré-colombianas, com suas respectivas especificidades regionais, a parte alta, com a vocação de defesa e refúgio. Normalmente, quando o núcleo tem uma
transformaram substancialmente os padrões iniciais dos assentamentos castelhanos mes-

34 Data do início das Compilações das famosas «Leyes de fndias» que, muitas vezes, equivocadamente,
32
GALANTAY, op. cit., p. 44. consta como o início da adoção dos assentamentos urbanos sob a forma de «cuadrícula».
33
HOLTZMANN, Bernard, «O legado greco-romano: a Cidade», in Le gmndAt!as U11iversa!is de l'Architecture 35 Na minha tese de Doutoramento, Antecedentes cltt Orga11izt1ção do Espaço Co!o11ia! na América Ibérica, no
170 Mondia!e. Capítulo 3, desenvolvo o tema das origens desse tipo de assentamento, PUC-RS, 1995. 171
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história posterior, o tecido urbano de habitações desenvolve-se entre essas duas partes, a distribuição de terras de cultivo, fundação de um assentamento urbano com distribuição
«cidade alta» e a «cidade baixa». Quando havia condições, o que no Mediterrâneo não é de lotes; Fenícios, Gregos, Romanos, etc., já os utilizavam há séculos.
muito freqüente, dava-se preferência pelo estabelecimento do empório inicial numa ilha Contudo, depois da ruptura do Império Romano, numa Europa semi-ruralizada, há
em frente à parte continental de interesse, é o caso de Cádis 36, ou da colónia fenícia de um enfraquecimento dessas práticas com a decadência também do sistema colonial rom_a-
Toscanos (em Málaga) e o próprio assentamento de Lisboa (a antiga Olisipo), por exem- no como um rodo. Vai ser justamente na Idade Média - com o renascimento comeroal

plo, entre outras. É um modelo sugerido, evidentemente, por questões bastante pragmáti- do século xr, com as Cruzadas no Oriente, com a expansão mediterrânea das cidades

cas, de acordo com os interesses mais imediatos do assentamento, de acordo com as condi- italianas, com os novos arroteamentos de terras para o Leste, com os arroteamentos, novas
ocupações e assentamentos nos anteriormente grandes vazios florestais (no território da
ções locais e da tecnologia disponível, principalmente, no caso, a da navegação à vela.
atual França e Europa Central), com a expansão cristã da reconquista na Península, etc. -
Portugal vai assumir esta tipologia de assentamento desde a conquista de Ceuta, em
que este sistema de colônias de mercadores vai ser retomado pelos diversas entidades polí-
seus assentamentos da costa africana e nas Ilhas Atlânticas e, no Brasil, vai utilizá-lo até
ticas vigentes, então cidades, reinos, ducados, etc., bem como o sistema de colonização
quase o século xvm. Entretanto deve-se ressaltar: o tecido intermediário, entre a parte
com distribuição de terras.
«alta» e a parte «baixa», na maioria das vezes, vai apresentar uma certa «regularidade», ou
No caso de áreas de nova ocupação, como é o caso da costa africana e das Ilhas
seja, é um traçado claro, embora nem sempre geometricamente ortogonal (como os da
atlânticas, a feitoria é fortificada e o próprio forte constitui-se numa pequena cidade, cujo
Espanha, posteriormente); como exemplo pode-se citar os traçados iniciais de Salvador,
traçado, infelizmente, temos pouca informação mas que, pelos posteriores, como Damão,
do Rio de Janeiro ou Olinda.
do século XVII, com traçado absolutamente regular e, tendo em vista as experiências medie-
Ambos os traçados - ortogonais puros ou do tipo empório - são formas urbanas
vais, que vou examinar adiante, pode-se supor que fosse regular.
que fogem muito dos traçados até então vigentes na Península não cristã, aqueles do domí-
Portugal e Espanha produzem espaços diferentes na América porque são diferentes
nio do privado sobre o público, dos particulares traçados muçulmanos, absolutamente
na Península e suas experiências anteriores são diferentes e, principalmente, porque en-
intrincados e irregulares.
contram realidades socioeconómicas, políticas e espaciais diferentes. O Caribe não é a
Os assentamentos portuários espanhóis vão acompanhar, aproximadamente, o mode-
África e nem as Ilhas atlânticas:
lo empório, conforme Azancot:
«No Caribe não cabe falar todavia de mercados regionais como os que na África eram
«A facto ria que Colombo intentou instalar nas Ilhas que encontrou, e que nunca
unidos mediante redes de transportes a larga distância. Efetivamente, as economias costei-
deixou de considerar parte de um antemuro asiático, era uma instituição de clara origem
ras exploradas pelos portugueses se tratavam melhor de mercados finais aos quais con-
portuguesa. Seu nome original era feitoria, e vinha a ser uma característica forma de dele-
fluíam produtos de distintas áreas continentais, especialmente as ligadas pelo Sahara.
gação comercial com certas implicações político-administrativas diretamente ligadas à
No mundo antilhano, evidentemente, um universo como este ainda não existia à chegada
monarquia de Portugal.» 37
dos europeus.» 39
A primeira feitoria portuguesa do século XV, ainda segundo Azancot, em termos de
Evidentemente, também e com muito mais razão, este universo não existia nas terras
atividade socioeconómica e política, teria sido a instalada em Bruges «como uma agência
do Brasil, e os empórios portugueses trataram de se adaptar às condições locais e, uma vez
de interesses reais, com um feitor à frente da mesma que em seguida adquire a competência
não existindo produtos prontos e acabados fora a exploração do pau-brasil - , tratou-
de um governador político e fiscal da colónia mercantil portuguesa ali estabelecida.» 18
-se de produzir mercadorias e, tal como Portugal já fizera nas Ilhas da Madeira e Porto
Ora, este sistema de colónias de mercadores instalados em cidades que se constituem
Santo, onde iniciou um sistema de exploração agrícola, delegando a genoveses, florentinos
pontos estratégicos nas rotas de produtos desejados e prestigiados (especiarias, tecidos de
ou flamengos a expansão dos negócios, através da instituição medieval de capitanias
lã, sedas, ouro e outros metais, escravos, etc.) é milenar. Tão milenar quanto o sistema de
donatarias, que são utilizadas, inclusive, como forma de delegação de governo. No Brasil,
colonização mais profundo, que implica no deslocamento de maior número de pessoas,
esta instituição fracassou, a não ser em duas regiões, por vários fatores, entre os quais,
suponho esteja a enorme diferença nos padrões civilizatórios encontrados no território.
36
A antiga ,,Gadir» fenícia, provavelmente do século VIII a.C.
Azancot atribui aos primeiros assentamentos espanhóis na América - e suponho
37
Pedro Vives Azancor, La ciudctd Iberoamericana: expresión de la Expansión Ultramarina, in SOLANO, que O mesmo possa ser estendido ao Brasil - o caráter de verdadeiros acampamentos, os
Francisco de, Dir., História Urbana de Iberoamérica, tomo I, «La Ciudad Iberoamericana hasta 1573», 1987,
p. 177.
172 38
Azancot, op. cit,, p. 178, 19 Azancor, op, cit,, p. 179, 173
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quais, entretanto, certamente, foram o ponto de partida para a chegada ao continente Nesta Europa, portanto, é possível a comunicação, sendo, portanto, não só possível
americano das tipologias européias, com ou sem traçados em quadrícula, os quais já vi- como provável a troca de experiências no que diz respeito aos procedimentos fundacionais
nham sendo praticados no continente europeu desde os séculos XII ou xm, tanto no Norte de novos assentamentos, experiências estas que aconteceram na Itália, nas regiões a leste do
europeu, nas bastides francesas e em alguns assentamentos da Reconquista cristã na Penín- Weser, no território da atual Alemanha, como no território da atual França (na Aquitânia,
sula Ibérica. Gasconha, na região toulousiana, no Languedoc), na Inglaterra, no País de Gales, nos
reinos de Astúrias, León, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, Valência, nas ilhas do
Mediterrâneo, no Mediterrâneo oriental, no Norte da África, etc.
Interessa-me estabelecer as possíveis e prováveis relações e/ou similaridades entre as
Os espaços das colonizações medievais européias cidades-novas fundadas no Norte ibérico e no Sul francês que, dentro do processo de
expansão económico-territorial e política dos séculos XI e XII, integraram os antecedentes
É extremamente difícil, senão impossível, fazer uma análise em termos globais dos medievais das colonizações ibéricas na América. Pierre Lavedan esclarece que, m França:
aportes trazidos pelas diversas frentes da expansão européia ocorrida a partir do renascimento «O maior número de cidades-novas criadas se encontra na França do Sul, de um lado
comercial e urbano de finais do século XI até meados do século xrv. Difícil em primeiro e outro do Garonne, entre o Garonne e o Maciço Central, entre o Garonne e os Pirineus.
lugar pela própria e típica fragmentação político-territorial -- caracterizada pela quase Mas elas existem em outros lugares: Villeneuve-le Roi e Villeneuve-l'Archevêque no Yonne;
não existência de aparatos formais e burocráticos do Estado que, normalmente, detém as as criações dos senhores de Beaujeu, Villefranche-sur-Saône, Belleville-sur-Saône;
informações e dados. Monferrand em Auvergne; Barcelonette nos Alpes, etc.,, 40
É também temerário, no atual estágio das investigações históricas, tentar estabelecer A região de fundações mais numerosas foi, entretanto, o Sudoeste francês. Isto se deve,
origens, filiações ou vinculações precisas, para o caso das organizações espaciais de novos em termos gerais, por dois fatores principais, no caso da França: em primeiro lugar, a rivali-
assentamentos, numa Europa fragmentada, porém extremamente dinâmica em seu pro- dade entre os duques de Toulouse e os reis da França, principalmente ao longo do século Xlll,
cesso de expansão. Uma Europa onde, a um número muito grande de pequenos reinos, resultado da cruzada de Albigeois e, em segundo lugar, a rivalidade entre França e Inglaterra
estados e repúblicas corresponde, por outro lado, uma ideologia religiosa única, universal ao longo e depois da Guerra dos Cem Anos. É a França do Norte, a terra do «langue d'oil»,
(colocando-se à parte os diversos movimentos heréticos que teriam sido minoritários) e contra a França do Sul, a terra da «lrmgue d'oo,, o Midi francês; o Sul, mais brilhante e
uma Europa onde, repito, as comunicações eram intensas e horizontalizadas no território, refinado, competindo com o Norte mais militarizado, portanto, mais poderoso:
através das redes comerciais, das rotas de peregrinação, propiciando a difusão cultural e as «Desde 1144, a fundação de Montauban pelo conde Alphonse de Jourdain é um
trocas entre os reinos, ducados, condados, as Universidades, etc. reflexo de defesa: assegurar uma posição estratégica no ponto onde a estrada de Paris a
Enfim, a Europa é um grande território fragmentado, politicamente, mas sobre 0
Toulouse, na saída do maciço central e das terras do Quercy, desemboca na planície. Mais
qual paira uma religião única cujos mais prestigiados representantes são os bispados e as tarde, a heresia albigense fornece ao Norte um pretexto de intervenção armada. Os condes
grandes casas abaciais. As casas beneditinas, de Cluny e Cister, se espalham pontilhando de Toulouse resistem o melhor que podem e a fundação de cidades novas é ainda um de
:odo o território e difundindo as ideologias, as práticas e a cultura forjadas no período. seus melhores meios de ação (Cordes, 1222).,, 41
A Arte Românica dos séculos XI e XII, gestada nas abadias de Cluny (a partir dos padrões Duas observações se impõem: os nomes de Cordes (fundada pelo duque Raymond
romanos e carolíngios) e difundida por toda a Europa ainda ruralizada, em que pesem os VII sobre uma colina na região do Tarn e Cérou) é inspirado em Córdova, e Barcelonette,
regionalismos riquíssimos, segue uma Arte Gótica que traz no seu bojo O processo de evidentemente, em Barcelona, além de outras fundações como Mirande (Miranda dei
urbanização, que é a expressão da ascensão de um novo modo de vida, dando margem à Ebro), etc., refletem uma ligação mais profunda com os reinos ibéricos; em segundo lugar
emergência de uma burguesia comercial, ainda incipiente é verdade, mas que, em algumas deve-se pensar que as dificuldades dos reinos de aquém e além-Pirineus (seja qual for o
regiões, como na Itália, ou na França, está na base da formulação do poder civil urbano, ponto de vista) devem, necessariamente, ter propiciado trocas de vários tipos.
junto com a valorização do artesão e suas corporações. A praça da cidade, no século xm, Além das rivalidades dos reis da França com os condes de Toulouse, a Inglaterra,
não é mais só o largo das festas religiosas, das procissões, a continuação da nave da cate- entre 1250 e 1350 ainda detém as regiões de Bordeaux, de Guyenne e tomou a deAngenais.
dral, etc., é o lugar do mercado, o lugar das trocas, o lugar da administração dos interesses
coletivos dos mercadores, do «cabildo» espanhol, do «hôtel de ville» francês ou flamengo, 4'
1
LAVEDAN, Pierre, Les Villes Françaises, p. 72.
174 do «Pallazzo» da Comuna italiana, etc. 41
LAVEDAN, Pierre, Les Villes Françaises, p. 73. 175
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Nessas circunstâncias os soberanos dos dois países construíram novas cidades, as bastides, Não se deve esquecer, por outro lado, que, se durante toda a ocupação romana, e
para marcar o poder de seus Estados. Assim, Sainte-Foy-la-Grande (Alphonse de Poitiers, mesmo nos períodos pré-Romanos, o centro da Península jamais foi uma área de impor-
em 1250), Villeneuve-sur-Lot (também por Alphonse de Poitiers, em 1264), Mirande tância socioeconómica ou cultural, entretanto, no período dos reinos Visigodos, a Meseta,
(1282), são fundações francesas com esta função; do lado da Inglaterra temos as mais o grande escudo central ibérico, assumiu importância com o desenvolvimento interiorano
conhecidas como Libourne (1269), Monségur, Sauveterre, avançando até Montpazier (cria- e a conseqüente elevação de Toledo à categoria de capital. É importante registrar que o Islã
da por Jean de Grailly em 1284), etc. ibérico preservou em muito este caráter interiorizado na sua ocupação ibérica, embora
De todas essas experiências, das quais nem sempre se tem dados seguros ou fontes tivesse algumas cidades portuárias bastante desenvolvidas (Almeria, Málaga, Sevilha, Lis-
documentais disponíveis, segungo ~ historiadores, procuro, a seguir, extrair algumas ques- boa, Alcácer do Sal, etc.). É com vistas no sistema de cidades da Meseta que os cristãos
tões e comentários. lançam-se para o Sul e Sudeste ibéricos, contando em suas hostes com muitos contingen-
tes francos e de outras regiões. Este caráter «interiorizado» é uma das características que a
Espanha vai imprimir na implantação do seu sistema colonial urbano com muito maior
vigor que Portugal, que permanece, no Brasil, com uma ocupação predominantemente
A Península Ibérica costeira até o século XVII e XVIII, quando se lança, verdadeiramente, à ocupação dos imen-
sos sertões do interior da então colónia.
Para o melhor entendimento da exposição a seguir, seria necessário reportar-se a dois No Norte ibérico, particularmente ruralizado, entretanto, teriam sobrevivido alguns
temas fundamentais que vou considerar como de domínio geral: trata-se, em primeiro vestígios romanos:
lugar, de ter sempre em mente a Geografia, ou seja, os aspectos físico-territoriais da Penín- «No que seria Castilla la Vieja, Roma havia deixado algumas cidades, melhor dito,
sula e, em segundo lugar, ter presente a história da evolução e das fases da civilização aldeias: Amaya Patrícia, Virovesca. Como na Galiza, algumas haviam sido abandonadas
muçulmana na Península e seu aportes na área da organização 42 espacial. muito antes da invasão de 711.» 44
Jean Gautier Dalché, em sua obra Historia urbana de León y Castilla en la EdadMedia Ainda são muito discutidos e polemizados os fatos que embasaram os processos e os
(sigfos IX-XIII), traça os principais fundamentos e processos através dos quais as popula- graus de importância do repovoamento cristão das diversas regiões ibéricas. Não se pretende
ções cristãs do Norte ibérico - região que praticamente não foi ocupada pelos muçulma- entrar nesta discussão. O que se propõe a colocar em questão são os espaços criados por esse
nos e que, diga-se de passagem, só em algumas áreas chegou a ser romanizada - lança- repovoamento e suas características. O processo que se costuma denominar de «Reconquis-
ram-se à conquista das terras sob o domínio do lslã, aproveitando o momento de decadên- ta» teve inúmeras variantes: algumas regiões passaram de muçulmanas a cristãs, outras que,
cia e lutas internas naquelas áreas e integrando-se ao grande movimento geral, do restante simplesmente estavam abandonadas e vazias, foram tomadas e repovoadas, outras ainda fo-
da Europa, de expansão interna e externa. ram paulatinamente sendo cristianizadas (principalmente aquelas regiões/cidades em que
O processo de expansão cristã na Península Ibérica começa muito antes da expansão havia um convívio não só pacífico mas complementar em termos socioeconómicos, entre
económica e comercial de final do século XI e século XII, muito antes, portanto, das criações cristãos, muçulmanos e judeus). Nos séculos IX ex, o processo da Reconquista foi muito
urbanas ou semi~~rbanas das cidades-novas do Sudoeste francês e de outras regiões. lento e limitado. As áreas de repovoamento se estendem, na sua maior parte, desde a Cordi-
A população cristã se lança tanto ao repovoamento de vastos territórios despovoados, lheira Cantábrica até o vale do rio Douro, do Sul da Galiza até o alto Ebro 45 •
como à conquista de regiões absolutamente urbanizadas, pois uma das grandes caracterís- Na Galiza, em que pese a falta quase total de documentação sobre antigas implantações
ticas da civilização muçulmana ibérica foi o seu modo de vida urbano: romanas, apareceram as cidades medievais de Lugo, Orense e Tuy sobre embasamentos ro-
«O Islã, como se tem dito insistentemente, é uma civilização urbana. Ao redor das manos. Deve-se salientar que um fator importante leva à utilização das antigas implantações:
cidades e a partir delas se ordena a vida política, económica e religiosa do al-Andalus. as muralhas romanas antigas, normalmente de melhor qualidade, a maioria com pedras
Neste sentido, o contraste com o período imediatamente anterior e com os Estados cris- entalhadas, ainda são recuperáveis, assim como são utilizáveis elementos arquitetónicos e/ou
tãos do Norte, até o século XI, é assombroso.» 43 estruturais de antigos edifícios romanos, mesmo que em ruínas, pois o material, a pedra, é
perfeitamente utilizável. Segundo Gautier:
42
Tema do Capítulo 7 - Espaços coloniais muçulmanos, da minha tese de doutoramento, Espaços colo-
niais da Península Ibérica Muçulmana, I 99 5. 44
]. G. Dalché, op. cit., p. 9.
176 43
Jean Gautier Dalché, op. cit., p. 6. 45
J. G. Dalché, op. cit., p. 21. 177
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«O esforço de reorganização consistiu primeiro na criação de dioceses ao redor de prazo, não entrava nenhuma consideração de tipo econômico, político ou religioso.
antigas cidades episcopais ocupadas de novo. [ ... ] O antigo Lucus Augustus (Lugo) havia A fundação de Burgos nesta zona ameaçada, próxima à via romana, foi decidida porque
conservado intacto um recinto amuralhado. Sob Afonso I, o bispo Odoário construiu ali não existia nenhuma cidade antiga capaz de assegurar sua proteção.» 49
46
duas igrejas e ocupou um "palácio" .» Há que se entender estes pontos fortificados como algo mais que somente um castelo
Na região de León, entre o ano de 846 e 856, grupos de povoadores da região de ou fortaleza mas, isto sim, um território mais abrangente que abriga moradores, alguns
Astúrias se estabelecem na antiga Legio VII romana; As torga, a antiga Asturica Augusta, foi mercadores, muitas vezes ambulantes, artesãos e produtores. Contudo o caráter semi-rural
repovoada em 850. A região do Douro foi alcançada em 875, no reinado de Afonso III; dessas fundações vai permanecer por muito tempo ainda, como de resto, no restante das
Zamora em 893, além de Si@arféas, Toro e Duefias; depois sob Ramiro II, os cristãos regiões européias. Na verdade não se pode, no âmbito dos séculos IX e x, falar de um
ultrapassam o Douro ocupando Sa!mantica, a atual Salamanca, Ledesma, Los Bafios e sistema urbano, pois essas fundações ou repovoamentos continuam com seu caráter rural,
Alhóndiga, estas últimas agora já resultado de uma ação militar de reconquista. Segundo em nada similares ao sistema urbano muçulmano ou, mesmo ainda, em termos compara-
Gautier 47 , todas essas fundações se deram sobre antigas cidades romanas. A partir dessa tivos, ao sistema urbano romano.
região era possível fazer incursões na direção leste, para a região do alto Ebro, como na rota Contudo, e isto interessa registrar com alguma ênfase, é neste período que se sedimenta
para o sul na direção de Mérida (ambas regiões dominadas pelos muçulmanos). uma prática de organização, de ordenamento, de estabelecimento de regras de convívio a
León, Astorga e Zamora, logo após a conquista milirar, transformaram-se em sedes serem cumpridas, enfim, é através da concessão de alguns privilégios aos povoadores, ou
episcopais, o que demonstra a ativa participação da Igreja no processo de reconquista e/ou repovoadores, é através do estabelecimento de direitos e deveres entre o empreendedor
repovoamento do norte peninsular. Destas, León passa a se destacar como cidade, propria- (seja ele um rei ou um conde, ou uma autoridade eclesiástica) e o morador, produtor,
mente dita, pois desde o começo do século X, à função militar se acrescentam as funções artesão ou mercador, que surge o embrião da organização civil urbana que dá origem aos
política e religiosa. fi1eros no território da atual Espanha, ou fôros portugueses. Esta instituição - o fôro -
A região de Castela é mais difícil pela proximidade maior com as cidades dominadas e marca indelevelmente a ascensão do assentamento urbano à futura condição de cidade,
fortificadas pelos muçulmanos de Zaragoza e Medinaceli. Em 860 é restauradaAmaya Patricia propriamente dita. Ou como esclarece Anzot:
e, depois de 873, Ctzstrum Sigerici, ou Castrojeriz, etc. Em 884 foi fundada Burgos. Só no início «Este caráter concertado, que mais tarde encontrou sua expressão nas cartas de
do século x se avançou sobre a Meseta até Sepúlveda, em 946, sendo que: «Reconquista e población, nos fi1eros e nos repartimientos, deu à cidade leonesa e castelhana seu ordenamento.
repovoamento foram obra de castelhanos e navarros, os quais durante muito tempo disputa- Este não é um organismo espontâneo, mas o resultado de uma ação decidida de cima para
ram La Rioja. Liberada definitivamente no ano de 923, permaneceu nas mãos dos segundos.» 48 baixo e cujos detalhes são acertados previamente. Desde o princípio, o soberano foi o
Burgos veio a se constituir na principal cidade de todo o processo de reconquista e iniciador e promotor dessas empresas de "pob!ación" .» 50
repovoamento da região de Castela; foi uma cidade-nova que conheceu um desenvolvi- Entretanto, como já foi comentado acima, há que relativizar o caráter de «urbano»
mento extraordinário, posteriormente, devido justamente à sua localização altamente es- dos assentamentos baseados no critério expresso pelos fueros ou cartas de población. Como
tratégica como ponto de encontro entre a antiga via romana que vinha dos Pirineus por ressalta Daché, em León e Castela, apesar da escassa documentação, pode-se dizer que:
Roncesvales, passando por Pamplona, Briviesca (a antiga Virovesca), na direção de Asrorga «... muido cedo, a assembléia dos habitantes, com o nome do concilium, participou,
e Braga. Em Castela, supõe-se que pela maior proximidade com áreas fortemente islamizadas, no terreno econômico e talvez no judicial (ao menos para dar validade a alguns contratos),
as autoridades e lideranças cristãs trataram de estabelecer pontos fortificados protegendo na administração urbana. Porém a autoridade na cidade é dos representantes do soberano.
as áreas reconquistadas e/ou repovoadas. Em Castela, praticamente não se usou ressuscitar Esta situação não permite estabelecer diferenças fundamentais, sob o ponto de vista
cidades mas, isto sim, edificar fortalezas; assim Burgos teve sua fundação devida exclusiva- institucional, entre as aglomerações urbanas e as rurais.» 51
mente a considerações de ordem militar: O rei era também um povoador, e os reis de León e Castela passam a considerar um
«A intenção que presidiu a "fundação" de Burgos, seu povoamento e as restaurações, dever da sua competência e alçada e, por muito tempo, uma prerrogativa da realeza, a
muito mais numerosas, foi de tipo militar. Foi fruto de uma necessidade na qual, a curto decisão e o ato de restaurar, repovoar e/ou de fundar cidades, assumindo as medidas neces-

4
"J. G. Dalché, op. cit., p. 23 49
J. G. Dalché, op. cit., p. 29.
47
J. G. Dalché, op. cit., p. 24. 5
"J. G. Dalché, op. cit., p. 33.
178 48
J. G. Dalché, op. cit., p. 27. 51
J. G. Dalché, op. cit., p. 62. 179
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sárias para a sobrevivência, permanência e segurança dos moradores, seja qual for a idéia se ou a ocupasse efetivamente dessa maneira, pois: «... em Portugal, nunca se perderia a
que tivessem na época do que fosse uma «cidade». Na verdade, isto importa muito pouco. primitiva lembrança da aquisição de direitos sobre a terra mediante o cultivo, e ela será
Havia um acordo tácito de que os territórios conquistados pertenciam ao rei e ele os transmitida de século em século, através das sesmarias» 55 •
concedia no todo ou em parte a senhores laicos ou eclesiásticos, mediante a obrigação A utilização de instrumentos semelhantes, tantos séculos depois de iniciadas estas
destes de repovoá-los. Esses territórios de propriedade do rei fizeram parte do que passou práticas na Península, justifica-se plenamente se atentarmos para o fato para o qual nos
a se chamar realengum e, no caso de propriedades das abadias, abadengum. As demais
chama a atenção Virgínia Rau:
terras concedidas à nobreza guerreira constituíam-se nos senhorios e, além disto, houve «A presúria, como sistema de aquisição de terras, só é possível em épocas e regiões em
terras que foram apropriada, oÚ:tomadas por pequenos proprietários para seu sustento, que as necessidades guerreiras e sociais tudo permitem ao conquistador; só é possível,
que se constituíram nas prestirias.
digamos, em épocas de violência e em regiões fronteiriças.» 56
A presúria, instituição característica dos séculos IX ex em diante, com o processo de Outra não era a situação das novas terras descobertas no outro lado do Atlântico no sé-
maior sedimentação da população e a evolução das instituições e interesses, passa a sofrer culo XVI e observa-se, também, uma certa analogia de situação se nos lembrarmos da condição
transformações.
de fronteira, entre Espanha e Portugal, já no século XVIII, na bacia do rio da Prata.
No começo a presúria era feita quase que sem formalidades por parte do rei mas, no Deve-se registrar, outrossim, que a prestiria, transformada em pequenas e médias
decorrer do processo, a autorização real tornou-se uma necessidade para legitimar a posse, propriedades - à semelhança do que ocorreu no Baixo Império romano quando a peque-
caracterizando uma intervenção maior do poder real na propriedade, introduzindo a ne- na propriedade vai sendo absorvida pelos grandes latifúndios - na Península Ibérica,
cessidade de um diploma legal que certificasse a posse ou a doação. Os limites da presúria depois dos séculos IX ex, quando era feita por homens livres que, entretanto, não possuíam
no começo dos processos de ocupação eram indefinidos e o próprio presor era o mais capital suficiente para investir em gados, servos, utensílios, etc., foi, também, paulatina-
interessado em estabelecer seus limites:
mente, sendo absorvida pelos grandes latifúndios.
«Nalguns casos, o presor marcara com o arado o perímetro do solo de que se apro- Evidentemente, ressalvado o fato de que esse processo teve diferenciações regionais, a
priara e simbolicamente garantira a posse pela ocupação que, na gleba, se traduz pelo realidade incontestável é que houve, posteriormente, uma absorção dos pequenos proprietá-
cultivo; noutros, possivelmente serviram os antigos limites.» 52 rios pelos grandes senhores laicos, eclesiásticos ou por poderosos funcionários reais 57 . Proce-
No Norte da Espanha, Navarra, por exemplo, estas pequenas e médias propriedades, dimentos, aliás, que também foram repetidos na América com algumas diferenciações.
muitas vezes, seguiram o traçado antigo romano, limitados pelas «estratas». Os limites, evi- O sistema de presúria para o repovoamento, a rigor, permanece até o fim do século XI,
dentemente, quando se confrontavam com propriedades já demarcadas tinham que respeitá- passando, posteriormente, a um sistema de doações através dos «concelhos» ou concilium.
-las, ou seja, «a presúria não podia se realizar em terras onde existissem direitos anteriores» 53. É interessante registrar, também, que em termos de distribuição regional, no territó-
Como qualquer outra propriedade podia ser vendida, trocada, doada, herdada, etc. rio português, apresentam-se diferenças bastante importantes, como salienta V. Rau:
Mas não era só a demarcação que dava direitos, o cultivo da terra pelo presor era «Com o caminhar para as províncias meridionais, em face de uma distribuição pe-
fundamental para garantir o direito de propriedade. Tanto que assim se manifesta, a res- culiar do elemento humano, mais concentrado em aglomerações de caráter urbano, a
peito, Virgínia Rau, apoiada, também, na obra de Concha Martinez: presúria vai decaindo e os reis talham generosamente grandes latifúndios que entregam às
«Afigura-se-me tanto mais verdadeiro que, em toda a Península, encontramos consignado ordens monásticas e militares e aos grandes senhores, e concedem também extensos alfozes
o preceito de que a terra vaga, a terra erma, apropriada ou doada para ser posta em cultivo, se aos concelhos que vão surgindo.» 58
permanecesse inculta era retirada ao possuidor para ser entregue a quem a lavrasse.» 54 Isto posto, admitindo que as estruturas urbanas que emergiram na Península a partir
Este dispositivo, é de se notar, continuará em vigor, ainda no século XVI, quando do repovoamento e da «reconquista» têm raízes profundamente rurais em quase todos os
observamos as Cartas de Poderes dadas a Martim Afonso de Sousa por D. João rei de seus aspectos sociais, há que se destacar um fato na distribuição geográfica daquelas funda-
Portugal, concedendo-lhe poderes para a doação de terras em sesmarias nas terras recém- ções: se o Norte - Astúrias, León, Castela, Navarra, Aragão foram as áreas menos
-descobertas do Brasil, com reversão dessas doações, caso o (então) sesmeiro não a cultivas-

55 Rau, op. cit., p. 39.


52
Rau, op. cit., p. 33. 56
53
Rau, op. cit., p. 37.
Rau, op. cit., p. 35, citando 1. de la Concha Martinez, La Presura, em AHDE, XIV, pp. 42 l-422. 57 Rau,
180 54
op. cit., p. 30, citando 1. de La Concha Martinez, La Presura, em AHDE, XIV, p. 395.
Rau, op. cit., p. 36. 58 181
Rau, op. cit., p. 38.
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atingidas pela civilização muçulmana, portanto as mais ruralizadas nos séculos IX ex, fo- algumas das novas fundações do repovoamento que seguiram a direção contrária, do oeste
ram, também, necessariamente, as áreas que necessitaram de maior número de novas fimda- para o leste, ou seja, da Galiza para os Pirineus.
ç:ões, novos assentamentos de apoio ao repovoamento; mais para o sul, a reconquista trata A motivação é, em primeiro lugar, religiosa, mas foi altamente estimulada pelos reis
de ocupar as cidades islâmicas já existentes. desde Sancho el Mayor até Afonso VI, por abades, como Santo Domingo de Silos ou San
Portanto, para a questão que me interessa discutir, o Norte ibérico é a região que Juán de Ortega, ou mesmo por particulares, como os construtores de hospedarias, pontes,
interessa de início, atentando-se para a cronologia e para as rotas que se estabelecem entre etc.; toda esta movimentação, como diz Dalché, suscitada pela «invenção da tumba do
o Sul da França e a região pirenaica apóstolo,,.
,, e cantábrica.
O século x vai trazer um5. crise no avanço cristão, e um conseqüente retrocesso nos Novas cidades surgem ao longo deste caminho que são, entretanto, diferentes:
territórios conquistados. Contudo, as crises nos próprios territórios muçulmanos, com a «... a função militar e a de residência ocupam, na sua formação, um lugar secundário.
queda do califado de Córdoba e a fragmentação do territórios nos reinos de «taifas», minimiza Alinham-se ao longo do caminho e surgem a partir de um ponto: monastério, como
o resultado e rapidamente os reinos cristãos retomam as iniciativas de expansão para o sul. Sahagún; castro-residencial, como Nájera; vi!!a como Logrofio.» 61
Para o leste, depois da crise do século x, Navarra assume a dianteira do repovoamento, com Surgem, então, novos critérios de implantação: nos passos dos rios, junto às pontes, a
Sancho em Mayor que estabelece, inclusive, os contatos com os reinos de além-Pirineus: necessidade de parada para a passagem justificou o surgimento de aglomerações e a cons-
«A ele se deve o acondicionamento do caminho de Santiago de Compostela por Navarra, trução de capelas e/ou igrejas; a existência de monastérios (os reis muitas vezes chamaram
La Rioja e o vale do Douro. Há além disto uma estreita relação entre esta iniciativa e o os de Cluny) foi fundamental para o abrigo inicial dos peregrinos, enquanto se construíam
debilitamento e posterior desaparecimento do califado: o distanciamento da ameaça muçul- hospedarias (hospitais) e toda a série de apoios de serviços e comércio que aquele fluxo de
mana favoreceu o desenvolvimento da peregrinação de Compostela e, portanto, a busca de pessoas demandava.
uma via de acesso mais cômoda.» 59 Contudo, não foi só o fator religioso que proporcionou o desenvolvimento dos nú-
O enfraquecimento e desaparecimento do califado de Córdoba restabeleceu a circula- cleos urbanos ao longo do «caminho francês», estabeleceu-se - pela circunstância polí-
ção da moeda nos reinos cristãos ibéricos, através das alianças eventuais com os reinos de tico-económica das áreas muçulmanas - uma triangulação económica, onde Santiago de
taifas, incrementando, de alguma forma, o comércio: Compostela constituiu-se num dos vértices, entre o Sul muçulmano, Compostela e o
«A corrente comercial, alimentada sem dúvida pela abundância monetária procurada restante da Europa, através do Sul da França.
pela exploração das taifas, que uniu a longínqua Galiza com os países ultrapirenaicos, foi O caso da «fundação,, de Sahagún é interessante de se examinar: a cidade originou-se
geradora de cidades. Colónias estrangeiras, na sua maioria compostas por ftancigeni, esta- em função do monastério onde Bernard de Sédirac impôs a regra de Cluny, em 1080; em
beleceram-se nas principais etapas do que se chamou "o caminho ftancês".,Pi 1085, o rei Afonso VI, a pedido do abade, teria concedido os fi1eros à comunidade de
É justamente em torno deste «caminho francês» que se situa a discussão aqui propos- habitantes de um burgus formado nos arredores. Há registros desta comunidade de 1047,
ta sobre a natureza do sistema urbano que se estabelece, as suas características e as suas portanto o foro de 1085 tinha por objetivo fixar a população e atrair novos povoadores,
influências mútuas, inter-regionais, Gasconha, Midi toulousiano e Languedoc, com a confirmando o senhorio do abade e impondo obrigações aos habitantes bastante pesadas.
Catalunha, Aragão, Navarra e o reino de León-Castela. Parte do populatores eram castelhanos mas, como ressalta Dalché:
«Junto a eles uma massa heterogénea de gascões, bretões, borgonheses, provençais, ingle-
ses, alemães e lombardos. Os gascões são habitantes relativamente próximos; a influência de
Cluny e o papel desempenhado por Raimundo de Borgonha, genro de Afonso VI, explicam a
O «caminho francês» ou o «caminho de Santiago de Compostela» chegada de borgonheses. Bretões, provençais, ingleses e alemães são, sem dúvida, peregrinos
que decidiram tentar fortuna na Península. [... ]Ao conjunto desta população estrangeira se
O «caminho francês» vai ser a via de comunicação, surgida em meados do século XI designa comummente com o nome de ftanci ou ftancigeni. Muitos são mercadores.»6 2
até princípios do século XII, que, na Península, é seguida pelos peregrinos em direção a Quanto aos lombardos, registrados muitos em Burgos, segundo Dalché, seriam na sua
Santiago de Compostela, a partir de Puente la Reina no sentido leste-oeste, aproveitando maioria cambistas, ao que acrescentaria a grande possibilidade de serem, também, construto-

59
J. G. Dalché, op. cit., p. 60. "' ]. G. Dalché, op. cit., pp. 67-69.
182 "ºJ. G. Dalché, op. cit., p. 60. "' ]. G. Dalché, op. cit., p. 72. 183
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res, pois são famosos os mestres pedreiros do românico da Lombardia, da região do lago «Em 1181 Sancho o Sábio de Navarra batizou com o nome de Vitória a aldeia de
Como, de toda a Costa Azul, até o Norte ibérico; seus ateliês e sua arquitetura influenciaram Gasteiz, à qual deu o foro de Logrofí.o. Também aqui a cidade surgiu de uma comunidade
toda Europa Ocidental63 • rural, porém é impossível dizer se a carta consagrou a formação espontânea de uma aglome-
Na Península, as principais localidades do «caminho francês)) serão, então, nos passos dos ração de caráter novo a partir de elementos estrangeiros, ou se antecipou a esta formação.» 66
rios: Logrofio (junto à travessia do Ebro), Nájera, Hiero dei Castillo (onde se cruzava o rio Ainda na região foi fundada Tolosa, em 1256, além de Segura e Salvatierra, e Villafranca
Pisuerga), Santo Domingo de la Calzada (a leste do Pisuerga), Belorado, Castrojeriz, Carrión, de Guipúzcoa, em 1268. Aqui já se está em pleno século XIII, época em que os autores em
Sahagún, Mansilla de las Mulas (junto ao rio Esla), Ponferrada, Villafranca dei Bierzo, Sarria, geral dão como sendo a época em que as fundações urbanas ibéricas do Norte têm uma
Portomarín, Castrojeriz. Na sw rrtiioria tratavam-se de localidades muito pequenas. Destaca- vinculação muito forte com os métodos das fundações das bastides francesas.
ram-se, de alguma forma, Santo Domingo de la Calzada, onde o eremita fundou um hospital Esta filiação aos procedimentos das regiões do Sul da França, Gasconha, região de
em 1076 e o povoado recebeu seuji,ero no princípio do século XII. De acordo com Gautier: Toulouse, Languedoc, etc., é que me chama a atenção. Na verdade se atentarmos para as
«Sedes episcopais, residências reais ou condais (Burgos, Nájera, León, Astorga, San- datas, verificamos que os processos de fundações de cidades-novas - seja através de res-
tiago), rodeadas de muralhas que abrigavam uma população de clérigos, guerreiros, artesãos taurações de antigos ambientes romanos abandonados, seja através da instalação de um
e pequenos comerciantes, eram já cidades na medida em que a terra não constituía o único castelo em torno do qual vão se aglomerando aldeias ou burgos habitados por trabalhado-
recurso de uma parte dos que ali viviam,)) 64 res da terra que vêm procurar segurança junto à fortaleza, seja através de uma fundação
Entretanto, a rota de peregrinação vai transformá-las em função das necessidades dos totalmente nova mesmo, como é o caso de Burgos e outros assentamentos menores - é
peregrinos, principalmente no que tange à construção de hospedarias, normalmente na muito anterior às datas verificadas para a fundação das bastides.
entrada ou na saída dessas cidades. Parece que o grande traço diferenciador é, exatamente, o traçado do novo assenta-
Quanto a Santiago, sua história mais antiga ainda é desconhecida, seu efetivo desen- mento. As «cidades-novas)), em geral, conforme Heers:
volvimento não deve datar de antes de meados do século XI; sua muralha foi construída em «... se multiplicaram nas fronteiras do País de Gales e da Escócia aquelas da expansão
1048; a antiga sede episcopal da região, que se situava em Iria, só seria deslocada para ela germânica na Europa central, nos campos de Flandres e no Levante Ibérico. Elas inscreve-
em 1095. É interessante registrar a observação de Dalché sobre a estrutura urbana: ram nos mapas uma rede densa de novos sítios urbanos e pontilharam a paisagem rural de
«Ainda que a planta da cidade não apresente uma ordenação perfeitamente regular, campanários, de mercados e de feiras»6 7 •
não dá a impressão de que o crescimento tenha sido totalmente espontâneo. Esteve prova- No Norte da Península, repetimos, o objetivo militar, pelo menos no período inicial
velmente dirigido, a partir do século X!, por prelados que eram os donos.)) 65 da expansão cristã, correspondente aos séculos IX ex, esteve muito presente; posteriormen-
Santiago, naturalmente, por se constituir na meta final da peregrinação, reunia uma te, a distância das fronteiras mais disputadas afastou essa função. Os assentamentos ao
grande quantidade de pessoas e atividades as mais diversas, sendo que os artesãos e merca- longo do caminho de Santiago mostram outras motivações paralelas, a económica e a
dores estabeleciam-se ao longo da via ftancigena, prolongamento urbano do «caminho religiosa, que, conforme a localidade, se somam ou não aos objetivos militares.
francês». Note-se, contudo, que o privilégio era sempre para os caminhos terrestres. É legítimo afirmar que, à medida que a linha da fronteira cristã da Reconquista
Outros percursos secundários podiam ser utilizados, um deles é o constituído por avança para o sul da Península, os motivos económicos, políticos e religiosos passam a
uma rota, também terrestre, que vinha por Bayona, Guipúzcoa, Álava até Vitória e Miranda predominar nas áreas incorporadas.
dei Ebro, juntando-se ao «caminho francês» principal em Burgos; este caminho teve a De qualquer maneira pode-se dizer que as novas cidades ibéricas apresentavam as
particularidade de desempenhar duas funções políticas, uma ligando a Galiza à França seguintes características que, aliás, são muito semelhantes a qualquer outra cidade do res-
como alternativa aos peregrinos, e outra foi a de, uma vez incorporadas Álava e Guipúzcoa tante do território europeu: eram dotadas de um cercamento de muralhas, dentro destas
ao reino de Castela (em 1200), desempenhar um papel de segurança em relação ao reino muralhas muitas vezes, conforme a região, eram deixados grandes espaços para uma pro-
de Navarra. Quanto a Vitória tem-se que: dução alimentar para a população urbana e/ou para pastagem e abrigo dos animais em
caso de guerra; o tecido urbano era dividido em bairros 68 , normalmente em função do

"'Ver Jacques Fonraine, E! Prerrornánico, Encuentro, 1982, Raymond Oursel, La arquítectun, románíca, 66
J. G.
Dalché, op. cit., p, 82.
Encuenrro. 1987, e Jacques Thirion, Costa Azul, 1980, Coleção Europa Romanica. 67
Heers, Jacques, La Vil/e au lvloyen Age, Fayard, Paris, ] 990, p. 97.
64
J. G. Dalché, op, cit,, p. 77. 68
Note-se que em muitas cidades portuguesas e/ou espanholas, com urna influência mais marcante das
184 65
J. G. Dalché, op, cit., pp. 79-80. estruturas urbanas muçulmanas, os «bairros», eram verdadeiras vilas ou aldeias, 185
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exercício do mesmo ofício, ou de etnias diferenciadas (bairros de judeus, de muçulmanos (burgo de Roncesvales 70 ), etc.; Sahagún, nascida em função do monastério, também se
ou de francos), faro que repete também o que ocorre nas demais cidades européias (sendo inclui nesta última categoria, pois é atravessada pelo caminho francês que passou a ser a
provável, apenas, a maior presença de bairros muçulmanos na Península); junto às mura- rua principal no seu tecido urbano.
lhas, principalmente a partir das portas, surgem os subúrbios, muitos deles contendo os - Fundações totalmente planejt1das - são aquelas que, além da intenção de implan-
mercados semanais, também similares aos demais assentamentos europeus; por último as tar um novo assentamento urbano, isto é precedido de um planejamento físico-territorial.
cidades contavam com um território abrangente no seu entorno que dependia, ou não, do Segundo Gautier Dalché, entre outros: «... as aglomerações de plano verdadeiramente
estatuto da cidade. Esses territórios eram o «alfoz)) ou o «terminus», conforme a sua regular, traçado antes do estabelecimento dos populatores, não parecem anteriores ao sécu-
abrangência ou o seu estatutofa' lo XIII. A maioria delas situa-se no norte, e não é de se descartar a influência das bastides
O território circundante da cidade, em extensões extremamente variáveis (em Miranda francesas.» 71
de Ebro, por exemplo, variava entre 19 e 25 km), onde podiam se localizar villae ou Chueca Goitia reforça esta assertiva:
aldeias, constituindo-se numa área de influência ou de expansão, mas que não tinha neces- «... a urbanística medieval não ignorou tampouco um sistema de planificação tão anti-
sariamente o mesmo estatuto da cidade, este era o alfoz: go como o mundo: a cidade traçada a cordel, quadricular, ortogonal, em tabuleiro de xadrez
«... os habitantes do ai foz, nobres, religiosos ou terratenentes conservam seu estatuto, ou como se queira chamar. [ ... ] O caso mais famoso de todo o urbanismo medieval planifi-
seus bens e seus direiros sem converter-se em cives ou vicini de Miranda. Não parece que cado é o das bastidas francesas, situadas nas velhas terras da Aquitânia, entre o Gt1ronne e 0
tenham obrigações com respeito à cidade»m. Dordogne. O seu nome bastide é provençal e vem de bastir, que equivale a praça-forte.» 72
Já o terminus é um território mais restringido que, mesmo que tenha villae ou aldeias Esses assentamentos tipo bastides nos levam a considerar duas linhas de questões: em
no seu interior, todos os seus habitantes seguem o estatuto da cidade a que pertencem. primeiro lugar o fato de que teriam nascido da iniciativa real, tanto dos reis da França
Seria mais ou menos semelhante ao território que, hoje, corresponde ao limite urbano de como da Inglaterra, depois seguidos pelo Duques de Toulouse, ou seja, tratam-se de assen-
uma cidade. tamentos que se destinam, numa primeira instância, à defesa de seus territórios, numa
Resumindo, as novas fondações podem, na Península Ibérica, ser de diversos tipos, a saber: segunda linha de objetivos, destinam-se à incorporação de novas terras no circuito da
Fundações de traçado espontâneo surgidas a partir de um estímulo inicial - uma produção, através do arroteamento, da distribuição de lotes e, conseqüentemente, do po-
residência real (Oviedo), um paLício episcopal (Tuy, Orense), um santuário de peregrinação voamento. Ervin Galantay esclarece que:
(Santiago de Compostela), ou um monastério (Sahagún); também incluem-se nesta catego- «Maurice Beresford, em seu meticuloso estudo, enumera 74 novas cidades só em
ria as cidades portuárias que, no Norte ibérico, principalmente a partir do século xn, confor- Gales e calcula em 152 o número de novas cidades inglesas fundadas antes de 1300, e em
me as condições geográficas costeiras, etc., estabeleceram-se no litoral do Atlântico. 113 na Gasconha [o grifo é meu]. Segundo Beresford, Eduardo I convocou uma reunião
- Fundações intermediárias - são várias: os assentamentos criados com o objetivo ordinária do Parlamento em 1297 para que o aconselhasse "como concebei; ordenar e dispor
de reativar antigos núcleos romanos abandonados, é o caso de León (na área da antiga novas cidades para o maior benefício de Nós mesmos e dos mercadores" [ ... ] .,/3
legio VII Gemina) ou deAstorga (AsturicaAugusta); essas fundações teriam provavelmente Eduardo I criou cidades-novas na Inglaterra e na França, sendo que, segundo Lavedan,
seus terrenos divididos e, de alguma forma, seguido os antigos traçados romanos a partir as da Inglaterra não têm nenhuma relação de semelhança com as da França.
dos eixos cardo e decumanus; Burgos também seria um exemplo de fundação intermediá- Chama a atenção o extraordinário número de 113 fundações na Gasconha, região da
ria, ainda que não tenha um marco urbano antigo, foi planejada, porém não o seu espaço encosta norte dos Pirineus, na fronteira com os reinos ibéricos, e uma das vertentes secun-
físico que resultou espontâneo, segundo os acidentes topográficos e as suas ligações mais dárias do «caminho francês». O mesmo Eduardo I foi o mandante da construção de uma
importantes com os caminhos do entorno e as relativas à segurança; também dentro desta das mais famosas bastides que é a de Montpazier, em 1284, excepcional pela precisão da
categoria podem ser incluídas as cidades surgidas em função do «caminho francês)), ou geometria de seu traçado.
seja, as cidades que se desenvolveram ao longo da estrada, sendo o seu traçado, muitas
vezes, estruturado de forma longilínea, adaptando-se também aos acidentes topográficos, 7
°CHUECA GOITIA, E, Breve História do Urbanismo, Presença, Lisboa, 1992, p. 92.
com poucas ruas transversais, como Castrojeriz, Santo Domingo de la Calzada, Burguete 71
J.
G. Dalché, op. cit., p. 313.
72
Chueca Goitia, op. cit., p. 95.
73
GALANTAY, Ervin, Nuevas ciudades. De la Antigiiedad a nuestros dir1s, Barcelona: Gili, 1977, p. 63, nota
n.º 20, citando Maurice Bcrcsford, New Toww ofthe Miclle Ages, Tó11m Plantation in h1glanrl, Vla!es and Gasco1ly,
186 60
J. G.Dalché, op. cit., p. 326. Praeger, New York, 1967, ao qual não tivemos acesso. 187
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A origem dessas fundações, que se incluem no rol das «cidades-novas» medievais - trabalhos de Charles Higounet são minuciosos a esse respeito) e, também e sempre, de
extremamente interessantes no meu entender por se tratarem exatamente de espaços inter- acordo com as potencialidades e dificuldades do território.
mediários entre o urbano e o rural-, segundo Heers, situa-se num tipo de assentamento É interessante considerar com atenção o papel das ordens religiosas, principalmente
de defesa as «sauvetés», registradas, notadamente no Sudoeste francês (os Romanos ali só Cister que sofre dificuldades na manutenção de suas granjas, modelos de exploração com
haviam colonizado as margens do rio Garonne), onde, nos anos mil, imensas florestas se as melhores técnicas da época. Cister já não conta com os «conversi)) (religiosos que se
estenderam ao norte e leste de Toulouse, formando uma vasta zona deserta de ocupações; dedicavam exclusivamente ao trabalho braçaF 7) e se depara com o aumento dos salários e
nesse espaço só as sauvetés resistiram: passa, a partir daí, a abandonar a exploração direta do solo dos primeiros tempos e a fazer
«Os estabelecimentos desde os primeiros decénios do XII, as sauvetés dos acordos e parcerias com os reis e duques para transformar suas granjas em cidades-novas,
hospitalários, centros de arroteamentos implantados sob a sua salvaguarda que ofereciam atraindo hóspedes que se transformam em colonos que, assim, têm a proteção do rei ou do
um refúgio seguro contra os malfeitores e os bandos armados. Os habitantes das vilas se duque, além de vantagens fiscais, preservada, naturalmente, a renda do monastério:
instalavam em torno de modestas igrejas construídas às pressas nas clareiras, ou perto de «Estas granjas cistercienses assim repovoadas ocupavam às vezes sítios defensivos,
74
simples "croix de sauvetés" .» mas o cuidado maior não era absolutamente a guarda de uma estrada ou de uma fronteira;
Ressalto duas observações na citação de Heers, a primeira é que é numa terra plena de as cartas insistiam somente sobre a vida rural, sobre o cultivo e manutenção de um territó-
florestas que se estabelecem as pequenas aldeias que abrigam hóspedes que vêm trabalhar a rio, campos de lavouras, vinhas, quintais78 • As ruas muito largas para permitir a passagem
terra, ou seja, é um objetivo económico e a segurança é a dos moradores e não a preservação das carretas se prolongavam no campo que elas cortavam em blocos geométricos, assegu-
de uma fronteira política, não há critério estratégico nem de cruzamento de caminhos; em rando um verdadeira tomada de posse de um vasto distrito, inseparável da aglomeração.» 79
segundo lugar, da origem dos arroteamentos e dos pequenos assentamentos a partir de uma Aqui observa-se a evidência de uma inspiração ou conhecimento prévio - não se
ordem militar-religiosa como a dos hospitalários, pode-se inferir que constituíram-se uma pode afirmar com certeza - da centuríatio romana80 que, como verificou-se acima, em
forma de valorizar doações de terras e aumento nas rendas dos mesmos. É, na verdade, um muitos lugares da Europa, deixou sua marca na paisagem até hoje.
tipo de colonização agrária, mas que implica num surgimento de assentamentos quase urba- Já mais ao norte, nas regiões de Périguex e Bordeaux, os objetivos foram mais defen-
nos. Heers cita, por exemplo, a s1mveté de Fronton que contava com 300 «casaux,/ó. Assim, sivos, enquanto o móvel político comparece nos dois casos. Os duques, de Toulouse,
no Sudoeste francês, as sauvetés teriam precedido as bastides, estas registradas, principalmente Raymond IV e Alphonse de Poitiers fundaram dezenas de bastides em parceria com os
a partir do século xm: cistercienses, mas afirmando, através da presença de seus oficiais, o seu poder político e
«Sem dúvida é lá que estas fundações, as bastides, foram, em pouco tempo e muito domínio sobre as áreas. No vale do Garonne, contava-se, em 1272, cerca de 38 bastides.
cedo, particularmente numerosas, parecendo responder senão a um tipo bem definido, Eustache de Beaumarchais, de 1272 a 1291, fundou mais 23, das quais 21 situam-se na
pelo menos a modelos relativamente próximos uns dos outros. [... ] O movimento de Gasconha, ao sul do Garonne. O caráter de ocupação política mas não necessariamente
fundações é gestado verdadeiramente em 1222, com Cordes, em Albigeois, e se prolonga militar nos é indicado pelo dado de que: «No total, de 125 bastides do Sudoeste estudadas
de uma maneira sustentada durante cerca de um século e meio, até 1370 (a bastida de por Beresford, 41 somente possuíam muralhas de pedra e treze entre elas tinham uma
Anjou), o forte situando-se entre 1230 e 1350 aproximadamente. Registram-se então vá- fortaleza.)) 81
76
rias centenas de criações, de 400 a 500 verdadeiramente.» As ambições às vezes eram grandes, como se pode detectar nas cartas de parceria, mas
Porém deve-se ressaltar que nem todas essas fundações têm o mesmo objetivo: mes- nem sempre o sucesso esteve presente nas novas fundações, muitas permaneceram vazias,
clam-se ali necessidades políticas dos reis da França, da Inglaterra e dos duques de Toulouse, despovoadas, enquanto outras se desenvolveram. Em Beaumont, de 1272, por exemplo,
os interesses das ordens religiosas, militares ou não, através de acordos e parcerias com os previa-se a distribuição de 1000 lotes na cidade, enquanto Grenade (1290) previa
primeiros, destacando-se aqui o aporte dos arroteamentos e fundações dos cistercienses (os

77
Ver Duby, São Bernardo e a arte cisterciense.
78
N. T. - Aqui traduzi jardin como quintal porque penso que se refira o autor rrão a um jardim, como
74Heers, La Ville ... , op. cit., p. 98. espaço de fruição estética mas, isto sim, de complemento à produção familiar que, em portug,1ês, é melhor
75
Chama a atenção o emprego da mesma palavra «casal», tão encontradiça nas documentações das ocupa- denominado por quintal ou eira.
ções portuguesas onde, também, as ordens religiosas-militares tiveram um importante papel no processo de 79
Heers, La Ville ... , op. cit., p. 107.
ocupação do espaço reconquistado ao Islã. 811
Ver Max Weber, História Agrária Romana.
188 7
"Heers, La Ville ... , op. cit., p. 106. 81
Heers, La Ville ... , op. cit., p. 108. 189
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3000 lotes urbanos, para habitações e quintais, e 3000 «casais» no território e 2000 lotes «Os pactos de entrega dos muçulmanos ao rei catalão-aragonês obrigavam os con-
de vinhas, dos quais com muito esforço, foram ocupados 800 lotes.
quistadores a respeitar a vida, as leis, os costumes e as propriedades dos vencidos. Esta
circunstância explica a permanência de uma grande massa de população muçulmana no
Volcando às fondações do Norte da Península: Briviesca, apesar de originalmente ter
reino valenciano depois de sua conquista. [... ]A partir da conquista da cidade de Valência
sido reativada sobre as ruínas da antiga Virovesca romana, consta que em 1208 foi decidido
(1238) se deu começo à segunda fase, com o povoamento da zona central [a primeira fase
o seu translado da margem direita para a margem esquerda do rio Oca, com um núcleo
tinha sido o litoral valenciano]. Na parte setentrional desta zona permaneceu numerosa
constituído por um retângulo perfeito e ruas de traçado ortogonal.
população muçulmana, porém os lugares ermos e abandonados foram repovoados na sua
Da mesma forma, copsidha Chueca Goitia que as cidades bascas de Salvatierra,
maioria com catalães no litoral e com aragoneses no interior e, ainda que o monarca tenha
Durango, Bermeo, Tolosa, Bilbao e outras teriam sido da mesma maneira. Na região de
atribuído algumas localidades aos magnatas, proporcionou o repartimento de pequenos
Navarra ainda se destacam Guernica, Viana e Huarte-Araquil. Complementa Torres Balb:ís:
lotes entre pessoas das vilas e cidades.» 84
«Nos núcleos urbanos assim formados com as gentes atraídas pela concessão de lugares,
Posteriormente, muitos muçulmanos revoltaram-se e foram expulsos, intensifican-
terras e foros com privilégios especiais e isenções tributfoas, ficavam atendidas as necessida-
des militares e religiosas e as pecu:írias e as agrícolas. Porém não as industriais e mercantis, do-se a atividade repovoadora na região valenciana. Desta atividade nasceram as cidades-

verdadeira fonte de riquezas. Para o desenvolvimento destas e a criação de uma sólida econo- -novas da região de Castel!ón, onde:
mia urbana, ao mesmo tempo que se acrescentavam as rendas de príncipes e senhores, com o «... v:írias vilas e cidades cujo núcleo central conserva, em virtude da lei da perma-
conseguinte aumento demogdfico, atraíram-se outros povoadores, francos, mouros mudéjares nência do plano, a regularidade perfeita do seu traçado inicial: Casrellón, Yillareal, Nules,
e judeus. Com o nome de "francos" conhecia-se os estrangeiros chegados para se estabelece- Almenara, Soneja, etc. Quase todas foram criadas por Jaime I e seus sucessores imediatos,
rem na Espanha cristã, a maioria franceses, por mais próximos, atraídos pelos benefícios os reis da dinastia aragonesa-catalã. Estas vilas têm uma regularidade mais geométrica que
outorgados nos foros aos povoadores; em v:írias ocasiões obtiveram concessões especiais e as de Navarra» 85 .
situação jurídica privilegiada.» 82 As regiões da Catalunha, Valência, Aragão e Navarra são riquíssimas em exemplos de
Teriam muitas vezes estes estrangeiros, ou «francos», ocupado bairros isolados ou, em ordenações urbanas. Os famosos regimentos de Jaime I, o Conquistador, monarca que teve
determinadas cidades, algumas ruas específicas, dedicando-se às atividades mercantis e uma atuação extraordin:íria, reunindo tanto a participação efetiva nas conquistas milita-
artesanais, iniciando-se a formação de uma incipiente burguesia urbana. res, como nas ações de repovoamento e, também, na elaboração de instrumentos legais de
Fernando Chueca Goitia refere-se, por exemplo, ao fato de que, em termos decida- administração e ordenação urbana, continham avanços em termos de legislação de con-
des novas: trole urbano:
« .•• Sangüesa e Pueme la Reina, em Navarra, fundadas por Afonso I, o Batalhador «O regime municipal de Barcelona foi constituído por Jaime I em 1265. O governo
( 11 04-1134), são as mais amigas, anteriores às mais conhecidas do outro lado dos Pirineus estaria formado por dois organismos: o executivo - pahers ou consellers e o assessor -
[refere-se à bastide de Mompazier, a de traçado regular mais perfeito, de 1284]. Lerin, Consell de Cent. Em Valência e Maiorca, o regime municipal foi an:ílogo ao da Catalunha:
Viana, Huarte-Araquil também são vilas navarras bastante regulares.» 83 bayfes ou justicía, magistrados locais e Consefl. [... ] Em Aragão, à frente dos municípios
Além disto há toda uma série de fundações de cidades-novas estabelecidas por Jaime I estava um magistrado chamado zafmedina, justicia ou alcade, que era de nomeação real;
(1213-1276), o conquistador de Maiorca e de outros territórios, a partir da Catalunha.
com ele atuava um Capítulo ou Cabildo, integrado por jurados de eleição popular, e um
A conquista de Valência, por outro lado, foi obra de nobres de Aragão, com a colaboração
Consell ou Consejo.,, 8G
de nobres catalães e valencianos, em conjunto, além das Ordens dos Templários e dos
No que toca à teoria, vai ser no Levante ibérico que surgirão as primeiras teorias
Hospital:írios e milícias recrutadas pelos conselhos de cidades aragonesas e catalãs. A con-
urbanas, que sedimentam as já então corriqueiras práticas em relação aos instrumentos
quista de Valência tem especificidades interessantes que resultaram em cidades novas de
para o repovoamento e as práticas de seus traçados:
traçados regulares e ortogonais. Por exemplo:

82 "' SALRACH, José M., La Coronrt de Aragó11, in TUNÓN DE LARA, Manuel, Historill de Espaíia,
TORRES BALBÁS, Leopol<lo, La ~Edad Media, in GARCIA Y BELLIDO, CERVERA, CHUECA i
tomo rv, Feudalismo y Consolidación de los Peublos hispdnicos (siglos X!-XV), pp. 276-277.
BIGADOR, Resurnm Historico de! Urb,mismo en Espaíia, IEAL, Madrid, 1954, p. 7. 85
190 83 Chueca Goitia, op. cit., pp. 97-98.
Fernando Chueca Goitia, Breve Historia do Urbanismo, p. 97.
HC, Salrach, op. cite, p. 299. 191
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"No século XIV, o franciscano valenciano Eiximenis no Dotzé del Crestiá propunha dúvida dos das cidades italianas [o grifo é meu], com as quais estavam enlaçadas tão estrei-
com detalhe a cidade "bem regrada e ordenada" de traçado em quadrícula e no século xv, tamente, política e comercialmente, as catalãs e valencianas.» 90
o castelhano Sánchez de Arévalo tratou as povoações desde o ponto de vista político.» 87 Não compartilho da idéia de que essa nova sensibilidade seja apenas um «reflexo» daquilo
Torres Balbás reproduz o interessante trecho de um capítulo do EI Crestiá, intitulado que se produzia nas cidades italianas; os processos são concomitantes, até anteriores, se forem
Quina forma deu haver cíutat bella e be edificada, escrito entre 1381 e 1386: incluídas nesta linha as cidades novas de Navarra, Castela e León, mais próximas às - também
«A,sentar-se-á no plano, para que possa crescer sem travas; sua planta há de ser quadra- concomitantes - bastides dos séculos XIII e XIV. O movimento de repovoamento e Reconquista
da, de mil passos de lado; no centro de cada um destes se abrirá uma porta principal, flanqueada na Península Ibérica é anterior e simultâneo aos movimentos de expansão comercial e
por duas menores, fortificadas,corrfo as dos castelos; as esquinas estarão igualmente fortificadas. renascimento urbano, faz parte deles, é parte integrante dos movimentos de colonizações
De porta a porta, duas amplas ruas a dividirão em quatro quadrantes, cada um dos quais teá mediterrânicas, onde italianos e franceses, junto com catalãos e aragoneses empreendem um
uma bela e vasta praça. O palácio do príncipe, forte e elevado, deve elevar-se num extremo, processo de conquistas de mercados e territórios nas áreas das costas do Mediterrâneo.
com saída direta ao exterior. Nas proximidades do cruzamento das duas ruas maiores se Ainda mais se for, também, considerado um fator especificamente ibérico, que é a
implantará a catedral; imediata uma grande praça com degraus em torno e o palácio episco- natural rejeição dos padrões urbanos muçulmanos que, além de estranhos aos padrões
pal; não se permitirão solaces deshonestos 88 nela, nem a instalação do mercado nem da forca cristãos - pelo exagero na estreiteza e tortuosidade das ruas e praças - política e ideolo-
para o castigo dos delinqüentes. [... ]A, pessoas de idêntica profissão viverão agrupadas no gicamente deveriam ser rechaçados. As cidades-novas regulares na Península nascem tanto
mesmo bairro; se se trata de uma cidade marítima, as vivendas dos mercadores, cambistas, da praticidade do traçado ortogonal, como da necessidade de controle urbano (as expe-
etc., ocuparão a parte mais próxima ao mar; as dos lavradores deverão estar junto à porta que riências de revoltas urbanas muçulmanas deviam ser, evidentemente, conhecidas), como
abra para o campo; por toda parte se instalarão os comércios necessários para a vida cotidia- - e isto não deve, de maneira nenhuma, ser desprezado - de uma vontade de construir
na. O interior da cidade será "belo e deleitoso". Haverá leis que ordenem as edificações e um espaço que seja a antítese do hispano-muçulmano. É por este período que nascem as
demolições e gentes encarregadas de seu cumprimento.» 89 críticas acirradas à cidade islâmica, presentes até hoje na literatura específica. Torres Balbás
Portanto, em pleno final do século XIV, Eiximenis propõe um misto de cidade ideal, registra uma das primeiras manifestações contra a cidade muçulmana, por parte de um
baseada em muitos aspectos nos textos de São Tomás de Aquino, extremamente medieval cidadão de destaque chamado Don Antonio Ponz:
em alguns aspectos, como os bairros de profissionais da mesma área, ou como as fortifica- «Uma de suas primeiras manifestações conhecidas aparece numa carta de 18 de julho
ções nas esquinas, à semelhança das bastides, em outros é o extremo oposto da cidade de 1393, dirigida pelos Consel!ers de Valência a seus representantes em Avignon, na qual
medieval, espontânea e, principalmente, da cidade muçulmana, antecipando muitos as- dizem ter sido esta cidade edificada per morosa !ur costum estreta e meçquina, ab molt carrers
pectos dos tratados renascentistas, principalmente no que diz respeito à geometria regular, estrets volcats e altres deformítats. E em nova carta de 15 de setembro do mesmo ano insis-
à amplitude das ruas principais, à ordenação dos principais edifícios e à indicação da ne- tem sobre les deformitats que son en aquesta ciutat de carrer morísch e daltres dolenties.
cessidade do "belo e deleitoso» na paisagem urbana. Não se deve esquecer que a mais A conseqüência foi iniciar-se na região levantina as reformas urbanas, com a abertura de
famosa obra do Renascimento, De re aedificatoria, de León Bautista Alberti, data de mea- novas praças e a ampliação das antigas e das ruas.» 91
dos do século XV, cerca de 1452, não impressa até 1485, segundo Torres Balbás. A idéia de embelezar a cidade também faz parte do espectro das novas concepções: as
Teria tido muita repercussão a obra de Eiximenis não só nos meios da elite cultural energias criativas artísticas da Idade Média em geral, dos séculos XII e XIII, em termos de
ou política mas, inclusive, nos meios populares, como indica Torres Balbás: arquitetura, esculmra, relevos, entalhes e, notadamente, vitrais, dirigiam-se para as gran-
«As teorias de Eiximenis não foram no ambiente das comarcas do Levante espanhol des catedrais urbanas; o espaço urbano como paisagem nunca entrou muito nas considera-
no século XIV um fato isolado, sem conseqüências práticas. A meados desse século, ao calor ções e nas preocupações dos mestres construtores e esta nova preocupação com a estética
da riqueza produzida pelas atividades industriais e mercantis, surgiu nas terras mediterrâ- da paisagem urbana é mais um dos dados que caracterizam as mudanças estruturais em
neas da Coroa de Aragão um novo espírito cidadão, uma nova sensibilidade, reflexo sem curso em toda a Europa, incluída a Península, naturalmente. Nesta, segundo Torres Balbás:
«A idéia de embelezamento da cidade por meio de construções monumentais está
87
Antonio Boner Correa, E! Urbanismo en Espaíia e Hispanoamérica, p. 33 . explicitada no documento pelo qual Pedro IV, o Cerimonioso, autorizou, em 1339, a co-
. "«En ai tal plaça, per honor de la Seu e deis sacraris dioinals qui aquí són, no es deu/ér nengun solaç deshouest,
ne ht deven estar coses venals, ne s'hi deu sostenir neguna immu1tdícia, ne Jórca deu esses aquí ne costell, ne s'hi deu
negun punir ne sentenciar. [ ... ]», in Francesc Eiximenis, Lo Crestiá, p. 189. ººTorres Balbás, Resumen ... , op. cit., p. 92.
192 89
Torrcs Balbás, Resumen ... , op. cit., pp. 89-90. 91Torres Balbás, Resurnen ... , op. cit., p. 93. 193
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brança de impostos para construir uma lonja92 em Barcelona, que se levantaria, diz a dispo- «... sobre três centos de bastides aproximadamente, uma centena somente apresenta
sição régia, "para honra syua y ennoblecimiento de la ciudt1d". Apesar da data prematura, não uma praça que corresponda a um plano preciso; algumas não têm nenhuma; outras não
se estranha encontrar essa preocupação num monarca, precursor da sensibilidade renascentista, têm senão pequenos adros das igrejas; algumas grandes praças centrais se abrem só em
ao qual nem os que fazeres políticos nem militares impediram de ocupar-se continuamente, alguns lados e não são regulares, longe disto; numerosas são em forma de trapézio; num
descendo até os mínimos detalhes mais insignificantes, em reparar as construções antigas e certo número de bastides a praça não está perfeitamente inserida no tecido mas superposta,
levantar outras novas por todo seu reino e indicar as plantas e flores que deveriam plantar-se rompendo a harmonia; sobretudo, são raras as bastides em que a praça se situa no centro
nos jardins de seus palácios.» 93 do plano» 96 •
Assim, já desde sécul~s xfü e XIV, na Catalunha e em Aragão, manifestava-se a preocu- Já Lavedan declara que:
pação com a estética urbana, muito antes, portanto, das famosas intervenções urbanas dos «Na quase unanimidade dos casos, uma parte notável do terreno [das bastides] foi
papas Nicolau V e, depois, Sixto IV, que, a partir de princípios do século xv, empreende- reservada para uma praça pública contornada por arcadas e à qual se tem acesso somente
ram obras de ampliação de ruas, aberturas de praças, alterando completamente a cidade de pelos ângulos. [... ] No urbanismo meridional francês, a praça pública é verdadeiramente
Roma, merecedora desse tipo de embelezamento por ser a sede maior da Igreja católica 94 . a herdeira do Forum romano.» 97
Deve-se observar, inclusive, que Nicolau V foi assessorado nas suas obras por João Bautista Lavedan afirma que as praças de quase todas as bastides tinham uma área considerável
Alberti. Valência e Barcelona são emblemáticas neste sentido. em relação à área do restante da cidade (mais ou menos 1
/9 do total), formas mais ou
No interior da Península, contudo, já existem algumas diferenças: menos regulares; a praça muitas vezes ocuparia um ou dois quarteirões do conjunto da
«Longe das costas mediterrânicas, nas terras pobres e de clima extremado das mesetas quadrícula; a praça serve de lugar para o mercado, às vezes um mercado coberto; e é raro
da metade setentrional da Península, nas quais a monumentalidade se havia expressado uni- que a igreja esteja em algum dos lados (normalmente está numa praça próxima) e, por
camente, à parte as fortalezas, nos templos, com desprezo em relação ao aspecto exterior das último, a praça é contornada por pórticos:
vivendas, não podia encontrar eco prematuro e intenso a nova preocupação renascentista «... suas arcadas repousam tanto sobre colunas ou pilares de pedra, como sobre postes
pela grandeza e beleza urbanas.» 95 de madeira. Elas se aproximam nas extremidades, de maneira a não deixar senão urna
Não vou entrar aqui no comentário sobre as características do repovoamento e/ou estreita passagem; estas são as corniêres. Certas praças bem conservadas (Montpazier,
reconquista na Meseta e no Sul porque, como já comentei, foram ocupadas e adaptadas as Beaumont, Villefranche-de-Rouergue, Sauveterre-d'Aveyron, Sauveterre-de-Guyenne)
cidades islâmicas já existentes e os territórios centrais e sulinos têm uma história mais mostram ainda muito bem esta disposição» 98 •
complexa e, também, uma geografia difícil, que resulta em tipos de exploração económica Fica em aberto a discussão sobre as posições contrárias dos dois autores. De qualquer
diferenciados. forma a praça das cidades-novas ibéricas não fugiu a essas características. O surgimento da
Entretanto, convém comentar dois elementos da cidade ibérica da Reconquista praça espanhola, a Plaza Mayor ibérica, deu-se a partir das áreas comerciais, espontâneas,
- que comparecem em todas as regiões - para reforçar a hipótese do antecedente medie- que se formaram junto às portas das cidades hispano-muçulmanas, uma vez que no inte-
val-ibérico dos traçados coloniais ibéricos, de maneira especial dos espanhóis. Trata-se rior do tecido urbano as ruelas estreitas e casas apertadas umas nas outras não permitiam
do elemento urbano constituído pela Plaza Mayor e os pórticos (soportales) que a contor- espaços maiores, normalmente. Segundo Torres Balbás é ainda muito difícil identificar as
nam normalmente. primeiras praças que foram ampliadas e aprimoradas, transformando-se nesta categoria
A praça medieval é um elemento urbano que, a rigor, não segue nenhum modelo pre- urbana, tipicamente espanhola que veio a se chamar Plaza Mayor. Contudo há registros de
determinado, nem é uma constante nas cidades-novas da expansão económico-política que uma grande praça para celebrar mercados foi mandada construir em Estella, «... po-
européia. Segundo Heers, por exemplo: voando em 1187 a Población dei Rey (San juán)» 99 • Constam, também, registros de praças
para mercado construídas em Vich, a princípios do século XIII, e Lérida, no século XIV.
92
lonja: não tem uma palavra específica no português que abarque todo o seu significado que é mais amplo
do que o nosso rern10 <íbolsa», urna vez que pode ser não só un1 edifício público destinado a transações con1erciais
como um grande armazém, ou as instalações situadas sobre urna galeria 0,1 pórtico que se abrem para uma praça; a
expressão mais aproximada, contudo, é: «edifício da bolsa». 96
Heers, La Villa ... , op. cit., p. 144.
93
Torres Balbás, Resumen ... , op. cit., p. 93. 97
LAVEDAN, Pierre, Les Villes françaises, pp. 75-87.
94
Ver BENEVOLO, L., Historia de laArquitectum de! Renacimirnto. Lt,Arquitetum C!tísica (dei sigla XV ai "LAVEDAN, Pierre, Les Villes Fmnçaises, p. 88.
siglo XVIII), vol. I e II, Gili, Barcelona, 1984. °'Torres Balbás, Resumen ... , op. cit., p. 98, citando Lacarra, El desarmllo urbano de las ciudades de Mwam,
194 95
Torres Balbás, Resumm ... , op. cit., p. 96. yAragón, p. 14. 195
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«Já se viu [... ] como as vilas fundadas em Castellón de la Plana, na segunda metade Além disto deve-se observar outro detalhe que se encontra nas praças das bastides
do século XIII e no XIV, por Jaime I e seus sucessores, de traçado regular, tinham plaza mayor francesas, mas também na Península e, depois, na América:
central, cuja importância era aumentada pela implantação da igreja nela, disposição pouco «Quase todas estas praças eram de tipo fechado e as ruas que a elas conduziam desem-
freqüente.» 100 bocavam em seus ângulos, disposição lógica para que a circulação não perturbasse o mer-
Das pitorescas plazas mayores que permanecem na Catalunha e Aragão, nenhuma cado estabelecido em seu centro. Além de centro de celebração deste, a praça era, como o
anterior ao século xv, Torres Balbás destaca: forum clássico, lugar de reunião e passeio. Em seu centro costumava elevar-se uma cruz de
«Duas das mais belas e melhor conservadas são as de Santa Pau (Gerona) e Ainsa pedra.»103
(Huesca). Esta última é retaqgul~r, de 187 metros de comprimento por 97 de largura; está São encontrados pórticos no outro lado dos Pirineus, em algumas bastides, como a de
aberta por um dos seus lados e o seu fundo é ocupado pela casa consistorial, perfurada por Montpazier, 1284, ou a anterior cidade de Montauban, fundada em 1144, por Alfonse
um arco que conduz à Calle Mayor; sobre seus soportales levantam-se vivendas de um ou Jourdain, entre outras. Teriam tido essas praças francesas a mesma destinação das ibéricas,
dois andares, cujas paredes de fachada se abririam na Idade Média por aberturas mais isto é, o mercado semanal, uma vez que as feiras que eram um direito conquistado por
reduzidas que as atuais.» 101 algumas cidades - se celebravam, algumas vezes por ano, mas normalmente fora da cida-
O interessante é que todas estas praças eram dotadas de pórticos, ou soportales, guar- de. Além disto, Heers refere-se ao fato de que algumas construíam um mercado coberto
necidos tanto de arcos plenos, ou arcos apontados, construídos de pedra ou de alvenaria no centro da praça, onde eram guardados os «pesos» da comunidade e, no primeiro andar,
bastante maciças. Os edifícios nem sempre eram iguais, porém a unidade da praça era situava-se a casa comunal. No norte ibérico:
conferida pelo seu contorno de pórticos, elementos práticos, de proteção contra o sol, a «Soportales deviam ter as plazas mayores da coroa de Aragão no século xm. Em princí-
chuva e de facilitação do eventual comércio que se estabeleça sob os mesmos. Este tipo de pios do XIV, em 1306, concedia Jaime II à cidade de J átiva os pórticos da praça do mercado
elemento arquitetónico-urbano foi muito usado nas ágoras gregas, constituindo-se nas até a porta do Puig para que se celebrasse neles a feira anual, pórticos ou soportales construídos
stoas, e nos pórticos dos feri romanos. sem dúvida depois da conquista da cidade, pois é disposição urbana alheia às hispano-
Na França, segundo Heers, os pórticos: -muçulmanas.» 104
"··· chamados ambons, arcades, couverts, galeries ou mais comummente cornieres e Também aqui nem todas eram regulares e, em algumas delas, começou-se a construir
garlandes, parecem não ter sido construídos senão depois: os habitantes pedem então a o edifício do ayuntamiento ou do cabildo. Outras funções começaram, paulatinamente, a
autorização da mesma maneira que solicitam o direito de construir um alpendre ou telheiros; se realizar na praça, festas religiosas, jogos, corridas de touros. Mas a celebração do merca-
são "construções encaixadas" que se distinguem, pelos materiais e a técnica, da obra maior do parece ter predominado como objetivo inicial e principal das plazas mayores:
da casa; estabelecidos em tempos diferentes, mesmo no entorno de uma mesma praça, eles «Com o mesmo espírito, as 01denazas de Zarcigoztl confirmadas pelo rei don Juán
não apresentam uma verdadeira unidade arquitetural: encontramos, vizinhas umas das (1458-1479) definem a praça ou mercado como o "lugar más noble e conveniente de toda la
outras, cornieres de alturas diferentes» 102 . dita ciudat, e onde todas las gentes assí de aquéllas como forasteros o corren o están".» 105
Isto conduz a algumas constatações, a primeira é que a praça não tinha, normalmen- Se a plaza mayor foi altamente estimulada nas áreas levantinas, as atividades teatrais e
te, um plano e uma construção conjunta; a segunda é que isto reforça a divisão e distribui- de espetáculos religiosos parecem ter tido lugar privilegiado nas praças da Meseta:
ção de lotes a proprietários diferentes no entorno da praça e que os pórticos, responderam «Ignoramos quando chegou à meseta central - em data tardia provavelmente - a
a necessidades do comércio local, diário, para proteção do sol e da chuva. Se o lote é moda das praças com soportales. À sólida estrutura pétrea e pesada das levantinas substituiu
individual, mesmo que haja um plano de conjunto, só com o tempo e com a iniciativa dos nessas terras de barro uma pobre, apoios (pies derechos), rollizos [peça de madeira sem
proprietários é que o contorno da praça se fecha; nessas circunstâncias, raramente há uni- lavrar] e dintéis também de madeira.» 106
dade de formas e de materiais, só quando o empreendedor, público ou privado, é o mesmo Assim teriam sido as plazas mayores de Valladolid, Tordesilhas e muitas outras mais.
é que se obtém uma uniformidade espacial, como é o caso de algumas praças renascentistas Entretanto a fragilidade dos materiais empregados fizeram com que a maioria desapareces-
e barrocas posteriores.

"' 3 Torrcs Balbás, Resume11 ...• op. cit., p. 100.


'""Torres Balbás, Resumen ... , op. cit., p. 99. 1114
Torrcs Balbás. Resumen ... , op. cit:, p. 100.
1111
Torres Balbás, Resumen ... , op. cit., p. 99. 1115
Torres Balbás, Resumen ...• op. cit., p. 101.
196 1112
Heers, La Vil/a ... , op. cite, p. 144. ""Torres Balbás. Resurnm ... , op. cit., p. 101. 197
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se nas cidades principais, muitas incendiaram-se como a de Valladolid (em 1561); contu- Aqui verifica-se, então, que novas fundações continuaram a ser empreendidas no
do, ainda antigos registros fotográficos do século passado, conforme Torres Balbás, conse- território ibérico ao mesmo tempo que as fundações americanas. Portanto, os padrões
guem mostrar alguns remanescentes em pequenas vilas da Meseta: urbanísticos coloniais formularam-se ao longo dessas experiências, na Península e na
«Rollizos e postes de madeira, perdida quase sempre sua primitiva verticalidade, car- América.
comidos e desaprumados, coroados por toscas zapatas de apoio de vigas horizontais ou Além disto, tenho a mais absoluta convicção de que fica provado que os espaços
dintéis, podem ver-se todavia nos soportales de praças e ruas de Villalón, Tordesilhas e formulados por Espanha e Portugal na América têm a ver com as formas, muitas vezes
Aranda de Duero, entre outras vilas. A Rúa de Medina dei Campo, a principal de tráfego diferenciadas, com que os dois reinos, espanhol e o português, foram empreendendo a
de suas célebres feiras, oci.wadà então em grande parte pelos "câmbios", conservou até retomada dos territórios aos muçulmanos e promovendo o seu repovoamento. Ao mesmo
o ano de 1880, aproximadamente, soportrzles deste tipo, cuja recordação conserva uma tempo, expande-se Portugal, ocupando a fachada do Atlântico e os outros reinos hispâ-
velha fotografia da antiga coleção Laurent. [... ] Na praça do mercado de Burgos, in- nicos ocupando o Centro, o Norte, o Sul e o Levante na direção do Mediterrâneo. Portu-
tramuros desde fins do século xm, abundavam nos últimos anos do XVI os postes de madei- gal primeiro, Castela e León, depois, também visando as colonizações atlânticas. O ante-
ra muito velhos que sustentavam as casas que a rodeavam e faziam "mucha indecencia e cedente mais próximo - o medieval - é o que explica melhor os padrões de urbanização
desadorno" .» 1117 colonial na América e aponta para uma ação que tem na lógica e na praticidade o seu
Em Portugal, registram-se também cidades-novas: fundamento principal.
«Pelo rei D. Dinis de Portugal (1279-1325) para o povoamento de numerosos cen-
tros urbanos criados formando uma linha de defesa nos limites orientais de seu reino face
à Castela, do Minho ao Alentejo, cidades povoadas seguidamente por condenados ou por
estrangeiros atraídos pelas terras incultas. Pelos templários, que nos anos 1168-1171, rece- Conclusões sobre os traçados
beram do rei Afonso Henriques, e fortificaram importantes posições estratégicas contro-
lando o vale do Tejo e a estrada de Coimbra a Santarém; em Tomar eles edificaram um De acordo com todos os autores consultados, não é possível estabelecer tipologias
poderoso castelo, cidade alta e fechada antes de tudo, e a seus pés, se estendendo em predominantes para esta ou aquela região, ou para dizer que as bastides, por exemplo,
direção à ribeira do rio Nabão, uma cidade baixa, com parcelamento perfeitamente geo- seguiam esta ou aquela geometria. Ao fim e ao cabo, a praticidade, o pragmatismo da
métrico, percorrido longitudinalmente por uma grande rua retilínea, a Corredoura.,, 108 conveniência de aproveitamento das potencialidades do território e a resolução das dificul-
No Sul da Espanha tem-se as cidades novas mandadas construir ou reconstruir, já no dades que ele apresenta, aliados aos interesses cconômicos, políticos, religiosos, estraté-
reinado de Fernando e Isabel, das quais a mais conhecida é Santa Fé, acampamento militar gicos, etc., são os fatores que determinam a adoção desta ou daquela forma, irregular,
de apoio às ações militares da conquista de Granada e Puerto Real, perto de Cádis. Pos- longilínea, regular ortogonal, semi-regular, com muralhas, sem muralhas, etc.
teriormente, já no século À'VI, tem-se exemplos significativos de fundações de «cidades Entretanto, dentro do objetivo inicial de procurar os conteúdos medievais das expe-
novas» dentro da própria Espanha: riências da colonização ibérica no continente americano, alguns pontos devem ser aborda-
«Da época de dona juana la Loca, concretamente de 1508, datam as cédulas ordenan- dos no que diz respeito, principalmente, aos traçados regulares ortogonais.
do que se façam fundações na Sierra de Jaén; porém até o reinado de Carlos V não se Em primeiro lugar deve-se dizer que este tipo de geometria esteve presente em todas
levaram a cabo as fundações de Ltz Mancha Real e Valdepefím de jaén, em 1537 e 1579 as regiões européias durante o período de expansão do ocidente medieval. Contudo, pode-
respectivamente, as quais, com Vi/lares, Carchel, Carchalejo e Cambril, constituem um -se ressaltar, como o faz Heers, que:
importante núcleo de colonização interior. Sob Felipe II, estas povoações adquiriram sua «As cidades-novas construídas segundo um plano fixado com anterioridade, às vezes
rotai independência, com jurisdição à parte de Jaén. Como centros fundacionais, sua ca- na ausência de qualquer estabelecimento preexistente, chamam a atenção por uma origi-
racterística essencial é sua total dependência da economia agrícola. No tocante ao seu nalidade mais marcante, sobretudo por sua maneira racional, geométrica mesmo. São as
traçado, todas elas são de tipo ortogonal.» 1º9 paisagens construídas. Seu estabelecimento, a escolha do sítio, em todos os casos o dese-
nho do plano, a estrutura interna do tecido urbano, a orientação e a largura das ruas, o

""Torres Balbás, Resurnerz ... , op. cit., pp. 102-103.


número e a disposição das parcelas, a implantação dos edifícios públicos, todas essas deci-
"" Heers, La Ville ... , op. cit., p. 131. sões eram tomadas por especialistas designados pelo senhor, o príncipe ou a cidade respon-
198 00
' Antonio Bonet Correa, E! Urbanismo m ... , op. cit., p. 34.
sáveis pela empresa. Estes apelavam a empresários de colonização do solo e a mestres, 199
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arquitetos e urbanistas, diríamos, que se beneficiavam de sua confiança; estas pessoas com Bibliografia
experiência exerciam sucessivamente seus talentos em diferentes lugares.» 110

E isto, creio ter deixado claro, aconteceu na Península Ibérica, ao longo da própria BENEVO LO, L. Historia de la Arquitectura de! Renacimiento. La Arquitetura Cldsica (de! siglo XV ai siglo XVIII).
Vol. I e II. Editorial G. Gili, Barcelona, 2.' ed., 1984.
formulação das monarquias e dos estados nacionais, a partir do século XII, notadamente no
CAHIERS DE FANJEAUX. Les Cisterciem de Languedoc. (XIIl"-XIV•· s.), Col. d'Histoirc Religieuse du Languedoc
século XIII, espalhando-se a prática por todo o território ibérico e, posteriormente, às colo- au XII!" et au début du XIV•· siecle. Privat, Fanjeaux, 1986.
nizações das ilhas atlânticas, costa da África e América. CORTÁZAR, J. Angel García de. História Rural Medieval. Lisboa, Estampa, 1983.
DALCHÉ, Jean Gautier. Historia urbana de León y Castilla en la Edad Media (siglos IX-XIII). Sigla Veinciuno,
Segundo Heers, a idéia de um modelo ideal, criação intelectual de mestres medievais, Madrid, 1989.
inspirados na Antiguidade iorrtlina deve ser abandonada, ressaltando, contudo: DUBY, Georges (Dir.). Histoire de la France Urbaine. Paris: Éditions du Seuil, 1980.
«Certamente alguns teóricos, bem antes do desenvolvimento do "humanismo", pode- - . São Bema1do e a Arte Cistercense. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
EIXIMENIS, Francesc. Lo Crestià. Dotze de! crestià. «Regiment de la cosa pública», Barcelona: Edicions 62 i «la
riam ter presente no espírito o plano dos campos e das cidades da Antiguidade romana ou Caixa», maig 1994.
helenística. No tempo em que os reis de Castela e Aragão empreenderam a construção de FONTAINE, Jacques. B Prerromdnico. La Espafia Romanica. Encuentro, Madrid, 1978.
GALANTAY, E. Nuevas ciudades. De la Antigüedad a nuestros dias. Barcelona: Gili, 1977.
algumas cidades-novas (não muito numerosas, diga-se) para tentar preencher os vazios
HEERS, Jacques. La Vil/e au Moyen Age. Fayard, Paris, 1990.
deixados atrás de suas conquistas, parece verdadeiramente que essas fundações se inspira- - . Le Moyen Age, une Imposture. Perrin, Paris, 1992.
ram em técnicas e em experiências militares. Em seu tratado das Siete Partidas, Afonso X, HOLTZMANN, Bernard, «O legado greco-romano: a Cidade», in Le grand Atlas Universalis de l'Architecture
Mondiale.
o Sábio (rei de Castela de 1252 a 1284), fazia referências precisas para os estabelecimentos LAVEDAN, Pierre. Les Villes françaises. Vincenc, Fréal: Paris, 1960.
de novas cidades, aos acampamentos do exército romano: forma quadrada, ruas se cortan- LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984, 2 vols.
- (Dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.
do em ângulo reto, a tenda do comandante situada no centro; é assim que foi organizado
- . O imagindrio medieval. Lisboa: Estampa, 1994.
o acampamento de Fernando III diante de Sevilha alguns anos antes, em 1248: uma ver- LINAZASORO, José lgnacio. Permanencias y arquitectura urbana. Las ciudades vascas de !ti época rom,ma à la
dadeira cidade com suas praças e suas ruas especializadas por ofícios (cambistas, mercea- Ilustración. Gustavo Gili, Barcelona, 1978.
LOPEZ, Robert. A Revolução Comercial da Idade Média, 950-1350. Lisboa, Presença, 1986.
rias, mercadores de tecidos e de roupas). Os Portugueses fizeram o mesmo mais tarde no MORA.ES, A. C. R.; COSTA, W. M. A valorização do espaço. São Paulo: Ed. Hucitec, 1993.
Marrocos assim que sitiaram as cidades muçulmanas.» 111 OURSEL, Raymond. La arquitectura romdnica. Europa romanica. Encuentro, Madrid, 1987.
RUCQUOI, Adeline. História Medieval Ibérica. Estampa, Lisboa, 1995.
Uma coisa não se deve esquecer, as técnicas de guerra medievais não avançaram mui-
ROUX, S. Le Monde eles Villes au Moyen Age. Xle-XVe siecle, Paris: Hachette, 1994.
to em relação às da Antiguidade, estão aí as muralhas medievais a confirmar a sua simila- SANTOS, Milton. Espaço e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1979.
ridade com as realizadas tanto pelos Gregos como pelos Romanos. Só a utilização da pól- -. Técnica, Espaço, 7i:mpo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Hucitec, 1994.
SICA, Paolo. La imagen de la ciudad. De Esparta a Las Vegas. Barcelona: G. Gili, 1977.
vora é que vai revolucionar substancialmente a técnica de guerra, posteriormente.
RACINET, P.; JEHEL, G. La Ville Médievale - De l'Occident chrétien à l'Orient musulman - Ve-XVe siecle,
Santa Fé, às vésperas da tomada definitiva de Granada, é muito similar às cidades Armand Colin, Paris, 1996.
novas, que, desde os séculos XI! e XIII, os reinos de Navarra, Aragão, Valência, Catalunha e RYKWERT, Joseph. La idea de ciudad. Antropologia de la forma urbana en e! mundo antiguo. Madrid: Hcrmann
Blume, 1985.
León vinham construindo no território da Península. Isto confirma que a prática de mui- THIRION, Jacques. Costa Azul. Vol. 16. Europa Romanica. Encuencro, Madrid, 1990.
tos séculos é que gerou os padrões que a Espanha e Portugal implantaram na América. VERLINDEN, Charles. Précédents mediéveaux de la Colonie en Amérique. México: Instituto Panamericano de
Geografia e Historia, 1954.
É evidente que esta lógica e esta prática unem-se a tradições muito antigas que permanecem
WEBER, Max. História agrdria romana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
nas mentalidades, bem como inovações e interações que a própria terra descoberta, com suas
nações indígenas, sugerem ou impõem. Concluo este item com as palavras de Charles Verlinden:
«É necessário romper com a tradição historiográfica que faz começar a história colo-
nial da zona atlântica e americana com os grandes Descobrimentos. É necessário cessar de
fazer só alusões tão tímidas como superficiais dos precedentes medievais e é necessário
considerar estes precedentes como uma parte integrante do passado americano.» 112

"ºHeers, La Ville ... , op. cit., p. 129.


111
Heers, J., La Villa ... , op. cit., p. 131.
112
VERLINDEN, Charles, Précédents mediéveaw: de la Colonie enAmérique. México, Instituto Panameri-
200 cano de Geografia e Historia, 1954, p. 11. 201
CIDADES-NOVAS, SÉCULO XIII

Nules

Cidades Novas, Navarra, f\,enre-la;;Reina. Viraria, ampliação do tecido urbano.


Povoamento, 1090; «Fueros», f222~1227.

Almenara

Casrellón de la Plana, 1272.

Navarra Vitoria. Núcleo inicial, 1181, V.1lladolid, Castela, século XII, «Sportalcs»
e planta, 1202. da Plaza Mayor.

Logroíio, 1095.
BASTIDES FRANCESAS, SÉCULO XIII

Sainte-Foy-la Grande, 1250.

Santa Fé, Andaluzia, 1483. Montauban, 1144.


Acamp. Fernando e Isabel.

202 Cidades-novas, Valência, Villareal. Núcleo inicial, 1271. Tecido urbano posterior. Villeneuve-sur-Lot, 1253. Aigues-Mortes, século XIII.
203
BASTIDES, SÉCULO XIII

Villeneuve-l'Archêveque.

O INÍCIO DA PROFISSIONALIZAÇÃO
NO EXÉRCITO BRASILEIRO: OS CORPOS
DE ENGENHEIROS DO SÉCULO XVII*
Libourne, 1268.
ROBERT11 MARX DELSON
United States Merchant Marine Academy

Mirande, 1282.

BASTIDES FRANCESAS, MONTPAZIER, 1284

L=fPill 11w,:rrr'i Ü'__,, CJJlDJ]_J mrnffiij


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1

[DlllJ ITIIIIIIY'LlI) ffiDli_·· · t 1_. _


grr r LLlIUIIIIJ [LliIJ ITITIIlJlllíJ UlLIJIII:
Plantas.

Pórticos, praça. * Este texto foi publicado na revisra The Americas, 51 :4, Abril, 1995, PP· 555-574.
Üs historiadores datam geralmente a «profissionalização» do exército activo da Améri-
ca Latina do fim do século dezanove. Naquele tempo, as amplamente aceites crenças
«positivistas» que igualavam a modernização tecnológica ao «progresso» resultaram numa
necessidade perceptível de um exército de forças superiores de defesa comandadas por
oficiais formados nas recém-inauguradas academias militares 1• No Brasil, o exército já
tinha o incentivo do sucesso na Guerra da Aliança Tripla contra o Paraguai (1864-1870);
procurava agora consolidar os seus ganhos no clima competitivo institucional do final do
século dezanove apresentando uma identificável aparência profissionaF.
O resultado no Brasil (e noutros países da América Latina) foi o aparecimento de um
novo quadro de jovens oficiais, diplomados de academias militares, que não só eram ensi-
nados com um alto grau de profissionalismo mas que também abraçavam agora os ideais
positivistas delineados pela primeira vez por Auguste Comte em França. Foi especialmente
nas escolas técnicas militares que jovens intelectuais brasileiros da classe média se transfor-
maram em reformadores nacionais, através do privilégio de uma patente militar merecida
e dos ensinamentos do seu professor de matemática, Benjamin Constam. Procurando
reformar o Brasil, estes jovens oficiais-engenheiros esperavam substituir a velha «aristocra-
cia» privilegiada e possuidora de terras com a autoridade de uma nova classe de profissio-
nais empenhada no desenvolvimento material3. Estes diplomados eram tecnocratas mili-
tares, e a sua influência na política nacional estendia-se muitas vezes para bem mais além
do sector militar, para a arena política. Em virtude de se terem formado como oficiais
milicianos, achavam-se eles próprios como uma classe distinta, separada até dos outros
oficiais que tinham subido os vários escalões4.

1 A literatura sobre a profissionalização do exército latino-americano do fim do século dezanove e século

vinte é extensa. Um estudo prévio inclui, de John J. Johnson, The Military and Society, in Latin America.
Stanford: Stanford Universiry Press, 1964. Veja também de Frederick M. Nunn, Yeste,days Soldiers: Eumpean
Military Professionalism in South America, 1890-1940. Lincoln, Nebraska: University ofNebraska Press, 1983;
de June Hahner E., Civilian-Military Relations in Brazil, 1889-1898. Columbia, South Carolina: University of
South Carolina Press, 1969; de Frank D. MacCann, Jr., «Origins of the "New Professionalism" of rhe Brazilian
Military», no ]oumal oflnteramerican Studies and World Ajjàirs, n. 0 21 (1970), pp. 505-522; de Alfred Stepan,
The Military in Politics: Changing Pattems in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1971 e de John
Markoff e Sílvio R. Duncan Baretta, «Professional Ideology and Military Activism in Brazil: Critique of a Thesis
of Alfred Stepan», em Cornparative Politics, XVII: n. 0 2 (1985), pp. 175-191.
2 Para o modelo brasileiro, veja Frederick M. Nunn, «Military Porfessionalism anel Professional Milirarism

in Brazil, 1870-1970», no ]oumal of Latin American Studies, n. 0 4 (1972), pp. 29-54. O assunto também é
discutido em «Origins of the "New Profissionalism" ... », de Frank D. McCann, Jr.
3 Veja Bradford Burns, A Histo1y ofBrazil, New York: Columbia University Press, 1970, pp. 178-180.

'McCann, «Origins of...», pp. 508. 207


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No entanto, a profissionalização e a tecnocratização do exército brasileiro não foram século dezanove e até com paradigmas militares modernos. Um sentido de solidariedade
fenómenos exclusivos do século dezanove; da mesma forma, a mentalidade, que se desen- corporativa nascia neste grupo, gerado pelo ensino técnico superior necessário para a mis-
volveu dentro do contexto de um meio técnico militar e que favorecia claramente um são, mesmo se esta educação fosse recebida na colónia. O que é ainda mais notável é que,
desenvolvimento planeado (i.e., a modernização), não estava restringida ao século dezanove. dentro deste grupo único, as diferenças habituais entre indivíduos portugueses de nasci-
Mais propriamente, tal como o demonstraremos, as bases da profissionalização militar no mento e de formação e brasileiros de nascimento e de educação desapareceram aparente-
Brasil podem datar do século dezoito, época em que engenheiros-oficiais portugueses e mente ou já não tinham importância. Além disso, tal como em tempos mais recentes, estes
brasileiros altamente qualificados representaram uma presença de elite nas unidades urba- oficiais-engenheiros acabaram por acreditar que somente eles é que tinham a visão certa de
nas ou de milícia que lhes e1;-m•atribuídas. Estes oficiais especializados advogavam a or- como o Brasil deveria ser desenvolvido e, nas partes mais remotas do interior da colónia, a
dem e o progresso, até fora do campo dos assuntos militares, assinalando de um modo Coroa concedia-lhes poder autónomo. Através de uma análise do ensino destes engenhei-
conveniente a primeira indicação pelo exército de uma autoproclamada responsabilidade ros militares e do seu papel no período final da colónia, torna-se evidente que aquelas
pelo desenvolvimento brasileiro. características que definem os oficiais-engenheiros na Idade do Positivismo no Brasil
Estes engenheiros-oficiais já ocupavam os seus postos muito antes de o governo por- (e fornece discernimento dentro das manipulações político-militares deste século) eram
tuguês tentar reformas a todos os níveis da tropa (tanto a regular como a milícia) baseada evidentes no exército brasileiro bem antes que a maior parte dos historiadores tivesse
na colónia no fim do século dezoito. Talvez para reforçar a influência da Coroa sobre um conhecimento da sua presença.
território arrancado recentemente à America do Sul espanhola5, a finalidade das reformas A história da engenharia militar no Brasil remonta ao início da luta para afirmar a
dos anos de 1760 e 1770 era a de regularizar a disciplina e padronizar os métodos de autoridade real na colónia. Quando Tomé de Sousa chegou para fundar a primeira colónia
ensmo.
real em Salvador da Bahia em 1549, era acompanhado pelo engenheiro Luis Dias, desig-
Um ramo dos serviços uniformizados, os engenheiros militares, tinha demonstrado nado como sendo o arquitecto oficial da nova cidade e simultaneamente responsável tanto
um nível extraordinariamente alto de competência técnica e profissionalismo, décadas pela construção da cidade como pela sua defesa. Da mesma forma, Christovão Lintz (Lins)
antes que estas reformas fossem instituídas. A presença no Brasil de engenheiros militares e Francisco Frias de Mesquita incumbidos de fazer o esboço de Filipéia (João Pessoa) e
surgiu não só para implantar um modelo para o ensino técnico superior, mas, pelo facto de de São Luis do Maranhão eram também engenheiros militares. No século dezassete, tinha-
terem recebido uma distinção académica de nível superior, também constituíam automa- -se tornado usual, assim como necessário, colocar engenheiros militares (engenheiro de
ticamente uma elite intelectual dentro da colónia. Tal como os seus colegas do século capitania), ligados aos regimentos locais, nas cidades costeiras. Estes indivíduos, tal como
dezanove, estes especialistas militares coloniais contribuíram para uma filosofia esclarecida os últimos engenheiros militares, veriam a sua perícia utilizada não só para a criação de
de modernização técnica e económica e orgulhar-se-iam do seu conhecimento profundo planos de defesa urbana, mas também para a construção de distritos da nova cidade ou
das técnicas mais actualizadas. Embora não tão «positivistas», as atitudes científicas destes comunidades totalmente novas, para desenhar projectos de arquitectura urbana, ou para
primeiros engenheiros prenunciavam a receptividade que os jovens oficiais-engenheiros manter e desenvolver a orla marítima 6 •
formados pelas academias militares brasileiras mostrariam mais tarde pelas ideologias do Apesar da contribuição de tais indivíduos, é somente no século dezoito que o engenhei-
progresso e a competência tecnológica. ro militar pode ser definido como uma presença identificável dentro da estrutura militar e,
Até chegar ao ponto que este corpo conseguisse formar um quadro de especialistas de facto, indispensável. A observação destes oficiais revela a imagem de um corpo de elite de
que se tornasse indispensável à Coroa, é possível ver paralelos precoces com o fim do profissionais, altamente treinados com as últimas técnicas europeias, sobre os quais o gover-
no se apoiava cada vez mais.
5
Por volta de 1760, efectuou-se uma reforma administrativa do exército regular português que resultou
Os engenheiros militares presentes no Brasil do século dezoito ou eram recrutados de
num sistema de mérito e formação profissional (em vez da antiguidade), tornando-se a base da promoção. No
Brasil, as milícias locais estavam sob o controle directo de um coronel de uma unidade do exército regular e assim outros países europeus, ou eram ensinados em Portugal, ou tinham sido educados nas
estavam sujeitos aos critérios profissionais. Estes pontos estão definidos por John N. Kennedy no seu excelente
artigo, «Bahia Elites: 1750-1822», na Hispaníc Amerícan Historícal Revieu; (daqui por diante HAHR), vol. 53,
n.º 3 (1973), pp. 415-439. Embora, noutros lugares, as reformas do exército colonial latino-americano (especial- 6
Debati o papel dos engenheiros militares na abertura do interior brasileiro no meu livro New 1owns for
mente as conhecidas reformas Bourbon) não resultassem necessariamente em forças profissionalizadas, o caso de Colonial Brazil. Ddlplain Latin American Studies, n. 0 2: University Microfilms, lnc. para o Departamento de
Cuba é diferente, já que, aparentemente, nessa ilha, a criação de uma milícia local em cooperação com a socieda- Geografia, Syracuse University, 1979. Para uma discussão sobre alguns dos primeiros engenheiros, veja Robert
de de elite provou ser suficientemente efectiva para permitir que forças regulares deixassem Cuba para outras C. Smith, «Jesuit Buildings in Brazil», no Art Bulletin, vol. XXX, n. 0 3 (1948), p. 207. Cf. Anexo 1 «Porcuguese
missões. Cf. Allan J. Kuethe, «The development of the Cuban Military as a Sociopolirical Elite, 1763-83», Military Engineers in Brazil». Veja também Clemente Maria da Silva-Negra, «Francisco Frias de Mesquita, Enge-
208 HAHR, vol. 61, n. 0 4, 1981, pp. 695-704.
nheiro-mor do Brasil», na Revista do Serviço do Património Histórico e Artístico Nt1cional, vol. 9 (1945), pp. 9-84. 209
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academias fundadas no Brasil expressamente para este objectivo. Mas se os futuros enge- saber que o director do primeiro curso (aula) de engenharia militar em Lisboa conseguiu
nheiros militares eram educados em Portugal, no Brasil ou noutro lugar, eram o produto a sua fama profissional com a publicação de um tratado detalhado sobre castrametação 9 •
de uma educação que salientava a ciência da fortificação delineada primeiro pelos italianos Os estudantes portugueses de engenharia militar eram iniciados simultaneamente na
no século dezasseis e aperfeiçoada pelos franceses no século dezassete. Mudanças no arma- «arte da simetria», que consistia cm lições de geometria, trigonometria e a medição de ângu-
mento ofensivo, com a introdução da artilharia efectiva no século quinze, requeriam uma los de elevação, tudo assuntos importantes tanto para a artilharia e a agrimensura como para
reconsideração sobre os melhores métodos de defesa para a maioria das comunidades a construção. Os portugueses manifestavam uma predilecção por estes assuntos que torna-
europeias. Assim nasceu uma «ciência da fortificação», a qual fez com que cidades do vam a engenharia militar quase uma paixão; o mais famoso engenheiro militar do princípio
continente ficassem rodeaqas for uma série de baluartes, saliências, fortificações exteriores do século dezoito, Manuel de Azevedo Fortes, designado engenheiro-mor do Reino em
e fossos feitos para evitar a aproximação do inimigo. Se o inimigo conseguia de alguma 1719, era empregado pela Família Real para ensinar ao jovem príncipe D. António os fonda-
maneira penetrar bem para dentro das linhas de defesa, então a mestria da nova ciência da mentos da nova ciência. O engenheiro militar tinha-se tornado claramente num símbolo de
artilharia permitiria a colocação estratégica de projécteis, de modo que o inimigo fosse realização intelectual; por extensão, as «novas ciências,, de artilharia e fortificação representa-
apanhado num fogo cruzado e finalmente forçado a capitular7• vam as qualidades de precisão e exactidão tão admiradas pelo espírito do século dezoito.
Os portugueses tinham sentido a falta da perícia da engenharia quando lutaram contra O homem que dominasse os novos assuntos não era nenhum mero técnico mas, tal como o
a Espanha para a independência (1640), e, portanto, agarraram-se a estas novas ciências com fenómeno foi descrito por um historiador social, representava «um novo tipo sociab 10 •
entusiasmo, decidindo fornecer aos seus militares (e aos candidatos a engenheiros especial- Para a colónia do Brasil, a fascinação pela nova ciência de engenharia junto com a
mente escolhidos) umas bases sólidas em fortificação e artilharia. Desde o início da instrução necessidade evidente da perícia na defesa da colónia resultaram na procura de um grande
formal [o primeiro curso (aula) de fortificação teve lugar em Lisboa em 1647], os escudantes número de pessoal convenientemente formado. Enquanto eram enviados para a colónia
eram instruídos na arte da construção militar, o fundamento de todos os sistemas nacionais numerosos engenheiros de Portugal, Alemanha, Países Baixos e Itália, era evidente a necessi-
de defesa europeus. Eram também instruídos no que se poderia considerar como considera- dade de homens ensinados localmente. A criação de academias locais com programas
ções mais estéticas, já que, à parte os aspectos puramente funcionais da fortificação e da académicos rigorosos resultaria claramente no aparecimento de profissionais de primeira
artilharia, os arquitectos militares europeus preocupavam-se também com o aspecto e a for- ordem; os diplomados destas academias teriam a vantagem de estarem extremamente
ma que tomaria uma tal defesa. familarizados com os problemas particulares próprios do território brasileiro 11 , e compreen-
Não eram somente as muralhas de defesa que eram estudadas, mas o conceito com- deriam certamente os requisitos especiais de defesa do Novo Mundo.
pleto de acampamento militar era submetido a uma análise rigorosa. Os portugueses, tal
como outros engenheiros militares europeus, adoptaram e aperfeiçoaram padrões de acam- 9
Luis Serrão Pimentel, «Tratado da Castrametação ou alojamento dos exércitos», 1650(?). Este livro é o
pamentos militares, que tinham sido originalmente desenvolvidos pelos romanos e que manuscrito n. 0 1648 da Biblioteca Nacional de Lisboa.

foram descobertos «novamente» durante o Renascimento. A arte romana da castrametação, 'º Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1951,
Parte I, pp. 320-321. Manuel de Azevedo Fortes delineou a sua profissão em O Engenheiro Português, 2 vols.,
ou instalação dos campos militares, era uma aproximação precisa e formal do plano, que Lisboa: 1728-1729.
11
realçava dois cruzamentos juntando-se num campo de exercícios central, com casernas em Recorri às seguintes fontes para a discussão das academias militares: Smith, «Jesuit Buildings ... »; Gene-
ral Aurélio de Lyra Tavares, A Engenharia Militar Portuguesa rltl construção do Brasil, Rio de Janeiro: Secção de
todo o comprimento e dispostas em filas simétricas 8 • Os portugueses estavam tão entusias- Publicações do Estado-Maior do Exército, 1965; Adailton Sampaio Pirassinunga, O EnsÍlzo Militar do Brasil:
mados com este método quanto as outras nações europeias; por isso não é surpreendente Período colonial, Rio de Janeiro: Bibilioteca do Exército, 1958; Cristóvão Ayres Magalhães Sepúlveda, História
orgânica e política do E>:ército Português, vol. V, Lisboa: Imprensa Nacional, 1910; e Francisco Marques de Sousa
Viterbo, Expedições Científico-Militares Enviadas ao Brasil, vol. II, Lisboa: Edições Panorama, 1964. As academi-
7 as militares foram iniciadas não só no Brasil como foram também alargadas dentro de Portugal ao Alentejo, à
Foi somente no século dezoito que foi atribuída a importância primordial da fortificação. Philippe Maigret
Beira e ao Minho, assim como a Goa e Angola. Cf Smith, «Jesuit Buildings ... », p. 209. É difícil determinar o
sublinhou no seu tratado sobre fortalezas de 1727, que defesas adequadamente fortificadas permitiam que forças
número exacto de engenheiros que trabalhavam no Brasil por causa das estimativas divergentes das fontes prin-
rnenorcs resistissern contra forças 1naiorcs e consequentcn1ente 1nais poderosas. A importância era óbvia para a
cipais. Aurélio de Lyra Tavares, op. cit., enumera pelo menos duzentos e trinta e oito engenheiros que serviram no
pequena nação portuguesa. Veja Christopher Duf(v, Fire a11d Stone: The Science ofFortress V0i1fare 1660-1860.
Brasil no decorrer do período colonial; cf. o seu anexo, «Engenheiros que Portugal destacou para o Brasil no
New York: Hippocrene Books, 1975, p. 19.
período colonial», pp. 105-179. O número de Robert Smith para o mesmo período de tempo é urna estimativa
'A castrarnetação é debatida no trabalho clássico de Lewis Mumford, The City in Histo1y: lts Or(r;im; lts
mais conservadora de «mais de uma centena de oficiais portugueses»; cf «Jesuit Buildings ... », p. 208. Da autoria
TiY17zsformations and lts Prospects. New York: Harcourt, Brace and World, 1961, p. 207. O sistema romano
de Francisco Marques de Sousa Viterbo, o Diccionário histórico e documental dos an-hitectos, engenheiros e corzstructores
alargado às instalações civis teria um impacto profundo sobre os espanhóis, para quem este sistema era a base das
portuguezes ou a serviço de Portugal, 3 vols., Lisboa: Imprensa Nacional, 1922, contém numerosas entradas de
leis de construção de cidades para o Novo Mundo. Cf Dan Stanislawski, «Early Spanish Town Planning in the
indivíduos não citados por Aurélio de Lyra Tavares. Além disso, não está claro em ambas as fontes se os indiví-
210 New World», Geographical Review, vol. XXXVII, n. 0 1 (1947), pp. 94-105.
duos que receberam instrução no Brasil tinham necessariamente lá nascido. No entanto, o que esrá claro em 211
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Existe algum desacordo quanto à data certa da fundação e localização da primeira


rência particular à sua aplicação nas estatísticas) e óptica 16 • O desenho também era exigi-
escola de engenharia brasileira, mas as primeiras estimativas sugerem que essa formação
do, e os estudantes eram julgados sobre a sua competência em todos os campos, sendo-lhes
começou no Rio de Janeiro por volta de 1690, quando o capitão-engenheiro Gregório
eventualmente solicitado escrever e entregar uma tese de fim de curso. Diplomavam-se
Gomes Henriques deu cursos (aulas) de arte e utilização de artilharia aos homens estacio- com a patente de alferes e até vestiam fardas distintas que a certa altura exigiam um ~hapéu
2
nados na guarnição local1 • Perto de 1700, existem indícios de que uma instrução similar de três bicos com uma insígnia de engenharia (um instrumento de medição por etma de
era possível nas instalações militares da Bahia 13 • A Carta Régia de 1705 pedia aos enge- linhas cruzadas). Nas reformas mandatadas pelo Conde de Resende em 1792, os diplomados
nheiros militares residentes no Brasil para instruírem pessoas sobre a arte da engenharia, se da academia do Rio de Janeiro tinham também que estudar arquitectura civil no seu sexto
14
o desejassem • Portanto,tno•:começo do século dezoito, a instrução sobre a ciência da ano de estudos. Em complemento, era-lhes solicitado que dominassem a carpintaria e o
engenharia militar estava disponível no Brasil, embora de uma forma algo errática. Assim, corte de pedras necessários para a ornamentação 17 • Os programas de engenharia militar
até ao século dezoito, as fileiras dos corpos de engenharia só podiam ser aumentadas signi- deviam ser rigorosos e desenvolver um espírito de corporação. .
ficativamente a partir do estrangeiro. O curso oferecido nestas academias brasileiras diferenciava-se pouco daquele dispo-
A criação de um centro de treino para engenheiros militares em Salvador da Bahia nível nas aulas portuguesas, ou de outras nações europeias. Dentro de cada disciplina, os
mudaria radicalmente esta imagem. A aula da Bahia funcionou durante o princípio do textos designados eram os de maior utilização na Europa e incluíam trabalhos de Bernard
século dezoito; era completada com programas que funcionavam intermitentemente em Forest de Belidor, assim como do mestre francês das fortificações, Vauban 18 -
Belém do Pará e em Pernambuco. Por fim, a instrução formal começou no Rio de Janeiro Belidor era famoso na Europa por ter sido o primeiro engenheiro a estabelecer uma
em 1735. A Aula de Fortificação e Artilharia do Rio foi durante algum tempo um grande relação matemática entre os ataques dirigidos a fortificações e o dano final resultante; as
sucesso, especialmente quando o brilhante João Fernandes Alpoim se tornou seu director suas regras sobre «minas» em fortalezas vigorariam até meados do século dezanove 19 : ~lém
em 1738, mas a escola decaiu rapidamente e sofreu uma reforma completa sob a orienta- disso, 0 seu trabalho sobre arquitectura hidráulica, útil a todos os estudantes brasileiros,
ção do Conde de Resende. forneceu uma cartilha sobre a construção de todo o tipo de mecanismos relacionados com
Tal como aconteceu em Lisboa, existia uma sobreposição da instrução dada nestas a água, incluindo canais e abastecimento de água para fortificações (cisternas, eclusas e

escolas para aqueles que pensavam seguir carreiras orientadas para a marinha e aqueles que latrinas), assim como configurações precisas de instalações portuárias 20 . Os seus planos
para fortificações também eram populares no Brasil; uma representação da entrada de
estavam mais interessados no que dizia tradicionalmente respeito à engenharia militar, i.e.,
uma fortaleza em Mato Grosso (talvez a fortaleza do Príncipe da Beira) é uma versão algo
fortificação e planificação de cercos. Além disso, em Lisboa, a primeira aula localizava-se
simplificada mas estilísticamente derivada da entrada de uma fortaleza proposta por Belidor
na orla marítima, nos estaleiros reais, e o primeiro director, Luis Serrão Pimentel, era
para instalações de defesa europeias (Figs. 1-A e 1-B). . ~
conhecido não só pela sua perícia em fortificações como também pelos seus conhecimen-
15 Vauban foi controversamente a última referência do século dezoito para a construçao
tos de navegação •A tradição de preparar engenheiros formados com perícia tanto marí-
de obras necessárias, tais como baterias de sítio, sistemas de contraminas e barricadas de
tima como terrestre persistia no Brasil, e as academias do Pará e da Bahia estavam directa-
defesa; as suas belas fortalezas regulares com os seus baluartes e saliências simétricos forne-
mente ligadas aos arsenais reais dos portos e da orla marítima.
ceram a inspiração para muitos trabalhos de defesa brasileiros em regiões tão geografi~a-
Por isso, nas academias coloniais, o currículo determinado para os jovens candidatos
mente distantes como O Amapá e a capitania de São Paulo, assim como ao longo das vias
a engenharia requeria cursos tanto de hidráulica como de aritmética, geometria, trigo-
fluviais da Amazónia (especialmente a rota vital de Guaporé-Madeira-Amazónia, pela qual
nometria plana (estas duas últimas importantes para a navegação), cálculo (com uma refe-
0 ouro era transportado por navio para Lisboa) 21 (Figs. 2-A, 2-B e 2-C).

16
Lyra Tavares, A Engenharia Jvlilitar ... , p. 41.
ambas as enumerações é que várias dúzias de engenheiros que trabalharam para os portugueses no Brasil no
século dezoito vinham de Itália, da Alemanha, de França e de outros lugares. Uma tese muito antiga apresentada a Pimentel é reproduzida parcialmente na ibid., PP· 47-48. As f"'.·das
17
12
Pirassinunga, O Ensino Militar... , p. 4. estavam ilustradas no índice alfabético dos engenheiros neste mesmo texto. Esta recomendação consta nos «l~,sta-
tucos da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho da Cidade do Rio de Janeiro», 17 de Dezembro,
"lbid., p. 13. Smith, «Jesuit Buildings ... », p. 209, sugere que a aula da Bahia é mencionada pela primeira
1792, assinado pelo conde de Resende. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (daqui por diante otada como
vez num documento confirmando a nomeação de António Rodrigues Ribeiro não somente como sargento-mor
engenheiro da cidade mas também como instrutor na Aula. BNRJ), 1-32-13-27. Veja Dclson, op. cit., p. 157.
18
14 Cf. Pirassinunga, O Ensino Militar ... pp. 21-22.
Smith, «Jesuit Buildings ... ». Em 1700, António Rodrigues Ribeiro foi nomeado sargento-mor enge- 1
9 Christopher Duffy, Fire and Stone ... , p. 139.
nheiro da cidade e tinha a responsabilidade de ensinar a sua profissão.
15 20
lbid., p. 208. Veja também contra-almirante A. J. Malheiro do Vale, ed., Nau de Pedra, Lisboa: Edição Jbid., pp. 78-79. l ·
212 da Revista da Armada, 1988. Vauban é debatido na ibid., pp. 11-12, 47-48 etpassim. As fortalezas à moda de Vauban poc em ser vistas
21

em São José de Macapá, Amapá, a fortaleza de lguatemy que se assemelha à de Neuf-Brisach de Vauban, e os 213
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Os instrutores de engenharia brasileiros tinham orgulho do uso corrente dos seus instru- Embora não saibamos exactamente que instrumentos foram utilizados na imposição
mentos pedagógicos; assim, quando Robert Fulton publicou um tratado sobre a navegação em destas reivindicações, é razoável assumir (dado o seu uso geral noutros problemas matemA-
canais em 1796, um brasileiro apressou-se em traduzir e publicar uma edição portuguesa so- ticos) que os portugueses estavam familiarizados com o conceito de triangulação amplamen-
mente quatro anos depois, o que é uma façanha impressionante até hoje em dia! 22 Não admira te praticado na Europa do século dezoito. Apesar do facto de uma grande parte do levanta-
que quando pediu para voltar para Portugal, o instrutor de engenharia Manuel Cardoso de mento ter sido feito simplesmente a «cordel» 26 , ou com uma corrente (um método em que
Saldanha se tenha gabado de ter treinado discípulos nas «doutrinas mais modernas e uma corrente previamente medida, ou uma corda, era esticada no solo), as equipas de de-
especializadas» da engenharia que eram perfeitamente capazes de exercerem as suas funções 2.l. marcação (e aqueles engenheiros envolvidos no mapeamento do interior) contavam com
Da mesma forma, em 1715, quànd6 João Baptista Barreto terminou o seu trabalho de curso na observações astronómicas mais precisas que, por sua vez, requeriam um equipamento sofis-
aula da Bahia, foi designado ajudante-engenheiro da cidade derivado ao seu excelente conheci- ticado. Levantamentos em grande escala (inclusive cálculos de elevação) necessitam ferra-
mento da arquitectura militar e aplicação genérica24 . Perícia e utilização genérica nas ciências mentas mais sofisticadas do que para uma simples medição horizontal, a qual pode ser efec-
militares era exactamente o resultado esperado de uma educação nas academias militares colo- tuada com passos. Medições verticais, um elemento do mapeamento de longa distância,
niais. A nomeação destes licenciados para postos de importância confirma a impressão de que requer triangulação.
os licenciados eram considerados tão competentes como os indivíduos formados em Portugal e Para chegar a uma medição de ângulos verticais pode-se simplesmente utilizar o
portanto não se diferenciavam no seu nível de prestações. quadrante, uma variação do astrolábio da marinha, que vem sendo utilizado na Europa
Aparentemente verificavam-se as mesmas necessidades de instrumentos por parte desde o tempo dos Mouros. Mas, no século dezoito, o teodolito (ou alidade) tinha surgi-
destes engenheiros para realizarem desenhos e medições básicos. Oficiais incumbidos de do, modificando essencialmente o quadrante, juntando-lhe um «tubo de visão com o
mapear o interior do Brasil requeriam logicamente o equipamento mais actualizado; a formato de um telescópio e escalas horizontais e verticais,>2 7 • O instrumento completo era
Coroa confiava neles para detalhar correctamente territórios recentemente adquiridos no então montado num tripé e equipado com um nível de bolha e um compasso.
interior remoto, já que eram os únicos indivíduos na colónia que possuíam a perícia Duas fontes de evidência sugerem que os engenheiros portugueses designados para as
requerida. Esta confiança atingiu um ponto crítico quando as equipas de demarcação equipas de demarcação utilizaram provavelmente teodolitos ou alidades para fazerem as
espanholas e portuguesas se encontraram várias vezes a meados e no final do século dezoito suas observações. Primeiro sabemos que nas academias brasileiras (aulas) este moderno
para determinarem as fronteiras das suas respectivas terras. Conhecimento técnico supe- equipamento estava à disposição dos estudantes. Quando o tenente-coronel António
rior associado a instrumentos de qualidade permitiriam aos portugueses levar ao máximo Joaquim de Oliveira chegou ao Rio de Janeiro para assumir a direcção da «aula», trouxe
as suas reivindicações no interior25 • consigo de Portugal ferramentas matemáticas, quadrantes, tabelas planas com alidades de
metal, ferramentas de nível, compassos e outros instrumentos 28 . Segundo ilustrações en-
contornos básicos dos trabalhos de defesa do Príncipe da Beira (embora a entrada seja mais parecida com os contradas numa descrição manuscrita da expedição de mapeamento do coronel Francisco
modelos de Bellidor, veja mais acima) sobre o rio Guaporé em Mato Grosso. Veja também Horst de Ia Croix,
Military Considerations in City Plarmi11g: Fortifications, New York: George Braziller, 1972, para ilustrações do Requena, chefe da equipa espanhola de demarcação enviada para executar o Tratado de
trabalho de Vauban na Europa. 1777, mostram os portugueses utilizando instrumentos do tipo do teodolito, assim como
22
António Carlos Andrada e Silva publicou o limado do melhoramento da navegação por canaes em Lisboa:
Offióna da Cas~ Liuerária do Arco do Cego, 1800. O livro de Fulton, A Ti-eatise on the Improvement of Canal
Nav1gatwn: Exh1b1tmg the numerous advantages to be derived ftom small canais foi publicado em Londres: I. E. J. 26
Na academia do Rio de Janeiro, os engenheiros aprendiam não só a demarcar os ângulos de fogo da
Taylor, 1796. artilharia mas também a utilizar o cordel no âmbito das medições. Estes dados constam no manual de instrução
23
A carta de Manuel Cardoso de Saldanha para Tomé J. da Costa, Bahia, 19 de Julho, 1759, no fnventdrio preparado pelo director da academia de fortificação e engenharia do Rio, José Fernando Pinto Alpoim, Exame ele
dos Documentos Relativos ao Brasil existentes no archivo de marinha e ultramar, Annaes da Biblioteett Nacional do artilheiros que comprehende arithmetica, geometria e artilharia, Lisboa: 1744.
Rio de Janeiro (daqui por diante citada como Annaes), vai. XXXI, 1913, p. 353. O famoso José António Caldas 27 John Nobel Wilford, lhe Mapmakers: the story ofthe great pioneers in cartography-ji-om antiquity to the

foi nomeado seu sucessor como Dircctor da Escola (aula) Militar de Fortificação e Geometria da Bahia. Cf. space age, New York: AlfredA. Knopf, 1981, p. 97. Veja também debate de Samuel Guye e Henri Michel, Time
Aurélio de Lyra Tavares, A Engenharia Militar... , p. 154, e anexo 2: «José António Caldas», no «Jesuit Buildings .. ·" ttnd Space: meamring instruments Jiwn the 15'1' to the J 5lh century, New York: Praeger Publishers, 1971, pp. 270-
de Smith. -283. Um estudo muito interessante sobre as técnicas de medições contemporâneas nas Américas é fornecido por
24
A recomendação para a promoção de Barreto a engenheiro da Bahia consta no livro de Sousa Viterbo, Barry W Higman, em Jamaica Surveyed: plantation maps anel plans of the eightemth and nineteenth centuries,
Diccionário histórico ... , vai. I, n. 0 62. Kingston, Jamaica: Institute of Jamaica Publications Limited, 1988.
25 28
Existem muitas obras que consideram que a extensão das fronteiras portuguesas foi muito além da Como mencionado na op. cit., de Lyra Tavares, pp. 38-39. O direcror chegou ao Rio de Janeiro em
concessão inicial de 1494, no Tratado de Tordesilhas. Entre as melhores, estão a dissertação de David Davidson, Setembro de 1774.
29
«R1vers and Empire: The Madeira Route and the lncorporation of the Brazilian Far West, 1737-1808», Yale Estas ilustrações estão conservadas na Oliveira Lima Library of Catholic University, Washington D.C.
University, 1970 e de Virgílio Correia Filho, História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Existe uma análise prévia sobre as ilustrações em «Requena and the Japura: Some eighteenrh-centurywatercolors
214 Livro, 1969. Veja também Delson, New Towns .. of the Amazon and other rivcrs», de Robert C. Smith, em The Americas, vol. III, n. 0 1, 1946, pp. 31-65. 215
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tabelas planas e telescópios elevados 29 (Fig. 3). Em contraste, os espanhóis limitavam-se a tica numa academia militar no início de 1790, a seguir foi promovido a capitão de uma
examinar os mapas. A versão de Requena sugere claramente que os portugueses eram
fragata e por fim foi-lhe concedido um lugar de governo (capitão-mor) na capitania do
superiores no que diz respeito aos instrumentos. Além disso, o próprio Requena lamentou
Espírito Santo. Alcançou finalmente a patente de coronel comandante de toda a milícia na
a falta de perícia dos espanhóis nas ciências de medição, queixando-se da falta de pessoal
mesma capitania em 1799 33. No extremo norte, a fortaleza de São José de Macapá estava sob
familiarizado com a observação astronómica; foi assim obrigado com relutância a chamar
0 comando do engenheiro Tomás Rodrigues da Costa, que nos deixou não só os planos
a equipa de portugueses para ajudá-lo no seus cálculos, facto que, sob circunstâncias carre-
rectilíneos do seu novo município surpreendentemente uniforme mas também uma vista
gadas de alta competição, deve ter-lhe causado uma grande humilhação 3º.
interior (plantas) de cada unidade habitável34. Cada família recebia um espaço habitável
Os engenheiros resideq,tes "ho Brasil eram não só forçados a servirem as missões de
uniforme e esperava-se que vivesse conforme a disciplina da comunidade (Fig. 4).
fronteiras, mas eram também frequentemente chamados para esboçarem as novas cidades
Admitindo que estas tentativas de aproximação do desenvolvimento altamente
criadas por todo o interior do Brasil no despertar da expansão portuguesa do século dezoito.
estruturadas faziam parte da ideia do que a humanidade necessitava no século dezoito, isto
Foi nesta altura que a predilecção pela ordem e simetria introduzida no espírito dos jovens
quereria dizer, tal como já argumentei noutros lugares, que os engenheiros-administrado-
engenheiros teve toda a possibilidade de florescer. Ao contrário dos engenheiros militares da
Europa, que, quando empenhados num planeamento urbano, mostravam um «habitual es- res portugueses e brasileiros de nascimento não eram diferentes dos seus colegas europeus.

pírito de terraplanagem»
31
, os seus colegas no Brasil podiam trabalhar em áreas despovoadas Parece que se achavam capazes e, por certo, responsáveis por moldar a direcção do desen-

e criar novas cidades virtualmente do nada. Livres de concentrações urbanas anteriores, estes volvimento brasileiro 35 . Mantendo-se fiéis às noções europeias aceites do absolutismo e da
engenheiros não só criavam novos municípios mas também pesquisavam, facto que se pode- ordem, os engenheiros militares passaram a ditar os seus próprios termos de desenvolvi-
ria considerar como uma forma de «engenharia social», na qual padrões regulares para a mento. Por causa da sua formação técnica superior, o lugar de nascimento nunca foi um
roupa, a prosperidade e o comportamento dos habitantes eram descritos meticulosamente factor relevante; indiferentes ao lugar onde foram formados, estes engenheiros militares
ou, talvez mais precisamente, impostos. Um desses engenheiros, José da Silva Pais, foi pes- tornaram-se um quadro virtual no qual se confiava cada vez mais para dirigir e governar.
soalmente responsável pela criação deste esquema de colonização no Sul do Brasil. Fiando-se Estes engenheiros, tal como salientado mais acima, tinham orgulho da sua
na fixação de fazendeiros açorianos para formarem o suporte principal destes novos povoa- «modernidade» e familiarização com as ideias mais em voga neste campo 3<,. Além disso,
dos, Pais emitiu ordens precisas para cada aspecto da actividade diária, até ao número de ofendiam-se quando os seus preciosos esforços eram criticados. Numa ocasião notória,
sementes e à quantidade de peixes que cada colono deveria receber32 • Tomás Rodrigues da Costa, o engenheiro (mencionado mais acima) que foi o primeiro a
Consequentemente, por todo o interior do Brasil, pôde estabelecer-se uma mentali-
dade que equiparava um bom governo (e «civilização») com um comportamento ordeiro e
condições de vida regradas; o engenheiro militar era muitas vezes encarregado de fazer 33
A carreira de Silva Pontes é discutida na obra de Sousa Viterbo, Dicciomírio ... , vol. III, n. 0 933. Tal
com que isto ficasse enraizado. Assim, o engenheiro, frequentemente à frente de um des- como outros oficiais milicianos do exército regular, recebeu a sua patente do rei. Para uma discussão sobre as
várias unidades militares do Brasil colonial, i.e., o exército (pago) de linha, a milícia e as ordenanças (reservas,
tacamento militar, ou forçado a assumir um papel político de administrador, articulava embora a certa altura este termo esteja confundido com a milícia), veja Robert A. Hayes, «The Formation of the
um padrão de desenvolvimento para o Brasil que era a cópia da simetria e ordem que tinha Brazilian Army and the Military Class Mystique, 1500-1853», em Henry H. Keith e Robert A. Hayes, l'erspectives
on Arrned Politics in Brazif, Tempe, Arizona: Center for I..atin American Srudies, Arizona State University, 1976.
aprendido nas academias militares. Muitas vezes os jovens diplomados, que eram milicianos
Veja também Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Rio de Jan_eiro: Editora Civifüação Br~si_leü·a,
regulares do exército, alcançariam uma alta patente. Os exemplos de engenheiros que 1965, e general Aurélio de Lyra làvares, Nosso Exército: E'ssa Grande Escola, R.w de J,me,ro: BibllOteca do Exemto
conseguiram posições de distinção e simultaneamente eram designados para papéis quase- Editora, 1985.
4
1 Em New Toww for Colonial Brazil, exploro a análise racional por trás dos esquemas de planeamento de
-políticos são numerosos. A carreira do engenheiro António Pires da Silva Pontes, nascido uma cidade no século dezoito. São José de Maca pá é discutida nas páginas 103-107.
em Minas Gerais, é um bom exemplo; foi primeiro designado como professor de matemá- 35 O desejo de criar cidades que pareciam urbanizadas esd mais bem expresso pelo governador I..uis da
Cunha Meneses de Goiás que, em 1778, ordenou o realinhamento da capital de província de Vila Boa de modo
a que pudesse compartilhar o «sistema praticado em todas as nações mais urbanizadas da Europa». A Carta do
30 Governador Luís da Cunha Meneses para o Ouvidor António José Cabral de Almeyda, Vila Boa, 28 de Dezem-
Smith, op. cit., relata a preocupação de Requena com a falta de «astrónomos» espanhóis qualificados, bro, 1778. BNRJ, IV-13-10, Documento 17. Neste caso, o arruador chegou com um plano mestre de ruas
pp. 36 e 39. A competência dos portugueses na navegação astronómica pelo mar desde o século quinze é exami-
cartografadas e fachadas uniformes; cf. Delson, New Towns ... , pp. 149-150. Fiz uma estimativa (Delson, op. cit.,
nada por Luís de Albuquerque, Astronomicaf Navigation, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos p. 112) que, entre 1750 e 1777, pelo menos trinta e cinco cidades e aldeias foram esboçadas (habnualmenrc por
Descobrimentos Portugueses, 1988.
31 engenheiros) de acordo com esta aproximação regulamentada. Assim, os engenheiros militares que faziam os
Mumford, The City in History ... , p. 387.
216 32 desenhos (ou até as próprias medições) estavam a impor as suas ideias regulamentadas no interior brasileiro.
Delson, New Towns ... , pp. 77-83. 36
Veja nota 23 . 217
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊ,S PROFISSIONALIZAÇÃO NO EXÉRCITO BRASILEIRO

ser responsável pelo esboço da comunidade de São José de Macapá ficou tão abatido com ruíam um quadro privilegiado de tecnocratas, assim como de técnicos, que vieram a ter uma
a crítica do seu oficial superior que ficou doente e morreu vinte dias depois da chegada importância considerável na colónia e, de certo, moldaram a sua evolução. Pode argumen-
deste último 37 • tar-se que a segurança do Brasil baseou-se neste conhecimento que favoreceu a mentalidade
Embora esta atitude possa ser extrema, não era anormal para esta nova geração de técnico-militar que acabou por aceitar o «positivismo» do século dezanove. A necessidade de
tecnocratas desprezarem a desordem e a ineficiência. Esta simples falta de paciência com continuar a fomentar a intervenção militar na arena do desenvolvimento nacional neste
uma engenharia imperfeita é evidente nos comentários feitos por José Custódio de Sá e século baseou-se na mentalidade de «ordem e progresso» do engenheiro militar colonial
Faria, um engenheiro nascido em Portugal, que passou toda a sua carreira no Brasil, ins- brasileiro.
peccionando as fortificaçõesil'clo "Paranaguá. As muralhas de defesa desta comunidade do
Sul, que faziam parte de um sistema maior de fortificações costeiras contra as incursões
espanholas, tinham sido, na opinião do engenheiro, mal desenhadas. Comentou, colerica-
mente, que quem tinha desenhado o sistema de defesa em primeiro lugar «ignorava a arte
da Fortificação» 38 (Fig. 5). Esta falta de conhecimento das bases da fortificação era clara-
mente imperdoável, assim corno francamente perigosa; Paranaguá, dizia ele, estava sujeita
a ser atacada directarnente da praia. Tinha, é claro, toda a razão: a consolidação do territó-
rio português baseava-se em alto grau na capacidade dos trabalhos de defesa resistirem ao
seu inimigo principal, os espanhóis. No entanto, em última análise, a segurança apoiava-
-se na qualidade da formação individual recebida pelos homens responsáveis pela criação e
manutenção da rede de defesa, i.e., o engenheiro militar.
Portanto, quando interpretamos o papel do engenheiro militar no Brasil colonial,
podemos observar vários aspectos importantes: primeiro, existia um corpo de homens que
recebiam formação nas academias do Brasil e que completavam os indivíduos formados
em Portugal e noutros lugares da Europa 39 ; segundo, a formação recebida, tanto no Brasil
corno no país de origem, estava no topo da educação tecnológica europeia; terceiro, a
mentalidade dos engenheiros que trabalhavam no Brasil era tal, que o caos era odioso e a
falta de ordem tinha a sinistra conotação de falta de civilização. Finalmente, a formação
superior e a importância do seu trabalho no Brasil contribuíram certamente para um sen-
tido de solidariedade corporativa entre os engenheiros, que não eram só oficiais de alta
patente mas também especialistas.
O engenheiro militar do século dezoito no Brasil foi um dos primeiros indivíduos
educados e consequentemente progressistas a aparecer na cena colonial, dentro e fora do
contexto militar. Tal como os futuros estudantes das academias de engenharia brasileira do
século dezanove, que se dedicariam ao ensino «progressista» de Benjamin Constant, os enge-
nheiros do século dezoito eram totalmente receptivos ao que era novo e moderno. Consti-

37
O triste destino do sargento-mor engenheiro Tomás Rodrigues da Costa é narrado na carta de Tomé
Joaquim da Costa a Manuel Bernardo de Mello de Castro, Pará, 30 de Janeiro, 1760. Annaes d,1 Bibliothec11 e
Archivo Publico do !'t111i, Segunda Série, 1759-1761, voL 8, pp, 125-130,
38
Carta do brigadeiro José Custódio de Sá e Faria ao capitão-general Martim Lopes Lobo Saldanha, São
Paulo, 22 de Fevereiro, 1776, Arquivo Histórico de Itamaratí, Lara 267, Maço 6, Pasta 17,
3
' No final do século dezoito, o Corpo de Engenheiros compunha-se de oitenta e seis oficiais: nove coro--

néis, onze tenente-coronéis, vinte e urn rnajores, vinte e urn capitães, onze prirneiro-tencntes e quinze segundo- Desejo agradecer à Dr:• Mary Karasch pelas suas sugestões editoriais e à Biblioteca Oliveira Lima pela
218 -tenentes, Cf. general Aurélio de Lyra lavares, A Ei1genh11ria A1ilitar,,,, p, 53, ajuda em localizar o material manuscrito, 219
DESENHOS PARA ENTRADAS DE FORTALEZAS PLANOS DE FORTALEZAS MOSTRANDO A INFLUÊNCIA DE VAUBAN

Fig. 2-A- Versão do princípio do século XVIII do plano de Vauban para a fortaleza de NeurBrisach,
Fig. 1-A - Desenho idealizado por Belidor, 1729,
construída em 1699. De Horst de la Croix, Military Considerations ... , figura 90.
de Christopher Duffy, Fire and Stone ... , p. 7 4.

Fig. 1-B - Uma cópia aparente


em Mato Grosso (sem tíwlo,
talvez do Príncipe da Beira),
de Aurélio de Lyra Tavares, Fig. 2-B - Plano baseado em Vauban para a fortaleza de Iguatemy, São Paulo, Brasil, c. 1785.
A Engenharia Militar ... , p. 56. Da Mapoteca do Arquivo Histórico de ltamaratí. 221
PROFISSIONALIZAÇÃO DO EXÉRCITO BRASILEIRO

Fig. 2-C - Plano à maneira de V.rnban


para a fortaleza de São José de Macap,í,
Amapá, Brasil, darado de 1771.
Da Maporeca do lnstituro Geográfico
do Exército (daqui por diante citado Fig. 4 - Planta de São José de Macapá mostrando os planos uniformes das casas da comunidade,
como MICE), Rio de Janeiro, n.0 l-7-33. Amapci, 1759. Do MICE, n.O 1-7-46.

Fig. 5 - Plano das obras de defesa em Paranaguá com comendrios de José Custódio de Sá e Faria
reproduzidos ao lado. Este desenho faz parte de uma colecção intitulada
Fig. 3 - Desenho de Requena mostrando os engenheiros portugueses utilizando o telescópio e o teodolito Cartas Geográficas e Hidrográficas de toda a costa e portos da capitamtia de São Paulo.. levawada
(ou tabela plana), enquanto os espanhóis são vistos a lerem os mapas simplesmente. e configuradas pelo Coronel Gmduado do Real Corpo de Engenheiros, João da Costa Ferreira.
Este desenho está conservado na Oliveira Lima Library of Catholic Universiry, w.~shington, D.C. Esta colecção encontra-se na Sociedade de Geografia de Lisboa,
222
e é reproduzido com,.a sua :''..l::'I.S.:J~."'""w. e a ilustração é uma reprodução de cortesia do Ministério da Marinha. 223
PARA O ENTENDIMENTO DA EDUCAÇÃO COLONIAL:
O PAPEL DAS ACADEMIAS MILITARES
NO BRASIL COLÓNIA*

ROBERTA MARX DELSON


Uníted States Merchant Marine Academy

* Texto inédito entregne para publicação em 1997.


O fenómeno do colonialismo, e particularmente a transposição da cultura metropoli-
tana para a arena colonial, tem sido objecto de uma pesquisa intensa e minuciosa durante
as últimas duas décadas, especialmente no contexto de estudos do discurso e dos paradigmas
de hegemonia/dominação 1• Enquanto os estudos clássicos sobre o imperialismo 2 tinham
sobretudo considerado a política mais do que colonialismo cultural, estes esforços mais
recentes têm como finalidade interpretar os objectivos educacionais. O «projecto» de edu-
cação colonial tem sido visto como tendo um importante sentido totémico, não só porque
a educação é vista como condição sine qua non para o domínio colonial, mas é também a
sua representação3. Sob os auspícios coloniais, e confirmada pelo discurso, a expectativa é
que a educação é elitista, restrita e equipada para produzir candidatos que adoptarão as
ideias (e a retórica) do país metropolitano. Neste método de educação, que é visto como
sendo o veículo essencial para transmitir a cultura metropolitana à colónia, esta torna-se,
adicionalmente, a representação da dominação, recriando uma elite colonial que assumirá
provavelmente as mesmas atitudes e valores, assim como revelará as divisões hierárquicas
de classes que caracterizam a estrutura social metropolitana.
Pensa-se que esta dupla expectativa está estreitamente associada ao empreendimento
colonial do século dezanove, assim como ao dos antigos impérios. No entanto, o que
distingue estes últimos esforços é a ênfase dramática sobre a transposição da educação
científica, e a criação de uma elite científico-tecnocrata. Em África, e especialmente na
Índia, a educação/cultura colonial era considerada como tendo uma função normativa
que continuou ao longo das trajectórias positivistas; os receptores de uma educação cien-
tífico-técnica eram considerados como tendo sido protegidos contra as superstições da
cultura local. Sendo quadros privilegiados, pensava-se que estes tecnocratas estavam desti-
nados a dirigirem as suas respectivas colónias para o progresso e a prosperidade planeados.
Assim, no século dezanove, os poderes coloniais europeus deram prioridade à transposição

1
Este fenómeno é comentado amplamente na obra de Michael Adas, Machines as the Measure ofMan:
Science, Technology, andldeologies ofWestem Dominance, Cornell University Press: lthaca, New York, 1989, cf. es-
pecialmente o capítulo 4, «Amibutes of the Dominam: Scientific andTechnological foundations of the Civilizing
Mission», pp. 199-270.
2
Este é o impulso básico das primeiras críticas, incluindo as de 1902, !mperialis111: A Study, de J. A.
Hobson e as de Lenin em 1916, lmperialism: the Last Stage of Capita!ism.
3 Este ponto de vista abrange não só a educação técnica como também a educação religiosa, como eviden-

ciado pela actividade missionária no Novo Mundo. Cf. John F. Schwaller, «The Clergy» no trabalho ele Louisa
Schell Hoberman e Susan Miclgen Socolow, The Countryside in Colonial Latin America, Albuquerque, New
Mexico: University ofNew Mexico Press, 1996, p. 128 et passim. 227
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS PARA O ENTENDIMENTO DA EDUCAÇÃO COLONIAL

do ensino científico, em vez da filosofia, da lógica ou da retórica, porque, como observou era verdade para quem tivesse sido acusado nos tribunais inquisitoriais; estes indivíduos
um comentador, «a instrução em ciências e tecnologias avançadas ... enfraqueceria ... a eram julgados «infames» e por consequência inaceitáveis 8 •
atracção (dos Índios) pelas "quimeras supersticiosas" e ... despertá-los-ia de séculos dele- Em relação aos currículos, a ideia mais comum é que o estudo na América espanhola
4 (muitas vezes ministrado por clérigos) tinha a tendência para girar em torno de interesses
targia e passividade» •

Este «progresso» não era gratuito. Tal como nos diz S. Irfan Habib em relação à Índia, medievais, incluindo Aristóteles e a Escolástica em geral, ignorando os assuntos mais téc-
embora esta educação técnica tenha cumprido a sua função de fornecer ao poder colonial nicos como a ciência e a matemática9 • No entanto, embora o alcance destes cursos fosse
um quadro de indivíduos dedicados a promover os interesses do país metropolitano, assim claramente restrito, as instalações educacionais criadas pelo governo espanhol na América,
corno da colónia receptora, li/ fenómeno tinha duas faces: ironicamente, o próprio «precur- ganharam pontos na historiografia, assim como na dissertação, pela amplitude geográfica,
sor da prosperidade económica» podia significar simultaneamente «perdição espiritual e pela possibilidade do prosseguimento do curso até ao nível universitário e pela, em geral,
cultural» 5• alta qualidade dos colégios secundários e das instituições de educação superior 10 • Nas coló-
Mas será correcto falar de um modo global sobre «colonialismo» em geral e sobre o «pro- nias, a educação não era desejada só como um veículo para atingir a posição social deseja-
jecto de educação colonial» especificamente? Será que estas observações gerais se aplicam, por da 11 mas também era uma fonte de orgulho local. Escrevendo em Lima, Peru, no primeiro
exemplo, à experiência educacional latino-americana na sua fase colonial? De uma forma histó- quarto do século dezassete, António Vásquez de Espinosa proclamou orgulhosamente:
rica e geográfica a resposta seria sim, tendo a maioria dos estudiosos concordado que estas ideias «A Universidade [de Lima] e as Escolas Reais são tão distintas que não invejam nenhuma
comuns sobre o papel normativo da educação colonial são igualmente aplicáveis ao contexto outra no mundo ... »12 •
latino-americano. Hipérbole à parte, no que diz respeito à educação na América Latina colonial, o facto
A educação hispano-americana através de três séculos de controlo colonial é geral- de a maioria daqueles que estudavam serem predominantemente crioulos (pessoas com
mente considerada como tendo sido elitista, assim como de dominação masculina6 • Ape- parentesco espanhol, mas nascidas nas Américas), em vez de filhos nativos do Novo Mun-
sar dos objectivos preconizados pelos espanhóis em educar as massas livremente, e não do, deveria alertar-nos para o facto de que estamos a lidar com um fenómeno cultural/
obstante as tentativas ocasionais de educar a população indígena7 , a maioria dos críticos /educacional com limitações distintas para o seu potencial público, ou até a sua esfera de
acha que a educação continua sendo o privilégio de muito poucos, a saber, aqueles que influência. Deste modo, falar de «educação colonial» neste contexto é realmente dar a
acompanharam o processo de renovação contínua da elite. questão como provada. As tentativas de encaixar este aspecto da cultura colonial latino-
Existiam, no entanto, parâmetros adicionais à educação colonial hispano-americana. -americana dentro de paradigmas populares 13 também não funciona; esta é amplamente a
Além do meio sociológico/classe como critério para o ingresso nas escolas, na América razão porque, salvo poucas excepções (e.g., sendo a nobreza índia no México uma delas),
espanhola, a admissão implicava muitas vezes outra obrigação biológica que exigia aos aqueles que estão a ser educados têm a mesma posição sociológica/cultural/racial do que
candidatos a demonstração da pureza racial ou limpeza de sangue; os candidatos que fica- na mãe-pátria, e, por isso, esperar-se-ia que partilhassem os mesmos valores normativos.
vam fora deste espectro reduzido (a grande maioria) eram considerados inaptos. O mesmo Além disso, com o passar dos séculos, a tendência era cada vez mais de transferir a educa-
ção da população indígena para os limitados meios missionários, enquanto se oferecia à
classe crioula oportunidades mais amplas de aprendizagem. Por isso, qualquer difamação
4
Michael Adas, Machiues As the Measure ofMan, p. 276.
5 S. Irfan Habib. «Science, Technical Education and Industrialisation: Contours of a Bhadralok Debate,
1890-1915», p. 237 em Roy Macleod and Deepak Kumar eds., Tec!mology anel the Raj: Westem Technology anel
Technical Ti-ansfers to índia, 1700-1947, New Delhi: Sage Publications, 1995. 8
O conceito de «infâinia>,, assiin corno o da pureza do sangue para seguir unia educação na América
6 A natureza aristocrática do «projecto» educacional na América colonial espanhola foi mencionada ante-
colonial espanhola, foi observado também por John Tare Lanning em Acadernic Culture... , p. 39.
riormente na historiografia. Por exemplo, veja John Tate Lanning, Academic Culture in the Spanish Co/01,ies. 9 Emílio Uzcategui, Historia de la Educacion en Hispano-America, Quito: 1973, discute o cmrículo no

Folcroft, Pennsylvannia: The Folcroft Press, 1940, reimpressão de 1969, p. 38. Capítulo VII, «Las universidades coloniales».
7
O trabalho <lc Carlos Tunnermann Bernhcim, Historia de la Universidttd en América Lalina de la época 10
Estas instituições não eram no entanto autónomas, rnas bastante sujeitas ao exarne n1Ínucioso do vice-
colonial {l la Reforma de Córdoba, Editorial Universitaria Cenrroamericana: San José, Costa Rica: 1991, p. 20, -rei assim como do rei. Veja Emílio Uzcategui, Historia de la Educacion .. , p. 93.
mostra que mesmo que os decretos reais expressassem o desejo de um clima educacional aberto, a realidade era 11
Bernheim, Historia de la Universid.ad... , p. 18.
que a educação url!vcrsitária era limitada aos filhos dos espanhóis, e aos crioulos (aqueles que eram descendentes 12
Antonio Vásquez de Espinosa sobre «The colonial University» na edição de Benjamin Keen, Latiu
de espanhóis, mas nascidos no Novo Mundo). Até as notáveis excepções à regra, i.e., as escolas específicas criadas American Civilizatíon: History anel Society, 1492 to the Present, 4.ª edição, Wesrview Press: Bounder, Colorado,
pelos primeiros frades para os alunos nativos americanos, tinham tendência a ser elitistas na medida em que só 1986, p. 146.
recrutavam filhos da nobreza índia. Além disso, o seu objectivo era pacificar e «domesticar» a recruta, assegurcrn- 13 Como exemplo deste ripo de análise, veja Peter Mason, Decomtructing Arnerica: Representations of the

228 do assim a tranquilidade da sociedade. Cf Bernheim, op. cit., p. 22, e John F. Schwallcr, «The Clergy .. ·"· Other. London: Roudedge Press, 1990. 229
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS PARA O ENTENDIMENTO DA EDUCAÇÃO COLONIAL

(velada ou pública) dirigida aos diplomados destes programas reflectia a sua «mentalidade dezassete e dezoito, na América espanhola, os objectivos educacionais representavam cada
colonialista)) 4, em vez de servir como comentário sobre as aptidões (ou falta delas) de uma
1
vez menos o «desejo de civilizar» a população autóctone, eram o inverso do que aconteceria
população não-europeia em adquirir educação. Assim, no que diz respeito à América espa- no século dezanove em África e na Índia. Isto também não deve surpreender-nos, porque, tal
nhola, não podemos tomar a medida da «educação colonial» como uma representação do como sublinharam estudantes críticos do colonialismo e das pretensões de hegemonia cultu-
«colonialismo)), já que o seu alcance era automaticamente limitado. Nem podemos vê-la ral, o fenómeno do controlo metropolitano (ex. «colonialismo») não é «nem monolítico nem
(excepto indirectamente) como um aspecto da «hegemonia)), já que o seu impacto era imutável ao longo da história)) 18 • Além disso, está igualmente claro que qualquer que tenha
limitado, excepto no sentido de reforçar a classe social dominante (embora crioula). sido o estado da cultura metropolitana em qualquer altura, «no decorrer da história colonial,
Seria talvez mais interei,sarttk reflectir sobre se a educação colonial espelhava as finalida- a cultura europeia nunca foi adaptada como um todo; pelo contrário, os seus componentes
des da mesma em Espanha ou se estava limitada a objectivos coloniais específicos (e úteis)? individuais enfrentaram vários graus de receptividade» 19 •
A este respeito, vários comentadores notaram que a transposição da instrução em ciência e Se admitirmos que os «colonialismos» podem ser diferentes, será que deveremos en-
tecnologia não parece ter sido a maior preocupação do funcionalismo colonial espanhol. tão explicar estas diferenças entre os objectivos educacionais coloniais espanhóis e os britâ-
Será por causa, como sugerido por alguns, da falta de interesse na ciência e no lado inovativo nicos no século dezanove em África, como sendo o reflexo dos objectivos cronológicos
15 divergentes dos impérios da Renascença em relação aos da Europa Pós-Industrial? Deve-
da Revolução Industrial, característica não só da colónia como também de Espanha? Esta
parece ser a suposição geral. E a evidência do lado colonial é sugestiva: incrivelmente, já em ríamos então assumir, tal como alguns distintos observadores, que a diferença entre o
1774, um professor de uma escola secundária em Bogotá (Colombia) provocou um escân- império espanhol no Novo Mundo e o Raj britânico na Índia do século dezanove pode ser
dalo quando defendeu o modelo do universo de Copérnico 16 • explicada como sendo o reflexo das diferenças de objectivos entre impérios considerados
Por outro lado, esta percepção do espírito não-técnico dos espanhóis pode ser um exa- «protocapitalistas» (1500-1800), e aqueles que são visivelmente «capitalistas))? 211
gero (uma possibilidade que merece ser estudada). E da mesma forma, ralvez o facto de Se pudéssemos relegar a diferença entre «estilos imperiais» ou «ideologias» para facto-
restringir o currículo à escolástica fosse mais útil do que a educação técnica, no sentido em res puramente diacrónicos, poderíamos então esperar ver uma continuidade das formas
que o compromisso com a minúcia teórica evitava a discussão sobre outros pontos (ex. polí- imperial/colonial dos impérios coloniais sincrónicos (contemporâneos). Assim, esperar-
ticos) mais pertinentes, que espíritos férteis expostos a métodos de inquérito científico te- -se-ia que o «parceiro» de Espanha na colonização do Novo Mundo, Portugal, tivesse
riam debatido. Enquanto a matemática era ensinada tanto no México como em Lima no agido como os seus colegas imperiais no que diz respeito à educação.
século dezassete, e no século dezoito existia uma aceitação mais calorosa das ideias de Newton No entanto, isto não parece ter sido o caso. No Novo Mundo, os «projecros)) educa-
e da lógica Cartesiana 17, existem poucos indícios do impacto destes acréscimos científicos ao cionais dos dois poderes proeminentes coloniais europeus, Espanha e Portugal, não po-
currículo tradicional. diam ter sido tão diferentes. Sob o controlo de Portugal, o Brasil é caracterizado por uma
No entanto, o que está claro é que enquanto o sistema educacional da América espa- carência real de aprendizagem (até ao nível primário), que afectava a classe alta, assim
nhola colonial é conhecido por ter sido elitista e/ou racista, e embora tenha criado um qua- como a generalidade da população.
dro educado que poderia servir como «representante» da hierarquia social, este sistema fun- Ao contrário da sua vizinha, Portugal é suposto ter tido pouco respeito pela educação
cionava dentro de uma estrutura muito diferente dos objectivos coloniais educacionais dos nas colónias. A falta de instalações próprias era um aspecto da vida colonial frequentemen-
projectos «Imperialistas» do século dezanove em África e na Índia. Em particular nos séculos te discutido, era especialmente crítico nos municípios afastados das antigas cidades costei-
ras. Além disso, estas lacunas verificavam-se regularmente, ao que parece (e poder-se-á
argumentar até democraticamente) por todo o Brasil, e não eram assim limitadas por
14
Hoberman sugere que por volta de I 760, a cultura materialista «colonial» era criticada corno sendo
retrógrada e inferior. Veja Louisa Schell Hoberman, «Interpretations of the Colonial Counrryside», na obra de
Louisa S. Hnberman e Susan M. Socolow, 77,e Couutryside ... , p. 236. Até os diplomados das universidades
coloniais criticavam a educação que tinham recebido; por exemplo, o equatoriano, Eugenio Espejo, dizia mal do 18 Nicholas B. Dirks, ed., «lntroduction», em Colonitzlism and Cu!ture, University ofMichigan Press: Ann

ensino das línguas clássicas e recomendava a sua subsrituição por línguas mais práticas como o francês ou o Arbor, Michigan, 1992, p. 7.
italiano. Cf. Emílio Uzcategui, Historia de la l:.âucacion ... , p. 95. 19 Urs Bittcrli, Cu!tures in Co11jlict: Encozmters Between Litropean a,u{ Non-E11ropea11 Cultures: 1492-1800,

15 Bernhcim, f-íisl(i.ria de la Universidad... , p. 25, comenta a falta de interesse científico.


Stanford: Stanford University Press, 1993, p. 49. Veja também o meu recente ensaio a respeito da formação da
16
Emílio Uzcatcgui, Historia de la Educacion ... , pp. 78-79. O autor também discute as tentativas para cultura materialista: «Bet:ween Imperial Dominarion and Resistance: the process of creacing material culrnre in
introduzir novos currículos em astronomia e ôptica no fi1n do século dezoito na Guatemala que tiverarn aparen- the late colonial Amazon», cm revista.
temente mais sucesso, cf. pp. 95-96. 20 Veja por exemplo as discussões do imperialismo «capitalista contra protocapiralista» nos ensaios da obra de

230 17
Cf. C. H. Haring, The Spanish Empire inAmerica, New York: Harbinger, 1963, p. 222. Nadre Gunder Frank e Barry Gills, eds., The Wmid System: 500 Yean or 5000? London: Routlcdge Press, 1993. 231
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razões de raça, classe ou geografia. Portanto, as críticas ao «sistema educacional» colonial medicina ou em direito, era obrigado a frequentar as universidades de Coimbra em Portu-
brasileiro não caem nas generalidades sobre a dominação hegemónica do projecto colonial, gal ou de Montpellier em França 2".
mas são pelo contrário simplesmente desdenhosas ou verdadeiramente cáusticas, tal como na Existe, no entanto, uma excepção extremamente significativa a esta imagem de outro
denúncia de Caio Prado Jr.: «... nenhuma tentativa foi efectuada para compensar o isola- modo desoladora, a qual não só está em directa contradição com a imagem recebida da
mento no qual a colónia foi obrigada a existir, providenciando até uma educação elementar. educação colonial brasileira (ou da falta dela), como também recusa paradigmas prevale-
A escassa educação dada nas poucas escolas oficiais que existiam nos maiores centros da centes sobre a educação colonial no que diz respeito a quem foi educado, a mentalidade
colónia não ia muito além do ensino da leitura, da escrita e da aritmética, com um pouco de dos diplomados e a influência que exerciam sobre o processo colonial. fatou-me aqui a
latim e de grego, e isto podtj; dificilmente constituir um sistema educacional» 21 . referir à criação das academias militares no Brasil colonial, um assunto ao qual dei muita
Estas críticas são talvez merecidas no abstracto, mas na realidade os portugueses sa- atenção 25 • Será que estes cursos de ciência militar eram uma aberração, ou será que, no
biam muito bem das suas falhas educacionais. Oficialmente, o governo português promo- nosso esforço para encaixar a experiência colonial em categorias heurísticas convenientes,
via a educação no que era conhecido como aulas régias, ou academias reais, onde jovens estamos a negligenciar aspectos significativos do colonialismo contextual? Penso que será a
(homens e algumas mulheres) eram supostos receber uma educação básica. Idealmente, última hipótese a certa; de um modo significativo, os programas de engenharia/militar
deveria ter havido classes disponíveis tanto nas aldeias como no contexto urbano; no en- estabelecidos no Brasil não só sobressaem em contraste com o sistema educacional colo-
tanto, adequar estes critérios é que se tornou uma realidade problemática. Em grande nial espanhol, como antecipam bem mais de cem anos os objectivos do século dezanove
parte porque os níveis de salários propostos para os instrutores eram raramente cumpri- imperialista em providenciar uma educação técnica completa num contexto colonial.
dos, a maior parte das «academias» sofria de uma falta contínua de pessoal. Quando a A formação em engenharia militar tornou-se possível no Brasil na última década do
expulsão dos melhores destes instrutores, os Jesuítas, se realizou em 1759, a sua brusca século dezassete, e tem continuado a operar até hoje com algumas modificações e negli-
partida reduziu a educação ao mínimo. Consequentemente, o Brasil passou por um mau gências. Pensando no fascínio que Portugal tinha tanto pela ciência da navegação como
bocado para educar os jovens rapazes; uma base aceitável para uma carreira eclesiástica era pela militar, o Brasil tornou-se na primeira colónia das Américas a oferecer localmente
especialmente difícil de conseguir dado a falta de instrução em gramática latina. Os esfor- engenharia terrestre/marítima/civil. Já desde 1690 (e claramente bem antes do princípio
ços para reavivar as escolas, depois da expulsão dos Jesuítas, sofreram com o implemento do século dezanove quando surgiram a Academia Militar dos Estados Unidos em West
administrativo indeciso, assim como com a falta de pessoal qualificado 22 . Point, ou a Academia Naval em Annapolis 26 , ou academias equivalentes na América espa-
Finalmente, em total contraste com as universidades criadas na América espanhola já nhola27), a instrução na «ciência» da artilharia, da fortificação e engenharia militar estava
no século dezasseis 23 , não existia nenhuma instituição formal de educação superior no
Brasil, condição presumivelmente remediada somente no século dezanove com a criação
24
de «faculdades» de direito e medicina. Se um jovem quisesse receber uma educação em Para as mulheres, as oportunidades educacionais eram ainda mais desanimadoras do que para os ho-
mens, limitadas para aquelas (de posses) destinadas a casarem tendo um conhecimento de leitura, escrita, aritmé-
tica básica, costura e bordado. No final do século dezoito, algumas figuras iluminadas, incluindo o Bispo de
Pernambuco e Azeredo Coutinho, lutaram a favor de uma educação mais extensiva às mulheres. Veja o artigo
muito interessante de Maria Beatriz Nizza da Silva, «Educação Feminina e Educação Masculina no Brasil Colo-
21
Caio Prado Jr., The Colouial Backgrounel ofMoelern Brazil, tradução de Suzette Macedo, University of nial», Revista ele Historia, vol. 109, pp. 149-164.
California Press: Berkeley, 1967, pp. 160-161. 25
Veja de Roberta Marx Delson, «The Beginnings of Professionalization of rhe Brazilian Military: The
22
Veja o excelente trabalho de Maria Beatriz Nizza da Silva sobre educação brasileira; por exemplo a Eighteenth Century Corps of Engineers», The Americas, vol. 51, n. 0 4 (Abril 1995), pp. 555-574.
entrada, «Aulas Régias» no Diciondrio ela História ela Colonização Portuguesa no Brasil, de Maria Beatriz Nizza da 26
Veja Stephen E. Ambrose, Duty, Hono,; Coimtry: A History ofV7est Poi11t, John Hopkins Press: Balti-
Silva, ed., Editorial Verbo: Lisboa, 1994, pp. 81-83. more, 1966 e Charles Todorich, The Spiriteel Yean: A History ofthe A11tebellum Naval Acaelemy, Naval lnstitute
23
Bernheim, na Historia ele la Univmielael... , p. 19, chama a atenção para a falta de instalações para a Press: Annapolis, Maryland, 1984. Para uma revista dos currículos de engenharia no princípio do século dezanove
educação superior brasileira. Em termos de números acrualizados de diplomados das universidades hispano-ameri- nos Estados Unidos, veja Terry S. Reynolds, «The Education of Engineers in America before the Morrill Act of
canas,John 'fate Lanning esrima que «aproximadamente 150 000 estudantes receberam diplomas das universidades 1862», Histmy ofEâucatio11foumal, vol. 32, n. 0 4, Winter, 1992, pp. 459-482.
coloniais espanholas», embora o número possa ter sido eventualmente maior devido ao facto da perda de registos. 27
Não existem histórias de academias comparáveis disponíveis para a América colonial espanhola se, de
Cf. Acaelemic Culture in the Spanish Colonies, Folcroft Press: Fokroft Pennsylvannia, 1944 (reimpressão 1969), facto, tais programas existiram realmente. As únicas referências que encontrei, foram a) uma «academia de
p. 53. Existiam evidentemente muitas sociedades literárias e científicas privadas que apareceram no Brasil do século delincación» (uma academia de desenho) fundada em Cartagena em 1725 [cf. J. M. Zapatero, «La escuela ele
dezoito, mas estas não eram escolas no sentido em que não davam diplomas aos jovens estudantes, assemelhavam- jórtificación hispanoarnericana», em Puertos y Fortificaciones en América y Alipinas, Espanha: Comision ele estuelios
-se mais a reuniões de intelectu!Íis conceiruados. Veja Alexander Marcham, «Aspects of the Enlightenment in Brazil», historicos ele obras publicasy urbanismo (CEHOPU), 1985, p. 68; 6) uma escola de matemática cm conjunto com
no trabalho de Arthur P. Whitaker, ed., Latin America anel the Enlithtemnent, 2.ª edição, Cornell University Press: a Universidade de São Marcos, Lima, criada por ordem do Vice-Rei Amar em 1766 (cf Leon G. Campbell,
lrhaca, New York, 1961, pp. 95-118. Veja também Maria Beatriz Nizza da Silva, «O papel de academias no Brasil The Military anel Society in Colonial Peru, 1750-181 O. Philadelphia: The An1erican Philosophical Society, 1978,
232 colonial», Revista da Socieelaele Brasileira ele Pesquisa Histórica, n. 0 1, 1983, pp. 1-15. p. 27) e c) a escola de Minas, criada no México cm 1783]. Existiam certamente engenheiros militares na América 233
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disponível no Brasil. Estes programas recebiam a atenção directa e o apoio não só do gover- para a independência (as duas coroas estiveram unidas de 1580-1640), aparentemente
no metropolitano, mas os homens nascidos no Brasil e formados por estes programas torna- consequência da sua limitada experiência em engenharia 30 •
vam-se muitas vezes administradores dirigentes dentro da colónia e noutros lugares do reino O currículo de Lisboa em engenharia militar foi implantado com sucesso bem antes
português, assim como oficiais militares altamente graduados eram incumbidos das respon- de programas comparáveis em Espanha, e antecedendo trinta e cinco anos os franceses que
sabilidades mais pesadas do regime colonial. Conhecidas oficialmente como aulas (ou facul- só começaram a instrução formal da «ciência militar» em 1682, em Rochefort31 . As escolas
dades de engenharia militar) e situadas nas cidades costeiras mais importantes de Salvador da de artilharia francesas estabelecidas posteriormente em Metz e Strasbourg por volta de
Bahia, Rio de Janeiro e Belém do Pará (na foz do Amazonas), estas escolas inculcavam aos 1690 ofereciam instrução em matemática e em fortificaçãon. Começando em 1716, a
estudantes as noções de «des<IDvólvimento» e «progresso», formando assim, tal como afirmei engenharia civil, ou a construção de projectos para o Estado, foi ensinada a uma unidade
noutro lugar, a primeira prova de «profissionalização» no exército brasileiro 28 • Além disso, o conhecida como Corps des Ponts et Chaussées, uma corporação de engenheiros militares,
facto destes estudantes das academias estarem também a aprender as teorias científicas e que, mais tarde, foi alargada para além dos assuntos puramente militares para abranger a
matemáticas mais correntes do século dezoito, colocava-os na vanguarda da sociedade educada engenharia civil em geral. O seu papel estava definido na Carta Francesa da Instituição dos
tanto no Brasil, em Portugal ou na Europa como um todo. Era-lhes dado também o equipa- Engenheiros Civis como «a arte para dirigir as grandes fontes de poder da natureza para a
mento técnico mais modemo 29 , mandado de Portugal (talvez importado de Inglaterra), e utilização e conveniência do homem,,·13 , uma tarefa que abrangia tudo desde a construção
eram assim tão bem ensinados quanto os seus colegas na metrópole. Representavam os úni- de uma ponte à de um barco.
cos receptores de uma educação superior ensinados localmente, uma verdadeira distinção em A par e passo com o método francês de engenharia (incluindo a utilização de livros
si. Na verdade, em algumas regiões mais remotas onde serviram, poder-se-ia dizer, sem hesi- franceses), os portugueses também procuraram ampliar a disponibilidade da instrução das
tação, que estes engenheiros militares eram as únicas pessoas educadas da região. ciências militares e estavam determinados em criar uma corporação de engenheiros seme-
No entanto, a abordagem portuguesa da questão da educação técnica deveria ser vista llunte. Para aumentar as fileiras desta corporação, os portugueses começaram a criar cur-
como uma extensão dos seus programas metropolitanos, e não como um projecto separa- sos fora de Lisboa (primeiro no Alentejo), e noutros lugares do reino, incluindo África;
do designado para funcionar estritamente num contexto colonial. Os programas de enge- isto significava uma necessidade de criar cursos dentro das colónias34 •
nharia militar criados no Brasil colonial continham o mesmo currículo desenvolvido para Para o Brasil, a evidência sugere fortemente que esta instrução iniciou-se no Rio de
a primeira academia militar em Lisboa, e representavam uma continuidade tanto no con- Janeiro por volta de 1690, quando o capitão-engenheiro Gregório Gomes Henriques deu
teúdo como na forma. Criado em 1647, o primeiro currículo de engenharia (em Lisboa) lições de arte e utilização da artilharia a homens estacionados na guarnição local. Os por-
foi designado para ensinar jovens rapazes promissores nas ciências politicamente úteis da tugueses estavam tão desejosos desta instrução que, quando Gomes foi denunciado ao
engenharia da fortificação e da hidráulica. A decisão de formalizar este ensino nasceu da governador e consequentemente encarcerado, ainda tinha a autorização para ensinar os
necessidade; os portugueses tinham sofrido na sua prolongada luta contra os espanhóis seus estudantes na arte da fortificação. Assim, o primeiro curso de engenharia nas Améri-
35
cas foi, ironicamente (alguns dirão sintomaticamente), ensinado a partir de uma prisão!

espanhola e até o que foi referido como «uma Escola (ou estilo) Hispano-Americana de fortificação» (cf. José
Omar Moncadea Maya, «Ciência en Accion: lngenieria y ordenacion de! territorio en Nueva Espafia en el sigla 'ºVeja R. M. Delson, «The Beginnings of Professionalization ... » para um resumo da educação militar
XVIII», documento apresentado ao Congreso Internacional Ciencia y Discubrimicnro de America, Madrid, portuguesa. Como termo de comparação, os espanhóis estabeleceram um programa de engenharia militar em
Junho de 1991). No entanto, não parece ter havido academias militares de fortificação e engenharia separadas, Madrid, no século dezasseis, mas não foi avante, e até ao restabelecimento de um programa em Barcelona em
tal como foi realizado no Brasil a partir de 1690. 1710, a maioria dos peritos militares de Espanha recebiam o ensino na Flandres; cf. Zapatero, «La escuela ... »,
No século dezanove, houve uma proliferação de escolas militares/engenharia iniciadas nas recém-indepen- pp. 66-68.
dentes nações latino-americanas. Veja, por exemplo, Pamela Murray, «Know-How and Nationalism: Colombia's 31 Veja Frederick B. Artz, The Development ofTech11iad Education in Fmnce, 1500-1850 (Cambridge,
Fitst Geological and Perroleum Expens, e. 1840-1870», em The Americas, vai. 52, n. 0 2, outubro, 1995, p. 212. Massachussetts: M.I.T Press, 1966), p. 53.
O seu trabalho, por sua vez, lembra o de Frank Safford, The Ideal ofthe Pmctical: Colombias Struggle to Form a 32 Frederick B. Arrz, The Development of Technical Education ... , p. 96.

Technical Elite, Austin: University ofTexas Press, 1996. 33 Cf. R. J. Forbes, The Conquest of Nature: Technology and its Consequentes (New York: Mentor Books,
28
Cf. Robetta Marx Dclson, «The Beginnings of Professionalization ... ». 1968), PP· 48-49. Também é interessante o trabalho de Ceei! O. Smith Jr., «The Longest Run: Public Engineers
29
Isto incluía tabelas pla11'1.5 rigorosas com alidades de metal, compassos e níveis de bolha. !bid., pp. 568- and Planning in France», American Historical Review, vol. 95, n. 0 3 (Junho, 1990).
-569. É possível que algum equipamento fosse manufacturado em Portugal; outros instrumentos técnicos eram "As academias militares e de fortificação foram criadas no Alentejo, Beira e Minho, assim corno em Goa e
importados de Inglaterra e ocasionalmente de França. Para uma lista do equipamento importado e para a apreciação Angola. Cf. Robert C. Smith, «Jesuit Buildings in Brazil»,Art Bulleti11, vol. XXX, n. 0 3, 1948, p. 209.
e cópia portuguesa dos projectos de triangulação britânicos, veja Felipe Folque, «Memória sobre os trabalhos 35 Este acontecimento muito interessante é narrado na obra do coronel Adailton Sampaio Pirassinunga,
234 geodésicos executados em Portugal», em Memórias da Academia Real de Ciências, Séries 2, vol. 11, pp. 6-7. O Lizsino Militar no Brasil (Período Colonial), Rio de Janeiro: Editora, Biblioteca do Exército, 1958, PP· 8-12. 235
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Por volta de 1700, uma instrução semelhante estava disponível na guarnição local da era claramente uma instituição cultural de primeira importância na cidade, assim como
cidade capital da Bahia. Isto foi formalizado cinco anos mais tarde numa Cana Régia uma escola técnica; portanto, talvez não seja coincidência o facto que o livro que a maior
(ordem real) de 1705 que ordenava que os engenheiros militares, residentes (em qualquer parte dos historiadores aceita corno sendo o primeiro jamais publicado no Brasil tivesse
lugar) no Brasil, deveriam instruir as pessoas na arte da engenharia, se assim O desejas- sido escrito pelo director da Academia e tratasse de ciência militar43 .
sem36. Assim, no princípio do século dezoito, de um modo notável, a instrução formal da De forma significativa, tal como tinha sido o caso em Lisboa, não houve divisão no
ciência da engenharia militar estava disponível no Rio de Janeiro e na Bahia (e talvez currículo destas academias coloniais entre os que esperavam seguir uma carreira de orientação
noutros lugares). Obviamente, a necessidade de criar este ensino era imperativa; até ao marítima e aqueles mais interessados no que é mais tradicionalmente considerado como enge-
estabelecimento da instruç~ no século dezoito, as fileiras do corpo de engenheiros operativo nharia militar, i.e., o estudo da fortificação e planeamento de cercos. Talvez isto se deva ao facto
no Brasil só podiam ser aumentadas significativamente a partir do estrangeiro. Mas, acon- da primeira aula de engenharia, em Lisboa, estar situada nos estaleiros reais, na orla marítima
tecimentos políticos na Europa e a ameaça de invasão por outras potências (principalmen- da cidade, e que o seu primeiro director Luis Serrão Pimentel fosse famoso não só pela sua
te os franceses, depois de Portugal recusar juntar-se ao esforço de Luís XIV na Guerra de perícia sobre fortificação mas também pelo seu conhecimento da navegação44 • Esta dupla
Sucessão Espanhola) tornaram absolutamente essencial o facto de defender as proprieda- focalização sobre a perícia marítima e terrestre seria transplantada para o Brasil, onde as acade-
des coloniais com perícia de fortificação/militar. Não estava só em jogo O facto de aumen- mias do Pará e da Bahia, por exemplo, estavam normalmente fisicamente ligadas aos portos
tar as fileiras do corpo de engenheiros, mas estava também a segurança de toda a colónia, reais e aos arsenais da orla marítima.
e por fim da metrópole. Por isso, nestas academias coloniais, o currículo prescrito para jovens candidatos a
Os centros de ensino para engenheiros militares em Salvador da Bahia funcionaram engenharia incluía disciplinas de hidráulica, assim como de aritmética, geometria, trigono-
durante o século dezoito; era completado com cursos que funcionavam intermitentemen- metria plana (estas duas últimas importantes para a navegação), cálculo (com referência
te em Belém do Pará e Pernambuco, e mais tarde (1792) em Porto Alegre3 7_ Devemos particular à sua aplicação nas estatísticas) e óptica. O desenho também era solicitado, e os
assumir que os diplomados destes cursos eram bem preparados, e reconhecidos como tal estudantes eram julgados sobre a sua competência em todos os campos. Os exames eram
pelas autoridades metropolitanas, já que não só recebiam patentes militares como também feitos anualmente, e no seu ano final, tal como nas escolas metropolitanas, os estudantes
eram nomeados para postos de autoridade depois de estarem formados. Assim, logo em deviam escrever e defender uma tese de formatura. Os estudantes bem sucedidos recebiam
1715, Gonçalo da Cunha Lima, considerado um dos melhores diplomados da academia comissões como segundo-tenentes (ajudante ou alferes) e vestiam fardas com a insígnia
da Bahia, foi nomeado ajudante-engenheiro da cidade 38 • Um colega dele, João Baptista que os identificava claramente como engenheiros 45 •
Barreto, destacou-se especialmente pelas suas distintas contribuições para a arquitectura Quando o Conde de Resende resolveu revitalizar e reformar o currículo da aula do
militar e foi-lhe dada uma patente militar39 • Florencio Manuel de Bastos, um diplomado Rio de Janeiro em 1792, a sua contribuição principal seria o requisito de que os estudantes
da academia de Grão Pará, foi nomeado ajudante-engenheiro daquela cidade em 17674º. aprendessem arquitectura civil no seu sexto ano e ano final de estudos. Em complemento,
E José António Caldas, talvez o mais distinto diplomado da academia da Bahia, foi no- exigia-se aos estudantes que dominassem a carpintaria e o corte da pedra necessários para
meado instrutor na mãe-pátria, em 17 61 41 • a ornamentação 46 . Isto também não parece surpreendente, visto que os engenheiros mili-
A academia do Rio foi um grande sucesso durante algum tempo, especialmente quando tares já estavam há muito envolvidos na construção de edifícios públicos na colónia, e, é
o brilhante João Fernandes Pinto Alpoim se tornou seu director em 1738; foi reorganizada claro, tinham equipado o Brasil com algumas das suas criações aquitectónicas mais notá-
em 1760 e de novo em 1790 sob a orientação do Conde de Resende 42 . Sob Alpoim, a Aula veis. A este respeito, os estudantes no Brasil estudavam uma combinação de arquitectura

36
A. S. Pirassinunga, op. cit., pp. 12-13.
37
43
Veja Claudio Moreira Bento, «A esquecida escola de guerra de Porto Alegre no ensino militar académico José Fernandes Pinto Alpoim, Exame de Bombeiros, Rio de Janeiro, 1749. Para uma discussão sobre a
do exército de 1792 - atualidade», Revista do Instituto Histórico, Geogrdjico Brasileiro (daqui por diante R.IHGB) controvérsia que envolve o lugar real da publicação deste trabalho, veja Ruben Borba de Moraes, Bibliogrt1fit1
155 (.383): abr/jun, 1994, pp. 423-427. ' Brasileira do período colonial, São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969, pp. 9-13.
38 44
. Veja Sousa Viterbo, Diccíonario historico e documental dosArchitectos, Engenheiros e Constructores Portuguezes, Delson, «The Beginnings ... », p. 559.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1899, vll). ], p. 264. 45
Ibid., pp. 561-562. Veja também general Aurélio de Lyra Tavares, A Engenharia Militar Portuguesa na
39
Sousa Viterbo, op. cit., pp. 88-89. construção do Brasil. Rio de Janeiro: Secção de Publicações do Estado-Maior do Exército, 1965.
40
Ibid., p. 91. 46
Estas recomendações são feitas na obra do Conde de Resende, «Estatutos da Real Academia de Artilha-
41
lbid., p. 157. ria, Fortificação e Desenho da Cidade do Rio de Janeiro», 17 de Dezembro, 1792. Biblioteca Nacional do Rio ele
236 42
Cf. Delson, «The Beginnings of Professionalization ... », p. 561. Janeiro, I-32-13-27. 237
PARA O ENTENDIMENTO DA EDUCAÇÃO COLONIAL
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esta questão torna-se central em qualquer discussão sobre a educação brasileira. No entanto,
naval, militar e civil, de um modo muito semelhante ao exigido aos seus colegas franceses
também aqui, está manifestamente ausente de qualquer regulamento relacionado com as
colocados no Corps des Ponts et Chaussées.
academias brasileiras, qualquer menção de passado religioso ou raça como requisito para a
Quatro anos depois das reformas de Resende, os portugueses dividiram formalmente 0
admissão. Os requisitos básicos parecem ter sido o conhecimento dos quatro princípios da
ensino superior militar em instrução naval e terrestre, estabelecendo em Portugal, em 1796,
aritmética (i.e., a divisão, a multiplicação, a soma e a subtracção).
uma nova academia para o ensino de aspirantes de marinha. Documentos relacionados com 0
A falta destes pré-requisitos restritivos parece ter sido consistente através dos tempos.
programa de estudo deste curso descrevem três anos de estudo que incluíam um primeiro ano Quando uma academia militar foi criada em Pernambuco, em 1788, era exigido aos can-
concentrado sobre a aritmética, geometria e trigonometria linear, e ciência náutica em geral; didatos a estudantes incluírem nos seus pedidos de inscrição detalhes muito simples; i.e., o
um segundo ano que incluía ®S ptincípios da álgebra e aplicações práticas da matemática à nome dos pais, o lugar de nascimento e o nível de educação anterior. O pessoal militar
ciência náutica, assim como o estudo de portos, costas e construções navais e portuárias; e um
tinha ainda que conseguir a aprovação dos seus superiores 51 . Além disso, uma vez aceites,
terceiro ano concentrado na geometria esférica, a navegação prática e teórica e elementos de
as críticas severas eram de natureza disciplinar e não se referiam ao contexto racial: espera-
tácticas navais. A, lições deviam ser dadas de manhã, deixando as tardes livres para O estudo ou
va-se que os estudantes fossem respeitadores, chegassem às aulas a horas, se mantivessem
prática em «laboratório»47 • A selecção dos estudantes dava preferência aos filhos de oficiais
em silêncio durante as lições, salvo quando fossem chamados. Reciprocamente, os instrutores
militares, especialmente aqueles que tinham morrido ou ainda estavam em serviço 48 •
deviam demonstrar civismo, de modo a ensinar aos mais jovens o bom comportamento.
A criação de uma academia especificamente naval ref1ectia em parte a reestrucuração
Os indisciplinados deviam ser expulsos da classe e, sendo esta uma actividade financiada
geral da Marinha Portuguesa que teve lugar em 1796. Para providenciar o ensino para os 2
pelo Estado, deviam ser denunciados directamente ao governador' •
engenheiros num contexto marítimo, foi criado um corpo especial de engenheiros navais;
Os requisitos para os candidatos à Academia Real Militar do Rio de Janeiro, depois
os candidatos seleccionados para este curso formavam-se com diplomas em arquitecrura
da reorganização em 1792 pelo Conde de Resende, são igualmente liberais. Os candidatos
naval, ou, num grau menos rigoroso, tornavam-se directores de estaleiros ou equivalente4Y.
deviam também mostrar o seu conhecimento dos princípios matemáticos básicos. Após
Quais eram as qualificações dos estudantes aceites nos programas de engenharia bra-
três anos (do que agora é um curso de seis anos) deviam demonstrar o conhecimento do
sileiros? Além disso, será que estes pré-requisitos mudavam ao longo dos tempos como
francês, não porque se achasse que o estudo de línguas estrangeiras fosse necessário para
resultado do aumento de especialização dos cursos? O Decreto Real de 1699, ao qual foi
ampliar a sua educação, mas porque a maioria dos textos de engenharia utilizados pelos
feita referência anteriormente, declarava que as únicas exigências para ser estudante eram
portugueses, no Brasil e no continente, estavam escritos em francês. Além disso, os estu-
primeiro ter capacidade e, segundo, não ter menos de dezoito anos; se houvesse indivíduos
dantes deviam ter uma constituição física robusta, sem nenhum defeito visível, e não po-
que quisessem estudar mas não matricular-se num programa formal, eles também deve-
diam apresentar nenhum tremor das mãos 53 (presumivelmente porque isto afectaria os
riam receber instrução. Os oficiais militares que se integrassem nestes programas de ensino
seus desenhos futuros).
não só receberiam o seu salário normal como também mais uma remuneração periódica.
Em 1799, foi preenchida uma lista completa dos estudantes que frequentavam a
A cada ano, os estudantes deviam ser examinados para determinar se deviam continuar no
Academia Militar do Rio de Janeiro; são citados quarenta e cinco estudantes, alguns na
curso 50 . Não existe menção, de modo suficientemente interessante, sobre a classe social ou
série de aritmética, outros na série de geometria e um na série de fortificação. Havia uma
o passado educacional.
mistura de jovens cadetes, militares mais velhos (incluindo alguns até com o grau de capi-
Mas como fica a pureza racial ou a liberdade da «mácula da infâmia»? Em particular à
tão) e estudantes particulares. Cada cadete ou estudante era julgado em relação às suas
luz da ênfase opressiva sobre a linhagem sanguínea e a heresia para O ingresso nas escolas da
capacidades, atitudes e potencial, e, tal como se podia esperar, alguns eram excelentes e
América espanhola, requisitos que muito poucos administradores desejavam pôr em dúvida,
outros necessitavam de trabalho de recuperação' 4 . E, mais uma vez, não é feita menção da
raça, condição familiar ou financeira em nenhum destes relatórios. Resumindo, a lista dá
47
Estas estipulações estão contidas na «Carta Régia de 1 de Abril de I 796, aprovando novo Plano de
Es'.aturos para os Estudos da Real Academia dos Guarda-Marinhas», citada na obra de Luis Claudio Pereira
Le_ivas e Levy Scarv:da, História da Intendência da Marinha, vol. !, Introdução 1500-1800, Rio de Janeiro:
D1retona de lntendenc1a da Marinha, 1972, pp. 243-244. 5' Ibid., p. 81.
"Ibid., p. 247. 52 Ibid., p. 83. Isto contrasta com o comportamento muitas vezes turbulento demonstrado pelos estudan-
49
«Carta Régia de 26 de Outubro de'í 796, dá Nova Forma ao Conselho de Almirantado; Cria Nova Real tes nas instituições espanholas coloniais de educação superior. Cf. John Tate Lanning, Academic Culwre ...
Junta
· d da Fasenda
. , . que Administra o Arsenal e as Construções·' Instala ~ ., 1r0 s c onstrutores))
O Corpo ele ]'ngenhe' 1 53 Ibid., P· 93.
cita o na Hzstorza da Intendência ... , de Leivas e Scarvada, p. 256.
239
54 Ibid., pp. 97-117.
238 su Citado em O .E'rzsino Militar ... , de Pirassinunga, p. 109.
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a impressão de um grupo seleccionado democraticamente, sendo o maior critério para a mesmo que houvesse uma separação das pessoas de cor em regimentos distintos. Nada su-
inclusão a capacidade de completar o curso. gere que se um membro de um regimento negro ou ameríndio pedisse para estudar a fortifi-
Como última fase nesta educação militar colonial, foi criada, no Brasil, uma acade- cação fosse automaticamente desqualificado; na ausência de dados contraditórios, é razoável
mia naval formal em 1808, logo depois da chegada da família real portuguesa fugindo da pensar-se que a candidatura estava aberta a qualquer um 58 .
aproximação das tropas de Napoleão a Lisboa. Assim, no Brasil, no início do século dezanove, Igualmente significativo, tal como vimos, é o facto que os instrutores destas acade-
existia um ensino da ciência militar dividido em duas partes, i.e., terrestre (fortificação, mias eram muitas vezes brasileiros nativos, que eram profissionais experimentados em vez
cercos, etc .... ) e naval, correspondendo ao pensamento da época na Europa, mas bem de clérigos, e frequentemente diplomados das próprias academias que os contratavam mais
mais adiantado do que as diisÕí:s noutros países das Américas. West Point, por exemplo, tarde. Tal como já sugeri, os diplomados das academias brasileiras eram considerados tão
tinha um ensino informal de artilharia desde 1802, mas, até às reformas de Thayer em competentes como os que tinham sido formados na mãe-pátria59 e não eram rejeitados
1817, não se instituiu um currículo formal de engenharia, focalizado tanto na instrução como «coloniais», com um ensino inferior àquele dos colegas educados na Europa (como
civil como na engenharia militar 55. No que diz respeito à instrução da engenharia naval, aconteceu a diplomados de escolas de engenharia indianas)6°.
não se experimentou um programa de estudo antes de 1845-46 56 com a criação da Acade- Aparentemente em contraste com as tentativas britânicas, no século dezanove, para
mia Naval de Annapolis. oferecer educação tecnológica na Índia, a abordagem portuguesa deve ser considerada
Assim, os portugueses, nas Américas, tinham aberto o caminho no que se refere ao como uma extensão dos seus cursos metropolitanos, e não corno um substituto colonial.
ensino da engenharia. Até depois da independência, os passos dados pelas recém-liberta- O objectivo português era criar um corpo global de engenheiros que pudesse ser recolocado
das nações latino-americanas no sentido da criação de programas de engenharia eram no reino conforme a necessidade. Como os diplomados brasileiros eram obviamente bem
experimentais. Tal como referenciado anteriormente, foi somente na segunda metade do treinados nas exigências do contexto brasileiro, podiam, e deviam, servir em muitos locais.
século dezanove (não sendo surpreendente o facto de ser simultâneo com a propagação da Estas diferenças também não eram unicamente uma distinção diacrónica. Porque,

ideologia positivista à América Latina) que ambas as escolas de engenharia civil e militar como vimos, ao contrário dos programas educacionais contemporâneos da América espa-

começaram a proliferar na América Latina independente. nhola, o currículo criado para os engenheiros no Brasil era cientificamente actual, baseado
nos últimos documentos sobre o assunto, assim como nos mais modernos equipamentos
Que conclusão podemos tirar destes cursos no Brasil? O que é que nos dizem a
técnicos. Mas deveríamos ficar surpreendidos ao saber que impérios sincrónicos manifes-
respeito do «projecto» e da «representação» do colonialismo?
tem estas estruturas totalmente diferentes? De facto, se aceitamos a noção de que o
Primeiro, acredito que está bem claro o facto que, enquanto os programas educacionais
colonialismo não é monolítico, porque deveríamos esperar homogeneidade no estilo colo-
das academias militares no Brasil colonial defendiam subtilmente um «diálogo de desenvol-
nial mesmo em estruturas imperiais contemporâneas?
vimento», com o intuito de ensinar indivíduos para executarem as estratégias de planeamen-
Uma breve análise dos programas de engenharia brasileira colonial sugeriu que:
to portuguesas, este não é o mesmo fenómeno que a «missão de civilização» do século dezanove,
1- Os portugueses tinham como objectivo criar um quadro de especialistas que,
discutida anteriormente neste documento 57 , nem é semelhante aos objectivos educacionais
embora formasse indubitavelmente uma «elite educacional», não vinham necessariamente
dos espanhóis nas suas colónias. No Brasil, os quartéis eram competitivos no programa de
de um meio «elitista», mas eram homens que tinham sido julgados pela competência e que
ensino e, tal corno foi demonstrado, baseados na capacidade mais do que nas características
tinham subido os escalões.
sociológicas ou raciais. Não se pode também assumir automaticamente que, pelo facto de
2- Os currículos da engenharia militar começaram primeiro em Lisboa e foram
terem estas restrições, fossem uma conclusão previamente determinada, isto por duas razões;
depois estendidos para outras regiões de Portugal, assim como para as colónias. Não havia
primeiro, os espanhóis falavam continuamente da necessidade de uma pureza racial nas suas
nenhuma classificação destas escolas; os diplomados eram considerados como tendo igual
escolas, enquanto não existe nada comparável nos regulamentos que criaram as academias
valor para o reino, sendo indiferente o lugar onde tinham estudado.
brasileiras; e segundo, no Brasil, o exército não era limitado a pessoas vindas da Europa,

58
Mary Karasch (comunicação pessoal) aponta que, contemporaneamente, o ingresso para os seminários
55
Cf. Reynolds, «The Education ofEngineers ... », p. 463. em Goiás estava aberto a todos, indiferentemente da raça.
"Cf. Todorich, The Spirited Years ... , p. 23. 59 Cf. Delson, «The Beginnings of Professionalization ... ».
57
De Lord Curzon para Lady Wilson, a atitude do observador britânico vitoriano da Índia era que a 60
Arun Ku1nar argmnenta que os engenheiros indianos eran1 ensinados, na rnetade do século dezanove,
ciência tecnólogica europeia tinha trazido o «iluminismo» para o subcontinente. Veja Michael Adas, Machines as não para atingirem o mais alto grau da profissão mas sim para servirem as necessidades do Public \Vorks
the Measure ofMan ... , pp. 227-228. Isto é muito diferente das propostas feitas para a criação das academias Department. Veja o seu «Colonial Requirements and Engineering Education: The Public Works Department,
240 militares e de engenharia brasileiras. 1847-1947», em Macleod e Kumar, Wéstern Technology ... , p. 217. 241
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

3- A ideia existente de que os portugueses não ofereciam diplomas superiores no


Brasil colonial deve ser reavaliada. O diploma de competência e ensino científico da aca-
demia brasileira colonial contradiz directamente a noção de que não existia educação su-
perior para coloniais, excepto em Portugal 61 • O ensino local no Brasil não era somente
uma opção, mas, julgando pela grande estima que tinham por estes diplomados, era tam-
bém considerado como bastante desejável.
Por isso, como demonstrado por este caso particular, devemos ser prudentes quando ÍNDIA E SUL DO BRASIL: PLANOS DO URBANISMO
aceitamos paradigmas pred5,terminados sobre a natureza do colonialismo, assim como da PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII*
representação da «educação colonial». E isto é verdade tanto para as Américas como glo-
balmeme. Os países metropolitanos não são nem homogéneos nos seus objectivos nem JOSÉ MANUEL FERNANDES
monolíticos no seu grau de dominação. A ironia destas academias militares no Brasil é que Faculdilde de Arquitectura
produziram diplomados que não eram considerados «coloniais» num sentido depreciativo dil Universidade Técnicil de Lisboa

(ou qualquer outro), mas eram aceites como iguais aos seus colegas ensinados na metrópo-
le. Por isso as escolas de engenharia criadas no Brasil colonial trabalharam ironicamente
para quebrar o paradigma do colonialismo, mesmo se operavam dentro de um contexto
colonial. Poderia argumentar-se que isto aconreceu por causa da exigência militar ou sim-
plesmente da pura perspicácia pragmática dos portugueses. Mas o que não pode ser igno-
rado é o facto que uma nação imperial, em vez de criar instalações separadas mas «iguais»
numa colónia, estendeu os programas já existentes ao contexto colonial. O estudo deste
caso serve assim para nos alertar para os problemas inerentes à generalização das experiên-
cias coloniais; além disso, demonstra que quando nós, historiadores, estamos dispostos a
pôr os nossos preconceitos de parte, o trabalho de entendimento do colonialismo e da sua
cultura deve necessariamente levar-nos de volta para os contextos locais. É somente quan-
do a análise contextual é efectuada que podemos legitimamente tirar amplas conclusões
sobre a natureza do empreendimento colonial, os seus projectos e a sua representação.
Para concluir, o estudo deste caso é uma demonstração de ironia e paradoxo. A ironia
do currículo de engenharia militar do Brasil é que o corpo de engenheiros educados local-
mente, embora subscrevendo e defendendo indubitavelmente os interesses da mãe-pátria,
desfazia simultaneamente as mais negativas conotações do «colonialismo» pela sua própria
aceitação, perspicácia e capacidade para servir em qualquer contexto. O paradoxo é que no
nosso esforço para entender o que realmente aconteceu no meio colonial, derrotamos as
nossas melhores intenções, aceitando critérios deduzidos sem submetê-los primeiro ao
teste do contexto local.

Traduzido por Maria José Reis

61
A relação das escolas de engenharia coloniais com os sucessores modernos é discutida na obra de Paulo * Este texto foi apresentado em francês com o título «L:Inde et !e Sud du Brésil - Plans de l'Urbanisme
242 Pardal, «A Sucessão do Pioneiro Ensino Militar de 1792», RIHGB, 155, (383), abr./jun., 1994, pp. 428-435. Portugais au xv111' Siecle» no Colóquio Internacional La Ville Reguliere - Modeles et Tracés, Paris, 1988.
Algumas ideias gerais

Este texto apresenta-se como um início de investigação, como um arranque para estu-
do mais aprofundado da matéria abordada. Nessa condição, pretende justificar e defender
algumas ideias principais, relativas às características do processo de urbanização, tal como
este se praticou em dois locais concretos de domínio português, e num período de tempo
específico:
1- Desde finais do século XVlI e ao longo do XVIII, assiste-se em Portugal e seus domí-
nios, nomeadamente em Goa e no Sul do Brasil, a uma mais RIGOROSA e intensa actividade de
edificação de cidades, quer pela crescente aplicação dos chamados «traçados reguladores», quer
pelo recurso a legislação específica, sejam decretos, despachos ou éditos régios.
2- Essa actividade, que terá o seu apogeu no período pombalino, exprime-se po-
rém em termos de clara CONTINUIDADE ao longo dos reinados de Pedro II, João V, José I e
Maria I, não representando por isso, quanto a nós, o consulado de Pombal uma ruptura
ou mudança significativa nos processos de planeamento, mas tão-só o seu desenvolvi-
mento lógico.
3 -A referida aplicação dos traçados, bem como a da legislação específica, conduziu
gradualmente à alteração do modelo urbano tradicional português da Expansão, tal como
o entendemos em trabalho anterior 1: os aspectos locativos (cidade ribeirinha-litoral),
conceptuais (adaptabilidade, estrutura sequencial) e morfológicos (malha orgânica, geo-
metria implícita) foram-se alterando, para se chegar a um modelo mais próximo do da
cidade espanhola colonial, ou, mais correctamente, dos modelos CLASSICISTAS internacio-
nalmente dominantes na época2 •
Assim, assumem nova importância valores como os da centralidade (praças internas à
malha), da axialidade (geometrismo rigoroso, pontos focais) e da geometria explícita, com a
correspondente monumentalidade das formas construídas.

1
Cf. «O Lugar da Cidade Portuguesa», in revista Povos e Czdturas, n. 0 2.
2
Cf. Leonardo Benevolo, in Historia de laArquitectura de! Renacimiento, ed. Gustavo Gili, 1981, Barcelo-
na), no capímlo «E! Viraje de 1750», o modelo tende a um pragmatismo abastracto, a partir dos meados do
século XVIII:« ... despotismo e iluminismo, autoridad y razon, se revelan como fuerzas anragonicas, solo conciliables
parei! y provisionalmente. [ ... ] La tematica de la arquitectura dei absolutismo, depotica o iluminista, puede ser
solo una causística, no una exposición sistematica .. ,)► 245
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS fNDIA E SUL DO BRASIL

Duas regiões, a mesma periodização Goa», apontando caminhos contraditórios (aproveitamento da malha existente, e defini-
ção de plano geométrico), que originam a execução de pelo menos três planos de «recons-
O es~orço do g~ve_rno pela reorganização do Ultramar, que se sucede à restauração e trução», todos de utópica dimensão, entre 1775 e 1777 9, significativamente entremeados
guerra da mdependenc1a portuguesa (1640-1668), terá sido provavelmente O
facto mais por um plano de edificação de «Nova Goa» em Pangim (177G), pelos mesmos autores! 1º
directameme responsável pelo incremento das preocupações urbanizadoras de além-mar Tudo isto aponta para uma indecisão fatal, certamente motivada pelo confronto entre o
Perdido o domínio comercial no Oriente, as atenções viravam-se gradualmente para ~ ideal autoritário e voluntarista da política de Lisboa, e o sentido da realidade goesa por
América do Sul. parte dos governadores do «Estado da Índia», reduzida já então aquela cidade de antiga
Deste modo, se no Jilras!l se assume atitude expansionista, com ocupação de novas «Capital do Oriente» a pequeno entreposto comercial «de província» ...
frentes territoriais, já na Índia o panorama está dominado pela preocupação de contenção, Depois de várias insistências do governo central e de outras tantas evasivas da aurorida-
com o reordenamento ou transferência da capital de Goa, centro das decadentes possessões. de local, ter-se-iam apenas construído treze (?) casas em dois novos quarteirões junto ao rio
. Em 1680 funda-se a praça-forte e cidadela de Colónia do Sacramento, na costa norte Mandovi, obra certamente «de fachada» que deixou vestígios escassos na actualidade 11 ; en-
do no Prata, freme a Buenos Aires, estabelecendo todo um programa de ocupação futura
por progressão costeira para sul, desde Santos-São Paulo , em ni'ti.do con fi·10nro com as'
pretensões espanholas na região; ora precisamente entre 1672 e 1712 ( · ·d, · política de incentivo à produção, com vista à redução das importações, bem como com a tentativa de reorgani-
com mc1 enc1a zação (e racionalização, diríamos hoje) da m,íquina administrativa (dados in Diciomírio dt1 História de Po,-tugal,
es.~ecial no ano de 1~87, quando um édito real ratifica a decisão), tenta-se um processo, coordenado por Joel Serrão.
alias a~ort~do'. de cn~r uma nova capital em Mormugão, na costa do Industão (de que Neste contexto poderei ser entendida uma nova fase expansionista e urbanizadora: demarcação das frontei-
ras económicas do Algarve, com a fundação de Vila Real de Santo António, em 177 4; na área colonial, o trans-
sobrev1verao amda hoJe alguns edifícios construídos?)3.
porte de Mazagão (praça-forte em Marrocos) para o Amazonas, depois de 1769 (fundando-se «Nova Mazagão»),
Seguem-se, no Brasil, as sucessivas fundações de núcleos urbanos «a caminho» de bem como o avanço no Brasil (ordenação urbana de Vila Bela de Mato Grosso, ou de Vila Boa de Goi,ís no
Sacramento: entre 1673- l 681, a fundação «agrícola» do Desterr «sertão))t para conquista de novas áreas produtivas; e finaln1ente (e não por acaso a úlcin1a) a intervenção
, 0 4., em 1684 , o nuc
, leo d e
«à força» em Goa, sorvedouro permanente de divisas. Esta ülrirna acção, porém, parece ter sido desfasada das
Laguna (ambas cidades do actual estado de Santa Catarina)·, entre 1737- 1749 , o assenta- realidades locais, como terá sucedido com a contemporânea construção de uma fundição em pleno sertão de
mento inicial de São Pedro do Rio Grande 5,· e entre 1752 e 1772, a í'.uxaçao
-
em porto
Angola, a «Nova Oeiras», depressa arruinada e engolida pela vegetação ...
" Cf cartografia existente no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, Santa Clara,
Alegre6 (ambas cidades do actual estado de Rio Grande do Sul).
Lisboa: 1 - «Projecto para a nova cidade de Goa ... » (s/data, provavelmente estudo inicial de 1774-5, n.1241/
Mas na Índia o vice-rei Conde de Sandomil comunica à corte de Lisboa, em 1734, arm. !A-9-13. 2 - «Projecto da Cidade de Goa por José de Moraes Antas Machado, Sargento Mor de Infantaria
0
com o exercício de Engenheiro cm 1775» (n.1237/ arm. lA-9-13). 3- «.•. projecro para a nova Cidade de Goa
falhanço da _empresa de Mormugão, e propõe nova capital no local da actual (Pangim), em
[ ... ] por João Anronio Águia Sarmento Capitão de Infantaria com exercício de Engenheiro - Janeiro de 1777»
nova tentativa sem efeitos práticos 7 , só concretizada décadas depois e (n.1240 /arm. lA-9-13).
, . pouco a pouco
(a transferenc1a do governo far-se-á só em 1827)·, finalmente , em 1774 (em p lena cnse
· de 'º Cf. cartografia do arquivo citado em 9 : 1 - «Planta iconográfica do sítio de Pangim [ ... ] tirou e dese-
8 nhou o Sargento Mór Engenheiro José de Morais Antas Machado com o Cappitão João António Águia cm
«queda do ouro» brasileiro) , um decreto pombalino ordena a reconstrução da «Velha Março de 1776» (n.1242/arm. lA-9-13); 2 - «Projecto para a nova Cidade de Goa se erigir no sítio de Pangim
[ ... J fez e desenhou José de Morais Antas Machado Sargento Mór de Infantaria com exercício de Engenheiro em
3
Março de 1776» (n.1236/ arm. lA-9-13).
Cf. La Vieille Goa, por A. C. Germano da Silva Correia, de 1931 ed. Jaime Rangel B t . I' d" 1· . 11
Segundo a obra citada em 3, D. José Pedro ela Câmara é o Governador que no período de 1775-1777
ond
0
,eClto
t sereadºt~menram . . ' ~ , as01a,n ia, 1v10
mmuc10samenre as peripécias desta primeira tentativa de mudança da capital goesa: refere
e 22-3-1687 que« ... nous avons reconnu nécéssaire pour le service de Dieu et' N d
recebe as ordens de Pombal e as tenta aplicar, ordenando a execução de todos os planos e levantamentos referidos
atrás em 9 e 10 ; n1as possivelmente pesando a necessidade de não contrariar as ordens ((impossíveis>) de Lisboa con1
la ville de G 1 _ a ous e transporter
d' 1 1 doa pour e mont _de Mormugao et dans ce dessein fairc consrruire là Je Palais des V. Rois, le cour
appe, a ouane et !e chant1er des constructions navales».
a evidência de uma cidade-fantasma insalubre, arruinada e falida, tentou a via da ambiguidade« ... ce gouverneur,
4
malgré les ordres urgenrs qu'on !ir en la dépêche officielle signée à Lisbonne !e 6 Mars 1779 [erro, o ano terá de
Cf. Glauco Carneiro, Florianopólis, roteiro da Ilha .Encantada ed Museu de Art d s- p 1 ser 1774] parle secrétaire d'Etat pour les colonies, Martinho de Mello e Castro, agir avec une résistence dissimulée,
5 Cf
M · I . . . . , · e e ao au o.
. · ana ,uIZa Bertulm1 Queiróz, A Vila do Rio Grande de São Pedro J 732-1822 ·d F d - U · au lieu de monrrer l' absolue obéissance.»
s1dade do Rio Grande, 1987, Rio Grande. 'e . un açao rnver-
Quanto às casas construídas, serão provavelmente as que o plano de 1775 indica como «as casas novamen-
6 Cf. Riopardense de Macedo, Porto Alegre, História e Vida da Cidade ed. Universid·ide F d 1d R te edificadas», em 4 quarteirões a norte, junto do Rio Mandovi e a poente do arco dos Vice-Reis (contamos 17),
Grande do Sul, 1973, Rio Grande. ' ' e era O 10
7
e as quais se referirá a obra citada em 3 «Mais, malgré tous ces obstacles, il (le gouverneur) avait réussi à faire
3
Cf. obr_a citada em : «Sire - apres avoir dépensé pendam treme ans Ia somme de 600 000 xerafins our construire, lors de son départ pour l'Europe, treize maisons nouvelles aux abords du fleuve.» Embora não referi-
les travaux, qu1 par ordre de Vorre maJesté onr' ré executés à Mormugaõ por que la c"r' l G . ,P dos explicitamente no plano de 77, os quarteirões rigorosamente rectangulares, diversos dos antigos, correspondem
t ' 1 · ,, , , < ' " 1 e ee oa prnsse etre y
ransportee par es ra1sons qu a 1 epoque du vice-roi conte D'Alvor semblaient ut1'1es t , . sensivelmente aos do levantamento dos anos 1950, publicado na obra Goa e as Praçt1s do Norte por Raquel Soeiro
d' " e necessaues, rous ces
epenses et travaux som perdus. [ ... ] leme du 29 Janvier 1734». ele Brito (ed. Junta de Investigações do Ultramar, 1966, Lisboa), já sem quaisquer construções, mas cujos alinha-
8
Crise iniciad_a em 1763, quando se assinala uma queda vertiginosa na navegacão do porto de Lisb mentos viários ainda são visíveis no local, actualmenre. Este discreto traçado será pois o único vestígio real de
246 que provoca de seguida a rápida diminuição das receitas do Estado (l 768-177l)· l . p b l oa, e
, a e a reage 01n a corn uma toda a empresa setecentista1 247
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS ÍNDIA E SUL DO BRASIL

tão, novo decreto real (20-2-1779), já no reinado de D. Maria I, determina obras infra- que tomou a forma de Provisão Real, em 9 de Agosto de 1747 18 • Nele se refere, com um
12
-estruturais urgentes e prévias ; de novo incumpridas, as ordens reais deixam de ser enviadas, e, rigor e pormenor inovadores na legislação portuguesa, que no «Sítio destinado para o
a partir de 1782, à maneira bem portuguesa, o assunto entra num esquecimento gradual ... lugar se assinalara um quadrado para a praça de quinhentos palmos de face, e em um dos
lados se porá a igreja, a rua ou ruas se demarcarão ao cordel com largura ao menos de
quarenta palmos e por elas e nos lados da praça se porão as moradas por boa ordem ... ».
Portanto, praça quadrada, com implantação central no conjunto urbano, geradora de e
A legislação «urbanística» envolvida por uma retícula de quarteirões edificados, separados por arruamentos de medi-
da constante.
Se as instalações no Sul do Brasil (o caso da penetração para o seu interior será objec- Comparando estas determinações com as áreas centrais e históricas de três das cida-
to de outros trabalhos) se iniciam na sequência da fundação de Sacramento, ainda nos des referidas, constata-se que nelas a medida de largura das respectivas praças é sensivel-
finais do seculo XVII, já a definição rigorosa das estruturas urbanas entretanto geradas e mente a indicada naquele documento (500 palmos é mais ou menos equivalente a 110
referidas (entre São Paulo e o Prata) parece avançar apenas com o surto de colonização das metros), e a colocação da matriz se processou como no documento, havendo uma modu-
décadas de 1730-50; este surto será em breve reforçado por população das ilhas atlânticas lação de quarteirões envolventes em retícula; porém, a do Desterro permaneceu aberta ao
dos Açores, a partir de 1748 imigradas, em casais, com o apoio da coroa, a pretexto das mar do lado nordeste, alongando as suas proporções; a de Laguna tem contorno irregular
fomes no arquipélago 13 • Iiatar-se-á, portanto, de uma colonização plenamente iniciada no a sudeste; e a de Porto Alegre sofreu um alargamento provisório a poente, depois realinhado
período joanino, como parecem confirmar as datas da urbanização definitiva dos núcleos com a medida certa.
principais: Alterações de pormenor, de acomodação ao sítio, que se podem explicar quer pela
- DESTERRO (actual Florianópolis): capitania instalada em 1739; pedido de gentes forte componente rural dos povoadores, pouco adaptados ao rigor da medida urbana e ao
ao Concelho Ultramarino em 1742; chegadas massivas de emigrantes entre 1747 e 1756 14_ sentido moderno da ordenação, quer pelos seus próprios hábitos de instalação no territó-
- LAGUNA: não dispomos de informação precisa, mas os aspectos da morfologia rio, seguindo a velha tradição urbana ribeirinha e orgânica portuguesa do Atlântico. Isto
urbana apontam para uma data posterior a 1747. sem desprezar os condicionamentos morfológicos provavelmente impostos pelas preexis-
- SÃO PEDRO DO Rro GRANDE: vila em 1747; câmara em 1751; igreja matriz em tências em cada local, que lá tinham povoadores instalados aquando da chegada dos
1752-5, «construída logo após a marcação das primeiras ruas da cidade» 15. açonanos.
- PORTO ALEGRE: fundação em 1743 por colonos açorianos 16; de 1752 a 1772, Em termos gerais, o modelo fornecido pode situar-se ou enquadrar-se no da funda-
crescimento do espaço urbano, com ordenação neste ano 17 • ção de cidades de dimensão média, se tomarmos como padrão o dimensionamento de Vila
O documento «fundador», o que indica uma forma urbana precisa para as novas Real de Santo António (vila, urbe de pequena dimensão, com praça de 250 palmos) em
povoações - e muito provavelmente aplicado directa ou indirectamente a todas elas - , 1774, ou o da reedificação de Lisboa (cidade de grande dimensão, com praças de 1000
será, na sequência da carta régia de 1746, autorizando e regulando a migração açoriana, 0 palmos), de 1756. E é, pela data, um precursor notável destes modelos reguladores.
O caso de Goa é mais concreto e isolado: os planos sucessivos de 1775 a 77 seguem

12
as ordens dadas pelo decreto de 1775, que determina a reinstalação do governador, do
Cf. obra citada em 3, ordena-se nesse decreto: «..• au Sénat de Goa: la prompte exécution des oeuvres de
Primaz do Oriente e dos aquartelamentos da cidade nas inúmeras instalações existentes
reconstruction de la ville et la canalisation de l' eau de Banguenim avec l élargissement et Ia clôture du réservoir
de la source et le dessechement du grand étang de Carambolims en divisam le terrain en lots à vendre pour la deixadas pelos Jesuítas aquando da extinção da sua Ordem, bem como a obrigatoriedade
:~lture des c~réales». O perigo e o medo das epidemias, a falta de água potável e sobretudo O peso de um século
de residência dos funcionários dentro da área da cidade, isentando os seus reconstrutores
ia em decadencra urbana (e financeira) tornava porém impossível na prática a execução destas medidas.
O processo de «desurbanização» então em curso, com instalação da população nos arredores rurais da cidade do pagamento de quaisquer impostos sobre os materiais empregues 19 • Mais específico so-
(a começar pelo próprio vice-rei), vai ser a resposta possível ao problema. bre o tipo de reconstrução pretendida é o despacho oficial de 6-3-1774, que prescreve o
IJ Cf. Riopardense de Macedo, obra citada em 6 .
14
Cf. obra citada em 4 • aproveitamento das ruas e casas ainda em bom estado, bem como das fundações para
15
Cf. colectânea «A Arquitectura no Rio Grande do Sul», vários autores. ed. Mercado Aberto, 1983,
capítulo sobre a arquitectura luso-brasileira, por Francisco Riopardense de Macedo,
16
Cf. Luis da Silveira, «Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar», ed. do Ministério do 18
Cf. Sara Regina Silveira de Souza, A Presença Portuguesa ua Arquitectunt da Ilha de Santa Catariua,
Ultramar, Lisboa.
ed. FCC Edições, 1981, Santa Catarina.
248 17
Cf. obra citada em 6 . 19
Cf. obra citada em 3• 249
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS fNDIA E SUL DO BRASIL

reerguer outras construções, além de medidas de secagem dos pântanos e de canalização de alguns palácios e igrejas. E são os mesmos autores dos planos de reconstrução megalómanos
água potável. Mas o mesmo documento também aponta para a necessidade de executar a propor, em 1776, com um realismo pragmático inesperado talvez aqui deixando transparecer
um plano novo, com sentido prático e de eficácia 20
• Destas ordens devem ter resultado os a vontade das autoridades locais, «antipombalina» - uma retícula rigorosa para o novo
planos reedificatórios atrás referidos, «para a nova cidade de Goa», que aqui se comentam local, agora com dimensões bem humildes, de cidadezinha costeira, onde se indica a instala-
resumidamente: ção dos serviços essenciais (Arsenal, Casa da Moeda, Tribunal, Quartel, Mercado, Hospital e
1- Estudo sem data (1774-5?): apresenta uma geometria ainda incipiente, pro- residência do Governo), tudo girando à volta de um «largo do Pelourinho» com dimensões
curando de algum modo aproveitar a estrutura existente - tentando assim certamente (à volta de 350 palmos) pouco maiores que as da Praça de Vila Real do Algarve 23 •
interpretar à letra o despaqho tle Lisboa; sugere de modo embrionário a criação de algumas Nesse ano de 1776, o ruir de uma das torres da velha Sé de Goa, fulminada por um
praças novas. raio 2
4, deveria ter chamado os intervenientes à razão; porém a indecisão entre as duas
2- Estudo de 1775: apresenta uma retícula rigorosa, com quarteirões alongados no atitudes continuou, e viria a ser fatal: nem um nem outro plano foi implementado a sério,
sentido este/ oeste: indica 17 casas já construídas; despreza a rede viária existente, respei- e Pangim, como nova capital inevitável (oficialmente reconhecida como cidade em 1843),
tando apenas os grandes monumentos; apresenta 4 grandes novos largos (Bom Jesus, São só se afirmará gradualmente, sem seguir o plano racional então desenhado, e apresentando
Caetano, Palácio dos Vice-Reis e outro junto ao rio). Mais coerente que o estudo anterior. como consequência, em meados do século XIX, uma malha grosseiramente reticulada,
3- Estudo de 1777: este é o plano mais interessante, mas ao mesmo tempo O mais definidora de uma estrutura funcional menos clara.
21
ambicioso e utópico; inclui uma justificação descritiva , com preocupações higienistas:
apresenta retícula rigorosa, que abrange agora uma extensão maior; dá as dimensões das
ruas novas (60 palmos, como as da Baixa de Lisboa!); divide a cidade em três sectores_
parte velha (com as praças existentes regularizadas), a nascente, parte central, com uma Uma tipologia sistematizadora
«Grande Praça» ligada à Ribeira e ao Arsenal, e parte a poente, à volta do rio Banguenim,
com outra «Grande Praga Nova», «onde com facilidade se pode virar água do rio, como O rigor métrico com que os planos dos núcleos urbanos referidos se apresentam,
veio em outro tempo». Tem preocupações funcionais evidentes, e indicações de detalhe quer recorrendo à leitura da legislação respectiva e a observação dos documentos desenha-
preciosas22 • dos na época de fundação, quer aos seus vestígios actuais no espaço urbano edificado,
A imagem de referência destes estudos parece ser a da Nova Lisboa de Pombal, inicia- permite-nos confirmar a constância de alguns aspectos, comuns a todas as fundações:
da depois de 1755: quer pela largura dos arruamentos, quer pela escala global do empreen- 1- Existência de uma retícula à parte rigorosa em termos de geometria euclidiana,
dimento. Basta ver que as duas grandes praças novas do plano de 1777 têm as dimensões por vezes deformada na execução devido a factores externos;
do Terreiro do Paço e do Rossio Lisboeta - passam dos 1000 palmos! Documentam 2- Existência de praças centrais aos núcleos e definidoras dos mesmos;
assim uma vontade irrealista do poder central na reconstrução da velha metrópole à escala 3- Utilização de uma modulação-base, que regra sistematicamente as praças referidas.
de um passado irrevogável. Comparando os casos das urbes coloniais estudadas aos das fundações metropolita-
Mas curiosamente, e entre a realização dos trabalhos, e também executado um plano para nas suas contemporâneas, é possível definir um agrupamento tipológico, tendo como base
a «Nova Goa» em Pangim, sítio mais salubre e perto da costa do Índico, onde apenas existiam de definição dessa tipologia a métrica das suas praças centrais.
O estabelecimento dessa métrica fez-se a partir da medida de comprimento decimal
de 107.8 metros (500 palmos), dimensão cabalística equivalente em palmos (medida uti-
°Cf obra citada em J, reza o despacho: «Outre cela il !ui était recornmandé d' effcctuer la elite réédification
2
lizada na época estudada) a múltipos simples de 0.2156 m (que é o valor aproximativo no
selon un plan, quoiqu'un peu différent de l'ancien, mais plus modeste, sans grans palais, ni bâtimencs sistema decimal de um palmo),
monnrnentaux, em commençant par la quartier le plus cornmercial et necess:füe à la population et aux services
du gouvernement.» Seria esta ideia a gerar os quatro quarteirões geométricos indicados corno edificados no plano 1- 1000 palmos x 0.2156 = 107.8 x 2 metros(= 215.6 metros)
de 1775? '
21
2 500 pamos x 0.2156 = 107.8 metros
3
. Cf. documento referido na nota': «Estão as ruas dispostas, segundo o terreno, e mais obstáculos 0
3- 250 palmos x 0.2156 = 107.8: 2 metros(= 53.9 metros)
perrrntern de sorte q~e as casas parti~ipern o noroeste, hurnas pela freme, e outras pelos fundos, que e vento quase
cont1nuada1nente existente neste p~us, e suaviza o grande ardor do clima.»
22
• Como a que se refere à preocupação maior dos Vice-Reis e governadores, a da mudança da residência
oficial para fo~a da msalubre e mortífera Goa: «Palácio dos Srs. governadores que agora se quer mudar» é a
23
Cf. documento 2 referido na nota 'º
250 legenda Junto a praça velha do «Arco dos Vice Reis» (cf documento 3 referido na nota').
24
Cf. Velhd God - Guia Histórico, ed. Goa, 1952. 251
ÍNDIA E SUL DO BRASIL
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

Assim se obterão três grupos principais de dimensionamentos, com uma variante:

1- Os planos que apresentam praças cujas dimensões são múltiplos do quadrado de


107.8 m de lado correspondem aos ESPAÇOS PRINCIPAIS DE CIDADES CAPITAIS: Terreiro do
Paço, Lisboa (107.8 x 2 / 107.8 x raiz 2)
Rossio, Lisboa (107.8 x 2)
Esquemas
«Grande Praça Nova», Goa, proj. 1777 (107.8 x 2 e 107.8 x raiz 2) de interpretação das plantas
2 - Os planos que apJesôitam praças centrais com 107.8 m de lado correspondendo das praças das Amoreiras,
Lisboa, Praça Pelourinho,
normalmente a ESPAÇOS PRINCIPAIS DE CIDADES DE DIMENSÃO MÉDIA: Nova Goa e de Vila Real
praças de Desterro (depois de 1747) de Santo António.

Laguna (depois de 1747)


Porto Alegre (1772 ?)
«Praça Nova», Goa, projecto de 1777
3 - Finalmente, os planos que apresentam praças com metade de 107.8 m de lado
(53.9), habitualmente ESPAÇOS PRINCIPAIS DE PEQUENOS NLJCLEOS URBANOS (ou espaços se-
cundários de núcleos maiores):
Sacramento, Uruguai (depois de 1680) ,':;

1
Porto Covo, Alentejo, aldeia piscatória (d. de 1750)
«Praça Nova» junto à Ribeira, Goa, proj. de 1777
Como variante deste último gabarito surgem as praças de Vila Real de Santo António
(1774), no Algarve 25 , da urbanização industrial dos arredores de Lisboa (Amoreiras) e de
Nova Goa-Pangim (plano de 1776) na Índia, casos em que ao quadrado gerador com 53.9 Esquemas
de interpretação das plantas
metros, ou seja, aos 250 palmos de lado, se juntam duas medidas de 40 palmos (corres- das praças de Porto Covo,
pondentes às ruas), perfazendo um total de 330 palmos de lados, ou seja, de 71, 1 m entre de Colónia, de Sacramento
e da Praça Pequena de Goa.
fachadas. As medidas das ruas, variando entre dois tipos fixos de 40 e 60 palmos, parecem
ter servido nos planos setecentistas como «regularizadoras» métricas das diversas redes
proporcionais.
Concluindo, verifica-se pela análise métrica efectuada, tanto o rigor como o inter-
-relacionamento (em planos tão díspares e para locais tão distantes), de um saber técnico e
clássico em simultâneo, dominado pelos engenheiros militares ao longo destes séculos e
afirmado pragmaticamente pelo poder no processo urbanizador metropolitano e colonial. ILJ L

Esquemas
de interpretação das plantas
25
O projecto pombalino desta vila foi detalhada e aprofundadamente estudado por Horta Correia, em das praças de Laguna
253
252 tese de doutoramento publicada em l 997 por FAUP Publicações. e de Porto Alegre.
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CIDADES E VILAS POMBALINAS


NO BRASIL DO SÉCULO XVIII*
Esquemas
de interpretação da planta MARIA HELENA 0cm FLEXOR
da praça do Desterro Universidílde Fedem! díl BcZhiíl
e Esquema Régio.

Esquemas
de interpretação das plantas
das praças do Rossio
e do Terreiro do Paço.

,-------~~\ \
\
Esquemas
de interpretação das plantas * Comunicação apresentada na X'-/ Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica em Julho de
254 1995 e publicada in ANAIS da XV Reunião da SBPH. Curitiba: SBPH, 1996, pp. lü9-l l5.
da praça de Goa.
O 'fratado de Limites de Madri, de 1750, desencadeou uma série de ações do governo
luso em relação a seu Reino. Até o Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, sucederam-se
fatos importantes que transformaram as feições do Brasil. Como se sabe, esses limites
cronológicos compreenderam o reinado de D. José I e a ação de seu ministro, Sebastião
José de Carvalho e Melo, o discutidíssimo Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal.
Este procurou desenvolver um programa de reorganização económica, social, administra-
tiva, judicial e, sobretudo, política.
Assim, podemos citar, cronologicamente, alguns desses fatos no Brasil: levantamen-
tos cartográficos e formação de comissões de limites, proibição de exportação de negros,
criação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, organização das quatro capitanias subal-
ternas ao Grão-Pará e Maranhão, sediando o governo em Belém, introdução de sementes
não-nativas e fomento à indústria extrativa do Amazonas 1, estabelecimento de côngruas
para os missionários, boicote ao contrabando, criação da capitania de São José do Rio
Negro (Amazonas) (com resgate de índios e criação de aldeias, Rio NEGRO, c. 1, doe. 9) e
incorporação de outras capitanias à Coroa2 • Foi dada a lei de liberdade de comércio e de
bens individuais aos índios, com vantagens e prémios àqueles brancos que casassem com
índias 3 (e aos seus filhos foi proibido chamá-los caboclos), igualando-os em tudo aos ou-
tros vassalos. Ordenava-se que se «desterrassem os nomes bárbaros das aldeias, trocando-se
por outros dos das vilas civilizadas» (COLÓNIA, m. 603, e. 32, fl. 28v; 32) 4 e a implantação
da língua portuguesa, no lugar da língua geral criada pelos jesuítas, e educação dos índios,
colocação de índios na administração municipal, criação da Companhia Geral do Grão
Pará e Maranhão5, criação da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, estabelecimen-
to do Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão 6 , introdução de medidas-padrão de
Lisboa, moralização na venda de ofícios, criação da Junta de Justiça e Guerra do Pará,

1
Em 1772 foi fundada a Academia Científica do Rio de Janeiro, por iniciativa de José Henriques Ferreira,
pelo Marquês de Lavradio, para estudar a transplantação de vegetais úteis e fomento da indústria agropecuária.
PINTO, 1987, p. 151.
2
É confiscada a Capitania de Porto Seguro, em 1759, em virtude da acusação feita ao Conde D. José de
Mascarenhas, da Casa de Aveiro, um dos incriminados no atentado a D. José I.
3
Entre os prêmios incluía-se o Hábito de Cristo.
4
Vide também PARA O GOVERNADOR, 1755, fl. 6v.
5
Em 1754 Mendonça Furtado sugeria que se criasse uma companhia para introdução de negros no Brasil.
PARA O GOVERNADOR, l 755, fl. 2v, e que se transformaria na Companhia do Grão-Pará e Maranhão, sob
a proteção régia e projeto do Conde de Oeiras.
6
Abolido em 1798 depois de muitos abusos. 257
UNIVERSO LJRBANfSTICO PORTUGUÊS CIDADES E VILAS POMBALINAS

expulsão dos jesuítas, abertura de caminhos terrestres, recriação da Aula de Engenharia do Até que os indígenas fossem capaz~s de se inserir na sociedade civilizada, deviam ter
Pará, mudança da capital para o Rio de Janeiro, recenseamentos7, criação da Companhia um diretor em cada vila, eleito na comunidade, com funções mais de orientação e instrução
de Pesca da Baleia das Costas do Brasil, criação de comarcas e ouvidorias, criação de tropas do que de administração. Bondade e brandura foram insistentemente recomendadas.
regulares, auxiliares e ordenanças com a extinção da Companhia de Privilegiados da No- Só em 1767 o Ouvidor José Xavier Machado Monteiro dava a conhecer, para Porto
breza, construção de fortalezas, melhoria da técnica agrícola - como uso de estrume e Seguro, as «Instrucções para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro que os
arado-, importação de negros para a região norte, proibição do exercício dos ourives do seus Directores hão-de praticar em tudo aquilo que se não encontrar com o Directorio dos
ouro e da prata e fabricação de sedas e algodões, proibição de sítios volantes, continuação índios do Gram Pará» (IDEM, pp. 373-377). O mesmo Diretório serviu para nortear a vida
da introdução de casais a~ri;hos e madeirenses no Sul e várias partes do Norte e Nordes- nos núcleos paulistas (FLEXOR, 1989, p. 13) e de todas as demais regiões brasileiras.
te, anexação e desanexação de capitanias etc. 8
, Algumas aldeias foram reurbanizadas, outras mantiveram o traçado jesuítico, ou de
Além dessas ações, o governo português criou núcleos urbanos que, num primeiro outros missionários, e alguns núcleos foram implantados totalmente novos sob a forma de
estudo, denominamos núcleos planejados, enfocando as regiões equivalentes às antigas vila ou cidade, povoação ou lugar. A Lei de 4 de abril de 1754 previa ser «muito conve-
capitanias de São Paulo e Porto Seguro, cujos resultados estão publicados (FLEXOR, 1989) niente se augmentar a Povoação nestes domínios» (COLôNIA, m. 603, c. 32, fl. 30v).
e já foram apresentados em outros eventos. Roberta Delson estudou algumas vilas em sua O principal interesse se centrou nas regiões norte e sul, onde a questão de limites era
publicação, de 1979, ao tratar de Mato Grosso (DELSON, 1979) e Renata Malcher de mais frágil. Para o Norte foi mandado, como Ministro Plenipotenciário, para execução do
Araujo trabalhou a região amazônica (ARAUJO, 1992). O Prof. Luís Henrique Dias Tavares tratado de demarcação, iniciada a partir de 1754, francisco Xavier de Mendonça Furtado,
já apresentou, na XIII Reunião da SBPH, de Florianópolis, trabalho sobre a situação so- irmão de Pombal, que, desde logo, começou a informar à Metrópole sobre os pormenores
cioeconômica dos índios da Vila de Abrantes (Bahia), criada dentro desse programa de da verdadeira situação em que se encontrava a região, duzentos e cinqüenta anos depois do
ocupação e povoamento do território brasileiro (TAVARES, 1993: pp. 141-143). descobrimento do Brasil.
Ao libertar, teoricamente, os índios - Leis de 6 e 7 de junho de 1755 e Alvará de 8 de A partir dos últimos anos da administração de Mendonça Furtado, a arrancada
maio de 1758 - , a Metrópole ordenou a elevação de antigas aldeias, as maiores a vilas e as povoadora incorporou ao domínio do Grão-Pará uma extensa área geo-econômica repre-
menores a lugares ou povoações, desmembrando-as de outras Câmaras, entregando sua sentada pelos vales dos rios Tapajós, Mearim, Itapicurú, Guru pi, Guamá, Madeira, Ama-
administração governo econômico, político, judicial e militar - aos índios com o zona, Negro, Branco e Campos de Marajó.
intuito de, na prática, civilizá-los, integrá-los na sociedade dos brancos num núcleo urba- Na realidade, a Metrópole seguia as sugestões de Mendonça Furtado que, através de
no para, assim, povoar e tomar conta do solo. Visava-se fortificar a Monarquia libertando cartas, desde 1752, visava realizar esse programa. Uma resposta do Conde de Oeiras, de
os índios, mas baseando-se nas teorias de Jean-Jacques Rousseau, sobre a origem e funda- 14 de março de 1755, dizia que Sua Majestade resolvera «reduzir as Aldeyas, e Fazendas e
mento da desigualdade entre os homens, dissertação apresentada na Academia de Dijon, Villas, em Povoações Civis e tomara a mesma Rezolução a Respeito da liberdade dos Ín-
em 1755 (COLôNIA, m. 603, e. 32, fl. 20v), e, especialmente, na teoria da inocência dos dios na conformidade de certa Doutrina de Solozano», a qual Mendonça Furtado sugerira,
primitivos. A liberdade dos índios, portanto, ainda era fictícia, pois estavam sujeitos ao em 8 de novembro de 1752, permanecendo ainda em segredo esse negócio até que aquele
Diretório que aplicava entre os índios a prática corrente em alguns lugares da Europa e de ministro Mendonça Furtado - se recolhesse ao Pará (PARA o GOVERNADOR, 1755,
Portugal, estabelecida pelas Ordenações, pela qual os filhos órfãos de pais mecânicos ou fl. 2: CARTA FAMILIAR ... Códice 113930, fl. 3lrv).
pais vivos dementes deviam aplicar-se aos mesmos ofícios mecânicos ou trabalhar a solda- Para as outras regiões também foram mandados, ou mantidos, homens de pulso e de
da. «O mesmo parece justo que se observe com os filhos de índios ainda que tenham pays confiança que permaneceram em seus cargos por tempo superior ao previsto legalmente.
vivos; porque por dementes e prodigos se reputam governados por Directores como seus O próprio Mendonça Furtado trabalhou de 1751 a 1759, Gomes Freire de Andrada, 0

tutores» (ANNAES, v. 32, p. 373). Morgado de Mateus, e vários ouvidores, foram outros exemplos de longa permanência9 •
Algumas vilas progrediram, outras tiveram dificuldades na própria implantação. Le-
vantamos cerca de 1900 documentos no Arquivo Histórico Ultramarino, Biblioteca Na-
7
Já em 1761 fora determinado pela Junta de Comércio aos governadores das capitanias que fornecessem, cional da Ajuda e Biblioteca Nacional de Lisboa, cujos microfilmes estão sendo rranscri-
esporadicamente, dados sobre o estado da capitania, indicando o número de brancos, pretos, índios e razões de
seu amnento ou diminuição.
8
Provavelmente a criação da Capitania Geral dos Açores, de 1766, fazia parte desse mesmo projeto. "Da mesma forma, também, ficou no poder de 1766 a 1776 D. Antão de Almada, na Capitania Geral dos
258 MENEZES, 1993, p. 322. Açores. MENEZES, 1993, p. 26. 259
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS CIDADES E VILAS POMBALINAS

tos, para buscar detalhes do projeto. Não identificamos os núcleos de algumas regiões, SÃO PAULO Instrução Régia de 23 de janeiro de 1765: São José da Paraíba do Sul,
porém, já podemos citar alguns exemplos, cronologicamente, na medida em que as datas São Luís de Guaratuba, Mogimirim, São Luís de Paraitinga, Piracicaba, Atibaia, Apiaí,
foram (ou não) identificadas: Faxina, Itapetinga, Sabauna, Lages;
MATO GROSSO - 1752: Vila Bela da Santíssima Trindade; PORTO SEGURO - Cartas Régias de 3 de março de 1765 e 1O de outubro de 1769:
MARANHÃO - 1755: Viana (8.7), Monção (16.7), Viçosa, Vinhais (1.8), São José de Belmonte, Verde (4.1.1759) (COLôNIA, m. 603, c. 35, fl. lv-5), Trancoso (Provisão de 19
Ribamar (5.8), São João de Cones (4.10); 1756: São José de Guimarães (19.1), São Miguel de fevereiro de 1759), Prado, Alcobaça, Viçosa (1768), Porto Alegre, São Mateus;
da Lapa e Pias (25.4), Nossa Senhora Tresdela (7.6), Viçosa de Tutóia (1.8) (MEIRELES, BAHIA - 1754: Pombal, Soure (l 8.5); 1758: Olivença (11.12), Barcelos (28.12),
1980, pp. 177-178); Santarém (27.12); 1759: Abrantes (9.1), Almada, Tomar, Mirandela (TAVARES, 1993,
PARÁ E AMAZONAS - 1754 -vilas: Bragança, Ourém (instalada a 29-5-1762); lu- p. 141; COLÔNIA, m. 603, c. 14, fl. 14,34);
gar: Turiassu; 1755: Cintra (6.6); Nova dei Rei (6.6); 1756: Borba (l.l); 1757 - vilas: ESPÍRITO SANTO - 1766: Benavente, Almeida;
Monforte, Salvaterra, Monsaraz, Soure; lugares: Muana, Odivelas, Rebordelo, Colares, SANTA CATARINA - 1750: São José, São Miguel, Enseada do Brito, Santo Antônio,
Condeixa; 1758 - vilas: Oeiras (20.1), Monte Alegre (28.2), Alter do Chão (7.3), Boim Rio Vermelho, Lagoa, Ribeirão;
(9.3), Pinhel (9.3), Santarém (14.3), Franca (17.3), Óbidos (22.3), Borba-a-Nova (14.4), Rio GRANDE DO SuL - 1752: Porto Alegre (Porto dos Casais), Rio Pardo; 1753:
Barcelos (7.5), Tomar (13.8), Pombal, Veiros, Souzel, Porto de Mós (16.9), Alenquer, Viamão, Cachoeira; 1757: Santo Amaro; 1762: Piratini; 1764: Taquari; 1773: Triunfo,
Beja, Chaves, Conde; lugares: Faro, Moura, Poiares, Carvoeiro, Moreira, Lamalonga, São Mostardas, Osório; Encruzilhada, Aldeia dos Anjos, Caçapava, Morro Grande.
Domingos da Boa Vista, São Miguel de Guama, São José de Macapá, São Sebastião da Para estas últimas duas regiões foram tomadas as datas de instalação dos açorianos e não da
Boa Vista, Sousel, Nossa Senhora da Conceição do Viseu, Cerrazedo, Outeiro, Mondim, criação das vilas. Ainda não foram identificadas as vilas das regiões do Rio de Janeiro, parte do
Vilarinho do Monte, Vilar; 1758: aldeia Cauára; 1759 - vilas: Serpa (15.8), Olivença Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e o Centro-Oeste.
(15.8), Ega (15.8), Silves (15.8), Alvaraens, Alvelos; lugares: Airão, Castro de Avelãs, Fon- Para essa tarefa foram enviados para a Bahia, por exemplo, os conselheiros José
te Boa; 1759: povoação de São Francisco Xavier de Tabatinga; 1760 - vilas: Rebordalos; Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo e Manoel Estevão de Almeida de Vasconcelos
lugar: São José de Marabitenas; 1761 - vilas: Vigia; povoações (23.5): São José, São Barberino. Formaram, sob a presidência do Conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha, Vice-
Pedro, Santa Maria, Santo Antônio, São João Batista, Santa Isabel, Senhor da Pedra, Nossa -Rei do Brasil, e com o Desembargador do Tribunal da Relação, Antônio de Azevedo Coutinho,
Senhora de Nazaré, São Sebastião, São Francisco Xavier; 1763 - lugares: Vistosa de Nos- o Tribunal do Conselho de Ultramar, para superintender a criação das vilas, compreendidas
sa Senhora da Madre de Deus, São Gabriel da Cachoeira; 1766 - lugar: Tabatinga; na Carta Régia de 19 de maio de 1758 (TAVARES, 1993, p. 141; CoLôNIA, m. 603, e. 14).
1768 - povoação: São Fernando; São João Batista do Faro, Baião; 1769: Nova Mazagão 10 ; Uma das observações feitas por esse Conselho é que o novo Pároco não deveria ter a menor
1772 - povoação: Macarabi; 1773 - lugar: São Matias; 177 4 - povoação: Santo Antô- ingerência no governo político, caso contrário «seria concorrer para o mesmo abuso» dos
nio do Castanheiro Novo; 1775 povoação: São Joaquim (DIAS, 1971, pp. 491-492; jesuítas, devendo-se manter, para isso, ministros e magistrados civis nas vilas.
ARAUJO, 1992, pp. 221-227); Qualquer aldeia indígena devia ser elevada a vila, mesmo as da administração de
SERGIPE - Carta Régia de 8 de maio de 1759: Távora que, por ordem do Conselho outros religiosos, pois «tinham igual merecimento» que aquelas das aldeias dos jesuítas,
Ultramarino, de 24 de abril de 1759, mudou para Tomar do Geru; porque das 32 aldeias, apenas 9 eram da administração destes e 23 «ficarião privadas das
CEARÁ- Carta Régia de 19 de junho de 1761: Montemor-o-Novo; 1761-1766: Icó, utilidades que rezultão das novíssimas Leys, que V. Mag." foi servida mandar publicar
Aracati; neste Estado» (COLÔNIA, m. 603, e. 4).
PIAUÍ Carta Régia de 29 de julho criou a Capitania do Piauí 11 ; CR de 19 de junho A criação dessas vilas coube, de acordo com a região, a ouvidores e corregedores de
de 1761 - cidade: Oeiras; vilas: Panangoá, Jeromenha, Valença, Marvão, Campo Maior, comarca, capitães-generais, capitães-mores, juízes de fora, ajudantes de ordens, bispos.
São João da Parnaiba (PIAUÍ, c. 7, d. 13); O próprio Conde de Oeiras dava um parecer a uma carta do Morgado de Mateus, de 17 de
setembro de 1765, mandando os aventureiros (bandeirantes) ir fundando povoações para
além da Serra de Apucarana e civilizando os índios que fossem encontrando, dando-lhes
1
" Encontra-se a sua origem na imigração forçada das famílias de Mazagão, do Marrocos para o Pará, ferramentas, criando vilas e aldeias como o tinha feito o Governador Francisco de Men-
iniciada em setembro de 1769. DIAS, 1971, pp. 491-192.
11
A Carta Régia criava a Capitania de São José do Piauí, com sede na vila de Macha, elevada à categoria de
donça Furtado, no sertão do Pará (RJHGB, v. 5, pp. 355-356). O exemplo do Grão-Pará e
260 cidade com o nome de Oeiras, subordinada à Capitania do Maranhão. Maranhão deveria ser seguido por todo o Brasil. 261
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS
CIDADES E VILAS POMBALINAS

12
Na Bahia , para acelerar os estabelecimentos das vilas, 13 ao todo, encarregaram-se Ainda em 1765, por carta de 26 de janeiro, o Conde de Oeiras mandava para o Vice-Rei do
vários ministros. A,sim, por exemplo, nas aldeias do Distrito da Capitania de Ilhéus o Estado do Brasil, Conde da Cunha, artigos das Instruções para que se fundassem novas vilas,
Ouvidor e Corregedor da Comarca da Bahia, Luiz Freire Véras criou Olivença, Barcelos e tanto nas aldeias dos índios, quanto em outros lugares que fossem tidos como próprios para
Santarém nas aldeias de Nossa Senhora da Escada, das Candeias no Rio Maraú e Santo
essas fundações.
André no Rio Serinhaem, respectivamente. O Juiz de Fora da Vila da Cachoeira foi encar-
Criadas as vilas, em seguida, cumpriam as formalidades e elegiam juiz ordinário e de
regado de erigir Soure na aldeia de Natuba. O Ouvidor e Corregedor da Comarca de
órfãos, vereadores, e procurador do Conselho da Câmara para o ano, e os três seguintes,
Sergipe dei Rey, Miguel de Aires Lobo de Carvalho, encarregou-se de Pombal, Mirandela
conforme as Ordenações do Reino, Livro 1. 0 , título 67. Os índios podiam ser eleitos para
e Távora nas aldeias de Ca,riab'fava/Santa Tereza, Morcegos/Ascensão e N. Sr.ª do Socorro,
esses cargos, mesmo sendo analfabetos. Havendo índio que soubesse ler e escrever, ocupa-
respectivamente. Ao Capitão-mor da Capitania de Porto Seguro, Antônio da Costa Souza,
va O cargo de escrivão. Em muitos casos foram indicados portugueses, tanto para escrivão
e ao Ouvidor Manoel da Cruz Freire coube Trancoso e Verde nas aldeias de São João e da Câmara, quanto para tabelião de notas, escrivão do judicial e órfãos, de acordo com as
Espírito Santo/Patativa. A Francisco de Sales Ribeiro, Ouvidor e Corregedor da Comarca
próprias ordens reais. Caberia a estes ensinar os índios, com aptidão para isso, a ler e
do Espírito Santo, coube Benavente e Almeida nas aldeias de Biritiba e Reis Magos. Ao
escrever para, depois, servir o ofício. Se houvesse português casado com índia, este teria
Juiz de Fora do Cível da Bahia, João Ferreira de Bittencourt e Sá, coube Abrantes na antiga
preferência para o cargo. Os portugueses deveriam deixar o cargo assim que houvesse
aldeia do Espírito Santo.
pessoa índia apta, especialmente para evitar gastos para a Fazenda Real que pagava esse
Ficou faltando indicar Ministro para a aldeia dos índios Grem, que seria Vila de
serventuário enquanto português. Elegiam alcaide e porteiro, este para servir na Câmara e
Almada, por se esperar informações sobre a mesma (COLÔNIA, m. 603, c. 11, 15, 34). Por
nos auditórios judiciais e fazer as vezes, também, de carcereiro. O cargo de escrivão de
estar mais próxima de Salvador, a primeira vila instalada foi a de Abrantes, na aldeia do
alcaide era, quase sempre, exercido pelo escrivão da Câmara.
Espírito Santo de !pitanga. Nas outras se seguiu o exemplo.
Aproveitavam edifícios existentes, a maior parte deles da propriedade dos missioná-
Esses ministros deviam informar acerca da nação que compunha a aldeia, língua
rios, por serem os mais resistentes, para sede das Casas de Câmara e Cadeia ou as cons-
natural e origem, sobre a escravidão dos índios, situação jurídica das terras, localização,
truíam, provisoriamente, de taipa.
extensão, estado, vizinhos, comarca, distância da sede desta, número e tipos de casas, igre-
No meio da vila delineavam a praça onde erigiam o símbolo da fundação - o
jas, missionários e seus bens, irmandades e posição dos missionários face ao projeto, paga-
pelourinho - , a partir de onde estabeleciam o seu termo, demarcando-o, com os práticos,
mento de conhecenças e renda, presença ou visitação do bispado ou ministro de Sua Ma-
devendo esses limites alcançar a propriedade dos índios, segundo os títulos de doações
jestade, madeiras, fertilidade do solo, rios, rios navegáveis, clima, caminhos, número de
dados pelos monarcas anteriores. Seguiam o protocolo formal de instalação de vilas, dan-
habitantes por sexo, idade e estado civil, forma de governo e capacidade dos índios para o
do vivas ao Rei. Na repartição das terras deixavam baldios para pastagem de gado e
governo, existência de justiça e cartório, cadeia, forma e capacidade de subsistência, agri-
logradouros públicos.
cultura - roças, engenhos-, gado, pesca, postos militares, existência de oficiais mecâ-
Tanto em São Paulo quanto em Porto Seguro foram determinados os modelos de casas
nicos, quantos sabiam falar português, ler e escrever, se a aldeia tinha condições de se
(FLEXOR, 1989, pp. 23, 28) da mesma forma que D. José mandava, por Carta Régia de 19 de
tornar vila e se seria conveniente acrescentar moradores vizinhos não índios.
junho de 1761, que as vilas do Piauí e Maranhão não fossem construídas em desordem, mas
Um documento incompleto, de 28 de setembro de 1758, do Arquivo do Estado da
segundo plano traçado (PINTO, 1987, p. 145). Tanto nessa região como no Amazonas, no
Bahia traz a «Instrucção para a diligencia de Se erigirem em Villas as Aldeyas dos Índios»,
arruamento das casas dos moradores, se deveria delinear por linha reta, ficando as «ruas
contendo todas as recomendações acima, e mandando que a diligência principiasse depois de
largas e direitas». A, casas deviam ser «sempre fabricadas na mesma figura uniforme pela
publicadas as Leis de 6 e 7 de junho de 1755 e do Alvará de 8 de maio de 1758. Inclusive,
parte exterior, ainda que na outra parte interior as faça cada hum conforme lhe parecer para
recomendava que houvesse um ministro, encarregado da diligência, que assistisse às primei-
que desta sorte se conserve sempre a mesma formuzura na Villa e nas Ruas della a mesma
ras sessões da Câmara para ensinar sua rotina aos índios (COLÔNIA, m. 603, e. 21, 8 fls.).
largura que se lhes asignar na Fundação» (Rio NEGRO, c. 1, d. 9, fls. 362).
Boa parte das instruções já estavam contidas no Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão.
A noção de espaço dos portugueses, no entanto, diferia radicalmente daquela dos
índios. O Conselho da Bahia dizia que se devia evitar que os índios trocassem as terras, que
11
A Carta Régia, de 22 de julho de 1766, reafirmava as instruções para o Governador da Bahia, Conde de se repartissem, por aguardente, porque« ... não havendo até o prez[en]te notícia de q[ue]
Azambuja, criar vilas nessa Capitania. ANNAES, v. 32, p. 35.3; v. 36, p. 145. Já a 8 de outubro de 1758 a Bahia algum índio chegasse a ser Senhor de alguma porção de terra á parte, para se poder vender,
262 havia recebido a Provisão de 8 de maio de 1758 e o texto das leis de 6 e 7 de junho de 1755.
antes pelo contrario consta q[ue] São ambiciosíssimos de ter muitas terras, Sem emb[arg]o 263
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUF.S CIDADES E VILAS POMBALINAS

de não as cultivarem / como se vio nos de Abrantes q[ue] Sendo a extensão de Seis leguas que esta Povoação, por ordem que tenho de Sua Magestade, dizia o Morgado de Mateus,
quadradas, ainda pedião mais,,. (legível, rasgado),,. Legoas em quadro, vindo a querer que me dá licença para isso, se hade chamar a Vila de S. Luís (de Guaratuba) e a Igreja de
31 Legoas quadradas p[ar]a 40 vizinhos solitários/.,.,, (COLÓNIA, m. 603, c. 32, fl. 49). Nossa Senhora dos Prazeres» (DI, v. 67, pp. 122-123). O Ouvidor de Porto Seguro, Ma-
Caso os índios não possuíssem terras, seriam dadas aquelas previstas para a vila e seus chado Monteiro dizia: «todos os referidos nomes lhes assignei, huns respeitando aos sitias
confins, ou termos (determinadas pelo Alvará de 23 de novembro de 1700), mesmo tendo e outros a alguns particulares objectos». Esta própria vila era chamada Aldeia do Campinho
sesmeiros ou donatários, contanto que não fosse «propriedade notável, que se entende Ser «a que dei o nome de Vila Viçosa» (ANNAES, v. 32, pp. 207,212).
Engenho, ou alguã caza gr[an]de de nobre». Os embargos deveriam ir a Conselho. Os Em relação à Amazônia, Mendonça Furtado, em 1756, dizia que «enquanto não vem
arrendatários, sesmeiros e!'do;~atários teriam dois anos para deixar a terra, tempo suficiente o nome determinado pela Corte, segui a ideia de lhe impor os nomes das terras da casa de
para colher os frutos plantados. Bragança ... » Em outra correspondência, dizia« ... segui o systema de primeiramente extin-
A fixação dos índios nos limites da vila foi um dos problemas mais sérios enfrentados guir os nomes das vilas da Real Casa de Bragança que me lembrarão, logo alguãs da Coroa,
pelos ministros encarregados das diligências de fundação da mesma (FLEXOR, 1989, e imediatamente as das terras da Rainha Nossa Senhora, alguãs do infantado, e ultima-
p. 12). A deserção, como eram tidas as fugas dos núcleos urbanos, foi uma constante. mente as da Ordem de Cristo ... » (cit. ARAuJO, 1992, pp. 210-211). Muitas foram criadas
Indicavam e/ou construíam residência do pároco, deixando terreno e espaço para sua com o qualificativo de «nova» e muitos nomes repetidos em várias regiões.
lavoura. Elegiam, por votos, os oficiais de guerra e ordenança (COLÓNIA, m. 603, c. 35). Entre as dificuldades apontadas pelos promotores da criação das vilas e povoações
Estabeleciam taxas de jornais dos trabalhadores rurais e dos artífices e davam outras constavam: falta de gente e estágio de civilização dos índios, ignorância dos povoadores,
providências, como para a Vila Nova de Trancoso, atendendo a pedido dos próprios índios falta de oficiais mecânicos e instrumentos de trabalho, falta de material construtivo de
(IDEM, e. 35, f1. 3v; c. 34, fl. 1v). maior durabilidade, pobreza e falta de recursos, dificuldades administrativas e jurisdicionais,
Havendo igreja faziam inventário antes de entregá-la ao novo pároco nomeado ou corrupção e boatos, condições locais diversas e adversas, pestes de bexigas, etc.
faziam a capela-mor, por força do padroado, deixando à comunidade o cuidado do resto. Algumas das vilas e povoações foram abandonadas, outras permaneceram como pe-
Armavam os índios de pólvora e balas para se defender contra os inimigos que, geralmen- quenos núcleos, enquanto outras, ainda, chegaram à condição de cidade. Quase no fim do
te, assaltavam a vila para roubar as roças e ferramentas. período estudado, os Ouvidores davam notícias sobre a situação de cada lugar que nos per-
Os índios podiam admitir todas as pessoas que achassem convenientes, podendo mitem avaliar o projeto pombalino. Como aconteceu em Porto Seguro, com o Ouvidor José
expulsar aquelas «prejudiciais ou inúteis, vagabundos ou perturbadores» (IDEM, c. 32, Xavier Machado Monteiro, entre os anos de 1772 e 1773, que descreveu a situação das vilas
fl. 29). Os Conselheiros da Bahia, no entanto, achavam que seria mais conveniente que se ali criadas, também o Ouvidor e Intendente Geral, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio,
permitisse que alguns portugueses pobres fossem morar entre os índios para ensiná-los os descreveria, nos anos 1774 e 1775, a sua visita e correição nas povoações criadas na Capitania
princípios da civilidade, religião e formas de aproveitar a terra, baseando-se no provérbio de São José do Rio Negro (DIÁRIO, 1774-1775). Do Piauí tem-se notícias pela Descrição da
antigo que dizia que a pobreza produz amizades. «E vendo a aplicação dos brancos á Capitania de São José do Piauí, datada de Oeiras, de 15 de junho de 1772, feita pelo Ouvidor
Lavoura mais depressa se Sugeitarão ou por inveja, ou por interesse a este trabalho q[ue] Antônio José de Morais Durão (Mon, 1985, pp. 22-23), e vários outros.
tão naturalm[en]te os aborrecem, não parecendo ponderavel a razão de poderem enfra- O projeto fazia parte dos primeiros passos que caracterizavam o liberalismo oitocentista
quecer as terras, pois desde principio Se Seguiria Ser util á Monarchia o diminuir-se o e procurava fortificar o governo municipal e enfraquecer o poder eclesiástico, ao expulsar os
numero dos Povoadores de todas as cid[ad]es e Villas da America com o receyo de lhe jesuítas e, antes disso, estabelecendo côngruas para os missionários, criando as companhias
faltarem mantimentos, maxima q[ue] ja pertendeo hum Político anonymo em o Tractado de comércio e abolindo a escravidão dos índios. Na década de 70, o projeto começava a
q[ue], imprimia em Paris, no ano de 1756» (IDEM, f1. 33v-34v). Em vários lugares, além encerrar-se devido, sobretudo, às dificuldades financeiras e políticas, mas muitas vilas ti-
de usar o recurso de introduzir açorianos, madeirenses, ainda os ociosos e degredados nham sido criadas.
formavam o número de povoadores. Em São Paulo, desde logo, foram admitidos brancos
no povoamento desses novos núcleos (FLEXOR, 1989, p. 8).
Os nomes das localidades, todos portugueses, tiveram origens diversas. Uns já eram
determinados por Provisão como, por exemplo, Vila de Trancoso ou Ordem Régia, como
a cidade de Oeiras e vilas do Piauí (SANTOS, 1968, pp. 49-50). Já em outros lugares era a
264 própria autoridade local que dava sua denominação: «- suponho que Vossa merce sabera 265
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

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n. 83, pp. 89-94, 1961-1967. * A evolução urbana desta cidade foi tratada na nossa dissertação de Mestrado em Geografia Urbana, intitulada
Mariana: génese e transfórmação de uma paisagem cultural, defendida no Instituto de Geociências da Universidade
Federal de Minas Gerais, em 1995. A descoberta recente de novas fontes tornou necessária uma revisão da questão.
Este texto constitui uma versão, remanejada e acrescentada de novos dados e da iconografia, da comunicação
«Mariana e o urbanismo português do século XVIII», publicada nos Anais do IV SemintÍrio de História da Gdade e do
Urbanismo (Rio de Janeiro, PROURB/UFRJ, 1996). O acesso à iconografia e aos documentos conservados em
instituições portuguesas, aqui transcritos e reproduzidos, foi possível graças ao apoio da Fundação Calouste Gul-
266
benkian, à qual, mais uma vez, agradecemos.
Mariana foi considerada em diversos trabalhos como uma exceção em termos decida-
de colonial mineira, devido ao traçado regular de seu núcleo central, que contrasta com os
tecidos orgânicos, lineares e de formação espontânea de suas congêneres. Entretanto, pou-
co se escreveu sobre esta sua particularidade, resultante da intervenção atribuída ao enge-
nheiro militar português José Fernandes Pinto Alpoim, em meados do século XVJJI.
Através de um ensaio de reconstituição documental e cartográfica das etapas de forma-
ção da cidade, onde se privilegiou a questão do traçado urbano, neste estudo procuramos
determinar as estruturas preexistentes e os diversos fatores que justificaram e que ao mesmo
tempo condicionaram o plano de Alpoim, para a partir daí lançar algumas hipóteses sobre
seu teor e sua abrangência originais.
O processo inicial de formação desta cidade foi semelhante ao de outros núcleos
mineradores, apresentando os elementos já bastante evidenciados em diversos trabalhos
sobre as cidades coloniais mineiras, especialmente nas obras de Sylvio de Vasconcellos.
O aglomerado primitivo foi constituído pela justaposição de pequenos acampamentos
localizados ao longo do rio, junto às «catas», ou próximo às «grupiaras», nas encostas dos
morros. Por entre os «ranchos» de garimpeiros destacavam-se os edifícios religiosos, que
polarizavam a vida social do arraial. As vias principais prolongavam-se pelos caminhos que
conduziam a outros centros de mineração, formando traçados longilíneos, com ruas ora
acompanhando as curvas de nível ora vencendo encostas íngremes.
Todas essas características, algumas delas comuns às cidades litorâneas do período,
foram responsáveis pelas avaliações negativas do urbanismo colonial português (colocado
em situação de inferioridade em relação às implantações castelhanas na América), sendo
que os comentários de Robert Smith estão entre os mais citados:
«Nada inventaram os portugueses no planejamento de cidades em países novos. Ao
contrário dos espanhóis, que eram instruídos por lei a executar um gradeado regular
de ruas que se entrecruzam em torno de uma praça central, os portugueses não man-
tinham regras, exceto a antiga, de defesa através da altura. Suas cidades cresceram pela
vinculação gradual de núcleos isolados, formados pela fundação individual e arbitrá-
ria de capelas, casas e mercados. A posição desses edifícios ditava as trajetórias irregu-
lares seguidas pelas ruas que os uniam.» 1

1
R. Smith, «Arquitetura Colonial», citado por Mfoo Chicó, «A "cidade ideal" do Renascimento e as
cidades portuguesas da Índia», Revista Garcia de Orta, Lisboa, Junta das Missões Geográficas e de Investigações
do Ultramar, 1956, pp. 322-323. 269
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS DO ARRAIAL À CIDADE

Nas últimas décadas, essa abordagem «tradicional» tem sido revista em estudos que De fato, na região dos descobrimentos, as primeiras concessões de terrenos não se
afirmam, por um lado, a existência de intenções de regularização e de regulamentação em fizeram como em outras partes do Brasil, através de cartas de sesmarias. Estas vieram
diversos casos de urbanizações portuguesas e, por outro, de qualidades estéticas inegáveis depois, «como que a reboque das datas de mineração e dos primeiros acampamentos» 3, a
mesmo nas formações urbanas brasileiras de traçado irregular. fim de possibilitar o desenvolvimento de atividades agropastoris nesta região de difícil
Tomando o mesmo partido, no presente estudo procuramos evidenciar as medidas acesso, onde o abastecimento era bastante deficiente.
adotadas - a diversos momentos e por diversos agentes - , que tiveram como objetivo Ao invés da «légua em quadra» do sistema sesmaria!, a data de mineração era medida
exercer algum tipo de controle sobre a forma da cidade. Apesar de não se tratar, com toda segundo uma unidade bem menor, a «braça em quadra»\ sendo que o número de datas a
certeza, do único caso de i;11tefvenção regularizadora em Minas, Mariana constitui sem dúvi- serem destinadas a cada concessionário dependia do número de escravos a serem emprega-
da o exemplo mais visível e documentado, e seu estudo revela-se bastante rico pelo fato de dos nos trabalhos. Se, como afirmou Laura de Mello e Souza5, poucos foram em Minas
reunir dois tipos de urbanização que ocorreram no Brasil durante o período colonial. Gerais os grandes senhores de escravos e lavras, é de se presumir que poucas também
A reconstituição de seus estágios iniciais de arraial e Vila do Carmo, com suas formas tenham sido as grandes propriedades de terras minerais, sempre excluídas das glebas con-
irregulares e espontâneas, fornece pistas interessantes sobre a questão fundamental da pos- cedidas em forma de sesmarias.
se e da utilização do solo urbano, mostrando antigas tradições lusitanas sendo perpetua- As consideráveis quantidades de ouro descobertas por bandeirantes paulistas no Ri-
das - o direito de padroado, os foros, o pelourinho, os rossios. A análise da suposta beirão do Carmo, no final do século XVII, permitiram uma ocupação mais duradoura do
intervenção de Alpoim, por seu turno, permite conhecer melhor as concepções de cidade núcleo que deu origem à Mariana, enquanto que diversos outros acampamentos de mineiros
ideal dos engenheiros militares setecentistas, e sobretudo as do poder central, uma vez que na região foram rapidamente abandonados. Repartidas as lavras, o arraial de Mata Cavalos
o sítio, o traçado das ruas, os aforamentos, as residências e os novos edifícios públicos da foi se constituindo de toscas cabanas ao longo da praia do rio, e da primeira capela, não
cidade episcopal foram objeto de vários documentos trocados entre D. João V e as diversas menos rústica, dedicada à Nossa Senhora do Carmo" (Fig. lA). Já em 1701 o Bispo do Rio
autoridades civis e religiosas da Capitania de Minas. de Janeiro criou paróquia no arraial, o que indica que a população já havia alcançado um
Dentre estas diferentes instâncias de poder que intervieram na forma da cidade, cabe número considerável e que o núcleo já se achava suficientemente consolidado, merecendo
destacar o importante papel exercido pelo «Senado da Câmara», desde os primeiros tempos seu reconhecimento por parte da Igreja e, conseqüentemente, por parte do Estado.
da Vila e, mais particularmente, a partir de meados do século, quando os camaristas procu- Entretanto, segundo Diogo de Vasconcellos, os terríveis períodos de fome que assola-
raram pôr em prática as determinações metropolitanas relativas ao espaço urbano de Mariana. ram a região (descritos no célebre relato de AntoniF) vieram interromper o crescimento do
arraial do Carmo, que teria sido abandonado por duas vezes, entre 1697 e 1698, e depois
entre 1701 e 1702. Depois desta segunda deserção, os serviços de minerar do extinto
arraial foram retomados pelo português Antônio Pereira Machado (fundador de dois ou-
Os anos pioneiros do arraial do Carmo - instituições, parcelamento, tros arraiais do «circuito do Carmo», Bonfim do Mato Dentro e Antônio Pereira), que
configuração urbana havia adquirido as datas e cabanas situadas perto da foz do córrego Lavapés (hoje chamado
do Seminário). Instalando-se no local, construiu, em 1703, «.•. logo ao pé de sua casa, ou
A questão da posse e da distribuição da terra é fundamental para a compreensão do pouco acima, no planalto, uma ermida consagrada à Nossa Senhora da Conceição» 8 •
processo de constituição e transformação dos espaços urbanos. No tocante ao espaço mi-
neiro, segundo Diogo de Vasconcellos,
3 Murillo Marx, «Arraiais Mineiros - Relendo Sylvio de Vasconcellos», Revista Barroco, Belo Horizonte,
«. •• no distrito de Minas, descoberto num sertão bravio e devoluto, a primeira pro-
n. 0 15, 1992, p. 390.
priedade, que se nele constituiu, nenhuma outra origem teve, que a título de datas 4 Uma légua corresponde a aproximadamente 6173 m, e uma braça equivale a 2,2 m.
5
minerais. O chão, as casas, as benfeitorias compreenderam-se nestas datas. A guarda- Os desclassificados do ouro, 3.ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1990, p. 27. A autora cita documento
analisado por Sylvio de Vasconcellos (Mineiridadc. Ensaio de caracterização, Belo Horizonte, 1968), que calcula
moria, portanto, no exórdio do povoamento resumiu em si a única autoridade neces-
em três a média dos escravos em Rio Acima, e em São João del Rei, dos 96 proprietários, somente 7 possuíam
sária e com razão de ser. Nenhuma lei também se respeitou, senão a desse instituto, mais de 12 negros.
mantida e observada por interesse de cada um, temendo a anarquia dos donatários» 2 •
6
Diogo de Vasconcellos, op. cit., 1974, vol. 2.
7
André João Antonil, «Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas», Belo Horizonte, Revista do
Arquivo Piiblico Mineiro, 1899.
270 2
Diogo de Vasconcellos, História Antiga das Minas Gentis, 4.a ed., B. Horizonte, 1974, vol. 1, p. J 64. 8
Diogo de Vasconcellos, op. cit., 1974, vol. 2, p. 238. 271
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS DO ARRAIAL A CIDADE

Aparentemente, o «ouro fácil» das catas nos leitos e margens do ribeirão já havia se em destacar as igrejas da paisagem, não seria, para Murillo Marx, somente uma questão de
esgotado, e o português passou a explorar os veios auríferos de ribanceira e terra firme, que lógica, ou uma tradição, mas obedeceria a uma legislação eclesiástica específica para que se
requeriam mais tempo e técnicas um pouco mais apuradas para realizar o desmonte dos pudesse reconhecer e sagrar as capelas eretas por particulares 12 .
terrenos. O sucesso do empreendimento ocasionou a volta de antigos moradores e a che- Por ora, os únicos dados de que se dispõe sobre patrimónios religiosos no arraial do
gada de outros aventureiros, e «nova era sobreveio ao circuito do ribeirão». Segundo Diogo Carmo dizem respeito ao núcleo de São Gonçalo. Este surgiu no Arraial de Cima, ao longo
de Vasconcellos, o português permitiu a muitos trabalharem nas minas e morarem nas da antiga estrada que levava ao arraial do Ouro Preto, subindo a encosta (Fig. 1B). A parte
suas terras e, assim, em torno da ermida da Conceição (Fig. 1B) renasceu o povoado, que «urbanizada» desta estrada, ou seja, a parte que se inseria no arraial de Cima, era chamada rua
começou a ser denominado ~rraial de Baixo, para se distinguir do de Cima (Mata Cava- de São Gonçalo, pois conduzia à capela de mesmo nome. Não se conhece a data exata da
t,,
los), que era o dos bandéirantes e que passaria a ser conhecido como «Arraial Velho». fundação do edifício, mas, segundo documentos citados pelo Cónego Trindade, a capela
teria sido construída e paramentada «com ouros e dinheiros» da irmandade, e dotada de
Para Murillo Marx, a conformação gregária que percebemos nas aglomerações coloniais- ou património pelo seu padroeiro, o capitão Manuel Cardoso Cruz, «numas casas situadas em
seja, a proximidade entre as moradias, e a polarização das mesmas, exercidas pelos ediflcios religio- sua lavra» 13 • De acordo com o historiador, estas casas, em conseqüência de explorações mine-
sos - não se explica somente pelas leis do poder civil9. Do mesmo modo, no caso mineiro, essa rais, foram demolidas, e a viúva do capitão fez construir outras, junto às suas, «ao fim da rua
característica não se explicaria unicamente pelo regimento que regulava a distribuição das datas: em Direita, em direção à dita capela, e nelas reconstituía o primitivo património por escrimra de
Minas, como em outras partes do reino português, a Igreja teria desempenhado um papel funda- 3 de dezembro de 1761». Tudo indica que houve aí uma superposição entre os bens doados
mental na organização fundiária e espacial dos núcleos populacionais. Apesar dos resultados formais para o património religioso da capela e os terrenos minerais do padroeiro.
terem sido ali bastante diferentes, pois nesta região não existiram as ordens regulares, e assim os Esta era, aliás, a única possibilidade de se constituir um património no interior das
ediflcios das capelas e igrejas não se acham colados a claustros e dependências conventuais, mas, de áreas onde se sabia da existência de depósitos auríferos, pois, como foi dito, não se conce-
forma geral, implantados nos centros de largos, independentes das quadras urbanas vizinhas. diam aí sesmarias, apenas datas. Como veremos no item final deste trabalho, no caso do
Como explica o autor - e como pudemos, de fato, comprovar em diversas fontes que núcleo de São Gonçalo a situação se tornaria mais complexa a partir da criação da Vila do
dizem respeito aos arraiais mineiros - , a ação do poder religioso se processava quando da Carmo, e da inclusão destes terrenos no patrimônio da Câmara.
constituição das capelas e de seus patrimônios, a partir da doação, por um ou mais detentores Por volta de 1709-171 O, pouco tempo depois da «reconquista» do Carmo, o arraial já
das glebas ou datas vizinhas, de uma porção de terra e de bens materiais, tornando-se os doado- havia se expandido bastante. Esta expansão fóra, de início, apenas na direção leste-oeste,
res «padroeiros» dos templos. O donativo formava o património fundiário da capela, e abrangia margeando o ribeirão e uma das estradas que atravessava o povoado (a que ligava o arraial
não somente o terreno necessário à construção do edifício propriamente dito, mas também do Ouro Preto, futura Vila Rica, aos núcleos do «Ribeirão Abaixo» - Sumidouro, São
faixas de espaços livres nas proximidades. Estas áreas, acrescidas eventualmente de outros bens, Caetano e São Sebastião). Mas, por esse tempo, o povoado já transpunha o ribeirão, se
integravam o património religioso com a finalidade de gerar rendas para a manutenção da estendendo sobre o morro dos Monsus (atual morro do Rosário) e ao longo do outro
capela e das funções religiosas, através de aforamentos de «chãos» a particulares. caminho que atravessava a aglomeração, e que conduzia, na direção norte, ao arrabalde do
O processo de constituição dos patrimónios deveria obedecer às recomendações ex- «Vamos-Vamos» e ao Mato Dentro. Brevemente iria se expandir também na direção sul
pressas nas «Constituições Primeyras do Arcebispado da Bahia». A constituição de número deste mesmo caminho, que levava a Itaverava e a São Paulo, e que começava ao lado da
687 determinava que: «... as igrejas se devem fundar, e edificar, em lugares decentes, e capela da Conceição, o chamado «caminho de fora» (Fig. lB).
acommodados, pelo que mandamos, que havendo-se de se edificar de novo alguma Igreja A ligação entre o arraial velho (de Cima) e o núcleo da Conceição, fundado por
Parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar decente, livre de humidade, Antônio Pereira, era feita pela rua chamada do Piolho, que se estendia à margem do ribei-
e desviado, quanto for possível, de lugares immundos, e sordidos ... »10 • Assim, um dos
«valores espaciais mais queridos» das sociedades de mentalidade barroca 11 , que consistia 12
De acordo corno autor, outras constituições tiveram conseqüências irnediatas na paisagem e no traçado
dos arraiais. Recomendava-se, por exemplo, que as igrejas paroquiais tivessem espaços livres em frente - os
9
adros - e ao redor, sem «casas particulares e outras parades (sic), em distância que possam andar as procissões ao
Murillo Marx, Cidade no Brasil, terra de quem?, São Paulo, USP/Nobel, 1991. redor dellas». Esta recomendação, quando pôde ser atendida- ou seja, quando havia espaços livres para cal, nos
w M. Marx, op. cit., 1991, p. 22.
11
casos em que a aglomeração não se encontrava ainda densamente ocupada - evidentemente se tornou um
José Eduardo Horta Correia, «Urbanismo», in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, 1989 condicionante para o sistema de ruas e de edificações em torno do templo (M. Marx, op. cit., 1991, pp. 22-23).
apud Rena ta Malcher de Araujo, As cidades da Amazônía no século XVIII, dissertação de Mestrado, FCSH, Uni- ' 3 Cônego Raimundo Trindade, Instituições de Igrejas no Bispado de Mariana, Rio de Janeiro, MEC/SPHAN,
272 versidade Nova de Lisboa, 1992, p. 45.
Publicação n.O 13, 1945. 273
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rão: a atual rua Direita da Sé era então uma simples trilha, conhecida como «Caminho de As vilas coloniais setecentistas estavam também revestidas de uma «missão civilizatória»
Cima», e ainda não existia a Ponte de Areia, apenas a dita de «Manuel Ramos», de madeira em relação à rebelde população mineira, cuja dispersão, inerente à forma inicial de exploração
(Fig. lB). Segundo Salomão de Vasconcellos, o Caminho de Cima passava pela chácara de do território, precisava ser tolhida. Suas ereções respondem, portanto, aos interesses político-
Antônio Pereira, e teria sido, originalmente (por volta de 1715), um simples rego destina- -administrativos da Coroa, que localmente deveriam ser defendidos pelas câmaras municipais.
do a levar água aos seus lavrados junto à praia 14 . A rua Direita do arraial primitivo era a que A ereção de uma vila implicava na delimitação de um «termo», na atribuição de um
saía da ponte de Manuel Ramos em direção à capela de Nossa Senhora do Carmo. território que lhe ficaria submetido, território este que, no caso mineiro, era bastante ex-
Nesta mesma época, por intermédio do governador Antônio de Albuquerque, Antô- tenso e podia abranger várias freguesias, arraiais, sesmarias já concedidas e sertões por
nio Pereira obteve do rei ~concessão de uma sesmaria que lhe ressarciria dos prejuízos ocupar 17 • A carta régia de 24 de janeiro de 1711 aconselhava o governador sobre como
sofridos pela invasão de suas terras. Esta sesmaria tinha a medida de meia légua em quadra proceder na criação da vila do Carmo, a qual deveria
e provavelmente abrangia a área onde se construiu, mais tarde, a extensão da cidade, em «••. ter seu termo demarcado na extensão que lhe competir; passará o mesmo juiz de
malha regular. Porém, segundo Diogo de Vasconcellos, a concessão não resolveu o proble- fora, depois de eleitos os Officiaes da Camara a tratar com eles de comum acordo
ma, pois os antigos moradores não aceitaram pagar aforamentos, alegando posse anterior, sobre os limites por onde será mais conveniente fazer a dita demarcação que com a
e os novos habitantes também não se sujeitaram às imposições, o que não seria de se vossa aprovação será de forma que em beneficio publico comprehenda os lugares que
estranhar em se tratando de um povoado sem administração ou justiça constituídas. forem mais proximos da dita Villa do que as outras confinantes, que para este fim
serão ouvidas ... »18

Numa outra escala, e no seio mesmo das vilas, as c'ímaras recém-criadas deveriam
A criação da Vila do Carmo - o poder civil e seus espaços logo cuidar em ter bem delimitados seus próprios terrenos, os «rossios». A demarcação do
rossio (palavra que aparece frequentemente na documentação com a grafia «rocio», ou
O governo português, através de diversas categorias de funcionários régios, estendeu referida por outras denominações, como «patrimonio da Camara», «terrenos baldios» ou
à colônia brasileira seu complexo sistema administrativo, judiciário e legislativo, e os pro- «realengos») era uma tradição medieval que visava garantir uma área para o usufruto
cessos de estabelecimento e desenvolvimento dos núcleos urbanos estiveram ligados a esses comum dos habitantes 19 (plantações, pastagens, reserva de madeira) e para servir às neces-
mesmos mecanismos de controle. No território mineiro, como em outros pontos da colônia, sidades futuras de expansão da nova vila, constituindo neste caso uma área de reserva que
o Estado procurou «suprir a falta de sua presença inicial, tomando o controle posterior do seria oportunamente dividida em parcelas, e aforadas pelas câmaras. O rossio de uma vila
15
desenvolvimento dos núcleos, ou vigiando-os a partir de sua estrutura de poden, • era criado a partir da concessão de terras que, como qualquer sesmaria, deveria ser confir-
Nesta região, o Estado se estabeleceu de forma objetiva e determinada em 1711, a mada pelo rei.
partir da criação, por Antônio de Albuquerque, das três primeiras vilas da futura Capitania A sesmaria da câmara da Vila do Carmo foi concedida em 1716 pelo governador
de Minas Gerais: Vila do Carmo, Vila Rica e Vila Real de Sabará. Segundo Caio Boschi, D. Brás Baltazar, e confirmada por D. João V em 1719, « ... atendendo he muito convenien-
«... a presença do Estado emerge com propósito bem definido: o de assegurar a posse te da dita Camara tenha teras para mayor aumento da dita Villa ... »20 • Como em outras vilas
do território e, sobretudo, o de auferir lucros substanciais com a atividade exploratória, criadas posteriormente em Minas, sua medida era de «uma légua em quadra», e deveria ser
através do foco e da triburação. Por conseguinte, mesmo não possuindo um projeto demarcada «fazendo pião», ou seja, tendo como centro o pelourinho, e «correndo para todas
urbanístico nem pressupondo que o espaço urbano se confunda com o espaço dos as partes na distancia de meya legoa das quais tera fixa a Camara o direyto Senhorio ... ».
aparelhos de Estado, há que se considerar que o desenvolvimento desses núcleos
16
populacionais está, em grande parte, atrelado aos interesses metropolitanos» • 17
O termo da Vila do Carmo abrangia os sertões dos rios Pomba, Muriaé e Doce, chegando às fronteiras
do Rio de Janeiro (segundo Washington Peluso Albino de Souza, «As lições das vilas e cidades de Minas Gerais»,
in Ensaios sobre o Ciclo do Ouro, Belo Horizonte, UFMG, 1978, pp. 1-145).
18
AHU (A.rquivo Histórico Ultramarino, Lisboa), «Minas Gerais», caixa 1, doe. 24.
19
Segundo Roussel-Wood, em Vila Rica, «Albuquerque acedeu ao pedido do povo, de que os morros da
14 Salomãode Vasconcellos, Breviário Histórico e 1itrístico de Mariana, Belo Horizonte, 1947. cidade fossem considerados como solo comum para fins de prospecção do ouro, em vez de serem divididos entre
15Renata Malcher de A.ranjo, op. cit., pp. 23 e 24. os mineradores» («O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural», Revista de Histó-
16 Caio Boschi, «Colonialismo, Poder e Urbanismo no Brasil Setecentista», in Anais do I Colóquio de ria, São Paulo, vol. LV, jan. 1977, p. 37).
274 Estudos Históricos Brasil-Portugal, Belo Horizonte, PUC, 1994, p. 102.
2
" APM (A.rquivo Público Mineiro, Belo Horizonte), CMM, códice 3, fls.12v-14. 275
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Entretanto, a ordem régia não bastou para que a tomada de posse de todo este terre- tomada desta área constituiu mais um caso conflituoso devido à resistência oferecida pela Fa-
no pela Câmara se fizesse sem conflitos. O processo de constituição do rossio da Vila do zenda Real. Como será mostrado mais adiante, estes problemas de indefinição da extensão do
Carmo e de seu reconhecimento por parte dos habitantes e das autoridades da Capitania rossio, aliados à desorganização da incipiente burocracia municipal, tornariam bastante com-
foi bastante longo, estendendo-se por todo o século XVIII e condicionando as intervenções plicada a tarefa da cobrança dos foros e retardariam a expansão da área construída da vila.
sobre sua configuração urbana. Na criação de uma vila, além das questões que acabamos de abordar, relacionadas à
A instituição do rossio esbarrou, em primeiro lugar, na questão da posse anterior dos sua organização fundiária, precisavam ser diligenciados outros aspectos que dizem respeito
terrenos alegada pelos mineiros 21 • Como vimos no item anterior, o arraial da Conceição, à sua materialidade. O rei, em sua carta de 24 de janeiro de 1711, anteriormente mencio-
escolhido para sede da Viila ~o Carmo, havia se formado sobre as terras de Antônio Pereira nada, determinava que todas as providências fossem tomadas «conforme ao estabeleci-
Machado, constituindo um problema que só foi resolvido por volta de 1721, depois de mento das outras villas do mesmo Estado do Brasil, cuidando-se muito particularmente
uma «troca de favores» possibilitada pela interferência do Governador e do rei; é o que se na construção das Cazas de Camara Cadeia, Pelourinho, calçadas arruamentos e tudo o
depreende da Ordem Régia de 11 de março do dito ano, dirigida ao Conde de Assumar: mais que pertença a boa ordem, policia e segurança publica da mesma villa» 24 . Assim, no
«Faço saber a vós [... ] que o Capitão Antônio Pereira Machado, morador na Vila do Termo de Criação da Vila do Carmo, assim como no de Vila Real do Sabará, determinou-
Carmo dessas Minas, me representou que ele fora o primeiro povoador da dita terra, -se que todos os moradores deveriam contribuir para a execução das citadas obras:
comprando muitas delas a alguns homens que a tinham fabricado e se mudaram para «Aos 8 dias do mez de Abril de 1711, nas casas em que mora o Sr. General Capitão
outras em que esperavam maiores lucros e fizera o suplicante as ditas compras por Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, achando-se presentes em Junta Geral,
grandes quantias de ouro [... ] e pela fertilidade da terra vieram concorrendo a elas que o dito Sr. chamou para este dia as pessoas e moradores principaes deste districto do
muitos moradores e edificaram casas nas terras, lavradias de ouro em que o suplicante Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, lhe fez presente o dito Sr. que na forma das
tivera uma considerável perda[ ... ] e o Capitão General Antônio de Albuquerque [... ] Ordens de S. M., a quem Deus Guarde, tinha determinado levantar Villa n' este Districto
dera ao sup. meia légua de sesmaria em quadra nas ditas terras22 : mas que erigindo-se ao e arraial, por ser o sitio mais capaz para ella e como para esta se erigir era conveniente e
depois disso a vila que ao presente existe e se vai aumentando cada vez mais, e o sup. priciso concorrerem os ditos moradores para a Fabrica de Igreja e Casa de Câmara e
cedeu graciosamente ao Senado da Câmara a dita meia legua de terra em quadra para Cadeia, como era util e pertencia a todas as republicas, deviam elles ditos moradores,
seu logradouro e rocio e por essa dadiva o sup. ficou muito falto em bens, sem terras cada um conforme suas posses, concorrerem para o dito feito, com aquelle zelo e von-
para plantar mantimentos para sustentação da mulher e dos filhos; e por que esses tade que esperava de tão bons vassalos do dito Senhor; e assim deviam n' este particular
serviços foram feitos em grande utilidade de minha Coroa e Fazenda, pois se estabele- dizer o que entendiam, sujeitando-se a viverem com aquella boa forma ... »25
ceu a maior Vila que há nas Minas, o que pela sua grandeza assiste nela o Governador
[... ] me pedia lhe fizesse mercê da propriedade de escrivão da Camarada dita Vila, e do A capelinha da Conceição havia sofrido, em 1707, uma primeira ampliação, e ali o
hábito de Cristo com doze mil réis de tença efetivos para quem se casar com uma de Padre Manoel Braz já vinha preferindo administrar os ofícios, por se encontrar o templo
suas filhas ... »23 «no arraial de baixo, na esplanada, em lugar mais cômodo ao culto» 26 • Em 1712, determi-
Pelo que se pôde concluir a partir da documentação consultada, logo depois de ser nando a Coroa que a Câmara concorresse com o necessário para a construção da Matriz,
agraciada com os terrenos de Antônio Machado, a Câmara se desfez de uma parte deles, foi a capela da Conceição oficializada como tal, sendo novamente reformada e ampliada.
que doou à Coroa para o estabelecimento do Quartel da Companhia dos Dragões (Fig. 4), A partir desta transferência da matriz, os núcleos de Mata Cavalos e de São Gonçalo
além de financiar, ela própria, sua construção, no intuito de agradar ao soberano e assim passariam a um segundo plano, com a concentração progressiva das instituições e serviços
conquistar certos privilégios para a vila. no «arraial de baixo» (Fig. 3).
Ora, menos de duas décadas mais tarde, o quartel já havia sido transferido para Se a ascensão do arraial do Carmo ao patamar de vila não foi acompanhada, de forma
Cachoeira do Campo, e a Câmara necessitava de terras para aforar aos moradores; a re- imediata, de grandes melhoramentos na estrutura física do tosco povoado, pelo menos

21
Cf. carta enviada pela Câmara ao rei, em 30-12-1716. APM, CMM, códice 3, fl. 9.
22
Onde ficariam estas terras, concedidas sob a forma de sesmarias? Necessariamente fora dos locais onde se 24 AHU, «Minas Gerais)), caixa 1, doe. 24.
minerava, próximos do Ribeirão. Segundo Diogo de Vasconcelos, os terrenos abrangiam a área mais elevada sobre 25 Citado por Diogo de Vasconcellos, História da Civilização Mineira - Históri,z do Bispado de Mariana,
a qual se construiu,« ... em 1743-1749, a parte nova atual da cidade» (op.cit., 1974, vol. II, p. 241). Belo Horizonte, 1935 (Fig. 3).
276 23
Citado por Diogo de Vasconcellos, op. cit., 1974, vol. 2, pp. 247-248. 26
Salomão de Vasconcellos, op. cite, 1947. 277
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Almeida, o Conde de Assumar, veio residir (Fig. 2A). O edifício foi erguido «em colina
foram construídos nesta época vários edifícios marcantes, que valorizaram os logradouros
ainda sem arruamento, à beira do campo» 30 , próximo ao local onde a Câmara fez cons-
em que foram inseridos. O terreiro da capelinha da Conceição, agora transformado em
truir, em 1722, o Quartel dos Dragões do Conde de Assumar (Figs. 2A e 4).
Largo da Matriz, passou a abrigar outros símbolos do poder colonial, colocados bem junto
Não se têm referências precisas sobre a criação e sobre o delineamento deste logradouro 31 ,
à praça ou em suas proximidades, o que veio acentuar seu papel de núcleo polarizador da
sobre a data e a origem de seu risco regular, que tanto pode ter integrado o plano dos novos
vida social.
arruamentos da Cidade de Mariana, como pode ter sido feito ainda no tempo da Vila, a
No centro deste espaço assentou-se o tosco pelourinho, símbolo da justiça e da autono-
partir de uma resolução da Câmara. Pois, se é certo que as transformações mais visíveis do
mia do município, cuja co~strução representou a primeira despesa da Câmara. A Cadeia
espaço urbano só se concretizariam décadas mais tarde, também é verdade que o poder
também foi instalada pefto d·a matriz (tendo em frente uma capelinha que servia aos presos).
municipal procurou, desde o início, exercer algum controle sobre o traçado e as construções.
Já a Câmara, cujo prédio definitivo foi construído somente na segunda metade do século,
Como exemplo, podemos citar um edital que foi publicado em 2 de março de 1735:
mudou de endereço várias vezes, tendo funcionado a princípio numa residência situada no
«Porquanto nos consta que muitas pessoas e moradores desta villa costumão reedificar
«arraial velho» (Fig. 1B). Por volta de 1730, a Casa da Intendência, assim como a dos Juízes
cazas metendolhe esteyos e baldrames novos, fazer valos, sercas e paredes sem para
de Fora, seriam instaladas na rua lateral à igreja, no trecho inicial do caminho de Itaverava
hisso serem primeiro arruadaz, e sem faculdade deste Sennado, como tambem levan-
(o «caminho de fora»), que passou a se chamar Rua da Intendência27 (Fig. 2A).
tarem cazas sem darem parte, mandamos que daqui em diante nenhuma das sobreditas
Além da praça, outros locais próximos à matriz das vilas tendiam a se valorizar,
pessoas possa reedificar as ditas cazas nem tambem levantalas nem sercar nem valar,
como ocorreu com o já mencionado «caminho de cima»: com a transferência da matriz
estando dentro da demarcação da sesmaria deste Sennado, sem que se faça saber ao
para a capela da Conceição, o antigo caminho ganhou importância, transformando-se na
mesmo Sennado para se lhe aforar, com penna de se lhe demolir a dita obra ... »32
nova Rua Direita 28 , onde, a partir de meados do século, seriam construídos os belos sobra-
dos que a tornariam a mais «nobre» das vias setecentistas de Mariana.
Nos livros da Câmara encontramos também um número considerável de documen-
Segundo Salomão de Vasconcellos, esta rua foi o logradouro escolhido para a preten-
tos que tratam da conservação dos espaços e serviços públicos, referindo-se aos «negros
dida residência oficial dos capitães-generais da Capitania (que por volta de 1720 passaram
faiscadores» que danificavam calçadas, sujavam e represavam as águas das quais se serviam
a residir em Vila Rica), o «Palácio dos Governadores» (Figs. 2A e 3), primeiro edifício de
os moradores: paradoxalmente, a atividade mineradora, que dera origem à povoação, pas-
dois pavimentos e com cobertura de telhas da Vila, grande feito que foi possibilitado pela
sava a se rornar indesejável no âmbito da Vila por ser prejudicial ao «bem publico», pelo
criação, em 1713, da olaria do Carmo, no «caminho de fora» (que a partir daí passou a ser
qual os camaristas deveriam zelar.
chamada Rua da Olaria).
Na porção sul do povoado, logo atrás da Matriz, havia um grande largo, tangenciado
pela Rua da Intendência e por uma via paralela chamada rua dos Cortes 29 • Próximo a ele
construiu-se, por volta de 1715, um grande edifício, onde o terceiro governador, Pedro de
A decadência da vila e o nascimento da cidade

27
Segundo Diogo de Vasconcellos, atrás da igreja matriz«.,, corria um valo que separava o campo da vila
Em meados do século XVIII a atividade mineradora atingiu seu apogeu. Entretanto, se
e_sobre esse valo u~a porteira fechava o recinto do povoado, dando passagem para o caminho principal, que
vmha de fora, do R10 e São Paulo, passando por ltaverava e, cortando a vila, seguia para Mato Dentro. Nesse a produção aurífera tendeu a aumentar até essa época, foi muito mais em função de uma
caminho, que depois se chamou Olaria, foi se estendendo a povoação» (Fig. 3). No início dessa via (trecho que se maior exploração do trabalho escravo do que dos poucos progressos alcançados em relação
chamaria, mais tarde, rua da Intendência), no local onde seria construído, no século seguinte, o teatro da cidade,
havia um «rancho que a princípio servia às tropas que entravam pelo caminho do !taver,wa» ( Diogo de Vasconcellos,
op. cit., 1974).
28
A utilização repetida do nome «Direita» se justifica, segundo Diogo de Vasconcellos, por um costume 3
" Diogo de Vasconcellos, op. cit., 1935.
secular de atribuí-lo à via principal que dava acesso à matriz dos povoados. Transferindo-se a matriz de Mata
"Este espaço recebeu, ao longo da história da cidade, vários nomes e remodelações. Por volta de 1720, era
Cavalos para o «arraial de baixo», transferiu-se, conseqüentemente, a Rua Direita. De faro, segundo José Eduar-
conhecido por «Largo da Cavalhada» (Fig. 3), não exatamente em referência aos cavalos dos Dragões, que de fato
do Horta Correia («Urbanismo em Portugal», in José Pereira da Costa, Diciondrio Ilustrado da História de Portu-
se serviam de um bebedouro que ali ainda se encontra, mas, segundo Salomão de Vasconcellos (op. cit., 1947)
gal, Lisboa, Alfa, 1985), a denominação «rua Direita» das implantações portuguesas vem, independentemente da
por se tratar do local onde aconteciam «as festas populares desse nome, os curros e as touradas então em uso, em
tortuosidade de seu traçado, de «directa», tratando-se da «principal via de acesso ao núcleo mais significante»,
regozijo pelo nascimento ou casamento dos sereníssimos príncipes ou princesas reais, pela entrada de governado-
que é constituído, cm geral, pela praça da matriz.
29
res, e por outros aconteci1nentos returnbantes))-.
Nesta rua foi construída, por volta de 1734, a Casa de Fundição. A via se prolongava até O «Morro da 32
APM, CMM, códice 3, 11. 125v. 279
278 Forca», margeando o terreno dos pastos da tropa dos Dragões (Fig. 3).
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às técnicas de extração, que continuavam tão rudimentares como nos primeiros anos, o As grandes despesas feitas pela Câmara com a construção de «cercos» destinados a
que acarretava grandes prejuízos à paisagem natural da região. conter «as fúrias do rio» tinham se mostrado inúteis, «pois se achava o rio mais alteado que
Os núcleos urbanos também se ressentiam dos efeitos dessas explorações predatórias, a mesma Villa» 36, sendo necessário portanto que se transferisse para um local seguro as
pois os serviços de minerar localizavam-se com frequência dentro de seus limites, e eram habitações atingidas. A,sim, recorreram os oficiais ao rei, pedindo a devolução dos terre-
muitas as reclamações de moradores contra eles. As inundações ocorridas no Carmo e nas nos que haviam sido cedidos para o quartel e pastos dos cavalos dos Dragões, por não
demais localidades ribeirinhas são mencionadas em vários dos documentos consultados; en- haver «paragem mais commoda do que as mesmas terras que serviram de pasto». Além das
tre eles, uma representação de 1748 dos Oficiais da câmara, que contém uma descrição que residências, planejavam construir na mesma área uma nova Cadeia (a que existia não ofe-
merece ser citada: recia nenhuma segurança) e uma «casa» para as audiências da Câmara.
«... Da serra e do morro chamados do Ouro Preto em varias fontes da parte do norte Pela carta de 31 de maio de 1742 o rei concedeu as terras, «para nellas se edificarem
nascem as primeiras agoas que dão principio ao chamado Ribeirão do Carmo, o qual cazas e pagarem a este Sennado o costumado foro que pagam os mais». Entretanto, os
do seu nascimento recebendo as que se lhe juntam corre o espaço de 2 legoas precipita- moradores sinistrados já haviam recorrido à Fazenda Real, logo após as enchentes de 1737,
do por entre montes e despenhadeiros com tal velocidade que tudo quanto recebe leva para que esta lhe aforasse terrenos no referido pasto, o que gerou um conflito com a Câma-
soberbamente consigo, e finda com pouca diferença a dita distancia, começa a socegar ra que foi objeto de várias cartas enviadas às autoridades metropolitanas.
em estreita planície, em a qual nas margens do dito rio foi fundada a Villa do Carmo, Com o apoio do governador Gomes Freire, os vereadores procuraram impedir aos
hoje Cidade de Marianna [... ]depois dois arraiaes, ou lugares chamados de São Sebas- foreiros de edificarem suas casas, não reconhecendo os aforamentos feitos pela Fazenda
tião e São Caetano, povoações inferiores a dita Cidade, fundaram os primeiros mora- Real «pella razam de se não atender nelles a boa ordem que devem ter os arruamentos da
dores junto das agoas do dito rio, ignorando que esse se havia de encher de areia, e por villa nem se determinar lugar conveniente para a praça Caza de Camara e Cadeya de que
cima de 50 palmos destas havia de correr, como hoje corre com grave prejuízo da dita muito se nececita» 37 •
Cidade, pois deixando-lhe ja enterradas as pontes mais baixas, e mais de tres partes das Em 1744, ao que tudo indica, o Senado já havia conseguido tomar a frente da opera-
casas, que fizeram os primeiros moradores está correndo peno das do Senado e em dez ção, pois na carta de 19 de agosto deste ano solicitava-se ao rei a demolição dos antigos
anos entrará na Matriz Catedral, Palácio, Intendência, e nas mais que naquele local quartéis dos Dragões a fim de que a nova rua do terreno dos pastos, em que os foreiros
estão, o que procede de todos os dias se moverem as terras da dita Serra, e montes para estavam reconstruindo suas casas, tivesse «serventia», ou seja, tivesse saída para a parte da vila
se desentranhar o ouro delas, umas a força do braço, outras por industria com as agoas já constituída38 • Tratava-se, provavelmente, da «Rua Nova», atual D. Silvério (Fig. 2B).
dos mesmos montes, que nos invernos levam tal quantidade de terra ao dito ribeirão Outra querela entre a Câmara e a Fazenda Real, ocorrida no mesmo período, referiu-se
que fazem levantar a cada anno o melhor de 4 palmos, do que procede o prejuízo ... »33 à restituição da antiga residência dos governadores ao Senado, para que, com o produto da
sua venda, esta pudesse conseguir recursos para a construção da Casa de Câmara e Cadeia 3~.
Vários destes documentos fazem referência às cheias do Ribeirão do Carmo, princi- Apesar de todas essas dificuldades, na carta de 23 de abril de 1745, D. João V infor-
palmente àquelas ocorridas nos anos de 1737, 1742 e 1743, que inutilizaram boa parte da mava ao governador Gomes Freire sobre a decisão que tomara a respeito do bispado que
povoação. A, águas atingiram sobretudo «a principal rua desta villa», a rua do Piolho, que seria criado:
se prolongava pela rua Direita (a primitiva, no arraial de Mata Cavalos), ficando esta «Gomes Freire de Andrade, Amigo. Eu El-Rey vos envio muito saudar. Attendendo a
reduzida «a praya, ou aliás a regatos, ou braços do rio» 34 (Fig. 2B). A causa de todos estes que a Villa de Rybeirão do Carmo hé a maes antigua das Minas Geraes, e que fica em
estragos teria sido os represamentos e assoreamentos provocados pelo serviço de minerar citio muito comodo para a erecção de uma das duas Cathedraez, que tenho determi-
de António Botelho, localizado na margem do ribeirão, do qual os oficiais da Câmara se nado pedir a S. Santidade no território da Diocese do Ryo de Janeiro: Fui servido
queixaram em várias oportunidades 35 • crear Cidade a dita Villa do Rybeirão do Carmo, que ficará chamando-se Mariana; e
assim vos ordeno o façais praticar, e publicar ... »40
33
AHU -Arquivo Histórico Ultramarino («Minas Gerais», ex. 51, doe. 45), documento expedido pela
Câmara, «expondo o dano que lhes advém do serviço de minerar pertencente à Antônio Botelho e seu irmão João 3
APM, CMM, códice 15, fl. 53v.
'
Botelho de Carvalho, instalado nas praias do rio, do qual provém as inundações da cidade e solicitando Provisão 37
Carta do Senado ao rei, 28-8-1743. APM, CMM, códice 15, fl. 72v.
Régia para que esse serviço seja interdito de assentar no referido local». 38 APM, CMM, códice 15, fl. 93v.
34
Segundo um documento da irmandade do Rosário, citado pelo Cônego Trindade (op. cit., 1945). 39
Carta do rei a G. Freire de 2 de maio de 1744. APM, SC, códice 45, fl. 4.
280 3
' APM, CMM, códice 15, fl. 58v e 128. Cf. também documento do AHU citado em nota anterior. 40
APM, SC, códice 45, fl. 119v. 281
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Segundo Diogo de Vasconcellos, desde 1720 o rei intencionava criar a diocese em «Algum dia pareceo imposivel o remedio, mas o alvoroço que todos os moradores desta
Minas, e seu desejo inicial era reunir na mesma vila as sedes do poder temporal e religioso. terra, e os mais povos do seu termo tiveram de a verem criada Cidade deo ocazião a se
Pelo que pudemos deduzir de certas fontes, a escolha do rei não se efetuou apenas em função fazer uma Camara Geral onde se descobrirão alguns meyos para atalhar o dano do dito
da maior «antiguidade» da Vila do Carmo (pois sua ereção data do mesmo ano da criação de rio, seguros e de menos custo do que parecia pedir semelhante obra; do dito remedio
Vila Rica) ou da maior «comodidade» de seu sítio, mas foi o resultado dos esforços empreen- constão os papeis que a Vossa Magestade mandamos induzo nesta[ ... ], reedificarsse ha
didos pelos ambiciosos oficiais da Câmara. Na carta régia de 28 de fevereiro de 1721, o rei a rua direita com mais formosura que antes de destruída e conservarse hão as cazas que
informava o governador sobre a solicitação dos ditos oficiais, que desejavam que a Vila do ainda nella permanecem com o risco prezente das alagadas e sobretudo ficará segura a
Carmo fosse escolhida paratcabéça de Comarca, e pedia seu parecer, que deveria se funda- cidade e a Igreja Matriz que podera servir para Sé, pois de outra sorte dentro de dez
mentar nas opiniões do Ouvidor Geral da Comarca do Ouro Preto e dos oficiais da Câmara annos correra o rio junto a ella e se inundara a terra toda, onde agora tem a maior e mais
de Vila Rica e de Vila do Carmo, assim como no «numero de habitantes de que dias se florente povoação o que não sera justo não so pelo detrimento dos particulares mas dos
compõem e qual tem maior grandeza e hé mais opulenta e será mais conveniente q. sirva de edificios publicos e principalmente porque não deve submergirce hua povoação que
Cabessa da ditta comarca». No mesmo documento, D. João V concedia aos camaristas do deve a Vossa Magestade a honra de a exaltar Cidade e como da razão de bons vassallos
Carmo o privilégio, por eles solicitado, de Cavaleiros de Cristo: he augmentar e não destruir as povoações que seus Soberanos crião [... ]tem este Sena-
«... e atendendo as razoes que representão os dittos officiaes da Camara e ao zello que mos- do acordado fazer pellas rendas delle o reparo possivel no dito rio para ver se pode
tram na forma como se oneram em fazerem a sua custa as cazas para morada dos governado- izentar o restante da dita rua do estrago das agoas ... »" 5
res dessas Minas como as mais obras que fizeram nos quarteis para alojamento das tropas dos
Dragões que eu mandei para as Minas [... ] e por se distinguir mais a ditta Villa na fidelidade Já em Vila Rica, a decisão do rei foi mal recebida pelas autoridades, que procuraram
lhes concedo aos que servirem de Juízes e Vereadores o privilegio de Cavaleyros» 41 • convencer os poderes metropolitanos da impropriedade da escolha e da falta de «capacida-
de» do Senado para conter as inundações que arruinavam a Vila do Carmo"G. Como se vê
Mas, ao ser decidida, naquele mesmo ano, a criação da Capitania autônoma de Minas numa carta enviada de Lisboa à Câmara de Mariana, por Joseph Pereira de Moura, antigo
Gerais, apesar de todas as manifestações de «fidelidade» da Vila do Carmo, a Coroa oprou «ministro» da vila e defensor de suas causas junto à Metrópole, os próprios moradores de
por fixar sua sede em Vila Rica, devido à necessidade que se fez sentir de um poder forte Vila Rica chegaram a enviar um requerimento de protesto ao Conselho Ultramarino. Se-
estabelecido neste núcleo 42 , bem mais populoso e foco principal de uma série de rebeliões gundo o ministro, aqueles habitantes« ... sofrendo mal a preferencia, pertendem appropriar
ocorridas naquele período. Em maio de 1722, o rei se dirigia aos oficiais da Vila do Carmo, a si esta gloria, e pode ser que algua das contas desse Senado vindas na prezente frota
agradecendo novamente o «empenho» e o «zelo» que demonstraram ao assumir as despesas conduza muito ao seu intento, affectando ainda mais minas do que na realidade experi-
sobreditas, e como que prometendo, futuramente, alguma forma de retribuição: «... e este menta essa Cidade» 47 •
serviço fica na minha Real Lembrança para atender muito ao aumento desses moradores ... »45 • O próprio governador duvidava da pertinência da escolha, e talvez até tenha tomado
De fato, no momento da criação da cidade episcopal apresentou-se a ocasião de se o partido de Vila Rica. Deve-se levar em conta que, devido às diversas funções que exercia
fazer uma reparação à Vila do Carmo. A medida parece ter despertado, de imediaro, o simultaneamente, Gomes Freire era obrigado a se ausentar com frequência da Capitania
orgulho e o civismo de seus moradores, pois, em uma carta datada de 25 de setembro de das Minas e, portanto, a se fiar nos pareceres das autoridades locais; mas é fato que o
1745, o Senado informava e pedia a anuência do rei no tocante às suas intenções de re- cumprimento daquelas ordens régias que tinham como objetivo fornecer à cidade de
construir a primitiva rua Direita e de arcar com as onerosas obras necessárias para «se Mariana condições para sua recuperação (como as que determinavam a restituição do
atalhar a corrente do rio», obras estas que consistiriam em «algum desvio, cerco ou outra terreno dos pastos e do Palácio dos Governadores à Câmara) foi bastante lento 48 • Em
obra que parecer conveniente» 44 :
45 APM, CMM, códice 15, 11. 126v.
46
Cf. Carta de José António de Oliveira, Ouvidor de Vila Rica, ao rei. AHU, «Minas Gerais», ex. 47, doe. 41.
47
41
APM, CMM, códice 3, fl. 18. Carta de 7 de maio de 1746. APM, CMM, códice 27.
48
42
Diogo de Vasconcellos, op. cit., 1974, vol. 2, p. 247. Como foi mencionado, a restituição deveria contribuir para a edificação da nova Casa de Câmara, que
43
APM, CMM, códice 3, fl. 21. o Governador julgava desnecessária. Segundo Rodrigo Mello franco de Andrade (apud Suzy de Mello, Barroco
44
Acreditamos que o desenho conservado no Arquivo Histórico Ultramarino, intitulado «Planta em que Mineiro, São Paulo, Brasiliense, 1985, p.181), a oposição de Gomes freire, que reria sido responsável por um
se mostra a obra a se fazer para se evitar a inundação das ruas de Mariana pelo rio que ali corre», tenha sido enorme atraso na construção do edifício, vinha do fato de que em Vila Rica ainda não existia um edifício
282 enviado cn1 anexo a esta carta. semelhante (cuja obra havia sido arrematada cm 1745, com risco de Alpoim). 283
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setembro de 1745 o rei se dirigiu ao governador exigindo que, apesar dos pareceres contrá- urbanizadora mais agressiva, visando controlar mais diretamente não somente as cidades reais e
rios, suas ordens fossem executadas sem mais demora, pois, nas suas palavras, «convem se as sedes das capitanias, mas todas as aglomerações, em todos os níveis e regiões. O estabeleci-
ponhão os edificios desta Cidade no melhor estado que for possivel com toda a brevida- mento das primeiras vilas mineiras está inserida nesse conjunto de medidas de controle adotadas
de». O soberano também ordenava que suas determinações fossem cumpridas «com attenção pelo governo central, assim como a criação da Capitania e do Bispado mineiro.
ao aumento que se espera tenha a Cidade para o que deveis fazer planta e arruamentos das A nova política urbanizadora da Coroa traduzia-se também por um maior interesse
Ruas que de novo se devem fazer em sitio livre das innundações do Rio» 49 . pelo ordenamento das aglomerações, o que estava perfeitamente de acordo com a visão
Na resposta do governador, enviada do Rio de Janeiro ao Conselheiro Alexandre de iluminista de que os cuidados com a organização espacial das cidades representariam «o
Gusmão, comprova-se suaifaltá de entusiasmo com o projeto: nível de civilidade e de cultura de seus habitantes» 52 . Foi, de fato, a partir do século XVII!

«Na forma da Ordem que V. Sa me partecipa, mandei logo tirar a planta da Igreja e Cazas da que o poder civil passou a interferir com mais freqüência no aspecto físico dos principais
nova Cidade Mariana, que remetto, e posto Sua Majestade tem detreminado seja aquella núcleos brasileiros, e não somente através da ação das câmaras municipais mas, em mo-
nova Cidade onde rezide o Prelado, pareceu-me remetter a V. Sa. com a planta as cartas que mentos e em cidades especiais, através de uma categoria particular de funcionários régios:
com ella me chegarão de quem a tirou e do Juiz de Fora. Se o Dezembargador Rafael Pires «... os engenheiros militares, funcionários também, para cuidar, no seu nível hierár-
Pardinho houvera estado na V. do Carmo quando se recolheo ao Reyno, não votaria como quico preciso, das questões relativas ao controle do território. Respondiam não só
fes. O Rio tem levado a cidade, Villa, ou Arraial (pello pouco que hoje he, soo parece), alem pela sua defesa, perante os invasores, como também pelo seu conhecimento e medi-
do que diz a carta do Official que tirou a planta, hé necessario saber que a Matriz (como dirá ção e consequente domínio interno. Estes mesmos funcionários, encarregados do
o Bispo) amiaça mina: e como estou presuadido, a mente de Sua Majestade hé escolher o desenho de fortificações e de mapas, eram também os técnicos requisitados, sempre
Jogar mais proprio para a nova fundação, so se se fizer tambem nova cidade, fora do rio, que possível, para o desenho das formações urbanas.
poderá vir a ser tudo capaz, e fazerem novos moradores sera dificil, pois toda ela está hoje «A Coroa espanhola forneceu às suas colônias um regulamento para a formação de
mais diminuta de lavra e faisqueiras, farei o que S. Majestade me mandar. .. »5º cidades. A Coroa portuguesa forneceu às suas funcionários que as fizessem. Funcio-
nários do Urbanismo, como os havia da fazenda, da justiça ou da religião» 53 •
De fato, depois de meio século de explorações nas proximidades da vila, o ouro havia
escasseado, sendo necessário empregar cada vez mais recursos na sua extração; quanto à Além das atribuições usuais desses «funcionários», citadas acima, no Brasil eles se
Matriz, se não se encontrava realmente em ruínas, carecia ao menos de alguns reparos para encarregaram do projeto de diversos conventos e igrejas. Quanto aos traçados urbanos,
ser promovida à condição de catedral da Sé 51
• Assim, o rei decidiu, efetivamente, que seria que é o que nos interessa no momento, sabe-se que haviam sido elaboradas pelos enge-
construída uma «nova cidade», que de certa forma já havia sido iniciada com os aforamentos nheiros militares, ainda no século XVI, plantas fortificadas e regulares para Salvador e Rio
no terreno dos pastos. A partir daí, o grande desafio seria ordenar os arruamentos e erguer de Janeiro (cidades reais). No século XVII, eles atuaram em outras cidades importantes,
os principais edifícios a tempo de poder receber condignamente o primeiro Bispo, que como Belém e São Luís. E, seguindo o modelo da «Aula de Fortificação e Arquitectura
deixaria o Maranhão para, no termo de uma longuíssima jornada, fazer sua entrada solene Militar» de Lisboa, iniciou-se, no fim deste mesmo século, a formação dos técnicos da
na cidade de Mariana em novembro de 1748. colônia, com a fundação das aulas da Bahia (1696), do Rio de Janeiro (1698), do Maranhão
(1699) e, em seguida, do Recife (1701). O processo de aprendizado, assim como a própria
metodologia de trabalho dos engenheiros, era bastante pragmático, «fundando-se na sua
própria tradição, criada no decorrer dos primeiros séculos da Expansão, de aprender reali-
Mariana no contexto do urbanismo colonial setecentista zando ... »54 , tendo como matérias principais a geometria e as técnicas de medição. Os
professores eram escolhidos entre os técnicos mais capazes e experientes, e sabe-se que o
Desde meados do século XVII (época em que o Brasil se tornou a principal possessão
portuguesa), o governo metropolitano havia adotado uma postura centralizadora e uma política
52 Beatriz P. S. Bueno, «Os Tratados de Arquitetura Militar: fontes essenciais para o estudo do "Urbanis-

mo" e da iconografia dos engenheiros militares do século xv111», Anais do III Seminário de História da Cidade e do
49
Ordem Régia de l3 de setembro de 1745. APM, CMM, códice 15, íl. 134v. Urbmúsmo, São Carlos, São Paulo.
5
° Carta de 8 de outubro de 1745. APM, SC, códice 45, íl. 162v. 53 Renata Malcher de Araujo, op. cít., 1992, pp. 28-30.
284 51
Cf. Carta de Gomes Freire ao rei. APM, SC, códice 45, fl. 74. 54 Idem, p. 40. 285
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próprio José Fernandes Alpoim foi lente da Aula de Fortificação do Rio, para a qual escre- No que diz respeito às intervenções régias, Mariana parece ter sido o único núcleo
55
veu dois livros didáticos: Exame de Artilheiros (1743) e Exame de Bombeiros (1746) • mineiro do período a constituir objeto de um documento do teor dos que foram mencio-
Nos tratados do século XVIII, época em que foi maior o número de criações urbanas nados acima. Como vimos anteriormente, em 1711, na época da criação da Vila do Carmo,
brasileiras realizadas com a intervenção dos engenheiros, o modelo lusitano de planifica- D. João V já havia manifestado sua preocupação com o ordenamento físico da povoação,
ção urbana encontrava-se já estabelecido, depois de mais de dois séculos de amadureci- recomendando cuidados particulares «na construção das Cazas de Camara Cadeia,
mento através da prática. Nesta época, segundo Renata Malcher de Araujo, alguns precei- Pelourinho, calçadas arruamentos e tudo o mais que pertença a boa ordem, policia e segu-
tos e procedimentos da «escola» de engenharia militar portuguesa são incorporados às rança publica da mesma villa» 61 •
cartas régias, como normas,!<! sé'rem seguidas na fundação de cidades. Essas intenções foram ainda mais claramente expressas na Ordem Régia de 2 de maio
São já bastante conhecidas as cartas que regulamentaram o ordenamento urbano de de 17 46, onde o rei comunicava a Gomes Freire que a administração e a urbanização dos
Vila Boa de Goiás (11-2-1736), Vila Bela da Santíssima Trindade (5-8-1746), Vila de São «terrenos do pasto» seriam de competência exclusiva da Câmara, o governador devendo
José do Rio Negro (3-3-1755) e de Oeiras (14-6-1761) 56 • Em todos esses do-cumentos, de transmitir aos oficiais as regras a serem respeitadas, além de supervisionar a execução do
forma bem semelhante, ordenava-se a determinação de local para uma praça e para os novo traçado:
principais edifícios públicos e eram feitas exigências quanto à abertura de ruas, que deve- «... neste Citio se devem edificar as cazas, que de novo se fizerem; e para esse efeito se
riam ser «largas e direitas», e quanto ao aspecto das moradias, «... sempre fabricadas na lhe ordena que fação logo planta da nova povoação, elegendo-se sitio para praça
mesma figura uniforme pela parte exterior, ainda que na outra parte interior as faça cada espaçosa e demarcando-se ruas, que fiquem direitas, e com bastante largura sem atenção
um conforme lhes parecer para que desta sorte se conserve sempre a mesma formo-sura da a conveniencias particulares, ou edificios que contra essa ordem se acham feitos no
57
Villa e nas ruas della a mesma largura que se lhes assignar na fundação» • refferido citio dos pastos, porque se deve antepor a formosura das ruas, e cordeadas
Em Minas, como observou Suzy de Mello, poucas foram as intervenções dos enge- estas se demarquem sitias em que se edifiquem os edificios publicas; e depois se
58
nheiros militares • De fato, nesta região central não existiram vilas fortificadas: ali, os aforem braças de terra que os moradores pedirem, preferindo sempre os que já tive-
verdadeiros inimigos da Coroa não eram os invasores estrangeiros ou os índios selvagens, rem aforado no caso em que seja necessario demolirse parte de algum edificio para se
59
e sim os contrabandistas, os sonegadores e sobretudo os insurretos . Mas, por outro lado, observar a boa ordem que fica estabelecida na cituação da Cidade, e sendo justo
numetosos quartéis foram construídos, e para o dos Dragões da Vila do Carmo, mencio- satisfazerselhe prejuizo sera pelos rendimentos da Camera; e primeiro que se entre na
nado anteriormente, tem-se o desenho do projeto original (Fig. 4), de 1722, assinado por demarcação da praça, ruas e edificios publicas se vos fara a planta prezente para com
«Joseph Roz de Oliveyra Cap""' de Dragões». a vossa aprovação se praticar o referido; ficando entendendo eles officiaes da Camara
Quanto a José Fernandes Pinto Alpoim, além do plano de Mariana que lhe é atribuído, que em nenhum tempo poderão dar licença para se tomar parte da praça, ou das ruas
sabe-se que foi o engenheiro responsável por vários projetos em Vila Rica. Há também refe- demarcadas, e que todos os edificios se hão de fazer a face das ruas, cordeadas as
rências sobre a presença do sargento-mor Pedro Gomes Chaves em Minas, o qual havia sido paredes em linha reera, e havendo comodidade para quintaes das casas, devem estes
indicado em 1709 para a «Praça da Bahia», devendo lecionar em «Aulla publica aos que ficar pela parte detraz dellas, e não pela parte das ruas em que as Cazas tiverem suas
60
quizerem aprender» e se deslocar «a toda parte onde for necessario» • Atribui-se a este militar entradas; e os foros feitos na Provedoria da Fazenda ficam pertencentes a Camara ... ,,62
a autoria do projeto da Matriz do Pilar de Ouro Preto e do «Mapa das Minas do Ouro ... », de
1714, que contém um croquis da então recém-criada Vila do Carmo (Fig. 3). Deve-se notar que as aglomerações do Brasil colonial que receberam o título decida-
de em geral concedido apenas às sedes episcopais - , por serem consideradas cidades
reais, tiveram a prerrogativa especial de se subordinarem diretamente à Coroa. Além disso,
55
a destruição parcial da vila do Carmo pelas enchentes e a necessidade da reconstrução dava
Idem, p. 42.
56 Cf. Paulo Santos, Formação de Cidades no Brasil Colonial, separata das Actas do V Colóquio Internacio- uma oportunidade maior de interferir na forma e no desenvolvimento físico·da aglomera-
nal de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1968. ção. O valor estratégico do novo centro religioso é outro aspecto que deve ter motivado a
57 «Carta Régia da Capitania do Rio Negro, 3 de Março de 175 5», Revista do Instituto Histórico e Geogrdfico

Brasileiro, tomo 61, 1898, p. 61. interferência direta e as exigências do rei: a cidade de Mariana, batizada com o nome da
IR Suzy de Mcllo, Barroco Mineiro, São Paulo, Brasiliense, 1985.
59
Caio 13oschi, op. cit., 1994.
60
Sousa Virerbo, Dicionário Histórico e Dowmmtal dos Arquitectos, Engenheiros e Comtmtores Portugueses, 61
AHU, «Minas Gerais», caixa 1, doe. 24.
286 Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, vol. I. 62
APM, SC, códice 45, fl. 27v. 287
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rainha, deveria ostentar uma imagem de ordem e regularidade, que refletisse a nova ordem intenções iniciais, pelo que foi mostrado até agora pode-se concluir, ao menos, que 0
social que se desejava impor com a criação do bispado. projeto teve que se conformar a algumas estruturas já existentes.
No documento acima, como em outras cartas régias, evidencia-se a preocupação com A parte nova da cidade já ia se configurando ao longo dos três eixos (Fig. 2A) que se
a ordenação da praça principal e com a retidão das ruas. De fato, a boa «mação» fazia parte prolongavam na direção sul: a estrada de Itaverava - ou rua da Olaria, em seu trecho
dos princípios postos em prática pelos engenheiros militares, que eram treinados nas «Au- urbano - , a rua dos Cortes e a rua Nova, além dos eixos naturais representados pelos
las de Fortificação» a traçar e abrir no terreno novas ruas, alicerces e trincheiras 63 . Quanto córregos do Catete e do Seminário (até então, chamado de córrego «do Secretário»), ele-
às praças, locais de reunião das populações, eram, em todos os núcleos coloniais, os espa- mentos limitadores e condicionadores da forma urbana.
ços mais cuidadosamente tr:tl:ad6s e controlados do ponto de vista do seu uso 64 . Em setembro de 1747 os oficiais da Câmara de Mariana enviaram uma carta ao rei,
Nas pequenas vilas brasileiras era comum a concentração, no mesmo largo, dos prin- inf-ormando sobre o cumprimento da ordem régia de 2 de maio de 1746, supracitada. Junta-
cipais edifícios civis e religiosos, assim como do pelourinho. Este foi o caso da Mariana até mente com o Governador e o Ouvidor-Geral de Vila Rica, haviam feiro a análise dos terrenos
o momento em que se decidiu construir a Casa de Câmara e Cadeia na nova praça exigida da cidade, e «... asentara que hera o mais adequado, e congruente para a praça, cadea e mais
pelo rei. O espaço da cidade ficou, assim, marcado por uma rica seqüência espacial de edificios publicas della, o citio onde se achão os quarteis, demolindose os mesmos, não so pella
largos diferentes, que ganharam em especialização de usos: o primeiro deles, o grande adto capacidade do referido terreno, mas tão bem por estar em citio a que são inacessiveis os excessos
da Sé, espaço de cunho sagrado; em seguida, o Largo do Rocio"5, antigo Largo da Cavalha- e forias do carrego Rio no tempo das agoas ... »67. A demolição dos antigos quartéis dos Dragões
da, local onde se realizavam as festas públicas. E, por fim, a nova Praça do Pelourinho, (que já havia sido solicitada pela câmara há anos) foi autorizada pelo rei em 1748, e assim ficou
centro simbólico do poder municipal e da justiça. Construída especificamente para abri- decidido o local onde seria construída a Casa de Câmara e Cadeia duas décadas mais tarde,
gar «os novos edifícios públicos», esta praça foi ainda mais enobrecida por ter sido escolhi- segundo o projeto de José Pereira dos Santos: à margem da Rua Nova (atual rua D. Silvério), 0
da para a implantação das Igrejas das Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco, que mais recente eixo de expansão da cidade, no qual criou-se a praça do Pelourinho (Fig. 2B).
reuniam a elite local. Note-se que o documento transcrito acima não menciona o nome de Alpoim, 0
que
parece estranho, tendo em vista as implicações importantes no traçado urbano que traria a
escolha então efetuada. Considerando-se a estrutura viária preexistente, e o fato de ter
havido decisões das quais o engenheiro aparentemente não participou 68 , pode-se supor
O «plano Alpoim»: entre o ideal e o possível que sua intervenção tenha se restringido às diretrizes para o alinhamento (que nem sempre
foi completo, certamente devido à ocupação já consolidada) das vias longitudinais e de
Se a historiografia é unânime em afirmar que o engenheiro José Fernandes Pinto outras mais antigas, como a Rua Direita da Sé, e à criação de algumas transversais (as
Alpoim foi o técnico designado para orientar o estabelecimento da nova cidade, o conteú- «travessas»), menos largas, abrangendo uma área relativamente pequena da cidade, limita-
do exato do seu plano urbanístico, por outro lado, é um ponto que ainda não foi esclare- da ao sul pela íngreme colina de São Pedro dos Clérigos (Fig. 2B).
cido. Não se tem notícia de nenhuma planta da cidade assinada por ele6 6, nem tampouco Todavia, pela análise das duas plantas setecentistas de Mariana que puderam ser locali-
foram localizados outras fontes primárias com informações a respeito. Mas, por mais zadas (das quais não se tem referências seguras sobre seus autores ou sua data de execução),
indefinições e incertezas que se possa ter sobre a participação do engenheiro e sobre suas pode-se concluir que existiram algumas intenções mais radicais de remodelação da cidade.
A comparação desses desenhos (Figs. 5 e 6) com o traçado urbano concretizado (Fig. 2B)
leva a crer que, apesar de levarem em conta elementos existentes (os rios, a maior parte das
63
Rafael Moreira, «Uma Utopia Urbanística Pombalina: O "Tratado de Ruação" de José de Figueiredo
Seixas», i1t Maria Helena Carvalho dos Santos (coord.), Pombal Revisitado, Lisboa, Editorial Estampa, 1984.
64 67
Nestor Goulart Reis Filho, l!.110lução Urbana do Brasil, São Paulo, Ecl. USP, 1968. Representação de 23-9-1747. AHU, «Minas Gerais», ex. 50, doe. 61.
65
Segundo D. ele Vasconcellos (op. cit., 1974), em 1749, com a inauguração do primeiro chafariz ele 68 É·
. "' importante notar que, como ocorreu com outros engenheiros portugueses que trabalharam no Brasil,
repuxo, o Largo da Cavalhacla passaria a se chamar Praça do Chafariz, ou Largo do Rocio. Alpoun teve que se deslocar e prestar serviços em várias regiões. Além cio provável plano de Mariana, ele foi encar-
66
Cf. Judith Martins, DiciontÍl'io de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX, Rio ele Janeiro, Publicações regado d~ o,1tros projetos nas Minas (como o Palácio dos Governadores, em Ouro Preto), entre 1736 e 1750.
SPHAN, n. 0 27, vol. 1, 1974. A autora menciona a existência de três plantas da cidade, sem data ou autor, que Concom1tantememe, trabalhou no Rio de Janeiro, executando, entre outras, as obras do Aqueduto da Carioca, em
estariarn en1 um certo (<Arquivo de Fortificações e Obras>► do Exército. Até o mon1ento, estes docun1entos não 174_5 (Lyra Tavares, A Engenharia Jvfilitar Portuguesa na Construção do Brasil, Rio de Janeiro, 1965) e lecionando
puderam ser localizados, não se sabendo, portanto, se algum desses três desenhos correspondem à planta conser- (pors os dois hvros que_escre~eu datam de 1743 e 1746). No Rio ele foi nomeado coronel do regimento de anilharia
288 vada atualmente no Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro, que foi aqui reproduzida. (1751) e mais tarde bngaderro (1760), vindo a falecer em 1765. Cf. Judith Martins, op. cit. 289
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DO ARRAIAL À CIDADE

vias já traçadas, os edifícios mais importantes), esses documentos não representam exatamente
proposto por Figueiredo Seixas (e. 1763) em seu «Tratado de Ruação»11. Referimo-nos
a realidade concreta percebida por seus autores, mas sim suas imagens projetivas, determina-
sobretudo às quadras criadas entre a Rua Nova e a Rua dos Cortes, com suas formas
dos ideais de cidade que não puderam ser realizados. Em ambos, percebe-se uma vontade de
retangulares, preenchidas por lotes simétricos e por blocos uniformes, ao invés dos prédios
dar regularidade à forma das ruas, das praças e das novas quadras, mas por meio de uma
arquitetonicamente individualizados que vemos no documento setecentista anteriormen-
geometria que, mesmo se bem menos rigorosa do que a do «tabuleiro de xadrez» das implan-
te citado. O prédio da Câmara encontra-se no eixo visual da Travessa de São Francisco, e se
tações castelhanas (como, de resto, ocorreu com a maioria das criações portuguesas do pe-
~rocurou dar simetria também à praça, recuando a Igreja do Carmon para que sua quadra
ríodo), apresenta-se mais reg~lar do que o traçado que se concretizou. Acreditamos, pois, tivesse o mesmo recorte que há na de São Francisco (Fig. 6).
que eles tenham sido realizado; em fase anterior ou concomitante à execução das obras.
_Esses detalhes mais regulares e simétricos da «cartografia ideal,, de Mariana podem
O «Mapa da Cidade de Mariana,, (Fig. 5), conservado na Mapoteca do Itamaraty, no
ser vistos como os primeiros esboços das novas atitudes que seriam incorporadas ao reper-
Rio de Janeiro, é um documento de uma riqueza excepcional. A despeito de seu título, o
tório dos engenheiros ligados ao urbanismo pombalino. Entretanto, essas formas «ideais,,
desenho se aproxima menos de um mapa propriamente dito, do que de algo que no trata-
ficaram apenas nas representações do espaço de Mariana; prosseguindo com as compara-
do setecentista do engenheiro Azevedo Fortes vem referido como uma «perspectiva mili-
ções, vemos que o traçado urbano que se concretizou, com suas quadras regulares mas de
tan,, ou seja, um tipo especial de representação das «obras,, de tal forma que «de um só
dimensões variadas e com ruas nem sempre ortogonais entre si (Fig. 2B), assemelha-se
jacto se lhe conheça a planta, e o perfil, ou elevação,, 69 .
bem menos ao da Baixa iluminista do que a outras malhas viárias de épocas bem anterio-
Apesar do mau estado do documento, percebe-se o maior esmero e detalhamento da
res, como, por exemplo, àquelas das bastides francesas 73 . Ou, já no contexto português,
parte «antiga,, da cidade, enquanto que na «parte nova", que corresponderia ao essencial
aos traçados de certas implantações portuguesas do fim da Idade Média74 e sobretudo do
da intervenção de Alpoim, o desenho é bem menos preciso. Pode-se também supor que o
período da Expansão, como Angra do Heroísmo 75 , ou como O Bairro Alto de Lisboa76, ou
documento tenha sido confeccionado em duas fases diferentes da implantação do traçado,
mesmo, já na colônia brasileira, como os centros reformados de Salvador e do Rio de
e por diferentes autores, o que explicaria as diferenças nas técnicas de representação. Nota-
Janeiro. O traçado de Mariana encontra-se, portanto, bem mais próximo do «substrato de
-se também que no «Mapa,, as novas quadras são mais numerosas e semelhantes entre si do cultura maneirista peninsular,, que fundamentou a práti"ca da 11 h .· ·1·
e gen a11a m1 1tar, reto-
que na realidade. Outro detalhe curioso deste desenho é representação de uma série de mando as palavras de Rafael Moreira 77 •
edifícios da antiga rua Direita, que havia sido invadida pelo ribeirão do Carmo.
Parece-nos, assim, que Paulo Santos cometeu um equívoco em seu texto_ que, de
No catálogo da Mapoteca estimou-se que este desenho tenha sido feito entre 1796 e
re~t~, permane_ce como uma referência fundamental - ao apresentar esse mesmo mapa
1803, provavelmente baseando-se nas épocas de conclusão dos edifícios religiosos assina-
militar de Manana (mas sem analisá-lo, e portanto sem atentar para as disparidades exis-
lados. Critério questionável, em nossa opinião, pois a representação dessas igrejas é bastan-
tent_es em relação à realidade construída) conjuntamente com representações cartográficas
te esquemática, e as primeiras providências para sua construção haviam sido tomadas a
de c1~ades como Vila Viçosa, S. José de Macapá e Vila Nova de Mazagão, que têm traçados
partir de meados do século.
considerados por ele como «perfeitamente regulares,,. O que, na concepção do autor, ao
O segundo documento de que dispomos, a «Plãta da cidade de Marianna)) (Arquivo
que tudo indica, vale dizer traçados «com todas as ruas cruzando-se em ângulos retos e
Histórico do Exército, R.J.), já apresenta técnicas cartográficas bem mais desenvolvidas
quase em xadrez perfeito [ou seja, com quadras aproximadamente de mesmas dimensões]
(é uma verdadeira «planta», totalmente em projeção ortogonal, com escala em braças),
e tendo no centro uma praça inteiramente quadrada» 78 , características que não estão pre-
próprias dos técnicos militares, apesar do grave engano cometido em relação ao norte: a sentes no projeto efetivamente executado em Mariana.
seta da rosa dos ventos está apontando para a direção oeste (Fig. 6).
No que diz respeito à «parte nova», vemos que algumas das soluções propostas (e não
71
concretizadas) não estão desvinculadas dos padrões adotados em criações iluministas, tais Rafael Moreira, op. cit., 1984.

como a «Baixa» pombalina (1755) de Lisboa 70


ou mesmo do modelo utópico de cidade 72 No des~nho, a Igreja do Carmo ocupa, na verdade, o local da pequena capela gue a precedeu, que ficou
,
con 11ecida depois como «Carmmho Velho» (demolida nos anos 1930).
73
Cf. Pierre Lavedan, Histoire de l'Urbanisme, Paris, Laurens, 1926
~a . . .
69 Manuel de Azevedo Fortes, O Engenheiro Português (1729), tomo II, citado por Beatriz P. S. Bucno, · Jorge Caspar, «A morfologia de padrão geométrico na Idade Média», in Finisterra __ Revista Portu-
guesa de Geogra{ta, Lisboa, vol. IV, n. 0 8, 1969, pp. 198-215.
«Os engenheiros militares e a construção de cidades», comunicação publicada nos Anais do V Congresso Brasileiro
;;, ~f. José Manuel Fernandes, AngiYt do Heroísmo, Lisboa, Editorial Presença, J 989.
de História da Arte (São Paulo, Fapesp/USP, 1995).
7
° Cf. José Augusto França, Une Ville des Lumieres - La Lisbo1111e de Pombal, Paris, École Pratique des 77
Cf. Helder Cama, O Bam·o Alto - tipologias e modelos arquitectónicos, Lisboa, Címara Municipal, 1994.
Op. Clt., p. 141.
290 Hautes Études, 1965. 78
Paulo Santos, op. cit., p. 60. Esta descriçc'ío se refere à Vila Bela da Santíssima Trindade. 291
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS DO ARRAIAL À CIDADE

Segundo o Cônego Trindade, o sargento-mor Alpoim «desde 1743 presidia ao ali- por chãos e respeitando-se algumas preexistências, como terrenos previamente aforados e
nhamento das novas ruas e à factura das novas construções, e disto se ocupou até 1749, construídos. Parece certo, aliás, que Alpoim (ou, em sua ausência, outro funcionário dele-
79
tendo por fim criado uma cidade nova: toda a parte que fica ao sul, à retaguarda da Sé» ,
gado) tenha tido que administrar interesses divergentes: as diversas querelas ocorridas en-
De fato, pelo menos dois documentos provam que, até 17 48, ainda não se sabia exatamente tre moradores e a Câmara, a respeito da indefinição da posse dos terrenos pertencentes ao
como seria organizado o traçado urbano no terreno, outrora «dos pastos)), que havia sido patrimônio da cidade, podem ter se referido também à área prevista para a extensão, e,
nesse caso, certamente contribuíram para a demora.
reincorporado ao parrimônio da Câmara.
O primeiro deles, citado pelo mesmo autor, trata de uma querela entre duas irman- De qualquer forma, as modificações e adaptações dos planos iniciais eram fato corri-
dades, a respeito do novo c!i.mibho que deveriam percorrer as procissões da Semana Santa, queiro na prática dos engenheiros, principalmente quando se tratava de extensões e regulari-
após a inutilização, pelas enchentes, de ruas que compunham o itinerário dos devotos zações de tecidos preexistentes, e não de criações urbanas ex nihilo. Quando se compara os

(principalmente a rua do Piolho e a rua Direita primitiva): planos de cidades setecentistas planejadas, percebe-se uma grande diversidade de configura-
«... por se não poder fazer pela mesma paragem por onde antigamente se fazia, é ções, pois, como vimos, a ação desses profissionais era guiada por certas normas, que eram
preciso determinar-se outra, sendo que nem ainda isso se pode no presente tempo geralmente estabelecidas de forma bastante simplificada e pouco precisa, como no caso das
resolver por se não saber o modo que se terá nos arruamentos da cidade a que man- exigências contidas nas cartas régias. Normas estas que, segundo Renata Malcher, eram feitas

dou dar forma Sua Majestade ... 1


>>8( •
deste modo pela percepção que se tinha da desnecessidade de criá-las restritivas ou impositivas,
porque fündavam-se sobre a confiança nos técnicos que as executariam, e também porque
O segundo documento é uma carta do primeiro bispo de Mariana, D. Manuel da partilhavam a visão pragmática do processo: «a experiência, sempre, mostrava que a

Cruz, parcialmente transcrita por Waldemar de Moura Santos: maleabilidade era o princípio mais seguro» 83 •
«Esta cidade está muito no seu princípio e para as ruas novas que se vão fazendo e que
são muitas tem vindo ordem de S. Maj. para serem bem reguladas; e como aqui
corriam várias demandas a respeito de águas e de datas de terras vizinhas à cidade em
que se querem fazer ruas, mandou S. Maj. nesta Frotta se remetessem as tais deman- Chãos e casas: a atuação do poder municipal
das para Lisboa, para lá se resolverem; peço a V Revma proteja tudo o que for para
aumento dessa cidade; pois nela mostra S. Maj. ter gosto pelas apertadas ordens que Os principais obstáculos encontrados pela Câmara de Mariana na execução das deter-

tem mandado para este efeito)) 81



minações régias estiveram relacionados à falta de precisão na delimitação do rossio e à difícil
gestão dos aforamentos e das construções particulares.
O autor não mencionou a referência e a data desta carta, mas supõe-se que ela tenha Já em 1731 o Senado havia solicitado ao rei que passasse uma provisão para que se
sido endereçada ao Bispo do Rio de Janeiro, e portanto deve ter sido escrita por D. Manuel pudesse proceder ao tombo e à demarcação da sesmaria que lhe havia sido concedida. No
antes de sua posse em Mariana, que se deu em fins de 1748. Segundo Moura Santos, ano seguinte, os oficiais publicaram um edital determinando que todas as pessoas que
D. Manuel da Cruz« ... inspirou, exigiu e obteve a aprovação do plano de roda a parte aforassem terrenos seriam obrigadas a levantar suas casas no prazo de um mês, ou as terras
urbana da cidade, que, segundo opinião de historiadores de nota, foi discutido e sabia- ficariam «por devolutas para quem as pedir». Aparentemente, a falta de medições e anota-
mente orientado pelo dinâmico bispo» 82 , informação que não pudemos comprovar. ções precisas fazia com que a Câmara só tivesse controle sobre os terrenos que estivessem
Na consideração desses dados, levantamos a hipótese de que, na prática, não se tenha edificados: em 1745 publicou-se novamente o mesmo edital, desta vez referindo-se especi-
seguido um plano global da cidade, preconcebido e «fechado)) pelo engenheiro, mas que o ficamente às terras do «pasto da Olaria», onde havia propriedades foreiras« ... sem estarem
traçado tenha, de fato, sido resolvido ao longo de vários anos, de acordo com a demanda tapadas nem cazaz levantadas e sucede algumas vezes darem se as terras por se ignorar
terem aforado a outras pessoas» 84 •
A situação complicou-se com o passar do tempo, e em 1750 os oficiais refizeram o
79 «Arquidiocese de Mariana; subsídios para sua história» citado por Edgar Falcão, Relíquias da term do
pedido de tombamento da sesmaria:
ouro, São Paulo, F. Lanzara, 1946.
8u Cónego 1rindade, op. cit., 1945, p. 159.
81 Waldemar de Moura Santos, lendas Marianenses, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1967.

82 É interessante notar que D. Manuel, português de nascimento, até vir para Mariana havia exercido suas
83
Renata M. de Araujo, op. cit., p. 44.
292 funções em São Luís do Maranhão, outra cidade colonial de traçado regular.
84
ACM (Arquivo da Câmara de Mariana: ]CHS/UFOP- Mariana), códice 554, fl. 43v. 293
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS
DO ARRAIAL À CIDADE

«... porque no tempo prezente se dá mayor percizão daquella diligencia por cauza dos «. •. attendendo ao bem commum, ordenaçoens do Reyno e novas ordens de S. M.
grandes embarassos q. seopoem a cobrança dos foros principalmente pela inundação, que Deos Guarde somos obrigados a augmentar formosear e prehencher esta Cidade
que padeserão muitas propriedades desta povoação, q. estando lançadas nos livros dos para o que senão acha sitio com mais capacidade que o baldio das terras do pasto de
ditos foros, se achão hoje extintas, e ainda aquellas que existem não tem anecessaria Sam Gonçallo não so pella Sirconferencia que tem como tambem por ficar a dita
confrontação com que se possa facilmente evitarse as duvidas que dificultão a dita nova povoação livre da innundação do Ribeiram conforme as mesmas ordens do dito
cobrança ... »85 Senhor ... » 88
Manoel Cardoso Cruz, o já mencionado padroeiro da capela de São Gonçalo, opôs-
Somente dois anos mais tarde, nos meses de janeiro a maio de 1752, é que foi realiza- -se à Câmara, alegando ser o proprietário daqueles terrenos, que lhe haviam sido concedi-
do o tombamento do rossio, fazendo-se a medição de cada propriedade foreira nele incluí- dos sob a forma de datas minerais. O conílito durou alguns anos, pois o parecer de Gomes
da, estivesse ela construída ou não, fosse ela «urbana» ou «rústica». Pela consulta dos Livros Freire, que foi favorável à posse pela Câmara, data de março de 1749. Segundo O governa-
de Tombo pode-se notar que em todas as partes da cidade havia moradores que detinham dor, os terrenos estavam incluídos na sesmaria da câmara, e o mineiro lavrava apenas uma
vários chãos foreiros, às vezes vizinhos uns dos outros 8". pequena parte deles, por não serem de «muita riqueza». Determinava, assim, que no prazo
Em outros documentos, percebe-se que houve uma grande especulação dos terrenos de dois anos fossem concluídas as explorações minerais, e o terreno entregue definitiva-
89
contidos no rossio. O edital passado pela Câmara em 6 de agosto de 1750 faz menção ao mente à Câmara • Entretanto, esta indulgência descontentou a Câmara, que pouco tempo
comércio ilícito dessas propriedades, feito principalmente por pessoas de «poucos cabedaes», depois se queixava dos estragos causados às ruas e propriedades foreiras do morro de São
que não tinham condições para construir nos chãos que pediam, sendo seu único intento Gonçalo pelas lavras do citado mineiro 9º.
apossarem-se dos terrenos para vendê-los, No que diz respeito ao controle da forma das construções, é necessário observar que
«... seguindose daqui grave prejuízo do publico, não so pela falta de aumento dessa na citada ordem de D. João V não foram feitas grandes exigências em relação à aparência
povoação mas tambem porque aquellas pessoas que podem e necessitão levantar cazas que deveriam ter as habitações de Mariana, como ocorreu em outras cartas régias de cria-
para sua acomodação são precizadas a comprarem os chaons que se achão em poder de ção de núcleos coloniais, que chegavam a metrificar as fachadas dos edifícios91.
sertos foreyros que não cuidão nem tem possibilidade para tal edificação, valendose Como observou Renata Malcher, nesses documentos, as freqüenres expressões «formo-
para não os largarem do futil pretexto de que pagam os foros [... ] não hé do intento da sura da terra», ou «formosura da vila» ou «das ruas» estavam ligadas «a um ideal de urbanis-
nossa ademenestração so atender para a utilidade que se recebe das taes pensões, mas mo de programa, com as casas todas iguais» 92 . Da mesma forma, em outros documentos
tambem que esta Cidade se dillate em edificios para grandeza da mesma, tanto reco- setecentistas são associados conceitos tais como simetria, harmonia, regularidade, comodida-
mendada pello Real agrado, e ordens de Sua Majestade»87. de, beleza e «polícia» 93 :
O Senado decidia que, daí em diante, os foreiros teriam um prazo de dois meses para «E porque uma das couzas que as naçoens mais cultas costumão ter grande cuidado
construir suas casas, ficando proibida a venda de terrenos. E porque «alguns foreyros ape- no tempo prezente hé a semetria, e armonia dos edificios que de novo se levantão nas
nas levantão as frontarias das cazas, e fazem qualquer outra pequena obra despenssando Povoações das Cidades, e Villas para que da sua disposição não só resulte a
nesta pouco custo para assim venderem os chaons», ficava determinado que somente seria commodidade publica mas tambem o agrado com que se fazem mais appeteciveis, e
autorizado o comércio de «cazas inteiramente feitas e levantadas». habeis as povoações, conhecendo-se da boa ordem com q'estão dispostas a policia, e
A especulação, aliada ao desejo sempre presente de «aumentar» e «dilatar» a cidade, a cultura dos seus habiradores.» 94
havia levado os camaristas a buscar novos terrenos para aforar no «pasto de São Gonçalo»,
uma área que, além de se mostrar suficientemente grande e de estar a salvo das enchentes "ACM, códice 554, fl. 106v.
"APM, SC, códice 45, fl. 108.
periódicas do rio, constituía a principal «porta» de acesso à cidade, sendo portanto desejá- 9
° Cf. carta do Senado a Gomes Freire,de 30-11-1749. APM, SC, códice 76, fl. 91v.
vel que ela estivesse convenientemente organizada no momento da entrada solene do pri- 91
Cf. Sylvio de Vasconcellos, op. cit., 1977, p. 91.
n Op. cit, 1992, p. 84.
meiro bispo. No edital de 29 de novembro de 1747, determinava-se que: 93
. De acordo com a definição do dicionário português setecentista de Raphael Bluteau (vócabuLzrio Portuguez
e Latzno. ••, Coimbra, Colleg10 das Artes da Companhia de Jesus, 1712), o rermo «policia» significava: «a boa
ordem qlle se observa & as leys que a prndencia estabcleceo para a sociedade humana nas cidades, Republicas,
85
AHU, «Minas Gerais», ex. 55, doe. 18. &e ... » (,zpud Beatriz Bueno, op. cít., 1994).
94
"' ACM, Livros de Tombo da Câmara de Mariana, códices 279,415,416,417. Morgado de Mateus, 1766. ln: documentos interessantes para a História dos Costumes de São Paulo
294 87
ACM, códice 462, fl. 65v. vol. 65, p. 106 (apudBeatriz Bueno, op. cit:). '
295
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS
DO ARRAIAL À CIDADE

A esse respeito, acreditamos que a pertinente observação de Sylvio de Vasconcellos, publicas não terão paredes de q uintaes correspondentes às Ruas e Travessas, e quando
sobre a falta de simetria das casas de Vila Rica, pode ser estendida a outras vilas mineiras:
pela sua situação não possão deixar de as ter, as mesmas se fabricarão de sorte ornadas
«... a topografia, a desobediência dos súditos, o relativo afastamento da Metrópole, o
de janellas, portas e beiradas, que pareção frontarias de casas, pena de se demolirem à
desenvovimento rápido e a improvisação levariam ao menosprezo de normas assim tão
custa dos senhores das mesmas, e de ser obrigados da Cadeya a edificalas da forma do
rígidas» 95 . sobredito, e isto mesmo se observara no termo de dois meses a respeito de todas as
Os grupos de edifícios com fachadas uniformizadas, segundo o autor, só aparecem
mais cazas que se achão já feitas com a sobredita dezordem, sitas no mesmo destrito,
em raros trechos da povoação,,somo no caso de alguns sobrados da Praça Tiradentes, onde debaixo da cominação das referidas penas ... ,,
se percebe a intenção de dir unidade ao conjunto através do uso astucioso de um mezanino
intermediário entre os dois pavimentos, que permitiu o nivelamento dos andares superio- Note-se que a determinação não se restringia unicamente às novas casas da cidade,
res dos edifícios. O autor observou que «esta solução inusitada sugere trabalho de profis- mas a todos os edifícios já construídos na área limitada pelo Ribeirão do Carmo e pelos
sional não muito afeito aos costumes locais e mais atento aos preceitos vigentes no litoral». cónegos do Catete e do Seminário. Em editais posteriores, o Senado procuraria estender a
Este profissional não foi outro que o sargento-mor José Fernandes Alpoim, que desenhou área de abrangência das medidas de controle à totalidade das edificacões incluídas na sua
também o Palácio dos Governadores, na mesma praça96 . sesmaria, estivessem elas «na Cidade» ou em suas «estradas públicas»98:
Em Mariana também há uma exceção à movimentada regra geral das fachadas minei- «... Fazemos saber a todos os moradores da Cidade e seus Arrebaldes que tem cazas
ras: a Rua Direita da Sé. O antigo «caminho de cima», segundo Salomão de Vasconcellos,
dentro da sesmaria do Senado que não metam esteyos na frontaria de suas cazas, nem
só recebeu sua feição atual a partir de 1745, quando ele foi «arruado» (regularizado) segun- abram janellas, e portas, nem hinda nas paredes dos quintaes façam obra alguma sem estar
do o plano de Alpoim. prezente o Escrivam deste Senado e o arruado1; com pena de serem prezos e pagarem a
O autor afirmou, baseado em um acórdão da Câmara, que as construções que conhece- condenação que lhe arbitrarmos e na mesma pena encorreirão os officiais de Carpinteiro
mos hoje em dia só teriam sido iniciadas em 1753. Este documento, segundo o historiador, e Pedreiro que fizerem as ditas obras sem estarem prezentes o Escrivam e o armador. .. »99
determinava que todos os pretendentes a edificações do lado esquerdo da rua (do lado da
catedral) as fizessem «de maior nobreza, dando fundos para o Palácio,, (o de Assumar, que À guisa de conclusão, fazemos notar que, mesmo se a repetição desses editais ao
havia sido transformado em residência episcopal). O autor conclui que «essa é a razão de longo da segunda metade do século XVIII atesta a pouca obediência aos mesmos, não se
vermos até hoje todas as casas desse lado da rua, de dois andares e de sacadas; enquanto do deve subestimar a atuação do Senado na regularização e na regulamentação do espaço
lado oposto, dando para a praia, eram e são, no geral, casas baixas, de um só pavimento» 97 • urbano de Mariana. Pelo contrário, as fontes consultadas mostram claramente que os
Além do fato de serem todos edifícios de dois pisos, em visita ao local pode-se cons- camaristas procuraram cumprir seus papéis de legisladores e ele fiscais, a fim de que a
tatar que se tomou o cuidado de colocar as linhas de beirais, sacadas e vergas de portas e forma da cidade se aproximasse, tanto quanto possível, das imagens ideais contidas nas
janelas à mesma altura, o que, sem dúvida, foi facilitado pelo aspecto plano da via. exigências régias.
Se, pelo que se pode observar no local, a uniformização das fachadas de Mariana se
restringiu ao lado esquerdo da Rua Direita e - de maneira menos concluída-, a algu-
mas partes do antigo Largo do Rossio (atual Praça Gomes Freire), pela documentação
pode-se constatar que a Câmara procurou impor, ao menos, uma certa continuidade no
arruamento e no ritmo de cheios e vazados das «frontarias». É o que se depreende da
segunda parte do Edital de 6 de agosto de 1750, supracitado:
«E outrossy mandamos, conforme ordem de Sua Majestade, que para maior formo-
sura das ruas, todas as cazas que se fizerem nesta cidade para dentro das tres pontes

95 Sylvio de Vasconcellos, op. cit., 1977, p. 91. 98

96
Nas alterações propostas para as Posturas Municipais, em 1753, o Senado estabeleceu multas para as
Livia Romanelli, «Considerações sobre a formação do espaço urbano setecentista nas Minas», in pessoas que con~truíssem nos limites da sesmaria sem a autorização da Câmara, sendo que a metade do valor da
O século XVIII- Revista do Departamento de História, Belo Horizonte, UFMG, n. 0 9, 1989, p. 134. penalidade ficana para quem denunciasse a infração. Cf. ACM (ICHS/UFOP-Mariana), códice 462, fl. ] l Ov.
296 97
Salomão de Vasconcellos, op. cit., 1947. 99
ACM (Mariana), códice 462, fl. 93v.
297
ARkAJAI. Ili: RlllEIRAO DO CARMO (16% - l WJ)

Fig. lA- Mapa-sírnese do Arraial


do Carmo (1696-1702), com o núcleo
de Mata Cavalos, onde se destaca a capela Fig. 2A - Mapa-síntese da Vila do Carmo (1711-1743). Notar o valo divisório, atrás da Matriz da Conceição
bandeirante de Nossa Senhora do Carmo (representado por traço-ponto), e os novos edifícios: Cadeia (5), Casa da Intendência (6),
(1). Neste e nos ourros mapas-síntese Casa dos Juízes de Fora (7), Palácio dos Governadores (8), Olaria (9), PaLício «deAssumar» (12), Quartel (13),
que se seguem, as linhas duplas contínuas Casa de Fundição (14), Capela de Santana (15), Santa Casa (16). Os números (]O) e (11) se referem,
indicam as vias já consolidadas, respecrivarnente, à Chácara Quintanilha e à Fazenda do Bucão, unidades rurais localizadas nas imediações da Vila.
e as tracejadas indicam os caminhos No Largo da Cavalhada, o chafariz de repuxo no Largo da Matriz, o pelourinho (*).
recém-criados. Os edifícios mais
importantes são numerados, destacando-se
os recétn-criados e1n preto.

AlWAlAl nr: HfüUR.~0 l>ú CARMO I nn; - 17 .11 j

Fig. 1 B - Mapa-síntese do Arraial


do Carmo (1702-1711), com os novos
núcleos da Conceição, de São Gonçalo
e Monsus. Como novos elementos Fig. 2B - Mapa-síntese da Cidade de Mariana (1745-1800). As hachuras indicam a extensão provável
construídos, temos: Capela da Conceição (estimada segundo a documentação e a topografia) das inundações de meados do século XVIII.
~ -
~u; - , ~ ~ - -
;:: ~-1,-~--
Lno - f..,,..!,l'/"'"U-
(2), Capela de São Gonçalo (3),
a casa onde funcionou a primeira Câmara
Novas edificações: Casa de Cámara e Cadeia (17), Capela das Mercês (18),
Capela da Arquiconfraria (19), Seminário (20), Igreja de São Pedro (21), Igreja do Rosário (22),
298 ""'........... -.1:-::::-,,,.~~ Aljube (23), Igreja de São Francisco (24), Igreja do Carmo (25). 299
f! ~ - (4) e o pelourinho (*).
Fig. 3 - Detalhe do «Mapa das Minas do Ouro e S. Paulo e Costa do Mar que lhe pretence» (sic) atribuído
ao sargento-mor Pedro Gomes Chaves. Supõe-se que seja de 1714 (segundo Salomão de Vasconcellos,
O Pa!tício de Assumar, 1937), época em que arraial acabava de ser elevado a Vila. O fato de só se ter representado
o Arraial de Baixo, onde se localizava a Matriz da Conceição (com sua feição primitiva) demonstra a importância
adquirida pelo núcleo. Segundo S. de Vasconcellos (op. cít., 1937), o sobrado representado próximo à Matriz Fig. 5 - «Mapa da cidade de Marianna» (século XVIII, Mapotcca do ltamaraty, Rio de Janeiro).
é o Palácio dos Governadores, demolido em meados do século XVIII. A direita, a Ponte de Tábuas. Trata-se mais propriamente de uma vista urbana, tomada da parte norte, ou seja, da margem esquerda
do ribeirão. O desenho da parte antiga é bem mais preciso do que o da «parte nova»,
planejada supostamente por Alpoim. Notar a Rua do Piolho, invadida pelas águas do rio.

Fig. 6 - «Plãta da Cidade de Mariana» (século XVIII, Arquivo Histórico do Exército, Rio ele Janeiro).
Fig. 4 - «Vista ou Prospectiva de hum lado dos quartéis da Villa de N. Sr.ª do Carmo», desenhada por O desenho, apesar de ter sido certamente elaborado por um técnico, apresenta um sério engano em relação
«Joseph Roz. de Olivcyra, Capr'm. de Dragões, aos 15 de dezembro de 1722» (Arquivo Histórico Ultramarino, à sua orientação, pois a flecha da rosa-dos-ventos aponta para a direção oeste. Os logradouros preexistentes,
Lisboa), incluindo uma «Planta geográfica dos ditos quartéis», desenhada entre dois regos (possivelmente como a rua Direita, a Rua de S. Gonçalo e as praças, foram regularizados nesta representaç.'ío, e a «parte nova»
300 o do S~minário e o do Catete) e um pctipé (escala gráfica) em palmos. apresenta uma geometria mais rigorosa e ele1nentos simétricos que não se verificaram na realidade. 301
ENCUENTROS, CONFLICTOS Y SINTESIS EN LA
ARQUITECTURA AMERICANA. SIGLOS XVI Y XVIII*

RAMôN Gunt'RREZ
Consejo de Investigaciones Científicas de Argentina

* Texto inédito entregue para publicação em 1997.


1. La cultura de conquista

Es evidente que el proceso de encuentro cultural entre Europa y América se produce en un


contexto de «cultura de conquista)), donde operan complejos factores de relación y conflicto.
La cultura clonante-dominante, en este caso la espafíola, sufre en si misma procesos de
transformación en su proyección a la nueva dimensión continental.
Estos procesos, propios de la reducción, síntesis e integración de sus multifacetadas
regionales, proyecta hacia América una Espafía no especificamente en la metrópoli.
La pluralidad idiomática se reduce a la unidad dei castellano que se asume como
«espafíol», las diversas arquitecturas regionales se diluyen en rasgos genéricos que testimo-
nian la selección y la síntesis.
Aún sobre áreas abiertas y sin contacto con culturas americanas, Espana se proyecta
en un programa propio que sin embargo deberá adaptarse a las nuevas condiciones de un
habitat y una geografia no siempre complaciente.
Los mitos espanoles se exacerban y potencian en contacto con una realidad mágica e
inasible. Recônditos atavismos se truecan en factibles utopias y el mundo de las ideas
renacentistas arrastra las fábulas y las heterodoxias milenarias desde la mitologia hasta los
textos cristianos apocrifos que parecen ser verosimiles en este nuevo contexto.
Si estas profundas transformaciones sufre la vivencia de una cultura dominante, cuánto
más habrá de modificarse en el contacto con estas realidades culturales de muy diverso
nível de desarrollo.
Si acaso hubo imposición y colocación de la cultura dei conquistador en el contexto
de una realidad abierta, no menos cierto es que ella pronto debió acudir a la verificación de
sus premisas mediante el tradicional sistema de ensayo-errorcorrección.
Desde las disponibilidades tecnológicas, hasta los ejemplos peculiares de adaptación
a condiciones rigurosas dei sitio (caso de México, ubicada sobre una laguna parcialmente
desecada), es evidente que el espafíol impone su voluntad pero no siempre tiene êxito en
su propuesta.
Baste recordar dos casos de contextos tan variados como México y Paraguay para
verificar que el traslado lineal de la experiencia europea se presenta como insuficiente para
resolver la problemática planteada.
En la construcción de la Catedral de México en 1563, el arquitecto espafíol Claudio
de Arciniegas, de destacada actuación en la península, ve como su sistema de circulación 305
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ENCUENTROS, CONFLICTOS Y SINTESIS

tiene asenramienros diferenciales y hundimientos que lo llevan a recurrir a los indígenas, En su libro, que se conserva en la Biblioteca Nacional de Bogotá, Dávila encontró
que resolverán su problema con plataformas sobro pilotaje de madera. elementos de! repertorio manierista que utilizó en la fachada de! templo de San Francisco,
En los repliegues torritoriales de! siglo XVJI, en la frontera paraguaya, los espanoles pero a la vez, debió aprender los sistemas de construcción de la carpinteria de lo blanco
construirán a la usanza tradicional un castillo con la «casa de! castellano)), bastiones que para cubrir la navo y el crucero.
responden al santoral y sólidas murallas de piedra (San Ildefonso de Arecutaguá). Los dibujos de cartabones que hizo Dávila en el mismo libro do Serlio, senalan esta
Castillo de piedra realizado a alto costo en medio do una selva que solo proveía abun- circunstancia de una concentración en un único Maestro de técnicas especificas de canteria
dante madera. Tres anos de costoso trabajo para una obra rápidamente obsoleta pues la y carpinteria. La necesidad dotó de disciplina y creatividad a los artesanos de la primera
cambiante frontera pronlJl d~jó atrás la inútil fortificación. El espanol aprendió la lección y fase de la cultura de conquista.
apelará a fortificaciones pasajeras de estacadas de madera que, trasladada la frontera, pueden A la vez, el conquistador integró experiencias locales, aunque en algunos casos se
ser recogidas y acompafiar flexiblemente y a bajo costo, los vaivenes de] conflicto bélico. perdieron técnicas constructivas, como los secretos de corte de piedras duras de las cante-
La cultura do conquista se adapta y perfecciona en ese encuentro que potencia valo- ras 111ca1cas.
res aunque algunos de ellos, sin dudas, se hayan perdido como corolario de una domina- Facilitó mucho en los mecanismos de aprendizaje y transferencia, la coincidencia
ción que no fue precisamente suave. entre las modalidades de la organizacion gremial medioeval y los mecanismos que aplica-
ban las culturas americanas en los calpullis mexicanos o los ayllus andinos.
EI sistema articulado de maestro, oficial, aprendiz, consolidado sobre una urdimbre
familiar y social común, posibilitó un rápido recambio y consolidación de la estructura
2. Integración y transición artesanal.
Es quizás éste el más importante mecanismo que asegurará, a nível urbano, el poten-
Uno de los elementos que !lama la atención en el proceso de transferencia es el de cial desarrollo de una integración social y cultural de los indígenas y otras castas ai mocanismo
aplanamiento de los tiempos históricos y la integración de momentos artísticos. productivo de! sector artístico-artesanal.
Si nosotros tomamos una obra paradigmática como la catedral de Santo Domingo, en La eclosión de este sistema integrado a las formas de aprendizaje empírico, donde la
un contexto donde la presencis indígena aparece reducida a la categoria de mano de obra y la vinculación de parentesco y luego su proyección religiosa-asistencial garantizaba una fuer-
conducción técnica es directamente trasladada de Espafia, constatamos notables cambios. te red de solidaridad, alcanzará su apogeo durante el período barroco.
En primer lugar una obra que dura 25 anos frente a las tradiciones seculares de cons-
trucciones catedralicias europeas.
La obra además es capaz de integrar las manifestaciones de un gótico tardio, la deco-
ración de! gótico isabelino, detalles mudéjares y un pórtico de! renacimiento plateresco. 3. La «mestización» cultural
Este proceso de sintesis operado en contemporaneidad con la transferencia, pero una úni-
ca obra que integra propuestas tan diversas sefiala la viabilidad diferenciada para actuar Es evidente que durante el siglo xvrn se produce un proceso de cualificación de los
sobre espacios abiertos y más despojados de mecanismos de control. sectores indígenas, criollos y mestizos en el plano de! ejercicio profesional de la arquitectu-
Los grados de libenad expresiva van también acompanados de procesos de carencias ra y las artes.
técnicas y profesionales que llevan a reforzar esta integración no solo en las obras, sino Contribuye a ello por una parte, el abandono que hace el espanol do los oficios y ol
también en los propios maestros. descrédito social que - aún en la península - alcanzan «los que viven de las manos)).
Aún en si tios como México y Quito donde los franciscanos montasen tempranamen- Pero también - y más importante aún - es la consolidación de un sólido sistema de
te bajo la conducción de Fray Pedro de Game y de Fray Jodoco Ricke, sus talleres de referencias sociales y productivas que integra mancomunadamente a las antiguas relacio-
capacitación de indígenas, es evidente que la necesidad llevó a integrar conocimientos y nes de parentesco indígena con las organizaciones gremiales y las hermandades o cofradias
destrezas a los propios maestros espafioles. relegiosas.
El maestro Mayor Sebastián Dávila, que en el último rereio de! siglo XVI actuaba en Estas entidades aseguran las formas de participación colectiva en la vida urbana, marcan
las obras de la Catedral y San Francisco de Quito, poseía un tratado de Sedio quo habia los rasgos de protagonismo social y jerarquizan las calidades de! artesano, a la vez que le
306 adquirido en trueque por un caballo. 307
asegura una inserción en la vida religiosa y un respaldo asistencial.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ENCUENTROS, CONFLICTOS Y S!NTESJS

El protagonismo que adquiere el artesano se proyecta a las modalidades de una trans- «ultrabarroco o el «ultrachurriguerismo». Una reflexion más ponderada que parte de la
formación visible de la vida urbana marcada por el proceso de sacralización de las activida- realidad de la obra misma posibilita esta comprensión equilibrada dei fenómeno.
des cotidianas definidas por las estrategias contrarreformistas del barroco. Una comprensión que no elude la aceptación de un proceso integrador en un mo-
Las ideas troncales de participacion y persuasión tienden a tenir todos los actos de la mento en que los sectores populares indígenas o mestizos son protagonistas esenciales de la
vida urbana que se insertan en la cosmovisión de un cristianismo militante. realización arquitectónica.
Esta premisa dei pensamiento barroco confluye con la visión religiosa del universo Esto responde a la ocupación de! escenario urbano pero a la vez al repliegue ya sena-
indígena, donde todos los ªí:fºS tienen un sentido religioso y donde no existe la distinción lado de los espafioles peninsulares que hacen abandono de los oficios por considerados de
nitida entre lo sacra! y ti secular. menor jearquia social.
A la vez, la sacralización de los âmbitos externos, de los espacios públicos urbanos, Es en contexto que afloran las cada vez más elocuentes referencias ao medio local ao
dei paisaje natural y dei territorio, revierte en las antiguas modalidades de valoración que paisaje, a los elementos de la vida cotidiana, que en definitiva cualifican la arquitectura
poseian las culturas precolombinas americanas. como emergente de un determinado lugar.
Esta «confl11encia» estructural explica el renovado entusiasmo con que la primicia No se trata de una búsqueda teórica, ni de anhelo de originalidad. La distancia dei
barroca es abordada en América. Significa en e! fondo la potenciación de las antiguas pensamiento indígena ai occidental nace en que mientras este último tiende a una dinâmi-
tradiciones integradas en un marco renovado. O si se prefiere, la expansión de nuevos ca por construir la historia, aquel busca el equilíbrio en su propio cosmos.
contenidos religiosos recurrieondo a modalidades rituales de antigua data. Es decir que resuelve el problema en una visión coyuntural sin apostar más allá de lo
Si la sacralización dei espacio externo habia testimoniado los mejores logros do los que está encarando.
centros ceremoniales prehispánicos o habia marcado creativamente la transición de los Por ello el barroco americano atiende a otros parâmetros diferenciados que la bús-
atrios y capillas abiertas, la transferencia de estas experiencias a los âmbitos públicos urba- queda de ratificación de un poder autocrático, de un sentido de infinito racionalizado o de
nos o a la dimensió territorial fue expandida con euforia. los ensayos sobre trazas elipsoidales del barroco europeo.
Lo propio habría de sucedor con la fuerte ritualización, la recuperación dei sentido Es una arquitectura que logra efectos similares de conmover apelando a los sentidos y
procesional, los mecanismos participativos y las modalidades de comunicación que apunta- persoadiendo dei mensaje religioso a través de mecanismos muchas veces festivos y efimeros
ban a persuadir a través de un fuerte impacto sensitivo. (escenografias, castillos de coheteria, decoraciones y altares callejeros, rituales procesionales,
El barroco urbano, centrado en la vitalidad de la fiesta cívica, religiosa o lúdica marca música y danza, etc.) y otros festivos y permanentes (uso dei azulejo en fachadas, recurso de
el punto do potenciación maxima de ese proceso de integración cultural. Expresa para los la pintura mural, etc.).
mecanismos una modernidad potenciadora de sus tradiciones y salda los antigos conílic- A veces los interiores de estos templos «barrocos» nos puoden parecer poco expresi-
tos de la cultura do conquista. vos, previsibles, rutinarios, pero ellos deben ser entendidos en la plenitud de sus atributos,
Es lo momento en que los artesanos americanos se expresan con mayor vitalidad y en la dinâmica de sus usos y con la participación efectiva de la comunidad.
creatividad, encuentran formas exprosivas que integran sus antiguas tradiciones, sus desar- Esa arquitectura es barroca cuando está utilizada por una comunidad de espiritu
rollos tecnológicos y re-crean las formas peninsulares con un manejo liberado y desenfadado. barroco que aún hoy re-crea estas multiples transformaciones de los espacios eon una
Sus búsquedas no son necesariamente las que se plantea e! desarrollo espacial dei barro- potenciacion dei color, la luz y las texturas que integra al soporte edilicio preexistente.
co romano, pero sin duda no son menos interesantes si las analizamos desde su propio con-
texto y no desde presumas lejanas «cabezas de serie».
Hace tiempo hemos dejado de aceptar el esquema formalista que nos encasillaba en
una rígida ecuación de «arquitectura europea-decoración americana». 4.La
Esta visión reduccionista que planteaba lecturas desintegradoras de decoraciones sin
soportes o soportes sin decoraciones, o leia espacios sin luz, textura o color, roconoce hoy La actividad dei despotismo ilustrado a través de la Academia atacó on la pen insula el
la inviabilidad de aplicar simétricamente las categorias de análisis dei barroco europeo a las creciente poder económico-político de los gremios.
propuestas americanas. Como corolario de ello, y de la nueva ideologia de la razon, la arquitectura abandono
De la misma manera se decantaron los altisonantes entusiasmos que tendian a califi- paulatinament el mundo de las matemáticas y la construcción para insertarse privilegiada-
308 car las expresiones dei barroco mexicano con las sonoras y vacuas adjetivaciones del mente en el de las Tres Nobles Bellas Artes. 309
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ENCUENTROS, CONFLICTOS Y SINTESIS

La accion de la Academia especificaria para América la ruptura de ese proceso de Las sinrazones de la razón desmantelaron e! antiguo sistema gremial y e! reemplazo
integración cultural americana, para ser reemplazado por nada sólido. no alcanzaba aún en esa persistente carga «barroca» que conllevaba a definir e! rango que
Nuevamente se nos aplicaba un remedio para una enfermedad que no teniamos, los iluminados de la peninsula exigian.
como actividad refleja de lo que sucedia en la metrópoli. El cosro fue caro, los artesanos y América seguia sin embargo ofreciendo un campo de potencialidades y posibilidades
capas medias jugarian un papel decisivo en la independencia americana. creativas mayores. Si pensamos en Lorenzo Rodriguez, Maestro de obra de Guadix, Jamás
Si los arquitectos académicos resultaban insuficientes en la peninsula para atender las hubiera podido hacer en su tierra una obra como e! Sagraria de México, y aún en la
disposiciones reales de que todo poblado o villa de más de 2000 habitantes tuviera un transición un humilde capuchino, albafiil, como Fray Domingo Petrés, no hubiese podido
•' en su provincia valenciana hacer las obras de la Catedral y e! Observatorio Astronómico de
arquitecto egresado de la A'tadémia o para atender e! conjunto de la obra pública que se
puso en sus manos, con cuánta mas razón serian insignificantes e! pufíado de académicos Bogotá.
que pasarian a América. Pero tampoco los hubiera hecho si, cumpliendo con las disposicioones reales, hubiese
La única Academia creada en ultramar fue la de San Carlos de México, que solamen- consultado a la Academia de Bellas Artes de San Fernardo y a sus Juntas Académicas.
te entendia en los proyectos locales. Todos los otros proyectos de cualquier parte de Amé- El mejor neoelásico americano, es bastante barroco y a la vez, fruto de la transgresión
rica debian pasar a San Fernando de Madrid. La casi totalidad de los proyectos enviados institucional.
desde Amériea fueran rechazados, la casi totalidad de los proyectos enviados por la Acade- La ruptura se produjo, pero fue indicativo de una ruptura mayor que se preanunciaba
mia no fueron hechos. como fruto de una vision equivoca de! crecimiento americano.
Anos de tramitacion, desconocimiento total de la realidad americana y una suberbia
elitista, convirtieram a la Academia en una «máquina de impedir».
Mientras tanto, los funcionarios de la ilustración local se veian en una situación am-
bígua. Limitaban e! supuesto «poder» de los gremios y extinguian las cofradias pero a la vez
sus intentos de crear mecanismos de superación sustitutos eran prohibidos por la corona.
La propuesta de crear una Academia en Lima fue rechazada, la Escuela de Grabado
de Guatemala, de la «Sociedad de Amigos dei Pais» fue extinguida, e! aula de Dibujo dei
Consulado de Buenos Aires fue prohibida.
Los Maestros de obras que manejaban códigos empíricos de construir fueron relega-
dos por quienes conocian los cinco órdenes de la arquitectura de Vignola y el dibujo.
Para ellos se reservaba la obra menor, aquella que no era «arquitectura» porque no
incluía los órdenes clásicos. Pero no habia reemplazo.
Las autoridades apelariàn entonces a los sustitutos: frailes o militares «inteligentes en
arquitectura» porque habían leido algo de! tema, o los más eficaces y concretos Ingenieros
Militares de! Real Cuerpo, formados en la Academia de Matemáticas de Barcelona y con
conocimientos eficientes dei dibujo y de la ciencia de construcción, además de! necosario
barniz teórico «funcionalista y desornamentado».
La ruptura fue ideológica porque negó la realidad que era, omitió la propia historia y
planteó e! retorno a un modelo supuestamente «racional» y «clásico».
A la fuerza comenzamos a ser historiadores de la historia ajena y a rechazar lo cotidiano
por sus insuficiencias frente ao evanescente modelo que debíamos ser.
EI conjunto de obras significativas dei neoclacisismo americano están signadas por
esa ambigüedad de una transición hacia una «modernidad» incierta que se nos proponia
como modelo liberador desde un régimen autoritario y represar, que negaba la autentici-
310 dad de una modernidad propia como habia sido la dei barroco. 311
LURBANISATION COMMERCIALE EN ANGOLA
AU XIXÉME SIECLE

ÍSABEL CASTRO HENRIQUES


Departamento de História da Faculdade de Letms
da Universidade de Lisboa

* Texto inédito apresentado no colóquio Africa's Urban Past, School of Oriental and African Studies,
University ofLondon, 1996.
La définition, autant rigoureuse que nécéssaire, des condicions permettam d' ordonner
les valems qui expliquem les processus d'urbanisation restent sujet de polémique. Les
auteurs du xvre siecle, impliqués dans l' organisation systématique du comparatisme, fai-
saiem de la démographie une donnée nécessaire, voire sufisante, à la création des villes,
signe principal et indispensable des sociétés «policées» 1 • Toutefois, les théoritiens du xxeme
hésitent devam d'autres valeurs, telles que l'autonomie des artisans travaillam de façon
indépendame pour le marché e/ou la banalisation du salariat 2 • La ville devient de la sorte
trans-ethnique, point d'aboutissement des migrations et des émigracions, impliquant les
habitants dans la prodution et la consommation, ce qui exige des reorganisations hiérar-
chiques permanentes.
Les villes africaines sont, jusqu' au xrxeme siecle, caractérisées d' abord par la conjonc-
tion étroite des intérêts politiques et religieux. Mais la ville elle-même ne se fait jamais
nourrir entierement parles dépendants: tout en renonçant aux formes étriquées de l'auto-
subsistance. Cette sicuation exige des alliances autant politiques que commerciales. La
ville politique et religieuse - quine peut être dissociée des questions militaires ne peut
ne pas régler les questions économiques.
Dans l'imérieur de !'Angola en construction - vers l'Afrique centrale - , région
dom nous voulons nous occuper, nous pouvons définir deux modeles de ville-capitale
politique: Musumba des Lunda et Kasanje des Imbangala3 • Dans le cas de la Musumba,
dont les premieres informations nous parviennent à travers Pedro João Baptista et Rodrigues
Graça4, !e pouvoir poli tique détermine, en tenant compre des exigences religieuses, !' organi-

1
Au sens que le mor prend jusqu'au xv111e siecle: la «police» souligne l'importance et la valeur du «politique».
2
En fait, il serait possiblc d'élargir ces critercs, de façon à tcnir compre des mutations techniques, mais
aussi financieres, qui banalisent tant le systeme bancaire que la circulation de la monnair.
3 Voir MARGARIDO, Alfredo, «La capitale de l'Empire Lunda: un urbanisme politique», Annales, 4,

Juiller-Aoút 1970 et HENRIQUES, Isabel de Castro, Cornrnerce et changernent en Angola auXIXe siecle. lmbangala
et 7shokzue jàce à la modernité, Paris, Harmartan, 2 vols., 1995.
4 Voir BAPTISTA, Pedro João, «Viagem de Angola para os rios de Senna» (1802-1816), in Amzaes Maritírnos

e Coloniais, Lisboa, t. III, 1843; GRAÇA, Joaquim Rodrigues, «Descrição da viagem feita de Loanda às cabeceiras
do Rio Sena... » (1843-1846), in Amzaes do_ Conselho Ultramarino (parte não oficial), Lisboa, Fevereiro de 1855;
MAGYAR, bdislas, Reisen in Sud-Afi·ika in denjahren 184') bis 1857, (1859), Nendelor, Kraus Repaint, 1973;
CARVALHO, Henrique A. D. de, Descrição da viagem à Mussumba Muatiânvua, Lisboa, Imprensa Nacional,
1890-1894, 4 volumes. Le nom de la capitale Lunda apparait pour la premiere fois dans le texte de Pedro João
Baptista. Certe capitale des Lunda a été largement analysée par Henrique de Carvalho, qui a mis en évidence le fait
qu'il y avait au moins trais types de Musumba: celle ou s'installait !e pouvoir poli tique, celle consacrée à la chasse et
enfin la «Musumba de voyage», c'est-à-dire, l'insta!lation politique organisée lorsque le Mwatyanvua se déplaçait
pour des raisons militaires ou politiques. 315
UNIVERSO URBAN!STICO PORTUGUÊS L'URBANISATION COMMERCIALE EN ANGOLA

sation urbaine: !e commerce, admis, accepté, intégré, se doit d'être discret. La ville et exclu- nes. Ce n'était que respecter ce qui nous apparaít presque comme une loi: !'avance des Euro-
sivement africaine, sans aucune présence ou enclave étrangere (européenne ou arabe). Dans péens, dont les Portugais, vers l'intérieur ne se fait que grâce à l'utilisation des multiples
la ville de Kasanje, permettant l'installation des marchands africains et européens. La ville réseaux qui servem à assurer les communications, aussi bien politiques que commerciales,
exclusivement africaine se trouve à côté, mais les Européens, comme d'aileurs leurs associés entre les sociétés africaines. Les Portugais essayent, à cette époque, de foumir un complé-
africains ne sont pas admis à s'y installer. .Cacces de cet espace est fortement ritualisé, pour ment aux structures urbaines à simple caractere commercial: il faut que le commerce s'inte-
empêcher toute dégradation des relations. Le pouvoir poli tique imbangala s' íl reconnait l'im- gre dans un projet plus vaste, caractérisé parles structures tournées vers la «civilisation». II ne
portance des formes commerciales, refuse que !e pouvoir politique risque de s'y dissoudre. s'agit, au bout du compre, que de permettre que les «sauvages» deviennent enfin des «civili-
La capita!e de Kasanj~ pêrmet de la sorte la combinaison des structures urbaines sés». Sans oublier que, du point de vue plus srrictement portugais, il s'agit aussi de prouver
strictement africaines, avec une situation d' évident mérissage commercial, qui entraíne par là l'importance des «droits historiques du Portugal»?, sur toute l'Afrique occidentale et
souvent des formes de métissage social et biologique5, indicateurs d'une muration des central e.
structures africaines. Cette communication n'a qu'un objectif fort limité: elle veut mettre en évidence le
Ces villes ne peuvent s'expliquer qu'à travers des formes politiques anciennes et effi- caractere de continuité qui caractérise le processus d'urbanisation de l'intérieur angolais.
caces. Elles commandent des réseaux complexes, exerçam un effer de controle et d' arbi- Il faut tenir compre de la façon dont se conjuguent les valems internes africaines - les
trage. C'est le cas de Kasanje qui, pendant des siecles, a pu conrroler les flux commerciaux hommes, les réseaux de production, les lieux stratégiques du commerce africain - avec les
entre Européens, surtout des Portugais, et les Africains se trouvant au-delà de la Kwangu. valeurs externes - les intérêts et les actions portugaises et brésiliennes centrées sur le
Ces réseaux, assurant la circulation des hommes, des marchandises, des idées, tout en développement du commerce avec les Africains- pour permettre d'expliquer d'une part
étant autonomes, se tiennent les uns aux autres, créant une sorte de macro-réseau africain, les conditions spécifiques du nouvel urbanisme, d'autre part les formes, elles aussi nouvel-
qui tout en cherchant à assurer les rapports avec la côte atlantique, se déploye vers l'Afri- les, des options africaines. Les haltes africaines deviennent des installations commerciales
que centrale, comme vers l'Océan indien. luso-africaines, noyaux des bourgs commerciaux (povoações comerciais) que les Portugais
Nous ne pouvons pas revenir ici sur la structure de ces réseaux6, mais nous nous multiplient au cours du xxeme siecle, dans le cadre colonial. Souvent les «bourgs commer-
devons de mettre en évidence tant son importance que son efficacité dans la banalisation ciaux» en se développant sont à l' origine des villes. Créés sans le moindre appui des auto-
des choix de la modernité ainsi que dans le démarrage du processus d'urbanisation de rités portugaises, les «bourgs commerciaux» provoquem l' éclosion des formes métisses,
l'intérieur angolais. Ces réseaux sont parsemés de haltes, installées parles voyageurs afri- associam l' originalité africaine, aux besoins commerciaux portugais.
cains sur les routes commerciales. Dans la deuxieme moirié du xrxe siecle, avec le déve-
loppement du commerce «légitime» et l'adhésion africaine aux nouvelles demandes com-
merciales portugaises, ces haltes deviennent souvent, par leur localisation stratégique dans
les réseaux commerciaux africains, les endroits choisis pour la création d'installacions com- 1. Commerce africain et développement des noyaux commerciaux
merciales (que l'administration portugaise nommera plus tard postos comerciais) luso-afri- luso-africains
caines. Ces installations commerciales, dom !e caractêre permanent contraste avec le ca-
ractere provisoire des installations africaines, organisent le systême nerveux des nouvelles Toutes les activités africaines sont nécessairement soumises à des regles de controle
relations commerciales. rres ritualisées et tres rigides. Les structures de la parenté, ainsi que les autorités poli tiques
Vers les années 1880, sous la pression des projets européens d' occupation de l'intérieur et religieuses interviennement de façon fort active dans l' organisation et la circulation des
africain, les Portugais essayent d'installer des «noyaux civilisationnels», estações et missões caravanes. De la sorte, elles décidaient des circuits des échanges, lesquels conditionnaient
civilizadoras, en s'appuyant sur les réseaux commerciaux développés parles sociétés africai- !e flux dex «profits», faisant du commerce une activité dans laquelle ne pouvaít intervenir
qu'un nombre fort limité d'Africains. La plupart de ces hommes ne disposait ni des possi-
bilités de recrutement des agents du commerce, ni des moyens d'investissement sans les-
5
Naus utilisons une information utilisée par Carlos Serrano dans sa rhese de doctorat, Angola: nasce uma
quels le commerce était impossible. A celas' ajoutait l' absence de prestige social, qui empê-
nação, São Paulo, 1988, qui décrit, à deux reprises, ce que naus pouvons considérer une produrion itinérante de
métis. C'est le cas du commerçant Santos Pascoal, établit à Benguela-Velha à Bailundo, pour parvenir à Bihé,
dans le plareau central. Ces enfants, tous baptisés, ont eu comme parrains les commerçants déjà installés dans ces
bourgs commerciaux, p. 69. 7 II s' agir d' un «refrain» poli tique portugais, urilisé, de façon constante, à partir de la Conférence de Berlin
317
316 6
Voir HENRIQUES, Isabel Castro, op. cit. et devem, en des supporrs de l'ideologie coloniale ponugaise.
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chait la mobilisation des ressources politico-familiales indispensables à I' organisation des tiaux: les nouvelles installations commerciales multiplient les routes, de même qu'elles attirent
caravanes, surtout des grandes caravanes. des hommes, les intermédiaires classiques - pombeiros, quimbares, aviado!'-, mais aussi des
Le développement du commerce «légitime», consécutif à l'abolition de la traite né- agents africains, décidés à maintenir des relations commerciales directes avec les Européens. La
griêre, a permis que la plupart des hommes - à l'exclusion des femmes - puissent orga- brousse change sur !e double impact de ces opérations: desplantes, des matiêres qui, jusque-là
niser une activité commerciale, mettant fin aux contrôles exercés parles chefa, ainsi qu'aux ne possédaient la moindre valeur commerciale, deviennent des marchandises préferentielles,
interdits imposés parles structures de la parenté. La prolifération des commerçants, !' élar- três prisées parles Européens. La nature change aussi sous la pression de ces données nouvelles,
gissement de la demande, les changements intervenus dans l'inventaire des marchandises et avec elle les conditions de production, autrement dit l'organisation du travai!.
sollicitées par !e commerce e14ro!5een (cire, ivoire, tabac, café, caoutchouc) qui pouvaient Les noyaux commerciaux se mu!tiplient au fur et à mesure que s' elargit !' espace mobi-
être produites dans un cadre família! restreint bouleversent les rêgles. La prodution des lisé parles nouvelles conditions de production et de commercialisation. Les cadres spaciaux,
«esclaves», qui avait dominé la période antérieure, dépendait de structures compexes, la domestication de la nature, doivent se renouveler, pour être à même de produire les mar-
appuyées par des appareils militaires spécialisés, dom seul le pouvoir politique centralisé chandises sollicitées parle commerce européen, sans oublier la forte demande des sociétés
pouvait disposer. C'est dire que la nouvelle situation autorise les décisions individuelles, africaines. Celles-là doivent assurer la production des nouvelles marchandises, sans pour
tout en permettant la concurrence: e' est sur ces nouveaux piliers qui se développe l' activité autant pouvoir ignorer la pression des exigences internes, qui doivent maintenir la cohérence
commerciale. des formations sociales. La circulation des hommes entra1nés parles Européens, propose des
Les grandes caravanes africaines, lo urdes, forcément lemes, dom !e controle n' était modeles de comportement que les Africains ne tardent pas à adopter. C'est d'ailleurs à ce
toujours pas aisé, sont condamnées à disparaítre, au profo de structures plus réduites, plus prix qu'il semble possible d'assurer la continuité de l'hégémonie africaine, que les Européens
rapides. Le deuxiême changement est imposé parles structures modernes. Les caravanes à cherchent à rogner par tous les movens. Autrement dit, la transition des sociétés africaines
l'ancienne maniêre, si elles se déplaçaient lentement, étaient porteuses d'un nombre con- vers les pratiques modernes ne sont nullement le seul résultant de la «pression» européenne,
sidérable de commerçants, ce qui leur permettait le mobiliser toute sorte de marchandises. car il s' agit bel et bien d' opération gérées aussi, voire surtout, parles agents africains.
Les nouvelles caravanes parient sur la spécialisation, et sont pour cela en condition d' obte- La multiplication des installations commerciales permanentes, qui ne sont parfois
nir de meilleurs prix auprês de intermédiaires africains ou des commerçants blancs. Si que des agences des grandes maisons commerciales installés dans les villes côtiêres, vont
dans les grandes caravanes les porteurs étaient souvent issus de la parenté, récrutés pour devenir des noyaux de modernisation du commerce intérieur, tout en poussant à la pro-
mener à bien une opération lente, les petites caravanes parient davantage sur des porteurs duction accrue des marchandises destinées à l' exportation. Ces installations commerciales
professionels, souvent intéressés dans les profos prévisibles. Enfin, ces petites caravanes devienent des foyers de diffusion et de banalisation des pratiques, des valeurs, des idées et
permettent l'irrigation commerciale des régions, de façon à, paradoxalement, extraire des des comportements qui entrainent l'adhésion des Africains 9 • La banalisation, même si
avantages de la spécialisation, tout en promouvant la diversificarion des marchandises lente, même si relative, de ces comportements ne peut que mettre en cause la part des
commercialisées. structures africaines en train de devenir archaiques, fonctionnant comme des freins à la
Cet effort de rationnalisation du commerce africain oblige les Européens, qui jus- modernisation autant économique que sociale.
qu'alors devaient organiser leurs propres caravanes, en ayant recours aux guides, aux tru-
chements et aux porteurs africains, à intégrer dans leur logique commerciale les nouvelles 8
Noms donnés aux comrnerçants de la brousse, métis au noirs, agenrs des maisons corn1nerciales portu-
caravanes africaines. Cette situation explique la lente mais constante réduction du nombre gaises. Tandis que les pombeiros étaient souvent des esclaves, les quirnbares éraient des noirs libres on affranchis
vivanr auprés des Blancs et les aviados éraient des commerçants libres qui travaillaient avec des marchandiscs
des caravanes organisés parles Européens, à]' exception de celles destinées aux tâches scien-
fournies à crédit.
tifiques et politiques, remplacées parles caravanes africaines. Cette opération est complé- " Parmi les agencs de diffusion et de banalisation de valeurs et des pratiques europécnnes, Henrique de
Carvalho, op. cit., souligne l'importance des Ambaquistas, groupe régional elevé parles missionaires jésuices, qui
tée par la multiplication des installations commerciales permanentes en pleine brousse.
a éré capable d'assurer la cransmission de la rnlcure écrire pendant une longuc période. Les voyageurs du X!Xc
Ces opérations ne peuvent ne pas assurer l'urbanisation, même si fort embryonnaire, de la siêcle les renconrrent un peu partout, agenrs de la commcrcialisarion des producrions européennes et africaines,
brousse. Les agents commerciaux portugais, des rares européens, un grand nombre de Des pratiques européennes er urbaines som banalisées par ces hommes: «aujourd'hui les hommes, du fait du
conracr avec lcs ambaquistas et les bctmbeiros (populations des régions voisines de Malanje), utilisent, comme
métis et quelques noirs, sont des agents visibles de ces changements.
ceux-là des bérets et des chapeaux ... se scnrent obligés à couvrir la têtc,, (1, pp. 370-371). Er l'autcur ajome: «lcs
Quelles sont clone les conditions qui permettent - ou parfois exigent - la multipli- missions jésuites qui ont travaillé dans la region pcndant longremps, inscallées à Ambange-à-Quicambo ... onc
laissé des vesriges de leur passage dans l'éducariondes peuples avec qui concactaient [... ] C'esr de cerre région que
cation de ces noyaux commerciaux, capables de mobiliser les producteurs et les produc-
se difusent ces connaissances insuffisantes de notre langue, parlée ou écrire, ainsi que les rudimencs d'agriculrure
318 tions africaines? Ces opérations impliquem une réorganisation constante des cadres spa- ainsi quedes métiers manuels et d'autres activités» (1, p. 145). 319
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Ces installations commerciales ne sont possibles que dans des emplacements stratégi- avant l'inventivité des commerçants portugais. La question serait simple, si, en fait, nous
ques de la brousse, caractérisés par une activité commerciale africaine fort dense, mobilisa- n'étions pas à même de constater que ces agents de la «civilisation» portugaise, sont essen-
trice des chefs politiques et réligieux, mais surtout des producteurs et des commerçants. tiellement des Mulâtres et des Noirs. Un premier inventaire des agents comrnerciaux du
Nous les rencontrons accolés aux marchés réguliers, dans les croisements des principales Bihé, établit par Rodrigues Graça en 1843, nous a permis de constater que les Blancs
routes commerciales, dans les régions à grande production africaine intéressant le com- étaient fortement minoritaires parmi les commerçants du plateau du Bihé 15 • Henrique de
merce européen, dans les abords ou même à l'intérieur des «presídios» 1º, autorisant la créa- Carvalho confirme les informations du commerçant brésilien, tout en insistam sur l'im-
tion d'un puissant maillage commercial. Or nous savons que ce maillage ne peut fonction- portance de la tâche patriotique menée à bien par ces hommes: «ce sont eux qui ont créé
ner qu'au prix d'une prodYscti& constante et quantitativement significative. Ces installa- ces noyaux de civilisation portugaise qui, séparés par de grande étendues, nous rencon-
tions comrnerciales suscitées parles Portugais, gérees dans la plupart des cas par des Afri- trons à traver les brousses du continent africain ... ». Ce qui les caractérise c' est, souligne
cains, aussi bien des rnétis que des noirs, ont été à l' origine de fortes concentrations l'auteur, leur entente parfaite avec les Africains 16 • Qu'il nous soit permis de nous étonner
populationnelles: souvem, elles connaissent une rnutation technique, devenant des bourgs devant ce commentaire: s'il y a une si parfaite intégration, c'est que ces hommes sont avant
11
ou même des villes • Gerées parles Africains, ces installations urbaines som la preuve de tout des Africains: la poussée portugaise est ainsi le résultat des structures commerciales
l'importance du métissage comrnercial et culturel dans cette phase de l'histoire angolaise. africaines, renforcée parle fait que les agents de cette opération sont des Africains. Dans a
Ne nous trornpons pas: il n'y a pas de véritable projet portugais commandam ces perspective du commandant portugais, ce seraient des Portugais d' origine africaine, qui
changements. C'est ce que nous dit dans la moindre ambiguité !e commandam Henrique auraient conservé quelques traits africains, sans pour autam renoncer à la nationalité por-
de Carvalho: «Tout le commerce s' est fait sur ces territoires entierement au hasard; et le tugaise ...
bourg était plutôt une tête de pont pour une exploration ultérieure du commerce.» 12 Don- La description du voyage de Henrique de Carvalho accomplit entre Dondo et Malanje,
nons à cette «hasard» son sens: il s'agit de faire savoir que les activités commerciales portu- avant de parvenir à la Kwangu, fournit quelques informations ayant rapporr à l'installa-
gaises ne dépendaiem nullement d'un quelconque projet de !' occupation de la brousse. tion de ces noyaux commerciaux luso-africains, qui ne s' écartent jamais des tracés et des
Les Portugais ne s'iméressent que par leur inscription dans les circuits du «commerce installations africaines. La circulation des hommes et des marchandises y est fort dense,
indigene» 13 , de façon à pouvoir répondre aux sollicitations du commerce extérieur. comme cela se passe à Pamba, région de Ambaca. Il s'agit en fait d'une installation à
Ces som les réseaux commerciaux africains qui déterminem le cadre spacial permettant caractere hybride: un poste militaire-commercial portugais, installé au milieu de «senzalas
l'installation stratégique de ces installations commerciales permanentes, noyaux de bourgs corn- de cases qui constituent le village autour» 17 . A Culamuxito, entre Pungo Andongo et
merciaux luso-africains. II s'agit de formes de modernisation associam étroitement les options Malanje, «estimé avamageux par l'affluence du commerce de la brousse», «som installées ...
africaines et les intérêts européens. Les espaces de commerce et de production se trouvem ainsi quelques maisons commerciales dom la plupart som des agences des emreprises de Pungo
soumis à une re-stucturation que, si elle doit tenir compre du poids des intérêts «traditionnels» Andongo et de Malanje» 18 •
africains, ne peut jamais se séparer des exigences de la modernité. Henrique de Carvalho souli- C' est d' ailleurs Malanje la région ou l'installation des noyaux commerciaux se fait
gne !e besoin de maintenir de façon constante «la bonne paix et la bonne harmonie avec tous les avec la plus grande détermination. Les routes commerciales se dirigem sur Malanje, mais
peuples indigênes (gentios), non seulement avec ceux qui résident tout au long du parcours, c' est de Malanje que partem les routes qui cherchem la direction du Kwangu. Lorganisa-
mais aussi avec tons ceux (nativos, c'est-à-dire les natifs) de l'emplacement ou l'installation tion de ce bourg commercial portugais profite de l'existence d'une installation africaine, et
(commerciale) doit être bâtie, mais aussi avec tous les peuples voisins» 14 • fait suite au bouleversemems politiques de la région de Kasanje apres les conflits qui mar-
II serait d'ailleurs aisé de multiplier les passages oi:t Henrique de Carvalho met en quem la décénie allam de 1850 à 1862. Les remarques de Carvalho concernant l' apport de
cause l'absence de project colonial portugais. Cette situation, !ui permet de mettre en l'administration coloniale sont quelque peu féroces: l'action du gouvernement se trouve
réduite à la désignation d'un chef, aisé par un petit détachemem militaire. Cette force
devait permettre que se chef se fasse respecter par quelques milliers d'indigenes provenants
,oLes «presídios» étaient des installations à caractere militaire crées par les Portt1gais des le xviieme siecle
en Angola. Elles avaient at1ssi et surtollt rôle fondamental dans les rapports commerciaux desPortugais avec les
Africains. 15
GRAÇA. op. cit., pp. 399-400.
11
C'esr le cas de Malanje, qui a été longuemenr émdié par CARVALHO, op. cit., vol. I. 16
CARVALHO, Henrique A. D., «Discurso lido pelo Sr. Major Henrique de Carvalho em sessão de 1Ode
12
CARVALHO, op. cit., vol. !, p. 179. Novembro de 1890», in Actas da Socied,ide de Geografia de Lisboa, 1890, pp. 131-132.
I] Id., ibid. 17
CARVALHO, H., Descrição d,1 Viagem ... , vol. !, p. 138.
320 14
Id., ibid., p. 226. 18
Id., ibid., p. 189. 321
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de plusieurs régions, qui, à l'époque, «encerclaient déjà la petite colonie portugaise» 19 • Si impose la récomposition des activités professionnelles. Les nouveaux urbains se doivent de
naus faisons la somme de toutes ces informations, même si quelque peu effilochées, naus s'adapter aux conditions le plus souvent inédites dictées parles régles de la production, du
rencontrons le même mécanisme civilisationnel, qui fait dépendre l'«initiative» portugaise travai! et du commerce. La banalisation de la criminalité sert ici à montrer les conditions
des acquis africains! dans lesquelles se fait l' éffritement des autorités africaines, dont les outils de coercition se
D' ailleurs la description de ces commerçants luso-africains, ou afro-portugais, comme montrent inadaptés à la situation nouvelle.
les désigne Henrique de Carvalho, souligne l'importance de l'assimilation. Les nombreu- Ce passage de Henrique de Carvalho naus permet de rendre compre de l'importance
ses photographies publiées par le commandant portugais soulignent l'importance de la du bouleversemenr déclenchée par ces nouvelles installations. Mais cette situation peut
mutation, car ces homme~s'h'iíbillent comme des petits-bou bourgeois urbains, de même être encare plus complexe, dans la mesure ou ces noyaux commerciales sont amenées à
qu'ils ont tous renoncé à leurs noms africains pour porter des noms portugais. Si dans le attirer les clients-producteurs africains. La concurrence entre commerçants, voilá une donnée
cas des métis on comprend !e rapport au pere - José de Vasconcelos, Lourenço Bezerra, nouvelle, d'autant plus importante qu'elle fait des Africains les arbitres de la situation.
Narciso Paschoal, José Esteves, d'autres encore 20 - , ce n'est cependant pas le cas lorsqu'il Pour parvenir à attirer les clients, les intermédiaires ont recour à la stratégie des «cadeaux»,
s' agit d'Africains 21 , qui font pareie aussi de ces agents du changement. Non seulement ils d' ailleurs intégrés à des formes de propagande des marchandises. Ces intermédiaires font
appartiennent au groupe des «noirs chaussés,>22, mais ils s'habillent aussi à l' européenne, appel soit aux «_famorosas», soit aux «cambulações» 24 • Cette banalisation de la concurrence
faisant de cette stratégie du corps, le manifeste de leur nouvelle fonction. Le paradoxe veut permet aux clients africains de gérer à leur profü la situation, faisant manter soit les prix,
qu'ils soient des agents «doubles»: s'ils favorisent, à n' en pas douter, les projets coloniaux soit les cadeaux, soit les deux. Souvent les commerçants européens, et leur agents africains
portugais, ils sont aussi au service de leurs freres africains, car ils font la démonstration de falsifient les poids et les mesures pour compenser la l' ébauche des cadeaux, mais les Afri-
leurs qualités de gestionnaires, dans le commerce mais aussi dans la création de entreprises cains repliquem souvent augmentant le poids des défenses d' éléphant ou des boules de
agricoles tres rémunétrices. cautchouc en y ajoutant des pierres 25 .
Cela n'empêche que les commerçants africains s'adaptent à ce modele commercial,
pariant eux aussi sur l' efficacité des installations commerciales permanentes. La regle ur-
baine du commerce peut être enoncée de façon tranchée: il faut que la march~ndise vienne
2. Les nouvelles formes d' organisation des hommes chez le commerçant. Cette nouvelle philosohpie commerciale autorisait !e commerçant à
et des activités économiques rester chez-lui, comme une araignée dans sa toile, espérant la mouche, e' est-à-dire le client
africain. Cette nouvelle situation créée des constellations commerciales, centrées autour
Ces installations commerciales permanentes attirent des groupes fort hétérogenes, des noyaux commerciaux les plus importants. La multiplication de ces constellations oblige
dont les formes d' organisation dépendent de leurs interêts économiques et commerciaux.
l' ensemble des ruraux à rentrer peu ou prou dans !e systeme, étant entendu que !e prestige
Henrique de Carvalho montre comment l'organisation de la ville de Dando est !e résultat
des groupes et des individus dépend en partie des marchandises préferentielles qu'ils
des flux commerciaux, qui attirent des Africains, dont les activités associent le travai! et le
parvienent à acheter et à accumuler. Il semble bien toutefois que l'apprentissage des nou-
vol: la ville est formée par un «mélange de gens venues de plusieurs régions de la province,
velles regles économiques passe non seulement par !e crédit, mais aussi par]' épargne, deve-
ainsi que de l'extérieur, qui ont organisé des villages pres de la ville, s'adaptant aux flux du
nue mécanisme de promotion socio-économique.
commerce, les uns pour y participer par le travai!, les autres ayant en vue seulement !e
Naus disposons de quelques exemples de cette orientation, dans la personne de Narciso
vol» 23 . Ce passage montre de façon crue les différentes manieres d'assurer !e passage de la
António Paschoal. L'histoire de vie de ce commerçant africain, dont naus avons áté inca-
brousse vers la ville. Ces informations ne font que confomer nos affomations théoriques,
pable de définir la généalogie, souligne qu'il avait accumulé, vers 1880, une fortune consi-
car la situation commerciale nouvelle oblige à la récomposition des espaces, comme elle

19
Id., ibid., p. 132. '.' Ces deux systemes de commerce caracterisaient les pratiques commercíales surtout dans Ia régíon de
2
Id., vol. I.
"
Malanje et de KasanJe. Le systemc des «cambolações» utilisait des agents des maisons commerciales qui allaient,
21
Voir exemples in GRAÇA, op. cit., pp. 399-400. sur le chemin, à la rencontre dcs caravanes africaines pour leur faire des cadeaux et les attirés chcz eux; !e systeme
22
I.es Africains estiment que seu Is les Blancs ont droit aux chaussures, tous les autres, Noirs et Métis, entre des (<fomorosas» exposait les marchandises devant la parte de la maison cominerciale, invitant les cornn1erçants
dans la cathégorie des «Noirs chaussés». Cerre situation commence à changer d'abord dans les villes, ensuite dans des caravanes à entrer pour négocier. Sur cerre question, voir CARVALHO, Henrique A. D., O Jar;ado de Cassarwe
0

l'intérieur, vers !e dernier riers du XIXeme sieclc. na Província de Angola, Lisboa, Typographie de Cristovão Augusto Rodrigues, 1898, pp. 275-278.
25
322 23 CARVALHO, Descrição da CARVALHO, Descrição da Viagem ... , vol. I, p. 279. 323
vol. I, p. 102.
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dérable, grâces aux activités commerciales menées à bien dans la région comprise entre la Ces noyaux «urbains», ces instal!ations luso-africaines, servent de la sorte à assurer la
foire de Kasanje et les rives de la Kwangu. Les capitaux accumulés !ui ont permis de s'ins- banalisation de la modernité. Henrique de Carvalho se laisse entralner parle vocabulaire
taller à Malanje, mais il a aussi essaimé dans la région, oú il possédait plusieurs installa- de l'époque et parle patriotisme: il s'agit, d'apres lui, d'assurer la «civilisation». II va de soi
tions commerciales permanentes, ainsi gue plusieurs magasins. Ayant recours aux formes que celle-ci est l' opposé pour ainsi dire indispensable de la «sauvagerie». D' ailleurs le com-
et aux pratiques de crédit banalisées par les Portugais, ce commerçant africain a été en mandam portugais, s'il aime les Africains, ne veut passe laisser entraíner par des passions
mesure de développer la production de caoutchouc par le truchement des commerçants sans objet: les valeurs civilisées ne parviennem jamais à échapper au poids de l'africanisa-
imbangala. Cet homme fait surtout un pas en avant vers la modernité: en 1888 il investir tion. Si nous ne trouvons pas sous sa plume la dénoncitation de la «cafréalisatiom 31 , il est
dans la monoculture de li ca'fine à sucre, ce gui lui permet d'assurer la production de néanmoins possible de se rendre compte de la panigue gue l'africanisation parvient à
sucre, detiné aux circuits commerciaux portugais, ainsi gue du rhum (cachaça), gui doit dédencher, car elle ne peut pas compromettre la teneur de la civilisation. C' est probable
servir au commerce avec les Africains 26 , gue la région fusse déjà préparée à assurer ce passage à la modernité, du fait de la produc-
32
Ces opérations ne sont plus du ressort de la campagne, dans la mesure oú e!les dépen- tion des «ambaquistas», issus de la scolarisation assurée jadis parles jésuites •

dent de modeles et de cibles urbaims. D'ailleurs Narciso António Paschoal, face à l'ab- Le processus d'urbanisation de !'Angola, gue nous pouvons dater de la deuxieme moi-
sence d' enseignement secondaire et supérieur en Angola, envoi leurs enfants à Lisbonne, tié du xIXe siecle, est inserir dans l'inventaire des nombreuses modifications des comporte-
pour y suivre la scolarité classigue porrugaise 27
• Malheuresement nous ne disposons pas ments sociaux, dont guelgues-uns ont déjà été analysés. Mais si la concurrence et surtout le
d'informations nous permettant de rendre compre des résultats de cette scolarité. Si le crédit sont des instruments essentiels de cette situation nouvelle, nous nous devons de souli-
modele n' est pas nouveau, il met en avant non seulement les projets économigues, réussis, gner les changements issus de la banalisation du travai! salarié, leguei, permettant l'autono-
mais aussi !e projet scolaire concernant les descendants, gui doivent se hisser au niveau le mie des travailleurs, met souvent en cause la cohérence des systemes de parenté. 1'.installation
plus élevé de la scolarité blanche. C'est moins ambitieux le projet de Lourenço Bezerra, des villageois dans les villes entraíne un va-et-vient constant, gage de l'expansion d'un nom-
aviado d'une maison commerciale portugaise - Vieira Machado e Sócios - guia pro- bre croissant de pratiques urbaines et urbanisantes. Cette situation aura deux conséguences
cédé à l'installation d'agences commerciales sur le territoire lunda-tschokwe. Bezerra tra- majeures: l'intervention portugaise doit s' adapter aux circuits commerciaux africains gui
vaille alors à l'installation commerciale à Kimbundu, dirigée par le Portugais Saturnino existent déjà, et ont été organisés en fonction des besoins locaux. Toute forme d' expansion
Machado et son frere Custódio. Ayant décidé d'abandonner cette installation, ils la con- portugaise dépend des suuctures africaines, en absence de tout animal de charge, absence
fiem à Lourenço Bezerra, devenu, au service de l' entreprise, un tres bon spécialiste de la aggravé par l'incompétence portugaise gui n'a pas su importer et utiliser les boeufs dans les
production et de la commercialisation de l'ivoire 28 , Ce n' est pas surprenant gue cette ins- transports à longue distance, comme l' ont fait les Boers. Nous sommes à nouveau devant un
tallation commerciale soit devenue l' arbitre du commerce d'ivoire et de caoutchouc, Bezerra paradoxe, dans la mesure ou les Africains fournissent les porteurs gui réduisent la force de
étant fort adroit dans le recrutement des chasseurs africains grâce à l'utilisation du crédit. travai! dont peuvent disposer les sociétés africaines.
Comme Paschoal, Bezerra se montre intéréssé par l'investissement dans !' agriculture: il C' est ce qui explique le glissement de la situation: les Africains sont à l' origine des
29 systemes, e' est aussi à eux gue nous pouvons attribuer les efforts les plus constants pour
choisit cependant la production du tabac , ce gui ajouté à d'autres choix et opérations,
confirmem la compétence de ces hommes 30 • parvenir à des formes et à des pratiques urbaines, mais en même temps nous assistons à la
dégradation de l'hégémonie africaine. Cela dépend, c' est évident, de la cible des deux
communautés: les Portugais sont intégrés à l'économie-monde, tandis gue les Africains
"CARVALHO, Descrição da Viagem ... , vol. !, p. 362 et vai. ]V, pp. 647-648.
27
Id., ibid., vol. I, p. 263. tout en répondant aux besoins internes des groupes, ne visent quedes solutions régionales.
28
Id., ibid., vol. IJ, p. 838. C' est rare gue le commerce inter-régional et inter-national africain mobilise des produits
29
Id., ibid., vol. I, p. 220.
30 capables de bouleverser les données de l' économie-monde.
Henrique de Carvalho fait un bon résumé de la situation agricole à Malanje: ,mous pouvons dire que
l'agriculture du conselho (mairie), la grande agriculrure a débuté il y a quelques années à Culamuchito, du fait des
plantations de la canne à sucre, menées parle regretté frere de Custódio et de Saturnino Machado, ainsi que par industrie a connu un renfort de la production, et pendant cerre période l' agriculreur José Vaz, a organisé une
d'autres. Apres, sont venues les plantations à l'E et à SE de la ville, en partam de Cateja par Anjinji et Quissale propriéré concentram plusieurs plamations (fazendas) de ambaquistas et d'indigênes, dom la concenrration a été
jusqu'au Luximbe ... ». Henrique de Carvalho renforce ces informations, dont l'importance esr évidente, en renant rendue possible par achar ... » (vol. 1, p. 300).
compre du fait qu'il s'agit d'une nouvelle forme d'agriculture, caractérisée par l'investissement capitaliste, mais aussi 31 Le concept de cafrealização a été construir par les Portugais a partir du mor cafre, nom donné par veux à

par sa destination: il ne s'agit plus d'exportation, mais de production destinée à la consomation interne. Ces Afri- l' Africain de la côte oriental. Cafrealização signifie l' adoption des regles civilisationnelles africaines parles colons
cains, ces Afro-Portugais, dirait Henrique de Carvalho, servem surtout leur pays, et non plus le seul commerce européens.
324 d'exportation blanc. Henrique de Carvalho ajoute un commcrçam de plus: «pendam les cing derniêres annees cerre 32 Voir note 9. 325
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3. lnstallations civilisatrices et bourgs commerciaux Ces installations doivent renforcer la mobilisation des producteurs et des commer-
çants, modifiant le rapport à la terre, tout en renforçant les relations commerciales. Henrique
À la fin du xrxeme siecle et au cours de la premiere moitié du xxeme, le processus de Carvalho signale l'importance d'un de ces changements: les femmes africaines s'atta-
d'urbanisation mobilise non seulement les bourgs commerciaux (povoações comerciais), chent à la commercialisation des productions de leurs cultures (!avms) 38 , tandis que les
dont la multiplication s'accelere, mais aussi les «installations civilisatrices et commerciales» hommes acccptent la tâche des transports en échange d'un salaire59 • Cette mobilisation
(estações civilizadoms e comerciais) 35.Ces installations doivent servir la nouvelle politique des femmes, associant le travai! agricole à la commercialisation, confirme le statut des
coloniale portugaise qui prétend établir une occupation pensée et rationnalisée, tout en femmes, qui assument la responsabilité de la commercialisation à caractere local, aban-
renonçant au systeme aniérifür, leque! était geré parles commerçants, qui n'avaient pas de donnant aux hommes !e commerce à large dístance. Mais nous pouvons surtour retenir
compres à rendre à l'administration portugaise. I' efficacité de ces changements, emrainant une nouvelle occupation de l' espace, situation
Ces projets destinés à rendre plus efficace la présence portugaise en Angola, ont été renforcée parles rêgles du commerce et du travail 40 •
élaborés à Lisbonne, tout particulierement dans les milicux associés à la Société de Géo- Comme de bien entendu les projets porrugais veulent renforcer la domination por-
graphie de Lisbonne (SGL)34. Aucun de ces projets ne refuse l'importance des relations tugaise, tout en contribuam pour aléger la situation du budget angolais. [Angola manque
commerciales comme moyens capable d'assurer !e développement des liens tissés avec les de recettes, raison pour laquelle ces installations civilisatrices, renforçant tant l' agriculture
sociétés africaines. Ils soulignent, d'ailleurs, l'importance d'attirer dans ces installations que !e commerce, seront à même de contribuer de façon suivie à la réduction des déficits,
civilisatrices, les commerçants et les agents des maisons commerciales installés dans les qui compromettent les efforts du colonisateur. C'est cette même idée patriotique qui anime
villes, de façon à développer !e comerce avec les Africains 35 • II fallait quedes agents euro- les missionnaires, dom le Pêre Barroso, nommé évêque quelques années plus tard, et féro-
péens soient installés de façon permanente parmi les populations africaines, situation qui cement opposé aux governements de la république 41 • Paradoxale, la situation? Toutes les
devait permettre l'inculcation des valeurs civilisationnelles européennes. Ces opérations situations coloniales !e sont, dês lors que toute avance technigue si elle sert le colonisateur,
associaient aussi l'activité spécifiquement missionaire, comme le montre d'ailleurs le re- ne peut desservir entiêrement le colonisé: l'urbanisation de l'imérieur angolais autorise la
cours à des missionnaires, tels l'évêque Barroso, membre de la SGL3 6 • création de relations de plus en plus soutenues entre les communautés angolaises, servant
Les Portugais songent de la sorte à la multiplication des installations civilisatrices, et au ainsi au développement de la conscience nationale angolaise.
développement des réseaux de circulation et de uansport - chemin de fer, navigation fluviable,
routes - , de façona affirmer l'autorité portugaise, tout en banalisant les valeurs européennes. li nous manque une histoire de l'évolution et de ces instal!ations civilisatrices, et des
Henrique de Carvalho, lors de son expédition (1884-1888), multiplie les installations civilisa- bourgs commerciaux du xxe siecle, embryons de l'urbanisation angolaise. Cerres, presque
trices, dont le statut est assez ambígü: elles sont naturellement installées, à côté des villages sans s' en rendre compte, dans son Dicionário corogrâfico-comercial de Angola publié à Luanda
africains, mais une fois installées elles attirent d' autres noyaux populationnels. C' est, ici comme dans les années 1940, Antonito, c'est-à-dire António Coxito Granado, procede à une sorte
ailleurs, le résultat d'une presque fusion entre deux vecteurs culturels, qui participent ainsi à la d'inventaire empirique de la situation. Toutefois il ne dispose de l'appareil théorique !ui
création des situations fort métissées. D' ailleurs, et pendant cette période, l' évo!ution de l' urba- permettant de rendre compte de l' évolution de l'urbanisme angolais. Dans un ouvrage ulté-
nisme africain est déterminée parles Métis, ou alors par des Africains culturellement métissés. rieur, l' ancien fonctionnaire de l' administration coloniale angolaise, devenu ethnologue, Mário
La liste de ces installations civilisatrices [24 juillet, Ferreira do Amaral (à Cafuxi), Milheiros, qui s'était rendu compte, au début des années 1960, de l'absence d'un fichier
Paiva de Andrade, Cidade do Porto et sur la route de Musumba, Luciano Cordeiro, An- organisé concernant l'histoire de la création et de la reconnaissance officielle despovoações
drade Corvo, Conde de Ficalho, Pinheiro Chagas, la Nouvelle Luciano Cordeiro]3 7, doit comerciais (bourgs commerciaux), organise un Indice histórico-corográfico de Angola, publié à
être mise en rapport avec l' emergence des villes nouvelles, dont l' essaimage a assuré !e Luanda en 1972.
bouleversement des rêgles de pleuplement. II s'agit d'un document fourre-tout, puisque l'ethnologue n'a pas envisagé un travai!
de recherche systématique, étant entendu que son objectif premier avait été l' élaboration
33
CARVALHO, Descrição da Viagem ... , vol. !, pp. 5-6.
34
La Société de Géographie de Lisbonne (SGL) n'a été crée qu'eu 1875- dans le contexte internationale
de la course vers l'Afrique - , avec l'objectif de développer des projets et d'organiser des missions ele connais- 38
Id., Ibid., vol. !, pp. 431 et 434.
sance, d' occupation et de colonisation des colonies. 39 Id., ibid., p. 434.
35 CARVALHO, Descrição da viagem, vai. !, p. 438. 40
Voir CARVALHO, ibid., vol. li, p. 674, 0,1 l'auteur met cn évidence l'action civilisatrice portugaise par
36 BARROSO, «Discurso ... », in Actas da Sociedade de Geogl'tljia de Lisboa, 1890, pp. 143-145.
le biais du développement du commerce, de l'agriculture et du travai!.
326 37
CARVALHO, Descriçiío da viagem ... , volumes I et II. 41
BARROSO, op. cit., p. 143. 327
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d'un documem !ui permettant de simplifier son travai! aux services de l'Administration
Civile. Cela ne l' empêche pas de fournir un guide permettam de rendre compte de cette
urbanisation, aussi bien dans !'espace, que dans le temps. Nous disposons ainsi d'un pre-
mier invemaire de l'instal!ation des bourgs commerciaux, dont ]' évolution est singuliere-
mem révélatrice: ils perdem petit à petit leur caractere fortement métissé, pour devenir des
«forteresses» blanches, encerclées toutefois parles populations africaines, renvoyées de plus
en plus vers les périphéries. La «blanchisation» des espaces urbains, dom Luanda est sure-
mem le modele, n'empêd1.e j~inais les Angolais de participer à l'urbanisation de leur pro-
pre pays. Une des rues principales de la Ville de Dondo. Le photographe a voulu mettre en évidence l'harmonie
de la perspective, ou un vieux baobab contraste avex les jeunes acacias, plantés de façon réguliére.
I.:acacia étant un des symboles urbains du Grande Orient, nous sommes ammenés à penser que la Mairie
est gérée par des maçons angolais. Il faut aussi remarquer l'existence de trottoirs, qui, à l'époque comme
aujourd'hui, son le signe le plus importam de l'urbanisme. (CARVALHO, I, pp. 102-103.)

Condusion

La conclusion ne peut être que provisoire, étant entendu que le développement ur-
bain de !'Angola, n' a pu se faire que grâces aux structures africaines. Le fait colonial à
obligé les Africains à assumer !e besoin de rendre autonome !' économie, aussi bien la
production que la commercialisation des produits, sans oublier la prestation de services,
rémunérée avec un salaire. Toutefois cette sirnation n'annule jamais l'imervention des auto-
rités africaines, qu' elles soiem politiques, qu' elles soient religieuses: la violence de l' oppo-
sition est !e résu!tat du rejet du métissage, provoquée par un flux inattendu de purisme
racial européen. La premiere phase de l'urbanisation, concomitante à !' abolition de la
trai te et à la réduction de !' esclavage, est clone assurée par ces noyaux de bourgs luso-
africains, et par la forte présence métisse dans l' organisation des relations commerciales. La rue princiale de Malange, photographiée par Henrique de Carvalho, associe les matériaux africains
Le capitalisme moderne est banalisé par la multiplication de ces bourgs commer- à des structures marquées parle modele européan, comme le montre la profusion des fenêtres
et la régularité de la rue. (CAllVALHO, I, p. 269.)
ciaux, qui banalisem les marchandises européennes, touc en sollicitant les productions
africaines. Si les premieres monnaies métaliques introduites en Angola, avaient provoqué
d'incidemes violems à Luanda, obligeam les autorités portugaises à fusiller sept militaires
brésiliens, nous pouvons constater que l'urbanisation et le salariat agissem dans !e sens de
modifier les rapports à ces monnaies: la richesse angolaise est de moins en moins representée
pour des esclaves, pour être compté en marchandises et en argent, monnaies et billets de
banque. Le bouleversement devient ainsi total, même si l'esprit du capitalisme (pour répé-
ter Max Weber), tarde à se banaliser en Afrique central e. 1'.urbanisme detient la clé de la
modernité capitaliste, laquelle entraíne avec elle la modernité politique, raison pour la-
quelle l'histoire de l'urbanisme peut être aussi celle des options politiques.

Le bourg d'Ambango est un modéle d' occupation métissée de l' espace: aux constructions africaines, rondes, vient
328 s'ajouter l'installation porrugaise, ou !e drapeaux renforce !e projet de domination. (CARVALHO, I, pp. 458-459.) 329
OLINDA: EVOLUÇÃO URBANA*

JOSÉ Lufs MOTA MENEZES


Universidade "Federal de Pernambuco

L:exploitation agricole de José Vaz, à Quissole, suligne le rêve «féodal» des agriculteurs luso-africains.
La Maison du propriétaire reléve du modele portugais, mais il fam retenir le mur d'enceinte avec
des machacoulis. (CARVALHO,!, p. 359.)

L:instal!ation civilisarrice «Luciano Cordeiro». lnstallé en territoire lunda, elle était destinée à développer
«le commerce et l'agriculture» avec les Africains et à renforcer le contrôle exercé parles portugais sur
!e Mwatyanuua. Naus y trouvons le même caráctere symbolique: la volumétrie des constructions portugaises,
renforcée par la complexité de la structure, af:firme la supériorité portugaise. Les opérations ne font que
330 renforcer !e caractere politique de tout bourg ou de tonte ville. (CARVALHO, II, pp. 670-671.)
* 'Iexto inédito entregue para publicação em 1997.
A Vila de Olinda- 1537-1630

A escolha do sítio e as relações deste com o redor

Duarte Coelho Pereira chegou a Pernambuco, capitania que lhe fora doada pelo Rei
O. João III, com grossa armada, em 1635, e se dirige, ao entrar pela barra da ilha de
Itamaracá e tomar a direção de um rio (depois chamado de Igaraçú), para uma antiga
feitoria, onde desembarcou. Ao tomar posse da capitania nela se estabeleceu por algum
tempo, em um lugar, depois chamado «dos Marcos», por conta de um padrão demarcador
do limite com a vizinha Capitania de Pero Lopes de Sousa.
Tal lugar era abrigado dos efeitos das fortes marés, mas inseguro, uma vez que podia
o donatário ser aprisionado, se ocorresse um cerco, desde o mar, apenas fechando as entra-
das norte e sul, nos dois extremos, da ilha de Itamaracá.
Talvez por perceber tal situação o donatário procurou logo outro local para estabele-
cer a vila sede de sua capitania. Conhecedor da costa neste trecho, ele, seguindo para o Sul,
vai encontrar o lugar desejado, inclusive porque, mais além, ainda na mesma direção,
existia ancoradouro abrigado, uma vez que protegido por arrecifes. Possivelmente pouco
antes de 12 de março de 1537, considerando a data da Carta de Doação conhecida como
Foral de Olinda, deveria já estar instalado nesse novo lugar.
O novo sítio estava a cavaleiro de uma grande várzea que se estendia para as bandas
do Sul, e, existindo uma, entre outras colinas, mais alta, com uma boa vista para o mar,
nela o donatário deu início a sua vila, construindo logo uma torre para defesa e a cerca que
envolvia as primeiras construções, possivelmente a igreja matriz e o casario.
O conjunto formado pela sede da capitania, a vila, seu porto e a várzea de terras férteis nos
deixa perceber a escolha perfeita e, antes de tudo, racional, então realizada pelos do governo.
Essa escolha, que compreendia um lugar seguro, a cavaleiro de possíveis ataques, quer
por terra ou desde o mar, um porto abrigado, fazendo a ligação com as terras de além-mar,
e uma grande área destinada às hortas e ao criatório, demonstra o nível de racionalidade e a
estratégia que definiam o futuro, depois tão decantado da capitania duartina.
Mas, é conhecida a história de que o donatário, talvez antes da escolha de Olinda,
tenha tomado a iniciativa de buscar também outro lugar para a sua vila, depois de verificar
a insegurança daquele onde pretendia fundar, a que chamaria de Santa Cruz, e que estava 333
OLINDA: EVOLUÇÃO URBANA
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

Assim, a igreja é referida em 1548 como fundada pelo vianez e ela era a principal
próximo ao local dos marcos. Tudo leva a crer que esta não tenha passado de uma preten- daquela povoação que, diferentemente da vila de Santa Cruz, se efetivara graças ao esforço
são, apenas tendo se dado termo e nome. de Afonso Gonçalves e a situação privilegiada, com acesso desde o mar, pelo rio Igaraçú. A
Uma primeira preocupação com a defesa e proteção dos limites da capitttnia contra os explo-
vila de Igaraçú, antes povoação, é referida no século XVII como «Muito nobre e sempre leal
rttdores do pttu-brasil e degredados, nascida talvez antes das três razões citadas para a escolha, pode
e mais antiga Vila de Santa Cruz e Santos Cosme e Damião de Igaraçú», o que lhe dá,
ter levado Duarte Coelho a subir o referido rio Igaraçú, e numa elevação mais a oeste da saída
enquanto designação, 0 título de sucessora da então não criada vila de Santa Cruz, asso-
do mesmo rio no canal que isola a Ilha de Itamaracá do continente, criar uma povoação, depois
ciado ao de sua real denominação de Santos Cosme e Damião, a «dos COSMOS)), com o
vila, que seria designada popularmente como a dos «Cosmos», por conta de uma vitória sobre
nome final, aceito definitivamente de Igaraçú.
os índios, no dia 27 de sete1t1bró, dia dedicado aos Santos Cosme e Damião. O lugar era e é
O rio Igaraçú estreita-se e recebe o afluente Monjope e neste ponto se encontrava,
acessível por barcos, desde aquele canal, também designado, nome que prevaleceu, de IGARA-
provavelmente, 0 trapiche onde ancoravam, no século XVI, os barcos, em lugar próximo ao
-Acú, barco grande, por ter porto fluvial e aonde os índios viam ancoradas tais embarcações.
da atual ponte de passagem sobre o mesmo rio junto à cidade. Desse trapiche se tinha acesso
Francisco Augusto Pereira da Costa, nos seus Anais Pernambumnos, identifica a Vila
cio trecho mais elevado, 0 alto da colina, onde se construiu aquela igreja, referida anteriormen-
de Santa Cruz com essa de Igaraçú, o que parece não ser segura identificação. Acreditamos
te, dos Santos Cosme e Damião. Junto ao cais de desembarque e embarque deve ter se organiza-
que a vila de Santa Cruz foi projeto não realizado, por questões naturais de segurança,
inclusive ainda visíveis nas narrativas do século XVII (Biblioteca de Madrid), quando um do pequeno casario, mas, é ncl parte alta aonde vai se localizar o grosso das mo~adias. O t'.Pº ~e
anónimo relata que a escolha de Olinda se deveu ao cuidado de Duarte Coelho em não organização urbana definido não seria novidade e seu desenho era muito freqüen:e: 1g~eJa,
«quedar cautivo» no lugar dos Marcos. Na escolha de Olinda prevaleceu o sentido de largo, casario, onde se encontrava o restante dos edifícios públicos, o açougue, a ferrana, a
defesa, natural em um governante com experiência militar. câmara, além da casa da governadoria. Em Igaraçú, uma longa rua liga a igreja matriz, de
O historiador José António Gonsalves de Mello, em seus comentários as Cartas de um lado, à Igreja de N. Sr.ª da Misericórdia, do outro. A parte elevada da colina define a
Duarte Coelho, cita uma provisão de 2 de setembro de 1656, onde «Jorge de Albuquerque direção do arruado. Da mesma forma se organizou Serinhaem e, muito mais ao sul, Alagoas,
Coelho, Capitão e Governador da Capitania de Pernambuco da Nova Lusitânia nas partes conforme se pode verificar nos mapas, representados em gravuras, do século XVII, das duas
3
do Brasil por E! Rei Nosso Senhor, etc. Faço saber que Duarte Coelho Pereira meu senhor aglomerações urbanas, que ilustram o livro de Gaspar Barleus •
e Pai, que Deus tem, ao tempo que foi povoar e conquistar a dita Capitania, parecendo-lhe Olinda, Igaraçú, Serinhaem e Alagoas do Sul, nos seus inícios, adotam um mesmo dese-
que em Santa Cruz, que é o lugar e sítio que se chama os Marcos, que dividem a dita nho urbano, definido por uma rua que começa em uma igreja e termina em outra, e, onde nela
minha Capitania da de Itamaracá, se fizesse uma vila, fez mercê à dita vila de Santa Cruz se encontram os demais edifícios públicos, ou sejam a câmarrz, a cadeia, cz forraria, e o t1çougue,
de todas as terras e marinhas do Rio Doce até Jaguaribe, e porque a dita vila de Santa Cruz e, 110
caso de Olinda, a praça da vila, de tal forma delineada que contempla, nos ângulos do
se não fez, nem há lá para moradores dela poderem gozar das ditas terras que lhes estavam triângulo formado, a matriz, a torre de defesa e a câmara. A rua principal, que interliga as duas
dadas pelo dito Senhor na sobredita maneira» 1 • edificações religiosas, se encontra em Olinda e Igaraçú na cumeada da colina.
A vila de Igaraçú, não discutimos aqui a sua antigüidade ou primazia quanto a de Como se disse, deixando o lugar dos Marcos, Duarte Coelho se dirigiu para o sul e
Olinda, tem sua história conhecida e ligada a um vianez chamado Afonso Gonçalves, o qual «andando com outros por entre o mato buscando o sitio onde se edificasse, achando este
está vinculado à fundação de uma igreja dedicada aos santos médicos, por razões conhecidas que é um monte alto, disse com exclamação e alegria: Ó linda»í.
e decorrentes de vitórias sobre os índios, conforme outros documentos. Afonso Gonçalves, Essa história, chegada aos que primeiro a contaram, levada pela tradição oral, não é
em carta de 1548 ao Rei, transcrita parcialmente pelo historiador Gonsalves de Mello, refere- diferente daquela contida na narrativa da Conquista do Paraíba, texto dito do jesuíta Simão
-se a essa igreja da seguinte forma: «Senhor a igreja desta minha fazenda que lhe dei conta.
[... ] eu quisera adquirir os dízimos desta igreja para gastar nela e em cousas necessárias para
o culto divino e ornamentos, pois sou o fundador dela e a fiz às minhas custas próprias ...
h1
.1 As gravuras são as de seguinte títulos: 13. Civitas Formosa Serinhaemensis. 14. Pr1gus alagoae Austnzlis.

BARLAEUS, Gaspar, História dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos no Brasil e Noutras Parte:, sob
e tive nela um padre que é obrigado a dizer missa e confessar gente desta minha povoação tão 0
Governo do Ilustríssimo João Maurício de Nassau l::.tc., Ora Govemador de Wesel, Tenente Geneml dm Prov111cuzs
grande como esta estar sem igreja e clérigo que os confesse e lhes diga missa.» 2 Unidas sob O Príncipe de Orange (com título, em edição em português, apenas de História dos faitos recentemente
praticados durante oito anos no Brasil), tradução de Cláudio Brandão, prefácio _de José Antónw Gonsalves_de
Mello, Prefeitura da Cidade do Recife, Secretaria de Educação e Cultura, Fundaçao de Cultura Cidade do Reufe 1
Recife, 1980.
1
MELLO, José Anrônio Gonsalves de, ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de, Cartas de Duarte Coelho a 4 ln SALVADOR, Frei Vicente do (1564-1636/9), História do Brasil, 5.ª ed., São Paulo, Melhoramen-

E! Rei, Documentos para a História do Nordeste II, Imprensa Universitária, Recife, 1967, pp. 22 e 23.
335
tos, 1965.
334 2
Op. cit., p. 22.
UNIVERSO URl3ANfSTICO PORTUGUiéS OLINDA: EVOLUÇÃO URBANA

Travassos, sobre a escolha do lugar, no final do século XVI, pelo ouvidor-geral Vasco Leitão e se vão distribuindo ao longo da parte mais alta da citada elevação o casario, provavelmente,
seus companheiros de jornada, para a fundação da cidade Felipéia, hoje João Pessoa. No caso de início, protegido por uma paliçada de madeira, à maneira dos indígenas.
paraibano ele, o ouvidor-geral, com seus companheiros, percorreu a cavalo o alto de uma Por sua situação topográfica a parte mais alta da referida colina se estende ao longo de
colina, o mato, por sobre o rio Sanhauó, e definiu o sítio onde iria construir a cidade. Igaraçú, leste a oeste, balizando os seus dois extremos, a Igreja Matriz do Salvador e o Hospital e
como vimos, também foi escolhida em um alto, por sobre um rio de igual nome. Igreja da Santa Casa de Misericó1dia (lembrando a disposição também utilizada em Igaraçú).
Não parece ser obra de acaso tais formas de escolha. Elas foram fruto de um hábito que Duas ruas, se sabe, corriam lado a úido seguindo a linha da cumeada da colina, a de Val de
espelhava ainda uma tradição que vinha desde as cidades medievais. Talvez a Memória Urba- Fontes e a Rua Nova. Nesta Rua Nova se situavam, além das moradias, a Torre, residêncitt do
na tenha se aliado à racionaJidacle, decorrente dos princípios defensivos que se encontravam donatário, a Fermria e depois a Cttsa da Câmara.
presentes na Arte da Defesa das Praças, e estes falaram mais alto. Isto não querendo dizer que Não se conhece representação cartográfica, com a indicação de ruas, que recue ao
tal escolha, pela altura dos sítios, nos leve de pronto a afirmativa de que esses desenhos tempo desses primeiros assentamentos na colina da matriz. A representação mais antiga,
urbanos, às vezes por suas irregularidades nos traçados das ruas, sejam medievais. em mapa, de Olinda, é aquela contida em um levantamento do cartógrafo Cornélio Golyath,
Ao escolher um sítio para fundação de sua vila, Duarte Coelho Pereira 5 se fixa dentre de 1648. O manuscrito, que se encontra guardado na Biblioteca de Viena, foi divulgado
outras, como se disse, em uma colina, hoje conhecida como Alto da Sé, e nela constrói uma pelo historiador José António Gonsalves de Mello no seu livro Cartografia Holandesa do
torre, cujas ruínas ainda se podiam ver na primeira metade do século xvm 6 • Desde essa torre Recife, edição do IPHAN, de 19767. Outros desenhos, de um tempo anterior a 1631,
ocasião do incêndio da vila, de engenheiros militares holandeses, esclarecem pequenos
5«Entre todos os donadrios o mais favorecido pelo rei foi por certo Duarte Coelho, tanto pela extensão da trechos, mas não o suficiente para o que se deseja.
Capitania, CO'llO pela proximidade da Europa, como até pela relativa prosperidade da feitoria aí fundada ante-
Outro documento de grande interesse, uma vista da vila titulada Marim de Olinda,
riormente.
«Em época não determinada fez-se inquérito sobre a filiação de Duarte Coelbo, sendo então ouvidas gravura de data desconhecida, anterior ao incêndio de Olinda (1630-novembro de 1631),
algumas pessoas, que declararam ser seu pai Gonçalo Coelho. Essas pessoas foram as seguintes: que foi inserta no livro de J. de Laet, sobre a História da Companhia das Índias Ociden-
«Diniz Mendes moço da câmara da Rainha D. Catarina. Jane Mendes reposteiro do Rei Dão João 3. 0 na
Rua dos Cabides. Pedro Alvares de Mancelos Cavaleiro do hábito de S. Tiago. Francisco Preto. Luis Alvares tais, nos permite bem avaliar o quanto estava, no século >..'VII, já construída aquela parte
Ferreira, Porteiro da Câmara. D. Ana da Guerra mãe de Lopo de Sousa. S. Francisco de Lisboa. D. Guiomar da mais antiga da vila 8.
Silveira mulher de D. Antônio Rolim. Janebra Brochado de Extremoz, Avó de Luis de Briro»[4].
A respeito da mãe de Duarte Coelho são densas as trevas, mas segundo Madureira ele «era natural de
No mapa de Golyath, onde estão representadas as ruas e as praças, além dos princi-
Miragaia e se criou no Mosteiro de Vila Nova por ser aí Prioresa uma tia sua e que era filho de Gonçalo Coelho pais edifícios, e outros acidentes de interesse, não se chega ao nível da indicação dos lotes,
Capitão de Navios na costa do Brasil e de CatarinaAnnes Duarte»[5]. onde se situavam as casas de moradia.
[4] Bib. Nac., cod. 1031, íl. 21. Este códice contém papéis relativos à família dos AlbuqLterques Coelho,
ministrados por estes e que podem suprir até certo ponto os dois livros da secretaria de Antônio Carneiro com Divulgado depois em gravura, este mapa foi outras vezes reproduzido, inclusive
papéis do Brasil, mandados para Duarte de Albuquerque, citado nos Anais, de D. João III, p. 371. atualizado, para servir de ilustração a outros livros. A análise das diferentes versões nos
[5] Bib. Nac., cod. 272, íl. 21. ln História da Colonização Portuguesa do Brasil- Vol. Ill -Capítulo V -
os Primeiros Donatários por Pedro de Azevedo, p. 194. indica que tais atualizações se tornam importantes para a compreensão de algumas partes
6
«13. Neste lugar se deteve Duarte Coelho todo o rempo que lhe foi necessário para povoar e guarnecer a não devidamente esclarecidas. Olinda, que ocupa uma pequena parte de uma das quatro
nova vila; daqui (Igarassú) partiu com o grosso da sua gente, correndo a terra para a parte do Sul, sempre a vista
folhas daquele manuscrito do cartógrafo Golyath, foi também reproduzida nos livros de
do mar, desejoso de achar sítio conveniente para nele edificar uma povoação, que servisse de cabeça da sua
Capitania. Barleus e de Nieuhof e, talvez, em outros. Dependendo do gravador as representações são
« 14. Avistou um ameno, e aprazível, monte vizinbo ao mar em altura de oito graus da Equinocial para o Polo
mais ou menos enriquecidas. Há um dos mapas do Adas de Vingboons que nos mostra o
Austral com a comodidade do Porto, que ali faz o mar, abrindo a natureza em uma dilatada corda de serrania, que
metida pelo mar cinge muita distância de terra uma abertura a qual chamam os naturais Pernambuco. O que na
língua Brasílica vale o mesmo que mar furado, ou rio furado. Por que como os Árabes, dizem Guada, a todos os
7
Rios; dizem, Pará, os Índios do Brasil; a que ajuntando a palavra Nambuco, dirá rio furado; o que se tomou dos Rios «Representação de três cidades no Brasil, como são Olinda de Pernambuco, Cidade Maurícia e Recife,
Beberibe e Capibaribe que são as mais vizinhas correntes do seu distrito. com uma parte da Várzea, compreendendo os seus engenhos, casas, canaviais, roças e outras circunstâncias
« 15. Foi Duarte Coelho recebido dos Tupinambás (que assim se chamavam os Gentios gue habitavam este desenhadas por Cornélia Golyath, cartógrafo de Sua Excelência o Conde J. Maurício de Nassau, e agora pelo
monte, e suas ribeiras) com demonstrações gratas, respondendo n'eles o contentamento a grandeza do benefício mesmo enriquecida com os fortes e entrincheiramentos que os portugueses rebeldes levantaram a modo de
para que os convidava o Capitão-Mor, oferecendo-se-lhes companheiros, se invadidos de outras nações, necessi- assédio e com as defesas dos nossos contra eles. No ano de 1648.» /11 Gonsalves de Mello, José Anrônio,
tassem da assistência das nossas armas. Como os nossos foram tratados do maioral com mimos de hóspedes, e dos A Cartografia Holandesa do Recife, Estudo dos Principais Mapas da Cidade, do Período 1631-1648, Publicação
mais com agasalho de companheiros, pode sem contradição levantar Duarte Coelho uma torre ou Castelo de PHNG/2, Edição Ilustrada, Recife, 1976.
8
Pedra e cal (de que ainda aparecem ruínas), para nele viver com a sua família e ao pé dele hua povoação em que Gravura titulada Marin d'Olinda, inserta no livro de J. de Laet: Historie ofte laerlijek Verhael ¼n De
assistisse a sua gente.» ln LO RETO COUTO, D. Domingos do, Desagravos do Brazil e Glorias de Pernambuco Verrichtinghen Der Geoctroeerde Westindische Compagnie, Zedert Haer Begin tot Heteynde va,/tfaer Sesthien-Hondert
336 etc. (1751)- Rio, 1904, p. 20. Ses-en-Derdich. -Leyde 1644. Dimensão da mancha 327 x 254 mm. 337
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS OLINDA: EVOLUÇÃO URBANA

parcelamento das quadras mas, nos parece, sem precisão, sendo apenas talvez uma propos- Consolidada a paz com os índios, acreditamos, a vila vai crescer, em um segundo
ta de reconstrução 9 • momento, para as partes mais baixas.
No mapa em quesrão, de Golyath, a vila se encontra delineada em toda a sua extensão
e ainda se revelam os caminhos para as demais partes, engenhos, povoações e várzea onde se
vão pelo caminho que vai para o passo do Governador e isto para os que não tem onde pastem os seus gados e isto
encontravam as plantações. Com precisão decorrente da competência do cartógrafo, o mapa será nas campinas para passigo, e as reboleiras de matos para roças a quem o Conselho as arrendar, que estão das
pode ser analisado com segurança. campinas para o alagadiço e para os mangues, com que confinam as terras dadas a Rodrigo Álvares e outras pessoas.
«O monte que Duarte Coelho concedia para casarias e vivendas, na opinião unânime das testemunhas que
Acreditamos que se possa dividir em duas partes distintas e sucessivas o crescimento
depõem nos autos do Juiz de Tombo, era o em que estava localizada a rua Nova, isto é, o outeiro da Igreja do
urbano dessa área mais a1;,tiga:da cidade. Em primeiro lugar temos os assentamentos que se Salvador do Mundo, depois Sé.
fizeram inicialmente na colina da Matriz do Salvador do Mundo e, depois, a expansão «Algumas dessas restem unhas deixaram nos seus depoimentos a lembrança de aspecros da vila após o incên-
dio e destruição dela pelos holandeses em 1631, a que se seguiu a retirada constante de materiais de construção para
para as partes mais baixas, em direção ao rio Beberibe e ao salgado, o mar. utilização nas casas que os invasores estavam a levantar no Recife e em Maurícia. André da Cruz, de 81 anos em
Nesse primeiro momento, que não se encontra dissociado do segundo, o donatário 1710, afirma que "o Monte em que o Foral fala ouviu ele testemunha sempre dizer era donde hoje chamam a rua
Nova, que foi a parte mais povoada desta cidade, donde ele testemunha ainda viu muitos edifícios derrubados,
assenta as primeiras casas no alto da colina, onde se encontra a sua torre forte e onde
vindo para esta Capitania há 46 anos (em 1664, portanto), e na dita parte ouviu dizer morava o Governador e na
próximo a esta constrói a matriz, além da Igreja e Hospital da Santa Casa de Misericórdia, mesma rua ainda ele testemunha conheceu a cadeia velha, em cujas casas ao presente vive Antônio Lopes Leitão, e
estas situadas no outro extremo da rua principal. Naturalmente, estabelecida a administra- às fraldas do diro Monte também ele testemunha viu nelas muitos edifícios derrubados, assim para a banda do norte
como para a banda do sul, pegando uma rua por detrás do palácio donde hoje vive o Bispo e ia sair à Igreja da
ção, foram construídas a Casa da Câmara, a Cadeia, além do Açougue e Ferraria. Este Conceição e daí para baixo até as outras era muito povoado".
núcleo inicial se encontrava ligado, por caminhos, ao lugar de desembarque das mercado- «José de Sá e Albuquerque, capitão-mor de Olinda e um dos primeiros genealogistas pernambuGmos, então aos
80 anos de idade, "disse que o Monte, em que se achava a maior parte do povo:ido que esta cidade teve, foi donde hoje
rias, vindas desde o Recife, o Varadouro, às margens do rio Beberibe e ao mar.
chamam a rua Nova, donde ele testemunha viu as paredes das casas que se c'.1zia foram dos governadores e na dita rua
Provavelmente protegido por uma paliçada, esse núcleo original se encastelava no alto ainda existiam as casas que foram cadeia''. Francisco Berenguer de Andrade, de 74 anos, afirmou que "o Monte em que
da elevação e isto em muito facilitava a defesa, que empregava, como se sabe, no século XVI, o Foral a princípio declara é adonde chamam a rua Nova, donde ele testemunha sempre ouviu dizer habitar o primeiro
Donatário desta terra e povoador dela e sua mãe, Dona Brites, e ali teve princípio esta cidade". Aqui Dona Brites,
ainda armas antigas, mesmo considerando a descoberta da pólvora, tais como as bestas. mulher do Donatário, foi por engano referida como mãe deste.
Apesar da exclamação, tão decantada, de «Ó Linda situação para uma vila», os mora- «A documentação constante do Tombo do Mosteiro de São Bento oferece esclarecimentos complementares
acerca da área da vila que Andre da Cruz diz ter sido "a parte mais povoada desta cidade", embora ele a tivesse
dores não usufruíam da paisagem ao redor desde a rua. A paisagem que circundava a conhecido com "muitos edifícios derrubados", quer no alto, quer nas encostas do monte. A denominação dada a
colina somente era vista desde os fundos de quintais, do Adro da Matriz e da frente da que é provavelmente a primeira rua olindense, que vai da Igreja Matriz, hoje Sé, à Misericórdia, remonta ao início
da própria construção da vila duartina, pois já em escritura ele 23 de maio de 1542 está referida a doação de um chão
Misericórdia. Destes lugares se avistavam o mar, a várzea e as partes mais ao sul da Capita-
a Jerónimo de Albuquerque com "restada ao longo da rua Nova" e "pela traseira parte com a rua de Val de Fontes"
nia, porém da rua nada se via do redor. Voltadas com suas frentes em direção à rua, as casas que é, ralvez, a que menciona André da Cruz como "pegando ... por detrás do palácio donde hoje vive o Bispo e ia
criavam um corredor desde a Matriz até a Misericórdia. Esse voltar para dentro era bem sair à Igreja da Conceição", rua hoje desaparecida [13]. O chão doado a Albuquerque merece ter suas dimensões
conhecidas, embora, por se tratar de um dos principais povoadores e dos da governança da Capitania, não deva ser
compatível com a existência da cerca, lembrando assim os muros medievais. considerado como representativo dos "lotes" concedidos aos demais povoadores: de frente media 11 braÇ<~S e 3 pal-
Não restam dúvidas que tal parte de Olinda constituía a mais antiga. No século À'VIII, mos ou 44 metros e 22 centímetros; de fundo 17 braças e 3 palmos ou 68 metros e dos lados 17 braças e 2 palmos
ou 67 metros e 76 centímetros [14].
um juiz, Dr. José Inácio de Arouche, também ouvidor-geral, atendendo uma Provisão
«Na rua Nova estavam situadas, já em 1542, a "praça'', isto é, o mercado, a ferraria, a fortaleza e reservado
Real, procura esclarecer os termos da Carta Foral, e, analisando os resultados dos Autos, o o terreno para a "casa da cadeia que se há de fazer". A "fortaleza" era a residência do Donatário e foi lá que certo
historiador José António Gonsalves de Mello elaborou um notável texto no qual se confir- escrivão em 1577 encontrou Dona Brites já viúva: "na fortaleza desta Vila onde estava a Sra. Dona Brites" (15].
E é possível que a "pousada'' de Duarte Coelho de Albuquerque na rua Nova, em 1572, fosse na fortaleza [16].
ma, entre outras coisas, tal antigüidade 10 • Gabriel Soares de Sousa chama-a de torre, e em 1587 conta que "em um alto livre de padrastos ... fez uma torre de
pedra e cal, que ainda agora está na praça da vila" [17]. Manuel de Figueiredo, em 1614, autor de roteiros de
viagens marítimas, descreve a vista da "Ponta de Marim" ou de Olinda a partir do mar: "vindo do mar em fora se
9
O chamado Adas de Vingboons na verdade é parte de um outro em dois volumes que foi descosido e dele faz esta ponta espinhosa por cima e são os coqueiros e a torre que está no meio dela e algumas casas grandes que
retirado os mapas referentes à América do Sul. A coleção onde se encontravam os dois volumes, então vendida, se fizeram pelo alto da povoação" (18]. Simão de Vasconcelos em 1663 conta que o primeiro Donatário «em um
pertenceu a H. G. Bom, e a parte em rela foi adquirida pelo pesquisador pernambucano José Higino Duarte lugar mais alto, livre de padrastos e defensável, fundou uma torre de pedra e cal, cujas ruínas ainda hoje perseve-
Pereira, em 1885. Hoje se encontra o Adas no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. ram na rua Nova" [l 9].
'" O historiador José Antônio Gonsalvcs de Mello no eirado texto titulado O Chamado Foral de Oli11da de «Frei Vicente do Salvador localiza-a, ao informar que "defronte da torre se edificou depois um suntuoso
1537, ao comentar o § 2. 0 (como divide o Foral para melhor tecer considerações) nos permite excelente templo do Salvador" (20]. D. Domingos de Lo reto Couro na primeira metade do século XVIII refere que da "torre
reconsti ruição desse trecho da vila: ou castelo de pedra e cal" levantado por Duarte Coelho "ainda aparecem ruínas"» [21].
«(§ 2. 0 ) Os assentos deste monte e fraldas dele, para casarias e vivendas dos ditos moradores e povoadores, «[13] Vai de Fontes sugere a existência nas proximidades de fontes naturais de água. Teria sido delas que as
338 os quais lhes dá livres, forros e isentos de rodo o direito para sempre, e as várzeas elas vacas e a de Beberibe e as que mulheres índias iam recolher o líquido em cabaços com que socorriam Duarte Coelho e os seus, assediados pelo 339
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Talvez a localização das demais construções religiosas tenha direcionado tal cresci- à época do 1. 0 donatário sua construção. Segundo ainda Soares Mariz era nessa capela que o
mento, uma vez que aquele alto logo se esgotou em espaço para novas casas e igrejas, sem donatário Duarte Coelho costumava ouvir missa12 • Pereira da Costa não informa e não conse-
contar com aquele direcionamento que decorreu dos caminhos citados para o Varadouro guimos saber em que se fundamentou o Sr. Soares Mariz para dar tal notícia.
das Galeotas e em direção ao mar. Frei Bonifácio Müeller acrescenta, com fundamento, na Crônica do Mosteiro de São
No restante da área escolhida para a vila, em outra colina, isolada em relação a já referida, Bento de Olinda, às ermidas citadas a de São João 13 •
mais para o norte, uma ermida já existia, desde os primeiros momentos da vila, tendo por orago Finalmente, uma última ermida, de fundação do donatário, a de Nossa Senhora da
Nossa Senhora do Monte, a única, de todas quanto são ditas da época do primeiro donatário, Graça, destinada, a princípio, aos frades de Santo Agostinho, depois foi doada aos jesuítas,
que possuía «certidão de nasciinento», desde que se encontra referida no citado Foral de Olinda. quando estes chegaram a Pernambuco em 1551 14 •
Ignoramos se em torno dela teriam existido casas. Os mapas da vila que ilustram os livros de Analisando o desenho urbano que se encontra definido e representado no mapa de
11
Nieuhof e de Barleus não indicam nenhuma construção no lugar além da ermida • Golyath, observa-se que as ruas seguem uma disposição que tem como referência inicial
Desde o Alto da Matriz, talvez continuando a Rua do Vai de Fontes, um longo cami- aquela colina antes citada. A ela se tinha acesso através de três ladeiras, a da Misericórdia,
nho seguia para as praias do Norte, sendo parte dele hoje a Rua do Bom Sucesso, e dele, em a da Matriz e uma terceira que ia em direção ao Rossio e ao salgado. A primeira descia do
certo trecho, se sobe para a Igreja de Nossa Senhora do Monte. Tal caminho, assim nos Alto da Matriz, desde a frente da Igreja e Hospital da Santa Casa da Misericórdia, daí seu
parece, é um dos mais antigos da vila. No mapa de Golyath, onde ele se encontra assinalado, nome, chegava até ao nível da atual Rua Prudente de Morais, a antiga da Sarralheira, e,
não há, talvez por falta de espaço no desenho, a ligação dele com o alto da colina da Matriz. desse ponto, podia se prosseguir subindo para a Ribeira, ou ora seguir para o Rossio ou
Noutra colina, ao sul, junto ao lugar destinado ao Rossio, segundo determinava o citado para o lugar do comércio, os Quatro Cantos, de onde então infletia quer na direção da Rua
Foral, encontrava-se construída, antes de 1551, uma ermida dedicada aos Santos Antônio e da Ponte Velha, a da Hora, ou na direção da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, e depois
Gonçalo. O historiador pernambucano E A. Pereira da Costa, citando Soares Mariz, remonta para aquele Caminho (atual Rua do Bom Sucesso) que, representado no mapa referido,
dava acesso a Igreja de Nossa Senhora do Monte ou seguia para o salgado e praias do
Norte. Do nível, no qual se chegava ao pé da Ladeira da Misericórdia, na Rua da Sarralheira,
gentio, ao que se refere Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, op. cit., 132, Frei Antonio de Santa Maria como se disse, se podia também subir até a Ribeira e Igreja de São Pedro, e daí para o Largo
Jaboatão, Novo Orbe Seráfico Brasílico, 4 vols. (Rio, 1858-61), I, p. 138, diz que "naquele alto onde hoje está a
cidade de Olinda, que é o que chamam rua Nova, entre a Sé e a Misericórdia, fôra a siruação primeira dos novos
de São Bento. Antes de se chegar a tal Largo, ainda se podia descer por outra ladeira para
fundadores". o Varadouro. A este Varadouro se tinha acesso por dois caminhos, o que vinha desde a
«[14] A conversão ao sistema métrico foi feita tendo em vista a referência constante da própria escrirura de
Ponte Velha ou esse desde a Ladeira do Varadouro. Na parte alta desta ladeira se construiu
1542 de que "as braças acima declaradas são de nove palmos de vara", isto é, a vara correspondia a 1 metro e
98 centímetros e a braça ao dobro destas ou 3 metros e 96 centímetros: Tombo cit., pp. 36, 43 e 45. Outros depois de 1654 o Palácio do Governo. A segunda forma de descer da colina da matriz era
documentos do Tombo mencionam varas de nove palmos: pp. 37 e 114. Em sesmarias declara-se expressamente por outra ladeira, que saía junro ao adro da igreja e, íngreme, ia até o atual largo da Igreja
que a vara media dez palmos: "tresentas braças de terra em quadra de sesmarias, que serão craveiras, de dez
de São Pedro, a nova. A terceira ladeira descia ao lado da matriz em direção ao mar, se
palmos de vara": Tombo cit., pp. 151 e 152.
«[15] Tombo, p. 481. bifurcando logo abaixo da Igreja e Colégio da Companhia de Jesus e ora seguia para esse
«[16] Tombo, p. 482. salgado ou descia para o Rossio, passando pelo Convento dos Frades de São Francisco.
«[17] Pirajá da Silva (ed.), Roteiro do Brasil, 2 vols. (São Paulo, s.d.), I, p. 109.
«[18] Hydrographia, Exame de Pilotos ... Com os roteiros de Portugal para o Brasil (Lisboa, 1614), folha 6. Assim, se atingia o Rossio de pelo menos duas maneiras quando se vinha do Alto da
«[19] Chronica da Companhia de Jesus do fitado do Brasil (Lisboa, 1663), I, p. 91. Matriz. A Vila tinha três pontos focais, o Alto da Matriz, o Rossio e o Varadouro das
«[20] História do Brasil, cit., p. 133.
«[21] Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco (Rio, 1904), p. 20. Varnhagen imagina-a "uma espécie galeotas. Eles se interligavam entre si de muitas maneiras. O Varadouro das Galeotas era o
de castelo quadrado, a maneira das torres de menagem dos solares da idade média": História Geral do Brasil, 1.ª ed., porto fluvial e nele se encontrava a Alfândega. A ligação com a várzea, onde se encontra-
2 vols. (Madrid, 1854-57), ], p. 147. Alfredo de Carvalho recorda que "na edição princeps do curioso livro de Hans
vam as plantações, se fazia pela ponte que nascia ao pé da Rua da Hora.
Staden ocorre uma gravura tosca, representando a nascente Olinda, defendida por fossos e paliçadas, circundando
a legendaria torre quadrada" do primeiro Donatário: Horas de Leitura (Recife, 1907), PP· 19-20, no que se enganou
0 erudito historiador pernambucano, pois a representaço~o de Olinda na gravura cm questão é inteiramente conven-
12
cional, sem qualquer característica de reprodução da realidade.» «Esse pequeno santuário rinha invocação de Santo António e S. Gonçalo, ficava em uma pequena
11 «O outeiro de Nossa Senhora do Monte foi doado para serviço vila e povo de Olinda, com exceção de eminência - junto a pancada do mar - e foi construído pelo colono Clemenre Vaz Moreira, em época ignora-
cem braças situadas em torno da igreja, isto é, da casa de Nossa Senhora. Esta única referência a igreja constante da, mas contemporânea a fundação da vila de Olinda, por quanto, como refere Soares Mariz, era nessa capela que
do Foral faz dela a mais antiga de Pernambuco, com "certidão de nascimento" por documento contemporâneo.» o donatário Duarte Coelho costumava ouvir missa», in F. A. Anais Pemmnbucanos, vol.1. 0 , p. 488.
13 Mueller, Frei Bonifácio, OFM - Olinda e suas Igrejas -Esboço Histórico, Recife, 1945.
ln «O Chamado Foral de Olinda de 1537», por José António Gonsalves de Mello, Revista do Arquivo Público
340 - vol. 11-28 - n. 0 13-30, pp. 39 a 58 -Arquivo Público, Recife, 1974. 14
Leite SI, Serafim, Historia da Companhia de jesus, 10 volumes, Lisboa, Brasil. 341
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O acesso de Olinda para o lugar do Recife se fazia na época pelo menos de três «O Foral de 1537 não recebeu, por parte dos primeiros vereadores, o cuidado que
maneiras. A primeira desde a Ponte Velha, seguindo em direção a atual Encruzilhada, a requeria o documento original, portanto, em 1550 a Câmara solicitou ao donatário uma
Carreira dos Mazombos, e daí para a península. A segunda pelo rio Beberibe, desde o cópia do documento, a qual foi tirada do livro de tombo e matrícula (da Capitania).
Varadouro. E a terceira descendo o istmo a partir do pé do Montinho, onde se encontrava «Com a invasão holandesa em 1630 e o incêndio em 1631, o documento guardado
o mosteiro dos monges de São Bento. A, ligações com a várzea e com os engenhos do redor no arquivo do concelho foi novamente perdido. Em 1654, após a restauração do domínio
da vila se faziam por caminhos que se definiram desde os inícios da povoação, quando se português em Pernambuco, o texto foi localizado no mosteiro de São Bento de Olinda e
instalaram os primeiros engenhos. Um dos mais antigos, ainda hoje existente (a Estrada dele foi feito um traslado em 1672.» 15
Velha de Água Fria), é aqLfele •~ue saindo da vila para oeste seguia até a, depois, povoação O Foral tem longa história e dela se ocupa a arquiteta Valéria Agra em seu Projeto
do Beberibe, provavelmente passando pela antiga propriedade rural do donatário, e da- Foral. A sua análise revelou os lugares nele referidos, demonstrando a racionalidade que
quela voltava-se para o sul e seguia até as proximidades do lugar onde se fez, já no sécu- presidiu a definição do traçado urbano da vila pelos do governo em 1537.
lo XVJI, o Arraial Velho, uma fortificação para defesa e resistência contra os holandeses. No documento se define o lugar do Rossio, «defronte da vila» nas proximidades do mar
Outro caminho seguia desde o Beberibe para o norte, talvez para Igaraçú e depois Goiana. e de forma tal que, como vimos, a ele se chegava de qualquer lugar da vila. Depois, já escolhi-
Daí vai tomar depois a direção das outras capitanias do Norte. Na várzea os caminhos se do por sua situação geográfica, vem o do desembarque e embarque de mercadorias vindas do
multiplicavam segundo os engenhos que se iam montando às margens dos rios. povoado do Recife, o Vamdouro. Junto a este as Feitorias. A ele se chega com igual facilidade.
Não ocorreu toda essa delineação de uma só vez e pelo que se pode ver ela foi fruto de O Foral defende, para serviço da vila, as terras ao longo do rio aré o povoado do Recife:
uma racionalidade que não se configura tão medieval como se quer supor. A, elevações e a «A ribeira do mar até o arrecife dos navios, com suas praias, até o varadouro da galeota,
localização das igrejas e outras casas religiosas e mais ainda as determinações contidas no subindo pelo rio Beberibe arriba, até onde faz um esteiro que está detrás da roça de Brás
Foral foram fundamentais para o desenvolvimento do traçado, que então nos chega prati- Pires, conjunta com outra de Rodrigo Álvares, tudo isto será para serviço da Vila e povo dela,
camente definido na altura do levantamento cartográfico de Golyath. até cinqüenta braças de largo, do rio a dentro, para desembarcar e embarcar todo o serviço da
Essa racionalidade se encontra presente na Carta Foral e no uso do solo conforme as Vila e povo dela, e daí para riba tudo que puder ser, demais dos mangues, pela várzea e pelo
determinações constantes do referido documento, conforme veremos. rio arriba é de serventia do Concelho.,, No Foral se destina, ao redor do núcleo povoado e nas
A definição dessas ruas de Olinda tem por princípio o interesse de que os caminhos, proximidades do rio Beberibe, o Curral Velho das Vacas, para pastagens e as roças. Para as
mesmo variados, cheguem a determinados lugares, pontos focais, com facilidade e de qual- cercas conventuais ficam as áreas junto ao mar. A vila fica mais para dentro, protegida dos
quer ponto em que se parta. ventos. Nessas áreas se situarão antes do final do século, os conventos dos franciscanos e dos
Com clareza se pode deduzir que o ponto inicial da vila foi o alto daquela colina, carmelitas e por fim o mosteiro dos beneditinos. A Companhia de Jesus, a primeira a chegar
onde se construiu a matriz e o casario, e, depois de esgotado o espaço para as construções, em 1551, foi beneficiada por um lugar mais ao alto ainda do lado do mar, a colina por detrás
se definiram as diretrizes do crescimento tomando em consideração as determinações do da matriz e onde se encontrava, antes de 155 l, a ermida de Nossa Senhora da Graça.
Foral. Ao longo do tempo entre 1537 e 1630 foram se configurando as ruas e se cons- O Foral define bem o que deveria ser para uso do povo, o pertencente ao Concelho e
truindo as moradias, além das cercas destinadas as ordens religiosas. outros lugares onde os beneficiados estão bem declarados. Na verdade tal forma de doar se
faz através de um documento onde o uso do solo decorreu de um raciocínio bem funda-
O Foral mentado. A escolha dos lugares realizada como decorrência de uma análise das c11racterísticas do
local da vila está bem distante daquela forma de ocupação espontânea e de maneim irregular de
«A outorga do Foral de 1537, feita pelo primeiro donatário, fidalgo de formação
européia, estabelece pontes com o mundo peninsular e europeu, ganhando, assim, inser- 15
Projeto Foral de Olindtl - Relatório Fi11t1l, Olinda 1996 O Projeto Foral, coordenado pela arquiteta
ção no velho continente. Valéria Agra, é de grande importância, não apenas para a economia urbana do município, por restaurar um
tributo que vem do século XVI, mas por ser uma das mais notáveis pesquisas sobre as origens das propriedades
«O Foral de Olinda, confere à povoação, o título de Vila e estabelece o seu patrimônio urbanas e rurais de Olinda e do Recife. Trabalhando com os Livros de Aforamenros a equipe tem revelado uma
público, entretanto, não possui a forma dos forais manuelinos e afasta-se dos modelos verdadeira parte da história de Olinda que jazia esquecida nos arquivos. Por omro lado, a reconstituição dos
lugares e de seus proprietários tem revelado uma verdadeira árvore genealógica dos donos da terra, interessando
textuais existentes, apresentando-se como uma carta de doação por não possuir no seu
vivame_'.1te_ ~ ~utros_ especialistas. A reconstituição do Foral foi oLitro episódio de grande interesse no Projeto
conteúdo a definição dos limites do Termo da Vila, as normas judiciais e penais e a carga Foral. l::la Ja nnha sido realizada textualmente pelo historiador José Anrônio Gonsalves de Mello mas, na forma
342 fiscal imposta aos moradores. cartográfica, o Projeto logrot1 um tento de grande interesse para a História Urbana. 343
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS OLINDA: EVOLUÇÃO URBANA

cidades anteriores a 1537. O uso racional do solo nos conduz a uma outra maneira de pensar A Vila de Olinda - 1630-1654
e que teria lugar no que se pode chamar a modernidade de então. Parece-nos estarmos no
limiar de outros tempos onde se anteciparia um desenho à realização dos assentamentos. Incendiada a vila, em 1631, ela é abandonada pelos seus moradores. Em 1639, as
A relação sede, lugar da planttu;ão e porto de embarque nos leva a um mesmo raciocí- pedras de suas melhores construções serviram para obras holandesas no Recife. Algumas
nio, fiel àquele de um estrategista, um militar, consciente com um mundo novo que des- tentativas foram realizadas para a reconstrução de algumas moradias, mas são insignifican-
tes e somente as casas religiosas, assim nos parece, foram reocupadas, precariamente, em
ponta.
tempos de paz, pelos padres. Preferida pelo pintor F. Post, da comitiva do governador João
Parece-nos que a Vila de,,Olinda é a ponte entre as antigas cidades e as novas, que j,í.
Maurício de Nassau (1637-1644), a vila é então pintada em belos panoramas. A matriz se
deram mostra de suas importâncias nas diversas bastides então j,í criadas na Europa. Tal
encontra representada em nove quadros desse pintor. A ruína é tema, no século XVIl, caro
correlação não diz respeito ao traçado mas aos princípios que o antecederam, no que se
aos pintores de paisagem. Tais pinturas ainda não foram devidamente estudadas. Com o
encontra de racionalidade em ambas as formas.
incêndio da vila tudo se transfere para aquele povoado dos arrecifes.
Em 1631 a Vila é tomada e incendiada pelos holandeses. A sua dimensão nesse ano
em nada é diferente da que hoje se define como sua área histórica e integrante do polígono
de tombamento federal.
O núcleo antigo, definido no mapa de Golyath, se encontra envolvido, por terras A Vila de Olinda depois de 1654
ocupadas pelos engenhos e sítios, estes situados ao longo do rio Beberibe e nas praias. Esses
sítios, às margens do rio, estavam destinados às hortas e pequenas criações, o cinturão verde, Com o abandono da vila, então incendiada, e a transferência da gente vinda de fora
e nas praias se encontravam os assentamentos de pescas, por currais ou outras formas. e de alguns locais para o povoado do Recife, mudou toda a sistemática antes adotada e
Ligados por caminhos que saíam da vila, vários engenhos ocupavam as várzeas dos definida na relação Vila/plantação e porto. Nova relação se constrói tendo por centro o
rios Beberibe e Capibaribe, como principais, e outros. Esses caminhos se definem segundo Recife, que então crescerá como cidade portuária. Olinda vai se encontrar fora do esque-
as necessidades da produção e a maioria deles são hoje ruas de ligação entre Olinda e o ma. De 1631 a 1654 a nova relação se materializa e se impõe. Depois de 1654 não se pode
grande Recife. No centro, nesse século XVII, a Vila de Olinda, e dela uma enorme teia se mais mudar o destino do Recife, que passa a ocupar aquele lugar antes de Olinda. Será o
Recife a sede, embora não oficial, e Olinda, secundarizada, se reconstruirá lentamente,
construiu, nas ligações com as plantações. Interligando tais vias entre si, temos os cami-
não tendo mais a importância que teve naqueles anos anteriores a 1630.
nhos dos rios que levam o açúcar produzido para o porto no povoado do Recife.
Mapa de meados do século XIX nos revela uma cidade, então título obtido em 167 6, ainda
Uma enorme e racional, embora complexa, estrutura se armou para o fim previsto da
com as mesmas dimensões daquela vila representada no mapa de Golyath. É bem verdade que se
produção de um bem econômico, que trouxe aquela prosperidade, decantada no final do
reconstruíram, de forma monumental, as suas casas religiosas. Os religiosos representavam, com
século XVI, para a Capitania de Duarte Coelho, e que despertou a cobiça dos estrangeiros.
tais reconstruções, a vontade nativa dos senhores de engenho que desejavam aquele esplendor da
antiga Olinda, que tanto significava para eles que não eram mascares, comerciantes, de origem
O sistema defensivo duvidosa. Os senhores de engenhos, que beneficiavam os religiosos, eram ainda descendentes da
grande família dos primeiros povoadores. 171 Oé bem representativo de tal situação.
O referido mapa de Golyath nos revela, em 1630-1654, o sistema defensivo de Olinda. O mercantilismo presente no Recife e a racionalidade daquela nova relação, à luz do
Duas pequenas fortificações, uma abaixo da cerca do convento dos franciscanos, e a outra, novo mundo do século XVII e J,,,'VIII, venceram afinal. Olinda tem seu futuro traçado diante
a Guarita de João Albuquerque, ao pé do montinho junto ao Varadouro. De uma a outra do crescimento da importância do Recife.
uma cerca fortificada, em madeira, uma paliçada. Não é a vila cercada em toda a sua O centro histórico (atual), nesse meados do século XIX, ainda se encontrava envolvido
periferia, talvez por conta da ausência de perigos vindo desde os engenhos que a circunda- por propriedades rurais, as maiores, os engenhos, na maioria de fogo morto, os da várzea
vam. A simplicidade do sistema é decorrente da própria situação da vila protegida desde o do Beberibe, e as menores, os sítios, nas margens do rio Beberibe e do mar.
mar por arrecifes. É interessante observar que a reconstrução de Olinda, depois de 1654, privilegiou as
partes mais baixas, servidas por fontes, e o alto da Sé foi secundarizado, a ponto de a
Câmara ter se mudado para a Ribeira, tendo entregue sua antiga sede ao Bispo, depois de
344 1676. O Alto da Sé não será mais reconstruído com aquele esplendor de antes de 1630. 345
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Mapa da terceira década do século XIX, de responsabilidade do engenheiro Conrado A expansão das moradias para as praias e ao longo do rio Beberibe
Niemeyer, onde se representam as duas cidades do Recife e de Olinda, nos permite a
identificação dos caminhos que de Olinda se dirigiam para o Recife e para Goiana. Por ocasião da moda pelos banhos de mar, em Olinda, se vai logo ocupar uma área,
O primeiro deles, o que seguia até Goiana, é ainda aquele que, partindo do extremo antes sempre vazia, as das praias desde o Fortim de São Francisco, ao pé da cerca do
oeste da cidade, na altura do Guadalupe, seguia até o Forno da Cal, de lá para o Porto da convento, até a Igrejinha dos Milagres, construída, pelo que se sabe, por sobre os restos da

Madeira e deste para Beberibe. Da povoação do Beberibe se tomava a direção de Goiana. Guarita de João Albuquerque. É uma ocupação que orgulha os olindenses, pois com cons-
truções modernas, onde se destacam cinco chalés, todos de propriedade de uma mesma
Este caminho recebeu o nom~, de Estrada de Goiana. Ele direcionou toda a ocupação,
família e que receberam o batismo com nomes femininos. Tais construções e outras estão as
desde o primeiro século, Jas diargens do rio Beberibe, onde se situaram vários sítios já
margens do mar e por detrás delas passa o trem urbano, que tem seu terminal no Carmo, em
referidos. O segundo caminho toma a direção do salgado desde Bonsucesso, e é uma
uma grande estação e oficinas. Com o bonde elétrico o terminal seguirá até O Farol, dando
estrada que parte do Largo do Amparo e permite o acesso às Igrejas do Rosário e de Nossa
lugar a um caminho, hoje Rua do Sol, que de foturo definirá o desenho dos loteamentos que
Senhora do Monte. Ele será chamado de Estrada Velha do Rio Doce e definirá as ocupa-
se farão daqueles sítios localizados ao longo das praias do Norte até o Rio Doce.
ções ao longo das praias. Um terceiro caminho, a Estrada de Luiz do Rego, é obra desse
É esse gosto pelos banhos de mar, associado ao interesse de morar em Olinda, que
governador e teve início na segunda década do século XIX. Esta estrada acrescentou uma
gera a implantação dos primeiros parcelamentos urbanos além do Farol. Antes, no entan-
última ligação de Olinda com o Recife. O interessante é que ela já tem por partida o Recife
to, se parcelam duas propriedades, em 1933 e 1940, respectivamente o Sítio Salgadinho,
e fim Olinda, de forma diferente daqueles caminhos antigos, que vinham de Olinda para o
requerido o loteamento pelo Sr. Severino Pereira de Oliveira e Umuarama, de responsabi-
Recife. Tal situação demonstra a importância do Recife em relação a Olinda naquele início lidade de Diniz Prado A. Neto.
de século XIX.
Os grandes parcelamentos, então definidores de toda uma ocupação que prosseguirá
de futuro em direção a Casa Caiada, são os dos Sítios São José, Rio Tapado e São José do
Rio Tapado, de 1947, 1949 e 1947, parecendo uma mesma propriedade desmembrada.
O primeiro sítio pertenceu a José Nunes de Queiroz, o segundo a João Pereira de França e
O novo florescer o último a Clóvis de Barros Lima. Tais parcelamentos, que não foram ocupados integral-
mente senão de forma muito lenta, constituem o atual Bairro Novo. Esses loteamentos,
Sendo Olinda lugar de moradias e onde estava instalada, desde 1827, a Academia de nos seus desenhos, com ruas paralelas ao mar e ortogonais, determinarão a forma de todos
Direito, ela adquire certa importância com relação ao lugar de trabalho, o Recife. Mas, é o os demais parcelamentos que prosseguirão, em tempos diferentes, ao longo das praias e
interesse pelos salutares banhos de mar, recomendados pelos médicos, que lhe dá nova vida. relacionados com antigos e já referidos sítios. Em estudo já concluído e do arquiteto José
Nova vida que é bem representada pelo interesse de uma ligação mais rápida, através de um Luiz Mota Menezes se pode acompanhar toda essa ocupação das praias de Olinda, onde os
trem urbano, com o Recife, e esta se fez desde a Encruzilhada, por antigo caminho, que parcelamentos se encontram definidos com seus respectivos proprietários 16 • A pesquisa
existia desde o século XVI. De princípio, os veranistas usavam casas de terceiros, alugadas para teve o apoio, quanto ao seu processamento digital, da Prefeitura de Olinda através do
as temporadas de verão, depois, são adquiridos imóveis e se torna um hábito então morar na Projeto Foral. É interessante como se percebe um maior incremento de projetos de
cidade, mesmo fora da temporada de veraneio. É o renascimento da cidade. Sente-se essa parcelamentos, que se dá na proporção em que escasseiam as moradias no Recife, e aquele
transformação naquelas casas próximas ao mar, onde elas se revestem com roupas ecléticas, e, interesse pelo lugar, como decorrência dos banhos de mar, perde toda a sua importância.
com as reformas das fachadas, são modernizadas. O que se restringia às áreas próximas às Em Olinda, nos novos parcelamentos, das décadas de cinqüenta e sessenta, quais aqueles
praias vai depois caminhar para as outras ruas da cidade. Uma transformação urbana que dá
novo alento ao velho burgo. A água potável levada as casas pela Companhia de Santa Teresa
" O estudo da expansão urbana de Olinda compreende 16 mapas com as indicações de diversos momen-
e a eletrificação denotam a importância que readquire a cidade. Logo o trem urbano é subs- tos da His;ória Urbana de Olin_da. Seis dos mapas dão roda a expansão, com os parcelamentos dos antigos sítios,
tituído pelos bondes elétricos, nos inícios do século XX. desde O nucleo m:11s anngo, hoJe tombado pelo governo federal, em direção ao mar e ao rio, em períodos de dez
anos, aprox1mada111en_te. Os mapas se encontram quase todos digitalizados e se empregou para tal tarefa um
software, o Micro Station. Os textos e as anotações estão parcialmente concluídos. A informatização dos resulta-
dos dos estudos do arquiteto José Luiz Mota Menezes tem sido de responsabilidade da Prefeitura de Olinda,
346 Projeto Foral, e está sendo realizada pelo Departamento de Cartografia da Universidade Federal de Pernamb,ico. 347
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do Jardim Rio Doce, Jardim Atlântico e outros menores que pontilham as praias, se vai cidade. Considerando o núcleo histórico, de princípio poderíamos relacionar os sobrados
morar. Com os planos habitacionais da COHAB vem ser ocupada a grande propriedade mais antigos e que ainda recuam aos seus primeiros dias, como, por exemplo, o do Pátio de
do Sr. Edgar Lins Cavalcanti. Um loteamento, que se fez em várias etapas, foi o da Proprie- São Pedro, hoje um restaurante, e o da Rua do Amparo, 28, ambos com seus muxarabiés,
dade Fragoso, começando-se em 1961 e se concluindo em 1982. quase intactos. Depois, inúmeros exemplares que, apesar de terem sido reformados nos sé-
Os parcelamentos do lado do mar constituem hoje uma grande parcela do município culos XIX e XX, ainda mantêm suas proporções «ao quadrado» do século XVJI, inclusive suas
de Olinda e estão voltados para o uso principal como moradias. As ocupações nem sempre vergas retas em cantaria. Conjuntos inteiros e uniformes, que recuam aos séculos XVJII e XIX,
seguiram os lotes previstos, tendo existido invasões e cena desorganização em algumas áreas. povoam as ruas do Amparo, 13 de Maio, São Bento e outras. Chalés, de um gosto dominan-
Outra direção seguiu,.a ocupação e uso do solo além daquela que ora vimos. Os te nos últimos anos do século passado, ainda se encontram perfeitos e com suas característi-
loteamentos que vão se projetar nas propriedades que se situavam às margens ou próximas cas bem marcantes. Uma grande quantidade de moradias, ostentando a linguagem eclética,
ao rio Beberibe, terão por eixo diretriz para a expansão urbana o sentido das Estradas de em boa parte formam conjuntos admiráveis. Finalmente, exemplares de gosto prato-moder-
Goiana e de São Benedito, esta última seguindo do Varadouro até Peixinhos. no estão ainda de pé na Rua Sigismundo Gonçalves. Todos dão à cidade uma nota singular
Em 1948, a Fundação da Casa Popular, realiza uma primeira experiência na Estrada de e que determinou a sua escolha como Património Mundial da Humanidade.
São Benedito. Depois, na mesma década de 40-50, alguns parcelamentos surgiram, peque- Por ter crescido em direção às praias e ao longo do rio Beberibe depois de 1940, Olinda
nos, nas proximidades do Sítio de Tomás Comber, e um grande loteamento, o do Sítio guarda ainda exemplares de uma arquitetura de moradias, que tem sua história para ser
Conquista, ocorreu no fim da década. contada, representada pelos conjuntos das vilas populares, com sua linguagem muito varia-
Um episódio deve ser lembrado de momento, a Fosforita. Constituindo o renascer da. O Bairro Novo representa a modernidade e edifícios de apartamento trazem a história da
de uma esperança, ela começa a produzir em 1957 e em 1960 encerra o sonho. Com o cidade para o século XX.
fechamento da empresa, as suas terras são aproveitadas para parcelamentos habitacionais Por outro lado, as construções para fins religiosos constituem no que de melhor se
que vão se somar a outros que surgiram desde aquele da Vila Popular, ao longo da Velha pode oferecer em termos de qualidade artística. As casas das ordens religiosas guardam as
Estrada de São Benedito. Esta será abandonada em parte do seu traçado original e infletirá características que as notabilizam e ajudam a entender cada maneira de construir, quando
noutra direção, segundo o desenho dos referidos parcelamentos. se trata de franciscanos, carmelitas ou jesuítas. As igrejas paroquiais revelam a importância
Tal expansão, já estudada, como se disse quando nos referimos ao lado do mar, revela toda que representou a religião para um grande número de fiéis, que ajudaram a construir cada
uma estratégia de ocupação montada em desenhos que se encontram correlacionados e que uma delas.
foram definidos segundo a forma tradicional com lotes situados em ruas paralelas e ortogonais. Em termos, podemos considerar que dois momentos são importantes para as cons-
Agora, são os sítios da várzea do Beberibe, o alvo dos responsáveis pelos parcelamentos. truções consideradas, aquele anterior ao incêndio de 1631, e um outro quando as edificações
Como vimos, a expansão urbana se deu em duas direções, sendo pioneira aquela do foram ampliadas e enriquecidas no auge do Barroco. Algumas delas, como, por exemplo,
lado do mar e que depois, com os planos habitacionais, veio a ser continuada na direção do a casa dos jesuítas, o Colégio e Igreja de Nossa Senhora da Graça, preservam partes desses
rio Beberibe. dois momentos e constituem o que de mais antigo se tem no Brasil.
O que se lamenta com tais ocupações é a diminuição acentuada da área verde do Ao ser alvo do Programa de Restauração das Cidades Históricas, Olinda teve integral-
município, a reserva que se constitui em um bem natural. Ao lado dos parcelamentos mente restaurados três de seus melhores monumentos, a Sé do Salvador do Mundo, a Igreja
organizados vem se dar também uma grande ocupação irregular e sem nenhuma diretriz e de Nossa Senhora da Graça e o Antigo Palácio dos Bispos. O Serviço Federal do Património
que hoje constituem áreas completamente desassistidas por qualquer benefício de drena- e a Fundação do Património Histórico e Artístico de Pernambuco, Fundarpe, estadual, mui-
gem ou saneamento básico. to tem realizado, no que respeita a restauração dos monumentos do Centro Histórico.
A Cidade tem um Conselho de Preservação dos Sítios Históricos, que, pioneiramente, no
Brasil, estuda, legisla e fiscaliza as obras realizadas na área antiga da cidade.

As moradias e casas religiosas

Olinda, em seu Centro Histórico e na área de expansão, preserva inúmeros exempla-


348 res de arquitetura que contemplam todo um grande período representativo da história da 349
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Olinda, 1630. Expansão urbana.

Olinda. Expansão urbana. foral - Identificação dos lugares.

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350 Olinda, 1914. Expansão urbana. Olinda, 1630-1631. Expansão urbana. 351
UM TRATADO PORTUGUÊS DEARQUITECTURA
DO SÉCULO XVI*
(1576-1579)

RAFAEL MOREIRA
Departamento de História da Arte
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa

* Este texto corresponde à primeira parte de uma dissertação de Mestrado em História de Arte apresentada
em 1982 à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com o mesmo título,
perante um júri constituído pelos Profs. José Augusto França, J. E. Horta Correia e Flávio Gonçalves.
A mon avis, toute composition historique est
im travttil d'art ttutant que d'erudition.

(Aug. Thierry, 1827)

(( Se há um aspecto da nossa cultura que se caracteriza pelo completo desconhecimen-


to que dele temos, é sem dúvida o da teoria artística; aspecto duma importância funda-
mental para o estudo da arte de qualquer época, ela tem sido votada pelos estudiosos
portugueses à mera inexistência.» 1 Escritas há perto de 20 anos, estas palavras não perde-
ram a actualidade. Salvo ilustres excepções, a história da arte e a história da cultura conti-
nuam a fazer-se, em Portugal, de costas voltadas uma para a outra.
O projecto desta dissertação nasceu daí; da falta, há muito sentida, duma dimensão no
estudo da arte portuguesa (em particular da arquitectura quinhentista, que mais temos estu-
dado): o conhecimento da cultura viva dos seus artistas, a ir buscar nos próprios testemunhos
escritos, entendidos não pelo que de literal nos transmitem mas enquanto sinais de mentali-
dade e sensibilidade. Entre eles, os textos de carácter teórico ocupam, naturalmente, lugar
privilegiado.
Escolheu-se para o caso um manuscrito quinhentista sobre temas de arquitectura que
fomos encontrar, praticamente por desfolhar, na Biblioteca Nacional de Lisboa (como
notou E. Asensio, é nas bibliotecas que se fazem as maiores descobertas ... ). Contra todas as
aparências em contrário, o seu conteúdo revelou-se verdadeiramente excepcional: nada
menos que um tratado, o primeiro tratado português até agora conhecido, da autoria de
arquitecto de profissão, o que lhe confere indiscutível peso no nosso século XVI e em nossa
escassa literatura artística. Restituir-lhe esse estatuto, que os acidentes da história encobri-
ram, é o objectivo que nos propomos.
Para tanto, sacrificou-se o prazer de teorizar depressa - na certeza de que um do-
cumento/monumento não se esgota nas suas múltiplas leituras, sempre renováveis, e que,
segundo o texto que estudamos, pera hú omem entender isto ha mester largo tempo ... - ao
desejo de fazer trabalho útil, fornecendo um texto clarificado, o mais inteligível e perfeita-

1
]. G. Stichini Vilela, «Francisco de Holanda. Uma leitura», tese de licenciatura em Filosofia (inédita),

Fac. Letras de Lisboa, 1964, p. 64. 355


UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS UM TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA

mente identificado que nos foi possível. Procuramos, por isso, orientar o nosso comentá- PRIMEIRA p ARTE
rio no sentido de dar resposta cabal a um esquema de perguntas básicas, centradas sobre o ESTUDO
quê, o quando, o quem e o como (que constituem os nossos diferentes capítulos), sem as
quais não será possível caminhar com segurança para o terreno das interpretações. Nesse
apagar do crítico perante o texto - de que aspiramos a uma «leitura» tão presa aos factos 1. O manuscrito
que possa quase parecer supérflua - mais não fizemos, aliás, que dar declaraç:ão pola me-
lhor via e maneira que poder ser de cada couza per sy e hem seu lugar, conforme o modelo de O texto de que nos vamos ocupar consta de um pequeno volume manuscrito de
racionalidade académiqa dtS autor estudado. 66 folhas (BNL, cota: Cod. 3675), anónimo, sem data nem título, truncado no início e no
Em tal estratégia, como a que seguimos, a construção dos «factos» assume só por si fim. A ficha respectiva do catálogo dos «Reservados)) (datável da última década do sécu-
valor teórico, já que surge como mediadora entre os dados empíricos, matérias-primas do lo XIX, em que ele ingressou nessa secção) não contém senão um título postiço - Ti-atado
trabalho histórico e a hipótese que os selecciona e confere sentido, num contínuo vai-e- de Architectura - e uma data genérica, «letra do século 16. 0 »; mas dá-nos, em contrapartida,
-vem que é a própria essência do método. Não fugimos, por conseguinte, a utilizar a a preciosa indicação da sua procedência: «Mello», isto é, a biblioteca de D. Francisco de
metodologia tradicional da «crítica das fontes», suficientemente testada pela historiografia Melo, incorporada no século passado à Biblioteca Pública. Será, pois, pela averiguação
para a podermos deixar de lado. Mas procuramos afiná-la onde possível pelo recurso às exacta dessa proveniência que abriremos as primeiras vias à abordagem de tão pouco atraente
últimas aquisições da ciência histórica relevantes: o metodológico-dedutivo de confirma- manuscrito.
ção das hipóteses por suas implicações (K. Popper); a análise codicológica, na perspectiva D. Francisco de Melo Manuel, «o Cabrinha» (pelo seu sangue indiano), homem de
duma estética do livro manuscrito; a análise paleográfica através dos índices de variabilida- gosto e senhor de avultada fortuna, engrossada no Brasil como governador do estado do
de (infelizmente calculados por amostragem empírica, à falta de meios mais sofisticados); Maranhão (1806-1809), reuniu «uma das mais notáveis livrarias particulares que ainda hou-
a semântica histórica; a teoria sociológica. ve em Portugal» 1• Adquirida pelo Estado português à sua morte em 1852, «pela quantia de
Embora tenhamos, pois, procurado não sair do factual (não sem dificuldades às ve- dez contos e o título de Conde da Silva», contava entre as suas espécies dezenas de incunábulos
zes), tanto por segurança de método como por limitação do espaço, pensamos contudo de grande raridade, uns 20 iluminados franceses e flamengos, e exemplares únicos, como a
que importantes pistas para ulterior pesquisa ficaram em aberto. Ampliá-las e aprofundá- «Gramática Portuguesa» do P.' Fernão de Oliveira, a «Crónica do Condestabre», e o «Memorial
-las, seria evidentemente tarefa para um inquérito de índole diversa, que reservamos para de Pero Roiz Soares». Camilo Castelo Branco, que se ocupou desta biblioteca famosa no seu
outra ocasião. Problemas como o das fontes do autor e cultura da época, a estrutura do tempo2 , concluiu que ela tivera início na livraria organizada em começos do século XVIII por
tratado e sua ideologia, o papel da centralização da encomenda na produção artística e o um bisavô do «Cabrinha,,, um D. Francisco Manuel de Melo (fal. 1719), alcaide-mor de
conceito de «proporção», como chave da arquitectura tardo-quinhentista, foram aqui ape- Lamego e dono de diversas comendas, reguengos e morgadios na região de Viseu. Dados os
nas esboçados. Concluímos a nossa investigação - de que estas páginas constituem como seus interesses militares3, é provável que o manuscrito proviesse deste núcleo originário.
que um relatório preliminar - com a profunda convicção de que o estudo do tratado da O gosto dos seus sucessores, sobretudo do ilustre bibliófilo oitocentista (o qual, segundo
Biblioteca Nacional não fez senão dar os seus primeiros passos. Esse o nosso objectivo. Raul Proença, quadruplicou a herança havida), voltou-se preferencialmente para os cimélios,
Considerá-lo-emos cumprido se tivermos levado o leitor a partilhar do interesse que nos portugueses e estrangeiros: quando da compra, eram 14 882 os volumes impressos e apenas
moveu. 533 os manuscritos!
O presente trabalho seria, com certeza, muito diferente se não tivesse beneficiado das O «Catálogo da livraria comprada aos Herdeiros de D. Francisco Manuel de Mello,
sugestões e conversas com que quiseram auxiliar o seu autor os senhores almirante A. Tei- 1852» 4 enumera-os, em mais de mil páginas preenchidas pelos títulos de impressos, e um
xeira da Mota, Profa. J. Borges de Macedo e E. Borges Nunes (da Faculdade de Letras de caderno adicional de 58 páginas para os manuscritos: entre os quais não é difícil reconhe-
Lisboa), Doutora Marie-Therese Mandroux-França, Dr. Luís Fernando Carvalho Dias cer, sob a designação humilde de «Objectos de Geometria ou Engenharia - mss. dos
(da Biblioteca Nacional), e o colega e amigo Dr. José Eduardo Horta Correia. Uma palavra
final de gratidão para o Prof. Doutor Artur N. Gusmão, que acedeu prontamente a encar- 1 Raul Proença, «A livraria de D. Francisco Manuel», Anais das Bibliotecas e Arquivos, I, 4 (1929),
regar-se da direcção desta tese, após o falecimento do saudoso Prof. Ricardo Averini: pp. 302-306.
2
História e Sentimentalismo, II, 1880.
a procura de equilíbrio entre a disciplina de um e a imaginação de outro foi um dos nossos 3 Sobre ele, ver A. Caetano de Sousa, História Genealógica dü Casa Real, IX, p. 123.

356 melhores estímulos. 4 Ms. sem cora, acrualmente guardado na Secretaria da BNL. 357
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finaes do 16. 0 Seculo em foi.», o nosso códice, o que mostra que o seu verdadeiro conteú- dernadas em pergaminho liso, de não muito boa qualidade (dimensões actuais:
do passara desapercebido ao úlcimo proprietário, e mais nos convence de que foi o fidalgo 29 x 22 cm). As folhas foram aparadas pelo encadernador depois de escritas, provocando
lamecense fundador da livraria quem primeiro o possuiu. Quer este o tivesse comprado, algumas desigualdades, e um ou outro corte no texto (mas sem impedir a leitura); e a capa
quer o recebesse de seus antepassados, alcaides-mores de Lamego desde D. João III, ou o recebeu forros e guardas novos no século passado. A autenticidade do conjunto não levan-
obtivesse de uma tia Condessa de Penalva (fal. 1681), que o instituíra por herdeiro', a ta, pois, qualquer espécie de problema.
busca da origem do manuscrito conduz-nos sempre a algures na Beira Alta. É importante O aspecto gráfico do interior surpreende pela elegância. O texto distribui-se regular-
esclarecer este ponto, que faz recuar para finais do século XVII a história traçável da obra mente, oscilando entre as 25 e 30 linhas/página. A esquadria feita a ponta-seca, definindo
entrada em 1852 na BWL. uma mancha proporcionada (3:4, sendo 3:5 dentro do espaço da página); o módulo bem
Pois bem, a página final do códice traz uma interessante lista de livros, em letra equilibrado das letras; a largura constante das margens; a disposição dos títulos de capítu-
posterior (ao redor de 1600), onde se lêem os nomes de dois amigos do proprietário, a los sobre o eixo da mancha escrita, revelam não apenas mestria técnica de factura, mas
quem este emprestara livros, ambos possíveis de identificar: Simão de Atouguia, comendador uma superior preocupação visual que quase podíamos chamar estética. São traços reveladores
de S. Pedro do Sul (bispado de Viseu), pelo menos de 1582 a 1594; e o licenciado Belchior de hábitos profissionais de composição escrita, que incluíam, mesmo, a utilização de ins-
Pais, desde 1568 ouvidor das terras do Conde de Linhares na comarca da Beira (capital, trumentos apropriados, como os moldes usados nos «scriptoria» medievais 8 para a obten-
Viseu) ... 6 Se não se trata de uma coincidência, parece lícito concluirmos - e a esta con- ção de tais resultados.
clusão voltaremos ainda - que o códice que iremos estudar encontrava-se em finais do Mas um manuscrito com a extensão deste não podia, também, deixar de apresentar
século XVI nas mãos de alguém que residia na zona de Viseu; que no decurso do século inconsistências de factura. Mesmo nas partes copiadas por uma só mão, era de surpreender
seguinte foi ter à livraria dos alcaides-mores de Lamego; e que passou, por sucessão, à que elas não existissem: qualquer escriba fatiga-se com o tempo, tem de parar periodica-
biblioteca Melo, donde acabou por aportar aos fundos nacionais. mente para descansar, renovar a tinta e substituir a pena, ou interromper o trabalho para
O manuscrito não acusa, de facto, as peripécias de uma existência muito cheia. O seu retomá-lo num outro dia; e com isto vão-se naturalmente produzindo imperceptíveis alte-
estado de conservação é bom, se exceptuarmos as roeduras de traça que indicam, precisa- rações no texto, modificações na dimensão das letras, na composição dos materiais de
mente, longos períodos de repouso. Não apresenta as consequências habituais do manu- escrita, no apuro caligráfico. De algumas dessas vicissitudes normais do processo de fabri-
seio, como desgaste dos bordos, páginas rasgadas ou cantos sujos; nem sequer mostra co são indício as assinaturas das páginas, como o «4» visível na cabeça do fólio 7, marcando
sinais de utilização ou leitura, como sublinhados, desenhos marginais e anotações. Na o início do 4. 0 bifólio, e a rubrica Sig. mº escrita transversalmente na margem externa do
verdade, com a excepção da página final que referimos e de algum traço visível sobre a capa fólio 17v, indicando, talvez, um «sinal (de) meio» ao encadernador para colocá-lo ao meio
(legenda «Dominus tecum», contas, rabiscos e exercícios de pena, de um grafismo barro- do caderno, onde de facto está.
co), nada há nele que se possa atribuir a época posterior à de sua conclusão, e que inculque Outro elemento imprescindível em qualquer estudo deste género é a análise dessa
algum interesse da posteridade pelo seu conteúdo. A impressão que se colhe é a de que o matéria-prima do livro, o papel 9 • A qualidade das informações prestadas sobre a data e a
códice dormiu esquecido durante quatro séculos: e talvez aqui resida a explicação para o natureza da obra compensam largamente o tempo que com ela perdermos.
frustrante silêncio que sobre ele guardam os reportórios bibliográficos seis e setecentistas7. O códice está escrito sobre folhas da mesma origem, provenientes decerto de um
Examinemo-lo, tal como hoje se nos apresenta. A análise material revelar-se-á rica em mesmo lote: basta observar à transparência o espaçamento uniforme das raias, como se
ensinamentos inesperados. Externamente, o volume não difere de qualquer «livro de mão» saídas da mesma forma de papeleiro. As marcas de água são também constantes, do tipo
da época: um delgado códice cartáceo de formato in-quarto - isto é, com as vergaturas na «em cacho de uva» acompanhado de iniciais maiúsculas 10 • No caso presente, aparecem as
vertical e os pontusais na horizontal-, com 132 páginas escritas em diversas letras, enca- letras «AF» em 14 fólios e «IM» em 20, dispostas em cima do cacho, uma de cada lado do
pedúnculo. A variedade AF do inventário de âmbito europeu de Briquet é absolutamente
5 Sanches de Baena, Resenha das famílias titulares... , Il, p. 618, e A. Braamcamp Freire, Bmsões da Sala de
Sintra, !, pp. 474 e 535.
6
Simão de Atouguia: ANTT, Chanc. D. Sebastião - Doações, Liv. 45, fl. 380v; Ordem de Cristo, Liv. 8,
8 Cfr. Léon Gilissen, Prolégomenes à la Codicologie, Gand, 1977.
fl. 266, e Liv. 10, fl. 283. Belchior Pais: Chm,c. D. Sebastião - Doações, Liv. 24, fl. 82v.
9
7 João Soares de Brito, Theatrum lusitaniae litterarium (1635; ms. no ANTT); João Franco Barreto, Um recente balanço em Les léchniques de Laboratoire dans !'étttde des manuscrits, CNRS, Paris, 1974.
Bibliotheca Lusitana (1666; ms. ANTT); Diogo Barbosa Machado, Bibliotecrl Lusitana (1741). Foram infrutífe- '"Vera clássica obra de C. M. Briquet, Les Filigranes, 4 vols., Leipzig, 1923 (2." ed.): tipo «grappe de
ras rodas as tentativas para encontrar qualquer referência ao códice nestas, e noutras, bibliografias portuguesas de raisin», subtipo «grappe de raisin accompagné de lettrcs initiales». (As diferenças de letras e suas posições pode-
358 obras 1nanuscritas. riam indicar, segundo ele, oficinas ou anos de fabrico.) 359
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idêntica a nosssa 11 , tendo sido por ele localizada em documentos do Sueste da França da 2.ª me- cês, em vez dos italianos tradicionalmente preferidos), que, pelo seu largo formato, fabrico
tade do século xvr: Lyon, 1558-1563; Bourg-en-Bresse, 1568; Narbonne, 1575; e Autun, robusto e consistência absorvente, como a do pergaminho, tomou-se em meados da década
1580. Os exemplos de IM, de menores dimensões e com as letras colocadas em baixo 12 , de 70 um material favorito nas oficinas de tracistas das duas cortes peninsulares. Luís Cervera
surgem na mesma área, mas um pouco mais tarde: Lyon, 1582 e 1590; Dôle, 1583; Toulouse, Vera pensa mesmo que seria esse o «papel de marca maior» que Herrera guardava em sua casa
1588; e Bayonne, 1597. Por analogia com casos semelhantes, o tipo de formato maior e com para desenhos e estampas, do qual foram encontradas 800 folhas à sua morte 16 • E assim é que
as letras acima, como o nosso, será umas duas décadas anterior. Estas observações conduzem- o nosso modestíssimo manuscrito da BNL vê-se guindado, devido ao carácter excepcional da
-nos ao mesmo resultado: po códice foi redigido tendo por suporte um papel de origem sua matéria-prima, à companhia das melhores obras gráficas, de desenhadores e arquitectos,
francesa, fabricado em tyon', o maior centro papeleiro e impressor da França, por volta de do seu tempo ...
1560, data a partir da qual ele começa a aparecer em diversos lugares do Sul desse país.
J. V Pina Martins, que tem estudado na perspectiva do comercio livreiro as marcas
de água de livros quinhentistas portugueses, assevera que foi sob D. Sebastião que mais se
fez sentir em Portugal a falta de papel, recorrendo-se então à sua importação não apenas da 2. A natureza do códice
Itália como da França 13• Tendo em conta que, segundo Briquet, o prazo médio de utiliza-
ção do papel durante o século xvr foi de 15 anos, tudo concorda assim em situar no auge Quem primeiro chamou a atenção publicamente para este códice 17 (tem termos que
desse reinado (1560 + 15 = 1575) a feitura do manuscrito que trazemos em estudo. não afastaram a sua má sina) considerou-o um simples «esboço de tratado», negando-lhe
Embora ainda muito reste a fazer neste campo entre nós, é possível assinalar alguns até qualquer unidade:
termos de comparação que nos permitam ajuizar do uso do material cartáceo como sinal «II comprend une premiere parti e traitant de la perspective, composée dans une écriture
de cultura. A recolha de Ataíde e Melo 14 refere uma marca de água algo parecida à nossa de L'époque de D. João III, suivie d'une partie concernant les fortifications, illustrée de
num livro da chancelaria de D. Sebastião, com data de 1562-1563. Uma prospecção mais dessins aquarellés de plans de forte resses, de date postérieure, sans doute du XVIP siecle»
feliz revelou-me que a mesma modalidade de papel era usada nos ateliers de desenho por- (sublinhados meus).
tugueses e espanhóis do tempo do «Desejado» e de Filipe II. Quase metade dos planos para No limiar deste nosso inquérito deparamos, assim, com um problema de vulto: o de
o mosteiro do Escorial que se conservam na biblioteca do Palácio Real de Madrid estão apurar se estaremos em face de um manuscrito compósito, por conseguinte falho de senti-
executados em folhas com filigrana de cacho de uvas; e, destes, são da mão do próprio Juan do, se de uma verdadeira obra analisável enquanto tal. É certo que não escasseiam nos
de Herrera, datados por M. López Serrano «de 1573 ou pouco posteriores», os que apre- arquivos os códices chamados «factícios», isto é, que possuem uma unidade apenas física,
sentam precisamente as iniciais AF e IM 15 • O tipo AF reaparece, alguns anos mais tarde 1 reunindo sob a mesma capa materiais heterogéneos; tal como não são raros os manuscritos
(c. 1587), no projecto para a Cartuxa de Évora executado em Portugal por Francisco de reaproveitados em épocas posteriores. Será esse o caso do códice da BNL? ... Na resposta
Mora, arquitecto régio sucessor de Herrera; e é a única ocorrência entre os quase 200 de- joga-se o valor a atribuir ao texto que tomamos por objecto de estudo.
senhos que constituem o «album» do P." Giovanni Vincenzo Casale, onde ele se encontra. Desde o primeiro contacto foi nossa convicção quase intuitiva ser o códice todo de
Por fim, fui deparar com a mesma marca de água na parte final e nas folhas da encaderna- 1 uma mesma época e portador de uma mensagem coerente. Para prová-lo, examinemos a
ção do livro de desenhos de Francisco de Holanda De Aetatibus Mundi Imagines (finaliza- ií única evidência factual em que se baseia a opinião contrária: a diferenca de letras em que 0
do entre 1573 e 1578), obra áulica por ele dedicada à Rainha D. Catarina. manuscrito está redigido. É esse o ponto nodal da questão; e será, por conseguinte, através
Estes factos não carecem de significado. Eles mostram tratar-se de um tipo novo de 1 da análise paleográfica sistemática que poderá obter-se o esclarecimento dela.
papel, decerto caro e da melhor qualidade (o que justificaria a escolha de um produto fran- i Como se verifica a um simples relance de olhos, o códice é uma peça indiscutivel-
mente diversa na sua feição escrita. É nítida a divisão entre dois géneros de letras, um
arcaizante, ligado às escritas góticas, de raiz medieval, e outro em perfeita humanística
11
Ob. cit.: n. 0 13 160. 1 moderna. Mas estes eram «sistemas gerais» da escrita da época, estilos gráficos que se com-
12
Ob. cit.: n.o 13 196.
13
J. V. Pina Martins, Ti-tztttdo de Confissom: leitura diplomdtica e estudo bibliográfico, Lisboa, 1973;
pp. 41-42.
14 A. F. Araíde e Melo, O papel como elemento de identificação, Lisboa, 1926. 16
L. Cervera Vera, lnventdrio de los bienes de Juan de Herrera, Valcncia, 1977, p. 68.
15 17
Matilde López Serrano, Trazas de Juan de Herrera y sus seguidores pttm e! Monasterio de El Escorial, S. Deswarte, Les Enlurninures de la «Leitura Nova» 1504-1552, Centro Cultural Português, Paris, 1977,
360 I, Madrid, 1944. 1
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p. 193 e «Document. lconogr. Wr». 361
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UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS UM TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA

binavam, em maior ou menor grau de hibridismo, nas escritas concretas das pessoas, dife- Como é evidente, estes factos resistem a qualquer tentativa simplista de atribuir em
renciadas no tempo e no espaço: e o sectilo XVI caracteriza-se, precisamente, por essa si- bloco o primeiro tipo de letras ao século XVI e remeter o segundo para o XVI!. Pelo contrário,
multaneidade de práticas escriturárias e pelo emergir das letras individualizadas. será possível chegar-se a uma boa precisão cronológica mediante o seu estudo comparativo,
Assim sendo, diversidade não é sinónimo de heterogeneidade. A simbiose de caracte- com base em materiais todos eles da segunda metade do seCLilo XVI. Uma escrita semelhante
res gráficos opostos, a sobreposição num mesmo texto de diferentes tipos de letras, são à da 1.ª mão, exceptuando o traçado do «p», que é igual ao da 2.ª, aparece em 1575 e 1576
fenómenos normais no nosso ambiente paleográfico. Ouçamos alguns especialistas: «Seria (ver, a seguir, DOCUMENTÁRIO PALEOGRÁFICO, N. 0 I e VIII), sendo que a sua abreviatura «m"'s»
absurdo tentar uma classificação rigorosa das escritas do século XVI, individualistas ao ex- só aparece de forma idêntica entre 1566 e 1573. Mais facilmente datável é a terceira mão:
tremo, caóticas na co-utirlização de elementos góticos puros com elementos cortesão, pro- um «p» semelhante começa a surgir em 1561, é quase igual entre 1571 e 1582, e começa a
18
cessados, encadeados e humanistas)) ; ou: ,,A paleografia portuguesa de Quinhentos é diferir a partir de 1588-1590; a abreviatura «q» surge com densidade sobretudo no período
uma floresta de pujança, variedade e complexidade ímpares. A partir de meados do século 1572-76. Escritas globalmente parecidas com a sua documentam-se em 1572 e 1575 (N. 0 II
pululam variadíssimas formas de escritas intermédias, contaminadas de gótico e de e III), começando a afastar-se para um maior grafismo após 1580 (N. 0 IV-V). Sociologica-
humanístico em doses muito diversas ... »19 • mente, é interessante compará-la com a letra do lente de matemáticas da Universidade de
A esta luz- que altera substancialmente os dados do problema - o exame do nosso Coimbra André do Avelar (1546-1622), Enfim, um tipo de cursivo que faz lembrar a 4.ª
manuscrito revela-se extremamente frutuoso. O códice apresenta não duas, como à pri- mão aparece em documentos de l 571, 74 e 75 (N. 0 VI a VIII).
meira vista podia parecer, mas na realidade quatro mãos, bem identificáveis: Longe de admitir uma longa duração no tempo histórico, a paleografia reconduz o
«J.t1 mão»- Usa uma escrita de tipo gótico, na tradição da «letra cortesã» manuelina, códice a uma só época, coincidente com a sugerida pela análise do papel: uma data algures
e uma ortografia muito conservadora, mas não imune a influências humanísticas (forma dentro da década de 1570, mais precisamente em rorno dos seus meados. É aí que se
do «q» e «z», duplicação etimológica das consoantes). É a que preenche a maior parte do verificam as características tanto das duas letras mais modernas, como (o que talvez não
manuscrito: fls. 3 a 28v, e do meio do 30 ao 39. Atribuível a um oficial de chancelaria ou deixe de surpreender) das goticizantes.
escrivão público. A diversificação das escritas atingia então o auge, para vir a inflectir sob o domínio
«2. t1 mão» Do mesmo tipo da primeira, porém com diferenças pessoais muito dos Filipes. Como escreve o Prof. Oliveira Marques, «no reinado de D. Sebastião a letra da
marcadas: no traçado de algumas consoantes (d, h, g, p), no modo de grafar as terminações chancelaria revela uma fusão pouco harmoniosa de elementos humanistas com elementos
-isão e -isam, no uso abundante da pontuação, de influência clássica. Aparece fugazmente, góticos tradicionais» 20 ; e quem quer que possua alguma prática de leitura de documentos
do fl. 29 ao meio do 30. Por alguns tiques mostra ser também um profissional da pena, da época sabe como são frequentes as ocorrências de escritas diversas lado a lado num
talvez funcionário da chancelaria régia como o anterior. livro, numa página, num parágrafo até (cfr. N. 0 II e VIII).(Conhecem-se, mesmo, exercí-
«3. ª mão» - Escrita humanística cursiva, de tipo chamado «chanceleresco)) com le- cios de pena do tempo de D. Sebastião em que a mesma frase aparece repetida, pela mes-
tras características (p, q, A, R, d, st) e alguns modismos gráficos («para» em vez de «pera», ma mão, em diferentes letras.)
ditongo -ão no interior das palavras, ortografia mais correcta). Ocupa a folha inicial do É, pois, em pura sincronia que devemos ver as duas esferas paleográficas pelas quais se
códice (fls. 2-2v) e todas a partir da 39v. A letra e os latinismos («angolu», «circulu») distribui o códice e as quatro «mãos)) que nele detectamos, sinais de diferentes tradições
sugerem uma formação escolar, talvez de secretário ou estudante. Foi também o autor da escriturais (por diferença de idades, de educação, de meio socioprofissional) que a integração
maior parte dos desenhos. no mesmo contexto de cultura torna homogéneos.
«4." mão)) Encontra-se somente em notas e correcções dispersas ao longo de todo Se esta harmonia gráfica, junto com a uniformidade material que estabelecemos no
o códice: em entrelinhas (fls. 3, 11, l 1v, 13 e 16), nas margens (12 e 16v), títulos (18v, 19, capítulo anterior, não bastasse, as anotações da 4.• mão criam de uma ponta à outra do
20, 22, 24 e 27), acréscimos (25v) e legendas de figuras (25, 44, 59 e as plantas finais). manuscrito uma rede de referências entrecruzadas, que reforça a coesão das suas partes e a
É uma híbrida humanístico-gótica muito personalizada («t» e «e» arcaicos ao lado de «s», continuidade sem falhas do texto. A sua unidade fica, assim, inabalavelmente demonstra-
«r» e «q)) iguais aos nossos) e descuidada, variando com as posições da pena. Do teor dessas da; e não podem restar mais dúvidas de que o Cod. 3675 da BNL não é apenas um item
intervenções, deduz-se tratar-se do próprio punho do autor do Tratado. arquivístico, mas um «livro» no pleno sentido do termo, objecto cultural a ser encarado a
sério e analisado em toda a sua profundidade.
18 A. H. Oliveira Marques, «Paleografia», in Dicionário de História de Portugal, vol. III, p. 296.
362 19 E. Borges Nunes, Álbum de Paleografia Portuguesa, I, Lisboa, 1969, p. 12. 20
A. H. Oliveira Marques, ob. cit., p. 297. 363
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS UM TRATADO PORTUGUÊS DE ARQUITECTURA

É esse o significado que lhe atribuímos, e que constitui, por assim dizer, a aposta deste 3. Data
estudo. O facto de o códice estar inacabado em nada lhe retira importância: não só o «non
finito» era um valor bem maneirista, como a análise codicológica21 revela que os sucessivos No interior do Tratado deparamos com um só dado cronológico, que constitui o seu
escribas trabalharam sobre apontamentos soltos bastante completos, num grau de adianta- terminus post quem: a referência (em termos denotando distância no tempo) à libertação de
mento que já não era o do borrão ou esboço, mas o do pré-original, isto é, o estado do texto Mazagão, que não pode ser senão a do cerco sofrido por essa praça portuguesa em Abril e
22
que antecede imediatamente a versão definitiva. O que sucede é que essa obra em gestação Maio de 1562 • Para datá-lo com precisão temos, pois, de recorrer a outro género de
sofreu alterações de última qçira, do punho do autor, que levaram à supressão de algumas elementos; as alusões nominais a figuras contemporâneas - de que existem apenas duas,
folhas bifólio inicial tfls. -l-2v), parcialmente substituído por uma folha intrusa, não uma no início e outra no final, como se a prendê-lo pelas extremidades e esse real histórico
numerada, recopiada pelo 3. 0 escriba, e mais 11 fólios na parte final, de que só restam os em que ele se queria inserido.
canhotos presos à costura, sem que possamos fazer qualquer ideia do que conteriam e, por A primeira (fl. 4) diz respeito ao caudilho mouro que comandou o ataque àquela
fim, ao abandono do trabalho. As causas dessa interrupção restam hipotéticas; mas não nos fortaleza marroquina: «assim também Mazagão se livrou do poder de MOLLE AMETE
impedem de reconhecer a presença entre nós do mesmo impulso codificador, da mesma por ter dentro em si homens entendidos nestas artes». Estranha homenagem a um infiel,
«fome de tratados» que ia pela Europa do tempo, e que só os azares da história impediram de dando-lhe relevo verdadeiramente insólito: basta notar que os nomes desses «entendidos»
levar aqui ao seu termo natural: a publicação impressa. portugueses a quem se.deveu a vitória são calados (e o autor não podia deixar de os conhe-
Verdadeiro livro, o códice é, também, verdadeiro tratado, com a intencionalidade e a cer, pois que todas as crónicas da época os citam, como heróis nacionais: um deles era
estrutura que esse conceito implicava. Nao somos nós que lhe reivindicamos tal designa- Isidoro de Almeida), ao passo que é o líder inimigo que merece as honras da individuação.
ção, mas o próprio autor (cfr. fl. 25: «neste tratado ... , este tratado ... »); e assim o passare- Adiante tentaremos explicar este contra-senso.
mos a considerar daqui em diante. Na última página do texto (fl. 59v) surge a invocação a um fidalgo, colhido em
flagrante diálogo mestre-discípulo com o Autor. Os termos com que este O trata são de
Documentário paleográfico respeito (expresso no tratamento de senhoria e título do Dom) e consideração intelectual:
«Ainda que seja fora de propósito mostrarmos esta figura neste lugar, foi por uma dúvida
I - Braga, 18 de Agosto de 1576: carta do Arcebispo a uma abadessa. (Arquivo a qual foi dizer o Senhor DOM LOURENÇO DE ALMADA que declarássemos como
Distrital de Braga, Cartas, 17-30.) era tamanho o quadrado que se tirou das duas linhas ABC da superfície BCAD, e que se
II - Lisboa, 13 de Novembro de 1572: mandado do mordomo-mor da Rainha para desse a razão por que as duas linhas EBC davam uma linha proporcionada às mesmas duas
o tesoureiro pagar 5 mil réis de moradia. (ANTT, Corpo Cronol., II-248-72.) linhas. Para lhe mostrarmos a declaração desta proposição foi necessário declararmo-la por
III-Évora, 25 de Agosto de 1575: carta do Cardeal-Infante ao deão da Sé de Braga. números, como se vê pelo quadrado ... » (e segue a respectiva demonstração). Conhece-se
(Arq. Distr. Braga, Cartas, 51-31.) apenas um D. Lourenço de Almada no século xv1 23 : o filho primogénito de D. Antão,
IV - Lisboa, 7 de Setembro de 1582: carta de Filipe II para o provincial dos Agos- 5.º Conde de Almada e 7.° Conde de Avranches (na Normandia), da ilustríssima linha-
tinhos. (Idem, idem, 17-5.) gem dos Vaz de Almada - a única família não-reinante do mundo a contar com três
V - Lisboa, 15 de Julho de 1591: carta do Rei a D. Luís de Portugal. (ANTT, cavaleiros da Ordem da Jarreteira entre os seus membros 24 •
Corpo Cronol., I-112-88.) Partindo do princípio de que não era gratuitamente que tais alusões se faziam, procure-
VI- 12 de Março de 1571: carta de uma abadessa à Rainha. (ANTT, Corpo Cronol., mos apurar melhor quem eram essas duas pessoas, e quais as situações reais aí implícitas,
I-112-75.) com o objectivo de retirarmos ilações que possibilitem datar com rigor máximo o texto de
VII - Amares, 3 de Outubro de 157 4: registo de baptizado. (Arq. Distr. Braga, que nos ocupamos.
Amares, 1-14.)
VIII - Faro-Lisboa, 13 de Abril de 1575: despesas que a Rainha fez com as freiras de 22
Foi. 4: cfr. A. Dias Farinha, História de Mazagão durante o período filipino (Lisboa, 1970).
Faro. (ANTT, Corpo Cronol., I-32-26.) 23
Os nobiliários referem outro do mesmo nome, neto deste, mas que viveu nos primeiros anos do sécu-
lo XVII e morreu muito jovem (1605-27). Somente no século XVIII o nome se torna comum na família, não sendo
usado nos outros ramos dos Almadas.
24
21
Procedemos com o devido cuidado a essa análise, mas não nos pareceu útil incluí-la aqui, dada a sua Afonso de Dornelas, «Os Almadas na História de Portugal», Independência. Revista de Cultura Lusíada,
364 extensão e complexidade. Limitamo-nos a utilizar os seus resultados. II, 2 (Lisboa, 1951), pp. 75-100. 365
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São tempos dramáticos os que seguem, dando-nos a ver a decadência de uma das mais
A- D. Lourenço de Almadt1 importantes famílias do Portugal anterior. Em Janeiro de 1582, por não ter bes patrimoniaes
per que possa pagar o que deu de seu resgate, é autorizado a vender uma parte do morgadio para
Apesar de ser pai do herói da Restauração D. Antão de Almada, D. Lourenço pouca
pagar as dívidas contraídas. Nesse mesmo ano nascia o seu único filho, D. Antão (cuja sanha
atenção mereceu dos genealogistas: limitam-se a dizer que ele combateu em Alcácer Quibir,
patriótica de 1640 agora compreendemos ... ) e morria a jovem mulher, presumivelmente do
onde foi cativo, acrescentando alguns que, resgatado sob o domínio espanhol, viveu o resto
parto. E os problemas avolumam-se: em 1583 vende parte dos bens da mãe (que durante a
dos seus dias fora da corte 25 • Foi-me, no entanto, possível reunir um conjunto de dados
sua ausência já alienara o morgadio das Pedras Negras), em 1585 é a vez de vender a própria
inéditos que permitem acomBanhá-lo com minúcia nos altos e baixos da sua vida, recons-
tença recebida do Rei, até que chega ao aviltamento máximo de ocupar-se em ofícios mecâ-
tituindo uma romântica fi'gur~ de cavaleiro e estudioso de finais do nosso quinhentismo.
Nascido em 1555 no solar de Pombalinho (Condeixa), de que seu pai era 15. se-
0 nicos e de entrar no comércio das drogas da Índia, em 1588 3º.

nhor, D. Lourenço terá feito estudos em Coimbra, onde foi bispo e reitor da Universidade Em Dezembro de 1582 havia participado, com outros sete fiéis companheiros de
o seu tio-avô D. Manuel de Almada. A tradição universitária corria-lhes, aliás, nas veias, D. Sebastião, na trasladação dos seu despojos para o panteão dos Jerónimos. Foi O último
pois o irmão mais moço, o jesuíta André de Almada (1570-1642), aí foi catedrático de acto público em que participou. Pouco depois retirava-se para o seu palácio da vila de
Condeixa, onde residiu até ao final da vida, acompanhado da mãe, dos irmãos e dos
renome, chegando também a reitor.
Começa a frequentar o Paço aos 17 anos 26 , habitando com os pais no novo palácio do cunhados Henrique Correia da Silva e D. Lucas de Portugal, entregue a estudos de astro-
Rossio 27 ; e em 1576 era já fidalgo-escudeiro 28
, fazendo parte, decerto, do grupo de moços nomia e à religião - o que não o impediu de ainda ter três filhos bastardos 31 -, tendo
nobres da idade do Rei que o acompanhavam nos seus jogos, estudos e cavalgadas. É pre- professado na Ordem de Cristo, sem no entanto abandonar sua casa. Nela faleceu, com
cisamente com uma irmã do favorito de D. Sebastião, Cristóvão de Távora, que D. Lou- 41 anos, aos 3 de Janeiro de 1597 32 , de uma longa doença.
renço se consorcia na Primavera de 1578, às vesperas de partir para África. A sua campa conservou-se até meados do século passado na capela-mor da igreja de
Três meses depois embarcava na fatídica expedição, acompanhando o seu pai. São Marcos, arredores de Coimbra, com a inscrição seguinte: «DOMINUS LAURENTIUS DE
O valor de ambos na estima do Rei está patente no facto de se contarem entre os 24 fi- ALMADA PRINCEPS IUVENTUTIS CUNCTIS CLARISSIMUS ARTES OMNES LIBERALES PRECIPUE
dalgos que, «não sem agravo notável de outros de não menor merecimento», foram cha- MAfHEMATICAM COMPLEXUS. V.A. 42 SUPRA 1555 AB ORBE REDEMPTO. CONIUX OPTIMA
9
mados para a primeira linha da batalha, ao lado do pendão rea\2 • Ambos cairiam prisio- D. FRANCISCA DE SOUSA OBIIT A. CHRJSTI 1582 AETATIS S\JAE 22. QUORUM OSSA D. ANTAiV[ DE
neiros após o desastre, incluídos no grupo de 80 principais que o Xarife reuniu em Fez ALMANDA F. AVI NOMINIS DOLENS H. ASSERVARI IUSSIT. XLII.» 33
para serem resgatados em bloco. Tal é, pois, a imagem que de si D. Lourenço legou à posteridade: a do homem de
A partir daí, a vida poucas vezes lhe deve ter sorrido. No início de 1579 morre ciência (artes omnes liberales complexus), particularmente versado nas matemáticas (precipue
D. Antão, das feridas havidas em combate; e, por motivos que ignoramos, mas que muito o mathematicam). Se a sua romanesca biografia nos levara por momentos para longe do
traumatizaram, D. Lourenço só vem a ser libertado após a morte do Cardeal-Rei, regressan-
objecto de nosso inquérito, este epitáfio a ele nos reconduz, de modo surpreendente.
do à pátria em 1581, já sob o domínio castelhano. A mesma pessoa que nas páginas do Tratado aprendia um passo de Sérlio (II Primo libro de
A intimidade que tivera com D. Sebastião afastava-o do novo rei. De facto, não só
Geom~tria, f1. 8v), viemos reencontrá-la, passados anos, tida agora por matemático insig-
perde o cargo, hereditário na família, de capitão-mor de Lisboa, como não obtém a reno-
ne ... E evidente que esses dois momentos, o da escolaridade e o da fama póstuma, esclare-
vação do título condal de Almada, que é extinto; sobretudo, luta com graves dificuldades
cem-se mutuamente.
para manter a posição da sua casa, muito debilitada pelas despesas da guerra e por três anos
de ausência.
3<>fl, ementas b'10gra'fi1cos co lh'd
1 os em: ANTT, Chancelarias Ré1nas e Ordem de Ci·isto e BNL Cod AI b
25
26
Conde de Almada, Relação dos Feitos de D. Antão D'Almada, Lisboa, 1940.
Livro de moradias da casa de D. Sebastião, 1570 (Biblioteca da Ajuda): !1. 113v. D. Lourenço aí aparece
ª:
126 Cme'd'''.ºs ) • lndex d. Notas de Vártos
0
· Tabe!iães de Lisboa, tomo 4,• Lisboa, 1949, p. 201.
Sousa, Reg1stos paroquzazs qutr1hentistas de Lisboa: Santa justa, Lisboa, 1949, pp. J 94 e 243.
'
J. M., Cordeiro
• • co ·
de

como moço-fidalgo em 1572. . :0 '_Um !rade, uma freira e a mãe do desembargador Francisco Cabral de Almada «segundo elle dizia»
27 A. Rodrigues Cavalheiro e Luís Pastor de Macedo, «O Palácio Almada (subsídios para a sua história)», (Cnstovao Alao de Morais, Pedatura Lusitana, 1661: ed. António Cruz e E. Cunha e Freitas Porto 1945 III
Anais da Academia Portuguesa da História- Ciclo da Restauração de Portugal, VIII, 1944, pp. 109-184. 2, p. 15). ' ' ' '
28 «Livro das Moradias na casa do senhor Rei D. Sebastião no ano de 1576» (A. Caetano de Sousa, Provas 32
Arquivo da Universidade de Coimbra: Livro de óbitos de Condeixa-a-Nova, !1. 112.
da História Genealógica, VI, 2, p. 556). 33 ]. M. Teixeira de Carvalho, O Mosteiro de S. Marcos, Coimbra, 1922, pp. 60 e 185. 367
29 J. Pereira Baião, Portugal Cuidadoso e Lastimado, Lisboa, 1737, p. 606.
366
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Estamos em condições de datar com segurança essa aprendizagem a que o Tratado memória foi duplamente amaldiçoada: pelos portugueses, por ter sido a causa da perda de
nos reporta. Só durante a sua permanência na corte entre 1572 e 1577, como companhei- D. Sebastião; pelos marroquinos, por ter sido o rei que ousou aliar-se aos Cristãos e chamá-
ro de D. Sebastião, ela se pode ter verificado; concretamente, após 1575, já que era pouco -los à África.
antes dos 20 anos que se iniciavam os estudos da Matemática, após o ciclo preparatório A referência a tal personagem nos termos em que o faz o Tratado não poderá, pois, ser
das «artes» que D. Lourenço deve ter completado em Coimbra. Totalmente inverosímil é anterior a 1574, em que era ainda desconhecido em Portugal, nem posterior à sua partici-
que, após o casamento e os trágicos acontecimentos que se lhe seguiram, ele tivesse regres- pação na trágica «Batalha dos 3 Reis», assim chamada pelos árabes por nela terem morrido
sado aos bancos da escola. Temos, assim, o ano de 1576 (com uma margem de erro de um não só D. Sebastião e Mulei Hamet como o próprio vencedor, Mulei Maluco. Aliás, o
ano) como o da data preisumível das proveitosas lições de Geometria, de Arquitectura e de sucessor deste chamava-se também Mulei Hamet; mas a homonímia nunca chegaria a
Engenharia Militar que com certeza ouviu do autor do Tratado. constituir problema porque o nome maldito do outro Hamet foi varrido da memória:
O interesse desta dedução está em que precisamente à mesma data nos conduz a tendo-se afogado no fim da batalha, ao tentar a fuga, o seu cadáver - conta um historia-
segunda indicação cronológica do texto. dor árabe seiscentista - «foi esfolado, e a sua pele enchida de palha e passeada pelas ruas
de Marrocos e de outras cidades» 35 •
É apenas na última fase da Guerra Civil, como potencial aliado de D. Sebastião, que
B- Mulei Hamet
Mulei Hamet se tornou figura familiar e simpática à opinião pública portuguesa. Mais
precisamente, entre a queda de Fez (fins de Março de 1576) e o triunfo do Maluco em
O Mole'Amete de que fala o Tratado, com destaque absurdo, não é outro senão o
Marraquexe, aclamado Xarife pelo povo e pelos notáveis (Julho-Agosto), essa imagem
«Mulei Hamet» dos cronistas do tempo: ou seja, o Mulei (= senhor) Mohamed Almu-
adquiriu indiscutível auréola. Era, afinal, o «bom» rei destronado pelos Turcos que reco-
tauwáquil Al-Mesluk (= o Esfolado) (1574-78), penúltimo imperador do Marrocos no
nhecia ao nosso país peso internacional, e oferecia-lhe a ocasião há tanto esperada de
século XVI, morto na Batalha de Alcácer Quibir. Era, de facto, ele que estava em 1562 no
penetrar nos assuntos norte-africanos ... 36
cerco de Mazagão, rechaçado após mês e meio de resistência épica dos nossos.
Esse equilíbrio de forças pouco tempo se manteve: após uma última tentativa de reto-
Sucede, porém, que Mulei Hamet contava então pouco mais de 15 anos de idade,
mar a capital (Setembro 1576), esmagado pelo prestígio e poder crescentes de seus rivais, o
enviado pelo pai, Xarife Abdalá Al-Gálib (1557-74), para adquirir treino militar; e que «Xarife Negro» - então assim conhecido (por ser filho de uma escrava africana, e por sua
nem uma só das fontes portuguesas coevas lhe atribui a responsabilidade dessas opera- crueldade) para o distinguir do outro Xarife - ficou confinado às montanhas do Sara, qual
ções, não fazendo caso da sua presença e ou ignorando mesmo sua existência: é no velho bandoleiro, até vir acolher-se a Tânger e passar a Portugal. Ao partirem, em Junho de 1578,
Xarife que todas elas falam. Quer isto dizer que a ninguém lembraria, então, em Portu- para a jornada que oficialmente se destinava a recolocá-lo no trono, os Portugueses já poucas
gal atribuir a um obscuro príncipe (que nem sequer era o legítimo herdeiro) o mérito da ilusões tinham quanto à legitimidade dos seus direitos e aos reais apoios com que contava:
derrota num dos maiores feitos jamais alcançados pelas nossas armas no Norte de Áfri- pobre-diabo desse xadrez político, Mulei Hamet tornara-se um empecilho.
ca. É a própria exactidão histórica com que o Tratado se refere a esses factos que trai a Uma referência a «o poder de Mulei Hamet» era, pois, um truísmo em 1575, e seria
sua data posterior. uma ironia em 1577. Interpretando (como parece óbvio) essa frase do Tratado como a
A expressão que ele usa («Mazagão se livrou do poder de Mulei Hamet») parece-nos intromissão no texto de um facto da mais viva actualidade, e levando até ao fundo o nosso
perfeitamente datável, já que o termo «poder» não tinha o sentido que hoje tem de soberania raciocínio, será no segundo trimestre de 1576 que devemos colocá-la, no breve período em
abstracta, mas de meios militares concretos ou força de pressão 34 : referir-se-á, pois, à época que o aliado de D. Sebastião ainda mantinha algum poder militar e prestígio moral.
em que Mulei Hamet manteve um poder de facto sobre o Marrocos, isto é, o espaço de
tempo entre a sua fraudulenta subida ao trono, à morte do pai (Janeiro de 1574), e a expul-
35
Al-Ufrani, Histoire de la dynastie saadienne au Maroc, 1511-1670, trad. fome., Paris, 1889, p. 135.
são do país pelo pretendente legítimo, seu tio Mulei Abd-al-Malik o «Mulei Maluco» dos 36
A invasão de Abd-al-Malik no Reino de Fez, com auxílio de tropas turcas, provocou alarme em Portugal
portugueses (1577). O curto reinado de Mulei Hamet ficou tristemente célebre, e a sua e a decisão de à primeira oportunidade intervir militarmente no conflito. Mulei Hamet dirige o primeiro pedido
de ajuda, que deve ter suscitado entusiasmo em Lisboa, após a sua derrota na batalha de Salé (Junho 1576). Ao
ir para a entrevista de Guadalupe (Dezembro), já D. Sebastião estava secretamente em acordo com ele; ao passo
34
Veja-se, p. ex., a seguinte frase do memorial de D. Sebastião sobre a conquista de L1rache (com o interesse que Filipe II, por seu lado, mantinha contactos secretos com o novo Xarife, e por isso recusou embarcar na
de dizer respeito ao mesmo Mulei Hamet), enviado após Abril de 1576 a Filipe II: «poder-se-á começar a fortifica- aventura. Sobre estes factos, veja-se Ch.-A. Jullien, Histoire de l'Aftique du Nord, Paris, 1972; Frei Manuel dos
ção ... em muito menos dias dos em que pode vir o poder do Xarife», e, ainda que «com poder grande, não ousará Santos, História Sebdstica (Lisboa, 1735), p. 333; a exaustiva documentação coligida em Les Sources lnedites...
desviar-se sobre Larache» (traduzo da cópia em espanhol do Museu Britânico, publ. pelo Conde de Castries in Les cit.; e, pela abertura de novas perspecrivas, J. Borges de Macedo, «O contexto da baralha de Alcácer Quibir»,
368 Sources lnedites de l'Histoire du Maroc, Serie Angleterre, I, Paris, 1918, p. 171). Resistência, n.'" 181-184, Lisboa, 1978, pp. 16-23. 369
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Se nos demoramos sobre estas duas «vidas paralelas», a de Mulei Hamet e a de miram, sequer de longe, formar urna suspeita de atribuição. Mas este autor esquivo não
D. Lourenço de Almada - ambas turvadas pela sombra de Alcácer Quibir-, foi apenas quis, decerto, andar a jogar às escondidas connosco; devemos ver nesse facto um modo
para mostrar que os acontecimentos reais, a que as alusões a eles nominalmente feitas no corno qualquer outro de ele conceber o seu estatuto de narrador - o que é já um ponto de
Tratado remetem, cruzam-se no tempo em um momento preciso. A situação didáctica con- partida para abordar as numerosas questões que a esse respeito o texto nos suscita.
creta em que é citado D. Lourenço, por um lado, a fase crucial da guerra civil marroquina, Passa-se aí, de facto, algo de paradoxal. Por um lado, somos forçados a admitir que o
por outro, são referências cronológicas datáveis com grande exactidão. O facto que ambas anonimato do texto não foi casual, mas deliberado, já que não é apenas a assinatura que falta
apontem para a mesma data, e esta coincida com a que fora sugerida pela análise externa do (só por hipótese ela figuraria no desaparecido fólio inicial, em todo o caso não substituído),
códice, parecem-nos de,!IDofü.e a oferecer suficientes provas de segurança. mas todo e qualquer pormenor pessoal, corno numa recusa em expor-se. Porém, por outro
Uma circunstância vem corroborá-la, ao mesmo tempo que permite resolver um dos lado, percorre-o de uma ponta à outra a presença de uma vincada subjectividade, que se
mais irritantes enigmas oferecidos pelo códice: a substituição do seu bifólio inicial por manifesta na afirmação de um eu e numa aguda consciência profissional, expressas literaria-
uma folha avulsa, em letra posterior, o que conduziu ao desaparecimento da primeira mente quer sob o plural narrativo («trataremos», «diremos», «ternos declarado»), quer sob a
parte do texto. Sendo norma da Retórica clássica a colocação nesse lugar de uma «Dedica- primeira pessoa do singular: «digo que», «já tenho dito», «não trato».
tória» ao alto personagem a quem se devia ou encomendava a protecção da obra; e haven- Este traço foi suficientemente forte para levá-lo a afastar-se do modelo dos tratadistas
do razões para crer que esse protector, neste caso, tenha sido o controverso ministro de anteriores, a quem todas as ocasiões eram boas para atrair sobre si as atenções. O próprio
D. Sebastião Martim Gonçalves da Câmara, que caiu em desgraça em Maio-Junho de exemplo de todos eles, Vitrúvio, não hesitara em introduzir histórias ou referências
1576, afastado do poder por uma cabala palaciana, podemo-nos perguntar se o autor não autobiográficas. Aqui, pelo contrário, nada há de que transpareça a identidade ou os gos-
teria querido fazer desaparecer uma comprometedora dedicatória, deixando para a substi- tos do autor. Não se fazem apreciações, afirma-se; todc o texto está escrito no modo
tuir por outra quando as circunstâncias se mostrassem mais favoráveis: o que não viria a indicativo.
acontecer. Esta suposição parece-me tanto mais plausível quanto se conhecem outros casos Esse eclipse do autor constitui um facto de cultura que é um aspecto da revolução
de obras expurgadas por serem dedicadas a Martim Gonçalves. mental do maneirismo. No momento em que o velho conflito neoplatónico entre real e
O resultado a que chegamos não parece, pois, oferecer dúvidas. À luz dos elementos ideal se resolvia na descoberta do Sujeito (algures entre Miguel Ângelo e Montaigne),
passados em revista pode-se concluir que o Tratado, composto provavelmente ao longo de iniciando-se então o doloroso divórcio - que vem até hoje - entre um «mundo objecti-
rodo o ano anterior, estava a ser ultimado durante o ano de 1576. vo», terreno privilegiado da Ciência, e uma «consciência» abandonada aos poetas e artis-
tas; é nesse preciso momento que a figura mítica do autor irrompe na produção literária e
plástica para, paralelamente, desaparecer do discurso científico, onde dominara toda a
4. A autoria Idade Média (com o seu critério de «autoridade», ou a verdade indistinta do autor). No
seu tenaz anonimato interno o nosso tratado está, pois, querendo dizer que é um texto de
Um dos traços que caracteriza os verdadeiros tratados de arquitectura e a presença ciência, produto dessa nova racionalidade moderna que o século XVII veria frutificar.
operante de um autor, pessoa que reivindica a sua paternidade e se exprime literariamente Temos aqui, se nos não enganamos, uma primeira conclusão de interesse para a identi-
na primeira pessoa 37 • Não se trata tanto do indivíduo concreto - apenas um «nome»-, ficação do incógnito tratadista. Era alguém que combinava um lúcido exercício da profissão
como desse mesmo indivíduo enquanto suporte de um texto, princípio de coesão e fonte de arquitecto com uma notável seriedade científica, situado na vertente «moderna» da cultu-
de significado do discurso que nele se configura: de uma «personalidade» e uma «obra», ra do seu século: um verdadeiro homem da razão. Só nos tratados filosóficos e matemáticos
portanto. Foi neste duplo sentido que tentámos encaminhar a discussão do problema da das últimas décadas desse século encontraremos um positivismo de igual calibre.
autoria do anónimo códice da BNL Outras conclusões podem igualmente ser tiradas do conteúdo do texto. Referimo-
Com efeito, esse problema afigura-se à primeira vista insolúvel: o manuscrito não -nos à linguagem em que ele se encontra escrito, impregnada de saborosas reminiscências
está assinado, não traz qualquer indicação de autoria, nem há dados extrínsecos que per- de Itália. São as alusões a monumentos da Roma Antiga, tomadas directarnente a Sérlio,
mas implicando familiaridade (fl. 4: «como vemos por aqueles que hoje estão em pé ...
37 F. Choay, La régie et le modele, Paris, 1980, p. 24: «Le trai ré d'architecrure, tel qu'Alberti en crêa le geme, como por eles vemos ... »). São, sobretudo, os italianismos, abundantes e cerrados: não
sera provisoirement défini par cinq rrairs: (1) C' esr un livre présenré com me une roraliré organisée. (2) Ce livre
apenas os da terminologia técnica corrente (fachina, frasca) ou adjectivos comuns (galhar-
est signé par un auteur qui en revendique la paterniré er écrir à la premiere personne ... » Com a excepção deste, os
370 5 traços que ela aponta verificam-se integralmente em nosso tratado. do, esperto), assinaláveis por via literária; ou certas grafias anómalas (Tolomeu, domenio, 371
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escala, débita, opósito) e contaminações semânticas (longitudine, latitudine, cazião, a caso), informados graças a esse «Quem-é-Quem» que é o Dicionário de Viterbo), coincidem
explicáveis por tradução deficiente ou por pedantismo; mas o uso de termos italianos para com estes parâmetros? Uma vez eliminados os impossíveis, e os que só em parte lhes
os quais existiam equivalentes perfeitamente banais na nossa língua, como fango, «barro, correspondem, restarão surpreendentemente poucos.
lama» (fl. 9v) e cativo, «mau» (fls. llv, 12v, 15, etc.). A sua fortíssima incidência, em Comecemos por afastar, por razões imperiosas de cronologia, os primeiros nomes
contraste com a falta de outros estrangeirismos e com a crescente nacionalização do idio- que nos ocorrem: o de FILIPE TÉRCIO, o famoso arquitecto de Filipe II, só em 1576 contactado
ma nessa época 38 , faria pensar num autor mais italiano que português, se não fora ele para vir trabalhar para o nosso país, tendo aqui chegado em Abril de 157739 ; e o de AFONSO
próprio a desfazer a dúvida (fl. 24v: «nossa língua»). Só uma larga permanência no estran- ÁLVARES, veterano «mestre das fortificações» de D. Sebastião e um dos mais activos artistas
geiro, em fase determinallte da sua formação intelectual, com um alto grau de aculturação da segunda metade do século, falecido septuagenário em Fevereiro de 1575. Para além da
na língua italiana, podia levar alguém a adquirir esse hábito linguístico (pois de outra coisa impossibilidade de serem autores de uma obra escrita em 1576 (e de Terzi não ser portu-
não se trata). Até prova em contrário temos, pois, de admitir que o nosso tratadista não só guês), a própria fortuna histórica de que gozaram torna improvável que um escrito seu
estava imbuído da cultura italiana como recebeu uma experiência formativa de algum tipo desta envergadura tivesse caído no olvido. O mesmo vale para NICOLAU DE FRIAS, arqui-
naquele país. tecto-mor (1597-1610), cabeça de uma dinastia que preenche o século XVII, e que antes do
Outro elemento de identificação dedutível do manuscrito é a sua estreita relação com domínio espanhol era apenas um mestre de carpintaria.
o ambiente da corte. Que o Tratado deve ter sido composto em Lisboa, mostra-o a referên- Afastemos, em seguida, os numerosos engenheiros e técnicos militares, de cuja acrivi-
cia a esta cidade, cinco vezes citada (fls. 21 v-22), e o tomá-la para exemplo do que diz dade nada transparece da verdadeira arquitectura. O italiano TOMMASO BENEDETTO DA
sobre o tempo de fabrico em cada latitude. A única outra cidade que refere é Evora, onde PÉSARO (contratado em 1560, activo até cerca de 1575); DIOGO TELES, em 1575 conside-
diz fazer-se «a melhor cal do Reino» (fl. 17v). Não estava ao alcance de qualquer autor, na rado inapto para o serviço pela sua muita idade; ANTóNIO MENDES (act. 1565-fal. 1580),
verdade, fazer redigir seu livro por três secretários diferentes, no papel de melhor qualidade com uma brilhante carreira ao serviço de D. Sebastião, eram profissionais de «engenhos e
existente no mercado. invenções de guerra», com um posto na hierarquia militar (geralmente o de capitão), ou
A explicação lógica destes factos está em tratar-se de um arquitecto régio, trabalhan- mestres-de-obras especializados na construção de fortificações, pouco inclinados, decerto,
do, conforme sugerimos, no âmbito de um atelier de obras ligado ao paço. ao estudo de Vitrúvio. Absolutamente nada os inculca como autores de um escrito com o
Finalmente, será o conteúdo ideológico do próprio Tratado a apontar-nos as zonas de empenho teórico e a responsabilidade profissional deste.
cultura artística em que deve ser procurado o seu autor. Baste, por agora, a constatação de Mais difícil de deslindar é o caso de ISIDORO DE ALMEIDA. Engenheiro, com um posto
que ele se situa dentro dessa corrente arquitectónica desde Kubler chamada «estilo chão», no exército (sargento-mor), e técnico de guerra (Contraminador-Mor do Reino), sabemo-
a que junta uma forte componente clássica de raiz vitruviana e serliana e um ideal, quase -lo ocupado no início da carreira em questões de arquitectura, projectando, por volta de
ético, de geometrismo, erigido em linguagem universal, cujo rigor de desenho se pode 1550, a melhor igreja classicista de Coimbra a do convento de S. Domingos - ,
avaliar pelas ilustrações do códice. Também é visível a sua prática de arquitecto militar, e escrevendo em 1552 um tratado de arquitectura militar, De Condendis Arcibus. Penso,
mais que de mero engenheiro ou técnico de operações de guerra, pois considera-se supe- todavia, que este não passava de uma tradução para português do tratado de Albrecht
rior a esses que se ocupam da «arte d'artelharia» (cfr. fl. 12). Em face do que conhecemos Dürer «Algumas Instruções para a fortificação das cidades, castelos e sítios» (Nuremberga,
da arquitectura do tempo de D. Sebastião, essas características, e o seu doseamento, defi- 1527), na sua versão latina De Arcibus Condendis (Paris, 1535), o que o tornaria um inten-
nem um estilo individual de forte personalidade. to - tanto quanto sabemos frustrado - de defender um sistema já obsoleto de arquitec-
Arquitecto português, portanto, de tendência científica, formado na Itália, ligado à tura militar, nos antípodas do preconizado pelo tratadista de 1576 40 • De facto, Isidoro (ou
corte sebástica, combinando uma sólida formação classicizante com a cultura matemática Isidro, como também o chamam os documentos) pertencia à geração do meado do século,
dos arquitectos militares e fundindo tudo isto no primeiro projecto tratadístico de arqui- sendo decerto já idoso em 1573, quando publicou a sua única obra chegada até nós, o
tectura de que temos notícia em nosso país - eis o perfil que apresenta o desconhecido Livro Quarto das Instruções Militares («em tão defficil tepo pera mim»), não se voltando a
autor do Tratado de 1576, base segura para qualquer tentativa de identificação. Quais,
dentre os artistas operantes na época em Portugal (sobre que estamos suficientemente 39 Sobre a vinda de Terzi, ver: P. José de Castro, D. Sebastião e D. Henrique, Lisboa, 1942, pp. 181 e segs.;

Reynaldo dos Santos, «A vinda de Filipe Tercio para Portugal», Belas Artes, 3 (1951); Alexandre Lobato, «Encon-
tro com Filipe Tercio em Harvard», Colóquio, 47 (Fev. 1968).
38 Mesmo num autor tão ligado a Itália quanto Francisco de Holanda, os italianismos são raros (J. de 40 Para o estudo da questão, ver R. Moreira. «A arquitecrura militar elo Renascimento em Portugal,,, in

372 Vasconcellos, Da PinturaAntigua, Porto, 1939, p. 123, n. 0 1). A Introdução dt1Arte da Renascença na Península Ibérica, Coimbra, 1981, p. 290. 373
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ouvir falar dele após 1574, em que dirigia as fortificações de Tânger41 • Além do mais, era Não foi sem alguma hesitação que decidimos retirar do olvido este personagem. Pois
homem de mil talentos: «insigne genio nas Letras» (Barbosa Machado), voluntário nas como explicar a sombra que o envolveu após a sua morte? Por que razão são tão escassas as
campanhas da Itália e Alemanha, construtor de fortalezas nos Açores em 15 52 e Norte de informações que possuímos a seu respeito? Como pode ser, finalmente, que a historiografia
África, capitão de um pataxo na armada guarda-costas do Algarve sediada em Tavira em da arte tenha participado nesse esquecimento, pura e simplesmente ignorando o seu nome?!
1554, feitor e provedor-mor dos metais em 1559 - é o «homem universal» do O que sabemos sobre António Rodrigues contém-se no seguinte: o alvará régio de
Renascimento que nele vemos, não um arquitecto de profissão. nomeação para o cargo de «mestre de todas minhas obras que se fizerem a custa de minha
É a sua obra Das Instruções Militares que mais nos convence de não ser ele o autor do fazenda», em substituição de Miguel de Arruda, com o ordenado de 60 mil reais anuais, de

Tratado. Isidoro usa frases de b~in recorte literário que contrastam com o estilo pobre do outro, 21 de Novembro de 1564, registado na chancelaria régia a 27 de Junho de 1565; um alvará

não conhece italianismos, nem evita os pormenores autobiográficos. Possui uma bagagem culta de 10 de Dezembro de 1579, pelo qual o cardeal-rei D. Henrique lhe faz mercê de um

impressionante, com referências permanentes aos Romanos e uma visão nostálgica do presente, quinhão de terra de 1 moio (= 290 hectares) em uma herdade de Alcácer do Sal de que ele,
que o leva a preferir os tempos antigos aos modernos. O seu ponto de vista é o do profissional António Roiz, «mestre de minhas obras e das obras das fortificações de meus reinos», possuía
da guerra («mais dina & de mais honra sobre todas as outras artes»), o que o conduz a posições havia já anos os outros 4 quinhões; uma carta de quitação dos 3 contos e 200 mil reais que
dificilmente conciliáveis com as do tratadista: e capaz de apreciar a beleza do fogo de artilharia, despendeu, de 12 de Agosto de 1577 a 18 de Novembro de 1581, nas obras das igrejas de
que o outro considerava que «por nossos pecados foi inventada»; usa termos caídos em desuso São Pedro de Palmela, Anunciada de Setúbal e Nossa Senhora da Consolação de Alcácer do
(como «bastião» em vez de «baluarte»); e, sobretudo, toma partido a favor dos soldados e Sal, passada pela chancelaria de Filipe II a l de Julho de 1583; e duas referências póstumas,
oficiais na velha polémica contra os arquitectos sobre a quem competia a construção das forti- no alvará de provimento de Filipe Tércio no «officio de mestre das minhas obras que vagou
ficações. Não é, pois, um bom candidato à autoria do nosso Tratado. por falecimento de Ant. 0 Roiz», para que fora nomeado a 1 de Março de 1590, passado a 28

É no estrito âmbito da corte que a solução deverá ser buscada. Desaparecidos os de Junho, e na provisão de 13 de Novembro declarando o seu ordenado igual ao do antecessor42 .

grandes mestres joaninos (Miguel de Arruda morre em 1563, Diogo de Torralva em 66, Esses cinco documentos são suficientes para vermos António Rodrigues como principal

Manuel Pires em 70, Diogo de Castilho em 74) e ainda não entrados em cena os enge- arquitecto do país durante 25 anos, ocupando os postos-chave da hierarquia profissional
nheiros-arquitectos do final do século, abre-se aí um real hiato de gerações, coincidente - «Mestre das obras de el-rei», na sucessão de Miguel de Arruda, e «Mestre das obras das
com a fase mais exacerbada do militarismo sebástico. fortificações» na de Afonso Álvares - até à sua morte, ocorrida antes de Fevereiro de 1590;
Um dos raros mestres activos nesse momento é JERÓNIMO DE RuÃo, filho do escultor o que se torna ainda mais impressionante se considerarmos que apenas Miguel de Arruda
João de Ruão. Personalidade artística extremamente interessante, foi, acima de tudo, um (1548-63) e Filipe Tércio (1590-97) repetiram a proeza de concentrar na mesma mão esses
arquitecto civil, dotado de um estilo nervoso e inventivo, que fizeram dele o arquitecto dois cargos, depois sucessivamente ocupados pelos «arquitectos régios» (Nicolau de Frias, Pedro
predilecto da Rainha D. Catarina e da Infanta D. Maria: sua passagem pela arquitectura Nunes Tinoco, João Antunes, Custódio Vieira, Carlos Mardel, etc.) e pelos «engenheiros-mores»
militar foi breve. De 1564 a 1573, pelo menos, encontramo-lo «Mestre das obras de Belém», (Leonardo Turriano, Frei João Turriano, Luís Serrão Pimentel, Azevedo Fortes, Manuel da

construindo a capela-mor actual; e já antes de 1575 trabalhava para a Infanta na igreja de Maia). O seu nome, como se vê, em parceria ao lado dos grandes da história da arquitectura
Nossa Senhora da Luz em Carnide, exemplo de crescente adesão a um decorativismo portuguesa: mas é o único dentre eles para o qual não há nenhum conteúdo concreto.
flamengo. Torna-se muito difícil conjugar esta actividade com a redacção de uma obra Diante disto, torna-se verdadeiramente singular o silêncio que tem rodeado a sua
como o Tratado de 1576, que representava precisamente o oposto daquilo que Jerónimo figura. Após Víterbo, apenas o investigador Ayres de Carvalho lhe dedicou algumas refe-
de Ruão estava a fazer. .. As suas relações com a corte, por outro lado, não parecem ter sido rências, em sua listagem dos arquitectos portugueses do século XVI, de resto sem lhe confe-
as melhores, pois não recebeu nenhuma das tenças e cargos em que o poder era pródigo. rir especial importância43 • Este apagamento histórico, contrastando com o relevo que teve
Além do mais, conhecemos a sua assinatura, em bem desenhada letra humanística, que em vida, só se pode explicar, a nosso ver, pelos factores seguintes: a pouca atenção prestada
nada tem que ver com a do autor do códice. pelos contemporâneos aos artistas que não se evidenciavam perante a opinião, conquistan-
Deixamos para o fim aquele que reúne o maior número de probabilidades de ser o autor do do os favores dos poderosos; o ostracismo a que terá sido votado durante o período filipino,
Tratado: o arquitecto ANTÓNIO RODRIGUES (ou Roiz), nome hoje totalmente obliterado, mas por razões decerto relacionadas com os acontecimentos políticos de 1580; e a sua preterição
que - por estranho que isso possa parecer - era o arquitecto mais categorizado no seu tempo.
42
Sousa Viterbo, Dicionário... , vol. II (Lisboa, 1904), pp. 385-386; e III (1922), p. 97.
374 41
Les Sources Inedites.,., Angl., III (1961), p. 195.
43
Ayres de Carvalho, D. João V e a arte elo seu tempo, vol. 2 (Lisboa, 1962), pp. 28 e 55. 375
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em favor do mais feliz Filipe Terzi, o mundano engenheiro italiano, que soube granjear a Teria o mestre António Rodrigues estado na Itália? Não o podemos afiançar; mas a
amizade de Juan de Herrera, a confiança de Filipe Il e o prestígio público. O ocaso histó- hipótese é mais do que plausível, tendo em vista a política de bolsas seguida pela coroa
rico de um acompanha, assim, o empolamento excessivo do outro, que a esta luz não pode portuguesa precisamente nos anos presumíveis da sua formação. Creio que não tem sido
deixar de ser visto sobretudo como o seu herdeiro 44 . suficientemente notado que somente no terceiro quartel do século XVI os nossos artistas se
O destino injusto de António Rodrigues tem para nós o interesse de decalcar o do começam a encaminhar para a Itália: o caso excepcional de Francisco de Holanda, em 1538-
próprio códice da BNL, também ele caído há quatro séculos no esquecimento: como se o -41, criou a falsa ideia de que essas viagens eram normais, levando mesmo a torná-las res-
silêncio póstumo a que ambos foram reduzidos fosse fruto das mesmas circunstâncias. ponsáveis pela conversão de Portugal ao Maneirismo - o que é, em boa verdade, confundir
Mas o que interessa, sobr0tudb, verificar é que essas duas séries de informação, a fornecida os efeitos com as causas: é por sofrerem a atracção dos novos padrões culturais que os nossos
pelo Tratado e a deduzida da documentação sobre António Rodrigues, completam-se mu- maneiristas vão sentir necessidade de demandar os centros italianos, e não vice-versa. Só após
tuamente: arquitecto e engenheiro militar, muito próximo a D. Sebastião (como o seu a menoridade de D. Sebastião (1557-68), com o apoio da Regente e outros membros da
antecessor Afonso Álvares, ou como o seu discípulo D. Lourenço de Almada), eram suas as família real, se documentam viagens à Itália de finalidade exclusivamente artística4".
maiores responsabilidades dentro da profissão nesse momento crucial dos preparativos João Baptista Lavanha, por exemplo, é enviado por D. Sebastião a estudar matemáticas
para a expedição marroquina. e humanidades em Roma, sendo depois mestre do rei, cosmógrafo-mor (1582) e engenhei-
Outro dos mistérios que rodeiam a personalidade enigmática de António Rodrigues é a ro-mor (1587). Mais revelador é o caso de um filho de Miguel de Arruda, Baltasar de Arruda,
rapidez com que ele ascendeu a esses cargos a partir de 1564, sem nenhuns antecedentes que em 1566 e 67 a receber de D. Sebastião a mercê de 30 mil reais anuais «pera sua despesa
o justificassem, passando à frente de arquitectos com provas dadas e nome feito (como Jerónimo estamdo ele fora do Reyno apremdemdo a arte de archytectura)), na Itália certamente .. .47
de Ruão e o próprio Afonso Álvares, somente em 1569 nomeado «Mestre das fortificações do Este movimento generalizado da década de 60 torna muito provável que António Rodrigues
Reino))). Queremos ver neste facto uma consequência do último dos traços identificadores do nele participasse. Regressa aureolado do prestígio da ciência estrangeira, para ascender quase
tratadista de 1576 que nos faltava reconhecer: a formação italiana. Para os grandes arquitectos imediatamente ao primeiro posto de sua profissão, passando à frente dos concorrentes mais
do tempo era, de facto, obrigatória uma estadia de estudo por terras transalpinas, finda a qual experimentados, mas que não tinham saído do país: e - tal como sucedia nos demais rei-
regressavam a cultivar os frutos dessa aprendizagem: as altas mercês régias e a composição de nos - vai expor a sua visão da disciplina através dessa figura nova que era o «tratado de
tratados. Assim sucedeu na França com Philibert Delorme, que, depois de estudar em Roma arquitectura)), Temos de convir que é difícil deixar de ver nele o autor do Tratado de 1576, o
a arquitectura antiga, trouxe para seu país «la façon de bien bastir)), como arquitecto do Rei, e qual, como adiante se verá, reflecte em suas fontes o ambiente cultural italiano de cerca de
escreveu os primeiros tratados franceses (Nouvelles ínventions de bien bastir, 1561; Le premíer 1560, não o da sua própria época.
livre de l'Architecture, 1567); na Inglaterra com John Shute, enviado a Itália cerca de 1550, O método de aproximação sucessiva que nos conduziu a este resultado é, em si mesmo,
autor do primeiro livro inglês de arquitectura (The first and chíef groundes of architecture, bastante falível. Que provas extrínsecas poderão ser aduzidas em seu apoio? Creio que o melhor
1563); e na Espanha, precocemente com Diego de Sagredo, que visitou a Itália antes de 1522 argumento que poderíamos desejar é o ex-libris manuscrito que ocupa o cimo da última página
para no regresso publicar a primeira súmula vitruviana europeia, Medidas del Romano (Toledo, do códice, onde se pode ler, em letra de finais do século XVJ ou começos do XYJI, o seguinte:
1526), mas sobretudo mais tarde, com os arquitectos do Escorial, formados na Itália, Juan
Bautista de Toledo e Juan de Herrera, que de princípios pouco claros ascenderam sem transi- Este lliuro é do snõr Llopo roiz quem lh . ... (ilegível)
ção aos mais altos postos do país, em 1561 e 1567, respectivamente45 .
Segue-se uma data (3 de dzbro, sem indicação de ano) e uma curiosa lista de 38 livros
naturalmente parte da biblioteca do dito senhor Lopo Rodrigues, proprietário do códice
44 Não é este o lugar de abrir o processo de revisão do real papel desempenhado por Filipe Tércio; porém,
o conhecimento da sua obra italiana (G. Bresciani-Alvarez, «Um architetto pesarese in Portogallo: Filippo Terzi»,
na transição dos séculos48 •
in Atti deli' XI Congresso di Storia dell'Architettura, Roma, 1958) e algumas recentes restrições à sua obra em
Portugal (F. Chueca Goitia, «E! estilo herreriano y la arquitectura portuguesa», in E/Escorial 1563-1963, Madrid,
1963; Ayres de Carvalho, As obras de Santa Engrácia e os seus artistas, Lisboa, 1971) obrigam a repensar em 46
Sobretudo pintores: Gaspar Dias e António Campelo antes de 1560, Lourenço de Salzedo antes de 72,
termos menos laudatórios esse papel, tanto no campo civil como no militar. Francisco Venegas e Amaro do Vale nos anos 70; conhecem-se mesmo cartas referentes a artistas enviados a Roma
45 Sobre Juan Bautista de 1àledo - autor de um perdido tratado de arquitectura - cfr. Carlos Vicufia, «para nela se exercytar na arte da pyntura» (1560), e para «aperfeiçoarse na arte da pintura» (1561-2) (S. Viterbo,
«J.B.T., principal arquitecto dei monasterio de EI Escorial», in E/Escorial en e! Cuarto Centenario de su F1mdació11 Notícia de alguns pintores portugueses, I Série, p. 100, e III Série, p. 169).
47
(Escorial, 1964), pp. 125-193. Sobre Herrera, veja-se a edição do seu tratado Discurso de la Figura Cúbica, por S. Víterbo, Dicionário ... , I (1899), p. 513.
376 E. Simons e R. Godoy (Madrid, 1976). 48
Cfr., adiante, Texto: foi. 66v. 377
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A sua composição é surpreendentemente diversificada, pois abrange desde obras de binete mais que de oficinas de construção, talvez tenhamos aí (e, vá lá, em um certo
divulgação histórica e de pedagogia até textos da melhor literatura (Terêncio, Ovídio plebeísmo do nome) outra das causas do limbo historiográfico em que caíram, ele e seu
Epicteto, Petrarca, Ariosto), poemas épicos, novelas, obras religiosas e o indefectível tratado.
almanaque Reportorio dos Tempos, que conheceu mais de 80 edições em Portugal durante o O exame da sua obra construída 51 parece confirmar este juízo. Ela introduz uma
século XVI. A presença de alguns livros de especialidade jurídica indica, porventura, que o qualidade nova na arquitectura portuguesa desse século: o sentido da «medida», conseguida
seu possuidor era homem de leis. E a data de publicação dos títulos mais recentes (talvez através de um total controlo das diversas fases compositivas pela razão. As fórmulas tradi-
1601, mas com certeza 1595), permite datá-la do último lustro do século xvr. Não será cionais procuram enriquecer-se, por um monumentalismo perfeitamente modulado e uma
uma grande biblioteca, rrfas t~vela um grau apreciável de cultura. sintaxe clássica mais erudita; mas sempre com o mesmo desenho frio, de arestas e volumes
Não conseguimos apurar ao certo quem era esse Lopo Roiz. Pelas idades, e pelo puros, submetido ao império da proporção. Confrontando com outras obras da mesma
tratamento de senhoria, não é impossível que fosse o mesmo Lopo Roiz que acompanhara, época esse método matemático de construir a forma, a modernidade da contribuição de
como cortesão, a comitiva de D. Sebastião em 1573 na sua jornada ao Algarve 49 . Não seria António Rodrigues toma-se evidente. Nele se define um «classicismo maneirista» de ten-
ele filho ou parente do arquitecto António Roiz (Rodrigues), que por essa altura redigia o dência cúbica, empenhado na via contra-reformista do rigor e da renúncia a efeitos deco-
seu tratado na corte? A presunção ganha consistência diante de um facto de certo modo rativos e plásticos. Como veremos, é a mesma posição ideológica que se encontra nas
decisivo: uma das obras que serviu de fonte ao Tratado, o compêndio de ciências naturais páginas (e desenhos) do Tratado.
de Galeno traduzido do grego para latim pelo médico espanhol André Laguna (De Anunciado já pelo último momento torralviano de Tomar, esse purismo geometrizante
Philosophica Historia liber unus, Colónia, 1543) é citado na resenha do final do códice, sob surge numa proposta revolucionária em duas obras de altíssima qualidade de começos da
o título de «Estaria filosophica», o que constitui um traço de união inesperada entre o década de 60, de autor desconhecido, mas que, pela coincidência de tempo e lugar, unida-
autor e o seu proprietário 20 anos mais tarde, que mais nos convence de que a ligação entre de de estilo e semelhanças ao nível do pormenor, julgo devermos lançar também a crédito
ambos não era fortuita. de António Rodrigues:
Vimos já (Cap. 1) que dois amigos de Lopo Rodrigues, e ele próprio, deviam habitar 1) A Capela das Onze Mil Virgens em Alcácer do Sal, obra-prima da Renascença
então Viseu. Esse afastamento da corte, tão vulgar nos primeiros tempos do domínio tardia encomendada pelo embaixador D. Pedro de Mascarenhas (fal. 1556), mas de cons-
espanhol, terá sido a causa concreta do desaparecimento do manuscrito durante vários trução certamente posterior 52 . Torna-a única entre nós a sua inspiração num ideal muito
séculos, desviado do circuito normal dos conhecimentos; e do seu aparecimento no sécu- italiano de Beleza conseguida pela inteligência das proporções e apuro dos materiais, que a
lo XVIII em uma livraria nobre de Lamego. Frequentada, pois, por um comendador leitor influência das pesquisas serlianas de Torralva não basta para explicar: por outro lado, são
de filósofos e pelo ouvidor de uma das boas casas de Portugal, a pequena mas escolhida exemplares a obstinação em interpretar matematicamente o classicismo e a fria correcção
biblioteca de Lopo Rodrigues faz figura de uma «corte na aldeia», na qual só por respeito do desenho, entendido como puro exercício de geometria. Está-se ainda longe da pobreza
filial teria lugar esse mal-acabado rascunho de arquitectura que era o códice da BNL. Não voluntária de S. Pedro de Palmela, mas está-se no mesmo caminho.
vemos outra maneira de combinar as diversas peças do nosso puzzle. 2) A matriz de Santa Maria da Graça (a actual Sé) de Setúbal datável de 1560-65 53 ,
O encontro desta obra-sem-autor com o autor-sem-obra que é António Rodrigues cujo esquema foi presente ao próprio Afonso Alvares (S."' Catarina dos Livreiros, 1572).
vem lançar mútua luz. Se, por um lado, o Tratado perde o antipático anonimato que o
encobria, por outro, a figura do arquitecto-mor de D. Sebastião adquire a densidade histó- 51
A Igreja da Anunciada em Setúbal ruiu em 1755 (actual Quartel de Bombeiros); N, Sr,ª da Consolação
rica que lhe faltava. O vazio existente sob o seu nome preenche-se: Rodrigues foi essen- de Alcácer do Sal é hoje urna residência particular (do Sr, Antóoio Núncio) que mantém o casco do edifício,
restos do portal principal clássico, e urna porta lateral manuelina, Apenas a matriz de S. Pedro de Palmela (1577)
cialmente um «especulativo», ocupado com as questões de estatuto e ensino de sua profis-
se mantém, Podem-se-lhe ligar, por analogia de estilo, algumas obras circundantes: uma galeria jónica (hoje
são, à maneira dos arquitectos científicos da segunda metade do século xvr, que, isolados e integrada no edifício setecentista da Câmara), a praceta anexa com cruzeiro, e a capela da Misericórdia (datada de
estudiosos, deixaram de «sujar as mãos de pó para sujá-las com tinta» 5º. Homem de ga- 1565), Ayres de Carvalho atribui-lhe também os novos planos do Convento de Palmela (D, João V,,, p, 55),
52
A inscrição fundacional é da sua viúva, e em 1565 documentam-se obras no local (cfr J, Segurado,
Francisco D'Olland,t, p, 368). Confirmam esta data tardia a sua filiação no Claustro de Torralva, de Tomar, e de
nela se terem inspirado a Capela dos Reis Magos em S, Marcos (1572) e a de N, Sr,ª-a-Franca da Irmandade dos
Cirieiros na Igreja de Santiago cm Alfama (1576), sinal do impacto que teve entre os artisras da época.
53
49
Cit, por F. Sales Loureiro, D, Sebastião antes e depois de Alcdcer Quibir, Lisboa, 1978, p, 129. Com obras em curso em 1565 e quase concluídas em 70 (E Falcão Machado, «A igreja de S. Maria da
50
Agustín Bustamante, «En torno a Juan de Hcrrera y la arquitcctura», Boletín dei Seminario de Arte y Graça em Setúbal», Bol,juntru/a Província da Estremadura, 13-18 (1946-48), p, 243); a 11 de Fevereiro de 75 já
378 Arqueologia, Valladolid, 1968, se lhe nomeava organista Q. Veríssimo Serrão, ItinertÍrios de D, Sebastião, II, Lisboa, 1963, p, 83), 379
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A fonte de sua composição de massas e escalas a partir de uma matriz geométrica - em Foram exigências práticas ligadas ao renascimento urbano que fundaram esse discur-
que, segundo Kubler, «the work of a powerful designer is apparent)) 5" - , mais do que em so científico novo. Mas o fenóneno nunca perdeu os seus laços de origem com a pedago-
Sérlio ou Palladio (como ele pretende), está no tratadista Pietro Cataneo, que constituiu, gia. Com ou sem função explícita de compêndio disciplinar ou manual de estudo, o trata-
como se verá, a fonte principal do nosso tratado. do sempre foi, por definição, um género didáctico; na base dos processos sociais e psicoló-
Não é aqui o lugar para analisarmos estas duas obras, que atribuo à primeira fase de gicos que lhe dão lugar encontra-se a dialéctica estabelecida entre um autor, pessoa deten-
António Rodrigues, logo após o seu regresso de Itália. Reservando-o para outra ocasião, tora de saber e experiência que consente em tornar públicos, e o leitor a quem esse magis-
interessa-nos, apenas, sublinhar o inegável parentesco que elas apresentam com o pensa- tério se destina. É por isso que o diálogo, formalizado ou não pelo recurso ao discurso
mento artístico que se coflfigctra no Tratado de 1576. O sentido inovador da obra - es- directo, é a fórmula ideal para que tende todo o tratado.
crita e construída - de mestre António Rodrigues reside nessa supremacia do cálculo Significativamente, será fora da Universidade que se fazem sentir em Portugal os
sobre a invenção, baseada num esforço de síntese dos dois pilares da razão moderna, que problemas da educação científica, e se procuram criar estruturas de resposta. A mais séria
eram geometria e classicismo, Euclides e Vitrúvio. dessas tentativas parece ter sido a Aula de Esfera aberta pelos Jesuítas no Colégio de Santo
Parece-nos termos atingido o limite possível do nosso inquérito. A hipótese a que Antão, em Lisboa, no último quartel do século XVI, essencialmente destinada ao ensino das
chegamos apresenta a figura, um pouco incómoda, do «Mestre das obras e fortificações do Matemáticas, então inexistente em Coimbra 57 • Conhece-se elevado número de tratados
Reino» António Rodrigues (c. l 525?-1590) como responsável pelo texto que a seguir se compostos pelos seus professores, ao longo de século e meio, sobre Cosmografia (que deu
revela. Arquitecto de um novo género, mais tracista que pedreiro, cioso do seu papel e nome ao curso), Astronomia, Náutica e Arquitectura Militar. Desde o primeiro momen-
incompreendido pelos pares, ele representa o artista moderno empenhado em elevar a sua to, as questões arquitectónicas interessaram ao seu currículo, contando com diversos ar-
práxis ao nível da ciência e em estabelecer a Arquitectura como uma profissão nobre, uma quitectos entre mestres e alunos.
das «artes liberais». Nessa luta pela emancipação do sistema corporativo medieval, a redac- Outra instituição de ensino técnico era a Lição de Matemática, lida pelo cosmógrafo-
ção de um tratado incluía-se como passo decisivo. -mor nos armazéns da Ribeira das Naus para instrução da gente do mar, talvez já desde
Não será das conclusões menos interessantes que isto se tenha passado exactamente
antes do meado do século 58 • O programa do curso incluía noções de astronomia e carto-
quando em outros países se escreviam e publicavam os primeiros tratados do género, nesse
grafia e o uso dos principais instrumentos de navegação; e terá sido esse carácter estrita-
contexto europeu bem definido por Ackerman, em que, «alongwith the foundation of the
mente profissional que levou os Jesuítas a abrirem uma classe análoga no seu Colégio, com
first academies, architects begin to write about practice, while they tend to stabilize theory
carácter mais vasto e livre, próprio para fidalgos desejosos de servir o país na guerra e nas
into law. Here architecture begin to take shape as a distinct profession, perhaps for the first
empresas marítimas.
time since antiquity)) 55 •
É pelas suas ligações com a Matemática e matemáticas aplicadas (cartografia e náutica)
que a Arquitectura vai ascender à dignidade científica, e ver abrirem-se-lhe as portas do
ensino superior. Isto ocorre expressamente na famosa Académia de Matematica y Arquitectu-
ra, fundada em Madrid por Filipe II, a instância de Herrera, em 1582, quando ambos se
5. O ensino da Arquitectura na Escola do Paço
achavam em Lisboa 59 • Começou a funcionar no ano seguinte no próprio paço madrileno, até
às primeiras décadas do outro século, criando em seu torno uma escola de arquitectos forma-
Forma superior da literatura anística 56, o tratado surge no horizonte da Renascença
dos no estudo científico e nas virtudes do novo desenho. Consistia em uma cátedra de ma-
como modo de conceptualizar e sistematizar conhecimentos, até aí empiricamente trans-
mitidos quando os saberes se fixam na escrita e divulgam pela imprensa que a cultura temática a cargo do cosmógrafo-mor (o português João Baptista Lavanha) e outra de arqui-
arquitectónica pode se erigir em teoria e constituir em texto: uma inovação cultural pro-
movida por Leon Battista Alberti (De Re Aedificatoria, 1485), que provocará uma verda- 57 Luís de Albuquerque, «A Aula de Esfera do Colégio de Santo Antão», Estudos de História, II, Coimbra,

deira proliferação de tratados de arquitectura em toda a Europa do século XVI. 1974. A sua criação deve datar dos anos imediatos à construção do novo Colégio, em 1580.
58 A. "Teixeira da Mota, Os regimentos do cosmógrafa-mor de 1559 e 1592 e as origens do ensino wíutico em

Portugal (separara), Lisboa, 1969, sobretudo pp. 32-35.


59 Documentação publ. por E. Llaguno, Notícias de losArquitectos ... , II, pp. 141 e 358-63. Cfr. L. Cervera
5" Portuguese pltzin architecture, p. 52.
55 J. Ackerman, «Architecrnral practice in ltalian Renaissance», in Creighton Gilbert, ed., Renaissance Art, Vera, «Semblanza de Juan de Herrera», in El Escorial... cit.; A. Ruiz Arcante, Juan de Herrera, Madrid, 1936,
pp. 96-103 (considera a fundação da Academia «uno de los hechos más trascendentes en la historia de Espafta
NewYork, 1973, p. 149.
56 J. Schlosser, La Literatura Artística, Madrid, 1976 (ed. orig.: Viena, I 924). Uma revisão estimulante dos durante el reinado de Felipe II»); J. Rey Pastor, La Ciencia y la Técnica en e! Descubrimiento de America, Madrid,
1942 («un acontecimiento capital en la historia de las ciencias exactas en Espafía»). 381
380 tratados de arquitectura em F . Choay, ob. cít.
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tectura, leccionada por Herrera, a que se juncava o estudo da balística, fortificação, etc. Não plantou em Portugal. Esses cargos tinham, pois, o significado eminentemente prático de um
só essas lições foram passadas a escrito e publicadas, como um dos primeiros cuidados de estágio, no qual, assessorando o mestre e praticando com ele os segredos da sua arte, adquiria-
60
Herrera foi a tradução dos tratados que eram a base do seu ensino . Simultaneamente, -se a experiência profissional que permitia a subida a postos de maior complexidade. Era um
criava-se uma rede de escolas locais para que «en las republicas principales se lea y ensefíe el primeiro emprego, no quadro, profundamente hierarquizado, do pessoal das obras régias.
arte del arquitetura»; mas apenas a de Madrid, ao que se sabe, chegou a funcionar, no «estudio Impossível, pois, pensar, como é habitual, que o ensino de base fosse aqui ministrado.
desta villa», aberta aos mestres e oficiais das obras da cidade. Esse, vinha das oficinas e estaleiros de obras, onde o sistema das corporações medievais man-
Em Portugal a aprendizagem da arquitectura só se documenta em termos de escolarida- tinha toda a sua eficácia. O mesmo poderemos dizer quanto à formação de nível superior
de e acesso a uma carreir~, n!f última década do século xvr. Antes de 1594 começaram a (que poucos atingiriam): era pela frequentação de mestres particulares que se aprendia o
funcionar «três lugares de aprender a arquitectura» com o Mestre das Obras de el-Rei Filipe suficiente para ascender, com o tempo, de «pedreiro» a «arquitecto». Esse ensino privado,
Tércio, instituição que incluía também a obrigação de «ouvir a Giometria que lê João Batista tornado necessário com o encerramento dos últimos grandes focos de instrução prática (as
Lavanha», isto é, de frequentar a aula do cosmógrafo. Segundo os alvarás de nomeação para obras do Convento de Cristo em Tomar interrompem-se em 1565), fazia-se na oficina de
61
esses lugares - únicos documentos que sobre eles possuímos -, o seu regimento consta bons professores: Nicolau de Frias, por exemplo, ensinava a traçar e debuxar em sua casa; um
do seguinte: Henrique de França - talvez parente do pintor vimaranense Pedro de França (não do país
1. 0
) «assistir no estudo desta cidade», isto é, prestar serviço em um determinado sítio, com esse nome, mas de um lugar do concelho de Vinhais, Bragança) - declarava em 1602
denominado «estudo». Se tivermos presente o sentido concreto que esta palavra então «haver muitos anos que estuda a dita arquitectura», embora não diga com quem; e em 1611
possuía, de local de trabalho ou estúdio (de resto, o mesmo que dera nome em Madrid ao achava-se na Ilha da Madeira um fortificador que «ensina a arte de arquitectura»63 . A divul-
«Estúdio» da cidade, destinado à instrução prática dos artífices municipais), veremos que gação dos tratados italianos não seria, com certeza, estranha a esse afã de estudo que se
isso significava não tanto a frequência de um curso como a frequentação de um lugar: observa antes da passagem do século, e que as obras construídas confirmam.
naturalmente, o atelier do mestre das obras régias. Uma orientação pedagógica de outro tipo, obedecendo a uma perspectiva de ciência
2. 0) «fazer o mais que lhe for ordenado pelo provedor das obras», o que incluía, pura, «especulativa» como então se dizia, é a que transparece da aula de Santo Antão:
nomeadamente, «servir nas traças que se fazem», e fazer «todos os papeis e mais cousas que segundo Luís de Albuquerque, «a maioria desses cursos teve até um carácter mais teórico
lhe forem encarregadas do meu serviço». do que o curso professado por André de Avelar na Universidade de Coimbra»"4 • A projec-
Um cargo idêntico existia em Espanha desde 1563, criado por Filipe II, para auxiliar o ção da Ratio Studiorum jesuítica fez sentir fortemente a necessidade dessa especialização,
arquitecto régio Juan Bautista de Toledo: «dos discípulos, que sean hábiles y suficientes para que se afirma nos domínios mais diversos. No campo da instrução militar, por exemplo,
que le ayuden a hacer las trazas y modelos que ordenarmos»; e outros dois ajudantes «para escrevia Isidoro de Almeida em 1573 que, se até ao posto de capitão era suficiente ter a
que nos haya de servir y sirva en todo lo que fuere mandado por Juan Bautista de Toledo [... ] experiência da guerra, os cargos superiores (sargento-mor e mestre-de-campo) exigiam o
a quien ha de acudir a tomar la orden de las obras y cosas a que hubiere de asistir»: um nas seu «entendimento» mais fundo: «também deve ter a theorica & a arte juntamente com a
obras de Madrid, o outro nas do Escorial (o então ainda desconhecido Juan de HerreraY, 2 • pratica. Porque tendo & sabendo sem a arte a pratica das cousas qna guerra se costuma nã
O formulário, as funções, o próprio montante do salário, não deixam dúvidas quanto a poderá sempre per soo ho uso cõduzir as obras suas há perfeiçam, ainda que as faça com
tratar-se da mesma instituição, que, experimentada com sucesso em Espanha, Filipe II im- muita diligencia & presteza, cousas que ha pratica dá, & que he de muita importancia na
guerra. E tendo a theorica soomente sem a pratica, ainda que as obras que fizer sejã perfei-
60
Dos manuscritos produzidos no âmbito da Academia, conhecem-se o «Tratado de Artilharia» (1599), de tas, todavia as fara tarde & de vagar, que he mui notavel defeito & imperfeiçam neste
Júlio Firuffino, o «Tratado dei Arte de Navegar» (1588) de Lavanha, e o «Livro Primeiro daArchitcctura Naval» carrego. Do que deve de fogir, este grande official de todo ho ponto. Pelo que a theorica
(e. 1600?) do mesmo. foram impressos Téoria y prdctica de Fortificació1t (Madrid, 1598), de Crisrobal de Rojas,
e trads. de Vitrúvio (1582), Alberri (1582) e Euclides (1585).
primeiro, & depois a pratica em estremo lhe convem ... " (p. 138).
61 S. Viterbo, Diciondrio ... , I, pp. 367, 376-7, 397,538 e 546; li, 139 e 236; e lll, 111-3, 120 e 141; a que
Encontramos a mesma ideia defendida por Lavanha no seu Regimento Ndutico (Lis-
há que juntar os revelados por Ayres de Carvalho, D.joão V .. , 2, pp. 110, 138 e 143-6. Viterbo pensou tratar-se
boa, 1595): na Dedicatória ao Rei, referindo-se à experiência de ensino como cosmógrafo-
de uma verdadeira escola (II, Indrod.: «O Ensino da Arquitccturao), erro ampliado por Ayrcs de Carvalho no seu
conceito de uma «Aula de Arquitectura Civil do Paço da Ribeira», entidade que ameaça tornar-se um mito, tão
persistente quanto a Escola de Sagres ... (Devo o esclarecimento deste ponto à bondade da Senhora Doutora ,.1 S. Viterbo, ob. cit., I, 367 e 382; e II, 39. Outros «professores» de arquirectura são referidos ao ano de
Marie-Thérese Mandroux-França, que o comprovará documentalmente em sua tese de Doutoramento de Esta- 1549, numa obra tardia (L. A. Mexia Galvão, Vida do jàmoso herói Luís de Loureiro, Lisboa 1782).
do, a apresentar cm breve na Universidade de Paris-X.) 64
L. de Albuquerque, ob. cit., p. 133. A cátedra de Matemática cm Coimbra fora extinta com a jubilação
382 62
E. Llaguno, ob. cit., II, pp. 231-2. de Pedro Nunes (1562) e só retomada em 1592 por André de Avelar. 383
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-mor, diz ter sentido a necessidade de retirar algumas matérias «por mais especulativas do Dada a habitual ligação dessas disciplinas com a Arquitectura, não admira que em
que convém à Practica», adaptando-as aos interesses dos navegantes; e publica duas adver- torno dessas lições tenha florescido o interesse por este tema, e constituído, a partir de um
tências prévias, uma «Ao spectulativo mathematico)), outra «Ao pratico navegante» 65 • viveiro de estudos vitruvianos; nem pode surpreender que se deva ao mesmo Pedro Nunes
Esse binómio «teoria/prática» era tanto mais aceitável pelos arquitectos quanto adis- a primeira tradução de Vitrúvio realizada fora da Itália, em 1541 69 • Também nisto a Aula
tinção de idêntico sentido «raciocínio/fabrica» estava na base da sua bíblia, o De Architetura Régia dos séculos XVII e XVIII aparece como a herdeira do longínquo cenáculo quinhentista:
de Vitrúvio ... Uma tal diferenciação programática explica o plano de Herrera de criar, nos seus reorganizadores, Luís Serrão Pimentel (na Ribeira das Naus, 1647) e Manuel de Aze-
anos 1582-84, um ensino prático-funcional destinado ao artista comum (comparável à vedo Fortes (no Paço da Ribeira, 1734), acumularam os dois cargos de cosmógrafo e enge-
nossa lição do cosmógr,lo~mor); e, por outro lado, esse centro de altos estudos que era a nheiro-mor do reino, e foram os autores, como é sabido, dos dois primeiros livros de
Academia de Matemáticas e Arquitectura. arquitectura publicados em português. É nesta medida que estamos em posição de per-
Quererá isto dizer que também entre nós o treinamento pragmático no atelier dos guntar se o nosso Tratado de 1576, também ele da autoria do mestre das fortificações
mestres foi completado por alguma forma de educação arquitectónica superior, de alcance (= engenheiro-mor), não constituirá um outro elo dessa mesma cadeia ...
e conteúdo comparáveis aos da Academia de Madrid: isto é, ministrada no próprio Paço Os seminários de Pedro Nunes criaram uma tradição de ensino científico no Paço: ao
pelo arquitecto e cosmógrafo-mores, vivendo da sua proximidade à corte, e combinando o seu modelo irão obedecer os cursos dados por Diogo Sigeu aos fidalgos da corte, a partir
estudo genérico da Arquitectura (Militar, sobretudo) com o da Geometria especulativa e
de 1556, tendo para isso publicado um tratado (De Ratíone acentuum, Lisboa, 1560) que
da Cosmografia teórica? Em outro lugar66 já sugerimos que sim, e que ter:í sido mesmo ela
se considera «le fruit de son ensignement a la Cour» 70 ; e o ensino de Aritmética e Geome-
que, ao contrário, serviu de modelo à academia herreriana. Sua existência não sofre dúvi-
tria às infantas pelo licenciado Domingos Peres, que traduzia em 1559 os Elementos de
das para os anos posteriores à Restauração, já que foi a natureza da «Aula Régia da Mritemá-
Eudides71 • Uma vez mais, vemos a instrução superior cortesã de mãos dadas com a publi-
tíca», ou «Aula da Fortificação», criada em 1641, de tão abundantes provas dadas em nossa
cação de compêndios e a redacção de textos básicos, traduzidos e abreviados.
arquitectura 67 ; mas é também uma conjectura fortemente provável no que diz respeito aos
Esses cursos ou leituras deviam processar-se de modo informal e pouco regular, aber-
anos anteriores a 1580, para os quais aqueles em quase tudo voltaram os olhos.
to a quem os quisesse frequentar, sujeito às longas ausências dos príncipes e contínuas
É conhecida a existência de um centro de estudos teóricos de Náutica e Cosmografia
deslocações da corte.
no tempo de João III. Trata-se do círculo de estudos reunido na casa do infante D. Luís,
entre 1536 e 1541, em tomo do matemático e cosmógrafo-mor Pedro Nunes. Um dos A necessidade de uma educação mais sedentária só se começará a fazer sentir com o
participantes nessas sessões de estudo (que incluíam não só leituras coment;,,das de textos estabelecimento de uma estrutura burocrática de Estado moderno, no último terço do
- Sacrobosco, Ptolomeu, Aristóteles - mas também observações científicas e a recolha século XVI. Um panfleto anónimo, talvez da autoria de D. Jerónimo Osório, fazendo em
de informações práticas trazidas pelos mareantes) era D. João de Castro, que se lhes refere meados de 1570 um balanço dos problemas da actualidade política que mais afligiam o
nos seus famosos Roteiros, nascidos precisamente dessa experiência. reino 72 , colocava em primeiro lugar «o aborrecimento que El-Rei Nosso Senhor mostra ter
Nesta verdadeira academia científica, em que Teixeira Mota vê a origem da «lição do a Lisboa», causa da «perdição da nobreza de Portugal»; e aspirava a que «o Paço fora, como
cosmógrafo» da Ribeira das Naus, houve igualmente o cuidado de passar as lições a escrito soía ser, escola onde toda a nobreza mamasse, com o leite, as boas manhas». A mesma
e traduzir para português os textos básicos (como no Colégio de Santo Antão, como na problemática encontra-se na origem do memorial de Francisco de Holanda Da Fábrícrl
Aula Régia, como na Academia de Madrid ... ), sinal evidente de orientação teórica. que Falece à Cidade de Lisboa (datado de Julho de 1571), todo ele uma apologia de Lisboa
O resultado dessa actividade literário-pedagógica foi nada menos que os tratados de Pedro e das obras que o Rei aí devia fazer para seu desenfado.
Nunes (Tratado da Sfara, 1537; De Crepusculis, 1542; Livro de Álgebra em Aritmética e Tais juízos mostram que a fixação da corte e a formação cultural da nobreza eram
Geometria, publ. em 1567, mas escrito c. 1535), «derivações do preceptorado dos infan- questões candentes do início do governo de D. Sebastião. É então que surgirá o tipo novo da
tes» nas disciplinas do quadrívio 68 • escola palaciana, moldada às concepções pedagógicas das escolas jesuíticas e ao particular

65
A. Cortesão, Cartografia e cartógrafos portugueses, Lisboa, 1935, p. 318.
66 69 Sobre estes factos, veja-se o meu artigo «Cosmografia e Arquitectura: notas sobre a difusão de Vitrúvio
«A Arquitectura Militar do Renascimento em Portugal», cit., p. 289, n. 1.
67
Está por estudar esta Aula Régia, cuja produção teórica teve alcance incalculável (veja-se, entretanto, em Portugal na l .ª metade do século XVI, revista lvlundo da Arte, Coimbra (a publicar).
70
L. C. Sousa Macedo, Achegas para a história da engenharia militar, Lisboa, I 948, que defende com brio O concei- Luís de Matos, Les Portugais en fí,mce au XVI' siecle, p. 112.
71
to de uma «escola portuguesa de Engenharia Militar»). Luís de Albuquerque, «Fragmentos de Euclides numa versão portuguesa do século XVI», Estudos de
68
Joaquim de Carvalho, «Nunes, Pedro», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 19, p. 56; e «Ano- História, vol. l, pp. 121-197.
384 tações ao Tratado da Sphera», in Obras de Pedro Nunes, Academia das Ciências de Lisboa,], 1940, p. 279. 72
Cartas portuguesas de D. Jerónimo Osório, Coimbra, 1922, PP· 36-37. 385
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clima espiritual que se vivia. Tanto a Crónica de D. Aleixo de Meneses (BNL, Cod. 1461)73, tão acertados como de algum Mestre da matéria». Por seu turno, o P.' Maurício na Escola
como a Relação da Vida d'E!Reí D. Sebastião do P." Amador Rebelo74 , fontes de primeiríssima dos Moços Fidalgos «alem de Latim lhes lia tambem uma Lição de Mathematica» 76 .
ordem sobre a juventude do malogrado rei, referem-se com pormenor a essa ESCOLA PARTICU- Vê-se, pois, que à instrução de nível primário seguiu-se, como era de esperar, o estu-
LAR DE MOÇOS FIDALGOS do Paço da Ribeira, que podemos considerar a mais influente insti- do preparatório nas «artes» do quadrívio, visando uma formação científica de base.
tuição de ensino não-universitário da época sebástica. O professor de matemáticas de D. Sebastião foi Pedro Nunes: já o era em 1568 77 , e conti-
Segundo o P.' Amador Rebelo, seu mestre de escrita, que o acompanhou desde os nuou a sê-lo pelo menos até 157078 • Os comentários sobre o Tratado da Esfera de Sacrobosco
6 anos até o final da vida, a «Lição dos Moços Fidalgos» teve origem no próprio ensino do
revelam o nível didáctico em que o jovem rei então se achava, o da aprendizagem das
Rei. «Nestes Paços da Rbbeifa, começando aprender latim por entender de quanto proueito noções fundamentais da Cosmografia e da Geometria.
seria e utilidade pera boa criação e ensino dos moços fidalgos, auer pera elles no paço
As informações dos cronistas acabam; mas não parece crível gue os estudos de D. Se-
escolla particular, ordenou se lhe desse principio e a ouuesse dally por diante, e que fosse
bastião aí tivessem terminado. Quem quer que conheça o grau de especialização e comple-
della Mestre um Religioso de nossa Companhia pera a qual foy elleito o Pe. Maurício,
xidade que tinham atingido nesse final de século XVI as actividades bélicas (nomeadamente a
homem uirtuoso e de bom exemplo, e de q se esperaua o faria com satisfaçaõ, e a Rainha
Artilharia e a Arquitectura Militar) e a paixão com que o Rei a elas se dedicava, lidando com
folgou muito de se introduzir esta liçaõ de latim, por lhe parecer, seria tambem occasiaõ a
engenheiros e soldados, decidindo estratégias e a construção de fortalezas 79 , não deixará de
ElRey e motiuo de estudar com mais gosto, e que poderia ficar bem em algúa casa junto
pensar que, tal como os outros príncipes do seu tempo, ele recebeu a instrução teórica nos
adonde ElRey aprendia, porque ouuindo disputar, e altercar os moços sobre suas lições, e
segredos bem guardados dessas disciplinas, que ao cosmógrafo-mor e ao engenheiro-mor
assistindo as uezes a suas disputas, como fazia, lhe façilitaria e aliuiaria o trabalho do
competia dar-lhe. Esta viria após a conclusão das «artes)), que duravam em regra três anos.
estudo, e assy o mostrou depois a experiençia e o bom sucesso q teue, e o fruto que daquy
Em qualquer caso, a idade normal de principiar tais estudos eram os 18-19 anos 80 .
se tiraua. E mandando ElRey fazer rol dos moços nobres q andauaõ no paço e o seruiaõ
A prova de que assim sucedeu encontramo-la em outro escrito (simples exercício
filhos de Snõres e fidalgos principaes, se deu prinçipio a esta liçaõ com hum bom numero
escolar, sem dúvida) atribuído a D. Sebastião: o tratado «Da forma dos Exercitas, da forti-
delles, e com muito applauso de todos, e gosto particular dos pais, por verem que seus
filhos por esta uia aprenderiaõ com o latim os bons costumes, e ficariaõ mais conhecidos e ficação dos redutos e trincheiras, do tempo de sair delas ao inimigo, do modo de assaltá-lo
81
fauorecidos dElRey [... ] dally por diante com estas cousas e outras q uiaõ em ElRey, hiaõ e combatê-lo)) . Só alguém versado na «disciplina militar» e nas «artes da guerra» (a castra-

com o latim aprendendo o q lhes conuinha pera virem a montar, e sere homens dignos de metação, a regra dos batalhões, a fortificação) poderia escrever uma obra destas.
cargos grandes, e assy depois os uieraõ a ter, e a ser de nome e estima no serviço dElRei.» 75 Nesse ensino de grau universitário voltou a ter Pedro Nunes por mestre. O velho
O testemunho do P." Amador Rebelo é claro e irrefutável: quando D. Sebastião iniciou o cosmógrafo-mor (já com 70 anos) era mandado vir residir na corte por D. Sebastião aos 11
estudo do latim (cerca de 1562) começou a funcionar no Paço um ensino paralelo para a de Setembro de 1572; e aqui se encontrava instalado a 25 de Abril seguinte, com a invejável
educação dos jovens cortesãos, que tinha por fim acompanhar e encorajar o rei nos seus estu- tença anual de 80 mil reais, igual à soma dos seus proventos anteriores 82 • A única explicação
dos. Esse grupo de jovens da mesma idade, a que as crónicas e miscelâneas quinhentistas cha- para esse facto, já apresentada por Teófilo Braga83 , é ele ter sido «chamado para Lisboa em
mam «a chacotada de el-rei», comprazendo-se em narrar as suas brincadeiras juvenis para, por 1572 para mestre de matemática de D. Sebastião». As suas lições incluiriam leituras de Fí-
contraste, melhor fazer ressaltar a personalidade complexa de D. Sebastião, haveria de acompanhá- sica, Geometria especulativa, e suas aplicações à Cosmografia e à Arquitectura, nisto com-
-lo ao longo da vida até, na maior parte, desaparecer com ele em Alcácer Quibir. Dela saíram os
seus companheiros favoritos, como Cristóvão de Távora, cunhado de D. Lourenço de Almada. 76
D. Manuel de Meneses, Crónica do muito alto e esclarecido Príncipe Dom Sebastião, Lisboa, 1730,
Meneses acrescenta que D. Sebastião prosseguiu no estudo do Latim «governando já 2.ª Parte, cap. XXX, «Dos estudos dei-Rei», pp. 88-89.
77
o Reino», isto é, depois de Janeiro de 1568; e que «ouviu também Mathematica, e fez nela J. Pereira Baião, Portugal CuidatÚJso e Lastimado, pp. 101-102.
78
Cfr. Cartas portuguesas de D. Jerónimo Osório, p. 24.
tais progressos, que sobre a Esfera de João Sacrobosco fez uns comentários mui doutos e· 79
Sobre a valia excessiva que O. Sebastião era acusado de dar a «práticos de baixa condição», ver os Anais
engenhosos; o que visto pelos peritos na matéria, não acharam nada que emendar, antes de Portugal e África (BNL, Arq. Tarouca, N. 0 57: fl. 67v). No mesmo sentido, as críticas de Francisco de Holanda
(Da Fábric,t que falece ... ) e advertências de Camões contra os «scientes» (cfr. «syemricos» no Tratado) no final de
Os Lusíadas (Canto X, 152-153).
73 80
Os apontamentos de O. Aleixo de Meneses, aio do monarca, foram utilizados pelo seu parente D. Ma- Mário Brandão, A Educação de D. António, Coimbra, 1939, pp. 17, 92 e 56-65.
nuel de Meneses, cuja Crónica de D. Sebastião (Lisboa, 1730) foi publicada postumamente. 81
D. Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, llI, p. 677.
74
F. Sales Loureiro, Reku;ão da Vida d'El-Rei D. Sebastião, sep. da Revista da Faculdade de Leu-as de Lisboa, 1977. 82
J. de Carvalho, lug. cit., p. 57.
386 75
F. Sales Loureiro, ob. cit., pp. 38-39. "Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, II, Lisboa, 1895, p. 229. 387
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preendendo Vitrúvio. Assim fizera com o Infante D. Luís. Mas haviam decorrido já trinta da construção, a par das artes militares e da matemática, tal como sucedia na Academia de
anos, os saberes tinham evoluído e se especializado, e o mais certo é que o mestre de Madrid e seria corrente nos séculos XVII e XVIII. Numa palavra: estamos diante de um texto
D. Sebastião, neste campo específico, fosse substituído pelo próprio arquitecto-mor. que nos remete às origens do ensino e da teorização da Arquitectura no nosso país.
No que toca à educação científica idêntica na «Escola Particular de Moços Fidalgos»,
não possuímos qualquer informação. Teria ela continuado a existir? Tratando-se de uma Estabelecido este facto, passamos a ver o Tratado sob uma nova luz, e muitas das suas
escola particular, isto é, cujo recrutamento não se renova todos os anos, e sim ia acompa- dificuldades esclarecem-se. Antes de mais, a extensão do próprio conteúdo, que se organi-
nhando passo a passo a progressão nos estudos do rei, é de presumir que sim. Mas em que za sobre um campo epistemológico rico em conexões inesperadas. Depois, as modalidades
condições, e sob que oi'ientação? da expressão e argumentação, dotadas de uma estrutura lógica e uma capacidade de síntese
É de supor que também um ensino de grau superior ali fosse ministrado, em simul- que denunciam tanto a atracção formal dos tratados científicos da época, como a forma-
taneidade com o de D. Sebastião: isto é, a partir de 1573. Este preciso momento marca o ção escolástica do autor. Por fim, o esforço de racionalidade, o cuidado da documentação,
início da conjuntura de pré-guerra, em que os arquitectos e engenheiros militares tiveram com a tradução cotejada dos manuais estrangeiros, em suma, a ambição científica e densi-
papel primacial. Algumas obras nascidas nesse ambiente mostram-nos, se não «a nação em dade técnica do escrito. É na sua finalidade didáctica que reside a melhor explicação para
armas» (Queiroz Veloso), com certeza a corte vergada ao peso de tais problemas: para não essas características.
falarmos na exortação final de Os Lusíadas (1572), citemos o Soldado Prdtico de Diogo do Não se trata, porém, de uma tecnicidade integral, centrada na prática (e na teorização
Couto (escrito na corte em 1570-71), que é o seu reverso; as já citadas Inscrições Militares dessa prática) para instrução de artífices e construtores, como era o caso, por exemplo, dos
de Isidoro de Almeida ( 1573), e as perdidas Instruções dm fortificações do reino do Algarve tratadistas espanhóis dos anos 60 (Rodrigo Gil, Hernán Ruiz, Vandelvira). Embora não
do arquitecto Afonso Álvares (1571), ambas encomendadas por Martim Gonçalves da faltem ao longo do tratado alusões ao valor da experiência, a marcha fundamental do seu
Câmara. Com ainda mais interesse, por conterem testemunhos da rivalidade e despeito pensamento não é pragmática, antes obedece a um tipo de exposição aristotelizante, de
que rodearam a influência dos novos arquitectos na corte - senão mesmo uma alusão definição em definição, dividida em «capítulos» e «itens», num discurso assertivo e essen-
directa ao nosso tratadista-, temos dois manuscritos, de características muito semelhan- cialmente teórico. O autor parece, sobretudo, interessado numa operação estratégica de
tes: o Livro da Fábrica das Naus, do P.' Fernão de Oliveira ( 1570-72), que alude concreta- grande alcance, destinada em última instância a reinvindicar o valor humanístico da arqui-
mente à existência de tratados, dizendo no Prólogo que «na architetura se esmerão munto tectura e a alta dignidade do seu corpo profissional.
os homês officiaes della, & escreum preceptos & regras della»; e a memória de Francisco A que se destinava, pois, o escrito qual a sua «função»? Parece poder depreender-
de Holanda Da Fábrica que falece à Cidade de Lisboa (1571), amargurada defesa contra os -se do seu conteúdo que os objectivos imediatos visavam, além da mera instrução prática,
arquitectos militares que detinham os favores do Rei. São esses elementos de um «clima» dirigindo-se a um público não de aprendizes, mas de eventuais interessados no reconheci-
(em certos casos, de verdadeira psicose de guerra) que nos levam a pensar que a instrução mento social da profissão e nos destinos da arquitectura, isto é, a um público de conhece-
da juventude cortesã não escaparia a tais preocupações. A Escola do Paço justificava-se, dores e responsáveis. Por outro lado, entre o caudal de dados técnicos entrevê-se, em nossa
agora mais do que nunca. opinião (pois julgamos ser a D. Sebastião, o mais «aconselhado» dos nossos reis, que se
É sobre este pano de fundo que o códice da BNL se vem inserir, de modo quase dirige o tom conselheiral do foi. 16v), a intenção de fornecer ao «Príncipe» e seus colabo-
providencial. Escrito na corte, em 1575-6 (sublinhe-se a data), pelo próprio arquitecto- radores os instrumentos que lhes permitam empreender uma política eficaz de constru-
-mor; expondo a sua matéria, ao mesmo tempo especulativa e prática, com o tom didác- ções, isto é, os critérios gerais para defini-la e os conhecimentos úteis ao seu controlo.
tico do «tratado», ele torna-se integralmente compreensível no contexto daquele ensino De facto, enquanto um Sérlio ou um Palladio fizeram autênticos álbuns ilustrados,
ministrado na Escola do Paço. Não podemos, mesmo, evitar de pensar que a intentada destinados a promover suas ideias e projectos junro da classe aristocrática, que constituía a
publicação por Holanda do seu polémico memorial (o visto do censor, Frei Bartolomeu sua principal compradora (como fez o Holanda com D. Sebastião), é outra coisa que
Ferreira, data de 13 de Abril de 1576) surgia como uma antecipação ao tratado de Rodrigues, vemos no tratadista de 1576. Para ele, o problema da relação entre a teoria e a prática
cujo êxito na corte ele invejava. Por outro lado, herdeiro tanto da tratadística italiana de parece pôr-se no terreno do imediato, caso a caso, sem olhar a tipologias prévias nem a
arquitectura como da tradição científica emanada de Pedro Nunes (de quem imita inclusiva- questões formais, mas às exigências de funcionalidade e economia. Procurando reduzir a
mente a linguagem), ele responde às condições da presumida cátedra de Arquitectura Mili- linguagem arquitectónica aos seus elementos mínimos, ele não concebe o seu papel como
tar, anexa à do cosmógrafo-mor. Ti-ata-se, portanto, ao que tudo indica, de um documento o de convencer seja a quem for. Não visa aliciar os poderosos ou os centros de decisão
388 nascido da primeira tentativa entre nós conhecida de organização do ensino formal da arte (a quem só elipticamente se dirige), tal como não pretende instruir os seus colegas de 389
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classe. Demasiado minucioso no pormenor técnico para agradar àqueles, e demasiado É certo que este programa não esgota a totalidade de conteúdo do Tratado, tal como 0
especulativo e livresco para poder servir aos outros - isto é, nem guia estético nem manu- temos nas mãos. O autor modificou no decurso da escrita o seu primeiro projecto tratadístico,
al prático-, quem, pois, poderia ter sido o seu destinatário? inicialmente limitado à Arquitectura Militar, ampliando-o para um plano muito mais vasto,
Se tivermos em conta o nível de competência e o tipo de informação que ele veicula, alargando a toda a esfera da Arquitectura e domínios afins, como a Geometria e a Perspecti-
torna-se claro que esse público era o dos «prdticos,, ou «entendedores,, (são termos que va: sem dúvida, movido não só pela força do «mito» de Vitrúvio, como pela crescente pressão
ocorrem no próprio texto), isto é, todos aqueles que tinham nas mãos o poder concreto da tratadística italiana (designadamente o prestígio de que gozava Sérlio). Desse duplo salto
sobre as obras, dirigindo-as e decidindo no local: governadores de praças, provedores de - da construção militar à arquitectura em geral, e desta à sua integração nas matemáticas:
obras, tesoureiros, etc~ N;: hierarquia profissional, estas funções estavam acima das do ou seja, de um tratado sectorial de fortificação a um verdadeiro tratado de arquitectura, e por
«mestre,, (o mais baixo cargo que aparece referido no tratado, estando dele, significativa- fim a uma teoria global das proporções, visando erguer a sua disciplina à categoria de ciência
mente, ausentes o pedreiro, aparelhador, carpinteiro, etc.), e imediatamente abaixo das do exacta - guardam as marcas as próprias páginas do manuscrito, com as suas indecisões,
rei e seus ministros, de que eram os executores. Assim se explica a singular impressão que rasuras e modificações introduzidas pelo punho do autor84 • A própria interrupção do texto,
produz em nós o Tratado, sem o «odor a cal e terra,, das páginas de Alberti nem o perfume deixado incompleto e sem título, terá que ver com essas razões internas de alteração do plano
humanístico de tinta e papel que evola de Sérlio ou Palladio. Por muito que o autor nos e refundição dos materiais, tanto quanto com as eventuais razões externas que terão levado à
fale da sua experiência nos estaleiros da construção, há nele o tom de contabilidade buro- frustração do projecto. Não cabe nos limites deste trabalho averiguar o que isto tem de
crática e vaidade profissional de quem escreve para alguém que, como ele, circulará decer- sintomático da situação e das tendências da cultura arquitectónica portuguesa. O que inte-
to entre os materiais e lidará com os operários, mas sem sujar as mãos. É obra de gabinete, ressa sublinhar é a força desse impulso inicial, gerado nas necessidades e na experiência di-
de «estúdio,,, não de oficina de trabalho ... dáctica do arquitecto-mor na Escola do Paço da Ribeira. O dinamismo e entusiasmo que se
Nessa faceta do Tratado reside a sua originalidade. O seu fim não é instruir técnicos cristalizaram na forma final do Tratado, só confirmam a seriedade desse ensino, em sua dupla
nem formar o gosto de clientes, mas preparar os gestores de obras públicas, aos quais exigência de teoria e operatividade.
procura incutir uma boa educação na arte e propagandear a nova imagem do arquitecto À vista disso, não devia surpreender-nos que um dos alunos de mestre António
como artista liberal. Ainda que liminarmente visando um público mais vasto, o seu desti- Rodrigues, o seu discípulo número um, e um dos mais ilustres fidalgos do Paço, venha
natário directo era esse corpo de altos funcionários régios por cujas mãos passava a maior aparecer alguns anos mais tarde ocupado, com carácter profissional, em obras de engenha-
parte da construção civil e militar do país. Identificando-se com eles, o nosso tratadista ria hidráulica nas lezírias do Ribatejo ... É um facto para o qual, realmente, não conheço
simultaneamente definia-se como homem de uma certa classe, e marcava a distância que paralelo. Trata-se uma vez mais de D. Lourenço de Almada.
separava os verdadeiros arquitectos dos mestres-pedreiros, simples oficiais mecânicos. Que ele frequentou a Escola Particular do Paço, prova-o o figurar nas listas de mora-
É à luz dessa necessidade de redefinir uma relação entre didáctica e teoria, e entre dores de 1570 e 1576. Aí terá sido aluno de Pedro Nunes e de António Rodrigues. Que
teoria e prática da Arquitectura, como base para a formação da elite cortesã de futuros veio a tornar-se insigne «matemático» (em toda a latitude que o termo possuía), também já
responsáveis («pera virem a montar e serem homens dignos de cargos grandes", como dizia o vimos. Pois o mesmo D. Lourenço reaparece-nos, volvidos seis anos sobre aquela data,
o P." Amador Rebelo), que ganha sentido a intervenção docente do arquitecto-mor na na fase mais dramática da decadência de sua família, a superintender à abertura conserva-
Escola Particular de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira. Paralelamente às lições de Mate- ção de canais de irrigação nos campos de Salvaterra de Magos, onde era grande proprietá-
mática e Cosmografia de Pedro Nunes, António Rodrigues aí ensinaria aos jovens fidalgos, rio, com o plebeíssimo ofício de Mestre das obras das valas ...
destinados à carreira das armas e da governação, as noções elementares da Geometria apli- Este era um cargo que envolvia um alto grau de especialização profissional, ocupado
cada ao desenho arquitectónico e à perspectiva, os princípios teóricos da Engenharia e da desde sempre por oficiais mecânicos de carpintaria e pedraria (João Fernandes, João André,
Fortificação, os métodos e segredos da arte de edificar bem e barato, como convinha ao Vicente Camelo, etc.). Achava-se, ademais, regulado por um regimento que estipulava as
serviço do rei. O programa de estudos (como, no essencial, o retém o Tratado) era consti- obrigações e o salário do seu detentor85 , a que só por mercê especial do rei ele se podia prestar
tuído por leituras comentadas de Euclides, de Vitrúvio, de Sérlio, com destaque especial
para o compêndio de Pietro Cataneo, o teorizador do urbanismo renascentista; seguindo- 84
Esse o sentido que atribuímos às substituições, em número de dez, dos termos «fortificador» e «fortale-
se exercícios práticos e explicações, segundo o método pedagógico por excelência que era o ~a», por «arquitecto» e '.'edifí;io» (fls. 11 a 13). Explicar esse facto, no contexto da cultura artística portuguesa da
ep~ca, levar-nos-ia muito alem do âmbito deste trabalho, limitado às condições históricas imediatas de compo-
diálogo, de que o Tratado conserva vestígios, como vimos. Era, pois, um amplo espectro s1çao do Tratado.
390 de disciplinas, ministradas segundo uma orientação essencialmente teórico-prática. "'Regimento das liziras e pauis, 1576 (cópia do século XVIII: BNL, Res. 1206 A, n.º 6). 391
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sem perda do estatuto de nobreza. A,sim, um pouco pateticamente, o chefe de uma das mais Uma nova versão do Tratado, datável de 1579,
nobres casas de Portugal tentava, em 1582, e novamente em 1592-93, beneficiar a periclitante existente na Biblioteca Pública Municipal do Porto
fortuna familiar com os seus conhecimentos de engenheiro diletante, adquiridos sem dúvida
junto do autor do nosso Tratado. Não era, decerto, o fito nos magros proventos do ofício (em O estudo a que atrás procedemos representa o estado da investigação, iniciada no
que, naturalmente, ate se faria substituir por algum criado) que a isso o teria levado, mas a sua final do ano anterior, atingido pelo Verão de 1980 (o atraso da redacção final deveu-se ao
preparação teórica e competência técnica, que o tornavam superior aos próprios profissionais. alargamento das nossas pesquisas à Espanha, graças ao apoio da Fundação Calouste
Vale a pena transcrever na íntegra o documento que tivemos a surpresa de encontrar Gulbenkian, e às obrigações de docência). Em Setembro daquele ano, em visita à Bibliote-
na Torre do Tombo, tes~m~nho tanto da triste história do fidalgo quanto da eficácia do ca Municipal do Porto em busca de possíveis influências do tratado sobre a literatura
ensino do arquitecto-mor: militar posterior, pedi à consulta, por mera rotina, um manuscrito da colecção de docu-
mentos militares setecentistas do 2. 0 Visconde de Balsemão, entrada em 1833 na «Real
Dom Lourenço d'allmada sobre as obras dos vallos Biblioteca Pública» do Porto, que aparecia no catálogo sob o título de Proposições matemd-
Eu elRei faço saber aos que este allvara virem que eu bem ye per bem e me praz que neste ticas para uso naArchitectura. Recebido o códice, encadernado em primoroso couro grava-
ano presernte de 1592 e o que vem de 93 dom Lourenço d'allmada tenha mrguo de mãdarfàzer do, e folheando as suas páginas cobertas de excelente caligrafia, verifiquei tratar-se de uma
as obras dos vallos das terras do campo de Sallvaterra e abrfr os que dyso tiverem necisydade e sequência de «definições» e «proposições» geométricas, fazendo lembrar o códice de Lis-
tapar as quebradas se as nelias ouve1; conforme a hú meu allvara per que ouve por bem o ano de boa, que tão bem conhecia; e logo me apercebi de que muitas passagens, desenhos, expres-
1582 que eile tyvese o mesmo carguo. O que asy hey por bem vista a eformaçaõ que se deste caso sões e frases inteiras eram idênticos. A mais atento exame os motivos da capa revelaram-se
tomou em minha fiizenda e com declaraçaõ que ho dito dom Lourenço hasystird no dito negocio medalhões renascentistas, como no século XVIII já se não usavam; e certos pormenores da
todo o tempo que pera iso for nesesario porque naõ o fazendo asy poderey prover na obra dos letra apareceram como mais arcaicos do que à primeira vista os tinha julgado.
ditos va!los na mtmeyra que ouver por meu serviço. Portamto mando às justiças, ofeciaes, etc. a O livro abria com uma Dedicatória Ao mui ilustre senhor o senhor Dom Manuel de
que este ai/vara for apresentado que no modo sobredito deixem ao dito dom Lourenço emtemder Portugal, em que não é difícil reconhecer o D. Manuel de Portugal (1520-1606), amigo de
nas obras dos ditos vallos por este ano presente e o que vem como dito he e o cumpmõ e guardem Camões; e fazia alusão a outro livro companheiro deste, que trataria «das partes que há de
como se nele contem sem duvida que a iso ponhaõ, posto que ho effeito del!e aja de durar mais ter a região, e o sítio, e a água, e o compartir do sítio, e as partes da matéria que convém ao
de hú ano sem ébarguo de ordenaçaõ é contrario. - Gonçalo Ribeiro ofez elixboa a 20 dias de bom fabricar», isto precisamente, o conteúdo do códice da BNL ... Finalmente: a marca de
julho de 1592,e eu Ruy diaz de meneses a fiz sprevei: água do papel era igual à que tanto trabalho me havia custado a identificar, o cacho de uvas
(ANTT, Chancelaria de Filipe I - Padrões e Doações, Liv. 28, fls. 33v-34.) ladeado por um A e um F. Não podia, pois, haver mais dúvidas. Estava diante de uma nova
versão - redacção definitiva, ou versão «de luxo» - do manuscrito de Lisboa! Com-
Sem dúvida que não eram estas as esperanças que o seu mestre depositava nele em preende-se o alvoroço com que fiz esta descoberta, que vinha coroar meses de esforço, nem
1576! Mas o que este notável documento nos confirma, é não só a versatilidade do ensino sempre convicto.
a que fora submetido D. Lourenço de Almada, como o tipo ideal de audiência jovem, Terminada, alguns meses mais tarde, a análise deste segundo manuscrito e a sua colação
culta, «moderna», votada a grandes feitos de armas ou de espírito - que era visada no com o primeiro - que era, e contnuou a ser, o objecto central deste estudo - , podemos
magistério e na obra do autor do Tratado de 1576. O mestre António Rodrigues (pois nos afirmar que ele em nada veio alterar as conclusões já alcançadas; antes pelo contrário,
parece, agora, indubitável que um e o outro são a mesma pessoa) viveu o bastante para ver permitiu precisar alguns pontos em dúvida, reforçar diversas opiniões, e até confirmar
frustrar-se essa tentativa pedagógica e deixar inacabado o seu escrito, sem perspectivas de algumas hipóteses. É nesta perspectiva de controlo da pesquisa anterior que, sucintamen-
publicação. Mas este chegou até nós, como testemunho vivo de uma conjuntura, doam- te, daremos conta em seguida de alguns dos seus aspectos mais importantes, guardando
biente excepcional em que nasceu, e da cultura a que estava inexplicavelmente ligado. para outra ocasião o estudo dos muitos problemas que os dois manuscritos levantam no
seu conjunto.
O códice, in-fólio (32 x 22,5 cm), consta de 43 folhas de papel não-numeradas escri-
tas de ambos os lados, estando as 2 guardas e as 3 últimas em branco. A encadernação em
couro gravado é, sem dúvida alguma, da época (vi uma idêntica em um códice da Biblio-
392 teca de Évora datado de 1575), sinal do alto valor que ao livro era dado. Irmana-o ao 393
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códice de Lisboa tanto o lugar de origem (os Viscondes de Balsemão eram de Lamego) alusões a «os Italianos» (f1s. 15v e 35v); e as referências classicizantes (saudação latina
como a falta de qualquer elemento externo de identificação. Um título plausível ocorre no «vale»: fl. 2; anedota do filósofo Diógenes: f1. 23v) são temperadas por um ponto de vista
início (f1s. 1 e 2): princípios de Mathemathica, tratado de pedaços de mathematica. A autoria moderno, capaz de chamar «amigos» às gerações anteriores (cfr. elogio do arco gótico-
revela-se no «eu» do prólogo Ao mui illustre senhor, o Sr: Dom Manuel de Portugal e da -manuelino de terço-ponto, fl. 8).
introdução Ao lector. O que lhe confere lugar de relevo no âmbito da tratadística maneirista é a sua orien-
D. Manuel de Portugal (Vimioso), a quem ele está dedicado, é hoje mais conhecido tação resolutamente matemática, em articular o lugar central que nela ocupa o conceito
como poeta maneirista protector de Camões, que lhe deveu a publicação d'Os Lusíadas e pitagórico de proporção ou da boa forma (fl. 27), entendida não somente em termos geo-
retribuiu com a famosi! od~ «A quem darão de Pindo as moradoras»: Por Mecenas a vós métricos mas também, mais universalmente, em termos musicais (cita, a f1. 3, Franchino
celebro e tenho, E sacro o vosso nome farei, se algúa cousa em verso posso, Senhor D. Manuel de Gafúrio, o maior teórico musical do Renascimento) e em termos astronómicos (refere um
Portugal. Foi, também, acérrimo partidário do Prior do Crato, um dos poucos excluídos «Joachimo» a fls. 28v e 29v, que não é senão Jorge Joaquim Rheticus professor de matemá-
por Filipe II da amnistia geral. Seu interesse pela arte da fortificação documenta-se desde ticas em Wittenberg que, em 1540, havia publicado a Narratio prima, apresentação públi-
cedo: por indicação sua foi contratado em 15 59 o engenheiro militar Tomás Benedito de ca das teorias de Nicolau Copérnico). A tendência para a matematização da arte, que já
Pésaro, que devia conhecer da Itália (talvez de Malta). Embaixador em Castela em 1578, notáramos no texto lisboeta de 1576, amplia-se três anos depois, numa muito dogmática
D. Manuel de Portugal aparece em 1579-80 como «Provedor-mor das Terças do Reino» concepção da Arquitectura como ciência exacta, que antecipa - e ultrapassa - as dos
encarregado da defesa do país, distribuindo armas à população, planeando estratégias con- mais «científicos» tratadistas do final do século, Herrera (Discurso da Figura Cúbica,
tra o ataque espanhol que já se adivinhava, e construindo no litoral, apressadamente, for- c. 1590) e Vincenzo Scamozzi (Jdea dell'Architettura Universale, Veneza, 1615). Essa
talezas em terra e madeira. O Rei nosso senhor a que se refere a dedicatória é, pois, sistematicidade concatenada e rigorosa é levada às últimas consequências possíveis em
D. Henrique, não D. Sebastião; e a data há-de ser meados de 1579, no interlúdio optimis- 1579: o «Livro de Geometria», na versão anterior apenas um capítulo deslocado para o
ta em que o velho cardeal ainda gozava de restos de saúde que lhe permitiam pensar em final, vê-se agora atribuir o primeiro lugar, e quase triplicar de extensão. Vitrúvio (citado
casar-se para assegurar a sucessão (de Março a Outubro, seg. Queiroz Velloso). Estes fac- somente uma vez) é suplantado por Euclides (citado quinze vezes).
tos, juntos com a (agora mais que provável) dedicatória anterior a Martim Gonçalves da Neste, que podemos considerar o 1. 0 volume da nova versão do Tratado, agora em
Câmara, e a ligação a D. Lourenço de Almada, definem um «clima» e um círculo de dois volumes, contam-se três partes diferenciadas: as Definições, em número de vinte e
relações que era o dos bons portugueses, nacionalistas e anticastelhano - motivo plausível duas, que simplificam e alargam as quinze de 1576, tendo por fonte essencial a Euclides
do afastamento de António Rodrigues da corte filipina e do progressivo silêncio que sobre (na edição Campano-Zamberto, Geometricorum Elementorum libri XV, Paris, 1516, 1537
ele caiu. Excluído dos grandes empreendimentos régios, como S. Vicente de Fora e o novo e 1546 - a mesma usada por Pedro Nunes); 31 Proposições tiradas textualmente do «Pri-
Paço da Ribeira, a que tinha direito pelo seu cargo, devemos imaginá-lo ocupado em obras mo Livro de Geometria» de Sérlio (Il Primo Libro d'Architettura, Paris, 1545; Veneza,
de província, ou nos palácios e «villas» dos fidalgos seus conhecidos que então se cons- 1551, 1559 e 1566), apenas alterando a sua ordem e traduzindo prolixamente os dizeres;
truíam: a quinta do próprio D. Manuel de Portugal em Belém (origem do «Palácio de e, por fins, um tipo novo de teorema que surge aqui, tanto quanto sei, pela primeira vez
Belém»), pensada em 15 7 5, os solares dos Alma das em Condeixa, Lagares d' El-Rei (Alva! ade) num tratado de arquitectura com o nome significativo de Proporções, no total de 15, tam-
e Rossio, etc. bém elas quase literalmente tomadas de Sérlio - que, no entanto, é referido apenas uma
Qualquer que fosse o título e a forma da sua obra, caso tivesse chegado a ser impressa vez para ser censurado pelos seus «descuidos ... » (fl. 24v). No final, há uma longa secção,
(ele fala em estes dous volumes - o da BPMP e o da BNL- mas diz também querer tirar algo caótica, de mais 18 proposições não numeradas, colhidas em Euclides, Rheticus e «ou-
à luz outra obra que trago entre as mãos, que creio não serd menos proveitosa que esta ... ), uma tros autores» sobre a raiz quadrada, trigonometria, e instrumentos de medição topográfica
coisa é certa: a sua ambição de fazer obra imaginativa (fl. 34v: são tantos os pensamentos que e arquitectónica, que é necessário comparar com as fontes e com o Cap. 15 do códice
ocorrem ao arquitecto) e inovadora, da qual resulte muito proveito à nação Portuguesa, mas lisboeta (note-se que o Livro de Perspectiva não aparece). Uma edição crítica -- a que é
também às estrangeiras (fl. 2). urgente proceder - deverá ter em atenção estes factores, procurando respeitar a vontade
As duas dedicatórias do códice portuense de 1579 constituem o mais vivo testemu- do autor e conciliar numa só as duas versões, eliminando as indiscutíveis falhas de estrutu-
nho humano de um arquitecto do século XVI que poderíamos desejar, com um interesse ra, devidas a erro do copista e/ou indecisão do autor.
que ultrapassa a arquitectura. O resto do texto confirma, como era de esperar, o perfil A primeira impressão, de simples montagem de textos traduzidos e abreviados, desa-
394 cultural que havíamos retirado do de 1576: aparecem os mesmos italianismos, com duas parece uma vez compreendida a intenção essencialmente didáctica desse processo. As de- 395
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monstrações euclidianas e serlianas são explicadas exaustivamente, por seus fundamentos retornamos gostosamente, na esperança de que os dois volumes do «Tratado de Arquitec-

aprovados por razões evidentes especulativas da dita ciência (fl. 8v); há um encaminhar pro- tura», nestas páginas revelados e atribuídos ao arquitecto régio António Rodrigues, consti-

gressivo do espírito do simples ao complexo, de evidente alcance pedagógico, em que é o tuam, de agora em diante, ponto de referência obrigatório nos estudos sobre a arquitectura
portuguesa quinhentista em sua desejada articulação com a história da cultura.
próprio autor a indicar quais as partes a serem encomendadas à memoria, matematicamente
(fl. 8). Tal como Scamozzi, ele escreve para o estudioso arquitecto (fl. 26), os que quiserem
com estudo especular a operação dela (fl. 2), isto é, o verdadeiro «arquitecto», ou estudante dos
fundamentos teóricos e científicos da arquitectura. Qual fosse o concreto conteúdo social
*'"
destas expressões não 'b sabemos: mas não era, com certeza, aos pedreiros que elas se diri-
Nota
giam. O seu tom de orgulho intelectual - aqui mais acentuado que no texto de 1576 -
e o conceito aristocrático de arte que elas implicam, com a consequente degradação das
[Escritas há 2 décadas, mantiveram-se na íntegra estas páginas tal como foram redigidas
artes mecânicas ao nível da profissão manual, mais parecem próprios de uma Academia de
por um principiante. De então para cá, o avanço da investigação permitiu consolidar as
fidalgos que de uma oficina de artistas, como aquela em que decerto se movia António
conclusões aí atingidas e juntar mais dados sobre o autor: a sua biografia, ligada à região
Rodrigues ... Por todas estas razões, a versão da Biblioteca do Porto parece-nos oferecer
alentejana onde foi proprietário, no vale do Sado de Alcácer a Alvalade; o precoce interesse
ainda maior interesse que a da BNL.
pela arquitectura e intimidade na côrte, onde já em 1546 era «moço da estribeira» da
Um último facto, para terminarmos. Alertado pela referência a Rheticus e pela im-
confiança de D. João III, encarregado de o manter informado do andamento das obras de
portância crescente dessa disciplina irmã da arquitectura que era a Astronomia; e
João de Castilho em Tomar; a residência familiar em Setúbal; a identificação de fontes
tendo já suspeitado da presença camuflada de Copérnico na versão de 1576, julguei útil literárias, sobretudo Pietro Cataneo (L'Archítettum, Veneza, 1554) - o último tratadista-
testar a hipótese de um precoce conhecimento, por difusão livresca, de copernicanismo -generalista vitruviano - , de quem traduz parágrafos inteiros; e a atribuição documenta-
em Portugal no círculo de Pedro Nunes-António Rodrigues. Levavam-me, ainda, a isso os da de obras como Santa Maria da Graça de Setúbal (1576), a catedral de Angra (1570) e a
interesses astronómicos manifestados por D. Lourenço de Almada no seu retiro de Condeixa sacristia do convento de Jesus em Setúbal (1583). Esses dados apresentados com a edição
- um dos primeiros lugares de Portugal, senão o primeiro, onde se usou a recém-inventada do Tratado que se prepara.
luneta astronómica, ou telescópio (de que Galileu, como se sabe, se servia nesses mesmos Hoje, o seu nome é essencial na história da arquitectura portuguesa, representando o
anos para demonstrar a verdade da doutrina heliocêntrica) - e o facto de o seu irmão mais purismo geométrico na passagem da erudição serliana de Diogo de Torralva para o «estilo
moço, André de Almada, aí ter ajudado, com observações e experiências, no início do século chão» (Kubler): é figura conhecida, que tivemos o gosto de resgatar do esquecimento. E o
XVII, o nosso único copernicano declarado, o Padre Cristóvão Bruno. que, por comodidade, podemos continuar a designar por «Tratado de Arquitectura de
Por um desses felizes acasos com que o deus dos investicadores premeia os que o António Rodrigues» - a versão de Lisboa de 1576, um rascunho corrigido pelo autor, e a
veneram, encontrei, de facto, na Bilioteca Geral da Universidade de Coimbra, em mila- «versão de luxo», do Porto (1579) do vol. I pronto para o prelo (qualquer que fosse o título
groso estado de conservação, um exemplar da 2. ª edição do De Revolutionibus Orbium definitivo que o Autor desse à obra impressa) - continua a ser o único exemplo da
Caelestium de Nicolau Copérnico, com a Narratio Prima de G. Joachim Rheticus (Basileia, tratadística portuguesa de arquitectura civil e militar e de urbanismo até agora conhecido
1566) (cota: R-52-11), que pertenceu a D. Lourenço de Almada. O ex-libris manuscrito, no século XVI, instaurando uma tradição de síntese, pragmática, culta e original, que vem
a bela assinatura, a alusão ao conhecido censor de Os Lusíadas Frei Bartolomeu Ferreira até aos dias de hoje: a base teórica duma «escola» nacional. R. M., 1998.]
(activo de 1571 a 1603), não permitem dúvidas: Este tenho com licença do pe. ftei Bertolomeu
Jerreira. Dõ lourenço dalm"ª. Dele passou ao irmão André, que o legou ao Colégio de
S. Paulo, de que ainda conserva o selo.
Com esta última e inesperada «prova real», podemos dar por encerrada a demonstra-
ção que pretendíamos atingir, nos limites que impusemos a esta dissertação. Assim se
fixam três vértices de um triângulo - uma pessoa citada no texto de 1576, um autor no
de 1579 e um livro desse autor, pertencente a essa pessoa na década seguinte - , que
396 fecham o percurso lógico de uma intuição tomada como hipótese de partida. A ela aqui 397
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

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398 • Texto inédiro entregue para publicação em 1997.


Un tema que ha ocupado con frecuencia a especialistas de distintas disciplinas, dando
lugar a arduos debates ha sido e! dei «andalucismo» de América, es decir el problema dei
mayor o menor peso que lo andaluz tuvo en la transculturación desde Espafía a su imperio
americano.
En los campos específicos de la arquitectura y dei urbanismo han interesado siem pre
las relaciones de trasplante y transculturación entre lo producido en las diferentes regiones
de la península espafíola y lo concretado en las diferentes regiones de la península espafíola
y lo producido en América. En estos campos también se ha insistido, con roda lógica en la
importancia dei aporte que Andalucía hizo a Hispanoamérica 1•
Ahora bien, durante los siglos XVI, XVII y princípios dei XVIII, Andalucía, una buena
parte de América y una porción importante de la actual Italia - todo el sur - pertenecie-
ron ai mismo estado. En efecto, los Reinos de Nápoles y de Sicilia o Reino de las Dos
Sicilias, Andalucía e Hispanoamérica formaron parte, durante esos siglos, el imperio espa-
fíol. Dicho de otra manera: las tres regiones estuvieron estrechamente unidas durante más
de dos siglos por el vínculo administrativo de la corona espafíola.
Pero, si las relaciones entre Andalucía y América, además de resultar evidentes, han sido
investigadas, debatidas y reconocidas por diversos especialistas, no ha ocurrido otro tanto
con las conexiones - o ai menos los paralelismos - que existieron entre Andalucía, el
Reino de las Dos Sicílias y América. Quizá ello se haya debido a los enfoques «nacionales»
conque los historiadores han encarado, aisladamente, las historias de sus respectivas regiones.
Espigando en la bibliografía sobre arquitectura y urbanismo, se encuentran menciones sobre
posibles influencias mutuas; abundan, desde luego, las referencias ai origen «italiano» de
muchos elementos arquitectónicos andaluces o americanos ai uso de tratados de los arquitec-
tos manieristas de las tres regiones pero también a la posible transculturación de vuelta de
América a Andalucía o a Sicilia, por ejemplo en la omamentación de la arquitectura de
Fuentes de Andalucía o de la Sacristía de la Cartuja de Granada2 , o en la traza de las ciudades
sicilianas en cuadrícula dei siglo xVJr3. Pero, lo más común es que verificadas ciertas coinci-
dencias, éstas sean atribuidas a tendencias comunes, a analogías antes que a transculturaciones4 •

1
NOEL, Martin, «El Barroco Andaluz y laArquitecrura de la Colonia», en Contribución a la Historia de la
Arquitectura Hispano-Americana, Buenos Aires, 1921.
2
BONET CORREA, Antonio, Andalucía barroca. Arquitectura y Urbanismo, Barcelona, 1978, p. 280.
3 GUIDONI MARINO, Angela, «Urbanística» e «Ancien Régime nella Sicília barroca», cn Storia della

cittá, n. 0 2, Milano, 1977, p. 17.


4 CALVES!, Maurizio y Maria Maneri-Elia, Architettura Barrocca a Lecce e in te,Ta di Puolia, Milano,

1971, p. 25. 401


UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO EN EL REINO DE LAS DOS SICILIAS

Los paralelismos que existen entre Andalucía y el Reino de las Dos Sicílias se hacen en la província de Sevilla, dejan perfectamente legibles el cardo y el decumano con sus
evidentes apenas echamos un vístazo a la geografía: ambas regiones pertenecen al mismo respectivas puertas en la muralla y el foro en el cruce de ambos en las actuales plazas.
ámbíto general, forman parte de los límites oeste y este, respectivamente, de! Mediterrá- Precisamente en un caso como el de Carmona pueden, asimismo, leerse las transfor-
neo occidental, están situadas a la misma latitud; poseen debido a ello, climas semejantes maciones que concretó luego la ocupación islámica. En ella, como en todas las ciudades
que han condicionado producciones agrícolas parecidas y regímenes de explotacíón dei andaluzas y, en buena parte de las sicilianas, es posible descubrir en sus planos actuales las
mismo tipo. La regla es la gran propiedad agrícola de regímen sefiorial. Como afirma irregularidades de su trazado. Aún en una ciudad como Nápoles que no fue ocupada por el
Braudel: «En Sicília, en Nápoles o en Andalucía, los mayorazgos sefioriales se han transmi- Islam, en su plano de 1872-1880 de su zona portuaria, donde edificaban sus casas y sus
tido, sin desmembracioll\es, 'hasta los tiempos contemporáneos.» 5 sedes comerciales los mercaderes extranjeros, podemos verificar la irregularidad extrema
Por otra parte, ambas regiones cumplieron un papel histórico equivalente en la fron- de! trazado, más aún, la aparición sistemática dei adarve, o calle de penetración sin sal ida,
tera norte-sur entre Europa y Africa, entre la Crístiandad y el Islam; sirvieron de puente y dispositivo netamente oriental 6 •
de campo de batalla. El proceso histórico completo muestra un gran paralelismo desde Comenzado el cinquecento, América hizo su aparición en la escena mundial y du-
varios síglos antes de Cristo hasta el siglo XVIII de nuestra era. rante ese siglo y el siguiente fue la protagonista de la mayor y más dpida empresa de
Comienza con las colonízaciones fenícia y griega y el domínio cartaginês. Ambas fundación de ciudades que se haya visto en la historia. En Hispanoamérica se empleó un
fueron luego províncias romanas por más de 600 anos; hacia el findei lmperio, los vánda- instrumento muy sim pie - la cuadrícula - y de manera sistemática: la mayor parte de las
los atravesaron sucesivamente Andalucía, el norte de Africa y Sicília. A] comenzar el siglo doscientas y pico de ciudades que se habían fundado hasta finde] siglo XVI en América dei
VI en Andalucía y las Dos Sicílias dominaban los godos: visigodos y ostrogodos respectiva- Norte, de! Centro y de! Sur no diferían más que en detalles y en la cantidad de «manzanas»
mente. La restauración imperial de Justiniano fue más duradera en las Dos Sicílias y, ense- que contenía la traza, desde 25 como Caracas o Mend<'.z:a hasta 135 como en Buenos
guida, el Islam controló todo el Mediterráneo occidental. La reconquista por la Cristian- Aires. Pero, en 1573, Felipe II había firmado una legislación que, en la práctica, proponía
dad comenzó por las Dos Sicílias, ocupada por los normandos en el siglo XI; los castella- un modelo físico de ciudad, regular pero diferente de la cuadrícula estricta en la que coin-
nos recién entraron en Andalucía en el siglo XIII y Granada seguida bajo el Islam hasta el cidían casi todas las ciudades ya fundadas 7 •
siglo xv. En cambio, ya en el siglo XIII, un reino espafiol, el de Aragón, dominó Sicília. Con Contemporáneamente, con la intención de mejorar las defensas de la costa oriental
esta dote «italiana» Fernando de Aragón, en 1479, se unió con Isabel de Castilla, juntos de Sicília, Ferrante Gonzaga, virrey de Sicília, convenció a Carlos V sobre la conveniencia
conquistaron en 1492, el mismo afio en el que tres buques andaluces, ai mando de! geno- de la construcción, cerca de! pueblo de Lentini, de un centro fortificado que fuera, a la vez,
vês Colón, llegaron a América. lugar de concentración de campesinos. Así surgió, en 1551, Carlentini, nueva ciudad de
A partir de entonces, las Dos Sicílias, Andalucía y América constituyeron regiones tejido regular ortogonal con manzanas cuadradas y rectangulares. Su plaza principal es un
fundamentales dentro dei Imperio Espafiol, hasta que se extinguió la dominación espa- cuadrado de 70 m de lado con 8 calles que salen de sus cuatro ángulos. Su escala, como la
fiola sobre las Dos Sicilias entre 1707 y 1734, afio este último de la llegada a Nápoles de de sus gemelas, las plazas americanas - la de Tarija tiene las mismas dimensiones -
Carlos de Borbón. resultaba insólita para la experiencia europea hasta entonces.
Entretanto, en Nápoles, el virrey Toledo, durante su gestión entre 1533 y 1553,
concretó una serie de reformas urbanas, incluyendo nuevas murallas, nuevos edificios y
nuevos barrios; creció entonces la superfície urbana en un tercio. Su arquitecto fue el
Urbanismo en el siglo XVI espafíol Juan Bautista de Toledo 8 y con él se trazaron ejes de circulación rectilíneos y un
barrio para espafioles con estructura en cuadrícula. Nápoles se transformó, por entonces,
La larga dominación romana fue la primera que dejó sefiales claras de su orden urba- en una de las más grandes e importantes ciudades de Europa 9 . Algo semejante, pero en
no en las ciudades dei Reino de las Dos Sicílias y en las andaluzas. Así, Nápoles muestra
hoy, en su zona más antigua, el ordenamiento rectilíneo de la Neapolis griega y su conso- 6
DE SETA, Cesare, Nt1poli, Bari, 1981, p. 49.
lidación posterior bajo el domínio romano. De! mismo modo, las trazas de Ecija o Carmona, 7
NICOLINI, Alberto, «El Barroco Latinoamericano y las ciudades virreinales», en el Simposio Intemaziont1le
sul Bt1rroco Lt1tino t1merict1110, Roma, 1982.
8
FERNANDEZ MURGA, Félix, «El gran virrey de N,ípoles, D. Pedro Alvarez de Toledo», en Lt1 Hue!la
5BRAUD EL, Fernand, E! Mediterrdneo y el Mundo Mediterrd11eo en la époctl de Felipe II, tomo !, México, de Esp,1íít1 en Italit1, Revista Geográfica Espafiola, Madrid, s/fecha, p. 25.
402 1953, p. 71. 'DE SETA, Cesare, op. cit., p. 95. 403
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS URBANISMO EN EL REINO DE LAS DOS SICILIAS

menor escala, sucedió en Palermo a fines ya dei siglo cuando se ensanchó y se prolongó el hemos dicho, el primer experimento aislado de trama ortogonal en Sicília fue el de Carlentini
Cassaro, la vía que, desde la ciudad griega, había sido eje de unión entre el centro de la de 15 51, pero ai comenzar el siglo XVII la situación internacional favorable para la agricultura
ciudad y el puerto. Esta oleada de urbanismo regular también produjo sus resultados en siciliana hizo posible una reorganización de su territorio por la iniciativa de la aristocracia
Castilla. En efecto, incendiada la plaza central de Valladolid en 1561, Felipe II dispuso su que fundó más de cien nuevas ciudades. Se concentró población de la campana y se consti-
ampliación y reconstrucción en forma de rectángulo perfecto. Fue la primer plaza mayor tuyó un nuevo tipo de habitante campesino-urbano. Los nuevos asentamientos se concreta-
moderna de Espafia 10 • En Andalucía recién a fines dei siglo sigui ente se construyó la Plaza ron en colinas o llanuras, en posición dominante respecto de las tierras de cultivo disponien-
de la Corredera en Córdoba, plaza rectangular cerrada con arquerías en planta baja. do de buenas comunicaciones hacia el resto dei territorio, en particular con la costa y las
ciudades portuarias 14 • Los esquemas urbanos fueron siempre regulares pero no adscribieron
a un único tipo como ocurrió en América. Hubo cuadrículas pero también tramas de man-
zanas rectangulares en una o dos direcciones; hubo sistemas de vías de circulación regulares,
Los siglos barrocos pero también casos en los que se jerarquizaron ejes principales; hubo plazas cuadradas y
rectangulares con calles saliendo de sus centros o de sus ángulos y - a veces - de sus
Las crisis económicas y las epidemias diezmaron a Europa durante el siglo XVII. En ángulos y de sus centros como se prescribía en las Leyes de Indias de 1573 y se había concre-
Andalucía occidental a ello se afiadieron inundaciones y sequías. En 1649 hubo 60 000 tado en América en muy pocos casos, como el de la nueva Panamá de 1671. Ha llegado a
11
víctimas de la peste en Sevilla • No lo pasó mejor Nápoles: la peste de 1656 redujo la afirmarse: «Lesperienza siciliana e certamente tributaria in larga misura della colonizzaziones
población de 400 000 a 150 000 12 . Apesar de esta situación generalizada, en la capital latino-americana e degli strumenti urbanistici che si vengono costruendo a partire della «llegge
siciliana a principios dei siglo se terminó de formalizar lo que sería e! gran esquema axial delle Indie» 15 . Parece difícil imaginar que las disposiciones de! rey no tuviesen algún signifi-
de la ciudad. En efecto, Palermo agregó ai eje montaria-mar, trazado a fines dei 500, el eje cado fuera de las «Indias», especialmente cuando algunas fundaciones iniciales dei siglo como
perpendicular y paralelo a la costa, la via Maqueda. En el cruce de ambos ejes, se creó en Paceco y Vittoria fueron promovidas por famílias espafiolas y con algunas intervenciones
1609 una estupenda escenografía urbana, e! «Quattro Canti», mediante e! ochavado en técnicas de espafioles como la dei padre Seballas 16 •
forma de caras curvas de las cuatro esquinas. Desde este centro, partían los dos ejes en las A comienzos dei siglo XVJII, Sicília se vió sometida a la realización de un enorme
cuatro direcciones cortándose en la muralla en las cuatro puertas principales de la ciudad. esfuerzo intelectual, político y económico para lograr la reconstrucción de una importante
De esta manera quedó configurado un esquema que se inició con la ciudad «Quadrata», cantidad de ciudades dei sureste de la isla que habían sido destruídas por el terremoto de
pasando luego a la división en cuatro partes mediante el «salutífero segno di croce» como 1693. Los danos habían sido tremendos; en palabras dei obispo de Siracusa: «contandosi
rito de reconsagración de la ciudad, que así instauraba un orden sustitutivo dei pintoresco sino ai presente 700 chiese rovinate, numero 250 fra Conventi e Monasteri distrutti
desorden de la ciudad árabe medieval1 3 • 22 Collegiate, due Cattedrali, e 49 tra terre e cittá desolate con il lacrimevole eccidio di
Pero uno de los fenómenos más interesantes dei siglo fue la colonización interna de novecento trema mila persone morte» 17 • El duque de Camastra dispuso de inmediato «la
Sicília mediante la fundación de pueblos de campesinos cuya actividad agraria se desenvolvía reedificación de las ciudades de Catania, Noto y Lentin». En Catania, la reforma consistió
bajo la forma de arrendamientos a la nobleza terrateniente. Como fenómeno sociológico y en la apertura de avenidas rectas y amplias - entre 9 y 19 m de ancho que se concen-
económico se asemeja al de los grandes poblados andaluces de tradición histórica más anti- tran en la plaza de la Catedral comunicándola con el puerto y otras plazas satélites que
gua. Pero desde e! punto de vista físico se identifican - la mayor parte de ellos - con las tienen destinos funcionales específicos. Noto, en cambio, fue trasladada 15 kilómetros
ciudades de espafioles fundadas en América durante e! siglo anterior. En efecto, el trazado hacia el sur y emplazada en un terreno en fuerte declive a 100 metros sobre e! nivel dei mar
regular había sido ensayado a princípios de! siglo XVI en México y había adquirido hacia y a poco más de 5 kilómetros de la costa. La estructura urbana original en cuadrícula se
1530 una forma canónica - la cuadrícula - que se generalizó en toda América. Como ya descubre todavía en el «rialto)), la parte alta de la ciudad. En el «poggio)), la parte baja, se
realizó una corrección formal notable según proyectos de Rosario Gagliardi, activo en

'º CERVERA VERA, Luis, «La época de los Austria», en Resumen Histórico dei Urbanismo m Espafia,
Madrid, 1968, p. 194.
11
BONET CORREA, A.ntonio, op. cit., p. 49. 14
BOSCARINO, Salvatore, Sicília Baroca. Arquitettura e Cittá. 1610-1760, Roma, 1981.
12
DE SETA, Cesare, op. cit., pp. 136-7. 15
GUIDONI MARINO, Angela, op. cit., p. 17.
13
FAGIOLO, Marcelo y Maria Luisa Madonna, II Teatro dei Sole. La rifondazione di Palermo nel cinquecento 16
Idem, p. 17.
404 e l'idea delta cittá barocca, Roma, 1981. "Idem, p. 39. 405
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS URBANISMO EN EL REINO DE LAS DOS SICILIAS

Noto desde 1708. La pendiente natural le permitió organizar un esquema con tres vías apoya en un pedestal. El primem fue el de 1631 en Granada, colocado frente ai Hospital
importantes como horizontales dei terreno y más de diez calles menores perpendiculares a Real; en el siglo XVIII se generalizaron: el «trofeo» deli' Immacolata de 1725 en la Plaza de
las principales. La vía central es el gran canal monumental que enhebra la plaza de los Santo Domingo de Palermo 22 , la «guglia» dell'Immacolata en la Plaza dei Gesú Nuovo de
poderes religioso y civil con la plaza dei mercado. En torno a las dos plazas y a lo largo de Nápoles de 1747 23 y el «triunfo» de la Virgen dei Valle de Ecija de 1766 24 • Estas dos,
18
la vía se acumulan las iglesias y conventos y los palacios de los nobles • La pendiente dei especialmente la última, consisten en una acumulación, casi un torbellino ascendente de
terreno ha enriquecido enormemente la organización ortogonal de manzanas y volúmenes formas arquitectónicas y esculturas hasta culminar en la figura de la Inmaculada.
edificados, en especial en la imponente escalinata frente ai Duomo. La escalinata frente ai Si el siglo XVI fue el de la colonización americana y el XVII el de la colonización de la
Duomo. La escalinata, x;:onto recurso jerarquizante dei edificio catedralicio se utilizó en campina de Sicília, el XVIII fue el siglo en el que, merced a la prosperidad andaluza ya
otras reedificaciones notables de ciudades de la región como Modica, Ragusa y Bucheri. senalada, se cumplió un amplio plan de fundaciónn de poblaciones en el área rural de
Otros casos de reconstrucción fueron resueltos con esquemas urbanos de mayor compleji- Andalucía bajo la dirección de Pablo de Olavide en el último cuarto de siglo. Se concretron
dad geométrica como Santo Stefano di Camasco a partir de una plaza central de la que 44 pueblos y 11 ciudades en las que se establecieron l O000 emigrantes alernanes, suizos y
salen medianas y diagonales a todo lo cual se superpone un rombo formado por otras franceses además de unos pocos espafíoles. En cuanto a la autoría hay razonables dudas si
cuatro diagonales. De los esquemas dei tratado de Cataneo dei siglo xvr habitualmente la responsabilidad de los disefíos fue de un italiano, Juan Bautista Nebroni o de dos fran-
mencionado como fuente posible dei urbanismo americano parecen derivarse los dise- co-flamencos: Casimiro Isaba y Simón Desnaut. La traza de estos centros urbanos tendió
fios rigurosamente geométricos en forma de exágono de Avola y Grammichele. a la cuadrícula pero en los más importantes se combinó la trama básica con ejes principales
Andalucía vivió un próspero siglo XVIII. Si bien Sevilla no era ya la puerta hacia Indias que conectaron accesos y plazas. El caso más interesante fue el de La Carolina, en Jaén
- Cádiz la había reemplazado - tenía todavía casi cien mil habitantes y en la región - donde residió el mismo Olavide - , a lo largo de cuyo eje central se suceden cuatro
había 17 ciudades con más de diez mil, de las cuales la mayoría eran grandes pueblos, plazas de distintos tamafios y formas 25 •
centros de actividad agrícola. Estas ciudades y pueblos adquirieron en el siglo XVIII el pai- En las cercanías de Palermo, en la segunda mitad dei siglo XVII, se había producido el
saje casi definitivo de su área central con la construcción o completamiento de gran canti- fenómeno de la instalación suburbana en villas. Los Branciforte-Butera construyeron la suya
dad de ediftcios religiosos y civiles, la ampliación de barrios nuevos de trama ortogonal o en Baghería y fueron imitados por otras famílias aristocráticas sicilianas. Hacia 1769 se ter-
en cuadrícula regular, la apertura de nuevas calles rectilíneas y la definición de plazas, minó de configurar un sistema urbano triaxial triangular: un eje mayor de casi 1500 metros
alamedas o fuentes. Merecen cita especial las plazas octogonales de Archidona y Aguilar de parte de la villa principal, perpendicular a éste el eje de la iglesia matriz; la hipotenusa está
la Frontera y el notable dispositivo urbano alrededor de la fuente de Neptuno en Priego de formada por la villa Palagonia con su avenida de acceso. A todo ello sele suma el resto de la
Córdoba. Un aspecto peculiar de la ciudad barroca que tiene notables manifestaciones en edificación contenida en manzanas rectangulares 26 . En América el siglo xvm afíadió poco de
Andalucía y en las Dos Sicilias, fue el uso festivo dei espacio urbano ai que se aderezaba nuevo a la manera de resolver la estructura urbana de los nuevos asentamientos. Hubo sí,
con diversas construcciones efímeras que respondían ai «cargado calendario dei santoral, crecimiento cuantitativo y enriquecimiento funcional y- por otra parte- el completamiento
de nacimientos y óbitos reales, proclamaciones y visitas regias, de lejanas vicrorias e inven- dei paisaje urbano mediante la continuidad de la edificación en los bordes de sus manzanas
tadas ocurrencias y ocasiones» 19 • En Siracusa se contaron 39 fiestas en 1651, en Palermo céntricas 27 .
20
43 en 1615 y en Messina 54 en 1681 • También en América abundaron las festividades
que transformaron los espacios urbanos como la documentada para la plaza de Panamá
cuando en febrero de 1748 se «celebró toros, comedias y máscaras» 21 • Otro elemento ca-
racterístico de la celebración religiosa de los espacios urbanos es el «triunfo» andaluz, un
homenaje ai Misterio de la Inmaculada Concepción materializado por medio de la coloca-
ción de una imagen de la Virgen María sobre una gran columna que - a su vez - se
22
GANGI, Gaetano, II Barocco nella Sicília occidentale, Roma, 1968, p. 35.
23
BLUN"I~ Anthony, Neapolitan Baroque and RococoArchitecture, London, 1975, p. 125.
24
"DI BLASI, Luigi, li-a Controrifanna e !Iluminismo: L'Utopia. Noto Barocm, Noto, 1981. HERNANDEZ DIAZ, José, Antonio Sancho Corbacho y Francisco Collantes de Terán, Catálogo Ar-
19 BONET CORRE.A, Antonio, op. cit., p. 253. queológico yArtístico de la Província de Sevi!la, tomo III, Sevilla, 1951, p. 206.
20
TRIGIL!A, Lucía, Simcusa. Architettura e cittd nel período vicereale (1500-1700), Roma, 1981, p. 81. 25 BONET CORRE.A, Antonio, op. cit., pp. 310-312.
21 26
GONZALEZ Y GONZALEZ,Julio, Planos de ciudades Jbemamericanas yFilípinas existente en e!Archivo BOSCARINO, Salvatore, op. cit., p. 73.
406 de lndias, li. Resefia; plano 286, Madrid, 1951. 27
NICOLINI, Alberto, op. cit., PP· 335-339. 407
O ESPAÇO DA COLONIZAÇÃO AÇORIANA
NA DE SANTA CATARINA: SUAS
PARTICULARIDADES E SUAS MARCAS NO PRESENTE*

L!SETEASSEN DE OuvEl//11
Universidade Federal de Santa Catarina

* Este texto foi apresentado no IV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, Rio de Janeiro,
Brasil, 1996 e publicado nas respectívas Actas.
Resumo

O trabalho mostra alguns dos primeiros aspectos na formação da ocupação do territó-


rio da ilha de Santa Catarina, parte da atual cidade de Florianópolis, capital do estado de
Santa Catarina, ao Sul do Brasil, e que ainda constituem traços da sua atual forma urbanís-
tica e paisagem. Estes elementos básicos da organização física referem-se a subdivisão
territorial, quando do assentamento dos imigrantes açorianos na Ilha de Santa Catarina,
trazidos para o sul do Brasil pela Coroa Portuguesa, em meados do século xvm. Visando a
defesa, esta ocupação foi dispersa pelo território da Ilha, e a Coroa estabeleceu, através de
Provisão Régia, a formação de núcleos agrícolas e urbanos que «evoluíram» relativamente
isolados da então Vila do Desterro. O trabalho destaca a importância na formação da
paisagem construída da repartição das terras e da praça enquanto espaço vazio, em torno
do qual se agrupavam os edifícios e que desempenhava funções sagradas e profanas.

Ocupação açoriana na Ilha de Santa Catarina

A divisão e a apropriação das terras na Ilha de Santa Catarina delinearam traços


particulares na sua organização espacial, os quais influem no crescimento e na expansão da
sua ocupação, agora predominantemente urbana. Estes traços têm origem em meados do
século xvrn 1, com a chegada de imigrantes açorianos, trazidos pela Coroa Portuguesa para
fins de defesa do território 2 •
A colonização portuguesa no Sul do Brasil teve, pode-se dizer, dois momentos signi-
ficativos. O primeiro, quando cá chegaram, no século À'Vll, os vicentinos, «paulistas portu-
gueses» através do recebimento de sesmarias, e o segundo com a vinda de colonizadores
açorianos para o Sul do Brasil. É neste segundo momento que ocorre uma ocupação mais

1
Antes dos portugueses, moravam na região e na Ilha (dos Patos), os índios carijós; cujo espaço foi
desestruturado nos primeiros tempos da colónia, com calvez a chegada dos primeiros bandeirantes à caça de
índios.
2
A,; questões de defesa territorial foram determinantes na constituição do Sul do Brasil. A Ilha, embora
dentro do território português pelo Tratado de Tordesilhas, integrava um território visado por espanhóis e portu-
gueses que se estendia até a bacia do Prata, onde localizam-se Buenos Aires e a Colónia de Sacramento. 411
UNIVERSO URllANfSTICO PORTUGUÊS O ESPAÇO DE COLONIZAÇÁO AÇORIANA

efetiva no território, cujas marcas ainda estão presentes na organização urbana e na divisão um pedaço de pano para se cobrir. .. [... ]É uma floresta contínua de árvores verdes o ano
do território na Ilha de Santa Catarina e na cidade de Florianópolis3. inteiro, não se encontrando nela outros sítios praticáveis a não ser os desbravados em
A Ilha, situada ao sul na costa brasileira, representava um porto seguro e fonte de torno das habitações, isto é, 12 ou 15 sítios dispersos aqui e acolá à beira mar nas pequenas
abastecimento, a meio caminho entre o Rio de Janeiro e a Bacia do Prata. Sua defesa, enseadas fronteiras a terra firme ... » (Frézier, in Berger, 1984:23.)
portanto, uma questão geopolítica, levou a Coroa a buscar militarizá-la e ocupá-la. Os ha- Até l 67Y, quando o vicentino Dias Velho 8 se estabelece na Ilha, nenhum povoamento
bitantes da Vila existente, Nossa Sr.ª do Desterro, localizada na costa oeste, junto ao con- havia ainda se formado. Dias Velho recebe a Ilha por Sesmaria e estrutura o núcleo inicial na
tinente, não constituíam uma população capaz de formar os quadros necessários a sua costa ocidental, onde Ilha e continente se aproximam 9 , voltado para a baía sul. Seu empreen-
militarização e ainda ex~andir-se, povoando o território da Ilha com base em empreendi- dimento, embora traçando algumas linhas básicas do núcleo original que se mantém até
mentos agrícolas, na época, padrão na apropriação das terras coloniais. hoje, foi logo interrompido, em 1678, quando Dias Velho foi morto por piratas.
A Coroa organiza através de Provisões Reais a vinda dos colonos e a forma dos seus A pequena localidade, ainda assim, é elevada à Vila, em 1726, viabilizando a criação
pequenos assentamentos rurais dispersos na Ilha e no continente. Transporte gratuito, de uma série de instrumentos para domínio direto sobre o espaço, como a instalação da
promessas de terras, sementes, instrumentos agrícolas e incentivos financeiros atraíram Câmara Municipal, que assumia seu controle através das Normas e Posturas Municipais e,
para o Sul do Brasil um grande contingente populacional do arquipélago dos Açores4, que principalmente, dispunha dos foros da Vila, do recebimento de terras por concessão para
passava dificuldades, epidemias e escassez de recursos. seu rossio 10 e património e do direito de conceder datas, de onde poderia tirar rendimen-
Geograficamente, a Ilha apresenta uma grande diversidade de eventos naturais; desen- tos. Entretanto, este maior controle sobre o espaço limitava-se ao núcleo original e seu
volve-se na direção norte-sul, ao longo e em proximidade com o continente. A costa é recor-
entorno imediato, ficando o restante da Ilha sem ocupação e defesa, questão prioritária da
tada, e seu território, além de mangues, lagoas e conjuntos de dunas, apresenta «terras altas»,
Coroa. Assim que em 1738 cria-se a Capitania de Santa Catarina, estabelecendo a forma-
como dito por Anson5, viajante do século XVIII. Uma seqüência de montanhas que, de norte
ção de um corpo militar e a nomeação do brigadeiro Silva Paes, como governador, com a
a sul, lhe configuram dois lados. O lado ocidental, onde assentou-se o núcleo original e atual
responsabilidade de fortificá-la e garanti-la. O brigadeiro Silva Paes constrói quatro forta-
centro urbano, e o lado oriental, a costa leste, voltada para mar aberto. Este sírio apresentou
lezas, providencia a vinda de um pequeno contingente militar e recomenda a imigração.
barreiras físicas para penetração, ocupação e permeabilidade do território, sendo fator decisi-
A ocupação pelos açorianos incrementa ao mesmo tempo os quadros militares, como
vo também na evolução da ocupação do território da Ilha (Fig. 1).
a população da Ilha que passa a contar com 3000 pessoas e 400 casas, observadas por La
O espaço ocupado na Ilha até a chegada dos imigrantes constituía uma pequena
Perouse em 1783 11 • Espacialmente, este incremento populacional leva a densificação e
comunidade de pescadores, que na descrição de Frézier6, em 1711, contava com, aproxi-
expansão da vila existente, e também a implantação de núcleos dispersos na Ilha: Ribeirão
madamente, 147 brancos, alguns índios e negros e ...
da Ilha na costa sudoeste, Lagoa da Conceição no centro leste, Santo António de Lisboa,
«Na verdade, encontram-se eles em tão grande carência de comodidades da vida, que
na costa noroeste, de onde os açorianos se expandiram, formando Ratones, Canasvieiras e
em troca de víveres que traziam a nós não aceitavam dinheiro, dando mais importância a
Rio Vermelho (Fig. 2).
A imigração açoriana, que durou um período de 12 anos, a partir de 1748, teve seu
3 A cidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, é formada pela Ilha e por uma porção
legítimo início no Edital de D. João V de 31 de agosto de 1746, que dá instruções relativas
continental. No quadro histórico do Brasil, sua ocupação, direcionada por interesses geopolíticos, não alcançou
relevância económica-produtiva a nível nacional ou mesmo estadual. A capital, hoje, não detém a polarização às facilidades, benefícios e incentivos para os casais que viessem se estabelecer no Brasil1 2 •
demográfica e económica do Estado (como na maioria das capitais brasileiras), que é dividida com outras cidades
com maior desenvolvimento industrial. Florianópolis concentrou um papel político-administrativo e de serviços.
4 O arquipélago dos Açores, constituído por nove Ilhas, havia sido descoberto e ocupado pelos portugueses 7
Para as várias tentativas anteriores de ocupar a Ilha, ver Pauli (1987).
8
desde 1427. Entretanto, conforme Barreira (1995), este empreendimento (agrícola) sofreu o isolamento da me- O vicentino Dias Velho é considerado fundador de Florianópolís.
trópole, a exposição a enchentes e sismos, epidemias e escassez de recursos, fazendo da imigração uma alternativa " Dias Velho construiu uma capela onde já estava desmatado e havia um cruzeiro erguido por António
promissora. No período da imigração, de l 748 a 1756, chegaram em Santa Catarina cerca de 5000 pessoas. Amaro, que tentara se estabelecer na Ilha em 1651.
5 «Esta Ilha não tem largura, segundo seus habitantes, mais que 2 léguas por 9 de comprimento. Ela está a 'º O rossio e sua conseqüência sobre o desenho das cidades é um tema estudado por Marx (1991), que
49 graus, 45 minutos de longitude ocidental de Londres e a 27 graus, 35 minutos, até 28 graus de latitude mostra ser este uma das primeiras áreas públicas da cidade, cujo uso e ocupação eram determinadas pelas Câma-
meridional. Ainda que as terras sejam bastantes altas, tem-se dificuldade de descobri-la a uma distância de 10 lé- ras e que são imporranres no desenho urbano de nossas cidades.
11
guas, porque, com este afastamento, ela fica obstruída pelo continente do Brasil, onde as montanhas são extre- Ver La Pcrouse e Lisianky em Berger (1984: 133, 152 e 153).
12
mamente altas, porém, a medida que dela se aproxima, passa-se a distingui-la bem por causa das várias Ilhas entre A imigração visava a ocupação de toda a região sul do Brasil, embora tenha localizado-se em áreas
as quais se aloja e que se estendem para leste.» (Anson, in: Berger, 1984: 62) próximas ao litoral de Sanra Catarina e do Rio Grande do Sul, onde foi fundada Porto Alegre (Porto Alegre dos
6 Frézíer é um viajante do século XVIII que visita a Ilha. Os relatos e as descrições dos viajantes nos séculos XVIII Casais), capital do Rio Grande do Sul. Além disso, houve açorianos que se dirigiram para a costa do Espírito
412 e XIX, compilados por Berger em 1984, compõem uma grande referência para estudiosos da Ilha e da região. Santo (Marx, 1991). 413
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«... mandando-os transportar a custa da sua Real fazenda, não só por mar, mas tam- como cursos e divisores de água e a beira-mar, como limites, correspondendo desta forma
bém por terra até os sítios que se destinarem para as suas habitações ... , a cada mulher que a terrenos, na maior parte das vezes, com profundidades maiores e relativa a presença
para ele for das Ilhas de mais de 12 anos e de menos de 25, casada ou solteira, se darão daqueles elementos, tal como noutras situações coloniais.
2$400 réis de ajuda de custo e aos casais que levarem filhos se darão por os de vestir mil Estes dois aspectos, associados a escassez de recursos que de fato ocorreu para os colonos
réis para cada filho, ... a cada casal uma espingarda, 2 enxadas, 1 enxó, 1 manei... Os se apropriarem da terra, geraram a pequena propriedade, na forma de terrenos estreitos e com-
homens que passarem por conta de sua majestade ficarão isentos de servir nas tropas pagas, pridos, que se estendiam até um divisor de água, até um curso d' água, até os areais a beira-mar.
no caso de se estabelecerem no termo de dois anos ... » (Cabral, 1950:63.) Nesta pequena propriedade, entretanto, se formou um produtor independente, dono
Em relação ao que;,,aqtti interessa mais, ou seja, a repartição da terra e o desenho da de seus meios de produção e com auto-suficiência, pois construía seu próprio alambique e
organização física, a Coroa, diferentemente do que ocorreu com as primeiras ocupações na engenho de açúcar, de farinha de mandioca e fabricava seus utensílios domésticos. Desen-
Colônia, tentou definir como deveriam ser, do ponto de vista do arranjo físico, os novos volveu-se uma agricultura de subsistência, pois mesmo a mandioca e a produção da fari-
assentamentos. Pelo menos em tese, a Provisão Régia de 9 de agosto de 1747 definia regras nha, considerada a principal produção local, quase não teve expressão no mercado nacio-
para a apropriação do território e a ordenação física dos assentamentos em termos do nal, servindo apenas para abastecer o mercado local. Desenvolveu-se também a pesca
parcelamento da terra entre os colonos, arruamentos, praça e igreja, logradouro público, lomli- artesanal, até 1930, quando a pesca embarcada leva os homens a saírem da Ilha para San-
zação e construção das casas. A,sim, parte essencial da paisagem que desfrutamos, dos ele- tos, em São Paulo, e Rio Grande, no Rio Grande do Sul, ao centro leste e ao sul do Brasil,
mentos que a marcam e pontuam, muito da sua identidade, tem aqui sua origem.
respectivamente.
Essas instruções, marcadamente de intenções urbanísticas, vão dar origem a alguns
Até meados deste século, a dinâmica da ocupação dos terrenos, na Ilha como um
traços de tendências regulares em algumas localidades, como no centro urbano, Ribeirão
todo, é, principalmente, a do crescimento sobre si mesma, densificando as áreas ocupadas.
da Ilha, Santo Antônio de Lisboa, embora as características topográficas e de relevo da
O instrumento desta densificação é o sobreparcelamento dos terrenos de cultivo, isto é, a
Ilha, bem como as dificuldades enfrentadas pelos colonos, tenham, talvez, sido mais
divisão da testada do terreno, privilegiando o acesso para alguma estrada ou caminho ou a
impositivas do que as determinações do Reino 13.
construção de várias casas num mesmo terreno, caracterizando uma ocupação tradicional
de família expandida, comum em comunidades fechadas, mas ainda hoje encontrada.
Desta forma os terrenos foram se tornando cada vez mais estreitos e com a mesma profun-
didade, pois o importante era sempre manter o acesso, que muitas vezes eram caminhos
A repartição da terra e a pequena propriedade
que cruzavam os terrenos. É esta a primeira característica destacada. Uma das marcas mais

A forma de repartir a terra é o primeiro aspecto aqui anotado. Sobre a repartição da importantes da nossa paisagem atual, que se explicita ainda mais, na medida em que estes

terra, a Provisão dizia: terrenos são hoje, pontualmente, parcelados em lotes urbanos (Fig. 3 e 4).
«Os sítios mais próprios para fundar lugares em cada um dos quais se estabeleçam
pouco mais ou menos de sessenta casais dos que forem chegando, e no contorno de cada
lugar e nas terras que ainda não estiverem dadas as sesmarias assinalará um quarto de
légua em quadro a cada um das cabeças de casal do mesmo lugar, na forma declarada no O logradouro público e os campos comuns
dito edital...» (Cabral, 1950:93.)
Por um lado, fica aqui evidente um direcionamento para uma distribuição territorial Mas, a Coroa estabelecia, ao mesmo tempo, a formação de pequenos núcleos urbanos,
baseada em propriedades menores do que aquela até então usada no Sistema Sesmaria! no embriões de freguesias na Ilha. Seria este objetivo talvez para o qual a Provisão Régia determi-
Brasil, que tinha por base a «lego a em quadra» 14 • Por outro, embora a divisão das terras, nava uma área para logradouro público, ou seja, uma área coletiva ou de uso comum.
dimensão e forma dos terrenos indique terrenos quadrados, de «quarto de légutl em qua- « ..• Para acento e logradouro público de cada lugar destinará meia légua em quadro,
dra», a dificuldade de demarcações de limites levou à utilização dos elementos naturais e as demarcações destas porções de terra se fará por onde melhor o mostrar e permitir a
comodidade do terreno não importando que fiquem em quadrados ... » (Cabral, 1950:63.)
13 No Rio Grande do Sul, conforme aponta Yunes (1995), as cidades parecem ter absorvido mais as Esta instrução favoreceu o estabelecimento das chamadas Terras Comunais no litoral
determinações da Provisão Régia, sendo mais regulares. de Santa Catarina e que foram presentes em todas localidades da Ilha, sendo utilizadas até
14 Costa Porto (s.d.) mostra como de fato foi a grande propriedade a base da divisão da terra e da produção

414 no Brasil-Colônia. duas décadas atrás. A apropriação das terras em Campo Comunal complementava as ne- 415
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cessidades dos pequenos produtores como a agricultura complementar, as pastagens e campo as moradas com boa ordem, deixando umas e outras e para trás lugar suficiente e reparti-
de monta para a criação de alguns animais, o aproveitamento das fomes de água, o corte de do para quintais atendendo assim ao cômodo presente como a poderem ampliar-se as
lenha e a madeira para construção. Na Ilha de Santa Catarina toda localidade possuía casas para o futuro.» (Cabral, 1950:63.)
alguma Área Comunal, tornando esta forma de utilização da terra um costume bastante Por um lado, este trecho da Provisão mostra a intenção de configurar um povoado
comum entre o pequeno produtor açoriano. Seria esta área análoga aquela que, na época, balizado pela Igreja, confirmando a estreita relação existente entre os poderes do Estado, a
as Vilas possuíam como patrimônio da Câmara, denominada de rossio 15 ? Em relação ao Coroa e da Igreja, o que já ocorria desde a implantação das Igrejas, na maioria dos núcleos
destino de uso, os Campos Comunais cumpriam um papel semelhante ao do rossio das coloniais 17 •
Vilas, o que pode confirn'lar a hipótese de que a Coroa visava, de fato, a formação de Por outro lado, neste caso parece que a Coroa tenta interferir com mais determinação
embriões de vilas. sobre a paisagem urbana, definindo dimensões das praças, largura de ruas, localização do
Na Ilha em geral, os Campos Comuns, com a Lei das Terras (1850), foram incorpo- casario. Até então, na maioria das vezes, embora aplicando no Brasil as Ordenações do
rados pelo Estado, que por sua vez permitiu diferentes destinos ao Patrimônio Público, Reino, as regras da Metrópole foram, em geral, generalizantes em termos espaciais.
inclusive transformando-os em terrenos privados, como é o caso de Jurerê e parte dos As Igrejas, na Ilha, via de regra, ocuparam um lugar destacado, implantadas nos lugares
Campos de Canasvieiras, ao norte da Ilha. Mas algumas destas áreas se mantêm, como é o mais elevados do sítio, protegidas dos alagamentos e constituindo, com as praças, espaço
caso de parte dos Campos Comuns de Canasvieiras e dos Campos da Barra, na localidade aberto 18 complementar a Igreja, um referencial urbano facilmente identificado (Fig. 5).
do Rio Vermelho, a qual é formada por uma área contínua a beira-mar que se estendia A este destaque físico correspondeu um destaque social reforçado pela situação de isolamen-
desde a Barra da Lagoa 1
r, até o Morro das Aranhas, foi reincorporada ao Estado como to dos povoados, característico das comunidades fechadas 19 • A Igreja, através das festas religio-
terras devolutas e mantiveram-se como área pública. Na década 60 deste século foi decre- sas, promovia simultaneamente as dimensões sagrada e profana da vida da comunidade,
tada como Parque Florestal e usada como área de Reílorestamento, o que de certa forma sendo portanto espaços não especializados. Estas festas, como a do Divino Espírito Santo,
garantiu sua permanência como área pública, ainda que explorada de forma privada. Nestes formam uma das mais expressivas tradições locais, que ainda podemos presenciar.
casos em que os Campos Comuns se mantiveram, a paisagem é nitidamente marcada por A forma «aquadradada» das praças, com a Igreja localizada em uma de suas faces, na
uma extensa área contínua, interrompendo o desenho do tecido urbano privado, composto pela cota mais alta, sugere que houve, senão na íntegra, uma clara referência a Provisão Régia e
jingmentação do lote individua!, ou mesmo do tecido público que ainda não a incorporou como segundo a tradição portuguesa. Quanto as dimensões da praça e das ruas (ou caminhos),
drea efetivamente pública. Considero este o segundo ponto marcante da paisagem que se ainda não se tem dados suficientes sobre efetivo cumprimento das instruções reais que
traçou nos primeiros momentos da ocupação e que representa um grande potencial para determinavam 500palmos(110 m) para as praças e de 40 palmos (8.80 m) para as ruas.
áreas públicas na atual expansão da cidade. Se, inicialmente foram seguidas, com o tempo, pelas dificuldades de medições, de precisão
nos limites dos terrenos e, pelos abusos dos particulares, que com certeza ocorriam, estas
dimensões se alteraram.
Embora as determinações para organização possam sugerir um embrião urbano com
Uma praça, uma igreja, uma freguesia a implantação da Praça e da Igreja, e uma organização rural com os terrenos de cultivo
naquele momento, a implantação da Igreja e da Praça teve um papel determinante na
A Provisão Régia evidencia nas determinações relativas à implantação da Igreja e da dinâmica física e social, como elemento ordenador e ponto de referência na organização
Praça a tentativa de constituir embriões de futuras vilas. física e social dos assentamentos. Constitui-se, então, o terceiro traço marcante na paisa-
«No sítio destinado para o lugar se assinalará um quadrado para a praça de quinhen- gem: as pequenas praças «aquadradadas» com a Igreja na sua face de cota mais a!tct.
tos palmos de face e, em um dos lados, se porá a Igreja, a rua ou ruas se demarcarão ao A Provisão já determinava que as casas de moradia deviam estar distribuídas em tor-
cordel com largura ao menos de quarenta palmos, e por elas e nos lados da praça se porão no da praça, forma que, provavelmente, se mostrou inadequada, sendo as moradias

17
Sobre este tema, ver Marx (1985 e 1991).
15 Ver Marx (1991). 18
Seria esta praça uma versão da exigência do Adro, espaço local sagrado aberto e frontal às Igrejas?
16 19
Os Campos Comuns, também chamados Campos ou Áreas Comunais, da Ilha de Santa Catarina são A Comunidade Fechada se caracteriza por um pequeno grupo com articulação, domínio e autonomia
estudados por Campos (1991), onde existe uma referência ao Campo Comum da Barra datada de 5-6-1788, em sobre um território, com predominância das relações pessoais, da superposição da identidade social, cultural e
416 um Ofkio da Câmara Municipal do Desterro dirigido ao presidente da Província. afetiva e da solidariedade global. 417
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construídas diretamente nas parcelas individuais, recebidas para cultivo, e tendo como de ser o sobreparcelamento e passa a ser o lote urbano. E não mais para repartir uma herança
fator decisivo para sua implantação o abastecimento d'água. ou dar um pedaço de terra ao filho que casa. Agora os lotes estão a venda. É a possibilidade
de vendê-lo, de ter uma renda extra para si, de construir ou reformar a casa, de comprar um
carro, de ter em casa alguns benefícios da modernidade, como uma antena parabólica, que
leva o ex-pequeno proprietário rural à condição de proprietário de pequenos loteamentos
Da forma rural à forma da cidade urbanos, na maioria irregulares, pois algumas destas áreas são ainda consideradas áreas de
1
exploração rural2 • Desta maneira, aos anos 80 corresponde o início de um processo mais
Estas característit:as 'fundacionais estruturam as localidades que isoladas mantiveram intenso de urbanização, com a definitiva inserção das localidades no sistema produtivo
muitas de suas características até poucas décadas atrás. Uma ocupação extensiva, com as urbano da cidade de Florianópolis, que por sua vez oferece (desorganizadamente) sua voca-
localidades dispersas e isoladas entre si. A estruturação das localidades, desde suas funda- ção turística. Do ingresso e da expectativa da população no trabalho assalariado, há o conse-
ções na segunda metade do século XVIII, parece não terem se alterado substancialmente, até qüente desaparecimento de pessoas ligadas ao cultivo ou à pesca.
meados deste século, sendo que o seu crescimento ocorreu densificando as áreas já ocupa- Na realidade, é na década de 60 que iniciam-se as ações públicas para o crescimento
das. Na segunda metade do século XIX, provavelmente, atingiram a sua fase mais produti- da cidade administrativa com a ampliação e melhoria das rodovias da Ilha, ampliando seu
va, pois o período de 1860 a 1880 correspondeu ao de maior exportação da Ilha, pelo «status» de capital e a ampliação dos cargos do funcionalismo público, onde se destaca a
aumento de demanda de produtos, ocasionada pela guerra do Paraguai. Ainda assim, como Universidade Federal de Santa Catarina, o que, como disse uma antiga moradora, a Uni-
mostra Hübener 211, a comercialização da farinha sempre teve um baixo preço. Além de ser versidade retirou muita gente do cultivo, no final dos anos 60. O interesse turístico come-
produzida em quase todo o Império, de forma que sua maior demanda dependia de crises ça nos anos 70, quando a cidade, através da conclusão do asfaltamento da BR-101, se
nas demais províncias; não tinha boa qualidade devido, em parte, às técnicas rudimentares integra definitivamente à rede urbana do Sul e principalmente às capitais próximas do
2
utilizadas. Assim, a principal exportação e renda de Santa Catarina não trouxe, no sécu- litoral2 • Desde então, a cidade passa a receber investimentos públicos (aterro da baía sul,
lo XIX, desenvolvimento econômico para Ilha. uma segunda ponte, o aterro e a avenida Beira-Mar Norte, asfaltamento de estradas), que
A partir de 1930, os assentamentos se modificam, nas suas dinâmicas social e física. não visavam somente a promoção do turismo, mas também estavam ligadas ao crescimen-
Com o início da industrialização do país e a transferência do capital agrícola-comercial to do papel de cidade administrativa. Mas, com certeza, estas mudanças espaciais viabili-
para o capital industrial, o estabelecimento da indústria pesqueira leva um grande número zaram a caracterização da Ilha, no seu conjunto, como uma cidade-balneária, no período
de homens a saírem em pesca embarcada, ligadas ao porto de Santos, em São Paulo e Rio de verão. As poucas localidades balneárias existentes, então como residência secundária da
Grande, no Rio Grande do Sul. Nasce então uma intensa ligação das comunidades da Ilha população florianopolitana, ampliam seu raio de abrangência para turistas do Sul e Sudes-
com estas cidades, pois, nas viagens, se estabeleciam novas amizades e casamentos, trazen- te do Brasil, e dos países vizinhos, Argentina e Uruguai, gerando uma maior demanda de
do novas pessoas para integrar as comunidades, o que pode ser ainda hoje constatado pela infra-estrutura, loteamentos e serviços turísticos. Estas demandas vêm mobilizando novos
visita dos parentes vindos de Santos e de outros pontos do litoral e as «sagradas» excursões investimentos, tanto do poder público, como do poder privado, embora nem sempre atuam
religiosas para o sul. de forma associada.
A saída dos homens para a pesca embarcada representou a entrada de novas informa- A partir da década de 70, se intensificam os loteamentos regulares e irregulares, de
ções e costumes como o uso do arado puxado e o uso comum da moeda nas trocas comer- forma a integrar todo o território da ilha à expansão da cidade, ainda que de forma disper-
ciais do povoado do Rio Vermelho. Cresce o relacionamento entre as localidades vizinhas, sa e fragmentada, pois esta expansão, além de ser motivada pela presença das possibilida-
pelas relações comerciais - compra de tijolos, leite, etc., e sociais - bailes, festas reli- des do aproveitamento do banho de mar, estava em geral vinculada as localidades existen-
giosas. Isto contribuiu para alterar suas características de comunidades fechadas, iniciando
o processo de urbanização das localidades.
21
A estrutura linear existente - de terrenos estreitos e compridos ao longo de uma Muitas áreas ocupadas urbanamente são ainda consideradas como áreas de exploração rural pelo Plano
Diretor dos Balneários em 1985, o que num certo sentido só trouxe prejuízos espaciais e financeiros ao municí-
estrada, com as casas colocadas junto a esta, caracterizando extensas faixas desocupadas pio e a comunidade, embora a condição irregular dos loteamentos favoreça o acesso da população de mais baixa
para trás - vai ser palco de novas mudanças nos anos 80, cujo modelo de apropriação deixa renda. A isto soma-se o fato da Ilha ser património da União, o que impede a escrituração pública, sendo os
terrenos de posse impossibilitados de parcelamentos.
22
Penso que o principal objetivo do asfaltamente da BR-1 O1 era a ligação norte-sul por caminhos mais
418 20
Hübener (1981:48-49). favoráveis, parte do projeto rodoviarista dos anos 60 no Brasil. 419
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS O ESPAÇO DE COLONIZAÇÃO AÇORIANA

tes, as quais ofereciam alguma infra-estrutura. E, na década de 90, se intensifica a expan- HÜBENER, Laura Machado. O Comércio na Cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: USC, 1981.
LEMOS, Carlos. Cozinhas, etc., São Paulo: Perspectiva, 1978.
são da ocupação com vistas também a moradia permanente. LUPI, João e Suzana Lupi. São João do Rio Vermelho. Porto Alegre: Escola Teológica e Esp. Franciscana, si d.
Esta reordenação espacial que se apresenta, embora vinculada as localidades existentes Mapa-Resumo Histórico-Geográfico da !lha de Santa Catarina. 1939. Florianópolis: Arquivo Histórico do Estado
de Santa Catarina.
não tem valorizado as estruturas espaciais existentes. O reconhecimento da praça e de suas
MARX, Murillo. Cidade no Brasil. Terra de quem? São Paulo: Nobel, 1991.
características como elementos organizadores da estrutura atual, não levaria a estabelecer -. Nosso Chão. Do Sagrado tto Profano. São Paulo: EDUSP, 1985.
uma nova estrutura que reafirmasse-os como tal, ainda que não mais únicos numa nova OLIVEIRA, Lisete Assen de. Ti·ês Localidade numa Ilha. São Paulo: USP/ trab. prog., 1991.
-. Rio Vermelho 1w seu Vir-a-Ser Cidade. Estudo da dinâmica da organização espacial. São Paulo: USP/diss.
centralidade? Ou, o reconhecimento dos Campos Comuns, como áreas efetivamente públi- mestrado, 1993.
cas, não levaria a amplbr ;~ possibilidades para os novos espaços públicos na expansão da PANERAI, Philip e outros. Elementos de Analisis Urbana. Madrid: Instituto de Estudios de Administracion
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cidade? PAULI, Evaldo. A Fundação de Florianópolis. Florianópolis: Lunardelli, 1987.
Estas questões nos remetem a decisiva importância da formação e da continuidade PELUSO JÚNIOR, V Crescimento Populacional de Florianópolis e suas Repercussões no Plano e na Estrutura da
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-. Tradição e Plano Urbano, in: Geografia Urbana de Santtt Catarina. Florianópolis: UFSC/Secrctaria de Estado
As linhas de formação, bem como de transformação da paisagem (no tempo ou no da Cultura e do Esporte, 1991, pp. 355 a 396.
espaço), estão, como tentamos mostrar aqui, vinculadas com as formas da repartição do chão Plano Diretor dos Balneários. Florianópolis: IPUF/PMF, 1985.
PORTO, Costa. O Sistema Sesmaria! no Bmsil. Brasília: UNB, s/cl.
em territórios privados e públicos. Estas mostram enorme capacidade de se manterem pre- BERGER, Paulo (comp.), Relatos de Viajantes Estmngeiros nos Séculos XVIII e XIX Ilha de Santa CatarÍlta.
sentes no tempo e, embora de natureza bidimensional, são decisivas na configuração do Florianópolis: UFSC e Assembléia Legislativa, 1984.
desenho da cidade. Esta repartição bidimensional, muitas vezes quase invisível a um olhar SANTOS, Sílvio Coelho. Rio Vermelho: Uma Póvoa no Interior da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Boletim
de Folclore, 1962.
menos atento, traz um desenho muito bem definido e as vezes definitivo no desenho da VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina -A Ilha. Florianópolis: Lunardelli, 1984, (1.ª ed., 1900).
cidade. VAZ, Nelson!'. O Cmtro Histórico de Florianópolis. Espaço Público do Ritual. Florianópolis: FCC e UFSC, 1991.
VEIGA, Eliane. Florianópolis. Memória Urbana. Florianópolís: UFSC/ Fundação Franklin Cascaes, 1993.
Neste sentido, voltando-se o olhar para a Ilha como um todo, nota-se que temos
\1VAISMAN, Marina. El Interior de la História. Historiogmfia Arquitectonicrt panz uso de Latinoamericanos. Bogo-
ainda como desafio amigas e básicas questões sobre o desenho da cidade, num momento d: Escala, 1990.
YUNES, Gilberto. Cidades Reticuladas. A Persistêltcia do Modelo da Formação Urbana do Rio Grande do Sul. São
em que, cada vez mais, se observa o seu desenho pela mão da iniciativa privada, onde o
Paulo: USP /tese doutorado, 1995.
parcelamento urbano em loteamentos regulares ou irregulares (e agora também o condo-
mínio horizontal2 3) toma-se um dos principais agentes reordenando a estrutura de lugares
públicos da Ilha.
O aprofundamento destas questões, me parece, ampliaria a possibilidade de qualifi-
cação dos lugares públicos na Ilha de Santa Catarina, e com certeza nos mostraria cami-
nhos onde a identidade já construída poderia ser incorporada na expansão da cidade.

Bibliografia

CABRAL, Oswald R. Os Açorianos. Florianópolis: Anais do 1.° Congresso de História Catarinense, 1951.
- . Nossa Senhora do Desterro: Notícia e Memória. Florianópolis: Lunardelli, 1979.
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FIGUEIRA, João E Desenhar a Cidade Alargada: O Litoral da Póvoa de Varzim: uma hipótese inter1Jret.e1tz1,a
operativa. Lisboa: Revista Dossier-(Sub)Urbanismos e Modos de Vida. s/ed., 1992, pp. 57 a 71.

23 Os condomínios horizontais, que começan1 a ser adotados co1no alternativa de 1noradia, ao n1anter unia
grande área privada, tendem a constituir ilhas impermeáveis dentro da cidade, decorrendo outras conseqüências
420 na estruturação dos lugares e na vida coletiva da cidade, o que extrapola o âmbito desta comunicação. 421
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ESPACIOS OCEÁNICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR


EN LA AMÉRICA ESPANOLA (1500 AL 1800)*

ALBERTO DE PAULA
Faculdade de Arquitectura, Diseiío y Urbanismo
da Universidade de Buenos Aires

Fig. 1 - Ilha de Santa Catarina Fig. 2 - Núcleos de colonos açorianos


na costa brasileira. implantados a partir de 1747.

Fig. 3 - Ilha de Santa Catarina uma diversidade Fig. 4 - Parcelamento da terra,


de acontecimentos geográficos. configurando terrenos estreitos e compridos.

* En su primera edición, el presente texto ha sido publicado en la siguiente obra: Andalucía en América, el
legado de Ultramar, Barcelona, Lunwerg Editores SA, 1995 (obra patrocinada por la Consejería de Cultura de la
Junta de Andalucía). páginas 51 a 75. En la presente edición, el texto ha sido nuevamente revisado y actualizado
por su autor, especialmente para la Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
422 Fig. 5 - Praça da localidade do Rio Vermelho. Lisboa, Portugal. Buenos Aires, enero de 1998.
Como es sabido, el proyecto convenido en 1492 entre la Corona de Castilla y Cristó-
bal Colón, para abrir la ruta occidental desde Espafia al Extremo Oriente, quedó interferi-
do por estar América en la línea de navegación. La voluntad de llegar de todos modos al
mar de las sedas, las pedas y la especiería, generó exploraciones periféricas dei Caribe, el
Golfo de México y la costa atlântica sudamerícana en búsqueda de! paso ignorado. Des-
pués los exploradores emraron ai continente, que también desconocían, e iniciaron la
«conquista» en su doble acepción: la usual y la etimológica 1 •
América era un conglomerado de culturas, civilizaciones y economías poco relacio-
nadas entre sí. Desde su descubrimiemo, comenzó a influir en la lógica espacial del mun-
do de varias maneras: fue un hábitat de nuevas migraciones humanas y un laborarorio de
mestizaje e intercambios culturales; fue un abastecedor gigantesco de recursos, y articuló
sobre sí a través de dos océanos, gran parte del intercambio entre el occideme europeo y el
extremo oriente asiático.
En la periferia indiana se formó una red de puertos, para tráfico interoceánico y de
cabotaje; que también obraron como articulaciones con la trama interna de ríos, rutas y
ciudades. Algunas de éstas tenían continuidad con núcleos indígenas, otras nacían para
funciones nuevas como focos de evangelización, cabeceras políticas, administrativas, o de
economías locales, o pueblos de escala en los itinerarios que, entre California y Patagonia,
daban integración ai sistema espacial hispanoamericano.

factoría de Colón y el plan de la Corona

El 17 de abril de 1492 se celebraron las «Capitulaciones de Santa Fe» entre la Corona


y Crístóbal Colón quien, tras su desembarco dei 12 de octubre de 1492, comenzó a reco-
nocer las Antilias, y el 5 de diciembre de 1492 avistó la costa norte de la actual república de
Haití; desembarcó en el puerto de Concepción, y tomó posesión de la isla que llamó

1
En primera acepción, se entiende por conquistar la acción de adquirir o ganar a fiterza de armas u11 estado,
ciudad, província o reino. En sentido etimológico, deriva del verba latino conquerire y tiene e! sentido
de indagar o averiguar algo entre varias. La palabra co!lquista fue excluída desde 1621 en todas las capitulaciones
para nuevos descubrimientos; debía ser reemplazada por las de pacificación y pob!ación, con e! objeto de evirnr
que se pueda hacer faerza ni agmvio a los índios [Recopilación de Leyes de los Reinos de lndias, Libra IV, Tí-
tulo I, LeyVI]. 425
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ESPAC!OS OCEÁNICOS Y P\JERTOS DE ULTRAMAR

«Espafiola» (Santo Domingo) que fue centro de gobierno y base de las operaciones espa- Para registrar las operaciones comerciales autorizadas entre la metrópoli y las Indias,
fiolas en el Caribe y de su expansión a la tierra firme. Allí comenzó la relación entre las se creó e! 29 de mayo de 1493 laAduana de Cádiz, entanto se prohibía e! intercambio por
culturas americanas e hispânica, mientras se formulaban normas y polémicas jurídicas y iniciativa privada. EI 25 de septiembre de 1493 zarpó la segunda expedición de Colón,
éticas, y la navegación ampliaba sus alcances. con quince naves, y mil doscientos hombres a sueldo de la Corona: se trataba de fundar en
La población autóctona de Santo Domingo había sufrido la invasión de los caribes, La Espanola un asentamiento agrícola, y para eso iban labradores y herramientas, y se
!legados desde la cuenca inferior dei Orinoco, a través de! arco insular antillano. La isla rrasplantaban cereales, legumbres y vides.
comprendía cinco cacicaz~,os; su economía se basaba en cultivos de mandioca y maíz, y en E] fuerte Navidad había sido artillado para proteger de un hipotético ataque português
la recolección de fruto'!; como ananás e higos de tuna, y de caza y pesca para su alimenta- a sus treinta y nueve pobladores, quienes tuvieron conflictos entre sí y con los caciques
ción, de resinas gomosas para bálsamos y antorchas, de algodón trabajado en fibras para vecinos. También entre éstos hubo discrepancias; dos de ellos arrasaron e! fuerte, extermina-
indumentaria y hamacas, y de oro y otros minerales. ron a sus moradores, y destruyeron la sede de su cacicazgo al que intentó defenderlos.
Colón se estableció en el puerto de Santo Tomás (al oeste de Cabo Haitiano) donde El historiador Demetrio Ramos sintetizó así lo sucedido y sus consecuencias:
su carabela Santa María encalló y, con sus restos, erigió en los últimos d(as de! afio el «... ni ;:;parecieron los portugueses, ni los índios resultaron meros espectadores com-
Fuerte Navidad, que fue el primer asentamiento portuario. A] interior, su interés fue atraí- placientes, limitados a ver cómo los espanoles recogían oro y rescataban con eito en un
2
do por la fertilidad de la Vega Real, y las arenas auríferas dei Cibao • clima de amistosa relación y convivencia, mientras los religiosos les explicaban las verdades
En marzo de 1493 regresó Colón a Espana, y la Corona comenzó a definir su política de la fe. La enorme frustración que supuso el hallazgo dei fuerte de la Navidad totalmente
americana, cuyos objetivos no coincidieron con los dei almirante. Los breves pontificios Inter destruído, donde habían sido sacrificados todos los hombres que allí dejó Colón, significó
coetera ... y Eximiae devotionis ... (3 y 4 de mayo) y e! posterior Dudum siquidem ... (26 de sep- la quiebra del candoroso cuadro inicial. De ahí que las armas predispuestas para oponerse
tiembre de 1493) dividieron entre Espana y Portugal el mundo desconocido, y fundaron e! ai português tuvieron que cambiar su punto de mira. Las rondas de guardia entorno a La
patronato de la Corona de Castilla en la futura Iglesia de América, con su facultad de proteger Isabela y las prevenciones que puso el Almirante ai ordenar la construcción del fuerte de
a los aborígenes y promover su conversión al catolicismo, en un proyecto teológico y político. Santo Tomás, demuestran el giro de ciento ochenta grados que se había producido»4.
En ese contexto se emitieron e! 29 de mayo de 1493, las nuevas instrucciones de los Cristóbal Colón admitió una sugerencia del cacique amigo y se trasladó quince kilóme-
Reyes ai Almirante entre las cuales se establece: tros al este, donde e! 1O de diciembre de 1493 fundó La Isabela como cabecera poHtica y
... pues a Dios Nuestro Senor plugo por su alta misericorditl, descubrir las dichas islas y tierra eclesiástica, con puerto, aduana, almacenes y astillero. Según el médico Diego Álvarez Chan-
firme ai Rey y a Ítl Reina [... ] por industria dei dicho don Cristóbal Colón como almimnte, virrey ca, fue emplazada ... en ei mejor sitio y disposición que pudimos escoger; fray Bartolomé de las
y gobernador de ellas, e! cual ha hecho relación a Sus Altezas que las gentes que en e/las halló Casas decía que el descubridor repartió solares y ordenó sus calles y plaza; y el doctor Guillermo
pobladas, conoció de e/Las ser gentes muy aparejadas para se convertir a nuestra Santa Fe Ccitólica. Coma, en 1497, escribía que la ciudad ... surge bellísima [... ] serd pronto populosa y repleta de
Por ende Sus Altezas, deseando que nuestra Santa Fe Católica sea tlumentada y acrecentfl- colonos, y detallaba que ... una ancha calfe tirada a cordel, divide a la ciudad en dos, calfe que es
da, mandan y encargan ai dicho Almirante[ ... ] que por todas las vías y maneras que pudiere, cortada después transversalmente por otras muchas costaneras... 5
procure y trabaje a traer a los moradores de las dichas islas y tierra firme a que se conviertan a En adelante, el plan de Colón se dirigió a cortar y almacenar maderas tintóreas de los
nuestra santa fe católica, y para ayuda de ello, Sus Altezas envían allá a! docto padre fray Buil bosques de palo brasil, explorar arenas auríferas en varios ríos, y cosechar algodón como
[Bernardo Boi]]
y porque esto mejor se pueda poner en obra [... ] procure y haga e! dicho Almirante que 4
Demetrio Ramos, E! hecho de la conquista de América, en: Luciano Perefia (director), «Francisco de
todos [... ] y los que más fueren de aquí ade/ante, traten muy bien y amorosamente a los dichos Vitoria y la Escuela de Salamanca, la ética en la conquista de América», Madrid, Consejo Superior de Investiga-
ciones Científicas, 1984, pp. 20, 21.
índios, sin que les hagan enojo alguno, procurando que tengan Los unos con los otros rnucha 5 Vicente Tolentino Rojas, op. cit. Francisco de Solano, La ciurlad iberoamericant1: jimdación, tipo!ogíc1 y

conversación y fàmiliaridad, haciéndose las mejores obras que serpuede3. fimciones durante e! tiernpo colonial, en: Francisco de Solano (coordinador) y otros, «Hisroria y futuro de 1a ciudad
iberoamericana», Madrid, Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas, Centro de Estudios Históricos, Uni-
versidad Internacional Menéndez Pelayo, 1986, p. 13. Gui1lermo Céspedes del Castillo, Las Indias e11 tiempo de
los Reyes Católicos, en: J. Vicéns Vives (director), «Historia Social y Económica de Espafia y América», romo II,
2 Vicente Tolentino Rojas, Historia de !a División Térritoria!, 1492 ·· 1943, Santiago, República Dominica- 4:' reedición, Barcelona, Editorial Vicéns Vives, 1982, p. 466 y ss. Jaime Salcedo, E! modelo urbano aplicado a !11
na, Edición del Gobierno Dominicano, 1944, p. 4 y ss. América Espaíiola: su génesis y desarrollo teórico práctico, en: Ramón Guriérrez (direcror científico), «Estudios
3 Vicente D. Sierra, E! sentido misiona! de la conquista de América, Buenos Aires, Ediciones Dictio, 1980, sobre urbanismo iberoamericano, siglos XVI al XVIII», Sevi1la, Junra de Andalucía-Consejería de C,ilmra-Ase-
426 p. 28 y ss. Ricardo Levene, Las !,,dias no mm co!onias, Buenos Aires, Espasa Calpe Argentina S. A., 1951, p. 16 y ss. soría Quinto Centenario, 1990, pp. 1O, 11. 427
ESPACIOS OCEÁNICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS

producto exportable. Organizó un sistema extractivo, con ocho fuertes interiores para quienes permanecían en la isla; pero no pudo controlar la situación y la gestión de la
proteger el Cibao y la Vega Real; en 1496 se ocuparon otras posiciones costeras, como família Colón en su factoría americana fue al fracaso entre conflictos.
Puerto Plata en el litoral norte, y Nueva Isabela (después Santo Domingo) en el sur insu- Tras la rebelión de Roldán, insistió Colón en compensar la poca extracción de oro

lar, para atender ai desarrollo de su cuenca minera. exportando esclavos. Calculaba que podía vender cuatro mil, y e! 18 de octubre de 1498
Desde el punto de vista operativo, Colón organizó una factoría patrocinada por la envió seiscientos en cinco navíos, pagó con doscientos e! flete a los maestres, y repartió

Corona, a semejanza de las explotaciones genovesas de la isla de Chío, o las portuguesas en trescientos más entre los roldanistas como prenda de conciliación. La reina Isabel rechazó
las costas de Guinea, entf;e otras, y administrada por él y su farnilia. Expedicionarios e con gran enojo este plan de esclavizar indios, que consideraba súbditos de ella; mandó
índios serían empleadbs d; la empresa cuyo interés, por lo tanto, no sería abrir territorios liberados, y ordenó con pena de muerte a quienes los llevaran a Castilla, que los repatria-
ai poblamiento cristiano y la evangelización, sino procurar máximos lucros, con el míni- ran en los primeros navíos.

mo de personal y costos. Para encarrilar la situación en La Espaií.ola, en 1499 se nombró gobernador y juez
Los expedicionarios eran modestos, pero creían que si corrían riesgos en esa factoría pesquisidor a Francisco de Bobadilla; éste la complicó más al culpar y maltratar a Cristóbal
lejana y peligrosa, no debía ser sólo corno asalariados juntando oro para Colón y el Rey, Colón, quien tenía el mérito excepcional de su descubrirniento, pese a su poco acierto
sino también para su propia riqueza. Pronto se negaron a construir más aduanas y almace- empresario. La Corona eludió e! dilema, dejando a Colón sus títulos y honores e iniciando
nes; comenzaron a desertar y dispersarse en asentamientos espontáneos, multiplicando otra política americana, de expediciones privadas con regalías sobre cuanto mercasen, y
conflictos por la isla, y emprendieron su propia búsqueda de oro. Los Colón endurecieron ofreció a los colonizadores incentivos, como la propiedad de las tierras que cultivasen,
la disciplina para los castigados por su ocultación, pero los pobladores que regresaban durante un lapso mínimo de cuatro afios 6 •
comenzaron a elevar quejas a la Corte.
La factoría no cubría el costo de los viajes: la remesa despachada desde Santo Domin-
go en febrero de 1494, fue de sólo 30 000 ducados en oro (cuyo valor metálico resultaría
menos de medi o millón de dólares estadounidenses actuales). Colón intentó imponer a los era imperial
nativos un tributo cuya recaudación calculó en sesenta mil pesos de plata, pero no alcanzó
a doscientos. Entonces planeó vender más de quinientos índios como esclavos en Castilla, El comendador Nicolás de Ovando, asesor dei rey Fernando, fue designado en 1501
para afirmar la disciplina, y lucrar un «recurso» adicional. como Gobernador de Santo Domingo a sueldo de la Corona, con amplias funciones y el
El 16 de abril de 1495, la Corona desautorizó el plan esclavista por cuanto su poder apoyo de un centenar de funcionarios y soldados, entre ellos: un asesor letrado para e!
sobre los indios no emanaba de su soberanía, sino dei mandato pontificio para enviar orden judicial, tres oficiales reales (factor, tesorero y contador) para la Real Hacienda; tres
misioneros ... buenos, temerosos de Dios, doctos, sabios y expertos para que instruyan a los alcaides y tropa para secundado militarmente; y treinta naves con mil doscientos hom-
dichos naturalesy moradores en la fe católica ... No podía presuponerse que los nativos falta- bres7. Dos días después, los Reyes iniciaron el ciclo de capitulaciones, con e! permiso a
sena un pacto con la Corona (no lo había), nique se rebelasen contra la predicación pues Vicente Yáfíez Pinzón, para hacer descubrimientos y comercio en Indias, tributando un
tampoco se podía establecer si entendían de qué se trataba; y el tema pasó a los letrados, quinto a la Corona, con prohibición de traer esclavos ni esclavas8 •
teólogos y canonistas. Caducaba en términos políticos la factoría de los Colón, y comenzaba el gobíerno
En l 497, Colón ideó hacer rentable la explotación sobre la base de pocos espafíoles imperial de la Corona, cuya preponderancia en ei comercio con América, se habría de
para ahorrar sueldos: limitarse a 140 hombres de guerra, 60 de mar, 20 mineros, 20 artesa- consolidar a partir de la creación, el 20 de enero de 1503, de ia Casa de Contratación de
nos, 60 labradores, y unas 30 mujeres biancas. Jornales entre 20 y 30 maravedíes (a 12 ma- Sevilla, corporación de mercaderes de ultramar, dotada de autoridad política para contro-
ravedíes el costo diario de la comida) y en lo posible, contratar presidiarias que cobraban
6
menos, sin advertir que su empresa requería recursos humanos muy confiables, capaces de Sophus Ruge, Historia de la época de los descubrimientos geográficos, en: Guillerrno Oncken, «Historia
Universal», torno XIX, Barcelona, Montaner y Simón Editores, 1919, p. 429 y ss.; Juan B. Enscfiat, La AmérÍCíl
convivir en una razonable disciplina de trabajo. Latina desde su origen h,1sta los tiempos modernos, en: Guillermo Oncken, op. cit., tomo XXXVIll, 1921, p. 367 y
Mientras e! descubridor estaba en Espafía, el alcaide mayor Francisco Roldán encabe- ss. Guillermo Céspedes de! Castillo, op. cit. Francisco Morales Padrón, Manual de Historia U11ive;,al, Histori,1
General de América, tomo !, Madrid, Espasa Calpe SA, 1982, p. 188 y ss.
zó en la isla una rebelión, reclamando colonizar y buscar oro por cuenta propia y no para 7
Guillermo Céspedes del Castillo, op. cit., pp. 471, 472.
la factoría. A1 !legar en su tercer viaje, el almirante tuvo que negociar con los roldanistas: "Milagros dei Vas Mingo, Las caf)1tutaci'on,•sde lndias e11 e! siglo XVI, Madrid, Instituto de Coopcración
428 ofreció pasajes gratuitos a quienes optaran por volver a Espaií.a, y después dio tierras a lberoamericana, 1986, pp. 131 a 134. 429
UNIVERSO URBANÍSTfCO PORTUGUÊS ESPACIOS OCEÁNfCOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

lar el movimienco naval y comercial entre ambos continentes. Según las instrucciones que en la dicha isla se hicieren, y que cada uno pueda traer en su heredad una choza o casilla en
regias 9
, el gobemador Ovando debía reemplazar las autoridades de Santo Domingo por que se acojt1, citando fi,ere a ver o a labrrtr su heredad.
funcionarios de su equipo, inspeccionar y cerrar las cuentas de las gestiones de Colón y Ítem; porque para seguridad de la tierra sería menester hacer algunas fortalezas, daréis
Bobadilla, y recuperar para el patrimonio real los caballos y ganado repartidos por éste en orden como son las fortalezas que hayan ahí, se hagan hasta tres fortalezas que sean razonable-
pago de deudas imputables a Colón. mente fuertes y abastecidas.
Los indígenas eran calificados como buenos súbditos de la Corona. Se debía procurar Los Reyes Católicos fundaron así una política constante de la Corona: agrupar la
su conversión al catolicismo mediante su información ... en las cosas de nuestm ft, darles población en centros y subcentros urbanos, y relacionar orgânicamente a sus vecindarios
buen trato, seguridad oo sÚ~ personas, bienes y trânsito por e! país; castigar a quienes los con las labores agrarias.
perjudicasen o les diesen armas, y restituirles las mujeres e hijas que les habían quitado los La gestión de Nicolás de Ovando se extendió desde 1502 a 1509. A su llegada a la isla
espanoles. Los índios que trabajasen ... parti cojer oro efocer las otras labores, serían retribui- sólo existían la Nueva Isabela o Santo Domingo, precariamente instalada en la margen
dos con salarios justos. Con los caciques se negociada el cobro de algún tributo, en la izquierda dei río Ozama, cuatro asentamientos pequenos, y cinco fuertes despoblados. Su
forma posible y de común acuerdo. programa de fundaciones, reorganización de! territorio insular, y desarrollo de sus recur-
En cuanto a recursos naturales, los Reyes reprobaban la explotación abusiva de! paio sos, tuvo un resultado positivo que e! arquitecto Jorge Enrique Hardoy resumió así en uno
brasil ... de mt1nert1 que se cortmz muchos árboles por el pie, en perjuicio consecuente de la de sus trabajos sobre e! tema:
preservación de! recurso, e indicaban al gobernador: «Surgió de este modo, entre 1505 y 1508, una nueva estmctura espacial en la isla,
deftnderéis que ninguno corte árbol por e! pie, salvo que el brasil que se hubiere de cortar determinada por la localización de las minas y por la existencia de tierras aptas para los
se corte de la rama; y si algunos pies se hubieren de cortar, que mm lo menos que serpudiere. cultivos - mandioca, cana de azúcar, hortalizas - y la cría de ganado vacuno, equino y
La extracción y fundición de! oro debían controlarse para verificar la calidad y ley dei mular. Las once nuevas villas agregadas a las cuatro existentes a la !legada de Ovando, servían
metal, y regularizar la tributación que había dejado de cobrarse en la gestión de Bobadilla. de centros regionales de servicios a las encomiendas de la región. Cubrían de manera pareja e!
La recolección se haría por cuadrillas de nueve operarios y un agente fiscal, y se establece- territorio entero de la isla, aunque con mayor densidad en las regiones de! sur y este.» 111
rían homos o casas de fundición bajo supervisión de veedores, para centralizar esta labor e
impedir que se la hiciera clandestinamente a fuego abierto. La extracción de oro aumentó con la gestión de Ovando, según demuestran los valo-
El reordenamiento territorial requería considerar, además de! medio físico y la distri- res de las remesas recibidas en Sevilla:
bución y organización de la población aborigen, a los trescientos habitantes !legados a la entre 1503 y 1505 445 266 ducados
isla durante el régimen de los Colón, que estaban dispersos entre los índios y vivían con entre 1506 y 1510 979 483 ducados
criadas indígenas y ganados propios, como caciques blancos. Para restituir a los indios sus entre 1511 y 151 51 434 664 ducados
mujeres e hijas, e! gobernador Ovando dio a los pioneros la opción de casarse con una y más de catorce toneladas de oro llegaron a Sevilla hasta 1520; declinando después por e!
liberar a las otras, y avecindarse en alguna de las nuevas poblaciones, bajo pena de ser agotamiento de las arenas auríferas.
enviados a Espana, o exterminados si se resistían. La cana de azúcar comenzó a cultivarse en forma modesta, hacia 1506; después pros-
Sobre ordenamiento de h población, leemos en el pliego de instrucciones: peró y se difundió y fue, luego de algunas décadas, uno de los principales productos de
... en la islt1 Espt1ftola son necesm'Ítls de se ht1cer algunas poblt1ciones, y de acá no se puede intercambio entre las diversas regiones indianas y, suplementariamente, también un rubro
dar en ello ciertt1 formt1; veréis los lugt1res y si tios de lt1 dicht1 islt1; y conforme a la et1lidad de la significativo de! comercio exterior 11 •
tierra y sítios, y gente allende de los pueblos que ahora hay, haréis hacer las poblaciones, y dei Nicolás de Ovando refundó la Nueva Isabela o Santo Domingo, que trasladó de la
número que os pareciere y en los sítios y lugares que bien visto os fuere. banda izquierda de! río Ozama a su emplazamiento actual en la margen derecha, mejoran-
Ítem porque Nuestra merced es que los cristianos que en la dicha Isla Espafzola viven y do su asentamiento y sus comunicaciones como capital con e! resto de la isla, Dispuso su
vivieren de aquí adelante, no vivan derramados, y que ninguno viva fuera de las poblaciones

9
F. Pacheco, F. de Cárdenas, y L. Torres de Mendoza (directores), Colección ele documentos inéditos relativos 'º Jorge Enrique Hardoy, Sistemas sociopolíticos y urb,mización: una selecció11 de ejemplos históricos y contem-
a! clescubrimiento, conquista y colonización de las antiguas posesiones espafio!tts ele AmériCtt y Oceanía, b1tjo la clirec- pordneos, en: Jorge Enrique Hardoyy Ricardo P Schaedel (compiladores), «Las ciudades de América Latina y sus
ció11 ele-, sacados de los archivos de! reino y muy especialmente de! ele Indias, Madrid, Imprenta de Manuel G. áreas de influencia a través de la historia», Buenos Aires, Ediciones S!AP, 1976, p. 97.
430 Hernández, 1864/84, tomo XXXI, pp. 13 a 25. 11
Guillermo Céspedes dei Castillo, op. cit., p. 473, 431
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ESPACIOS OCEÁNICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

trazado con el plan de calles reeras y trama cuadrangular, previsto en las Partidas dei rey das por la fantasía de los exploradores a quienes a veces resultó más interesante comprobar-
Alfonso X de Castilla 12 , pero muy poco aplicado hasta entonces, y que fue descripto por las y quizás gozarias, que seguir su incicrta ruta al otro océano. Y cuando en 1520, Hernanclo
Gonzalo Fernández de Oviedo, en estas elogiosos términos: de Magallanes descubrió el paso al sur dei continente, la lejanía y la meteorología hicieron
... el asiento [es] muy mejor que eL de Barcelona, porque las ca!!es son tanto y mds !lanas imprácticas sus nuas para los veleros de entonces .

y muy más anchas, y sin compamción más derechas; porque como se ha fimdado en nuestros Como resultado de esa variedad ele objetivos y de situaciones geográficas, las redes
portuarias se cliversificaron según sus roles principales. Por una parte: los grandes núcleos
tiempos, además de la oportunidad y aparejo de la disposicíón para su fundamento, fite trazada
portuarios bioceánicos, localizados en los istmos de Panamá y Tehuantepec. Por otra parte:
con regia y compás, y a una medida las calles, en lo ciwl tiene mucha ventaja a todas lt1s
los circuitos de puertos que eran centros de comercio ultramari,10 y, a la vez, focos locales
poblaciones que he visto~.. 13 , el plan de Santo Domingo trascendió a través de los conquista-
de penetración al interior del continente.
dores, diserninados desde allí por las regiones hispanoamericanas, y les facilitó la cornpren-
Aclemás, varios puertos principales ele América dei Sur, tuvieron su precedente en un
sión y aplicación de las normas que, a partir de 1513, habrán de ser emitidas por la Coro-
poblado prehispánico costero, según el mayor o menor desarrollo náutico de sus poblacio-
na, para ordenar los espacios urbanos y rurales en estos territorios.
nes aborígenes, desde la simple pesca en canoas, hasta el uso de naves más evolucionadas,
confines comerciales más complejos, corno en e! imperio incaico.

Diversificación sistema portuario hispanoamericano


puertos
Mientras se configuraba el nacicnte impcrio ultramarino de Castilla, avanzaban las
exploraciones y dcscubrimientos en las costas sud y centro americanas, iniciadas por Cris- Santo Domingo fue núcleo político y operativo dei Caribe hispanoamericano, en
tóbal Colón, y proseguidas con intervención de la Corona enforma directa, o por medio plena expansión durante la gestión de Ovando, cuya obra como ordenador de territorios,
de contratos o capitulaciones con armadores privados, quiencs quedaban facultados para superó las escalas de! planeamicnto económico ele su isla y el disefío urbano ele su capital,
compensar sus costas mediante e! ejercicio de! comercio. al despachar expediciones a las demás Antillas, en especial a Puerto Rico y a Cuba. Ésta fue
En esta etapa, los objetivos de la cxploraciones eran simultáneamente varias; algunos circunnavegada por primera vez, comprobándose su carácter insular. Puerto Rico comen-
eran casi periféricos, como la búsqueda de! paso interoceánico para continuar la ruta al zó a ser poblada según sus directivas, por Juan Ponce de León, quien funcló en su costa
Extremo Oriente, o el desarrollo de la cartografía, o la recolección de bienes susceptibles norte, en e! puerto de Caparra, la actual ciudad de San Juan ele Puerto Rico (1510).
de comercializar en la metrópoli. Pero esos propósitos no impedían que cobrasen fuerza Diego Colón, hijo dei descubridor, sucedió a Ovando como gobernador de Santo
otros objetivos dirigidos al interior dei continente, como e! descubrimiento de nuevos Domingo en julio de 1509, por designación real y no por derecho hereditario, y ejerció el
territorios para dominar reinos ignorados y ganar tesoros, pero también para conocer áreas cargo durante seis afíos. Entre sus decisiones cabe citar la creación de! cargo de teniente de
propicias a las misiones cristianas que propagaran la fe, salvaran almas, y sirvieran a la gobernador en Cuba, que confió a un antiguo compafíero de viaje de su padre, Diego
mayor gloria de Dios. Velásquez, quien realizó reconocimientos detallados de las áreas costeras, fundó Baracoa
A medida que registraban el Caribe, el Golfo de Méjico y e! Atlánrico Sur, los explo- ( 1512) en e! extremo este de la isla; la exploró en su interior y la reorganizó sobre la base de
radores oían leyendas referidas al interior de! continente desconocido, más o menos trans- la regionalización prehispánica, y erigió otras villas y ciudades, entre éstas: Santiago de
formadas ai narrarse desde un pueblo a otro, durante generaciones, y de nuevo desvirtua- Cuba (1514) y La Habana (1515), ambas en la parte sur, aunque esta última se trasladó
después al norte.
Nicolás de Ovando intervino en un ordenamiento preliminar del desconociclo litoral
12
AlfonsoX de Casrilla, «el Sabia», Las Siete Partidas dei Sllbio Rey donAlfànso el nono, nuevtllnente glos,u!tlS caribefío de la tierra firme, mediante el cual se instrumentó la capitulación real dei 9 de
j,or el licenciado Gregorio López dei Consejo Real de Inditls de Su Mlljesttld, Salamanca, Andrea de Porronaris,
Impresor de Su Majestad, 1555, Segunda Partida, folio 88, Título XXIII, ley 20.ª: Aposenttldtl debe ser la hueste junio de 1508, 14 por la cual se concedieron estas jurisdicciones:
segân !tl fizcción dei lugtlr, si jitere luengtl o cuadrada o redonda[ ... ] si ji,ere luenga, dejar una [calle] en medio que sea
todtl derechtl, y si faere cuadmdtl deben dejar dos o hllsttl cuatro [callesJ las unas en luego y las otras en travieso.
13 Gonzalo Fernández de Oviedo, Sumario de la Natural y General Historitl de las Indias [edición facsimilar

432 de la primera, hecha en Toledo, 1526], Madrid, Espasa Calpe SA, 1978, folio IIII vta.
14
Milagros dcl Vas Mingo, op. cit., pp. 156 a 161. 433
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- «Castilla dei Oro» o Veragua, desde el golfo de Urabá en el Darién hacia el oeste Oro; y en la Real Cédula y Provisión de Franquezas que le fue extendida el 18 de junio de
(hoy noroeste colombiano y Panamá) para Diego Nicuesa; 1513, se leen estas instrucciones:
- «Nueva Andalucía» desde el mismo golfo al este (actual territorio de Colombia) ... sean [los solares) de comienzo dados por orden: por rnanera que, hechos los solares, el
para Alonso de Ojeda; pueblo parezca ordenado, así en el lugar que se dejare para plaza, como el lugar en que hubiere
- la isla de Jamaica como base entre Santo Domingo y tierra firme, para ambos. la iglesia, como en el orden que tuvieren las calles, porque en los lugares que de nuevo se hacen,
En la misma capitulación se acordó, por primera vez, fundar asentamientos en tierras dando el orden en el comienzo, sin ningún trabajo ni costa quedan ordenados, y los otrosjamris
centro y sud americanas. Nicuesa y Ojeda debían construir en dos puertos de Castilla dei
se ordenan 15 , esta recomendación, aun siendo general y sin pautas específicas en cuanto a
Oro y dos de Nueva Andaluéía, cuatro fortalezas con cimientos de piedra y muros de tapia
disefio, dio impulso a una política ordenadora de los espacios urbanos, que comenzaban a
... de tal manem que se puedan bien defender de la gente de la ti erra, y casas, estancias y
construirse en las Américas.
pueblos en el interior. Podían ejercer el comercio, consistente básicamente en extracción
La obsesión por hallar el paso navegable, motivó que continuara el registro en las
de oro, perlas y otros recursos naturales, con prohibición de secuestrar indígenas para
costas caribefias y la fachada atlântica de América de! Sur, pero entretanto, Pedrarias Dávila
venderlos como esclavos.
planeó hacia 1515 habilitar una comunicación interoceánica terrestre entre dos
Ambas expediciones zarparon de Santo Domingo, en noviembre de 1509, y en las
asentamientos, a fundar en las costas opuestas de! istmo. Con ese fin se pobló cerca de
costas caribefias sufrieron penurias, por el medio físico y por sus conflictos con los nativos.
Careta, en la vertiente dei este, e1 puerto de Ada que cobró rápida prosperidad.
Los hombres de Ojeda, tras intentar asentarse cerca de la actual Cartagena de lndias,
Analizada con mayor detenimiento la geografía de! istmo; el mismo Pedrarias hizo
pasaron al golfo de Urabá en cuyas costas sur y norte fundaron, sucesivamente: San Sebastián
poblar en 1519 el puerto de Panamá, al pie dei monte Ancón y junto al golfo homónimo,
(1509) que subsistió pocos meses, y Santa María la Antigua de! Darién (l 51 O), donde
en aguas de! Pacífico. También hizo repoblar Nombre de Dios junto al Caribe, y el inter-
eligieron alcaide a Vasco Núfiez de Balboa.
Diego de Nicuesa, tras una tempestad, recaló en el puerto de Bastimientos y fundó cambio comercial entre los dos hemisferios comenzó a fluir desde un puerto al otro 16 • EI

Nombre de Dios (1509) en sitio malsano. Buscando mejor lugar llegó hasta Santa María la traslado de mercancías y pasajeros a través de! istmo, se hacía en parte por el río Chagré y
Antigua, perteneciente a su jurisdicción por estar al noroeste de! golfo de Urabá; allí hubo en otro tramo por un camino de herradura.
conflicto con Balboa quien lo hizo embarcar en su peor nave, que presumiblemente nau- La poca influencia que el descubrimiento de! Estrecho de Magallanes (1520) tuvo en
fragó. Entretanto, Alonso de Ojeda volvió herido a Santo Domingo donde murió. Ante las grandes rutas de ultramar determinó que, en la práctica, el istmo de Panam,Í fuera el
esta acefalía, el gobernador Diego Colón confirmó la autoridad local de Vasco Núfiez de principal paso interoceânico efectivo, sólo que de tierra firme ... Y así el puerto de Panamá
Balboa, que había reunido a los sobrevivientes de las dos expediciones. se convirtió en la cabecera general de la navegación de! Pacífico sudoriental, y de las comu-
nicaciones de ultramar dei área andina, y en cabecera local, política y económica, de su
âmbito de influencia; en 1622 se trasladaron a ella los habitantes e instituciones dei puerto
de Santa María la Antigua, que se despobló.
Panamá: primer núcleo bioceânico de América Pero la imagen urbana de la capital panamefia contradecía su prosperidad. La edifica-
ción era densa y abundante, pero casi toda de madera; sus calles eran rectas, pero su orien-
Desde su reducto en la Antigua, Balboa amedrentó a los caciques vecinos, y también tación a rumbos llenos (cuatro calles de este a oeste y tres transversales de norte a sur) las
luchó, negoció, e hizo las paces con ellos según las circunstancias. Así llegó a tener noticias hacía imransitables en cuanto salía el sol; y sus vecinos según e1 cronista Pedro Cieza de
sobre el otro océano, y el l de septiembre de 1513 zarpó de la Antigua con un bergantín y León, eran ... contratantes y no piensan estar en ella mds tiempo de curtnto puedan hacerse
nueve grandes canoas, con ciento noventa espafioles, seiscientos indígenas y una traílla de ricos, y así idos unos vienen otros, y pocos o ningunos mirem por el bien público 17 •
perros de presa; navegaron junto a la costa hasta la aldea dei cacique Careta que les facilitó
indios guías, y atravesaron sierras y selvas hasta e! 25 de septiembre, cuando avistaron
desde una altura, sobre la costa oeste de! istmo de Panamá, el golfo de San Miguel y, más 15 Erwin W1lter Palm, Los monumentos arquitectó11icos de La Espaíiola, con una introducció11 a Amkica, Ciudad

allá, el deseado Mar dei Sur. lrujillo, Univcrsidad de Santo Domingo, 1955, tomo I, p. 71. Jorge Enriquc Hardoy, op. cit., p. 99 y ss.
16
Sophus Ruge, op. cit., pp. 498, 499.
Entretanto, en la metrópoli había comenzado el trâmite para nombrar a Pedro Arias 17
Enrique Marco Dorra, La arquitectura en Panamá, Colombia y Ve11ezue!ti, en: Diego Angulo Ifíígucz,
434 de Ávila (Pedrarias Dávila) como sucesor de Nicuesa en la gobernación de Castilla dei «Historia de! Arte Hispanoamericano», tomo!, Barcelona, Salvar Editores SA, 1945, p. 524. 435
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Su contraparte caribefia, el puerto de Nombre de Dios, sufrió una gran destrucción estructurarse la comunicación de costa a costa en la Nueva Espafia, y se abría para su
en un ataque inglés, circunstancia que resultó propicia para trasladar sus habitantes y sus comercio un rurnbo de expansión hacia el oeste.
operaciones a un paraje próximo, de mejores condiciones sanitarias y estratégicas, con una Los vientos y las corrientes marinas dei Pacífico Norte, eran complejas y desconoci-
bahía amplia y resguardada de los viemos, donde se fundó la ciudad de Porto belo (1597). das para los europeos, y se llegó a temer que el tráfico entre e! occidente mejicano y las islas
El pirata John Morgan, también inglês, destruyó en 1670 la ciudad de Panamá que se de la especiería, fuera impracticable. Alonso de Arellano y Andrés de Urdaneta determina-
reconstruyó en su actual emplazamiento. ron la ruta natural seguida desde Acapulco por la expedición de Miguel López de Legazpi
(1564-65), que inició la ocupación hispana de las Filipinas, fundando un asentamiento
" estable en la isla de Cebú (1565), y la Manila espafiola (1571), constituída en capital
política y cabecera comercial dei archipiélago y que, continuando su antigua tradición de
El núcleo bioceânico de México intercambio comercial con China, fue competidora de las factorías portuguesas de las
Molucas y Macao.
Veracruz, antiguo fondeadero natural donde había un pueblo indígena llamado Ulúa, Aunque Manila y Acapulco están casi en la misma latitud, la ruta de Arellano y
fue descubierto por e! explorador Juan de Grijalva que le dio el nombre de San Juan de Urdaneta derivaba ligerarnente hacia el sur para el rumbo desde la Nueva Espafia hacia las
Ulúa, y el 21 de abril de 1519, hizo allí su desembarco Hemán Cortês, en su primera Filipinas, pero en el tornaviaje hacía una amplia derivación al norte corriendo en paralelo
escala hacia la búsqueda, no dei deseado paso interoceânico, sino dei desconocido pero a las islas de! Japón y a las costas de California; hasta su !legada ai oeste mexicano. Esta vía
supuestarnente civilizado e inmensamente rico imperio azteca, y allí ejerció su primer acto de navegación, que rigió durante los siguientes dos siglos y medio, se adaptaba así a las
de conquista al fundar la Villa Rica de la Vera Cruz, que en los afios inmediatos tuvo varios condiciones naturales de la corrientes oceânicas y de sus viemos, y además eludía hábil-
traslados, siempre con el río San Juan como puerto 18 • mente las posiciones portuguesas de! Pacífico.
En J 521 se consolidó e! domínio de Cortês en México (antigua Tenochtitlan) ciudad El circuito comercial entre los puertos de Manila y Acapulco por la ruta dei Pacífico
mediterrânea que pasó a ser un nuevo foco interno de expansión de la estructura imperial Norte, los caminos interiores del Tehuantepec por la ciudad de México, y los puertos de
hispana, con Veracruz como principal nexo portuario y mercantil, con las Antillas y el Veracruz, La Habana y Sevilla, por el Mar Caribe y el Atlântico Norte, llegaron a configu-
Atlântico. rar en su tiempo uno de los principales ejes bioceânicos dei mundo, con su propio régirnen
La historia se hace entonces más compleja porque también en 1521, mientras se desa- naval y mercantil de flotas y galeones por una parte, y de piratas y corsarios por la otra.
rrollaba la conquista dei mundo azteca, las naves de Hemando de Magallanes y Juan Sebastián
Elcano llegaban a las Molucas y las Filipinas por la ruta de Espafia al occidente; noticia
recibida en Europa al afio siguiente, al completarse la primera circunnavegación de! planeta.
En 1524 se abrió el diálogo entre Espafia y Portugal, para resolver su presencia respectiva en La fachada caribefi.a de la América dei Sur
esos archipiélagos, centros de la especiería, las perlas y otras riquezas codiciadas; y cinco afios
después queda negociada y acordada la presencia espafiola en las Filipinas. La costa sobre el sur dei Mar Caribe fue la primera región sudamericana que recibió la
Alcanzado su domínio en e! amiguo imperio azteca, rebautizado corno Nueva Espa- presencia de exploradores europeos, y el propio Cristóbal Colón entre ellos. El primer asen-
fia, trató Hernán Cortês de descubrir algún paso interoceânico en e! istmo de Tehuantepec tamiento estable fue el puerto de Santa María laAntigua, absorbido en 1522 por Panamá. La
(1521), y en e! golfo de Honduras (1524) que es la otra angostura de! continente america- presencia estable de espafioles se reanudó al cabo de tres anos, con la llegada de Rodrigo de
no; estas expediciones eran no sólo de ampliación y consolidación de su poder, sino tarn- Bastidas, para poblar la província y puerto de Santa Maru, en cumplimiemo de su capitula-
bién de indagación geográfica y cartográfica 19 • En 1527 partió la primera expedición desde ción con la Corona20 •
e! puerto mexicano de Acapulco en e! Pacífico, a las Filipinas, con la cual comenzaba a La fundación de Santa Marca (1525) debía hacerse, según la capitulación, como
... un pueblo en que a lo menos haytt en el presente cincuenta vecinos, que los quince de ellos
sean casados y tengan consigo a sus mujeres [... ] y de ahí adelante lo mds que fuese posíble, así de
18 Carlos Arvizu García, Urbt11lismo Novohispatw en el siglo XVI, en: Ramón Gutiérrez (director científico),
cristianos espafioles como de índios. El adelantado debía hacer una fortaleza como defensa
«Estudios sobre Urbanismo Iberoamericano, siglas XVI al XVIII», Sevilla, Junta de Andalucía-Consejería de
Cultura-Asesoría Quinto Centenario, 1990, p. 206.
436 19
Sophus Ruge, op. cit.; Juan B. Ensefíat, op. cit. 211
Milagros del Vas Mingo, op. cit., p. 201 a 205. 437
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ESPACIOS OCEANICOS Y l'UERTOS DE ULTRAMAR

de los indios caribes que solían recorrer la zona, y formar establecimientos rurales median- La aldea indígena de Calamarí, fue el emplazamiento dado a la que habría de ser la
te repartos de solares, aguas y tierras entre los pobladores, quienes gozarían de una desgra- más importante fundación urbano-portuaria en la costa sudamericana dei Caribe, con e1
vación parcial de tributos durante seis afíos, y de la facultad de extraer y negociar las pedas doble rol de foco de expansión demográfica, política y económica ai interior de la actual
extraídas ai este y oeste de la ciudad, así como oro y otros metales que hallaren, y maderas Colombia, y su principal puerto de ultramar. La prosperidad de Cartagena de Indias fue
de brasil y guayacán. favorecida por su ubicación sobre la vía navegable de Santo Domingo a Nombre de Jesús
Santa Marta fue la primera cabecera de colonización dei actual territorio de Colom- (después Portobelo) y por la amplitud de su bahía, capaz de contener una enorme escua-
bia, y es hoy la ciudad má:.antigua de América dei Sur, pero su inicio fue precario segün dra; esta bahía queda separada dei mar abierto por una serie de islas de origen madrepórico,
escribía ai Rey, en 153 .li, el gobernador García de Lerma: unidas entre sí por arenales y vegetación.
... Esta ciudad queda en muy mal recaudo cuando yo voy fitem, por ser todas las casas de paja Cartagena de Indias fue en su inicio, como otras poblaciones portuarias dei trópico,
y estar tan juntas que el menor incendio que pusiese fi1ego a un bohío quemará todo el pueblo, su un caserío hecho de barro, palmas y paja. En un documento de 1538 leemas que ... En
imagen urbana de Santa Marta se consolidó hacia 1543, tras el incendio a que la sometió toda la ciudad y el puerto no hay casa ninguna de piedra, y en las que viven !os vecinos son de
el corsario francês Robert Baal; entonces el gobernador Alonso Luís Lugo, la refundó con paja y canas, e madera e palmas, que es como chozas en Casti!la 24; los incendios parciales eran
un trazado sim pie y ordenado 21 • frecuentes y el de 1552 destruyó la ciudad. Mediante nuevas normas de edificación y el
Sigue a Santa Marta en la cronología hispano-sudamericana, la ciudad y puerto de ceio de las autoridades locales, treinta anos después había casas de piedra y la imagen
Santa Ana de Coro (1527), cabecera de la colonización espafíola en el occidente venezola- urbana se consolidaba. Cartagena fue declarada escala obligatoria de los galeones de Pana-
no. Surgió de la necesidad de proteger a la parcialidad indígena de Caiquetía que, a prin- má, se reglamentó la navegación dei río Magdalena y su penetración interior se encuadró
cipias dei sigla XVI era víctima de aventureros e índios caribes que merodeaban la zona. en un marco orgânico.
Con tal fin, la Real Audiencia de Santo Domingo delegó al factor Juan Martínez de Ampués,
quien luego formalizó una capitulación con la Corona, para poblar y pacificar las islas de
Curazao, Aruba y Bonaire 22 ; celebró con e! cacique Manauré un pacto de paz y amistad, y
estableció la ciudad. La fachada sudamericana del Pacifico
Coro fue al principio un caserío de ranchos de paja, gradualmente reemplazados por
construcciones de mayor solidez. La ocupación holandesa de Curazao, determinó los tras- Más allá de su importancia dentro de! eje bioceânico, Panamá superó a los puertos de
ladas a Caracas de la gobernación (1578) y dei obispado (1583); con lo cual principió su época en cuanto a proyección territorial. Sus pobladores espafioles, entre quienes estaba
Coro a decaer, y a esto contribuyó la escasez de agua potable que recién sería subsanada en Francisco Pizarro, oían allí vagas noticias sobre un rico imperio situado ai surde los confi-
1864. E! mismo factor Juan de Ampués, pobló el asentamiento portuario de Alta Gracia nes dei Birú, lejana referencia que constituía el límite de! saber geográfico para los indíge-
(1528), que fue reedificada en 1571 con el nombre de Nueva Zamora, y es hoy la ciudad nas de las comarcas panamefías quienes, desde muy antiguo, veían las embarcaciones de
de Maracaibo. cabotaje de ese imperio, que no era otro que e! Tahuantisuyo, actual Perú.
Pedro de Heredia, fundador de Cartagena de Indias (1533), tenía jurisdicción por La navegación peruana, entronca su origen con la estructura económica de sus regio-
capitulación real, entre e! golfo de Urabá y el río Grande con sus islas circunvecinas, en la nes naturales: la costa, donde prevalecían las actividades pesqueras, y la serranía andina
província de Cartagena, para pacificar, sujetar y evangelizar a los indios de allí, y hacerles donde se ejercía la agricultura. Entre ambas comunidades se practicaba el trueque de pes-
iglesias ... segzín la disposicíón de la tierra en que la reciban, y construir una fortaleza para cado seco por algodón y maíz. Con e! desarrollo de la metalurgia y otras artesanías, el
defensa de los pobladores espafíoles, quienes podían tener allí sus haciendas y granjerías. intercambio se amplió y se diversificó, y las actividades marítimas se expandieron, no sólo
E! adelantado quedaba facultado para llevar cien esclavos negros de Guinea, pero no podía con fines comerciales, sino también para ir hasta las islas guaneras a buscar fertilizantes,
someter a los índios a la esclavitud 23 • para el abono de su sistema agrícola25 .

24
Enrique Marco Dorta, op. cit., p. 574 y ss.
25
21
Eligia Calderón "frejo, La ciudad mel Nuevo Reino de Gra11ad1,, en: Ramón Guriérrez (dircctor cicntÍ· María Rostworowski de Dícz Canscco, Navegación y cabotaje en el Perii pn1mim11nu, cn: «Puertos y
fico), «Estudios sobre Urbanismo ... », op. cit., p. 414 y ss. Fortificaciones en América y Filipinas, Actas dei Seminario 1984», Madrid, Centro de Esrudios y Experimcnta-
22
Milagros del Vas Mingo, op. cit., p. 238 a 240. ción de Obras Públicas (CEDEX), yComisión de Estudios Históricos de Obras Públicas y Urbanismo (CEHOPU),
438 23
Milagros del Vas Mingo, op. cit., p. 274 a 277. 1985, p. 95 a 107. 439
UNIVERSO URBAN[STICO PORTUGUÊS ESPAC!OS OCEÁNICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

Los aborígenes peruanos hacían con haces de junco dos tipos de naves: los caballitos La imagen urbana de Guayaquil era precaria durante sus primeros siglos de existen-
de totora, de uso individual y corto alcance, y las balsas de grandes dimensiones, para doce cia. Fray Reginaldo de Lizárraga lo describe como un ... pueblo de contratación, por ser el
personas poco más o menos; también combinaban estas embarcaciones de distintos mo- puerto para la ciudad de Quito, y por se hacer en él muchos y muy buenos navíos, y por l11s
dos para ampliar su capacidad y mejorar su alcance. Además, con maderas livianas que siemlS de agua que tiene en Las montafías e! río arriba, de donde se !leva la ciudad de Los Reyes
obtenían por trueque con indígenas de Guayaquil y otras regiones dei norte, desarrollaron [Lima] mucha y muy buena madera; y comenta que tenía ... mal asiento, por ser edificado en
un tipo de balsas más complejo, con cabina de pajas, mástil, velamen, remos, y sistemas terreno alto, configura como de silla estradiota, por lo cual no es de cuadras, ni tiene plaza, sino
muy simples de dirección y anclaje; este tipo de embarcación, posibiliró una sensible am- muy pequena, no cuadrada.
pliación en sus rutas"ma;:Itimas, ayudada por el estudio de los vientos y dei ciclo de las Fray Reginaldo de Lizárraga calculaba la distancia entre Guayaquil y Quito en sesenta
corrientes naturales. leguas (300 kilómetros, escasamente), de las cuales se recorrían veinticinco en balsa, río arriba
La conquista dei imperio más allá dei Birú, pareda un objetivo más seductor que el hasta la sierra, y lo demás por caminos cordilleranos. La travesía duraba cuatro o cinco días en
paso interoceânico. Los primeros exploradores salidos desde Panamá, entre 1519 y 1522, verano, y en invierno casi el doble por inundación de las sabanas, en cuyos parajes altos los
regresaron defraudados; pero Francisco Pizarro realizó con Diego de Almagro dos viajes índios hacían viviendas sobre pilotes ... puestas en cuatm cafías de las grandes, en cuadro, tan
preliminares, que le dieron conocimiento directo dei asunto y, tras las pertinentes gestio- gruesas como un muslo y muy altas, hincadas en e! sue/o; tienen su escalera angosta, por donde suben
nes en la corte, reunió hombres, naves y recursos, con los cuales salió en enero de 1531 a la barbacoa o cafíizo donde tienen su cama y un to!diLLo para guarecerse de Los mosquitos... 27
desde Panamá, y entró ai Cuzco en noviembre de 1533. Tal necesidad de correlato entre los antiguos centros cordilleranos y puertos de la
A partir de la conquista dei Perú, los espacios económicos andinos se reconfiguraron: costa, se sintió de modo particular en el Pcrú, donde Francisco Pizarro debió optar entre el
Panamá fue la cabecera operativa dei Pacífico sudamericano, mediante tres puertos, en Cuzco ancestral, encastillado en las montafias, o una fundación costera que, como nueva
conexión con otros tantos centros urbanos principales, que configuraron un sistema peri- cabecera virreinal, sostuviera la relación fluida de las cuencas mineras y demás áreas inter-
férico occidental de comunicaciones y comercio de ultramar, en conexión con las redes de nas dei espacio económico peruano, con la red portuaria dei Pacífico, y con el tráfico de
caminos y ciudades hispanoamericanas dei interior y, hasta con el Atlântico Sur, a través de ultramar nucleado en el eje bioceânico de Panamá. A esta segunda finalidad respondió la
la cuenca hidrográfica dei Placa. fundación de Los Reyes o Lima (1535) a unos diez kilómetros ai este dei puerto dei Ca-
La bahía de Manta, en los confines septentrionales de] imperio incaico, era uno de los llao, donde había un embarcadero prehispano.
centros prehispanos de navegación costera. Fue el primer lugar colonizado por Pizarro, El Callao se comenzó a poblar con un tambo de almacenaje (1537, aprox.) al cual se
quien arribó allí en su tercem y definitivo viaje al Perú (1531). A poco más de veinte agregaron otros depósitos; así surgió un caserío espontâneo, con la traza irregular común en
kilómetros de la bahía, tierra adentro, se fundó la localidad llamada San Gregorio de pueblos de ese tipo de origen. En 1555 se demarcaron solares para la iglesia y casa parroquial
Portoviejo (1535) por su escaso desarrollo, debido en parte ai carácter anegadizo de su y comenzó el contralor portuario dei Callao, cuya urbanización se comenzó a regularizar en
terreno, donde se construyeron casas de cana y paja sobre pilotes, dispersas, y comunicadas 1566 cuando ... toma mdsforma de pueblo yaún se puede tomarpor principio de él 28 • En 1579,
entre sí no por calles sino por pasarelas 26 • la estada de la flota dei pirata Francis Drake frente a este puerto, hizo sentir la necesidad de
En la región cordillerana, Quito era el gran centro imperial ai norte del incanato; fortificado, así como a la capital que hasta entonces era una ciudad abierta.
Sebastián de Belalcázar realizó en el mismo emplazamiento, la fundación hispana de San Análoga a la de Lima y el Callao, es la relación entre Santiago de Chile ( 1541) y Vai paraíso
Francisco de Quito (6 de diciembre de 1534). Su complemento necesario era un puerto de (1544 aprox.). La capital chilena se ubicó en el sitio de una población incaica, entre la margen
ultramar, y Belalcázar bajó hasta la costa donde fundó Santiago de Guayaquil (1535), pero sur dei río Mapocho y un arroyo que allí forma horqueta, por consejo de Loncomilla, cacique
el primer lugar no resultó adecuado, y Francisco de Orellana hizo la erección definitiva, al de Maipo, al fundador Pedro de Valdivia, quien adoptó como puerto a un antiguo embarcade-
pie dei cerro Santa Ana (1537). ro prehispano donde se formó Valparaíso, de origen espontâneo y traza irregula12 ~.

27
Reginaldo de Lizárraga, op. cit., p. 60 y ss.
28
26
Reginaldo de Lizârraga, Descripción del Perú, lí1cumcín, Río de la Plata y Chile [aprox. 1600], edición de Bernabé Cabo, Historia de Lima ... cit. por Ramón Guriérrez, Ciudades de! Perti. Urb,11tismo durttnte el
lgnacio Ballestcros, Historia 16, 1987, p. 57. Alfonso Oniz Crespo, Visión gmerttl de lttS fimdaciones y del urbcl!lis- período virreinttl, en: Ramón Gutiérrez (director científico), «Esrndios sobre Urbanismo ... », op. cit., p. 251.
mo colo11ial esptlÍiol e11 el territorio de la antigua Audiencia de Quito, en: «La Ciudad lberoamericana, Actas dei Francisco Quiroz Chueca, Las imcígenes del Cttl!tto antiguo, descripciones escritas y grcíficas, Callao, Centro Je
Seminario Buenos Aires 1985», Madrid, Ministerio de Obras Públicas y Urbanismo-Biblioteca CEHOPU, 1987, lnvestigaciones Históricas del Callao, 1990.
440 p. 125.
29
Gabriel Guarda, Historia Urbana dei Reino de Chile, Santiago, Editorial Andrés Bello, 1978, p. 28. 441
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En el extremo austral dei continente, la cabecera de la colonización hispana dei Pací- En prevención de lo ocurrido, la Corona envió otra armada a cargo dei veterano
fico sur americano debía ser Valdivia (1552), fundada cerca de un poblado indígena, sobre navegante Sebastián Gaboto (abril de 1526), para ir por la ruta magallánica hasta las
una meseta en la horqueta que forman el río homónimo y el Calle Calle, con un trazado Molucas, auxiliar a las naves de García Jofré de Loayza, y enfrentar a los portugueses en
regular. A pesar de su fuerte y sus defensas naturales, la ciudad fue arrasada durante una aquellas regiones, que aún no eran hispanas ni lusitanas, pues al no saberse las dimensiones
rebelión aborigen en 1559, y recién se restauró en 1645 3
º. dei globo terrestre, no podía fijarse el contrameridiano de Tordesillas.
En el litoral sudamericano, Gaboto y sus hombres supieron la leyenda de la Sierra de
la Plata a la cual se llegaría por el río de Solís; y allí dejaron su ruta y entraron ai estuario,
navegaron por e! Paraná y fundaron el fuerte Sancti Spiritus en el actual puerto Gaboto
En las costas sudamericanas del Atlântico (9 de junio de 1527). Era el primer asentamiento espafíol en la actual República Argentina
y, aunque se trataba de un puerto fluvial tenía sentido ultramarino, como base exportadora
La fachada atlántica de la América dei Sur, abarcaba en el siglo XVI la costa brasileíia, para el yacimiento argentífero que se buscaba.

entre el sector oriental de! delta dei Amazonas y las cercanías de! puerto de San Vicente ai Por la ruta de Magallanes, Loayza, y Gaboto salió hacia las Malucas la armada de

sudeste de San Pablo, según los límites resultantes de la línea pactada en Tordesillas, y Diego García de Moguer, quien también se desvió e ingresó ai río de Solís, al que dio su

además, el litoral hispano que se extendía al noroeste y sudoeste de esa línea, desde el definitivo nombre de río de la Plata; Gaboto y García de Moguer se encontraron en latitu-

Caribe hasta la región magallánica 31



des dei Paraguay actual; no hallaron el cerro argentífero y regresaron a Espafía (1530)
El recordado descubrimiento dei océano Pacífico en la costa panamefía (1513) revo- dejando despoblado el Fuerte Sancti Spiritus.
lucionó la geografía y generó dudas que sólo la circunnavegación de Sudamérica podía Desestimada la ruta magallánica por su dificultad operativa, e instaladas las relacio-
resolver. Por eso en 1514 se firmó una capitulación con Juan Díaz de Solís, para reconocer nes bioceánicas en los núcleos de Panamá y México, e! Atlántico Sur mantuvo la seducción
la costa atlántica sudamericana, hallar el paso interoceánico, cruzado, y explorar e! litoral de esa descomunal sierra argentífera, con entrada por e! río de la Plata. Ahí llegó la armada
oeste. Zarpó el 9 de octubre de 1515; vio el estuario rioplatense el 20 de enero y, aunque de Pedro de Mendoza (enero de 1536), quien como primer paso, pobló el puerto de Santa
era un contrasentido suponer que un cauce de agua <luice fuera un paso entre océanos, María de los Buenos Aires, donde sus naos tuvieron buen apostadero en e! antiguo canal

entró a reconocerlo, y perdió la vida en esa indagación. de la boca dei Riachuelo de los Navíos32 •

Hernando de Magallanes descubrió en 1520 el estrecho que lo recuerda, lo cruzó y La expedición de Mendoza se expandió ai norte, poblando los puertos fluviales de
llegó a las islas de la especiería, con su segundo y sucesor, Juan Sebastián Elcano, quien Corpus Christi en el río Paraná ( 15 de junio de 1536) y Nuestra Sefiora de la Asunción en
completó la primera vuelta al mundo de la historia humana. Su paso junto ai litoral sudame- el Paraguay (15 de agosto de 1537). Después hubo un reflujo: se desmantelaron Corpus
ricano produjo grandes avances cartográficos: la identificación de Montevideo, y muchos Christi y Buenos Aires (1541), y los pobladores de esta última pasaron a Asunción donde
otros puertos naturales, dei perfil patagónico en general y dei archipiélago malvinero, avista- fueron ... recogídos y agregados enforma de república, y la capital paraguaya fue declarada
do desde una de sus naves. ciudad el 16 de septiembre de 1541. Sedio así la paradoja de que e! centro de la presencia
La armada de García Jofré de Loayza y Juan Sebastián Elcano (] 525) fue la segunda espafíola en el Atlántico Sur fuera una ciudad mediterránea, distante mil kilómetros de!
en cruzar el estrecho de Magallanes, donde sufrieron su clima tempestuoso, se dispersaron mar, tanto hacia e! este, hasta el puerto de San Francisco (hoy São Francisco do Sul, estado
las naves, y una alcanzó los 55º sur y avistó el ... acabamíento de la tíerra, es decir e! canal de Santa Catalina) con una ruta entre serranías y selvas pobladas por varias etnias rivales
de Drake. Con grandes pérdidas y las muertes de Loayza y Elcano entre otros, llegaron a entre sí; como hacia el sur, hasta el puerto de Buenos Aires, comunicado por la vía navega-
Malucas (enero de 1527), donde tuvieron un conflicto con los portugueses, superado por ble de los ríos Paraguay, Paraná y de la Plata.
el apoyo que despachó Hernán Cortês desde Acapulco (1527) como ya se ha mencionado. E! camino entre Santa Catalina (en litígio con los portugueses) y Asunción, fue re-
corrido (1542) y descripto por Alvar Núíiez Cabeza de Vaca 33 • Para franquear esta salida

30
Ibidem.
3' Hemos desarrollado este tema con mayor amplitud en los siguientes rrabajos: Alberto ele Paula, Las
32
ciudades fortificadas y e! ten·itorio en e! Cono Sur Americano (1527 a 181 O), en: Ramón Gutiérrez (clirector cien- Ese antiguo canal corresponde, aproximadamente, a la actual Dársena Sur de! Puerto Madero, ele Bue-
nos Aires.
tífico), «Escuclios sobre Urbanismo ... », op. cit., p. 356 y ss.; Alberto ele Paula, La arquitectul'tl de las Misiones de!
33
Guayrá, en: Manrique Zago (clirector editorial) y Jorge O. Gazaneo (director científico), «Las Misiones Jesuíticas Alvar N úfíez Cabeza de Vaca, Comentario de -Adelantado y Gobernador de! Río de la Plata, Asunción,
442 clel Guayrá», Buenos Aires-Verona, Manrique Zago Ediciones, 1993, p. 91 y ss. Talleres Nacionales de H. Kraus, 1902, p. 10 a 27. 443
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ESPACIOS OCEANICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

atlântica dei Paraguay, se hizo una población en puerto San Francisco (1552, hasta 1556), poblaron en e1 siglo xvm por los conflictos hispano-portugueses. Hasta mediados de ese
y se fundaron dos centros intermedios: Ciudad Real dei Guayrá (15 57) en la confluencia siglo, el Atlântico Sur fue un área desatendida de! imperio, y Buenos Aires su vigía solitario
dei Paraná y el Pequirí, y Villa Rica dei Espíritu Santo (1570) en las nacientes de este río. y cabecera de un comercio deliberadamente aminorado.
El despoblamiento de San Francisco (por el citado litígio) transformó esa ruta en vía de
contrabando hacia San Pablo, y ambas ciudades paraguayas desaparecieron en el siglo
XVII, a causa de las malocas bandeirantes.
La fabulosa «Sierra de la Plata» fue descubierta desde Perú por expedicionarios espa- comercio y la
fioles (1543), y no era,,otnt que el «Sumai Orke», o Cerro Rico de Potosí, situado en las
nacientes dei río Pilcomayo, afluente de la cuenca hidrográfica de! Plata. Las distancias En tanto se configuraba la estructura portuaria de la América Espafiola, se perfilaban
desde Potosí hacia Buenos Aires al sud sudeste, o hacia Lima ai noroeste son equivalentes; dos redes de mercados: e! intercontinental entre Filipinas, México y Espafia, y el interregional
por eso surgieron las alternativas de darle salida oceânica por la ruta de! Callao, Panamá y con núcleo en Panamá y conexión por e! Caribe a Espafia. EI ciclo amillano dei oro y paio
e! mar Caribe, o por el río de la Piara. brasil fue la primera fase dei comercio exterior, sucedido por otros productos como man-
En su estudio Goviemo de e! Pmí (1560, aprox.) el licenciado Juan de Matienzo, dioca, azúcar, jengibre, cueros, cinturas, plantas medicinales como la zarzaparrilla, guayacán
analizó la salida portuaria para las regiones potosina e intermedias hasta e! Piara, y propuso o palosanto, y también piara, oro y perlas. Más variado era e! sistema de mercados regiona-
confluir las rutas de Chile y el Tucumán ai río dei Plata, en Puerto Gabo to sobre el Paraná; les, que el historiador Alfredo Castillero Calvo ha ejemplificado así:
habilitar los puertos despoblados de Buenos Aires y San Gabriel (hoy Colonia del Sacra- «Con la harina de Mérida se hacía e! pan consumido en Cartagena y Portobelo, y
mento), y seguir a Espafia por vía atlântica, con cincuenta días de navegación. Opinaba desde los valles peruanos se abastecía Panamá de prácticamente todos los alimentos que
que ... aunque rz los de Lima y Quito les queda algo lejos, evitem los peligros dei Nombre de Dios necesitaba, con la excepción de carne y maíz, que eran los únicos alimentos que producía
y de Panamá 34 • el país en abundancia. Nicaragua enviaba a Portobelo, desde Granada y siguiendo el río
Al promediar e! siglo XVI, el último puerto europeo sobre el Atlántico sudoccidental San Juan, gallinas, cerdos y maíz, lo mismo que Cartagena. Guayaquil enviaba cacao a
era San Vicente (1532), colonia portuguesa bajo cuyo amparo se fundó San Pablo (1554). Nicaragua para recibir a cambio tintes que introducía hacia e! interior para su uso en los
E! puerto de San Francisco no tuvo repoblación hispana y fue absorbido por e! avance telares quitefios. Gran pane dei cacao que se consumía en México proccdía de Guayaquil,
lusobrasilefío sobre el litoral atlântico paraguayo. La opción marítima de Asunción fue luego de cruzar el istmo de Panamá. Las galerías argentíferas de Potosí se alumbraban con
hacia el sur, en la ruta dei Paraná, donde se fundaron Santa Fe (1573) y la definitiva sebo chileno. Miles y hasta cienros de miles de mulas eran conducidas anualmente para su
Buenos Aires (1580). venta a lugares distantes: desde Venezuela a las islas caribefias, desde Salta y Tucumán a
El último proyecto dei siglo XVI espafiol para poblar un área estratégica dei Atlântico Perú, desde Honduras y Nicaragua a Panamá. Y la plata peruana, pese a todas las prohibi-
Sur, fue el de Pedro Sarmiento de Gamboa 35 , con aprobación real (1580), para fundar ciones, circulaba por doquier como una mercancía más 36 .
poblaciones de agricultores y emplazar fortalezas en la Primera Angostura del Estrecho de La economía agropecuaria autóctona de América se caracterizaba por una ganadería
Magallanes, con un sistema complementario de atalayas costeras, avisos y una cadena para mínima, y una gran variedad de vegetales domesticados, no conocidos en Europa: maíz,
cerrar el paso interoceânico como sefial de soberanía hispana. Fracasó por varias circuns- tabaco, maní cacao, papa o pataca, tomate, pimientos, coca, vainilla, quina y numerosas
tancias desgraciadas, y la Corona no lo retomó. frutas tropicales. Los espafioles trasplantaron leguminosas, vides, olivo, y diversos cereales
Ütros puenos naturales como Río Grande de San Pedro (hoy Rio Grande do Sul) en y frutales. La cafia de azúcar que en Europa era un cultivo raro, se aclimató en Antillas,
la costa atlântica, y Maldonado y Montevideo en la banda oriental del río de la Plata, se tierras bajas de México, y costas dei Perú, y el producto se comercializó en el mercado
internacional y en el interregional, a diferencia de Brasil o las Antilias holandesas que la

34
exportaban como base de sus economías 37 •
Juan Matienzo, Gobiemo dei Perú, obra escrita en el siglo XVI por el licenciado don - , oidor de la Real
Audiencia de Charcas, Buenos Aires, [Universídad de Buenos Aires]-Faculrad Je Fílosofía y Letras-Sección de
Historia, 1910, p. 186 y ss., Archívo General de lndias, Sevílla, Charcas, legajo 16.
35
Pedro Sarmíento de Gamboa, Viaies al Estrecho de Magallanes (1579-1584). Recopilación de sus rel11ciones
sobre los dos viajes al Estrecho y de sus cartas y memoriales, con un apéndice tÚJcumental sobre su vida y viajes, edícíón 36
Alfredo Cascíllero Calvo, La ruta tramístmica y las comuniaiciones marítimas indituws, siglas XVI a XIX,
y notas ai cuidado de Angel Rosenblat, prólogo de Armando Braun MenénJez, Buenos Aires, Emecé Editores, en: «Puertos y forrificaciones en América y Filipinas, A.eras ... », op. cit., p. 135 y ss.
444 1950, 2 tomos. 445
37
Guíllermo Céspedes dei Castillo, op. cit., p. 399 y ss.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS F.SPACIOS OCEÁNICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

La ganadería hispanoamericana mayor y menor, tuvo un desarrollo veloz desde el El galeón, más grande, maniobrable y veloz que la carraca, se desarrolló a lo largo dei
norte de México hasta las pampas bonaerenses; las ovejas espafiolas se criaron en domesti- siglo XVI, y ai promediar esa centuria era ya el navío de guerra por excelencia. En término
cidad y en rebafios, ai cuidado de pastores peninsulares; criollos o indígenas, y su lana dio medio, tenía 40 a 42 metros de eslora por casi 1O de manga, con tres paios y velamen más
impulso a la industria textil indiana, que abasteció el consumo interno de la nueva socie- complejo. Su mayor calado permitió aprovechar mejor el casco para el alojamiento de la
dad, y tuvo sus principales áreas de producción en Méjico, Perú, y Quito. tripulación, y reducir los altos castillos de proa y popa que obstaculizaban el empuje de los
La carne vacuna llegó a ser la comida más barata, e! sebo se usó como impermeabilizante viemos. Su gran capacidad de fuego, sumada a su mayor practicidad, hizo dei galeón el
y como base de la industria de jabones; los cueros se aplicaron en indumentaria, recipien- velero prototípico para el tráfico de ultramar.
tes flexibles, mobiliarili) y'hasta construcción, entre otros usos. En el Río de la Plata, el
Los conflictos en el «mare clausum» de Espafia y Portugal, fueron consecuencia de
cuero vacuno, curtido o tratado con sal, fue el mayor rubro exportable ai mercado euro-
rivalidades mercantiles y dinásticas dei occidente europeo y, especialmente, dei rechazo
peo, así como las mulas nacidas en las !ornadas bonaerenses, eran su recurso de comercio
por varias potencias, dei Tratado de Tordesillas y de las bulas papales que lo fundamenta-
con Potosí y regiones intermedias.
ban. Los reyes franceses de la família real de Valois, en conflicto con la dinastía espafiola
La minería fue el rubro casi excluyente dei comercio exterior en la América Espafiola,
y austríaca de los Habsburgo, desconocieron el «mare clausum», y la piratería francesa
a partir de las explotaciones antillanas, donde los yacimientos de oro se agotaron en pocas
comenzó a atacar barcos hispanos y a saquear las costas de! Caribe durante la década dei
décadas. La actividad aurífera se desarrolló hasta fines de! siglo XVI en México, las costas
1520 y, con renovada violencia, en las de 1550 y 1560.
centroamericanas de! Caribe, Venezuela y Perú; y hasta princípios dei siglo XIX continuó
La reacción de la Corona espafiola ante la piratería fue esencialmente defensiva; en
en varias regiones de Colombia y Ecuador.
La extracción de plata fue importante ai norte de México y en áreas andinas dei Perú 1526 se reglamentó que las embarcaciones espafiolas no se desplazaran solitarias e indefen-

y Alto Perú, especialmente en Potosí con su famoso «cerro rico». E! mercurio para su sas por ambos océanos, sino que formaran convoyes, custodiados por floras armadas,
laboreo, llegaba a México desde los yacimientos espafioles de Almadén, y e! virreinato percrechadas según las normas de la Casa de Contratación. En 1537 zarpó la primera
peruano se autoabastecía con el de Huancavélica, que a veces proveía excedentes para la Armada Real destinada a escoltar los embarques de metales preciosos que debían hacerse
minería mexicana. La exportación hispanoamericana desde 1521 a 1660, alcanzó a 181,2 desde América hacia Espafia, y en 1543 se estableció su periodicidad anual y se determinó
toneladas de oro y 16 632,6 toneladas de plata, más los contrabandos en cantidades im- una ruta troncal entre el Caribe y Sevilla, con bifurcaciones hacia Nueva Espafia (Veracruz)
precisas, entre un 1O y un 50%. yTierra Firme (Nombre de Dios, después Portobelo).
El sistema monetario hispanoamericano comprendía las siguientes unidades: La muerte en 1558 de María Ide Tudor, reina de Inglaterra y también Princesa de
el real (3,3 gramos, piara) equivalente a 4 cuartillos Asturias, por su enlace con el futuro Felipe II de Espafia, puso fin a la entente hispano-
el peso (27 gramos, plata) equivalente a 8 reales, -británica; su sucesora Isabel I invirtió la situación, y pronto proliferaron los «comercian-
el escudo (3,3 gramos, oro) equivalente a 2 pesos tes aventureros» en aguas hispanoamericanas. Todavía en 1562, el navegante inglês John
la onza (27 gramos, oro) equivalente a 8 escudos Hawkins intentó persuadir a Felipe II sobre la ventaja de un comercio entre ambos países;
este sistema se extendió también a las colonias británicas norteamericanas, y fue adoptado pero fracasó e inició el contrabando de negros desde África a! Caribe. Simultáneamente, se
por los Estados Unidos de América, ai instituírse allí como unidad monetaria, por ley dei
intensificó la piratería inglesa contra barcos espafioles.
2 de abril de 1792, el dólar igual a un peso de plata hispanoamericano.
En la década dei 1560, la defensa de las Indias llegó a ser cuestión de estado, y entre
Con el desarrollo dei comercio intercontinental evolucionaron los transportes marí-
los afios 1564 y 1566 se organizó con carácter permanente, el régimen de floras y galeones
timos. La carabela dei período de los descubrimientos, que medía 20 a 25 metros de eslora
con los siguientes itinerarios y periodicidades:
por 6 a 8 de manga, y conducía entre 20 y 40 hombres a bordo, comenzó a ser sustituida
a) la «flota» (Flota de Nueva Espafia) partía desde Andalucía en abril o mayo con
en las primeras décadas dei siglo XVI por la nao o carraca, que casi duplicaba esas dimensio-
rumbo a Veracruz, llevando también embarcaciones para Honduras y Antilias;
nes, tenía capacidad de carga dei orden de las mil toneladas, y llevaba mayor poder de
b) los «galeones» (Flota de Tierra Firme) partía desde Andalucía en agosto o septiem-
fuego, a lo cual debía su configuración más redondeada38 •
bre, rumbo al istmo de Panamá, convoyando naves para Nombre de Dios (después
Portobelo), y Cartagena o Santa Marta; con los galeones solía enviarse una importante
446 38 Attilio Cucari, Veleros de todo e! mundo, desde e! afio 1200 hasta hoy, Madrid, Espasa Calpe SA, 1986. escuadra de guerra para custodiar el transporte de plata de Potosí y otros metales nobles y 447
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS
ESPAC!OS OCEANICOS Y PUERTOS DE ULTRAMAR

caudales desde Sudamérica hasta la metrópoli; ambas floras pasaban e! invierno en Améri- 500 quintales de cecina o charque, y 500 arrobas de sebo. Los montas fueron calculados
ca, se reunían después en La Habana, y regresaban a Espafía juntas y escoltadas 39 • en su tiempo en 10 000, 2000 y 500 pesos, respectivamente, sumando 12 500 pesos ai
Las mercaderías transportadas desde Espafía solían ser telas, mobiliario y otras manu- afio, insuficientes para la subsistencia de una plaza con doscientos habitantes, cuyo costo
facturas, así como cereales, vinos, y aceite que, en conjunto, represemaban un volumen de vida estaba encarecido por la distorsión ya comentada42 •
superior al conducido en e! tornaviaje y que consistía en oro, plata, y algunos productos La relación de Buenos Aires con el comercio brasilefío se vio favorecida durante la
tropicales. Era frecuente que salieran de Andalucía más barcos de los que regresaban, y la unión de las Coronas de Portugal y Castilla (1580 a 1640), pero la ruptura renovó la crisis.
diferencia era causada no sólo por naufragios, sino también por ataques de piratas o corsarios, La nueva dinastía portuguesa de los Braganza quedó subordinada a los intereses británicos;
o por la venta en Américâ'de barcos enteros con su cargamento, o por la circunstancia el emplazamiento de la Nova Colonia do Sacramento (1680) como base anglolusitana de
deliberada de despachar a las Indias naves en su límite de obsolecencia, que eran desman- contrabando frente a Buenos Aires, generó un largo conflicto hasta ser liquidada como tal
teladas en algún puerto dei Caribe. por e! virrey Pedro de Cevallos (l 777).
Las flotas y galeones se recibían en Veracruz, Cartagena, y Nombre de Dios (o Portobelo Mayor y más variada era la presencia de factorías de contrabandistas en el Caribe, donde
desde 1593); con grandes ferias a las que asistían los mayores comerciantes hispanos y los holandeses se posesionaron de Curazao, Saba, San Martín, San Eutasio, y la costa de Surinam;
criollos. Las mercaderías pasaban a los centros de almacenaje y distribución: desde Veracruz los franceses de Martinica, Tobago, y Guadalupe; y los ingleses de Jamaica, las costas de Belice,
a México y toda la Nueva Espafia, incluído Acapulco que era el enlace con e! galeón de y diversas Antillas menores.
Manila; desde Cartagena de Indias ai interior de la Nueva Granada; y desde Nombre de La rcacción esencialmente defensiva de Espafía, suponía un costo operativo y de
Dios o Portobelo a Panamá, para reembarcarse en la Armada dei Sur hasta el Callao, y seguridad e intermediación, que recargaba e! precio final de sus ofertas en los mercados
desde allí a Lima y regiones más ai sur. internos e intcrnacionales. Sólo la estabilidad política y administrativa dei régimen hispa-
En tal sistema, el Río de la Plata fue perjudicado con los recargas por fletes e noamericano, compensó la crisis dei sistema hasta su reforma en e! siglo XVIII.
intermediaciones, inevitables en ese largo recorrido. Por ejemplo, una vara de pano basto
que en la metrópoli valía 18 ó 20 reales, en Buenos Aires costaba alrededor de 100; y un
sombrero ordinario de 15 reales en Espafia, se pagaba entre 60 y 70 al llegar al Rio de la
Plata40 • Tal distorsión de precios favorecía el contrabando, pues cualquier comerciante mercantiles siglo XVIII
clandestino de la carrera de Brasil, podía ofrecer mercaderías más baratas y, además, lucrar
una ganancia considerable. La muerte de! rey Carlos II en 1700, fue e! fin de! apellido Habsburgo en el trono
A poco de su fundación, prosperó en Buenos Aires una producción harinera que espafíol, y el principio de una guerra sucesoria en la cual se entrometieron las potencias
dejaba saldos exportables a Brasil, y constituía una fuente de trabajo para los agricultores y extranjeras, y que recién concluyó en 1713 con la «Paz de Utrecht», serie de tratados que,
los molineros, pues en las cercanías de la ciudad hubo varios molinas hidráulicos, además entre otras consecuencias, dieron sensibles ventajas a Inglaterra en el comercio indiano, en
de tahonas41 • En 1594 se despachó la orden de cerrar e! puerto bonaerense y este desarrollo especial en el tráfico de negros.
productivo se frustró. Durante e! reinado de Felipe V, el régimen de comercio intercontinental hispano-
Tras múltiples gestiones, por Real Cédula dei 20 de agosto de 1602 se permitió ai americano, comenzó a experimentar cambios como la formación de compafiías mercanti-
puerto de Buenos Aires un limitado movimiento exportador: 2000 fanegas de l1arina, les con privilegio para tratar en ciertos ramos y en zonas de poco desarrollo. Una de ellas
fue la Real Compafíía Guipuzcoana de Caracas ( 1728) facultada para comerciar en costas
39 Bibiano Torres Ramírez, La defens,1 naval de las lndias durante e! siglo XVI, en: Francisco de Solano y
venezolanas y sanearias de contrabandistas, para lo cual fortificó y dio seguridad a Puerto
Fermín del Pino, «América y la Espafia dei siglo XVI, homenaje a Gonzalo Fernández de Oviedo, cronista de
Indias, en el V centenario de su nacimiento (Madrid, 1478), Madrid, C. S. l. C. Instituto «Gonzalo Fernández Cabello y La Guayra; pero su concepción monopólica, aun en poca escala, perjudicó inte-
de Oviedo», 1983, ramo II, p. 115 a 125. Guillermo Céspedes de! Castillo, op. cit., p. 416. reses de los productores locales y generó su rechazo 43 •
40
Archivo General de lndias, Sevilla, Audiencia de Charcas, legajo 33, Memorial ai Rey dei capirfo Ma-
nuel de Frías, procurador general de las províncias de! Río de la Plata y Paraguay, impreso sin fecha (1610,
aproximadamente).
41
Alberto S. J. de Paula, Ramón Gutiérrez y Graciela María Vifiuales, Dei pago dei Riachuelo ai partido de
Lanâs, 1536-1944, La Plata, Archivo Hisrórico de la Província de Buenos Aires «Ricardo Levene», 1974, p. 24. 42
Archivo General de lndias, Sevilla, Audiencia de Charcas, legajo 33, Memorial al Rey, op. cit. Vicente
Vicente D. Sierra, Historia de la Argentina, tomo I, Buenos Aires, Editorial Científica Argentina, 1964, p. 493 D. Sierra, op. cit., tomo II, 1967, p. 32 y ss.
448 y ss., 534 y ss. 43
Juan B. Ensefiat, op. cit., p. 449. 449
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La Compafiía de La Habana (17 40) promovi ó la inmigración canaria y difundi ó e! California. De igual modo, el archipiélago de las Malvinas foe tomado por franceses (1764)
tabaco cubano. Otros emprendimientos similares tuvieron poco êxito, y sobre la base de e ingleses (1766) y de estos últimos se temían amenazas sobre e! litoral patagónico y el sur
las Compafíías Guipuzcoana y de San Fernando de Sevilla, se formó la Compafíía de dei Chile.
Filipinas (1785) que ejerció un importante rol en e! comercio de oriente, hasta mediados En julio de 1765 llegó a México el visitador José de Gálvez45 , quien advirtió e! riesgo
de] siglo XIX. potencial de los avances rusos desde Alaska, sumados o no a los ingleses desde Canadá;
En 1720 se suspendió e! régimen de convoyes y se generalizó otro de registros sueltos. especialmente ante la falta de domínio hispano efectivo sobre las costas californianas y su
Con la abolición dei sistema de galeones a Tierra Firme (1735) la feria de Portobelo se difícil comunicación con el puerto de San Blas, y también con México en vía terrestre, por
extingue, en tanto se dêsarrolla la navegación por e! Estrecho de Magallanes y el Cabo de la mala relación con las comunidades indígenas de Sonora, Sinaloa y otras regiones imer-
Hornos, y aunque en 1756 se restauró el sistema de Botas, lo foe para Nueva Espafía medias.
solamente. Con la creación de los correos marítimos mensuales (1764) las cornunicacio- EI plan de Gálvez se centró en estos objetivos:
nes ganaron en regularidad y agilidad. La apertura de más puertos (1765) y la desregulación a) descubrir las rutas terrestres y marítimas entre México y la Alta California y con-
de! tráfico interindiano (177 4) fueron otros tantos pasos de liberalización en favor de los trolarias mediante la pacificación de Sonora y su unión con ambas Californias, y la ocupa-
mercados regionales hispanoamericano. ción permanente dei puerto californiano de Monterrey, descubierto en 1603 pero cuya
EI Reglamento y Aranceles para e! comercio libre de Espafia e Indias (1778) fue e! posición geográfica precisa se desconocía;
inicio de una nueva política de puertos. Se aumentó e! número de los autorizados y se los b) asegurar la posesión de la Alta Califomia mediante la fundación de asentamientos
clasificó en mayores y menores según el nivel arancelario previsto, y casi de inmediato crecie- civiles y militares.
ron las cantidades de embarcaciones y los rnontos de! intercarnbio lícito: en Cuba e! movi- Con la cooperación dei misionero franciscano fray Junípero Serra, y tomando como
miento de naves pasó de 6 (1760) a 200 (1778); y en el puerto de Buenos Aires entraron modelo ai Fuero para las Nuevas Poblaciones de Andalucía (1767), inició José de Gálvez
35 barcos entre 1772 y 1776, contra 311 entre 1792 y 1796. El Río de la Plata, Venezuela y su plan que posibilitó descubrir la bahía de San Francisco (1770), fundar e! puerto de San
Chile se vieron favorecidas con e! nuevo régimen, que marcó la apertura bacia un sistema Carlos de Monterrey (1770), y lanzar un plan de reducciones indígenas y fuertes castella-
competitivo en e! orden internacional, incluso frente a los contrabandistas44 • nos. Su resultado fue un avance dei domínio hispano efectivo sobre 750 kilómetros de
EI aumento de las exportaciones fue notorio en todas las regiones de la América costa en el Pacífico Norte.
Espafiola: desde el azúcar de Cuba hasta los cueros de Buenos Aires, registraron considera- En e! Atlántico Sur y el Río de la Piara, fueron necesarias activas gestiones diplomá-
bles crecimientos. Las contrariedades económicas se produjeron en aspectos específicos; ticas para obtener de Francia e! reintegro de la isla Soledad de Malvinas (1767) en e! marco
así la expulsión de la Cornpafíía de Jesús (1767) causó en e! Río de la Plata la ruína casi dei Pacto de Família y, con mucha más dificultad, lograr de Inglaterra la devolución de la
inmediata de las Misiones Guaraníticas que habían llegado a ser un potente centro pro- Gran Mal vi na (177 4). EI estado de guerra de Francia y Espafia contra Gran Bretafia, por la
ductor; y en otro orden de cosas, se hacía inminente el agotamiento de las vetas de metales emancipación de los Estados Unidos de América, repercutió en una beligerancia inusitada
nobles, en grandes centros rnineros como Potosí. en las fronteras lusitanas de Brasil, que determinó ai gabinete de Madrid a crear e! Virreinato
de las Províncias dei Río de la Plata (1776) y designar como primer ai general Pedro de
Cevallos quien, en una campana fulminante aniquiló la factoría anglolusitana de Colonia
y dio seguridad a las fronteras.
Las últimas expansiones imperiales Ejerciendo José de Gálvez el cargo de Ministro Universal de Indias, en 1778, impulsó e!
último plan de expansión territorial de Espafía en América: poblar varios puertos de la costa
El desarrollo mundial de la pesca marítima movilizó a las principales potencias incluída patagónica, entre ellos Carmen de Patagones (1779, aún existente) y Puerto San Julián donde
Espafía, en cuya Corte causaron especial preocupación las andanzas frecuentes de naves rusas se fundó la Nueva Colonia de Floridablanca (1781/1784). Se desplazaron desde Espafia 1921
por el Pacífico Norte, e inglesas y francesas por e! Adántico Sur. Los rusos ocuparon Alaska y se personas para su poblamiento, y su êxito hubiera permitido consolidar dos mil kilómetros de
proyectaron como arnenaza latente para el galeón de Manila y las costas desconocidas de la Alta

45
Maria Hernández Sánchez Barba, La última expansión espaiiola en América, Madrid, Instituto de Esru-
dios Políticos, 1957, p. 200 y ss. Augusto Casas, Fray ]unípero Serra, el apóstol de Califórnia, Barcelona, Luís
450 44
Francisco Morales Padrón, op. cit., tomo III, p. 916 a 926. Miracle Editor, 1946. 451
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

9
costas, y preservar a Chile de un hipotético ataque por espalda a la plaza de Valdivia, pero el
segundo virrey, Juan José de Vértiz, no concordaba cone! plan y en parte lo hizo fracasar 46 • 9
6
10

Conclusión 9

El sistema portuarilll his~anoamericano tuvo su configuración fundamental en el marco


de la política de monopolio, y también de submonopolios. Solamente e! circuito Acapulco-
-México-Veracruz logró una vertebración «de costa a costa», en otros casos, los puertos 4
operaron como engranajes para la relación dei sistema con los espacios interiores; pero el ""'1CCP"'-ll:l;ll:l.fl>,Ç[)IM.>,~o.,,,aâ.lA.~
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mayor submonopolio fue el ejercido por Panamá y por Lima sobre extensas regiones del U.ltAV,J,<,l,.>,n,,,Jil-,(J1.DrA,l'O.,.UOHft)
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E! desequilíbrio era consecuencia de un desigual manejo de las áreas oceânicas, que ' MN"tl.O)A ~Ajo;IL>, (OAl.~OIUDlMANILA)
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privilegiaba el Atlântico Norte, las rutas entre Manila y Acapulco en el Pacífico Norte, y el (A.IJ,U,J),\[)f:LliJRJ
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circuito de cabotaje sobre la costa oeste sudamericana, entanto e! Atlântico Sur quedaba
postergado. Principales núcleos pormarios y nuas de navegación ultramarina, en la América Espaiiola.
(Mapa especialmente preparado por el autor de este trabajo.)
La estructura global de los espacios territoriales hispanoamericanos, demuestra em-
pero que el rol central, como articuladores dei imperio en su conjunto, era ejercido por las
cíudades que integraban la red interior de las ciudades, que eran los centros políticos de la
vida social; los puertos ocupan un rol muchas veces subsidiaria que se refleja en la forma-
ción espománea de varios de ellos, en su imagen urbana más o menos precaria, y la fre-
cueme falta de un trazado regular. La evolución posterior posibilitó que las principales
puertos tuvieran un reordenamiento de suplanta, y una renovación arquitectónica que los
dotó de edificación monumental.
La ciudad mediterrânea difundida en toda Hispanoamérica, la capital-puerto (como
Buenos Aires o La Habana), y la ciudad-puerto propiamente dicha (Veracruz, Callao,
Valparaíso ... ) son tipos complementarios que testimonian de un modo u otro, el alto valor
de la ciudad que la cultura urbana de la América espafiola ha legado ai patrimonio concep-
tual y a la identidad de las actuales nacionalidades y regionalidades de la América criolla.

46
Hemos tratado con mayor amplitud este tema en: Alberto S. ]. de Paula, P!anemniento territorial y
fortificaciones portuarias en Patagonia y Malvinas durante e! domínio espaíiol, en: «Puerros y Fortificaciones en
América y Filipinas, Actas de] Seminario 1984», Madrid, Centro de Estudios y Experimentación de Obras La Habana, su área urbana amurallada, puerto y alrededores, hacia 1740/1750, sin mención de autor,
452 Públicas-Comisión de Estudios Históricos de Obras Públicas y Urbanismo, 1984, p. 299 y ss. reproducción parcial (Archivo del Servicio Geográfico del Ejército, Madrid, tomo XI, p. 88). 453
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

PARADIGMAS DO URBANISMO FASE


IMPLANTAÇÃO DOS PORTUGUESES, ESPANHÓIS
E INGLESES NA ESTUDO COMPARATIVO

ASH!SH K REGE
Goa College ofArchitecture

Plano de la ciudad-puerto de! Callao de Lima hacia 1709 según plano original de Louis Feuillée,
publicado en: Francisco Quiroz Chueca, «Las imágenes de! Caflao antiguo, descripciones escritas y gráficas,
Callao, 1990, p. 71. Referencias: A- iglesia mayor / B - los padres de la Compafiía / C- Santo Domingo/
D - San Francisco / E - San Juan de Dias [hospital] / F - la Merced / G - palacio de! Virrey /
H - almacenes de! comercio / I - muralla caída / K - muelle / M - río / N Real Consulado.
(Con algunos retoques de! autor de este trabajo para su más clara interpretación.)

454 * Texto inédito entregue para publicação em 1997.


té finais do século XV o comércio de produtos asiáticos nos mercados europeus fazia-
-se pela Ásia Ocidental, mediante uma longa cadeia de comerciantes. A maioria deste
comércio era controlado pelos árabes, que detinham praticamente todo o monopólio das
transações. Os países europeus sentiram por conseguinte necessidade de descobrir novos
caminhos e novos locais de comércio, de modo a romper com o monopólio dos comer-
ciantes árabes na Ásia Ocidental, ocasionando morosas diligências exploratórias através
das rotas marítimas. Os portugueses foram os primeiros a iniciar este périplo de descober-
tas nos países orientais, por mar. Subsequentemente, esta situação deu origem a um pro-
cesso organizado de conquista e colonização de diversos locais estrategicamente importan-
tes no Oriente. Mais tarde, aos portugueses seguiram-se os espanhóis, os franceses, os
alemães e os ingleses. Inicialmente, em princípios do século XVI, Portugal, seguido pela
Espanha, protagonizou a conquista de cidades e territórios asiáticos, começando a desen-
volver o seu estabelecimento. Como resultado imediato, as ideias e filosofias existentes em
Portugal, em Espanha e na Europa em geral, assim como a forte influência exercida pelo
pensamento renascentista, foram levadas para as colónias, enquanto os ingleses, que se
iniciaram nas descobertas quase dois séculos mais tarde, revelaram uma diferença nítida,
tanto na atitude como no confronto com a cultura orienta!1. Neste sentido, verificamos
uma diferença semelhante entre as cidades estabelecidas pelos portugueses ou pelos espa-
nhóis, ou as que foram colonizadas pelos ingleses.
Os principais motivos que levaram os portugueses e os esi_:,anhóis às descobertas,
tratando-se de colonizadores pioneiros, foram, em primeiro lugar, o estabelecimento de
alianças para o comércio de produtos asiáticos que, naquela época, tinham uma elevada
procura nos mercados europeus e, em segundo lugar, a expansão da fé e do cristianismo
noutros lugares do mundo. Como consequência, a colonização tornou-se uma necessida-
de, na medida em que podia atingir tais objectivos. Ao contrário, colonizadores posterio-
res como os ingleses, apostaram com alguma sobranceria nas vantagens económicas e
comerciais que a colonização possibilitava. Esta situação pode dever-se ao facto de a Euro-
pa, nos finais do século XVII, estar a passar por um desenvolvimento científico e tecnológio
cada vez maior, e a sofrer reais mutações ao nível das atitudes, mediante esforços acrescidos
para atingir o verdadeiro conhecimento científico. Deste modo, as superstições e o fanatis-
mo religioso do século XV foram perdendo expressão para dar lugar ao desenvolvimento do

1
Mítter, Panha, Planeamento arquitectónico e outras actividades de construção dos ingleses em Jvlac!rasta,
Bombaim e Calcutd (1630-1757). 457
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS PARADIGMAS DO URBANISMO

pensamento científico e lógico e, consequentemente, ao aumento cada vez mais significa- Tal como Walter Rossa3 escreve, «Quando o plano foi elaborado, já existiam alguns edifícios
tivo dos lucros económicos. No início, alguns mitos e conceitos erróneos acerca dos países que se estendiam ao longo daquelas duas margens, cada uma com a sua própria igreja da
estrangeiros dominaram os espíritos dos colonizadores, mas à medida que o verdadeiro Imaculada Conceição e de Santa Inês, respectivamente. O núcleo oriental era superior ao
conhecimento emergia através das descobertas científicas, permitindo pois urna maior ocidental na medida em que oferecia mais recursos. Estes incluíam melhor abastecimento de
interacção, essas mistificações acabariam lentamente por desaparecer. água potável, maior proximidade de Goa, Panelirn e Ribander, além de que tinha melhor
Neste artigo faz-se uma nítida comparação entre os vários paradigmas de planeamento acesso ao interior, e era nesta zona que se situava o Quartel General (anteriormente O Palácio
das colónias, dados pelas experiências dos portugueses, espanhóis e ingleses, de Pangim em de Hildacão) junto à foz do afluente». O plano era constituído por um padrão de tipo
Goa, de Manila nas Fili~in;s e de Madrasta, Calcutá e Bombaim na Índia, respectivamente. geométrico, em rede, formado por ruas dispostas paralela e perpendicularmente ao curso do
Todos estes planos constituem os paradigmas do período inicial de colonização das respecti- rio, subindo até ao sopé do monte chamado Altinho. As ruas que vinham do monte em
vas potências coloniais europeias, tratando-se da instalação de portos marítimos. O povoa- direcção ao rio mantinham uma articulação visual com a margem e com a paisagem natural
mento de Pangim e Manila teve início por altura das primeiras colonizações, enquanto, de do outro lado do rio. A maioria dos edifícios situados na orla costeira tinha pois uma ligação
acordo com os estabelecimentos ingleses, estas situam-se a partir do século XVII em diante. directa, ou mesmo um acesso ao rio. A planta do burgo mostrava uma série de espaços
Duma maneira geral, em todos os exemplos, verifica-se que os povoamentos começaram por abertos que iam desembocar na praça principal (que Rossa refere como o núcleo oriental) em
se efectuar ao longo da orla marítima, como cidades portuárias, com as suas expansões e, na frente à igreja da Imaculada Conceição.
maioria das vezes, estendendo-se em paralelo à linha costeira e nunca em direcção ao interior.
A razão apontada para este facto é que, num período inicial, tanto a consolidação como a Manila - era também um pequeno povoado, constituído por um aglomerado de
defesa destes povoamentos dependia da proximidade e do acesso directo ao mar, pois consi- cabanas feitas de bambu e colmo, anterior à conquista espanhola, na segunda metade do
derava-se que os grandes perigos viriam das zonas do interior. século XVI. A maior parte dos habitantes da costa, camponeses de classe baixa, viviam em
Para fundamentar melhor esta comparação seria interessante fazer um resumo dos grupos de cerca de cem a quinhentas pessoas, de acordo com uma organização sociopolítica
primeiros esforços levados a cabo pelas diferentes potências colonizadoras no desenvolvi- chamada barangay, baseada em fortes laços de parentesco 4• Este povoamento gerou um pa-
mento das vilas portuárias: drão de desenvolvimento bastante disperso nas regiões das Filipinas. Em 1570, quando Miguel
Lopez de Legazpi, o comandante espanhol do exército, decidiu escolher Manila como base
Pangim - actualmente é a capital de Goa, situada na costa ocidental da Índia, a de todas as operações, este povoado transformou-se numa cidade com muralhas, mediante
cerca de 15 graus de latitude, a norte, tendo surgido inicialmente sob a forma de uma um plano cuidadosamente traçado, com a maioria dos edifícios construídos em pedra, tijolo
pequena povoação, nos finais do século XI, tal como se pode ver numa inscrição em cobre e azulejo. Manila oferecia o cenário de um porto natural que podia ser o retiro ideal para a
de 1107 d. C., de Tribhuwanmalla, o rei da Dinastia de Kadamba de Goa, a quem se realização do comércio local e internacional. Mais tarde viria a tornar-se um importante
referiam como «Panjani-Khani,,2. Os habitantes da povoação pertenciam a uma raça de entreposto que unia os mercados da China e do Sudeste da Ásia ao México, encorajando o
pescadores e pessoas pobres que viviam em pequenas cabanas. O único edifício importan- comércio transpacífico da seda, porcelana, especiarias e outros artigos de luxo.
te que existia em Pangim no período que antecedeu a chegada dos portugueses em 151 O O plano básico desta cidade hispânica portuária integrava o padrão de uma rede
era o Palácio construído por YusufAdil Shah, o rei de Bijapur, que naquela altura detinha geornetrizada de ruas, bem projectadas, no qual havia uma praça central ou praça pública,
o domínio do território de Goa. com a catedral principal (surgindo acima das outras estruturas), um hospital, e muitos
A grande epidemia de 1695, na cidade de Goa (Goa Antiga), despoletou o processo de outros edifícios públicos de Estado, um forte (Forte de Santiago) localizado estrategica-
transferência dos principais organismos para outros locais fora da cidade. A residência oficial mente no ponto em que o rio Pasig se cruza com a baía de Manila e, acima de tudo, um
dos vice-reis e dos governadores passou para o Palácio de Adi! Shah em Pangim, cerca da fosso muito fundo, assim como as fortificações em redor do burgo, com portões e locais
mesma altura. Outros cargos, como os que respeitam à Alfândega, foram também mais tarde apropriados. O resto do aglomerado era composto por diversas estruturas residenciais de
transferidos para Pangim. Finalmente, em 1777, foi elaborado um plano com uma alteração dois andares e edifícios pertencentes a várias ordens religiosas. O plano inicial desta cidade
da vista panorâmica da capital, e sua implementação dentro de lllna área constituída pelo rio
Mandovi na margem norte, e pelos dois afluentes do rio nas margens oriental e ocidental.
3
Rossa, Walter, Cidades indo-portuguesas, uma contribuição para o estudo do urbanismo português no Jndustão
Ocidental, Lisboa, 1997, p. 109.
458 2
Satoskar, B. D., Gomantak:pralr,-iti e samkriti, vol. 3, 1987, p. 426. 'Reed, Robert R., A fimdação e a morfologia de Manila hispânica: imagens coloniais e realidades das Filipinas. 45 9
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS PARADIGMAS DO URBANISMO

colonial revelou o êxito de instituições determinantes, como a igreja (religião) e o Estado principais mantendo-se no exterior da fortificação. O antigo plano da zona central de
que representavam uma organização política superior e um poderoso poderio militar. Calcutá foi modificado para criar a Maidan (Esplanada), dotada de uma vista deslumbran-
te, e concebida de modo a estabelecer, a partir do burgo, a distância adequada do forte.
Madrasta - foi um dos primeiros povoamentos estabelecidos pelos ingleses por vol- A maidan foi erguida num local central, à volta da qual se planearam edifícios magníficos.
ta de 1639 d.C. A sua localização na Costa Coromandel, ou na costa oriental da península Segundo Philip Davies 5, «O aspecto estático do desenvolvimento baseado em enclaves
indiana, deu-lhe especial relevo devido às alianças que se podiam desenvolver com as cida- defensivos, que caracterizou as primeiras colónias europeias, deu lugar a uma configuração
des do Sudeste da Ásia. Madrasta não era um porto natural e em certas ocasiões isso punha mais dinâmica de povoamento disperso, mais orientado para um crescimento expansivo e
problemas ao desembafque mercadorias e passageiros. A zona mais antiga estendeu-se não restritivo. Trata-se pois de uma reflexão do crescimento do poder, da segurança e do
ao longo da margem em duas partes distintas; a primeira, o forte (São Jorge), com uma aumento da riqueza».
área habitacional interior para os cidadãos ingleses, que veio a ser conhecida como a Vila
Branca ou Cristã e, a segunda, a vila para a população local habitar, conhecida pela Vila Bombaim sendo um porto natural na costa ocidental da Índia, era no início um
Negra, situada na parte exterior do forte. As duas partes foram edificadas segundo um plano, centro de comércio que ligava a Ásia Ocidental à Índia, e outros países ao Ceilão e Sudeste
cujo modelo consistia numa rede geométrica de ruas, que constituiu uma das primeiras da Ásia por rotas marítimas. O desenvolvimento inicial, incluindo o porto, o forte e o
soluções de organização das cidades inglesas na Índia. As ruas eram estreitas e largas, com povoamento foi dirigido pelos portugueses, e, em 1661 d.C., transferido para os ingleses
pavimentos de ladrilhos para os passeios pedestres, situados de ambos os lados. A fortificação por razões diplomáticas. Menteve-se um pequeno burgo até finais do século À'VIII, com
e o muro de cercadura da Vila Branca foi concluído em 1659 d.C. Edifícios públicos como muito poucas construções de edifícios, como por exemplo uma catedral e algumas resi-
o da Câmara Municipal, o da Igreja de Santa Maria, o do Colégio, do Hospital e da casa do dências. Só depois do século XL'{, a nova vila indo-britânica começou de facto a desenvol-
Governador encontravam-se dentro do forte. Até as residências civis (chamadas linhas civis) ver-se. O grande incêndio de 1803, que deflagrou na vila, e a redução da influência e do
e as residências dos militares, no interior do forte, foram totalmente segregadas - uma poder dos marata, os governantes vizinhos, cerca de 1820, constituíram os dois factores
característica inglesa típica das vilas coloniais na Ásia. A maior parte das casas tinham dois mais determinantes para a aceleração do processo. Todavia, há mais factores que contribuí-
andares, com pórticos nas fachadas e jardins privados no interior dos terrenos. ram para a expansão de Bombaim: em primeiro lugar, em 1835, tornou-se um episcopado
e, em 1838, a igreja de São Tomás foi elevada ao estatuto de catedral; em segundo lugar, o
Calcutá - também uma colonização indo-britânica, situada na costa oriental da Ín- Grande Caminho-de-Ferro Peninsular Indiano foi iniciado em 1853, a partir de Bom-
dia, foi estabelecida cerca de 1689 d.C., dispondo-se um pouco acidentalmente, não seguin- baim, ligando Tana e, subsequentemente, outras vilas vizinhas, dando maior importância
do uma ordem definitiva. O povoamento inicial, que incluía residências (dispostas nos seus a Bombaim quando comparada a outros burgos. Foi de facto logo após o sucesso da re-
próprios jardins), era muito importante para os europeus, tendo-se desenvolvido de uma pressão dos motins em 1857, em diferentes locais da Índia, que os ingleses começaram a
forma bastante ordenada ao longo do rio Hoogly. A zona principal do burgo era mais uma ter um real envolvimento nas políticas indianas, o que veio a reflectir-se nos planeamentos
vez um forte em forma de estrela, chamado Forte William, e construído em 1754, com o e na arquitectura das cidades.
Grande Reservatório criado pelo conjunto natural das águas existentes. O reservatório era a Em 1864 d.C., o primeiro grande Plano de Melhoramentos foi implementado em
maior fonte de água para o povoado. Naquela época o forte albergava edifícios muito impor- Bombaim, no qual as paredes mais antigas da vila (cuja manutenção se demonstrava ser
tantes, como as casernas, a Casa do Governador, oficinas, armazéns e edifícios de habitação. economicamente muito pesada), em redor da zona do forte, foram demolidas para alargar a
Os outros blocos residenciais, a igreja e o hospital situavam-se fora do forte. A margem do rio maioria das ruas da vila. Seguiu-se o plano de desenvolvimento de um centro de uma vila
foi-se desenvolvendo à base de plantações e caminhos interessantes. chamado Círculo Elphistone (ou Horniman), com um jardim central e o edifício da Câmara
A invasão pelos maratas, vindos da Índia Oriental em 1742, assim como a tentativa Municipal em destaque. Tratou-se pois de uma primeira experiência, num design de
de tomada de poder de Suraj-ud-Daulah, o filho do governador da província de Bengala, escala, em que as linhas directrizes foram também pensadas para o projecto de outros edifí-
mais tarde em 1756, abrandou o desenvolvimento de Calcutá. Mostrou igualmente a cios em volta deste círculo. Elementos de design urbano, como arcadas cobertas, grades de
vulnerabilidade do burgo relativamente aos ataques exteriores. Depois de Calcutá ter sido ferro ornamentais e uma série de composições de arcos unificadas eram utilizadas de modo a
retomada pelos ingleses em 1757, deu-se uma mudança fundamental na configuração dar unidade e continuidade.
desta vila ao tornar-se num dos mais importantes centros urbanos da Índia. Foi criado um
5
460 novo forte, mais amplo e com fortificações mais pesadas, mas desta vez com os edifícios Davies, Philip, Arquitectura britânica na Índia 1660-1947: esplendores do Raj, 1985, p. 51. 461
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS PARADIGMAS DO URBANISMO

Neste sentido verifica-se uma mudança na orientação política britânica na Índia, e ponto em que se cruza com a baía de Manila, ao passo que a vila de Pangim localizava-se
nesta época surgiram muitos dos edifícios mais elegantes do património inglês, em Bom- quase a três quilómetros da foz do rio Mandovi, para o interior, onde se encontra com o
baim, como por exemplo a Biblioteca da Universidade, a Assembleia Legislativa, a Torre mar arábico. Além disso, Pangim situava-se na ilha de Tiswadi, rodeada pelos rios Mandovi
Raja Bhai, o edifício do Correio e do Telégrafo, popularizando o alto estilo gótico vitoriano. e Zuari, daí a razão de Pangim ser diferente das outras vilas portuárias, por não ter neces-
Exibia a segurança do poder colonial e a tentativa subjacente de encontrar soluções ade- sidade do forte ou do muro, tão importante naquela época para a defesa do burgo.
quadas para a sua integração naquele clima. No período que se seguiu, foram feitos esfor- As vilas que se desenvolveram na Ásia, durante o processo de colonização europeia,
ços no sentido de incorporar os detalhes que caracterizavam o estilo indiano, ou mesmo as tinham várias vantagens de localização. Todas elas eram de início utilizadas como vilas
suas técnicas de constru<jião, 'Utilizando os materiais locais disponíveis, mas num formato portuárias ou, então, dotadas de um grande potencial, possibilitado pelas rotas marítimas
mais amplo de design europeu. Esta combinação produziu uma arquitectura indo-britâni- que estavam a ser estabelecidas. A maior parte tinha a consistência ou o terreno natural
ca típica que, por sua vez, também foi usada nas outras vilas indo-britânicas, integrando as apropriado, necessários à construção de um porto. Inicialmente estes povoamentos ou
variações regionais e vindo muito mais tarde a culminar no projecto de concepção de vilas portuárias eram baixas (menos em profundidade a partir da orla marítima) e no
Nova Deli, no segundo quartel do século xx. interior eram mais de tipo defensivo. Tinham mais aberturas do lado do mar, de modo a
Em todos estes casos os povoamentos foram vistos e concebidos para serem instru- permitir a fuga, no caso de surgirem situações de perigo. Estes países europeus possuíam
mentos de ocupação territorial, exploração económica, administração regional e conver- melhores frotas navais e escavam mais habilitados para este tipo de empreitadas, podendo
são religiosa (na primeira fase). Foram planeados de modo a reflectirem a superioridade antever muito menos problemas para estes burgos, utilizando o mar, e mantendo por
das organizações políticas e o poderio da força militar. Um forte bastante sólido e um conseguinte as fortificações mais sólidas no interior, de modo a contar com eventllais
amplo muro na vila, usados como elementos essenciais de projecção planificada, na maio- ataques. Mais tarde, à medida que as potências coloniais se iam consolidando, as vilas
ria dos casos, construídos com um objectivo defensivo, tornaram-se o símbolo representa- começaram a espraiar-se para fora dos muros, disseminando-se mais profundamente na
tivo do poder colonial. Inicialmente, as igrejas ocupavam os melhores locais do burgo e, direcção da zona vigiada, dotada de mais aberturas e articulações. Os edifícios públicos
juntamente com a praça central ou o espaço aberto, constituíam as estruturas fundamen- importantes na época que se seguiu começaram deste modo a sair dos limites impostos
tais, como nos casos de Pangim e Manila. As outras estruturas religiosas que eram construídas pelos fortes ou pelos muros. O Plano de Melhoramentos implementado em 1864, em
posteriormente nas vilas davam origem aos espaços abertos secundários que se situavam Bombaim, e a planta para a área central a maidan - e o novo Forte William em
em face dos principais. Calcut;Í, em 1770, constituem os exemplos que tornam ilícitos estes factos.
Nos dois casos, de Pangim e Manila (Figs. 1 e 2), o plano original foi traçado segundo As vilas coloniais desenvolveram um novo vocabulário na área do design, apesar de
o padrão clássico de rede geométrica, com pequenas modificações, de forma a harmoni- alguns desses conceitos, como a concepção de espaços públicos através de plazas (ou pra-
zar-se com as características topográficas e fisiológicas locais. O plano continha uma hie- ças), ou o desenho de passagens abobadadas, não serem novos para os países asiáticos. Os
rarquia intrínseca, em termos de uma rede de ruas e espaços abertos, a culminarem num elementos deste novo vocabulário incluíam o uso de Arcos do Triunfo ou passagens
espaço aberto central como ponto nevrálgico. Ao contrário, no caso de Madrasta, Calcutá abobadadas, arcadas, muros baixos contínuos ou grades (em ferro fundido), etc., que aju-
e Bombaim na Índia (Figs. 3, 4 e 5), o forre situado na proximidade da margem formava davam a criar ornamentos harmoniosos em espaços públicos. Os monumentos comemo-
o eixo em torno do qual se deram as expansões posteriores quase paralelamente à orla rativos, os obeliscos, as estátuas ou esculturas, eram utilizados para criar pontos centraliza-
marítima. Em Bombaim o crescimento era feito ao longo dos eixos principais que corriam dos. Até mesmo elementos de construção como declives de telhados geometrizados ou
quase em paralelo com a costa. Além disso, também se pode constatar que na época em regularizados, pórticos com terraços por cima, balcões e varandas com grades de ferro,
que Bombaim estava a desenvolver-se, dava-se mais ênfase aos projectos de edifícios indi- frontões, colunatas (com diversas disposições), arcos semicirculares (clássicos) ou ogivais
viduais do que ao de espaços abertos, ao nível da vila, ao contrário dos planos oferecidos (góticos) e janelas rectangulares com ornamentos a criar uma uniformidade na linguagem
pela experiência renascentista. arquitectónica eram utilizados nas vilas coloniais.
Mais uma vez, canto em Pangim como em Manila, os edifícios estatais localizavam-se O fenómeno do design de bungalozus (bangla na linguagem local é uma casinha com
nos bairros importantes onde existiam as ruas projectadas em rede, criando assim os espa- dois andares, com beirais muito bem modelados, e o telhado em declive), que era uma
ços públicos abertos secundários. Os outros bairros que restavam da vila formavam-se com característica original da província de Bengala na Índia, popularizou-se com os ingleses,
base num desenvolvimento homogéneo de residências de dois andares. A única diferença através das adaptações e modificações do modelo original que eles próprios fizeram. Uma
462 fundamental entre estas duas vilas é que a de Manila situava-se logo na foz do rio Pasig, no outra característica urbana, desenvolvida pelos ingleses nas cidades coloniais, era a dos 463
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

«Acantonamentos)), que se veio a tornar um traço regular nessas cidades, já na última fase,
tendo-se iniciado na segunda metade do século XIX. Os acantonamentos eram semelhantes
a vilas autónomas no interior ou na periferia das vilas principais, ostentando uma organi-
zação e uma de espaço altamente disciplinada. Segundo Philip Davies 6, «A
origem do acantonamento pode ter sido ditada por uma necessidade militar, contudo, Fig. 1 - Mapa de Manib: estrutura original,
em 1670. l. Praça Principal (Plaza Mayor)
teve um profundo impacto em toda a estrutura social e espacial da Índia inglesa. Repre- com a Catedral de Manila; 2. Praça de Armas
sentaram o primeiro estádio na separação física entre o governador e o governado que (Plaza de Armas) com a Capela Real; 3. Igreja de
São Domingo; 4. Igreja de São Francisco;
caracterizava o um 1;;;1iv1w::1 que no seu melhor possibilitou um Governo incorrup- 5. Igreja de Santo Agostinho;
tível à parte, e, no seu pior, fomentou as ideias arrogantes de superioridade racial». 6. Igreja das Esmolas; 7. Convento de Santa
Clara; 8. Universidade dos Jesuítas; 9. Seminário
Em todos os paradigmas atrás mencionados, as vilas eram concebidas e utilizadas
dos Jesuítas; 10. Hospital de São João de Deus.
como instrumentos para consolidar e manifestar o poder da experiência da colonização na
A tentativa de elaborar um plano destes povoamentos variava segundo o padrão de
rede geométrica de ruas dos séculos XVI e XVII, e os modelos de planos baseados numa
aproximação mais racionalística das vilas desenvolvidas numa fase posterior. Podemos con-
cluir que as influências do planeamento de tipo renascentista e barroco predominavam
mais nos primeiros paradigmas, pois com o advento do desenvolvimento científico e da
revolução industrial começou a era do planeamento racional. A utilização do estilo gótico
vitoriano, adaptado de modo a ajustar-se às condições locais, é um outro exemplo deste
processo de racionalização. Em quase todos os paradigmas analisados neste texto pode-
mos verificar que as percepções e os pontos de vista mudaram consideravelmente nos
séculos XIX e XX, e a síntese de ideias e a combinação de influências arquitectónicas e de Fig. 2 - Mapa de Madrasta: estrutura do burgo,
nos séculos XVII e XVIII. 1. Igreja de Santa Maria;
planeamento começaram a ganhar relevo, apesar do grau e do ritmo dessa articulação ter
2. Edifício do Supremo Tribunal; 3. Estação
variado consoante as diferentes experiências coloniais. O projecto que foi delineado para Central dos Correios; 4. Estação Central
Nova Deli por Luytens na Índia inglesa é o exemplo mais brilhante (apesar de ser já dos Caminhos-de-Ferro; 5. Mercado Mouro;
6. Palácio do Governo; 7. Universidade;
no século xx), desta «fusão)), manifestado através da arquitectura e do planeamento de 8. Palácio Chepauk; 9. Catedral de São Jorge.
uma cidade.

Fig. 3 - Mapa de Calcutá: estrutura da cidade,


do final do século XVII até ao século XIX.
1. Monumento Comemorativo da Vitória;
2. Catedral de São Paulo; 3. Palácio do Bispo;
4. Cemitério; 5. Igreja de São Pedro; 6. Câmara
Municipal; 7. Palácio do Governo;
8. Supremo Tribunal; 9. Universidade;
464 6
Davies, Philip, Arquitectura britânica na Índia 1660-1947· esplendores do Raj, 1985, p. 77. 10. Estação Central dos Correios. 465
ARA8tAN
SEA

NOTAS SOBRE O URBANISMO BARROCO NO

NESTOR GOULART REIS FILHO


Faculdade de Arquitectum e Urbanismo
da Universidade de Siío Paulo

Fig. 4 _ Mapa de Bombaim: estrutura da cidade do fi~al do sérnl~ XVIII até a~ :érnlo XIX.
l. Praça da Fonte Flora; 2. Elphistone ou Círculo Horn1man; 3. Camara Mumctpal; 4. _Passagem
do caminho-de-ferro junto à Igreja; 5. Recinto oval; 6. Supremo Tribunal; 7. Bibl10teca da Un1v:rs1chde;
8. Assembleia Legislativa da Universidade; 9. 'Terminal Vitória; 10. Estação Central dos Corre10s;
11. Edifício do Município.

466 Fig. 5 - Mapa de Pangim: estrutura original em 1888. * Este texto foi publicado nos Cadernos de Pesquisa do LAP, Série Urbanização e Urbanismo, São Paulo:
Universidade de São Paulo-Faculdade de Arquitectura e Urbanismo, n. 0 3, Nov.-Dez., 1994.
Este trabalho foi escrito para ser apresentado no II Congresso do Barroco no Brasil -
Arquitetura e Artes Plásticas, realizado em Ouro Preto de 25 a 29 de setembro de 1989.
O texto foi publicado na Revista Barroco n. 0 15, sob coordenação de Affonso Ávila.
O original foi ilustrado com umas poucas fotografias, levadas ao Congresso. Agora, com o
lançamento dos Cadernos do LAP, temos possibilidade de reeditá-lo com um número
maior de imagens, importantes para o leitor.
Esse assunto foi abordado por nós em vários outros trabalhos, nos capítulos sobre o
Brasil, em livros referentes ao urbanismo ibero-americano, publicados na Espanha nos
anos 80 1•
O tema foi escolhido porque há poucos trabalhos sobre o urbanismo do Brasil, do
século xvrn e do início do XIX. Ao mesmo tempo, sempre nos interessaram os estudos sobre
a importância da arquitetura mais comum e despretensiosa, tão significativa, no centro
das cidades brasileiras. Os conjuntos urbanos são um tema fascinante porque se situam
nos limites dessa simplicidade: tomado isoladamente, cada um dos edifícios que os inte-
gram são despretensiosas mas, em conjunto, são monumentais. Nisso talvez resida o en-
canto dessas obras, que terminam por ser uma lição sobre a importância do projeto urba-
nístico e sua antigüidade no Brasil.
Esse trabalho está centrado no exame de um exemplo excepcional: o conjunto urba-
no de sobrados, edificado na Cidade Baixa na Bahia, cuja parte mais antiga já existia em
meados do século XVIII. Os últimos projetos são do início do século XLX e as obras foram
concluídas já em meados daquele século. Em termos cronológicos, termina por ser estra-
nho relacionar essas iniciativas com a cultura barroca. não por acaso, as obras daquele
período apresentam detalhes de acabamento que entraram em voga nos períodos Pombalino
e Dona Maria I. O conjunto da Cidade Baixa na Bahia começou a ser edificado em algum

1
Urbanizaçáo no Brasil - capítulos Vlll (séculos XVI a XVIII) e ]X (séculos XIX e XX) - in De
Teotihudcan a Brasília - estudios de história urbana ibero-americana Coordenador Gabriel Alomar,
Ed. Instituto de Estudios de Administración Local. Páginas 351 a 360 e 371 a 386 Madri, 1987. História
Urbana de Iberoarnérica. ll-2, La Ciudad BarrocaAnálisís Regionales 1513/1150, Brasil capítulo TV, coordena-
dor Francisco Solano, edição do Consejo Superior de Los Colegios de Arquitectos - edição comemorativa do
V Centenário da Descoberta da América, Madrid, 1990, páginas 513 a 543, Idem 111-2-La Ciudadllttstrada:
Análísis Regionales (1750-1850), capítulo XI- Brasil, páginas 717 a 752. 469
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO BARROCO NO BRASIL

momento, antes de 1756, como um reaproveitamento de terrenos dos jesuítas aos pés do Para o historiador que focaliza o conjunto da sociedade com suas contradições, que
guindaste, muito cedo ali instalado pela ordem, e pela formação de novos aterros, sobre o não se prende a uma tipologia de caráter puramente morfológico, os dois objetos são
mar. Para guarda das mercadorias, havia ali, em meados do século xvu, o «Coberto Gran- dignos de estudo e ambos fazem parte de um conjunto indissociável. E um não pode ser
de» e o «Coberto Pequeno». Com a reurbanizacão, os velhos armazéns desapareceram, mas corretamente explicado, sem que se considere o outro.
ficou o nome, em uma das ruas do conjunto. São duzentos anos de projetos e obras, No caso do urbanismo barroco e rococó é possível identificar essas correntes contra-
coerentes entre si e cada vez mais perfeitas. Se as últimas etapas já vão incluir ediHcios com ditórias. Freqüentemente, quando se menciona o urbanismo barroco, há referências ao
características arquitetônicas mais recentes, o esquema urbanístico é da primeira metade palácio de Versalhes, com seus parques, aos múltiplos eixos de perspectiva dos jardins de
do século xvm e suas raí:i:es ~~ntram-se no século XVI! europeu. Versalhes e do Castelo de Vaux le Vicomte, que podem ser relacionados com a multiplicidade
De início, os nomes guardavam estreita relação com os tipos de cargas mais comuns, de perspectivas da decoração das igrejas barrocas ibéricas e ibero-americanas.
o que permite supor que houvesse especialização de uso, para cada trecho: Cais da Farinha, Mas é possível estabelecer uma outra referência para o urbanismo barroco: a das praças
Cais da Lenha, Cais das Louças, etc. No início do século XIX os nomes mudaram de caráter. e conjuntos urbanos. No Brasil, tivemos alguns exemplos importantes dessa forma de urba-
Neste trabalho, seguindo outros autores2, utilizamos a denominacão genérica de Cais das nismo, que nunca foram devidamente valorizados.
Amarras, para designar o mais importante dos conjuntos, construído nesta época. Mas, de Até os anos 50, a existência de um urbanismo barroco no Brasil era ignorada pelos
fato, a denominação variava, pois certos trechos eram conhecidos como Cais do Ramos e autores. Um ensaio bem conhecido, de Sérgio Buarque de Holanda\ estabelecia um para-
Cais do Pedroso. lelo entre o urbanismo hispânico e o português, nas Américas, sintetizando seu conteúdo
Os conjuntos urbanos surgem na Europa nos últimos anos do século XVI, como uma em um título, que se tornou célebre: «O semeador e o ladrilhador.» Naquele trabalho, as
forma característica da época barroca, em que a burguesia começa a encontrar um papel formas do urbanismo luso-brasileiro eram interpretadas como sendo caracterizadas pela
social de destaque, no quadro dos estados nacionais, de base econômica mercantilista. No informalidade, em contraste com a regularidade do urbanismo hispano americano. Essa
texto, procuramos mostrar a relação estreita entre esse modelo e o do Leviatã de Thommas mesma atitude teve Robert Smith 4 com relação à cidade de Salvador, em texto igualmente
Hobbes. Não será um exagero afirmar que o urbanismo do século XIX na Europa é uma célebre, em que mencionava autores ela época colonial, que afirmavam deliciados que «os
generalização dos critérios definidos experimentalmente nos conjuntos urbanos de origem portugueses desconheciam a orclem» 5•
barroca. Mas os elementos empíricos acumulados ao longo das últimas décadas nos permitem
Paradoxalmente, apesar de sua importância e de sua monumentalidade, essas obras identificar algumas formas de realização do urbanismo barroco no Brasil, que merecem algum
foram praticamente ignoradas pelos estudiosos brasileiros, o que explica o seu completo destaque e tendem a contestar aquelas interpretações.
desaparecimento.
Este texto procura pôr em destaque a presença de obras desse tipo no Brasil e sua
importância para todos os pesquisadores.
Os planos de vilas e cidades
Há dois métodos básicos de se estudar a produção artística barroca: o primeiro foca-
liza as realizações do estado absolutista; o segundo focaliza as realizações da burguesia em Os procedimentos adotados pelo governo português nos últimos anos do século XVII
formação. São duas formas diversas e quase antagônicas de estudar as realizações de um e na primeira metade do século XVIII, para fundação de vilas e cidades no Brasil, foram
mesmo período. No primeiro caso - o mais comum nos ensaios sobre o Brasil - , os consolidados no Período Pombalino, de forma a constituir uma linha de suporte técnico
objetos de estudo são as obras monumentais, que expressam a concentração de poder em para uma sólida política urbanizadora. A administração pombalina promoveu a criação de
mãos do estado absolutista. No segundo caso, os objetos de estudo são obras até comuns, uma extensa rede de vilas, através da qual procurou implantar um sistema de estreito
se tomadas isoladamente, que se tornam muito significativas, se são examinadas em con- controle, sobre a vida colonial 6 •
junto. No Brasil, esses últimos exemplos nem sempre foram considerados como dignos de
estudo e preservação e, em sua maior parte, foram e continuam a ser destruídos. 3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Bmsil (1956).
4
SMITH, Robert Chester. Arquitetunt Colonial (1955).
5
REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuiçdo ao .Estudo da Evolução Urbana do Brasil: 1500-1720 (1968),
pp. 77 e 188.
470 2
FERREZ, Gilberto, Bahia - Velhas Fotografias, Livraria Cosmos Editora, Salvador, 1988. 6
HUDNU1; Joseph. Conjuntos Arquitectônicos dei Renacimiento (1962). 471
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUilS NOTAS SOBRE O URBANISMO BARROCO NO BRASIL

A implantação dessa rede de vilas obedeceu a determinados padrões de regularidade, O melhor instrumento conceituai, para compreensão da natureza dos conjuntos ur-
que permitiam atender a objetivos simultaneamente civis e militares. Um documento consi- banos, pode ser encontrado na obra de Thomas Hobbes, denominada O Leviatã 8 • Nessa
derado como chave para a compreensão desse processo é a Carta de Criação da Capitania de obra Hobbes desenvolve um conceito de estado, que permite explicitar as relações entre a
São José do Rio Negro (Amazonas) mencionada por Paulo Thedim Barreto, em seu trabalho formação da burguesia e o estado absolutista. Hobbes concebe o estado absolutista corno
denominado O Piauí e a suaArquitetura 7 • A carta traça as diretrizes básicas para a organiza- sendo formado por um conjunto de cidadãos, à semelhança do gigante Leviatã. Tomados
ção territorial e político-administrativa daquela capitania, com ênfase nos procedimentos, isoladamente, os indivíduos nada representam; articulados sob a forma de um estado
considerados como adequados, para a criação de vilas. O documento prescreve normas para moderno, adquirem extraordinário poder.
o traçado de ruas e praça!;, obedecendo ao padrão clássico hipodamico (em xadrez). Mas Os conjuntos urbanos barrocos se desenvolvem de urna forma semelhante. Reunidos
inclui também normas para o traçado dos Íotes dentro das quadras e fixa padrões de facha- de acordo com o desenho de conjunto, os edifícios relativamente simples dos particulares
das, que conduzem a uma sistemática padronização da própria arquitetura. As normas urba- adquirem caráter monumental, que até então havia sido privilégio dos edifícios e das pra-
nísticas fixavam padrões para traçado de mas e as formas das quadras. Estabeleciam diretrizes ças de caráter aristocrático, nas quais se instalavam os prédios públicos, os do clero e os da
para os padrões dos lotes e dos edifícios, visando a uniformização das fachadas dos prédios e nobreza. Em contraste com esse esquema, os conjuntos urbanos barrocos são a afirmação
sua integração em conjuntos maiores, em cada quadra. No exemplo ideal, os edifícios ti- do Terceiro Estado e a glorificação do comércio.
nham todos a mesma alcura, as mesmas dimensões de portas e janelas e os mesmos tipos de No Rio de Janeiro, o conjunto mais relevante foi o do Pátio do Carmo, atual praça
ornamentos, como se fossem partes de um edifício maior. XV, que obedeceu a projeto de José Fernandes Pinto Alpoim, um dos mais importantes
Assim, as normas de controle estabelecidas pela administração pombalina não se engenheiros militares, nesse período. Mas é basicamente ligado a uma praça oficial 9 • Ca-
limitavam às regularidades de traçado da arquitetura e do sistema viário. Em alguns casos, racterísticas dos conjuntos urbanos da segunda metade do século XVIII, são também as
levavam a formação de conjuntos urbanos, cuja importância ainda não foi devidamente obras do que era então o «Estado do Grão-Pará e Maranhão». São bem conhecidos os
reconhecida. conjuntos de sobrados e de casas térreas de Belém e de São Luís do Maranhão. Mas o
exemplo mais sofisticado de conjunto urbano, naquela região, é constituído pelos edifícios
da praça principal da Vila de Alcântara, no Maranhão. Sem as dimensões avantajadas de
outros exemplos, os edifícios que envolvem aquela praça obedecem a normas de relaciona-
Os conjuntos urbanos mento entre si, de extrema elegância, justificando um esforço para sua preservação.
Na Bahia, existiram conjuntos urbanos de grande importância, hoje completamente
Os conjuntos urbanos constituem um dos aspectos mais interessantes do urbanismo desaparecidos. Sua existência foi esquecida, sendo raramente registrada pelos historiado-
barroco no Brasil. res. O exemplo principal é o do antigo Cais da Farinha e áreas adjacentes. Em meados do
11'ata-se de conjuntos de edifícios, destinados a comércio e residência, obedecendo a século xvrn, à altura do antigo guindaste dos jesuítas, foi construído na Cidade Baixa um
um projeto comum, de tal sorte que, se tomados isoladamente, apresentam-se como edifí- conjunto de quadras, compostas com edifícios de mesmo número de andares e mesmo
cios de importância relativa. Mas, no conjunto, adquirem uma monumentalidade, que até acabamento externo, a exceção de alguns detalhes decorativos. Os pisos e as aberturas
então havia sido privilégio dos palácios, tanto em termos arquitetônicos como urbanísticos. eram nivelados entre si, de tal sorte, que a impressão para o observador era a de um único
Do ponto de vista social, os conjuntos urbanos representam uma transformação na prédio, em cada quadra. Essas construções eram implantadas em terrenos conquistados ao
vida das cidades. São a primeira manifestação de ascensão social e de poder da burguesia. mar. A história desse bairro é a história dos sucessivos aterros e ampliações da Cidade
O que caracteriza esses conjuntos é o fato de que são uma realização que se desenvolve em Baixa. No início do século xvm havia apenas umas poucas construções, ao pé da colina; a
dois níveis: o das obras arquitetônicas individuais privadas e relativamente simples e o do seguir, o mar. Em meados do século havia no Cais da Farinha as três quadras mencionadas,
conjunto urbanístico complexo, coletivo e de caráter monumental. Os projetos arquite- como uma ponta avançando sobre o mar. No final do século XVIII eram seis quadras de
tônicos são enquadrados por um projeto de urbanização ou reurbanização, que lhes confe- aparência regular. Foi então estabelecida uma nova linha de aterro, à frente da anterior,
re uma nova dimensão plástica e social. com uma série de dez quadras e três praças e uma linha de cais à sua frente.

8
HOBBES, Thomas. O Leviatã ou matéria, forma e poder ele um estado eclesidstico e civil (1983).
472 7
BARRETO, Paulo Thedim. O Piauí e a sua Arquitetura (1938). 9
FERREZ, Gilberto. As cidades elo Salvachre Rio ele Janeiro no século XVIII (1963), pp. 40 e 41. 473
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Essa evolução está documentada em desenhos da época e fotografias antigas 10 • As plan- principais construções surgidas nessas décadas. Vilhena mostra o Cais Dourado, com
tas e elevações desenhadas em períodos anteriores, no início do século xvm, como a de cinco quadras, e o conjunto do Cais da Lenha, com o Cais da Cal, o da Louça e o da
Frezier (1714) e a do Brigadeiro Massé (1715), mostravam ainda a Cidade Baixa com poucas Farinha, terminando nos limites do Cais de Santa Bárbara. Segue-se uma série de constru-
ruas e edifícios, em estreitas fileiras, junto ao sopé da colina. Mas a elevação traçada por José ções heterogéneas (também indicadas nos desenhos de Caldas) e a velha Alfândega, com
António Caldas, em 1756, apresentava um quadro bem distinto 11 • Meio século de explora- três corpos, ao pé da Praça da Cidade e do guindaste (local do atual elevador Lacerda).
ção aurífera, no interior, havia dinamizado extraordinariamente o comércio da velha capital. Em 1811 foi demolido o Forte de São Fernando, construindo-se em seu lugar o
O desenho de Caldas mostrava dois grupos de grandes sobrados de aparência bastante uni- prédio da «Praça do Comércio», hoje Associação Comercial, considerado como um marco
forme, em meio a constr~õe~\rregulares. Abaixo do Convento do Carmo e a noroeste do da introdução do estilo neoclássico no Brasil. A obra, executada por iniciativa do Conde
Forte de São Francisco, o primeiro deles, o Cais do Dourado. Esse conjunto devia ser o mais dos Arcos, foi inaugurada em 1816. Estabeleceu um limite e um digno arremate, do lado
antigo e o mais simples. Eram aparentemente cinco quadras, com sobrados de três andares, noroeste, para o conjunto dos prédios do Cais da Farinha. À sua frente foi construído um
sem muita uniformidade. Mais ao centro, no sopé da colina, sob o Colégio e a Misericórdia, cais, com escadaria semelhante à do Pátio do Carmo, no Rio de Janeiro, e ao projeto da
entre o Cais do Sodré, Cais dos Padres da Companhia e o Mercado de Santa Bárbara, apare- Praça do Comércio, em Lisboa, face ao Tejo. Entre 1840 e 1870, no alinhamento da nova
cia o segundo conjunto, no Cais da Farinha, com três quadras de grandes sobrados de quatro praça e à frente das quadras existentes, foi feito um novo aterro e construiu-se uma nova
andares, tendo ao alto, nos telhados, as janelas das cozinhas, com aparência de mansardas. linha de cais, chamada Cais do Pedroso ou das Amarras, e uma segunda linha de quadras
Esse foi possivelmente o núcleo inicial do mais importante conjunto urbano do período com sobrados de 5, 4 e 3 andares. Essa etapa é mais documentada porque dessa época já
colonial. No desenho, de ambos os lados dos prédios do Cais da Farinha, comparecem pe- contamos com uma série de fotografias, que mostram o Cais das Amarras, com quadras de
quenas construções térreas, provavelmente simples galpões, sendo que os de noroeste, junto sobrados de cinco andares e mansardas. É o mais imponente dos conjuntos. As fotos se-
ao Cais do Sodré, pertenciam aos jesuítas e foram pouco depois confiscados pela Coroa. guintes mostram a continuação das obras na direção sudeste, até a nova Alfândega, inau-
É interessante observar que esse desenho corresponde detalhadamente às indicações de uma gurada em 1860, ourro marco da arquitetura neoclássica 13 •
planta elaborada por José António Caldas, na mesma época, e às informações do processo A fotografia mais antiga, mostrando o conjunto a partir do mar, é a de B. Mulock.
que a acompanhava, onde consta que os jesuítas haviam ocupado uma área contígua ao Cais Mostra o Cais das Amarras com seus sobrados, o Mercado de Santa Bárbara e, na extremi-
da Farinha, com edificações precárias que comparecem, na legenda da «elevação» de 1756, dade, o novo prédio da Alfândega, ainda inacabado 14 • Uma vista semelhante, tomada por
como «Cais dos Padres da Companhia» e «Cais Novo dos ditos, ainda não acabado». Nessa Marc Ferrez em 1874, mostra o quadro completo: haviam sido construídas várias quadras
planta comparecem mais duas quadras a noroeste do Cais da Farinha (à esquerda do observa- entre o mercado de Santa Bárbara e a Nova Alfândega. A primeira, a noroeste, junto ao
dor). É provável que, sendo a área confiscada pela Coroa, fosse mais fácil, a partir daquele mercado, com sobrados de quatro andares; as três seguintes, a sudeste, com prédios de
momento, sua utilização em um plano urbanístico. Em 1796, em partes do Cais Novo, foi apenas três andares, a menos de um edifício, fazendo face para a Alfândega, na Praça das
construído o Forte de São Fernando. Princesas, com quatro, como um arremate no conjunto 15. Nesse período, vários fotógrafos
Um desenho de 1786, de autoria de Manuel Rodrigues Teixeira, publicado por Gil- focalizaram o conjunto, além de Mulock e Ferrez: Schleier, Camilo Veda, Gaensly e
12 Lindemann. As fotografias ainda existentes, reunidas em um magnífico livro, por Gilberto
berto Ferrez , mostra uma inovação. A área anteriormente ocupada pelos jesuítas - que
àquela altura já haviam sido expulsos do Brasil - aparece ocupada com novas quadras de Ferrez 16 , mostram vistas a partir do mar, como as praças e ruas interiores. Muitas foram
edifícios com quatro andares, semelhantes aos das quadras que haviam sido representadas tomadas do alto, mostrando, na parte interior, ao pé da colina, os telhados do casario mais
por Caldas, em 1756. Eram então seis quadras, com edifícios de quatro andares e mansardas, antigo, em arruamentos mais desordenados e, junto ao mar, as linhas imponentes dos
estendendo-se entre o mercado de Santa Bárbara e o Cais do Sodré. A legenda de Teixeira grandes sobrados, como uma barreira de racionalidade formal. A insistência com que o
menciona o Cais da Farinha, o da Lenha e o da Misericórdia. tema foi tratado nas fotografias mostra uma consciência de sua importância, desaparecida
As cartas de Vilhena, datadas de 1801, são ilustradas com uma vista da cidade, que se
acredita seja uma adaptação do desenho de Caldas (1756), atualizado com a inclusão das 13
FERREZ, Gilberto. Bahia: Velhas Fotografias-1858-1900 (1988).
14
FERREZ, Gilberto. Op. cit., p. 32.
15
10
FERREZ, Gilberto. Op. cit., pp. 6-9. Consultar também: Universidade da Bahia/Centro de Estudos da FERREZ, Gilberto. Op. cit., p. 132.
16
Arquitetura no Brasil Evolução Física de Salvador. FERREZ, Gilberto. Op. cit., algumas das fotos que ilustram este trabalho foram copiadas por nós na
" FERREZ, Gilberto. Op. cit., pp. 26, 27, 28, 64 e 65. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas a maior parte tem origem no excelente documentário apresentado
474 12
FERREZ, Gilberto. Op. cit., pp. 50 e 51. por Ferrez no seu livro. 475
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO BARROCO NO BRASIL

mais tarde, quando o conjunto foi inteiramente destruído e sua memória desapareceu. Completo o conjunto, a perspectiva para quem circulava junto ao cais era sem dúvi-
A linha de cais do século XVIII transformou-se na Rua Nova do Comércio (atualmente Av. da impressionante. Com os pés-direitos da época, entre 4 e 5 metros, e os telhados avanta-
Portugal e Rua Conselheiro Damas) e a do século XIX, na Rua Miguel Calmom. Porque os jados, ocupados com mansardas, os sobrados maiores tinham dimensões semelhantes a
quarteirões da primeira metade do século XIX também foram destruídos. Entre 1869 e prédios de apartamentos de 1O andares, em nossos dias. Os edifícios, construídos sobre o
1873 foram elaborados projetos de novas obras, para ampliação e melhoramentos no por- limite de frente dos terrenos eram contemplados, do cais e do mar, como uma barreira
to da Bahia, promovendo a construção de mais uma linha de sobrados, à frente do Cais imensa, impressionante em seu volüme, como seriam, 150 e 200 anos depois, a avenida
das Amarras. Mas como observou Paulo Ormindo Azevedo 17 , os interesses dos proprietá- Central e Copacabana, para os habitantes e visitantes do Rio de Janeiro, no século xx.
rios de trapiches, que resi6tia\)l às desapropriações, bloquearam a execução de quase todos
os projetos do porto, até 1913, quando foram inauguradas as primeiras obras. Nessa épo-
ca, foram fritas desapropriações e transformações no «Bairro Comercial», cujo caráter foi
completamente alterado. Nas décadas entre 1940 e 1960 os velhos sobrados entraram em Os agentes
deterioração e foram demolidos.
Os conjuntos pressupunham a atuação simultânea e articulada de duas formas de
agentes: os agentes individuais, proprietários e construtores de seus edifícios e um agente
de coordenação, com poderes para definir e impor um projeto coletivo, projeto de urbani-
As dimensões zação ou reurbanização. Os primeiros eram por certo os grandes comerciantes da Cidade
Baixa. Mas quem seria, no caso, o agente coordenador? Sabe-se que, no início do sé-
Em meados do século xvrn, Salvador era uma das maiores cidades das Américas e a culo xrx, o Conde dos Arcos, governador da Bahia, definiu o projeto da área da Praça do
terceira do mundo português. Compreende-se que os representantes máximos de seu Comércio e promoveu a construção do edifício em que hoje se instala a Associação
comércio desejassem apresentar aos visitantes uma imagem monumental. Comercial. Mas quem promoveu a construção das primeiras quadras, já existentes em
A extensão inicial do Cais da Farinha, em 1756, com seus sobrados, seria da ordem 1756? E quem deu continuidade ao projeto, ao longo da segunda metade do século Ã'V!l! e
de 120 metros. Mas a altura das edificações, entre 20 e 25 metros, já conferia ao conjunto na primeira metade do século XL'<?
uma escala apreciável na paisagem. No final do século xvm, eram cerca de 250 metros de Podemos formular uma hipótese, que talvez responda, em parte, a essas questões.
cais e em meados do século passado, quando foram concluídas as obras da Alfândega nova Como observou José António Caldas, pelo menos alguns dos terrenos daquela área eram
e o Cais das Amarras, cerca de 450 metros, incluindo-se as três praças e as quadras com ocupados pelos jesuítas, que promoveram os primeiros aterros sobre a marinha. Após a
edifícios regulares. Essa massa edificada impressionante, destacando-se pela regularidade, expulsão dos padres, em 1759, essa área foi confiscada pelo governo português, que teve
contrastava com o casario desordenado das áreas envoltórias. oportunidade para lhe dar destinação de conjunto, inclusive com novos aterros, diferente-
Unindo os elementos - os três edifícios públicos com suas praças e as quadras de mente de outros sectores, ocupados aos poucos, por empreendedores isolados. Essa forma
sobrados havia a linha do cais, elevada sobre a linha d' água, cerca de metro e meio, com de intervenção oficial, na época, pode ter dado origem ao projeto urbanístico. Urna vez
seu paredão de pedra e uma rua ampla, à frente dos sobrados, para circulação de mercado- estabelecido, dar-lhe continuidade terá sido mais fácil.
rias e pessoas. É curioso observar que os prédios mais antigos eram os mais altos. As cons- Sobre esse conjunto extraordinário, cabem algumas observações. Tudo indica serem
truções realizadas em meados do século XIX, já sem as características decorativas barrocas os sobrados de maior porte, com cinco andares e mansardas, os mais antigos. Quanto à
ou rococó, tinham menor número de andares: quatro sem mansardas e depósitos. Os implantação, em quadras compactas e regulares, de aparência simples e uniforme, lem-
padrões gerais urbanísticos, como as dimensões das quadras e o alinhamento dos edifícios, bram imediatamente as ruas da Baixa Pombalina, em Lisboa. Até mesmo as placas indicativas
se mantiveram. Mas o número de andares se reduziu. As quadras entre o mercado de Santa
Bárbara e a Alfândega tinham edifícios menores. As mais antigas tinham edifícios maiores,
j das travessas, mostradas com destaque em uma foto selecionada por Gilberto Ferrez, lem-
bram suas congéneres em Lisboa. A aparência dos edifícios não foge a essa comparação.
com 25 a 30 metros de altura. São todos de desenho quase idêntico, com suas aberturas e molduras perfeitamente ali-
nhadas, como se traçadas por uma única mão. Observando-se os detalhes das molduras
sobre as janelas, pode-se constatar que algumas, provavelmente as mais antigas, tinham
476 17
AZEVEDO, Paulo Ormindo. A A/fâwúg,t e o Mercado: Memória e Restauração (1985). ainda um perfil bem movimentado, que poderia ser considerado como de gosto D. João V 477
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO BARROCO NO BRASIL

Nos prédios posteriores, vão sendo adotados perfis mais simples e, em alguns casos, já de de estilo
meados do século XlX, arremates em arco pleno, de gosto neoclássico.
Tudo nos leva a supor que o conjunto do Cais da Farinha e do Cais das Amarras fosse Uma questão que fica para ser aprofundada é a dos limites do enquadramento estilístico
uma cópia ou influência urbanística direta dos planos pombalinos, da Cidade Baixa de desses conjuntos. O pátio do Carmo no Rio de Janeiro é mais facilmente enquadrável
Lisboa. Tudo, menos um fato paradoxal: os quarteirões mais antigos do Cais da Farinha como barroco. A, construções que o cercam permitem uma referência mais explícita ao
são mais antigos que o projeto de Lisboa. Já existiam em 1756, quando apenas se cogitava repertório da época.
da reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto do ano anterior. Uma parte do con- Mas os conjuntos de Belém, São Luís e Alcântara deixam margem a dúvidas quanto
junto urbanístico da Col6nii antecedeu ao da Metrópole. à forma. O partido urbanístico é expressamente pombalino. Mas os edifícios, com
Essa constatação nos propõe algumas questões de difícil resposta. A primeira delas é freqüência, são do século XIX e ostentam detalhes decorativos que escapam ao repertório
sobre a possibilidade de serem elaborados projetos dessa envergadura na Bahia, por volta rococó e se relacionam muitas vezes ao neoclássico.
de 1750. A resposta, neste caso, é afirmativa. A Bahia contava, nessa época, com profissio- O mesmo acontece com o conjunto da Cidade Baixa, em Salvador. O partido era
nais de muito bom nível e com a Aula de Arquitetura, que lhe asseguravam um padrão necessariamente o de um conjunto do barroco tardio. Os edifícios, em sua parte, apesar do
técnico adequado. Além disso, o tratado de Madri levou a Coroa de Portugal a transferir despojamento, exibiam vergas arqueadas nos vãos e detalhes decorativos de gosto rococó.
para o Brasil um conjunto excepcional de engenheiros e cientistas, que se não cuidavam Mesmo os construídos em meados do século XIX, frente ao Cais das Amarras, tinham
das fronteiras, participavam de obras arquitetônicas e urbanísticas de maior importância. marcas esçilísticas do barroco tardio. Mas os edifícios públicos nas extremidades eram
Mas há outra hipótese, mais abrangente: as soluções adotadas na Baixa de Lisboa não neoclássicos e as últimas obras ultrapassavam os limites cronológicos da cultura barroca e
teriam um caráter tão circunstancial mas seriam fruto de uma consciência urbanística apresentavam alguns detalhes neoclássicos. Nem por isso o enquadramento urbanístico
comum, dos principais construtores portugueses dessa época, que se vinham formando desses conjuntos deixava de ser barroco.
nas décadas anteriores. Nesse caso, o parentesco entre o conjunto da Bahia e o de Lisboa, Se devemos fazer um enquadramento estilístico da Cidade Baixa, temos que reconhecer a
como dos conjuntos posteriores de Belém, São Luís e Alcântara, seria uma relação com existência de duas etapas. A primeira é a do núcleo do Cais da Farinha de meados do sé-
família mais ampla e não uma obra do acaso. culo XVIII. Podemos enquadrar esse conjunto como barroco. Antecede à reconstrução de Lisboa
e aproxima-se do padrão do Cais Dourado e dos centros de outras cidades da época. A segunda
etapa é a do conjunto do Cais das Amarras, construído na primeira metade do século XIX, à
frente do anterior. Obedeceu aos padrões da Lisboa pombalina, com atraso de algumas déca-
Um cenário das. Sendo um conjunto em uma fase de mudanças, seus ediflcios mais antigos têm detalhes
rococó e os últimos já apresentam ornamentos neoclássicos.
O conjunto urbano da Cidade Baixa era como um grande cenário, para quem che-
gasse à Bahia, por mar. Mas era também um cenário para a vida dos sectores ligados ao
capital comercial, na Cidade Baixa, geralmente controlados diretamente por portugueses
natos. Se os palácios de portadas barrocas da Cidade Alta, construídos em fins do sé- Conclusão
culo XVII e início do século XVIII, foram uma afirmação do poder dos grandes proprietários
rurais da Bahia, o conjunto urbano da Cidade Baixa foi uma afirmação do poder de seus A importância dos exemplos de urbanismo barroco no Brasil, especialmente dos con-
rivais, os comerciantes da segunda metade do século XVIII e do início do século XIX. juntos urbanos, está a exigir um maior aprofundamento das pesquisas sobre os casos mais
Os primeiros se afirmavam por obras monumentais isoladas e praças com edifícios oficiais. significativos. Esses estudos são especialmente urgentes porque uma parte importante des-
Os últimos por obras simples, integradas em conjuntos monumentais e praças com edi- se acervo foi destruído, pela dificuldade do reconhecimento público do valor dessa forma
fícios destinados a fins comerciais: mercado, Praça do Comércio e Alfândega. de projeto. Foram preservados os edifícios monumentais, como igrejas e engenhos, foram
Um paralelo se impõe: o da construção de avenida Central, no Rio de Janeiro, entre preservadas as praças de caráter monumental, mas foram destruídos alguns dos principais
1904 e 1907, que escondeu o labirinto do Rio colonial e imperial. Mas a grandiosidade do conjuntos urbanos. Os poucos remanescentes continuam ameaçados de desaparecimento.
conjunto de Bahia, a antiga capital, começado 150 anos antes, nada ficava a dever ao Rio de
478 Janeiro, a capital que lhe sucedeu. 479
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS
O início do conjunto urbano do antigo Pátio
do Carmo, no Rio de Janeiro, vendo-se ao
fundo o convento e a Igreja do Carmo e, à
esquerda, a casa dos Governadores, projetada
e construída por José Fernandes Pinto
Alpoim. Obra concluída em 1743.
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A cidade de Salvador em 1851, vendo-se a Praça do Comércio,


iniciada em 181 l, o conjunto de sobrados e, mais acima, o Cais
Dourado.
Fonte: «Mapa Topographica da cidade de S. Salvador» levantado
por Carlos Augusto Wcyll.

Planta de um trecho ocupado com conjunto de sobrados, na Bahia, em meados do século XVIII
(Planta do Cais do Sodré, da Cana, da Misericórdia, da Farinha e ruas anexas).
480
Fonte: Ferrez, Gilberto, As cidades de Salvadar e do Rio de Janeiro no século XVIII. 481
NOTAS SOBRE O URBANISMO NO BRASIL.
PRIMEIRA PARTE: PERÍODO COLONIAL*

NESTOR GOULART Rns FILHO


Faculdade de Arquitectura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo

Salvador. No primeiro plano, os sobrados do Cais das Amarras. Ao fundo, os sobrados mais antigos,
construídos no século XVIII. Fotografia de Benjamin Mulock, e. 1860.
Fonte: Ferrez, Gilberto. Bahia: Velh,1s Fotografias - 1858-1900.

A Praça de Alcântara, Maranhão, com seus sobrados de desenhos uniformes. • Este texto foi publicado nos Cadernos de Pesquisa do LAP, Série Urbanização e Urbanismo, São Paulo:
482 Ao centro, o Pelourinho. Fonte: Nestor Goulart Reis Filho. Universidade de São Paulo-Faculdade de Arquitecrura e Urbanismo, n. 0 8, Julho-Agosto, 1995.
l. Nota introdutória

Este trabalho foi escrito no início dos anos 80 1 e tem as qualidades e os defeitos de um
texto datado. Defeitos de expor pontos de vista que já não são os do autor e de utilizar
perspectivas críticas hoje superadas. Qualidades de demonstrar os passos de um esforço de
aperfeiçoamento teórico e metodológico (o que se pode admitir em um caderno de pes-
quisa) e documentar uma das primeiras aplicações a toda a história da urbanização no
Brasil, em especial ao quadro da urbanização dos séculos XVIII, XIX e XX, dos esquemas
teóricos e conceituais que havíamos elaborado e utilizado nas décadas anteriores, para o
estudo dos séculos XVI e xvn 2 .
Nesta nota introdutória, abordaremos brevemente algumas questões teóricas, com
orientação diversa de trabalhos anteriores. No mais, o texto é relativamente simples e espera-
mos que possa ser de alguma utilidade para os estudantes de Arquitetura e áreas afins.
Este texto toma por base uma linha metodológica que temos desenvolvido desde o
início dos anos 60, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Para nós, o urbanis-
mo é uma forma de intervenção sistemática na organização do espaço urbano de uma
sociedade. Seu desenvolvimento no Brasil só pode ser explicado quando se tem em vista as
características da política de urbanização, nas diferentes escalas e níveis da configuração do
espaço, do intra-urbano ao regional e ao espaço das relações internacionais, como as rela-
ções das metrópoles e colônias.
Para nós não existe um urbanismo «espontâneo» e outro «dirigido». Qualquer uma das
formas é determinada socialmente, sendo sempre configurações espaciais, da estruturação
das relações sociais. As formas do urbanismo são produtos das ações de agentes sociais. São
determinadas portanto pela vida social e, por sua vez, determinam as condições de apropria-
ção, produção, uso e transformação do espaço. Qualquer uma das formas reproduz as condi-
ções de estruturação da própria sociedade. Ambas, «espontâneas» ou «dirigidas», confirmam
ou negam os projetos dos grupos sociais hegemônicos. A diferença entre essas formas reside

1
Este texto retoma alguns dos problemas abordados em Evolução Urbana do Bmsil. Com algumas diferen-
ças, é o que serviu de base para um capítulo de nossa responsabilidade em obra coletiva publicada em Madri no
final daquela década. Cf. REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil 1580-1720. FAU-USP, 1964
e Pioneira, São Paulo, 1970. ALO MAR, Gabriel (org.). De Teotihuacdn a Brasília. Instituto de Administración
Local, Madri, 1987.
2
Esses temas já haviam sido abordados sob outra perspectiva em REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução
Urbana do Brasil. Pioneira, 1970 e Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectíva, 1969. 485
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO NO BRASIL

no grau de elaboração técnica e teórica e no grau de consciência e coerência dos atores envolvi- oferecer produtos de interesse do mercado europeu, com expressivas vantagens financeiras.
dos, dependendo dos objetivos fixados nos programas, em planos e projetos. Para nós o urba- A situação no novo território era bem diversa. Ocupado por uma população pouco densa,
nismo não pode ser apenas descrito em suas formas, mas deve ser explicado em seus fundamen- com baixo nível tecnológico e escassa produção, com um território de dimensões equivalen-
3
tos sociais, isto é, políticos, econômicos e culturais, em situações históricas concretas •
tes às da Europa e recoberto em sua maior parte por florestas de difícil penetração, o territó-
Uma ourra questão deve ser apresentada. Ao estudarmos a urbanização dos séculos rio colocava para os portugueses problemas completamente diferentes.
XVI a XVIII, não podemos esquecer que a relação colonial era necessariamente uma relação Nas primeiras décadas de colonização, após a oficialização do descobrimento do Bra-
de dominação e que só. pode ser conhecida, quando se examinam os dois lados dessa sil, os portugueses instalaram apenas pontos fortificados na Costa, as chamadas feitorias,
dominação, como em qualquer relação. Normalmente a Colônia é descrita como simples com poucos habitantes temporários, encarregados de mobilizar os indígenas para o corte
resultado de decisões tomadas pela Metrópole. Na prática, havia uma adaptação recíproca de madeiras de tinturaria. Política semelhante foi adotada pelos navegadores franceses, que
entre Metrópole e Colônia, uma adaptação dos agentes sociais envolvidos em cada um dos durante todo o século XVI disputaram aos portugueses o domínio dessa costa, praticando o
pólos, em uma relação interdependente, ainda que acentuadamente desigual. Os objetivos mesmo ripo de colonização e controlando vastas porções da costa brasileira. Para vencer a
da colonização, que se definiam como uma política que estruturava os interesses europeus, competição, o governo português decidiu adotar uma política mais ativa e repetir no Bra-
deviam adaptar-se à realidade da Colônia. E transformavam esta, inclusive em seus aspec- sil, em maior escala, o modelo de colonização que havia adotado nas ilhas da Madeira e
tos sociais, procurando subordiná-la a seus objetivos. Mas havia limites. Os limites dessa Açores. Nesse projeto, estavam presentes também os interesses dos banqueiros genoveses
política eram as condições de reprodução e ampliação da empresa colonial, de forma a e dos comerciantes flamengos, quase sempre associados aos portugueses, nessa época.
garantir e ampliar a sua lucratividade. Havia um território transformado pela colonização, A Coroa dividiu o território em capitanias, que distribuiu entre figuras da Corte, de forma
no qual a sociedade, passiva ou ativamente, no âmbito do sistema ou nos intervalos deixa- a estimular a iniciativa dos empresários, aos quais eram transferidos os ónus do projeto
dos por seus limites, ampliava e transformava suas próprias condições e exigia uma colonial. O objetivo era desenvolver a produção de cana e a construção de engenhos de
reproposição freqüente das formas da relação colonial. Nesse sentido, a relação alterava açúcar, com base no latifúndio e no trabalho escravo. O projeto incluía entre seus pomos

também a Metrópole, enquanto potência colonizadora. fundamentais a criação de vilas nas capitanias, bem como a transposição de população
A história da urbanização colonial é a história das configurações assumidas no espa- européia, que se instalasse no novo território de forma permanente.
ço, pelas relações dessa sociedade, no processo de colonização. A história do urbanismo Os documentos de concessão das capitanias guardavam características de organiza-
colonial é a história dos esforços para controle do espaço urbano dessas relações, no qua- ção feudal, mas seus objetivos eram basicamente mercantis. Os donatários podiam fundar
vilas, conceder terras agrícolas e urbanas, estabelecer taxas e restringir o direito de entrada
dro da dominação colonial.
ou saída do território. Eram obrigados a investir na ocupação e desenvolvimento da eco-
nomia local, bem como defender a capitania contra ataques internos e externos. Respon-
sabilidades militares do mesmo tipo eram estendidas aos concessionários dos latifúndios,

2. Séculos XVI e XVII - A urbanização e o urbanismo estes concedidos por meio de cartas de sesmarias. Os resultados desse projeto foram de
início bem limitados.
em uma retaguarda rural
Para ampliar os resultados desse programa, em 1549 a Coroa decidiu fundar uma
O Brasil foi submetido a uma política colonial que visava organizá-lo como uma cidade na capitania da Bahia, que havia sido perdida pelo donatário, e nela instalar um
imensa retaguarda rural para os mercados europeus. Essa foi a diretriz básica da política Governo Geral para o Brasil, com farto apoio militar, agrícola e mercantil. O esquema
colonizadora, até quase o final do século XVII. A experiência colonial portuguesa se enqua- assegurou base sólida para o domínio da Colônia. Em 1567, com iniciativa semelhante,
drava, até então, nos padrões de toda expansão comercial européia, visando a conquista de foi fundada a cidade do Rio de Janeiro, para controle da costa sul do Brasil, depois da
bases em territórios já densamente povoados, onde a produção organizada fosse capaz de expulsão dos franceses, que já haviam instalado uma povoação permanente no local.
O controle de roda a costa do território que hoje corresponde ao Brasil completou-se
apenas no início do século XVII, com a fundação de São Luís no Maranhão (1612) e de
3 Ao usarmos essas expressões, partimos do ponto de vista de que os fenômenos sociais abrangem todas ~s

relações interpessoais. São portanto mais abrangentes e incluem os aspectos econômicos, políticos ~ culturais. Belém (1616) na entrada do rio Amazonas.
Sob esse ponto de vista, não existem fenômenos sociais que não sejam econômicos, políticos e culturais. Ou se1a, Era muito simples o esquema político-administrativo. Os donatários, e por seu inter-
não existem duas categorias separadas de fenômenos: os sociais de um lado, e os econômicos de outro, mas
médio os grandes proprietários rurais, eram apoiados diretamente, de tal sorte que, defen- 487
486 aspectos econômicos ou políticos de relações sociais.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO NO BRASIL

dendo seus interesses, impulsionavam o processo de colonização, segundo os objetivos da tória. O trabalho escravo era um retrocesso social; a agro-indústria um avanço histórico
política traçada pela Coroa. Em termos estratégicos, podemos dizer que eram todos mobi- em termos tecnológicos e forma de organização do trabalho rural. Essa contradição só
lizados de forma eficiente, para a concretização dos objetivos estabelecidos. Nesse quadro, pode ser explicada como parte da evolução do capital mercantil europeu, como reflexo
pode-se perceber uma preocupação de relativa descentralização administrativa, com auto- periférico do desenvolvimento das atividades produtivas das economias européias. Para 0
nomia da população, que redundou na grande autonomia das câmaras municipais e mes- comércio português e para o flamengo, representou um benefício imenso. Para o Brasil,
mo nas cidades, instaladas nas capitanias que retornavam ao domínio da Coroa, como em representou a implantação de um modo de produção cujas contradições repercutem ainda
Salvador, junto ao Governo Geral. Este atuava com quadros reduzidos, mais como um nos dias atuais.
pólo de apoio econômicb e-~o lítico-militar para o efetivo domínio das costas e das terras Para construção dos engenhos reais, eram necessários investimentos de certo vulto,
internas, do que como uma base de controle dos colonizadores. Atuava mais como um que certamente não estavam ao alcance de muitos6 • A maioria dos colonos, composta de
fator de estímulo do que como um fator restritivo; mais como apoio na lura contra os pequenos e médios plantadores, atuava como linha auxiliar dos senhores de engenho,
concorrentes externos e os indígenas do que contra os colonizadores. Os interesses destes dependendo destes para a moagem de suas canas ou 1imitando-se à produção de aguarden-
coincidiam inteiramente com os da Coroa. te, equilibrando-se com rendas modestas, sempre porém com o objetivo de ingressar na
Essa política, aplicada com sucesso, assegurou para Portugal o monopólio da produ- primeira linha da economia exportadora.
ção mundial de açúcar 4 • Mas trouxe também situações de conflito, que terminaram por A ordem social era extremamente simples: dividia-se entre senhores e escravos. Mes-
provocar transformações profundas na própria Colônia. mo em regiões menos dinâmicas, como São Paulo, Maranhão e Pará, onde as condições
Entre 1580 e 1640 a Coroa de Portugal esteve anexada à da Espanha. Essa união não permitiam um tráfico regular de escravos africanos, os colonos mantinham um siste-
facilitou os trabalhos de domínio da Costa e daAmazônia contra franceses e ingleses. Mas ma mais ou menos disfarçado de escravização dos indígenas, que lhes assegurava um pa-
acarretou uma ruptura da aliança tradicional com o comércio flamengo, que até então drão de vida senhorial, mesmo sem riqueza monetária. No Rio de Janeiro, cuja exportação
respondia pelo refino e distribuição do açúcar brasileiro no Norte da Europa. Procurando açucareira era relativamente limitada no século XVII, a produção era utilizada no fabrico de
recuperar as suas áreas de produção, os holandeses atacaram Salvador em 1624. Expulsos aguardente, que servia de base para o tráfico de escravos com Angola7 , vendidos aos mer-
no ano seguinte, em 1631 ocuparam Pernambuco e alguns anos depois estenderam seu cados do Nordeste ou servindo para a reprodução e ampliação desse mesmo sistema.
domínio, chegando a ocupar a região entre o rio São Francisco e São Luís do Maranhão. Baseadas no trabalho escravo, as grandes propriedades rurais tinham quase sempre
Sua expulsão ocorreu em 1654. Mas já então os holandeses, com experiência adquirida, condições para estabelecer um esquema econômico de quase completa autarquia. Adqui-
haviam instalado unidades produtivas na América Central, com auxílio dos judeus portu- riam muito poucos bens nas vilas e cidades. Os produtos importados eram de custo eleva-
gueses, que haviam sido expulsos dos territórios portugueses pela Inquisição. Essa mudan- do e destinavam-se apenas ao consumo das famílias abastadas e ao atendimento das neces-
ça de condições liquidou o monopólio português, provocando baixa dos preços no merca- sidades de produção, sendo sempre em quantidades reduzidas. A ordem rural era dotada
do internacional, interrompendo o crescimento da produção no Brasil. de uma estabilidade social excepcional, que sob certos aspectos se prolonga aos dias atuais.
O período anterior havia sido de intensa atividade econômica. A produção açucareira Quando ocorria crise do mercado internacional, as unidades sobreviviam ou mesmo se
do Brasil, segundo Celso Furtado 5 , crescera cerca de 50% ao ano. Pressupondo-se um expandiam de forma vegetativa, sem trocas com o exterior. Nas fases de prosperidade,
autofinanciamento das empresas açucareiras, devemos admitir que alcançava-se uma taxa concentravam seus esforços para obter benefícios financeiros, sem abandonar os esquemas
de acumulação da ordem de 4 a 5% ao mês, ao longo de todo o período, e sua reinversão de auto-abastecimento.
na expansão das unidades produtivas. Nao havia portanto condições para uma economia urbana. Vilas e cidades tinham papéis
A produção assumiu no Brasil formas que para a experiência européia do século XVI eminentemente administrativos. Não havia trocas urbano-rurais. Mas havia, inegavelmente,
eram sem dúvida inovadoras, em termos de colonização. Seus elementos de base - o trocas entre a retaguarda rural, que era a Colônia, e os mercados urbanos europeus.
latifúndio, o trabalho escravo e a monocultura - representavam uma inovação contradi- Através das vilas e cidades, a Coroa exercia controle sobre o processo de colonização.
Mas através delas os colonos, que se pensavam como os representantes legítimos desse
4
Segundo Celso Furtado, Portugal teria chegado a controlar cerca de 80% do rotal da produção mundial
nesse período. Mas Mello mostra que nos primeiros anos do século XVII, uma crise já começava a se delinear.
6
Conforme MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restr1urada. Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo, Engenhos reais eram os completos, de açúcar, movidos a água. Havia outros movidos pela força de juntas
Forense/EDUSP, 1975. de bois e os menores, que produziam aguardente ou mesmo rapadura.
7
488 5 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo, Nacional, 1971, 11." edição.
Na Costa da África, a aguardente e o fumo serviam para o escambo, no mercado de escravos. 489
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO NO BRASIL

processo nos trópicos, mantinham seus laços com a metrópole e se identificavam com a correspondência oficial, lhe teria sido fornecido pelas próprias autoridades portuguesas.
ordem social, da qual eram os principais agentes sociais, deste lado do Atlântico. As vilas e Contrariamente ao que hoje se supõe, a Bahia não foi fundada com dois planos, não
cidades eram simples entrepostos, pelos quais passava o açúcar ou onde este aguardava existindo portanto de início a Cidade Alta e a Cidade Baixa. Havia então apenas uma
oportunidade para ser embarcado para a Europa. Até 1650 os senhores de engenho mais instalação no alto da colina, como em tantas cidades medievais, facilitando a defesa através
abastados e mesmo as ordens religiosas possuíam navios, com os quais exportavam sua da altura. Bem mais tarde, com o desenvolvimento do comércio e sucessivos aterros, é que
produção. Alguns dos grandes proprietários rurais eram também ligados ao comércio im- se criou a Cidade Baixa. A planta do núcleo original lembra as de Goa e Damão, cidades
portador, que exerciam com certa liberdade. Mercado, se havia, era o de escravos, indíge- portuguesas construídas na Índia, no final do século XVI, segundo os traçados medievo-
nas ou africanos. -renascentistas, como o de Sabioneta, cidade italiana, apresentados como modelos ideais
A vida urbana apresentava um círculo modesto de pequenos fornecedores de produ- de sua época 9 • Mas a de Salvador é anterior.
tos de subsistência, composto por uns poucos brancos pobres e principalmente por escra- Tratamento semelhante foi assegurado para o Rio de Janeiro, para São Luís do
vos libertos e mestiços. Maranhão e Belém do Pará, beneficiadas com a presença de engenheiros militares, seja na
O esquema de ocupação do território expandiu-se rapidamente ao longo da Costa e época de sua fundação, seja mais tarde, no reforço dos seus esquemas de defesa ou em
em estreita faixa para o interior, sempre com baixa densidade mas sem homogeneidade. obras de melhoria 1°.
A concessão oficial de terras era extremamente fãcil e as populações indígenas eram expul- As trocas urbano-rurais eram muito diversas das européias, mesmo da Península Ibé-
sas ou escravizadas. As áreas hegemónicas, como Pernambuco e Bahia, estabeleceram ter- rica. Vilas e cidades eram um ponto de apoio e um meio de controle da colonização.
ritórios periféricos de economia complementar no interior do Nordeste, como na região Os núcleos urbanos antecederam ao campo 11• As casas urbanas, e certamente as melhores,
do rio São Francisco, para fornecimento de gado de corte e para o trabalho nos engenhos. pertenciam quase todas aos proprietários rurais e permaneciam fechadas a maior parte do
A região do Rio de Janeiro era fornecedora de aguardente para o mercado de escravos na ano ou eram habitadas apenas pelo pessoal de serviço. Vilas e cidades se animavam somen-
África e a do Planalto de São Paulo se dedicava ao apresamento de indígenas. te nos dias de festas e procissões, estabelecidas rigidamente pelo calendário oficial, ou nos
A política urbanizadora adotada pelo governo português refletiu sempre, com coe- períodos de embargue das safras. Os núcleos urbanos tinham vida intermitente.
rência, as diretrizes desse processo de colonização. Concentrou investimentos e apoio téc- A impressão que esses causavam aos viajantes era sempre de decadência, como estru-
nico nas cidades construídas em territórios da Coroa. Nos demais, deixou as iniciativas aos turas cuja população houvesse desertado. No momento aprazado, reuniam-se as famílias,
donatários das capitanias e à própria população. Os donatários, autorizados pelos forais a organizavam-se as festas, animava-se um mercado temporário, para a seguir ocorrer a volta
criar vilas nos territórios das capitanias, agiram como empresários e transferiram aos colo- à mesma vida sonolenta, de recipiente esvaziado de seu conteúdo temporário.
nos o custo maior desses investimentos. Como todos os pioneiros, esses reproduziram Não havia classes urbanas produtivas, pois não havia comércio. Uma parte do abaste-
com economia de meios os modestos padrões das vilas portuguesas, das quais em sua cimento, nos períodos de festa, era feita pelos próprios moradores temporários, que tra-
maior parte eram originários. Sem planos, sem diretrizes específicas, de início as vilas nada ziam de suas terras géneros para sua alimentacão. Não se pode esquecer porém que essa
tinham das características das cidades hispano-americanas e da ordem formal, imposta imensa retaguarda rural animava os mercados urbanos europeus. Seus principais centros
pelas Ordenações Filipinas. No século XVII, sob domínio espanhol, pela união das Coroas, administrativos, seus centros consumidores, suas universidades produtoras de conheci-
a influência desse código castelhano já se fazia sentir, em detalhes como a regularidade dos mento, sua metalurgia, seus fornecedores de manufaturados estavam nas cidades da Euro-
traçados das ruas, como se pode observar em antigas vilas nos territórios dos atuais estados pa, eram a outra face de sua realidade, que ajudavam a dinamizar e a enriquecer.
de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas nesses casos a regularidade de traçado não correspondia As vilas e cidades foram construídas ao longo da costa. As do interior, raras, dispu-
a maiores refinamentos urbanísticos 8 • nham-se ao longo dos rios, que eram utilizados como vias de penetração. Os principais
Os tratamentos dados às cidades foram porém mais complexos, especialmente no
caso de Salvador. Instaladas em territórios reservados à Coroa, eram beneficiadas pela pre-
sença de profissionais que à época eram denominados de «mestres de obras dei Rei». °CHICÓ, Mário -favares. «A cidade ideal do renascimento e as cidades portuguesas da Índia». ln: Garcia
de Orta. Revista das Missões Geográficas e de Investigação do Ultramar. Número especial, Lisboa, 1956.
A fundação de Salvador foi orientada por Luiz Dias com base em um risco, que, segundo 'º A instalação dos portugueses em São Luís foi acompanhada pelo arquiteto Francisco Frias, uma das
principais figuras da engenharia militar do século XVII no Brasil, conhecido também como Francisco Frias de
Mesquit,1.
8 Em trabalho recente, a ser publicado em breve, examinamos com mais detalhes a regularidade dos traça- 11
MORSE, Richard M. «A evolução das cidades larino-americanas». Cadernos CEBRAP 22, São Paulo,
490 dos nessa fase. (Nota de 1996.) 1975. 491
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS NOTAS SOBRE O URBANISMO NO BRASIL

estabelecimentos eram dispostos em pontos estratégicos, nas entradas das baías ou perto Esse quadro começou a ser significativamente alrerado nos seus fundamentos, na
dos ancoradouros, na foz dos rios maiores. Por um lado, impediam o acesso de concorren- segunda metade do século XVI!.
tes. Por outro, facilitavam o transporte interno da produção rural. Os engenhos eram
situados nos recôncavos, isto é, nas áreas internas das baias e ao longo dos rios.
Na fase inicial, os núcleos urbanos repetiam em seus sítios padrões que só podem ser
explicados como culturais. A principal cidade, que era Salvador, e a modesta vila de São 3. Centralização,
Paulo, no Planalto, foram ÍI;i;tplantadas em sítios extremamente semelhantes. Instaladas
sobre colinas, junto às bo';das.das respectivas encostas, com um pequeno vale à retaguarda Na segunda metade do século XVJI, as mudanças no mercado internacional do açúcar
e conventos dispostos como pontos de apoio ao sistema de dominação e defesa, tinham provocaram as primeiras fissuras no sistema, alterando as relações entre a Metrópole e a
partidos urbanísticos extremamente semelhantes. Essa repetição de modelos não era um Colônia, obrigando a uma revisão do esquema colonial, com novas formas de exploração
caso isolado. Em Pernambuco os holandeses, ao escolher o sítio para a sua cidade, o Recife, e dominação. Nesse quadro, o governo português estabeleceu uma linha de maior centra-
optaram por uma ilha, na foz do Beberibe e do Capibaribe, repetindo um modelo seme- lização do poder e, como decorrência, de dinamização da vida urbana da Colônia.
lhante ao das aglomerações de seu país. Com a queda dos preços do açúcar, ós interesses dos colonos e os de Portugal come-
Os primeiros núcleos eram dotados de muros, portas e mesmo bastiões, que serviam çaram a divergir e mesmo a se contrapor. Ao contrário do que se poderia supor à primeira
também como proteção contra os ataques indígenas. Mas depois de vencidas as resistências vista, as dificuldades enfrentadas pelos senhores de engenho não eram acompanhadas de
destes, somente as cidades como Salvador, Rio ou Belém tiveram suas fortificações conservadas medidas de apoio mas de um aumento dos controles fiscais e da intermediação, que drena-
ou ampliadas. As demais localidades eram defendidas por fortalezas ou bastiões isolados. No vam as últimas rendas do setor para a metrópole, impedindo a expansão da produção
interior, mesmo esse tipo de recurso deixou de existir. Mas no início do século XVII, como açucareira e o desenvolvimento de atividades produtivas independentes. O comércio ex-
decorrência dos conflitos com os holandeses, inúmeras localidades voltaram a ser fortificadas. terno, que até então havia sido deixado aberto aos colonos 12 , passou a ser controlado por
Os desenhos da época nos mostram a disposição geral de diversas aglomerações e companhias monopolistas, com empreendimentos localizados no Brasil, dos quais partici-
mesmo alguns detalhes de sua estruturação e de sua arquitetura. A «Planta da Cidade do pavam exclusivamente empresários portugueses natos, que recebiam apoio ostensivo da
Salvador», correspondente a um levantamento de cerca de 1605, e o «Perfil da Cidade de Coroa, em detrimento dos grandes proprietários rurais. Estes esboçaram reações e, pela
Salvador» da década seguinte, revelam uma relativa regularidade de traçado, em contraste primeira vez, começaram a se identificar como brasileiros e não mais como portugueses do
com a ausência de preocupações geométricas de Olinda, a sede portuguesa do governo de Brasil. Um conflito típico ocorreu em Olinda, vila tradicional de raízes agrárias, contra os
Pernambuco, substituída a partir de 1631 pelo Recife holandês, mostrado em desenhos comerciantes do Recife. Outros semelhantes ocorreram em diversos pontos da Colônia.
incluídos no livro de Barleus. Para controlar as reações foram transferidas tropas regulares portuguesas para as principais
O sentido pragmático da colonização transparece também no traçado das praças, dos vilas e cidades e reforçados os quadros administrativos. Criava-se pela primeira vez uma
edifícios públicos e das igrejas. A« Planta da Restituição da Bahia» de cerca de 1625 nos mostra população urbana permanente, em escala significativa.
a cidade com duas praças principais: a da Câmara Municipal e do Palácio dos Governadores, O reforço da dominação colonial apresentava portanto um custo, que incluía a trans-
não muito grande (na qual se destaca o plano inclinado para o transporte de mercadorias, ferência de populações urbanas da Metrópole para a Colônia e a instalação de uma infra-
servindo ao porto) e a do Colégio dos Jesuítas, de maiores dimensões. Nas extremidades, a -estrutura urbana, em escala até então inexistente. Uma parte das rendas retiradas do setor
porta nordeste, junto ao Mosteiro de São Bento, e a noroeste, junto ao dos Carmelitas. É de se rural era assim transferida para o setor urbano local, no qual gerava um mercado, ainda
notar a simplicidade das igrejas no «Perfil da Cidade de Salvador», que são mostradas com que incipiente, para assegurar a reprodução do sistema colonial. Ou seja, ampliava-se o
dimensões de capelas, obedecendo a um risco elementar, de tipo renascentista, com frontões custo dessa reprodução, reduzindo-se a dependência da Colónia ao nível da produção. Em
retos e pequenos óculos na parte central. As construções particulares eram ainda mais modes- contraposição, ampliava-se a dependência no nível político.
tas. A julgar pelos desenhos de Posr em Pernambuco, essa sobriedade e modéstia das constru- As condições sociais passaram por intensas transformações. Ao lado dos dois sectores
ções era comum também aos engenhos, tanto nas residências dos proprietários, como nos da fase anterior, perfeitamente definidos, senhores e escravos, já existiam então os quadros
pavilhões industriais, apesar das dimensões maiores destes. A planta de São Luís, desenhada administrativos civis e militares e, ao seu lado, os grupos urbanos de comerciantes portu-
provavelmente por volta de 1640, revela um traçado regular e, pelas dimensões dos elementos,
492 permite imaginar um conjunto semelhante. 12
Até essa época, não se usava a expressão {(colonos,) mas «povoadores». 493
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gueses, ligados ao monopólio do comércio exterior. Com menos peso político, havia os alterada. Em Salvador, a faixa portuária foi aterrada e construída, constituindo-se a Cidade
pequenos comerciantes e prestadores de serviços, aos quais se somavam os subempregados, Baixa, com forma semelhante à de Lisboa. No Rio de Janeiro, instalado de início em uma
constituídos de brancos pobres, mestiços e escravos libertos, que engrossavam em boa pequena colina, ampliou-se a ocupação junto à praia, relegando-se a segundo plano o sítio
parte a população dos núcleos urbanos. Caio Prado afirmava que, às vésperas da Indepen- primitivo. Para abastecer de água chafarizes públicos, iniciou-se a construção de um gran-
dência, este último setor respondia por cerca de 30% da população do país. Uma parte de aqueduto. Recife, uma vez tomada aos holandeses, tornou-se rapidamente o grande
desse contingente se dispunha ao redor dos núcleos urbanos, dedicando-se à produção de centro comercial da capitania de Pernambuco, competindo com a vizinha Olinda, já deca-
géneros de baixo valor e à pesca, para seu abastecimento. dente, e alcançou sua autonomia municipal no início do século xvrn.
A convivência dessei sectores sociais não era propriamente harmoniosa. De 1650 até Em Salvador, e em cada um desses centros, iniciou-se uma fase de construção de edifí-
a segunda metade do século XVIII, quando recuperaram em parte sua posição de destaque, cios públicos e religiosos de maior porte, com caráter monumental.
os grandes proprietários rurais permaneceram em situação de conflito latente (e freqüente- O estudo das características da cidade de Salvador, na segunda metade do século xvrr,
mente aberto) com os comerciantes portugueses, perante os quais apresentavam débitos nos permite compreender a forma pela qual essas transformações foram incorporadas pe-
avantajados. Politicamente, tendiam a ser seguidos pelos habitantes mais pobres dos cen- las diferentes camadas sociais. Os comerciantes portugueses instalaram-se na Cidade Bai-
tros urbanos e mesmo do setor rural. xa, junto ao porto, em grandes sobrados, nos quais os térreos eram destinados aos depósi-
A intensificação da vida urbana na segunda metade do século XVII, ao longo de toda a tos e ao alojamento de escravos, os níveis intermediários aos escritórios e os superiores à
costa e, a seguir, a elevada concentração nas regiões das minas, tornaram as vilas e cidades do vida doméstica. O espaço sendo escasso, os sobrados tendiam a aumentar em altura, ga-
Brasil mais próximas dos modelos portugueses de sua época. Mas suas condições de nhando maior número de pavimentos. As ladeiras, ligando os dois níveis da cidade, foram
estruturação interna e as relações com o meio rural ou com o exterior eram peculiares e sendo ocupadas em seus flancos, formando uma paisagem característica, que comparece
permaneceram nessas condições sem grandes diferenças, até o século xx. Em primeiro lugar, com destaque nos desenhos da época e até hoje marca o perfil da área central de Salvador.
pela presença do trabalho escravo, que definia as formas de produção e uso do espaço, em As ruas de maior movimento, as ladeiras e as praças receberam calçamento, para suportar
qualquer região. Em segundo lugar porque a produção rural da Colónia e sua vida urbana a intensidade do tráfego. Para facilitar o transporte de cargas, foram aperfeiçoados e torna-
não eram estruturadas em base de complementação recíproca mas na dependência, ambas, dos mais numerosos os planos inclinados, ligando a Cidade Alta à área do porto.
das trocas com mercados urbanos de outro continente. As demais atividades permaneceram Nesse conjunto, mais complexo, já começam a ser definidos os bairros, ocupados de
com caráter pouco relevante para o conjunto da sociedade, ligando-se mais à própria subsis- forma diferenciada. Edifícios públicos mais destacados, como o Palácio dos Governadores,
tência dos produtores, do que às trocas monetárias, o que explica a marginalidade de parcelas a Casa de Câmara e os tribunais, dispunham-se ao redor da praça principal, a chamada
cada vez mais numerosas da população, bem como o aspecto de pobreza das aglomerações, Praça da Cidade, nos bordos da Cidade Alta. Nas proximidades instalavam-se as residên-
mesmo nas fases de grande prosperidade para as camadas mais abastadas. cias dos grandes proprietários rurais, que passaram a desenvolver comportamentos de fa-
As condições de estruturação do espaço urbano transformaram-se com a centralização. mílias de origem aristocrática. Competindo politicamente com o setor comercial, perante
A política urbana passou a ocupar lugar de destaque na estratégia da colonização. Já na o qual apresentavam um crescente endividamento, os proprietários rurais reforçavam os
segunda metade do século XVII ocorriam transformações, em função das mudanças no setor símbolos de grandeza da classe e financiavam estudos genealógicos, para justificar uma
açucareiro e do crescimento dos núcleos urbanos do litoral. A rede se ampliou com a criação superioridade perdida ou seriamente ameaçada. Aproveitando a inatividade de pane de
de 18 novas vilas em 50 anos, contra 31 e 6 cidades, nos 100 anos anteriores 13 . Mantinha-se seus escravos, construíram o mais brilhante conjunto de residências urbanas no período,
o ritmo de crescimento da rede, sem que houvesse um aumento proporcional das exporta- com portadas barrocas muito elaboradas, sempre encimadas por brasões, de legitimidade
ções. Os acréscimos da população eram absorvidos pela extensão do território ocupado e quase sempre discutível. Os pavimentos térreos nas casas apresentavam amplos saguões e
pelo aumento do número de unidades produtivas, voltadas estas prioritariamente para uma uma conformação geral do espaço, que evidenciasse a sua destinação residencial, excluin-
economia de subsistência, que escapava dos objetivos da colonização. do qualquer semelhança com as instalações comerciais da Cidade Baixa, sempre dotadas
Nos centros mais importantes, como Salvador e Rio de Janeiro, o aumento de popu- de portas abertas ao acesso público. Essa ostentação pode ser explicada, não pela súbita
lação e a mudança na composição das camadas sociais produziram efeitos significativos. opulência mas exatamente pelo contrário, pela acentuada decadência política e financeira
Novas áreas foram ocupadas e edificadas e a própria configuração geral do espaço foi e pelo aproveitamento, nas obras, dos escravos inativos, em virtude da crise de produção
nos engenhos, decorrente da queda dos preços do açúcar. Com os mesmos escravos, am-
494 13
Entre as seis cidades, duas eram modestas aglomerações, com o título de cidades. pliavam-se os investimentos em construções urbanas menos elaboradas, com objetivos 495
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puramente comerciais, acompanhando o aumento da demanda de espaço edificado na Os engenheiros militares formados pela Aula Militar de Arquitetura colaboravam
cidade em expansão 14 • também nos projetos e obras de recolhimento de freiras, conventos, como de capelas de
Como foi referido, os conventos acompanhavam o ritmo geral das construções. As ordens terceiras e em obras particulares, com intenções monumentais. Pode-se supor que,
pequenas igrejas e as edificações conventuais foram substituídas por obras de caráter mo- de alguma forma, tenham contribuído para as primeiras preocupações com a regularidade
numental, abrigando sempre, em seus flancos, as capelas das ordens terceiras, nas quais se de traçados das ruas e com as normas de edificações, que começaram a aparecer nas atas da
desenvolviam as articulações da sociedade civil e leiga com o sistema religioso e oficial. Câmara de Salvador, como observa Robert Smith 16 •
O clero regular, mesmo com a igreja ligada ao Estado, permanecia em posição secundária. Até então, as ruas constituíam um cenário mais ou menos homogéneo. De acordo
Excetuando-se o palácio b"Fspo, as construções eram modestas e a antiga catedral de com as tradições ibéricas, as construções se faziam sobre o alinhamento fronteiro dos lotes
Salvador, com a qual se procurava acompanhar a escala geral de monumentalidade, era e sobre os limites laterais, formando um corpo contínuo, que aumentava a estabilidade do
uma obra infeliz, que sofreu desmoronamentos e reformas, sem chegar a apresentar um conjunto. As águas dos telhados eram lançadas sobre as ruas ou para os fundos dos lotes,
conjunto harmonioso como os demais. dispensando a sofisticação de calhas e condutores. Diferememente da tradição espanhola e
O quadro se repetia nas outras vilas e cidades, segundo seu nível de riqueza, como na hispano-americana, não possuíam pátios interiores (salvo raras exceções) ou jardins nos
dupla Olinda-Recife, no Rio de Janeiro, em Belém do Pará e São Luís do Maranhão e, em fundos, sendo os terrenos nessas partes reservados em geral aos serviços ou ao plantio de
nível mais modesto, em pequenas aglomerações como Santos, Vitória ou João Pessoa. árvores frutíferas.
Essas tendências foram acentuadas durante a primeira metade do século XVIII, com Essa continuidade não correspondia porém a uma unidade plástica, que só seria ten-
um apoio técnico de melhor nível. Para a execução de todo esse programa de obras, am- tada na fase pombalina. Ao contrário, oferecia uma grande variedade de soluções, sendo
pliou-se a participação dos engenheiros militares, transferidos de Portugal. cada caso resolvido segundo o gosto do proprietário ou do projetista. Variando as dimen-
Nos últimos anos do século XVII já se punha em prática uma política mais ambiciosa, sões dos lotes, o número de pavimentos e a época das construções, tinha-se uma diversida-
com a criação das Aulas Militares de Arquitetura, destinadas à formação de quadros auxi- de permanente de aspecto, em todos os quadrantes da paisagem urbana. No século XVII e
liares de profissionais para a tropa colonial, mas abertas também ao ensino de civis. A da no início do século XVIII, as janelas eram guarnecidas de urupemas, esteiras de fibras de
Bahia já era mencionada em 1696 e a do Rio de Janeiro em 1699, mas sua instalação taquara trançadas. No final do século XVIII, as janelas eram guarnecidas de rótulas e os
definitiva se deu em 1735. Sabe-se que existiram outras em Pernambuco e Belém. Aos balcões com mucharabies, balcões de madeira com rótulas, que no início do século xrx
alunos desses cursos e aos seus mestres, oficiais em serviço na Colónia, devemos os planos seriam substituídos por balcões de ferro e janelas com vidraças.
de novas vilas, os projetos e a direção dos serviços das obras públicas mais relevantes do O uso das casas estava baseado na presença constante e generalizada do trabalho
século XVIII e, não menos importante, os mais preciosos desenhos de plantas e vistas de escravo, estabelecendo-se padrões de organização interna homogéneos, de Belém do Pará
nossas vilas e cidades coloniais. Algumas das Aulas Militares funcionaram por pouco tem- ao Rio Grande do Sul, que perduraram praticamente até fins do século XIX, enquanto
po e de modo intermitente, mas as de Salvador e Rio de Janeiro adquiriram destaque e em existiu o regime de escravidão.
1793 a última deu origem à atual Academia Militar. As soluções técnicas eram extremamente rudimentares, não por desconhecimento
Cidades como Salvador, Belém e Rio de Janeiro, sob ameaça de ataques das outras mas pelas vantagens de aproveitamento do trabalho escravo. Não havia serviços de abaste-
potências colonizadoras, tiveram suas fortificacões reforçadas. Mesmo vilas como Santos, cimento domiciliar de água ou coleta de esgotos; os escravos se encarregavam do transpor-
estrategicamente localizadas, receberam atenção dos engenheiros militares e realizaram te dos líquidos. Não havia problemas de transportes a longa distância ou de número exa-
obras defensivas, das quais se conservam remanescentes e projetos, que documentam o gerado de pavimentos: os escravos carregavam os senhores. Não havia dificuldade para
esforço construtivo que então se empreendeu. De maior interesse para os estudiosos são os transporte de mercadorias: os escravos as carregavam. Os escravos retiravam o lixo, prepa-
levantamentos e planos de reorganização urbana, que fornecem informações preciosas so- ravam os alimentos, cuidavam das crianças e das roupas, abanavam nas horas de calor,
15
bre o estado dos trabalhos nessa época . traziam a água do chafariz, retiravam os barris com esgoto, trabalhavam na construção das
casas e na sua conservação e, quando necessário, eram obrigados a fazer a guerra no lugar
dos senhores.

14Ver, a propósito, REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil 1580-1720, FAU-USP, 1964.
15 16
Veja-se, especialmente, os desenhos do brigadeiro João Massé, arquiteto francês a serviço de Portugal, SMITH, Robert (g.) «Documentos baianos». In: Revista do Pat1imônio Histdrico e Artístico Nacional,
496 que se conservam no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. volume 9 (94), Rio de Janeiro, 1945. 497
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Ao terminar o século XVII, a Colónia, nas áreas dominadas por Portugal, teria uma popu- Nas regiões de mineração a população era concentrada em núcleos urbanos permanentes.
lação total estimada em 300 000 habitantes aproximadamente, que viviam em sua maioria no Desse modo, formava-se um amplo mercado urbano, no qual mesmo aos escravos era vedado
meio rural e junto ao litoral. Essas condições iriam se alterar profundamente no século seguin- o trabalho da terra. A economia litorânea foi dinamizada e vastos territórios foram ocupados
te, em função das descobertas de jazidas de ouro. com economias complementares à da mineração. Os campos da região sul, entre o Paraná e o
Rio Grande do Sul, foram destinados à criação de muares, para atender ao transporte interno.
No Vale do São Francisco, grande eixo de ligação entre Minas Gerais e Bahia, a criação de gado
estendeu-se, juntamente com um povoamento pouco denso, em todos os territórios recoberros
4. ouro com campos naturais. Com a descoberta de novas minas em Goiás e Mato Grosso, o território
interior, sob o domínio português, foi estendido longamente para oeste dos limites do Tratado
Ao longo do século XVII, com o objetivo de encontrar outras frentes de atividade de Tordesilhas, permitindo inclusive o controle da Amazónia. Em cada uma dessas áreas, foram
económica para a Colónia, a Coroa havia estimulado os habitantes das vilas do interior, estabelecidas vilas e sistemas regulares de controle administrativo.
pouco vinculados ao setor açucareiro, especialmente os da região de São Paulo, a procurar Em Portugal e no Brasil, as transformações induziram o reforço dos esquemas de
depósitos de ouro e pedras preciosas. Os resultados positivos, de maior envergadura, co- centralização. Implantou-se um sistema de dominação e exploração semelhante ao aplica-
meçaram a aparecer nos últimos anos do século XVI! (] 693) na região de Minas Gerais, do pelas outras potências na América ou mesmo pelos portugueses cm outras regiões. Os
seguindo-se os achados de Mato Grosso (1718) e Goiás (1726). poderes do Governo Geral foram reforçados, inclusive com a criação formal de um vice-
O desenvolvimento da mineração provocou uma alteração profunda nas relações -reinado, ampliando-se os quadros administrativos e militares, sempre com efetivos profis-
internas da Colónia, bem como nas relações desta com Portugal e também nas de Portugal sionais, transferidos da Europa. As antigas capitanias foram sendo incorporadas à Coroa e
com as demais potências européias. Na dialética das relações de exploração colonial, as transformadas em simples instâncias regionais do Governo Geral, ao qual eram submeti-
mudanças ocorridas no Brasil não somente provocaram transformações nas relações colo- das. As iniciativas de criação de vilas foram transferidas à administração central. As câma-
niais, corno redefiniram as relações gerais da potência colonizadora e acarretaram ras municipais tiveram seus poderes restringidos. Em algumas oportunidades, mesmo em
desequilíbrios demográficos no seu interior. centros como Salvador, os edis deixaram de ser eleitos, passando a ser indicados pelos
Acelerou-se extraordinariamente a imigração européia. Calcula-se que entre 300 mil governadores. A criação de vilas passa a se fazer por iniciativa do governo português, atra-
e 800 mil portugueses se deslocaram para o Brasil em meio século, em uma época em que vés de Cartas Régias aos governadores.
Portugal contava com um total de 2 000 000 de habitantes 17 . É inegável que uma tal A posição de Portugal no cenário europeu foi também alterada. Para assegurar o
transferência de população vinha animar a vida urbana colonial. Ao mesmo tempo, redu- domínio de um território colonial subitamente valorizado pelos achados auríferos, a Co-
zia substancialmente a dinâmica das trocas na própria Metrópole. Sua concretização só foi roa desenvolveu uma estratégia de aproximação política com a Inglaterra, colocando-se
possível porque os produtos da mineração, pelo seu valor, asseguraram a Portugal uma em sua órbita de influência e reforçando laços comerciais, através do Tratado de Methuen.
posição de vantagem nas trocas externas com o mercado europeu. Segundo Roberto Alterado sucessivamente, em favor das manufaturas inglesas, esse tratado permitiu que as
Simonsen, por um longo período, cerca de 25% do valor das trocas externas de Portugal atividades rnineradoras brasileiras, com a intermediação portuguesa, assegurassem um flu-
foram cobertos com ouro do Brasil. Mas as conseqüências para a economia portuguesa xo permanente de reservas metálicas para os mercados ingleses, na sua fase crucial de
foram evidentes: concentração de riqueza e aumento de dependência das manufaturas crescimento, no início da revolução industrial.
inglesas, para alimentar seu comércio com o Brasil. Nessa época, colocou-se a conveniência de urna definição de fronteiras com a Améri-
Os colonos portugueses não vinham para executar diretamente as atividades de mi- ca Espanhola e de consolidação da dominação interna, com uma política de urbanização
neração. Para assegurar a força de trabalho necessária à produção, intensificou-se em larga mais coerente. Os pontos básicos dessa estratégia foram ensaiados durante o reinado de
escala a importação de escravos das costas da África. D. João V (1706-1750). Sua estruturação efetiva deu-se durante a administração do Mar-
quês de Pombal ( 1750-1777), ministro de D. José I. Durante esse período foi reorganiza-
do o Governo Geral. A sede foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763,
para facilitar o controle das minas e da região sul. Na mesma época, criou-se o estado do
A primeira cifra é considerada a mais objetiva, havendo autores que contestem fortemente a hipótese de
17
Grão Pará e Maranhão, com sede em Belém, abrangendo a região amazónica. Ao mesmo
que um número superior a 500 mil europeus tivesse possibilidade de se deslocar para o Brasil nesse período, em
498 função <lo número de navios disponíveis. tempo, com os tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso ( 1775), procurou-se equacionar 499
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a questão de limites com a América Espanhola. Foram enviadas para o Brasil diversas dessas irmandades que se desenvolveu a vida política e cuitural das regiões das minas. Nas
comissões de técnicos, com alta qualificação profissional, para realização dos trabalhos de outras regiões, com o crescimento da vida urbana, um processo semelhante se estabeleceu,
demarcação das fronteiras, que paralelamente participavam da implantação da política de mas o grau de autonomia era muito menor, no sentido político e cultural, uma vez que as
urbanização. Inserida nesse processo, colocou-se a questão do domínio jesuítico, que ocor- irmandades se encontravam sob tutela dos conventos e a densidade das relações urbanas
ria em vastas porções do território colonial, levando ao conflito aberto da própria ordem era bem menor.
com as duas Coroas e terminou pela sua expulsão. Para assegurar o controle sobre as popu- Nas regiões de mineração chegaram a se esboçar algumas atividades manufatureiras.
lações indígenas tuteladas, os padres as mantinham em suas aldeias isoladas e no uso da Após a queda de Pombal, sua destruição foi ordenada oficialmente, no quadro de uma polí-
língua local, emprega!!ia certas regiões, como a de São Paulo, mesmo pelos mestiços e tica, cujas origens ainda são objeto de discussão entre os estudiosos. As corporações de ofício
descendentes de portugueses, o que colocava um problema cultural para os administrado- jamais deixaram de ser agrupamentos de membros de camadas de pequeno relevo económico
res coloniais. e social e a atividade empresarial no setor manufatureiro, sempre desestimulada pela presen-
Pombal completou o trabalho de incorporação das capitanias à Coroa. Determinou a ça do trabalho escravo, era praticamente inexistente. Finalmente, deve-se observar que a
criação de novas capitanias nas regiões f~onteiriças e a reorganização das antigas, nos pon- própria vastidão do território, a modéstia do número total de sua população e o forte isola-
tos estrategicamente relevantes. Entregou o governo do Grão Pará a seu irmão e os demais mento entre as capitanias constituíam obstáculos sensíveis à formação de mercados inter-
a outras pessoas de alta qualificação cultural e profissional. Determinou a realização de -regionais mais expressivos. Excetuando-se as minas, que geraram fluxos internos de merca-
recenseamentos para localização e identificação da população. A seguir, implantou uma dorias, as demais se mantiveram como mercados urbanos modestos, sempre inibidos pela
política urbanizadora, como medida de controle e dominação da população. Para maior autarquia dos latifúndios, que constituíam o setor mais dinâmico da vida rural.
eficácia dessa dominação, organizou a população em tropas de ordenanças, com uma es- Para reforçar o controle sobre as áreas ocupadas com agricultura de subsistência, os
trutura paramilitar, entregando os postos de oficiais às figuras de destaque em cada locali- governadores foram instados pela Coroa a percorrer o interior das capitanias, reunir os
dade, segundo sua importância. Desse modo, incorporou-as ao sistema de dominação e, moradores «dispersos pelo campo» e promover a fundação de novas vilas. Estas pouco
através de convocação formal, transferiu aos próprios colonos as responsabilidades por tinham de núcleos urbanos. Constituíam, antes, pontos de contato com o sistema admi-
obras de infra-estrutura, como a construção e manutenção de estradas e pontes e serviços nistrativo e se destinavam a submeter à dominação colonial os grupos de colonos, pouco
mais simples, de controle interno. articulados à economia exportadora e, portanto, menos vinculados culturalmente à Me-
Para as diferentes regiões, foram elaborados planos específicos de desenvolvimento trópole, a ponto de falarem mal o português. Explicam-se, desse modo, os súbitos surtos
económico, de acordo com os objetivos coloniais: para a costa norte, entre o Rio Grande de «urbanização» em determinadas regiões de fraca atividade económica.
do Norte e o Pará, a produção de algodão; para São Paulo, a produção de açúcar, aguar- Na região das Minas, as condições urbanísticas eram de início bem diversas das exis-
dente e algodão; para as outras regiões açucareiras, a retomada de suas tradições, revigora- tentes no litoral. As vilas se formaram pela agregação de alguns arraiais de garimpeiros,
18
das pelo aumento da demanda nos mercados europeus. crescendo dos fundos de vale para as colinas, estas sempre menos insalubres . As ruas,
As altas taxas de urbanização da população nas regiões das minas facilitavam os contatos correspondendo aos antigos caminhos, eram quase sempre irregulares, acomodando-se à
e estimulavam os conflitos de interesse. Consequentemente, as condições de repressão se topografia, contornando obstáculos e ajustando-se aos hábitos de passagem.
tornaram mais graves. Já no início do século xvm, os paulistas descobridores das jazidas Consolidando-se as povoações, começaram os trabalhos de melhoria. A vila do Carmo
foram em grande parte dizimados ou expulsos do território. (Mariana), elevada a cidade em 1742, teve seu traçado reorganizado, com padrões geométricos.
As condições de vida social nesses centros urbanos eram bem peculiares, no quadro As casas mais antigas, de um só pavimento, eram ampliadas, crescendo em altura com uso de
da Colónia. A riqueza e a convivência estreita favoreciam as atividades artísticas, com técnicas mais leves. A «segunda geração» já apresentava um aspecto mais elaborado, aproxi-
características próprias, abrangendo praticamente todas as formas de expressão. Mesmo as mando-se dos padrões das cidades litorâneas. Os lugares de destaque, nos encontros dos cami-
relações de exploração do trabalho escravo se estabeleceram de forma diferenciada. Obri- nhos, eram reservados não para os conventos, que não existiam, mas para as capelas das ordens
gados a viver junto aos locais de trabalho, os escravos partilhavam da vida urbana e das terceiras, que se transformaram em símbolos das camadas sociais. A aparência das ruas era em
trocas culturais correspondentes, o que só por exceção podia ocorrer nas demais regiões, tudo semelhante à das aglomerações do litoral, como semelhante era o esquema de organização
com essa intensidade. Sob a capa das organizações religiosas das ordens terceiras, reuniu-se
cada camada social em uma irmandade, com relativa autonomia, uma vez que as ordens 18 Cf. VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica, formação e deseuvolvimento. Instituto Nacional do Livro,
500 conventuais estavam proibidas de se instalar nesses territórios. Foi sobretudo ao redor MEC, Rio de Janeiro, 1956.
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das moradias: tinham uma sala na frente à qual podiam ter acesso os visitantes, alcovas ao junto pouco comum, no qual os parâmetros da Baixa lisboeta são reproduzidos com gran-
centro e uma varanda ou sala de viver nos fundos, vedada aos estranhos, que se ligava à entrada de exatidão, inclusive na austeridade dos detalhes.
por um longo corredor. Nas casas maiores o desenho era simétrico, com o corredor ao centro. Nas regiões mais afastadas, como os atuais estados de Amazonas e Mato Grosso, a
Nos sobrados a repetição era vertical. Nos sobrados de comércio, cada um dos andares era escala das obras e os seus resultados foram mais modestos, mas o caráter das iniciativas se
destinado a um uso diverso, mas o desenho era sempre O mesmo. manteve: o padrão lusitano.
Durante a administração do Marquês de Pombal os padrões urbanísticos sofreram O mesmo rigor de conjunto não se apresenta de modo tão claro nas regiões cuja
transformações substanciais. No quadro de uma estratégia global perfeitamente estruturada, urbanização já era então mais consolidada. Entretanto, não se pode deixar de observar que
como política de coloniz11çãõ; como acima foi explicado, incluía-se uma política de urba- uma parcela importante da Cidade Baixa de Salvador, edificada em aterros realizados nessa
nização, abrangendo aspectos gerais de estruturação da rede e descendo aos mínimos deta- época, obedecia aos parâmetros da chamada Baixa Pombalina em Lisboa, inclusive na
lhes, que podem ser reconhecidos como parte de um plano de colonialismo cultural. austeridade de sua arquitetura, despojada dos exageros barrocos das fases anteriores 19 •
Nos sectores com problemas políticos mais sensíveis, como os das regiões limítrofes Para a execução de um plano tão ambicioso, Pombal valeu-se amplamente dos
co~ a América espanhola, como a região amazónica ou naquelas em que a presença jesuítica arquitetos em serviço nas tropas coloniais, de modo especial dos profissionais encarrega-
havia se mostrado mais forte, como as capitanias do Sul, ou ainda, as até então menos dos das missões de demarcação, alguns dos quais jamais chegaram a ser encaminhados
dinâmicas, como as da costa norte, o controle era perfeitamente expresso. As canas aos para as fronteiras. Os levantamentos, os planos e projetos que realizaram, as cartas régias
governadores, ao determinarem a criação de novas vilas, fixavam de maneira clara as nor- aos governadores das capitanias, as atas de fundação das vilas e as inúmeras obras ainda
'.nas ~ara a sua edificação, visando o atendimento aos padrões tipicamente portugueses, existentes são documentos eloqüentes de um esforço urbanístico excepciorul, que colocou
mclum~o até me~mo a escolha dos nomes para as localidades e os de suas ruas e praças, Portugal em nível comparável ao da América espanhola das épocas precedentes.
que deviam repetir os de vilas e cidades de Portugal. Utilizando os padrões arquitetónicos Por outro lado, a forma pela qual a rigidez das normas urbanísticas coloniais foi
empregados na reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1755, as cartas estabeleciam reinterpretada pelos colonos, sobretudo na disposição dos espaços internos e sua adequa-
uma coordenação dimensional, que incluía medidas para os lotes, número e dimensões de ção às diferenças climáticas, compreendendo de regiões tórridas a subtropicais, são uma
janelas e portas, altura de pavimentos e formas de relação com as construções vizinhas, de lição not,ível dos esforços de adaptação e de invenção da população local, na criação de
modo a se obter uma aparência de uniformidade na paisagem urbana que lembrasse, em condições adequadas à sua própria existência. As diferentes formas de solucionar as aber-
qualquer parte, suas congéneres em Portugal. A aparência de vilas e de cidades do Norte, turas internas e externas e assegurar a plena circulação de ar na região norte, e impedi-la ou
como Manaus, Belém, São Luís, Alcântara, Icó, Aquiraz e Aracati era a mesma das do Sul, limitá-la na região sul, que não podem ser buscadas nas tradições portuguesas, por sua
como São Luís do Paraitinga ou a cidade do Rio Grande, até a 5000 quilômetros de eficácia, racionalidade e qualidade plástica, estabelecem um precedente sugestivo para
distância, mesmo quando edificadas quase um século depois. Essa uniformidade era ex- Arquitetura Moderna do Brasil, que iria surgir 150 anos depois.
pressamente recomendada. Para facilitar a acomodação às condições climáticas, deixava-se Ao se encerrar o século xvrn, a população total do Brasil aproximava-se dos três milhões
liberdade aos moradores, quanto às soluções aplicáveis às elevações voltadas para O interior de habitantes. Salvador, a principal cidade, teria cerca de 50 000 moradores e 15 000 nos
dos lotes.
seus subúrbios, rivalizando com o Porto, como segunda cidade do império português. O Rio
Essas prescrições, que visavam reforçar a presença do domínio da Coroa em áreas de Janeiro teria um pouco mais de 40 000; Ouro Preto, já decadente, pouco menos de
onde ocorriam condições de maior competição com os espanhóis ou com os jesuítas, ou 20 000; Cuiabá, São Luís e Belém, mais de 10 000. Eram, ao todo, 10 cidades e 118 vilas,
nas quais a vida local tendia a escapar aos objetivos da Metrópole, acompanhavam medi- sobre um território imenso 20 • A importância desse mercado pesou por certo nos aconteci-
das de ordem mais geral, ditadas por elevado senso administrativo. As vilas a serem criadas mentos que se seguiram, no início do século XDC, levando à ruptura das relações coloniais.
deviam obedecer a traçados regulares, com dimensões básicas prefixadas e terem reservas
de áreas para os sectores básicos de suas atividades e para sua futura expansão.
Os exemplos de cidades de maior envergadura, com aplicação dessa forma de urba-
nismo, são Belém e São Luís do Maranhão. Os conjuntos de sobrados de dois ou três
pavimentos em ruas centrais, edificados como resultado da prosperidade financeira alcançada
''' Ver REIS FILHO. Nestor Goulart. «Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil». Cr1demos ele Pesquisa
com a política pombalina, são ainda hoje uma demonstração eloqüente de sua eficácia.
502 do LAP, número 3, FAU-USP, 1994 (editado neste volume).
Mais modesta, a vila de Alcântara no Maranhão guarda em sua praça principal um con- 20
AZEVEDO, Aroldo de. Vi/{ls e cidades elo Brasil Colonial. São Paulo. FFCL-USl', 1956. 503
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUf:s

AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidt1des do Bmsil Colo11it1f. São Palllo, EDUSI; 1956.
CHICÓ, Mário "lavares. «A cidade ideal do renascimento e as cidades portuguesas da Índia». In: Garcit1 de Orta.
Revista dcts Missões "ºM,••Al; e de Investigação do Ultmmar. Número especial, Lisboa, 1956.
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REIS FILHO, Nestor Goulart. Evokição Urbana do Brasil 1580-1120. FAU-lJSI; 1964 e Pioneira, São Paulo,
1970.
- . Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1969.
- . «Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil». Cadernos de Pesquisa do LAP, número 3. FAU-USP, 1995. Planta da Restituição da Bahia, e. 1625. Desenho existente no Atlas do Brasil, ele João Te:xeira. Ll
SMITH, Robert C «Documentos baianos». In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 9(94), Rio A Bahia no momento em que foi entregue pelas tropas holandesas, que a haviam ocup<1do cm 162,.
de Janeiro, 194 5.
VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica, formação e desenvolvimento. Instituto Nacional do Livro, MEC, Rio de
Janeiro, 1956.

Planta da Villa Boa Capital da Capitania Geral de Goiás. Original existente


no Ara uivo Histórico do Exército - Rio ele Janeiro. Planta da atual cidade de Goiás,
mostra,;elo na parte central o traçado irregular das antigas vilas das áreas de mineração.

Mapa Exacto da Villa D' S. João da Parnaíba, 1707.


504 Planta da cidade de Paraíba, atual estado do Piauí, mostrando a regularidade dos traçados
elas vilas fundadas no século XVIII. 505
O URBANISMO REGULADO E AS PRIMEIRAS CIDADES
COLONIAIS PORTUGUESAS*

WALTER RossA
Departamento de Arquitecturct da Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra

Plano da Villa Bela Capital do Governo da Capitania General do Mato Grosso.


Original existente no Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
Planta antiga da capital da capitania de Mato Grosso, mostrando O traçado regular.

* Comunicação apresentada ao N Seminário de História da Cidade e do Urbanismo «Herança, Identidade


Planta da cidade de S, Sebastião do Rio de Janeiro. e Tendências da Cidade Latino-Americana», realizado entre 27 e 29 de Novembro de 1996, no Rio de Janeiro, pelo
Planta que mostra a cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII, PROURB da Faculdade de Arquitecrura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e que, por razões
506 com sua expansão pelos terrenos planos, com traçados de relativa regularidade, de ordem técnica, não pôde ser publicado nas respectivas Actas.
estudo da(s) forma(s) da cidade do universo português tem-se realizado essencialmen-
te à luz dos debates das décadas de 50 e de 60 acerca da sua diferença em relação às cidades
hispano-americanas, da (não) regularidade, da organícidade inteligente, etc., questões e
propostas que para os casos em território brasileiro foram enunciadas por Aroldo de Aze-
vedo 1, Robert Smith 2, Paulo Santos3 e Reis Filho4, que, entre outros, fizeram germinar a
disciplina de forma então sem paralelo em Portugal. Graças ao labor dessa geração de
pioneiros da hist6ria do urbanismo português, os avanços foram grandes, sendo hoje fácil
encontrar a cartografia, as fontes, os factos e as cronologias fiáveis e essenciais. No entanto,
em tudo o que diga respeito ao escrutínio/formulação da massa cultural geradora das suas
especifidades formais/espaciais, tornava-se-lhes difícil ultrapassar algumas barreiras. Era
mau e ideologicamente marcado o conhecimento da História geral e quase inexistente o
interesse por estas questões em Portugal. Não estando acessíveis estudos de aproximação
global, recorreu-se com frequência ao avançado estado de conhecimentos sobre o urbanis-
mo espanhol, em especial ao clássico Resumen ... 5, o que se por um lado permitiu desbloquear
alguns aspectos da investigação, por outro contribuiu para retardar a necessidade da reali-
zação de estudos semelhantes dirigidos às especifidades portuguesas e para comparar em
idêntica abordagem objectos com génese e percurso algo diferenciados, assim os desvalori-
zando. Não é correcto proceder-se a uma comparação formal das particularidades, seme-
lhanças e diferenças das cidades de colonização espanhola e de colonização portuguesa
quando o conhecimento dos contextos genéricos e específicos a cada uma é desequilibra-
do. Uma das primeiras tentativas para se ultrapassar este estado de coisas foi a dissertação
de doutoramento apresentada por Roberta Marx Delson em 1975". Apesar de então a

1
«Vilas e cidades do Brasil colonial», in Boletim, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de S. Paulo, São Paulo, 1956, n. 0 208, pp. 1-96.
2
Essencialmente em «Colonial Towns of Spanish and Portuguese America», in journal of the Society of
Architectural Historiam, 1956, n. 0 4, vol.!ano 14 e em «Urbanismo colonial no Brasil», in Bem Estar, vol./ano !,
São Paulo, 1958, n. 0 l.
3
«Formação de cidades no Brasil colonial», in Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1968.
4
Entre alguns outros na sua já clássica (1964) Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil (1500-
-1720), Liv. Pioneira Editora/Universidade de S. Paulo, São Paulo, 1968.
5 AAVV (1954), Resumen Historico de! Urbanismo en Espafia, Instituto de Estudios de Administracion

Local, Madrid, 1987.


6
«Town Planing in Colonial Brazil», Ph. D. dissertation, Columbia University, New York, 1975, depois
vertida no livro New Towns for Colonial Brazil-spacit1la11dsocialplamzing ofthe eighteenth centmy, Department
ofGeography ofSiracusc University and UM!, Siracuse, 1979. 509
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS O URBANISMO REGULADO

historiografia de suporte não ter ainda melhorado consideravelmente, esta investigadora das após aquela data não cumprirem na íntegra aquelas disposições regimentais 7 • Face a
conseguiu traçar um quadro consistente da urbanização do Brasil no que diz respeito ao tudo isto o que nos importa reter é o facto de, por regra, a historiografia do urbanismo
século XVIII. hispano-americano compreensivelmente se ter dedicado a um número proporcionalmen-
Ao nível da comunidade científica internacional, em termos concretos, o urbanismo te reduzido de casos e, consequentemente, que para o nosso fim não se pode tomar o todo
português na América Latina tem sido tratado como um capítulo apenas peculiar do urba- pela parte. É que na Urbanística, os métodos e as teorias podem ser estudados pelas suas
nismo ibero-americano, quando pura e simplesmente não é confundido com o hispano- concretizações arquétipas, mas é mais compensadora a análise das excepções e desvios.
-americano. Não será esta a oportunidade para debater terminologias, mas no futuro im- b) A formação da rede urbana da América espanhola teve o seu grande incremento
pouco depois de ser achada por Colombo. Na primeira metade de quinhentos o número de
portará reflectir e definir s~ a t~mática do urbanismo no Brasil anterior à independência é
núcleos urbanos fundados atingiu logo a centena. Já para o Brasil só na segunda metade do
lusolportugueso-americana, lusolportugueso-brasileira ou outra, tendo sempre presente que a
século XVII é que tal começou a ganhar forma, segundo uma estratégia gizada pela Coroa face
totalidade da nossa realidade é universal enquanto que a espanhola é essencialmente ibéri-
a duas realidades essenciais: o abandono em definitivo do sonho da Índia com a percepção
ca e americana. Na nossa historiografia do urbanismo e da urbanística, por regra, tem-se
que só o Brasil poderia libertar os meios necessários à manutenção da integridade do Reino;
passado um pouco ao lado desta questão, isto é, tem-se estudado essencialmente o caso
a necessidade de argumentos de facto à mesa das negociações com a Espanha para a demar-
brasileiro, o que, face ao avanço disciplinar para a restante América Latina, à dimensão do
cação de fronteiras que inevitavelmente viria a substituir as regras estabelecidas em Tordesilhas.
Brasil e ao facto de dele serem oriundos os pioneiros da disciplina, é compreensível, mas,
Só então se passou a ver e querer o Brasil como um único território, ultrapassando-se as
sem dúvida, equívoco. Paradoxalmente tem-se tentado contornar a assunção de qualquer divisões que os espanhóis haviam introduzido durante a sua administração que, por sua vez,
influência do próprio urbanismo espanhol no universo português, preferindo-se assumir em difinitivo terminara com a fragmentação aleatória da divisão em capitanias, com a qual a
acríticamente o anátema de ausência de regularidade óbvia, o que também tem contribuí- Coroa portuguesa delegara inicialmente a marcação do território 8 • Esta disparidade cronoló-
do para este envergonhado estado das coisas no âmbito de um quadro um pouco afastado gica que de forma grosseira se pode quantificar em século e meio, ao ser levada em linha de
da realidade histórica e que urge desmontar. Em três alíneas de síntese avanço já com parte conta permite-nos vislumbrar um universo urbanístico português quantitativa e qualitativa-
do meu contributo. mente muito rico. O processo de formação das redes urbanas da Amazónia e do Mato Gros-
a) Tem sido tornado claro pelos seus especialistas que entre a totalidade das cidades so no século xvm, que conheço essencialmente graças aos trabalhos de Renata Malcher de
hispano-americanas é percentualmente bastante reduzido o número de casos em damero. Araujo 9 , bem como o pouco que se sabe acerca de Santa Catarina e Rio Grande do Sul são
Desde há muito que interiorizaram a regra básica para a História do Urbanismo e da disso provas irrefutáveis. No que diz respeito ao período em que se dava o grande impulso de
Urbanística, segundo a qual os objectos de estudo são aqueles onde é descortinável uma urbanização da América espanhola, se os casos no Brasil são praticamente inexistentes, por
pré-concepção. Assim se afastam de imediato casos de geração espontânea ou de núcleos esse mundo fora podemos para já contar uma meia dúzia no actual território indiano, mais
de fundação, cujo desenvolvimento espacial ocorreu de forma desregrada. Estes casos, alguns no Sri Lanka 10 e cerca de uma dezena nas ilhas atlânticas.

cujos processos são vulgarmente designados por orgânicos, obedecem a uma lógica que é,
7 f: uma notícia dada em quase todas as obras clássicas sobre a matéria. No entanto, para os aspcctos
ao nível da nossa disciplina, estruturalmente repetitiva, sendo as variações epidérmicas de
específicos ao corpo normativo, é notável a síntese de Raffaele DAVANZO, «li sistema amministrativo e la
foros disciplinares, como a Antropologia, a Sociologia, a Geografia, destacando-se, entre legislazione urbanistica», in Psicoll, revista internaziomdedi architettura, Centro StudiArchitcttura OUROBOROS,
outras, a mais próxima de nós, a História da Arquitectura. Usando o exagero como meio Firenze, 1975, n. 0 5, vol./ano 11, pp. 92-102.
8
Como sabemos esta matéria é um pouco mais complexa. À data da instirnição das capitanias não se tinha
de clarificação deste ponto, julgo poder afirmar que, por exemplo, nas cidades mineiras, percepção da profimdidade do território, pois tal como para o resto do Império as instalações eram cosreiras. Se a
constituição de um Governo Geral por D. João III é, entre outras coisas, o primeiro passo num entendimento
com excepção para Mariana e para sistemas urbanos planeados como a Praça dos Governa-
global do território, a sua extensão obrigou a que experimentalmente em 1572-7 e 1608-12 a respectiva adminis-
dores em Vila Rica, as características do espaço urbano só podem ser cientificamente ob- tração fosse repartida entre o Salvador e o Rio. Mais significativa foi a criação em 1621 de um Estado sediado em
S. Luís e abrangendo Maranhão, Ceará e Pará, medida de fundo que visou um re-escalonamento similar ,1 divisão
servadas recorrendo aos instrumentos e metodologias específicos da História da Arquitec-
dos territórios espanhóis na restante América Latina (ouvidorias, etc.). Apesar de só oficialmente extinta dois
tura, ainda que para a História do Urbanismo seja sempre enriquecedor averiguar as dinâ- séculos depois, na realidade a eficácia desta divisão foi-se diluindo a partir da Restauração.
9 As Cidades da Amazónia 110 século XVIII - Belém, Macapá e Mawgão, 3 vols., dissertação de Mestrado
micas evolutivas e funcionais. Regressando às cidades hispano-americanas lembre-se, a
apresentada à Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1992. Neste momento tem em preparação estudo idêntico
propósito, que a famosa compilação de posturas de 1573 vulgarmente identificada por centrado sobre a região do Mato Grosso.
'º Sobre o urbanismo português em território indiano, publiquei entretanto CicÚldes Indo-Portuguesas -
«Leys das Índias ... » ocorreu depois de grande parte dos núcleos urbanos a que se dirigia contribuições para o estudo do urbanismo português no Hindustão Ocidental, edição bilingue (porrnguês/inglês),
510 terem sido estabelecidos, sendo ainda mais relevante o facto de as próprias cidades funda- Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1977. 511
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUI,S O URBANISMO REGULADO

Constimindo-se como mais uma relevante diferença relativamente ao processo espa- Aos estudos sobre a cidade portuguesa no século xvm devemos o reconhecimento
nhol, surge aqui a propósito uma referência ao facto de no universo português serem da existência inequívoca de uma escola portuguesa de urbanismo, cujo inevitável radical
frequentes as acções urbanizadoras desenvolvidas fora da esfera do Estado, em especial por foi a engenharia militar 11 • Inicialmente era intuitivo, mas foi-se provando que esta esco-
instituições do foro eclesiástico, tal era a dimensão territorial e a míngua demográfica. No la se formava e renovava na rede de Academias de Fortificação, cujo arquétipo surgiu em
entanto, por razões de natureza metodológica parece-me importante deixá-las por algum Lisboa em 1647 sob o magistério de Serrão Pimentel, personalidade que dos pontos de
tempo de parte. vista científico e pedagógico só veio a ser igualada - eu diria até ultrapassada - por
e) Nas últimas décadas, as ciências da História evoluíram no sentido de reconhece- Azevedo Fortes na primeira metade de setecentos. A ambos se devem os mais esclareci-
rem nos limites por elas virtui1mente criados para a divisão do tempo em períodos estan- dos textos teóricos sobre estas matérias produzidos em território português 12 • Parece-me
ques, apenas úteis instrumentos de sistematização e comunicação. Igual e convergente claro que o aparecimenro sob uma forma institucionalizada da escola e da engenharia
evolução têm sofrido os conceito de estilo. Persistem, no entanto, alguns focos de resistên- militar portuguesa 13 é um facto novo só explicável como inevitável consequência da
cia. Por exemplo, na História da Arte Portuguesa tem resultado particularmente bizarra a Restauração.
surda discussão acerca do medievalismo/goticidade ou modernidade/renascentismo abso- É inquestionável que a influência prática e alargada do surto científico-tecnoló-
lutos do (eventual) estilo manuelino. Mas mais equívocos têm sido os resultados deste tipo
gico nas disciplinas bélicas de ataque e defesa se deu apenas a partir do último terço do
de abordagens na nossa disciplina em igual período. Não é possível fazer História partindo
do princípio que a todos os níveis e em todos os lugares todas as coisas acontecem pelas
11
Refiro-me, para além das j,í citadas obras de Roberta M. DELSON e de Renata M. deARAUJO, entrJ
mesmas razões, com igual ritmo e velocidade e apenas através de soluções da continuida-
outros, a: José Augusto FRANÇA (1962), Lisboa Pombalina e o iluminismo, Bertrand, Lisboa, 1987; J. E. Horta
de. A esta constatação banal acresce uma outra: a cidade, sendo por natureza obra do CORREIA, Vila Real de SrmtoAntónio-- urbanismo epoder na política pombalint1, dissertação de Doutoramento
poder e da sociedade, é cronologica e epistemologicamente reaccionária, ou, melhor dizen- apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1984; e ao
do, se a formulação de novos conceitos urbanísticos pode ocorrer em nichos culturais de meu trabalho Além da Btlixa - indícios de planeamento urbano na Lisboa Setecentista, 2 vols., dissertação de
Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa,
vanguarda, a sua aplicação nunca é imediata nem íntegra, decorrendo sempre em concor- 1990 (a editar em breve pelo IPPAR). Com outra orientação, anote-se ainda de J. Jaime B. I'erreirn ALVES.
dância com os próprios ritmos e regras de evolução da sociedade. O que se pretende dizer O Porto na época dos Almadas- arquitectura. Obms públicas, 2 vols., dissertação de Doutoramento apresentada
com isto é que se aos poucos se vão descobrindo provas de em Portugal serem conhecidos à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1988-90.
11
Por exemplo de Luis Senão PIMENTEL (1680), Método Lusitânico de Desenhar as Fortificações dtts
quase em tempo real os textos fundamentais da tratadística renascentista, disso não é ime-
Praças Regt.t!ttres e Irregulares, fac-símile pela Direcção da Arma de Engenharia, Lisboa, 1993 e de Manocl de
diatamente dedutível que tudo o que desde então se tenha feiro seja neies inspirado. É uma Azevedo FORTES (1728), O Engenheiro Portuguez, 2 vols., jàc-simile pela Direcção da Arma de Engenharia,
forma grosseira de desvalorizar a importância da cultura preexistente, uma visão ultrapas- Lisboa, 1993 e Lógica Racional, Geométrica e Analítica, obra zttilíssirna e absolutamente necessdria pam entrar em
sada da interacção entre universos culturais centro/periferia. Pelo contrário, da análise dos q1talq11er ciênci,1 e ainda para todos os homens, que em qualquer partirnla,; qtúserem fazer uso elo seu entendimento,
e explicar i/s suas icúias por termos claros, próprios e inteligíveis, José António Plates, Lisboa, 1744. Outros textos de
contextos, dos meios de transmissão, das persomJidades, etc., vai emergindo um percurso
destacadas figuras ela escola mereceriam destaque. A propósito, lembro ainda as próprias Dissertações .. , de Manuel
contínuo que evolui de acordo com os ares do tempo sobre matrizes metodológicas e cultu- da Maia acerca da reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755.
13
rais constantes. Já há muito que o estudo da arte em Portugal esgotou os recursos e cedeu Não dispomos ainda de um estudo dirigido ao nível dos já feitos para os casos francês e espanhol (vicie,
p.e., de Antoine PI CON, L'fnvention de L'fngénieur Morleme- L'Ecole des Ponts et C!,aussées 1747-1851, Presses
o lugar à arte portuguesa junto da vanguarda da investigação. Rumos da História como
de I'.École Narionale de Ponts et Chaussées, Paris, 1992 eArchitectes et l11gl11imrr au siec& cús Lumiem, Parenrheses,
ciência após a modernidade ... Marseille, 1988 e de CAPEI., SÁNCHEZ e MONCADA, De Palm ,1 Minerva - !ajimnación cíntifica _y la
O universo de evidências descortináveis por trás, entre outros, destes três argumentos estructura institucional de los iilgenieros militares en el sig!o XVIII, Serbal / CSIC, Barcelona/ Madrid, J 988). Para
tem-me levado a orientar o meu trabalho no sentido da compreensão dos contextos de Portugal, além do número razoável de estudos sectoriais e dispersos, a obra de referência é ainda, apesar de tudo,
a de Chrisrovarn Ayres de Magalhães SEPÚLVEDA [História O,ganica e Politicado Exército Portuguez- Provas,
fundação e desenvolvimento da rede urbana portuguesa enquanto todo civilizacional, es-
17 vols., Imprensa Nacional (vols. I a VI) e Imprensa da Universidade (vols. VII a XVII), Lisboa e Coimbra,
perando daí poder tirar conclusões para a compreensão dos resultados formais. Para isso 1902-29]. Esd por determinar até que ponto é que uma estrutura designcível, por exemplo, por Rettl Corpo de
considero fundamental o estabelecimento sem ambiguidade de uma matriz de factos, ter- lé"'ngenheiros Militares estaria institucionalizada em finais do século XVII, como alguns documentos permitem
indiciar, ou apenas em inícios do século XIX. É um caso que nem a própria Arma de Engenharia logrmr ainda
minologias e cronologia, com a qual, numa atitude de permanente revisão, seja possível
deslindar [vide, entre outros, «Publicação de l 2 de Fevereiro de 1812, Regulamento Provisional do Real Corpo
trabalhar despreconceituosamente no sentido da construção do corpus disciplinar. de Eng.ª», in Arma de Engenharia -- Boletim infórmativo, Direcção da Arma de Engenharia, Lisboa, Jan.-Fev.
J 986, n. 0 1/86, vol./ano 11. 0 , pp. 2 e 1Oe Real Co,po de E11genheiros Militr,res. Gabinete de Estudos de Arqueo-
512 logia e Engenharia Militar, Lisboa, (s/d)]. 513
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUtS O URBANISMO REGULADO

século XVI 14 . Não é por acaso que no universo português apenas a partir desta altura surgi- síntese entre a tradição, a presença espanhola e o contributo aggiornato dos engenheiros
ram programas de construção sistemática e integrada de sistemas defensivos e se passaram militares franceses e holandeses 18 que resulta o tão propalado, mas nunca estudado, Méto-
l~ s'
a distinguir os papéis do engenheiro, do arquitecto, do mestre de obras, do canteiro, do
.
do Lusztanzco...
A '
. o com duas gerações de engenheiros portugueses formados na Acade-
imaginário, etc., para apenas usar dois dos itens exemplares. Ora, em Portugal, o curso mia de Fortificação da Corte e tirocinados em contacto com os mercenários, foi possível a
normal deste processo, que levaria paulatinamente à cristalização, sem roturas, da sua criação de outras espalhadas um pouco por todos os territórios. O resultado prático foi um
escola de engenharia militar, esbarrou com a aglutinação do reino na Coroa espanhola. corpo de engenheiros com características diversas dos seus congéneres europeus, baseadas
Contrariamente ao que é vulggr dizer-se, este facto afectou deveras o curso dos aconteci- num posicionamento profissional (ético?) abrangente, quase demiúrgico, razão, entre ou-
mentos: os engenheiros mnitar~s que actuaram em território português nos sessenta anos tras, pela qual os designo como engenheiros totalitários- termo cujo significante até hoje
de dominação espanhola eram maioritariamente estrangeiros (espanhóis e italianos). Que me tem parecido mais próximo do conceito que deles formei 2º.
eu saiba, os únicos engenheiros militares portugueses aos quais foi dado um cargo de Em comunhão com este processo verificava-se uma mudança radical no entendi-
chefia (relativa, aliás) foram Francisco Frias de Mesquita no Nordeste brasileiro e Júlio mento e modelo de aproveitamento dos recursos ultramarinos: como já tive oportunidade
Simão na Índia15. A situação arrastou-se ao ponto de, restaurada a independência, ter sido de referir, de uma política com meros objectivos mercantilistas que fazia do mar O territó-
necessário recrutar dezenas de engenheiros militares em França e nos Países Baixos Es- rio do Império e da Índia o centro das atenções, evoluíra-se no sentido da exploração e
tados então também em guerra com Espanha - , nomeando-se Charles Lassart enge- produção dos recursos territoriais então apenas realizável no Brasil. Nada que não esteja
nheiro-mor do Reino, o único estrangeiro com estas funções até ao fim do Antigo Regime. indiciado no período final da governação de D. João III e que não tenha feito carreira sob
Pelos vistos, nem Serrão Pimentel, formado nas aulas que, apesar dos Áustrias, se mantive-
ram em funcionamento em Lisboa 16, apresentava então qualidades para o cargo 17 • É da 3 vols., Círculo de Leitores, Lisboa, 1995, vol./ano III, pp. 233-323 - , Pimentel concentrou em si a tradição
ancestral, a formação comum aos engenheiros militares portugueses de quinhentos, os conhecimentos das escolas
espanhola e italiana e o contacto prático com a vanguarda da época. Por exemplo, 0 Conde de Pagan (Les Fortifications,
14
Não se pode confundir o período experimental durante o qual o alcance e potencial destruidor das armas Paris, 1_645\que cita ~~iudadameme no seu Método ... , esteve em Portugal no período da Restauração. Acresça-se
de fogo crescia em exponencial, arrastando o obsoletismo precoce dos sistemas defensivos passivos, com o tempo a tudo isto a mtensa :ivenoa da luta pela independência e encontramos todas as razões para a sua determinação em
longo (séculos XVII e XVIII) em que a evolução se processou lentamente e segundo variantes. Enquanto no primeiro c_nar, com um fortíssimo cunho ~acionalista, uma escola seguindo um Método Lusitânico ... No entanto, é significa-
tempo a construção ou a renovação de um elemento defensivo moderno era um acontecimento, no segundo era tivo que, apesar de ms1stentes petições, apenas em 1673, seis anos antes de morrer, tenha sido nomeado engenheiro-
uma operação quase rotineira de um corpo profissionalizado que para tal exisria. A arte bélica, matéria do interesse -mor do Reino.
central dos príncipes do Renascimento, passou a ser a ciência e uma das preocupações centrais do Estado. Há quem '.' A contribuiç.fo destes não tem sido suficientemente valorizada. Note-se como então já não era na Itália
veja aquele interesse dos príncipes como um dos sinais da modernidade, mas sem dúvida que é mais uma persistên- que residiam o :onhec1mento e a investigação de vanguarda da engenharia militar. Deslocara-se em primeiro
cia serôdia da romântica formação dos príncipes medievais, que então davam largas à curiosidade e tiravam partido lugar para os Pa1ses Bae'.'os - em grande parte graças à fundação pelos espanhóis em Bruxelas da mais brilhante
daquilo que o surto científico e tecnológico começava a disponibilizar para uma actividade que, em breve, trocariam escola do Império dos Austrias - para então estar em explosivo desenvolvimento em França.
19
pela vida cortesã e de chefes de Estado. • O meu pens~menro sobre esta matéria, em especial naquilo que ela tem de importante para a história do
15
Este último foi engenheiro-mor da Índia, título pomposo, uma vez que na época parece não ter traba- urbamsmo, f01 sumanamente retratado em A cidade portuguesa, trabalho a que já aqui fiz referência.
20
lhado em permanência outro engenheiro naquela vasta zona. É uma situação que se relaciona com o reduzido Uma. outra, d as razoes
- essenc1a1s
· · e' o racto
e d e em o b ras régias ou d e Corte, em Portugal serem raros os
interesse que a administração filipina parecia demonstrar pelas posições no Oriente. Matéria de crucial impor- casos de arquitectos sem estatuto militar. Aos casos em que o wbby dos engenheiros militares manobrou contra 0
tância que, sem o tratamento que merece, voltaremos a referir. trabalho_de arquitecws de_outras nacionalidades opõe-se, significativamenre, o bom acolhimento dispensado aos
1
' Refiro-me, em especial, à Aula da Esfera do Colégio Jesuíta de Santo Antão. É ainda confusa a realidade engenheiros estrangeiros mtegrados nas estruturas militares. Parte considerável do esforço de Azevedo Fortes
histórica das origens deste tipo de ensino em Lisboa, sendo o assunto uma das discussões (latentes) mais enquanto engenheiro-mor do Reino (de 1719 até à morte em 1749) foi no sentido da dignificação e estabeleci-
apaixonantes entre a mais recente historiografia portuguesa e espanhola. No entanto é já um dado seguro o facto mento de um monopólio da classe (para além do já referido O Engenheiro Portuguez, veja-se a sua Representação
de desde o reinado de D. João III estar instituído o ensino das matemáticas nas suas mais nobres variantes na a Sua Magestade sobre a forma e direcção que devem ter os b,genheiros ... , de 1720), ideia que levaria José Manuel
Corte para príncipes e não só. Da extensa bibliografia sobre o assunto ocorrem-me, entre outros, o texto funda- de Carvalho e NEGREIROS a redigir para uso do rei Jornada pelo Tejo. Devidida em doze dias em cada hum dos
mental de Luís de ALBUQUERQUE, A Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão no século XVII, Agrupamento quaes se tractão va_rias materias concernentes á Architectura Civil e seus pertences Obra utilíssima, não só p." os
de Estudos de Cartografia Antiga da Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1972, n. 0 LXX (retomado por Professores de Archztectura Cw,l e Mzlztar como tão bem p. a todm os curiozos. Composto e oferecido ao Sereníssimo
Rafael MOREIRA, em «A escola de arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia das Matemáticas de Madrid», Prmczpe N Senhor o Senhor D. João Por Jozé Manoel de Carvalho Negreyros Capitão Engenheiro Architeto dos Reas
in II Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, Actas do, separata, Coimbra, 1987, pp. 65-77) e os compilados Paços de S. Mag.de e do Senado da Camara desta Cid e de Lisboa. Anno de 1793, Lisboa, 1793, BA 54-V-28. Trata-
in Juan de Herrera y su influencia, Actas del simposio, Fundación Obra Pía Juan de Herrera - Universidad de -se deu;"~ completíssima utopia hoje ainda sob a forma de manuscrito inédiro existente na Biblioteca da Ajuda
Cantabria, Santander, 1993, em especial o de Maria Isabel Vicente MAROTO (1992), Juan de Herrertt, ur, (com, ~opias _d_e que conheço as do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, da Biblioreca Nacional e do Arquivo
hombre de ciencia, pp. 79-90. Reveladores prometem ser os estudos acerca dos cargos em obras régias da autoria Histonc~ Militar). Para o autor era uma proposta em que acreditava e não um mero exercício tardo-iluminista,
de Helder Carita e de Miguel Soromenho. tendo feiro a~ompan~ar_ o texto principal de diversos anexos, índices, regulamentos e petições. Note-se, por
17
Na realidade o que acontece é que Serrão Pimentel acabou por completar a sua formação trabalhando e~emplo, o evidente sigmficado da Petição de ... em como os arquitectos do Paço foram sempre engenheiros militares,
como subalterno dos mercenários. Como já tive oportunidade de justificar numa breve síntese acerca da sua impor- Lisboa, 1793-10-6, BN cód 806, íls. 141/3. Era o clímax e o ocaso da velha escola erguida sobre O Método
514 Lusitânico .. .
tância para a escola portuguesa de urbanismo- a pp. 271-3 de «A cidade portuguesa», in História da Arte Portuguesa, 515
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUI~S O URBANISMO REGULADO

a administração filipina. Por exemplo, lembremo-nos respectivamente da data da funda- quer modelo estranho. O facto de o autor do projecto-base das suas muralhas ter sido
ção da primeira capital do Brasil (Salvador, 1549) e da expedição que nos finais de qui- Benedetto da Ravena ao que parece exclusivamente consultado para o efeito em 1541 -
nhentos dali partiu para Norte incumbida de fundar cidades e fortalezas. Como sabemos, constitui um marco fundamental na procura de um rumo de mudança do conhecimento
entre os produtos directos desta última medida surgiram os inequívocos dameros de e dos métodos de concepção. Urbanisticamente a ocupação das cidades magrebinas, onde
S. Luís, de Alcântara e de Filipeia (Paraíba/João Pessoa), provas irrefutáveis da preponde- Alcácer Ceguer é um bom exemplo, implicou a construção de novos equipamentos (Câ-
rância espanhola na prática urbanizadora de então no território brasileiro. mara e Cadeia, Misericórdia, Matriz, etc.), o que, a par com a necessidade de estruturar os
Com as naturais limitações neste contexto podemos dar por estabelecida uma esfumada respectivos largos e de sanear as principais vias, implicou alterações na estrutura urbana.
panorâmica daquilo que, ver, são os pontos de partida para o estudo aprofundado da A especifidade, hoje obliterada, das cidades portuguesas nesta região resultou da aplicação
escola portuguestt de urbanismo estabelecida com o processo da Restauração e que encontrou no de processos de regulttção urbanística então em uso na Metrópole sobre um tecido urbano
Brasil o seu território de actuação por excelência - eufemisticamente diria mesmo que parece e um território matricialmente diferentes. No que diz respeito à rottt da o extenso
ter surgido com tal fim. Mas se para isso recuámos o suficiente para indiciar a importância do bordo afro-asiático, que vai do Sahara até Diu, só muito mais tarde houve interesse e
período filipino 21 , é fundamental ir um pouco mais atrás e abordar a mais castiça das correntes meios para a sua colonização parcial. Eram suficientes estabelecimentos militares de apoio
que convergem no Método Lusitânico ... : as cidades de um outro ciclo, o da expansão. à navegação e controlo hegemónico dos mares. Por vezes também o comércio era uma das
finalidades, sendo para tal estabelecidas ,._,,v,c,d.,, nomeadamente na costa ocidental de
É complexo estabelecer-lhes um modelo, pois a instalação ocorreu de formas excessi- África, em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe, onde, bastante mais tarde, o tráfego
vamente variadas 22 • São frequentes os casos em que é difícil a distinção entre a instalação de escravos para o Brasil levou ao desenvolvimento de alguns núcleos urbanos ao abrigo de
exclusivamente militar e a que simultaneamente tinha intenções urbanizadoras/coloniza- anteriores estabelecimentos militares. Aliás, foi nas ilhas onde, por razões óbvias, os portu-
doras. De facto muitas foram as cidades que resultaram espontaneamente do desenvolvi- gueses se instalaram preferencialmente, sendo a partir delas que organizavam as expedi-
mento de actividades em torno de implantações cuja utilidade inicial se poderia resumir ções ao continente. No Extremo Oriente era o comércio a única motivação e, por isso,
ao controlo militar de uma determinada área ou percurso. Igual, mas mais previsível, terá além dos estabelecimentos de iniciativ,. eclesiástica ou foram também feitorias,
acontecido com entrepostos comerciais, por vezes também apoiados numa fortaleza. Hou- quase sempre fortificadas, os núcleos iniciais urbanizados. Ali a acção urbanizadora
ve ainda casos em que a intenção foi urbanizar e nem sempre com preocupações defensi- da Coroa era então nuia. Como excepções é obrigatório ressalvar os casos de Malaca e,
vas. Estas diferenças têm corno explicação o que a realidade preexistente propiciava ou talvez, de Macau, sendo no entanto necessário desmontar o mito da primeira como uma
deixava antever, sendo assim possível - com as reservas a que qualquer generalização esplendorosa e populosa metrópole, pois a realidade espacial e descrições cartográficas e
obriga - a sua sistematização por áreas geográficas: Magrebe; ilhas atlânticas; costa oci- literárias fidedignas tal não o permitem. Face a tudo isto, no domínio do urbanismo da
dental africana; Oriente, expressão que neste caso engloba a costa oriental africana, o mar fase da expansão, o interesse reside essencialmente nas Ilhas Atlânticas, na e no Brasil.
de Omã, a Índia, o Ceilão e o Extremo Oriente; e, por fim, o Brasil. Como contraponto coevo aos estabelecimentos no Magrebe, a ocupação das ilhas
No Magrebe não se pode dizer que tenha existido uma política urbanizadora. Con- atlânticas foi feita segundo um padrão colonizador. De um modo geral o processo decor-
quistaram-se cidades ocupando depois os sistemas defensivos que passaram a ser periodi- reu dentro dos parâmetros próprios ao ordenamento português tradicional, incluindo o
camente renovados, desde a experimental fortificação manuelina ao exemplo tido como o característico povoamento linear e até disseminado - « ... uma poeira de casas que tre-
mais próximo do ideal renascentista, o perímetro fortificado de Mazagão. Esta, aliás, foi a pam até aos últimos campos sujeitos a cultura regular» segundo Orlando Ribeiro 23 - , que
única cidade fundada ex-nuovo pelos portugueses naquela região, mas significativamente a ali adquiriu expressões topográficas e toponímicas próprias: fajãs, lombas ou lombos, achtt-
sua morfologia urbana, apesar de fortemente condicionada pelas muralhas, exprime uma das ... Ao nível das urbes, pela sua importância histórica e óbvia regularidade, tem
conformação do traçado de acordo com a tradição urbanística portuguesa e não com qual- sido o caso mais referido, sendo claros os três momentos que conduziram à sua formação:
instalação no terceiro quartel do século XV junto ao morro do castelo (sítio do actual
monumento da Memória); ocupação no último quartel daquele século das margens da
O vastÍssimo conjunto de conhecimentos j,í consolidados e disponibilizados por especialistas sobre o
21

urbanismo hispano-americano dispensa qualquer pretensão - que aliSs seria ridícula- ele aqui se teorizar sobre Ribeira dos Moinhos que ligava o castelo ao porto; substituição, no início de quinhentos,
o assunto.
22 Neste parágrafo e nos dois seguintes utilizei de forma livre (reduzindo e actualizando) parte do meu

trabalho (pp. 275 a 278) A cidade portuguesa jS referido. Por tal razão omito deliberadamente a bibliografia de 23
Orlando RIBEIRO, 1949, A Ilha da Madeiin até meados do Século XX: Estudo Geográfico, Instituto de
516 suporte que ali referenciei. Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1985, p. 13. 517
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS O URBANISMO REGULADO

desta ocupação de natureza orgânica, linear e mal consolidada por uma mais intensa e Malabar e S. Tomé de Meliapor na costa de Coromandel - , mas já dentro dos projectos
regulada do espaço urbano, consequência da crescente importância da Angra como globais estabelecidos com D. Francisco de Almeida e D. Afonso deAlbuquerque, ainda antes
entreposto e apoio à navegação decorrente do estabelecimento da rota das Índias. Alfânde- da chegada (1505-6) do primeiro «mestre das obras de pedraria» da Índia, Tomás Fernandes,
ga e Misericórdia junto ao cais, Casa da Câmara e Pelourinho, na praça onde se irradiam as iniciou-se a fortificação da feitoria de Cochim - a primeira cidade e sede do poder portu-
escaladas dos declives envolventes, e Matriz/Sé são os pólos do percurso estruturado sobre guês na Índia-, bem como a de outros novos estabelecimentos e conquistas. A par com o
duas ruas perpendiculares geradoras de uma malha urbana regular e assim racionalizada, desenvolvimento em redor da estrutura urbana de que rigorosos levantamentos holandeses
mas nem por isso geometricamente ortogonal, configurada por edifícios de cérceas con- do século XVII nos permitem ter ideias muito claras, em breve se instalaram os equipamentos
cordantes implantados em lotes: mais ou menos normalizados. Parte deste percurso coin- que listamos em Angra (Casa da Câmara, Misericórdia, Pelourinho, etc.).
cide com o anel viário e de povoamento que contorna toda a ilha. É o caso maior, Em Goa - como em Diu, aliás - a situação é a de ocupação de uma cidade urbanistica-
emblemático e mais completo do processo de fazer cidade comum ao Funchal, a Ponta mente consolidada. Até no que diz respeito aos edifícios muito se utilizou e refuncionalizou
Delgada, à Horta, a Vila Franca do Campo, à Ribeira Grande de S. Miguel e de Santiago, sem reformas imediatas. O célere desenvolvimento a que a capitalidade do efemeramente prós-
à Vila da Praia na Terceira, para apenas citar casos insulares, e que, para já, podemos pero Estado da Índia Portuguesa lhe impôs, levou a que muito pouco do seu crescimento
sinteticamente caracterizar como resultante da implantação criteriosa dos equipamentos urbanístico fosse controlado. O mito de uma cidade conquistada, arrasada e erguida como
básicos referidos estruturados ao longo de um percurso, a partir do qual, também com cópia renascenticizada de Lisboa é apenas um dos muitos que sobre Goa uma historiografia
elementos tirados a cordel, se gerou a malha urbana. Relevante é o facto de nunca terem eivada de nacionalismo persistentemente exumou de fontes apologéticas e iconografia fantasiosa.
estado contidas por cercos muralhados, o que nem sequer presidiu à definição inicial de A realidade histórica e geográfica é bem diversa. A mudança da cidade para um local que
. sao
qua 1quer dos casos, pois - estruturas abertas 24 . oferecesse condições mínimas de habitabilidade e de melhor defesa foi a grande aspiração dos
25
Foi pelas necessidades de defesa que a instalação de cidades na Índia e no Ceilão seus habitantes durante pelo menos dois séculos. Não foi por acaso que, à falta de capacidade
seguiu processos diferentes. A distância ao centro do poder com a opção pelo estabeleci- para realizar o processo de mudança para Mormugão - organizado e anunciado nos finais do
mento de um Estado próprio - um Vice-Reino sobreposto ao mosaico político-geográ- século XVII e retomado logo no início do seguinte - , sucedeu o seu abandono gradual que,
fico industânico justifica, no essencial, a diferença relativamente aos -procedimentos nos aliás, determinou não só a instalação em zonas rurais de parte considerável dos mais altos
restantes territórios. Na Índia encontra-se um pouco de tudo: fortalezas isoladas; fortale- estratos da sociedade, mas também o orgânico emergir no sítio de Pangim de uma urbe que no
zas dominando cidades preexistentes; feitorias perto de cidades preexistentes que evoluem século XIX veio a ser Nova Goa, ou seja, oficialmente a nova capital. Apesar da opulência de
para cidade passando por um primeiro estado de fortificação (Cochim, São Tomé, Bassaím, alguns dos seus monumentos, em termos concretos, Goa era, a vários níveis, uma cidade difícil,
Chaul); cidades ocupadas, reestruturadas e fortificadas (Goa e Diu); cidades fortificadas sendo para a nossa disciplina um caso determinante ... pela negativa.
feitas de raiz (Damão). Corresponde cada um destes casos a estádios progressivos de afir- Mas o mito que em termos disciplinares mais interessa denunciar foi o que
mação de poder ou de interesses económicos e se no Portugal da Baixa Idade Média «fazer abusivamente se estabeleceu a partir de um artigo de Mário Tavares Chicó 26 • Baseando-se
vila» era o acto de cercar, nas crónicas da Índia «fazer fortaleza» confunde-se com o acto de em iconografia que muito deve à realidade, o autor ergueu a hipótese de Damão ser o
urbanizar. Na realidade pode dizer-se que até ao século XVIII o verdadeiro território do resultado formal/prático da aplicação do conceito renascentista de cidade ideal. O facto de
Estado da Índia era o oceano Índico orlado por um complexo sistema de praças de guerra ali ter trabalhado o italiano João Baptista Cairato, no início do período filipino, facilitou a
fronteiriças. Não é novidade para ninguém o facto de a principal porta de qualquer destas aceitação desta proposta. Como aquele engenheiro militar também surge referenciado nas
cidades ser precisamente a porta do mar - eu talvez dissesse porta do reino. obras das muralhas de Bassaím e Chaul, Chicó admitiu ainda a influência daquele modelo
De um ponto de vista urbanístico, as primeiras viagens à Índia apenas visaram o nestas cidades. A distância, as dificuldades no terreno e as conjunturas políticas durante
estabelecimento de feitorias em locais cedidos sempre junto ao mar, em cabos, penínsulas, muitos anos desmotivaram a observação in locco dos objectos e, por outro lado, a
istmos, ilhas ou enclaves delimitados por rios - Cochim, Cananor e Coulão na costa de historiografia era pouco precisa em tudo que dissesse respeito a factos e datas. Hoje estão
ultrapassados estes obstáculos e, graças a alguma reflexão, desfeito o mito27 • Chaul e Bassaím

26
"Na realidade quando tal se tornou necessário já as técnicas de defesa permitiam e advogavam sistemas «A Cidade Ideal do Renascimento e as cidades portuguesas da Índia», in Garcia de Orta, Revista tÍds
baseados em unidades pontuais estrategicamente implantadas. Missões Geogrdficas e de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1956, n.° especial. pp. 319-328.
27
25 Com a lógica do que declaro na nota 22 , no que diz respeito à fndia recorri, para além daquele texto, à O problema dos mitos é que necessitam de tempo e espaço para se desmontarem. Por conseguinte, tam-
518 reflexão mais apurada referida na nota '". Relativamente ao Ceilão não há ainda qualquer material disponível. bém este não pode sê-lo aqui. A minha tese sobre esta questão, com a necessária fundamentação, foi exposta de 519
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só na iconografia seiscentista lograram ter um desenho urbano unitário e/ou geométrico. Sabe-se como o período manuelino - devendo este para o efeito ser entendido no
Com um resultado formal muito diverso, os respectivos processos de estruturação urba- seu sentido mais alargado - foi marcado pelo reformismo administrativo, em especial em
nística, que ocorreram essencialmente nos anos 30 e 40 de quinhentos, são, em tudo, tudo o que diz respeito a legislação, sendo a Leitura Nova a expressão máxima desse proces-
semelhantes ao de Cochim, se não mesmo mais explícitos no que diz respeito a um even- so. A par com algumas modernidades, a grande inovação residiu na determinação e sucesso
tual modelo. Já as muralhas onde, aí sim, trabalhou Cairato nos anos 80 tiveram o seu em compilar de forma dara e coerente o emaranhado de disposições legais acumulado,
c e definição perimetral na década de 70. Damão é de facto uma quadrícula, mas sendo assim o culminar de um processo desenvolvido nas diversas Ordenações ... 2 ~ desde o
1111 10
como único argumento tal revela-se insuficiente para que possa ser considerada uma início da Dinastia de Avis e, por assim dizer, dos descobrimentos. Ultimamente têm vindo
concretização daquela renascentista28 • Estabelecida em tomo de um fortim de a ser estudadas posturas que regulam ao pormenor toda a actividade urbana e urbanística
base quadrada que serviu de módulo à quadrícula, a cidade definiu-se nos anos 60 e er- da cidade de Lisboa 30 , sendo determinante o facto de, para a esmagadora maioria das
gueu as suas muralhas a partir da década seguinte, sendo já por 1581 que Cairato ali cidades da expansão, a documentação de instituição - foral, carta de vila, etc. - repetida-
arribou para nelas trabalhar. Foi, no entanto, a última das conquistas portuguesas e a mente tornar claro que tal núcleo urbano se ia regular pelas leis e regimentos daquela
última das fundações urbanas a Oriente do período da expansão. Foi também o único caso cidade. Esta legislação estabelecia implícita e explicitamente uma série de cargos e hierar-
de fundação determinada e predesenhada e, significativamente, a única cidade erguida no quias, um funcionalismo urbano. É ali que encontramos as primeiras referências ao traça-
período sebástico. Não sendo uma cidade ideal do renascimento, é, contudo, a prova da do à corda ou ao cordel, que se estabelecem regras relativamente aos avançados nas fachadas
evolução de algo que ainda desconhecemos no sentido da racionalização pelo desenho. (varandas, balcões, poiais, degraus), à uniformização dos materiais e do seu uso, às larguras
Muito em breve estas questões passariam a ser tratadas sob a tutela filipina com a evolução das ruas, ao dimensionamento de lotes e vãos, entre outras relativas à higiene, saneamento,

para a escola a que, timidamente, me referi atrás. lixos, segurança contra incêndios, etc. Desde bem cedo se estabeleceu que qualquer demo-
lição, reconstrução ou construção nova carecia de vistoria, autorização e definição de ali-
Mais pelo muito de implícito que pelo até aqui anotado, não restam dúvidas acerca nhamentos dadas por funcionários municipais mandatados para o efeito. Pelo menos no
de uma série de constantes no universo urbanístico deste ciclo. Na condição presente e plano das intenções em tudo isto é bem clara a vontade de ordenar e uniformizar 31 , pois na
face ao estado preliminar da questão, a dificuldade reside no seu estabelecimento e comu- prática a fiscalização revelava-se menos eficaz.
nicação em síntese. Por razões de ordem prática não pude referir-me aos contextos Este sistema de produção urbanizadora era extensivo a toda a cidade de Lisboa, como em
económicos, políticos e culturais. No entanto, para além de itens mais visíveis - a cons- cópia, a muitas do reino, nomeadamente às ultramarinas. Se no tecido existente a sua aplicação
tância e in-teracção espacial dos equipamentos prioritários, a independência cronológica e
conceptual entre o tecido urbano e os perímetros defensivos, o reformismo criterioso
29
A Fundação Calouste Gulbenkian tem publicadas as de D. Duarte, D. Afonso V, D. Manuel e D. Fili-
(pragmatismo) sobre as preexistências, a ordem sem preocupações de rigor geométrico -
pe II. Para além elas Ordenações ... há outras compilações muitas vezes de carácter local - por exemplo o Livro
, está subjacente uma regulação urbanística que por certo só em Damão surgiu em vias de das Posturas Antigas (editado pela Câmara Municipal de Lisboa em 1974) e as Posturas do Concelho de Lisboa
(editadas pela Sociedade de Língua Portuguesa, Lisboa, 1974). Foi uma prática corrente em rodo o século xv1 a
substituição ou a par com desenho prévio.
tentativa de reduzir a letra moderna muito do que andava disperso ou era uso.
3
° Foram os medievalistas os primeiros a dar tratamento científico ao tema. Refiram-se, a título de exemplo,
alguns trabalhos de Iria GONÇALVES [«Posturas Municipais e Vida Urbana na Baixa Idade Média: o exemplo de
forma provisória no texto A Cidade Portuguesa já eirado e surgirá de forma revista e mais sustentada na publicação Lisboa», in Estudos Medievais, separata, Porto, 1986, n. 0 7, pp. 155-172 e (1991) «Uma Realização Urbanística
específica que também já referi. Entretanto tive já três oportunidades de a apresentar em c~municações realizadas Medieval: o Calcetamento da Rua Nova de Lisboa», in Estu,los de Arte e História - Homenagem tt Artur Nobre de
em L~gos (Portugal), Recife e Rio (Brasil) ainda que para audiências multo restrnas. Contrariamente ao que se possa Gusmão, Vega, Lisboa, 1995, pp. 102-113) e de Oliveira lvlARQUES [«Lisboa na Baixa Idade Média. Para uma
visão monumental-turística», in Ler História, Lisboa: pmpectivas sobre opassado, Fim ele Século Edições, L',.', Lisboa,
entender, pessoalmente é uma matéria que só agora considero em aberto ...
Uma das omissões mais importantes na proposta de Chicó é a da definição do seu próprio entendimen- 1994, n.º 26, pp. 7-19, «As Cidades Portuguesas nos Finais da Idade Média», in Penélope, Cosmos, Lisboa, 1992,
to do conceito cidade ideal no renascimento. Apesar das variantes e divergências de interpretação h:í, como n. 0 7, pp. 27-34 e «Introdução à História da Cidade Medieval Portuguesa», in BrarnraAugusttl, Câmara Municipal
sabemos, essencialmente duas famílias: a da cidade monumentalizada, clássica, recuperação mírica e romanticizada de Braga, Braga, 1981, n.º 79-80 (92-93), vol./ano XXXV, pp. 367-387). Mais recentemente na nossa área discipli-
da Roma antiga; a cidade geomerricamente racionalizada, onde da arquitcctura se espera pouco, petrificação e nar, Helder CARITA tornou públicas algumas vertentes do trabalho de fundo que sobre a matéria tem em curso
optimização do acampamento militar. Formalmente é o último modelo o que Chicó propõe, apesar de que para [(1990), O Bairro Alto-tipologias e modos arquitectónicos, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1994 e «O Bairro
a cronologia verificada apenas o primeiro seria aplidvcl, ainda que com muitas reservas. A questãc~ das cidades Alto e a legislação urbana para Lisboa no século XVI e XVII», in Colóquio Lisboa Iluminista e o seu tempo, comuni-
ideais é uma das matérias sobre as quais ao longo do tempo mais bibliografia tem sido produzida e nao pode, sob cação dactilografada, Universidade Autónoma, Lisboa, 1994].
31
forma alguma, ser restringida ao Renascimento ou até apenas alargada a períodos clássicos. Aquilo a que na nossa A uniformização em alguns casos atingiu o extremo. Por exemplo, em 1462 D. Afonso V tentou que
disciplina nos referimos do conceito é apenas o seu módulo formal, fundamental para o seu objectivo último - a todas as casas da Rua Nova de Lisboa fossem feitas sobre arcos de cantaria e daí até ao telhado em alvenaria de
520 qualidade de vida-, mas que não pode ser dissociado da própria síntese, a sua superior consrrução filosófica. pedra e cal sem tabuados. 521
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGU!'\S O URBANISMO REGULADO

e progressão era lenta, em zonas de extensão veio a revelar-se extremamente eficaz. Os tremores soberanos que laboriosamente criaram as condições para que tal pudesse suceder. A políti-
de terra e outras catástrofes de natureza civilizacional destruíram parte consideráveP2, mas feliz- ca de povoamento da primeira Dinastia tem, na realidade, a sua expressão máxima no
mente preservou-se o exemplar mais expressivo, o Bairro Alto de S. Roque. Tudo aquilo que século contado entre os meados dos séculos XIII e XIV, sendo fundadas ou renovadas deze-
hoje se sabe serem imposições desse corpo normativo é verificável nessa extensa mancha de nas de vilas e emitido um número ainda superior de forais. Parte destas vilas, pela toponímia
3
cidade desenvolvida por iniciativa privada a partir dos inícios do século xv1 3. Durante muito e pela análise sumária do seu espaço urbano, conduzem-nos de imediato ao modelo bastide,
tempo procurou-se ali ler uma imperfeita modernidade importada, demandando-se desenhos Têm de facto um padrão geométrico 36 semelhante: contornos fusiformes ou circulares,
e modelos, aventando-se autorias .quando, afinal, se trata da cristalização de um conjunto de quarteirões alongados, perpendicularidade lata através da hierarquia rua/cravessa que viria
procedimentos antigo, um m~to<l~ apurado internamente. Como tal é um exemplar perfeito. a ser consagrada nos regulamentos manuelinos, etc. Muitas foram as que desapareceram
A necessidade de uma expansão da cidade com aquela escala leva-me a evocar a outra por evolução ou atrofia. Aliás, a centúria fundamental ao processo foi marcada por muitas
vertente do reformismo urbanístico manuelino no território português-europeu, a qual fomes e pestes que nos piores momentos terão reduzido a população entre um a dois
uso designar como nova centralidade 34 • Na realidade foi fundamentalmente neste período quartos, o que em alguns casos pôs em causa a eficácia do controle urbanístico que, de
que as cidades portuguesas cresceram para além dos seus limites medievais, sendo facto momento quase só por análise formal, parece ter sido montado. Um aspecto essencial é o
comum a deslocação da Casa da Câmara e Cadeia para um novo edifício num largo, facto de nem todas terem sido instaladas com base num modelo encerrado por muralhas,
quantas vezes estruturado junto a uma velha porta da muralha, onde pontificam o o que se compreende, pois ao contrário do referente formal a que a deformação profissio-
Pelourinho, 0 açougue e o mercado e, ou por perto, a Misericórdia com os seus espaços nal nos conduz - a bastide - , em muitos dos nossos objectos já não estavam em causa
assistenciais. Nem sempre tradução directa da real situação topográfica, os centros cívicos aspectos ligados a marcações territoriais ou afirmações de soberania37 • Talvez seja esta a
abandonaram então a afta, gerando e marcando o desenvolvimento da baixa. É nesta razão pela qual a tradição oral para muitas nos tenha transmitido o termo póvoa que a
necessidade de desafogo, de renovação e inovação de equipamentos a que se devem todos os níveis se me afigura mais adequado à especifidade portuguesa 38 • Sobre o assunto
acrescentar chafarizes, pontes, calcetamentos, cais, diques - que reside a força que hábi- importa ainda deixar anotado que, a par com esta actividade urbanística à escala do terri-
tos normativos já existentes adquiriram, tornando-se úteis, visíveis e expressão de uma tório, assistiu-se então a um surto de renovação e reestruturação dos núcleos existentes, em
modernidade portuguesa, eventualmente arcaica, mas castiça. especial através da abertura de ruas. Aliás, nos processos de transformação urbanística pro-
De facto não é sensato esperar que tudo tenha surgido do nada. Como disse, a siste- gramada que conhecemos no universo português até ao fim da Dinastia de Avis, é sempre
matização normativa tem antecedentes evidentes no início da dinastia de Avis, ou seja,
desde finais de trezentos, mas material recente 35 permite vislumbrar o estabelecimento de 16
· É esta a designação usada naquele que terá sido o seu primeiro estudo ainda que realizado com motiva-
regras matricialmente semelhantes, pelo menos, uma centúria atrás. Os reinados de ções próprias da área da Geografia, o texto de Jorge GASPAR, «A morfologia urbana de padrão geométrico na
D. Afonso III e de D. Dinis foram marcados por uma forte política de povoamento e de Idade Média», in Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1969, n. 0 8, vol./ano IV, pp. 198-215. Mais recentemente Paulo Ormindo ele AZEVEDO
implantação do Estado. Muito recentemente alguns especialistas têm admitido que foi (« Urbanismo de trazado regular en los primeros siglas de la colonización brasileiia», in Estudos sobre urbanismo
precisamente nesse período que Portugal se definiu enquanto Estado e Nação, indepen- lberoameriamo - siglos XVI al XVIII, Junta de Andalucia, Consejeria de Cultura, Sevilla, 1990, pp. 306-322),
na esteira de conhecimentos que de há muito são básicos na disciplina ao nível internacional, ao chamar a
dentemente de, desde há um século, o território estar unificado sob uma linhagem de
atenção para a importância do estudo dos antecedentes medievos em Portugal colocou a questão da regularidade
nos termos com que ela de facto deve ser vista, ou seja, simplificando, dependente da existência ou não de
vontade e poder político centralizador. Este estudo. depois das tímidas referências no de Roberta Marx DELSON
32 Além da ocupação de hiatos da malha urbana, durante este período fornm inúmeras e, por vezes, já referenciado, precisamente por essas duas componentes, é, segundo a leitura que faço da globalidade do urba-
profundas (violentas?) intervençóes de correcção e alargamento. nismo português, o ponto de partida para a renovação da história do urbanismo do Brasil. É que o racionalismo
JJ Ver os textos específicos de Heldcr Carita referidos na nota"'· . urbanístico surge quando a realidade é refeita e surge complexa; é a reacção ao vazio do caos ...
34 É no texto A Cidade Portuguesa que aqui tenho vindo a referir que exploro esta temática de forma mais 37
No entanto nfo deixa de ser suspeito o papel que a componente franco-borgonhesa da Corte, se não
articulada, nomeadamente no que diz respeito à estrutura preexistente e sua caracterização. mesmo a idêntica origem ela Dinastia, pode ter desempenhado na importação de políticas e formas para sua
J5 Um já considerável conjunto de trabalhos académicos ele História Urbana com centro no Departamen: implementação.
to de História Medieval ela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa consmui 38
Já há muito Alberto SAMPAIO [(1923) «As Póvoas Marítimas», in Estuclos Históricos e Económicos,
0
núcleo mais imponante. Para apenas usar um autor, exemplifico com os trabalhos deAméliaAg~iar ANDRADE, 2-vols., Editorial Vega, Lisboa, 1979, vol./ano 2. 0 , pp. 7- lO0] deu início ao estudo parcial do fenómeno, interes-
Um espaço urbano medieval: Po11te de Lima, Livros Horizonte, Lisboa, 1990, (1992) «Um Empreendimento sando-se fundamentalmente pelos casos do litoral, as póvoas marítimas. No entanto, com particular clarividência
Régio: a formação e Desenvolvimento ele urna Rede Urbana na fronteira Noroeste ele Portugal durante a ~clade sabia o que estava em jogo ao afirmar (p. 9) «Chamaram-se "Póvoas'" os grupos urbanos, nascidos em geral à
Média», in Penélope, Cosmos, Lisboa, 1993, n.O 12, pp. 121-5 e «Vila, poder régw e fronteira», disserraçao de sombra dos forais, outorgados pelos reis da dinastia borgonhesa, ou por entidades sucedâneas da coroa. Houve-
Doutoran1ento aprescntac{a a' }"·acu ld ad e Nova de Lisboa, L1s- -as no interior e na costa ... ». Por exemplo, Amélia ANDRADE (1994) na p. VI da dissertação atrás referida,
522 boa, 1994. transcreve de um documento coevo relativo a Vila Nova de Cerveira a expressão régia de se estar a «fazer pobra». 523
O URBANISMO REGULADO
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS

a rua, não a praça ou o largo, o elemento estruturante. Nestas matérias não deixa de ser serviço da concepção do espaço. A ausência do modelo em desenho, específica desta escola,
importante ter sempre presente que Portugal foi o primeiro país da Europa a ter estabiliza- resulta da suficiência que o conhecimento das propriedades das formas constituía para os
das as suas fronteiras que, aliás, com muito pequenas alterações manteve até hoje. seus membros. É Serrão Pimentel quem o declara implicitamente: «Basta o que até aqui
São ainda inúmeras as póvoas cuja estrutura urbana se manteve. No Minho, por exem- havemos dito por mayor. O Engenheiro experto e de juízo poderá acomodar as mais par-
plo, uma operação de instalação do poder real no seio do mais característico foco de ticularidades com bom discurso e consideração. Não trago figura com as disposições das
desestabilização senhorial levou à criação de uma rede de seis vilo,s novas, cuja morfologia ruas, praças e sítios das casas em planta[ ... ] e porque muito poucas vezes se podem dispor
é facilmente verificável 39 na colecção de plantas relativas à sua fortificação no início do na forma apontada para a praça em tudo ser regular.» 42 Nas nossas colecções de desenhos
século XVIII que, em anexo, t'Ômo públicas: Viana, Caminha, Valença, Monção, Melgaço e de arquitectura do século xvm como se explica a quase ausência de desenhos além das
Vila Nova de Cerveira. Tomar é um caso, aliás bastante precoce, que devemos à iniciativa plantas e, em especial, a inexistência de cortes ou secções? E, já agora, como explicar a
dos Templários, apesar de só no século XV, com o infante D. Henrique, ter adquirido a renitência em usar e/ou guardar o desenho 43 no período antes da escola, se não pela sua
consistência e a extensão com que hoje se apresenta. óbvia inutilidade conceptual?
É revelador que Tomar seja frequentemente referida a par com o Bairro Alto, dois casos de Ora esta especifidade é também castiça. Da produção teórica de António Rodrigues
urna mesma família bastante separados no tempo. Confrontássemo-los com as primeiras cida- destinada à publicação de um tratado44 de engenharia militar nos finais dos anos 70 de
des coloniais, dos Açores à Índia, e verificaríamos como não estão sós. Recordemo-nos dos equi- quinhentos, fazem parte as «Proposições Matemáticas)), um verdadeiro e original manual
pamentos, da regularidade não geométrico-racionalizada, das características do lote e do quar- de Geometria que, para além de se inspirar e recorrer à cópia de autores conhecidos, refere
teirão, do protagonismo urbanístico da rua, do plano em aberto e a concomitante independên- um antigo «Livro de Geometria». Uma simples pista daquilo que é do conhecimento
cia morfológica relativamente a um eventual cerco muralhado, etc. Mas muito para além de comum: o desenvolvimento que as Matemáticas -Aritmética, Geometria, Álgebra, As-
tudo o que é visível e palpável, no célere percurso que acabámos de fazer fomos anotando um
trologia, Trigonometria, Cartografia, etc. 45 - tiveram em Portugal no ciclo dos descobri-
conjunto de aspectos processuais que nos permitem vislumbrar aquilo que o esforço conjugado
mentos. Medir o mundo e codificá-lo em desenho é um dos maiores feitos científicos da
de vários especialistas poderá perseguir, visando exumar o que de mais especifico e português há
Idade Moderna e exigiu uma capacidade de abstracção única que não pode ter surgido do
no nosso urbanismo. Não é um modelo, é uma maneira de fazer, um método apurado entre
nada nem de um dia para o outro. A meu ver, e isto é meramente uma intuição resultante
dois grandes momentos que se o foram da história também o são da nossa produção urbana: o
do conhecimento de processo de ordenamento do território medieval no período que atrás
da definição do espaço e do Estado portugueses (D. Afonso III/D. Dinis) e o da redefinição do
referi, tal potencialidade desenvolvia-se há muito. A documentação medieval é rica em
espaço e reformulação do Estado de acordo com conceitos modernos e o concomitante alarga-
descrições rigorosas de território sem o recurso ao desenho. É uma matéria cujo estudo
mento de horizontes (D. Manuel). Sendo uma das suas características fundamentais a formu-
lação através de leis e posturas, numa consciente opção pelo confronto com regular, de há
algum tempo para cá tenho vindo a propor a designação desse urbanismo como regulado. 42
No Méthodo Lusitânico ... atrás referenciado. Lembremo-nos também do tema tratado por Azevedo
Regulado por via processual e descritiva com base numa fortíssima tradição Fortes na sua Lógica Raciollal Geométrica e Analítica ... de que também já dei as coordenadas.
43 Apesar de na documentação serem frequentes as referências a desenhos, aparentemente estes não foram
demarcadora produzida a partir das necessidades de uma independência precoce e da dis-
guardados. As catástrofes não explicam tudo, até porque também as houve em países que hoje têm consideráveis
tribuição de território conquistado ao Islão. Regulado sem recurso ao desenho enquanto colecções. Para mim a única explicação é o papel secundário desempenhado por este insrrumento. O desenho
matéria, mas denotando o seu uso como conceito - um pré-desenho - obtido, tudo o não interessa, o que importa é a obra, a construção. Quando surge referenciada, a sua existência parece dever-se
a fins de registo de ordens para um estaleiro com arquitecto ausente ou transporte da ideia, isto é, quando se
indica, através do primado das Matemáticas. A produção teórica, o método, da escola
torna necessário obter junto de alguém distante aprovação. Entre outros aspectos repare-se na facilidade com que
portuguesa de urbanismo e engenharia militar a que atrás me referi, é constituída essencial- um-engenheiro larga mão de um original na transcrição parcial que aqui deixo de um documento publicado por
mente por compêndios de Matemáticas que, acompanhando as correntes da vanguarda de Sousa VITERBO [p. 59 do vol. III, de (1899-1922) Diccionario historico e documental dos Architectos, r.1,•,mu1t·t-
ros e Constructores Portuguezes ou a serviço de Portugal, 3 vols., Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1988]:
então 4°, associam a Álgebra à Geometria41 , pondo-as conjuntamente e cartesianamente ao «O engenheiro Julio Simão, que hora veyo de S. Thome me deo planta da fortificação daquella cidade, que com
esra env10 a V. Mad.de e vay na primeira via, por elle não ter lugar de a fazer por outra, por ella podera V.
sendo servido 1;1-anclar ver a obra, que hora alli deixou traçada, e a mais que dantes havia ... » (trata-se de uma carta
do vice-rei da lndia ao rei datada de 1621-2-18).
39 Ver as obras de Amélia Aguiar Andrade referenciadas na nota 35. 44
Ver de Rafael MOREIRA, Um tratado português de arquitectura do século XVI, dissertação de Mestrado
40 Rene DESCARTES no apêndice «La Geometrie» ao seu Discours du Méthode publicado em 1637 fun-
apresenrnda à Faculdad_e ele Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, J 982 e «Arqui-
dou a Geometria Analítica que, grosso modo, resulta, precisamente, da fusão da Álgebra com a Geometria.
tectura», m Os Descobmnentos Portugueses e a Europa do Renasâmemo, XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência
Surgira a possibilidade científica de arnílise rigorosa das propriedades das formas ...
41 É óbvio que outras áreas das Matemáticas estão presentes. A Trignometria, por exemplo, é dedicado um
e Cultura, Lisboa, 1983, vol.fano Arte Antiga I, pp. 346-7.
45
A própria Arquitectura por vezes surge então entendida como uma área das Matemáticas. 525
524 capítulo. No entanto, o eixo do conhecimento proposto é o daquelas.
O URBANISMO REGULADO
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUF.S

Muitos outros seriam os planos de comparação com incidência sobre as questões do


tem de ser iniciado apoiando-se, eventualmente, no papel desempenhado pela presença
urbanismo e do ordenamento do território que, a partir do que foi dito, interessaria analisar
activa nos mais diversos níveis da vida nacional das etnias orientais, às quais a civilização
aqui. Entre outros: a questão do lote e dos tipos arquitectónicos que Ramon Gutierrez tão
então devia a exclusividade do desenvolvimento das Matemáticas. Por outro lado, seria
perspicazrnente lançou48, mas para a qual o contributo exterior à disciplina de Gilberto Freyre
interessante avaliar as mudanças operadas com as perseguições que lhes foram movidas no
é marcante" 9 ; a correlativa oposição pátio/logradouro 50 ; os procedimentos de fundação 5 1; as
período da Contra-Reforma. Por exemplo, se em Portugal as Ciências Matemáticas aca-
questões normativas, nas quais, afinal, também o urbanismo português é prolixo!
bam por ser herdadas pelos Jesuítas, a fuga de judeus para os Países Baixos não terá sido
É, no entanto, essencial completar o que me propus tratar aqui. Se bem repararam,
determinante no desenvolvimento que a escola holandesa de engenharia militar registou a
quando fizemos a sumaríssima abordagem às cidades reguladas, não houve qualquer refe-
partir de então? E o concomitante crescimento e sucesso das suas armadas?
rência às brasileiras.
É, pois, matéria complexa, desconhecida e especificamente portuguesa esta do urbanis-
mo regulado. Como vimos, atravessa de ponta a ponta a produção urbana e urbanística por-
Como se sabe, no reinado de D. Manuel Ia colonização do Brasil não foi entendida
tuguesa da Idade Moderna. Sem o seu estudo e caracterização sistematizados, não podere-
corno prioritária. Só com D. João III se pode dar como iniciada, mais precisamente em
mos comparar as nossas cidades com as de qualquer ourra cultura. O panorama traçado
1534 quando da criação das capitanias, mas o processo de urbanização apenas foi aberto
limita-se a aspectos muito específicos da questão. Quando estivermos em condições de esta-
com a fundação da cidade de São Salvador da Bahia em 1549, já no preâmbulo do último
belecer comparações, por exemplo, com as cidades ibero-americanas, convém confrontar-
dos dois bem diferenciados períodos daquele reinado. Nessa primeira metade do século
mos outras vertentes que vão do processo histórico à definição do estatuto da propriedade.
surgiram uma série de estabelecimentos precários e não planificados, de que hoje resta e se
A realidade histórica de Portugal e Espanha é diversa nos acontecimentos e no tempo.
sabe muito pouco, com excepção, talvez única, para Olinda que, pelos escassos elementos
Já nos referimos à importância que tem o facto de Portugal ser a Nação cuja identidade e
disponíveis, me parece formada com processos idênticos aos das ilhas atlânticas. Sabemos
território são as mais antigas da Europa. Por outro lado, não é menor o peso de uma relativa-
dessa global incipiência urbanística pelas notícias que o primeiro governador-geral do
mente baixa densidade demográfica. Ambos os factos são suficientes para entendermos por
Brasil, Tomé de Sousa, deu ao rei acerca das medidas 52 que tomou na sua viagem de ins-
que é que a nossa expansão se deu com um sistema diametralmente oposto ao espanhol. Para
pecção pela costa realizada nos finais de 15 52: fez cercar vilas e povoações de engenhos, fez
além das múltiplas questões já abordadas, das quais destaco a opção de índole mercantilista
mudar para a costa as implantações do interior e mandou " ... em todas as vilas fazer casas
que leva a que Portugal, numa primeira fase, tenha no mar o verdadeiro território do seu
de audi."ncia e de prisão e endireitar algumas ruas, o que tudo se fez sem oposição do povo
Império, registe-se como a colonização/conquista empreendida pelos monarcas espanhóis
e com folgarem muito de o fazer. .. ». De 1549 a 1580 decorreu, pois, o primeiro ciclo do
do império asteca é o prolongamento da Reconquista ibérica concluída pelos Reis Católicos
urbanismo português em território brasileito. Período curto, no qual apenas Salvador e
em Granada46 • O entendimento de expansão é, logo à partida, territorial e implica a subjuga-
ção de um território já minimamente estruturado 47 . Em oposição, quando confrontados
com civilizações estabelecidas, os portugueses instalam-se em franjas dos territórios. A vasti- ~ 48
Arquitectura )' Urbtl!Lismo en Iberoameriw, Ediciones Cátedra, Madrid, 1992, p. 72.
Por exemplo, no clássico (1933) «Casa-gr,mde & Senzala», Editora Record, Rio de Janeiro. 1995 ou
•'9
dão do vácuo civilizacional do que hoje é o Brasil viria a ser mais um dos factores de catalisação ainda em Sobrados e Mucambos -decadêncitz do PatriarCtldo Rural e desenvolvimento urbano, Comp.ª Ed. a Nacio-
da lenta metamorfose desta realidade no programa ordenador do século x:vm. Curiosamente, nal, S. Paulo, 1936 e Oh de casa 1 - em tomo da casa brasileira e sohre urn tipo nacional de homem,
Editora Anenova, Recife, 1979.
enquanto o modelo português é mais próximo de uma extensão do reino, os espanhóis 50
Em S. Luís. por exemplo, mercê da estruturação filipina esta dualidade é por ele mais evidente.
colonizam, isto é, criam unidades administrativas autónomas. É que, no território europeu, 51
Para além de todas as implicações de natureza cultural que acarreta, o que desta questão tem importân-
cia irnediata é o facto de) enquanto nas cidades hispano-arncricanas desde o início sere1n correntes rituais
enquanto para eles o Reino é o conjunto de retalhos de povos e territórios aglutinados sob
normalizados de fundação, nas cidades portuguesas só termos notícias ele procedimentos equivalentes após 0
uma Coroa, para nós o entendimento é sempre o de uma única unidade, uma Nação. Se não período filipino. Para o caso espanhol contamos, pelo menos, com o excelente estudo ele Marcelo FAGIOLO
como podemos explicar a mudança da Corte para o Rio em inícios de oitocentos? «La fondazione delle città larino-americane. Gli archetipi dclla Giusrizia e della Fede», in Psfron, revista imema~
ziowzle di ,irchitettura, Centro Studi Archirettura OUROBOROS, firenze, 1975, n.º 5, vol./ano li, pp. 34-58.
Já para o universo luso-brasileiro, a obra onde, sem tal fim, apesar de tudo, esta matéria está mais concentrada é
a de Vasco da Costa SALEMA (1982), Pelourinhos do Brasil, Sociedade Histórica da Independência de Portugal,
46 Nunca é de mais recordar que a conquista de Granada e o achamento da América ocorreram no mesmo
Lisboa, 1992.
ano, 1492. 52
O mais importante é a facilidade com que parece terem sido realizadas. Se os núcleos existentes rivessem
47 Jorge E. HARDOY, em «La forma de las ciudades coloniales em hispanoamerica», in Psicmt, revista
consistência, não teria sido tão fácil. A documentação aqui usada relativa ao papel de Tomé de Sousa, como
internazionale di arrhitettura, Centro Studi Architettura OUROBOROS, Firenze, 1975, n.º 5, vol.iano II, primeiro governador-geral do Brasil, e de Luís Dias, como seu arquitecto, anda transcrita na História da Coloni-
pp. 8-33, torna, de forma particular, este aspecto definitivamente claro. Ao conquistarem o império asteca os zação Portuguesa do Brasil, vol. III, Rio de Janeiro, 1921-4. 527
526 espanhóis recebem também uma rede urbana já estabelecida.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS O URBANISMO REGULADO

Rio constam da lista das cidades então fundadas, uma vez que casos como o de Vitória realidade de humanismo puro e fervor clássico catalisarem sempre exageros e a sua
(1550) não chegaram a adquirir naquele período características urbanas. São aquelas as consequente repressão.
únicas cidades portuguesa-brasileiras da expansão. Como tenho vindo a insistir, foi nessa viragem dos anos 40 de quinhentos que a
Casos diametralmente opostos aos do Oriente. Para além da total disparidade entre as Coroa, guiada pelos sucessos espanhóis e ameaças de outros reinos europeus na América,
preexistências, o enquadramento histórico determinou políticas diferentes. Na idade manuelina esboçou um plano de colonização do Brasil, sendo o seu principal instrumento as cidades
eram os ideais que ditavam as políticas de expansão, forjando-se sonhos da recompensa reais. O caso de Salvador é importante não só por ser pioneiro, mas também porque pela
material e espiritual, a Oriente, para o esforço empreendido. Por tal razão o Brasil foi inicial- primeira vez em todo o universo português há notícias de desenhos. Estava-se em 1548 e
mente entendido como do percurso para a Índia e tratado como as ilhas atlânticas só em 1565 surgiu o primeiro impulso para a fundação do Rio.
e a costa ocidental da África Austral-Continental, ou seja, adaptou-se o sistema de donatarias Na célebre planta do Livro que dd razão do fitado do Brasil de cerca de 1616, na mais
ou capitanias hereditárias, completamente estranho à Índia Portuguesa 53 • precisa congénere holandesa de 1624 e no complementar Roteiro general de irz costa dei
Para os estudiosos do universo quinhentista português, a década de 40 é um momen- Brrzsil y memoriai de ias grtmdezrts dt1 Bahia feito em 1587 por Gabriel Soares de Souza,
to de viragem que atravessa os principais sectores da sociedade e da actividade governativa: Salvador apresenta-se como uma cidade dividida em dois núcleos: o mais recente a norte e
foi a mudança de orientação na reforma da Universidade; foi a assunção de preponderân- estabelecido a partir da Matriz (futura Sé) e do Colégio Jesuíta; o fundacional, mais perto
cia pelos sectores religiosos integristas e pela Inquisição, o que teve como consequência da Barra, polarizado em« ... uma honesta praça ... [ ... ] ... em quadro ... » onde primeiro
imediata a erradicação prática dos ideais humanistas; foi a mudança para uma postura existiu o Pelourinho. Esta praça era aberta sobre o mar e conformada pela Casa da Câmara
colonial relativamente à Índia com o abandono de ideais como o de cruzada e o do V Impé- e Cadeia, o Paço do Governador, a Fazenda e a Alfândega, para além de algumas casas.
rio; foi a concentração dos esforços do Estado na militarização dos territórios; foram as Curiosa era a existência do «guindaste das fazendas» destinado a erguer mercadorias do
referências cada vez mais frequentes à utilização do desenho como instrumento necessário cais para a Alfândega. Bem perto, na rua que conduzia à Matriz e à porta da muralha que
à definição das construções, paralelas, aliás, à definição das diferenças entre engenharia e dava para o campo onde se vieram a instalar os Jesuítas 55 , e, tal como aquela, com as
arquitectura; foi a contratação de alguns engenheiros militares estrangeiros com vista à traseiras sobre o penhasco, o porto e o mar, encontrava-se a Misericórdia com o seu hospi-
saída do beco de ineficácia em que o experimentalismo da fortificação manuelina havia tal ló. Tudo leva a crer que nos primeiros anos a assistência religiosa era prestada na capela
introduzido os nossos sistemas de defesa passiva; etc. No fundo trata-se da passagem da de N.ª S.ª da Ajuda criteriosamente (organicamente!) implantada ao centro e em função
fase arcaica - manuelina - da nossa Idade Moderna ao seu período clrfo-ico - «entre da «porta de terra)) da cidade. A morfologia urbanística de ambos os núcleos é claramente
especiarias e diamantes», como diria George Kubler54 • Ocorreu fundamentalmente no diversa e_confere com as datas das respectivas estruturações. O núcleo inicialmente e
sentido do reconhecimento das realidades. A realidade de uma civilização e sistema econó- deliberadamente implantado por Tomé de Sousa no morro mais pequeno apresenta as
mico instalados, a realidade de um estado de guerra constante para manter os estabeleci- características do urbanismo regulado, cuja caracterização genérica aqui já foi adiantada.
mentos em terra e as rotas comerciais, a realidade de um trato local mais rentável e viável O núcleo estabelecido com a Matriz e os Jesuítas, gerado em finais do século XVI, senão
que o transcontinental, a realidade da inoperacionalidade do sistema administrativo a lon- mesmo em inícios de seiscentos, é já muito mais próximo da racionalização geométrica do
ga distância, a realidade da fraqueza carnal e material do herói-tipo português ... Então traçado em xadrez. Como explicação não bastará apenas a maior área e mais favorável
também toda a Europa se virava para realidades difíceis, verificando, uma vez mais, a triste topografia ...
Repare-se, no entanto, como apesar das referências às « ... traças e amostras que
53
Não abdicando da soberania sobre o território, a Coroa delegava nos donatários toda a iniciativa colo-
levais ... » o muito comentado excerto do Regimento de Thomé de Souza torna claro que tais
nizadora e, assim, urbanizadora. A eles competia a fundação de cidades e a emissão das respectivas cartas de foral. desenhos são para que ele com eles se conforme e« ... praticando com os oficiais que para
Mas na generalidade a falta de motivação era tanta que, em alguns casos, os capitães donatários acabavam por ir
para o íman da expansão portuguesa, a Índia. Lembro o incontornável exemplo de Martim Afonso de Sousa que
55 Esta questão foi polémica até que Paulo Santos, no estudo já referenciado, a clarificou (pp. 81-2). No
depois de, em 1532, fundar aquela que terá sido a primeira vila do Brasil --- S. Vicente - surgiu quatro anos
depois na tomada e fortificação de Diu, chegando a ser governador da Índia entre 1542 e 1545. entanto, hesita em aceitar que o primeiro cerco deixasse de fora a Misericórdia, a Matriz e o local do futuro
54
É o subrítulo do já clássico Portuguese Plain Architectttre, between spices and diamomls, 1521-1706, Colégio, o que, se reconstituirmos a topografia natural do local com a Ribeira de Coes, se torna óbvio. A prova
Wesleyan University Press, Middletown, 1972. Nesta obra o autor abriu caminho ao estudo coerente da arqui- definitiva esd na própria planta de cerca de 1616, pois na versão guardada na Biblioteca Pública e Municipal do
tectura portuguesa daquele período que, numa síntese ímpar após o auge do manuelino e do primeiro renascimento, Porro está bem marcado o primeiro perímetro da cidade. Afoís, a avaliar pelo conteúdo da carta, este cerco muito
conjugou as tradições da arquitectura castiça com os ares do tempo, a arquitectura clássica. O estilo chão é isso provavelmente terá sido construído com intenções, a bem dizer, efémeras.
56 Devo fazer notar os equipamentos agrupados de acordo com o princípio da 1wv,1 cenlralidade manuelina
mesmo, a atitude clássica na arquitectura de um país (operativamente) periférico numa conjuntura particular-
528 mente difícil. no território europeu. 529
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS O URBANISMO REGULADO

isso mando e com quaisquer outras pessoas que o bem entendam ... » decida o que de que tal impôs. A sua estrutura ligeira permitiu, aliás, o abandono e mudança para o morro
melhor achar. Umas linhas atrás igual capacidade de decisão era dada ao governador para de S. Januário, logo após a vitória sobre os franceses, cuja presença na baía da Guanabara
a escolha do local. É por de mais sabido que com ele seguira Luís Dias, um arquitecto foi O
móbil principal para a fundação da cidade. Ali pouco mais coube que o que Mem de
normalmente tido como da confiança de Miguel de Arruda, Mestre-mor das Fortificações Sá em dezasseis meses fez 58 : pura e simplesmente instalar os equipamentos mínimos neces-
do Reino, e por ele hipoteticamente instruído para a missão. Todos estes factos e a notícia sários a qualquer cidade da expansão, ou seja, a Câmara e Cadeia, a Fazenda e Alfândega e
documental das tentativas falhadas para fazer chegar ao rei desenhos, representando o que a Sé, para além da igreja jesuíta, item que então se começava a impor persistentemente.
então se fazia, têm alimentado a hipótese da existência de um plano, um pré-desenho para Nem que fosse pela necessidade de instalação de outros equipamentos, a curto prazo era
a cidade. No entanto, em miri,ha opinião a questão é outra e mais simples se, à luz do que inevitável a descida da encosta e a urbanização da várzea 59 • Esta deu-se já no período
tenho vindo a propor, lermos atentamente o Regimento de Thorné de Souza: Luís Dias filipino, seguindo um inequívoco plano ortogonal estruturado a partir de um caminho
levava «traças» (desenhos) e «amostras» (modelos/maquetas?) para a construção de uma que preliminarmente e organicamente se estabeleceu, ligando o núcleo inicial ao mosteiro
«fortaleza» e não de uma «cidade» ou «povoação» - as coisas são bem diferenciadas no beneditino instalado no morro, a montante. Ao processo não pode ser estranha a perma-
texto; sabemos que a «fortaleza» devia ter «disposição e qualidade para aí por o tempo em nência no Rio durante sete meses do ano de 1581 de Juan Batista Antonelli, o engenheiro
diante se ir fazendo uma povoação grande», mas onde é que se diz que ele levava as traças militar italiano que, em inícios do século XVII, a Coroa espanhola viria a encarregar de
relativas à cidade? Como consequência destas dúvidas, e apenas como hipótese de traba- estudar e executar um plano integrado de defesa de toda a costa oriental da América então
lho, proponho, portanto, que se admita que o plano tenha sido elaborado no local e, hispânica. Esta tarefa, em 1604, levou novamente Antonelli ao Rio, sendo também obri-
muito provavelmente, a par e passo com as obras. O termo usado na carta de Luís Dias ao gatória a sua passagem por Salvador.
rei, datada de 15 de Agosto de 15 51, quando se refere ao desenho que, sem sucesso, lhe Face a esta pacífica realidade devemos concluir que até a segunda das duas únicas
tentou enviar, é, aliás, «amostra)), para além de em todo o texto dar especial relevo às cidades brasileiras da expansão acaba, em função do seu tardio desenvolvimento urbanísti-
57
muralhas • No essencial o que proponho é que, no contexto geral das cidades da expllnsáo, co, por o não ser.
se considere, a par de outras hipóteses, que Salvador tenha sido o primeiro tramo da liga-
ção óbvia entre as cidades regu!tzdas e as cidades da escola, nunca um caso precoce. O caso É precisamente no Rio que deixo este contributo para o debate acerca das cidades
já por nós visitado de Damão constituir-se-ia como o segundo. portuguesas com o tom de desafio à coragem científica para o estudo integrado das suas
Para o período que nos propusemos abordar, o estudo do Rio de Janeiro é um caso realidades históricas e formais. Se a história brasileira começa em 1500, é também verdade
fácil. As razões fundamentam-se em factos por de mais conhecidos. que em simultaneidade com o curso final da sua pré-história se desenvolviam em Portugal
Se tem uma fundação institucional em 1565, nos anos imediatos não passou de uma processos cujo conhecimento é fundamental para a compreensão das transformações que
«praça-forte» (designação que encontramos nos documentos da época) alcandorada no 0 território que hoje é o Brasil sofreu no processo gradual da sua entrada na História.
colo entre dois morros - Cara de Cão e Pão de Açúcar - com o desenho incaracterístico
*
17
* *
Para além destas dúvidas fondamentais. subsistem ainda outras relativas à própria figura de Luís Dias.
Rafael Moreira (AAVV, 1989, Hístórit1 rÍt1s f'OJ't1t1'1·,u·oes l'ortuç-w;91.r no lvfu!ldo, Alfa, Lisboa, 1989, p. 155), após
afirmar que Miguel de Arruda foi o «criador de uma verdadeira escola nacional de arquitectura militar e urbanis-
1no cujos discípulos levara1n aos quatro continentes as directrizes, se não os próprios planos, traçadas no seu
11te!im,, incluiu o primeiro engenheiro de Salvador nesse grupo de discípulos. Não é um facto histórico, mas
uma hipótese. Desenvolvendo-a, observa-se que Luís Dias, se não era mais velho, estaria pela idade do próprio
Miguel Arrnda, pois na p. 181 do vol. l de A Arquitecturtl do Re11tzscime11to no Sul de Portugal -- a encomenda ss Ver «Instrumento dos Serviços de Mem de Sá», in Anaes da Bibliotectl Nacio11t1l do Rio ele ]tmeiro,
régia entre o l,1odemo e o Romm10 (2 vols., dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Nova de vol. XXVIII, pp. 129-218. ,
Lisboa, Lisboa, [991 ), Rafael Moreira dá-o a trabalhar no Norte de África cm meados da década ele 1520, dado so O processo está bem descrito e comentado em variados rrabalhos de gue, a título de exemplo e para alem
extraído <lo l)iccionario historiaJ e documental dos Archítectos, h1~Pn:hnTor e Constructores I'ortuguezts ou a serviço do de Paulo Santos já referenciado, registo o de Eduardo Canabrava BARREIROS, Atltls da evolução u:bcllltl dt1
de Portugal (3 vols., Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa. 1988) de Sousa Viterbo que, aliás, levanta ainda cir!t1cfe do Rio de]tmeiro - ensaio, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio_cle Janeiro, 1965_ e d~ G1ovanna
a hipótese de aquele arquitecro ter estado no Brasil ainda antes da sua miss3o com Tomé de Sousa. Por outro lado, Rosso Dal BRENNA, «La citta coloniale portoghesc. Rio de Janeiro tra il À'VI e 1! XVIIl secolo», 111 Estudos sobre
na carta que escreveu ao rei em 1551-8-15, Luís Dias pedia para regressar ao reino por estar muito velho e ser urbanismo Jberoamericano- siglos)(Vl alXVIII, Junta cleAndalucia, Consejeria de Cultura, Sevi!la, 1990,' PP· ~48-
quase inútil. Ora Miguel de Arruda morrett apenas cm 1563. É possível, mas muito pouco provável, que Miguel -462. Mas fundamental, pois expõe antigas polémicas e, rnidadosamente, estabelece o enquadramento, e o «Curso
de Arruda tenha tido como discípulo Luís Dias, o que levanta dúvidas sobre a preponderância e um eventual pré- sobre a fundação da cidade do Rio de Janeiro», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bmsi!eiro, Departamento
530 desenho urbanístico de Miguel de Arruda para S. Salvador da Bahia. 531
de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1967, vol./ano 276.
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS O URBANISMO REGULADO

Os cinco desenhos que aqui se apresentam pertencem a uma colecção de treze com a fronteira minhota, conjunto de excepcional importância para o estudo do Urbanismo e da
designação «Plantas de Praças Fortes do Minho» que sob as cotas 1-G- J G a 28 fazem parte Urbanística portuguesas do período medieval. Daí que a publicação sumária destes dese-
do acervo de Cartografia da Sociedade de Geografia de Lisboa. A mais fugaz observação nhos surja aqui como uma síntese genérica do muito que é dito por entre algumas das
toma evidente a sua extrema semelhança com o albúm «Topografia Da Fronteyra, Praças, colaborações presentes nesta colecrânea. Lamentavelmente não possui esta colecção item
e Seus Contornos, Raya Seca, Costa, e Fortes da Província de Entre Douro, e Minho: equivalente à planta de Valença que o álbum portuense contém, vila cuja fundação medie-
Offerecida Ao Ili.""' e Ex.""' Snõr Sebastião Joze de Carvalho, e Mel lo, Secretario de Estado val foi essencial para a cessação do poder episcopal de Tui sobre os territórios portugueses.
de S. de Fidellissima: Delineada Por Gonçallo Luís da Sylva Brandão, Sargento do N° Aliás, 0 facto desta colecção ser constituída por desenhos soltos terá levado à dispersão de
de Infantaria na mesma Prdvin~ia. Anno MDCCLVIh outrora pertencente a particulares, parte dos itens do conjunto original.
mas agora à guarda, sob a cota Man. 1909, da Biblioteca Pública Municipal do Porto, que
em 1994 o publicou em fac-simile. Os restantes oito desenhos são na sua maioria represen-
tações de contextualização no território com pormenores relacionados com o oceano e o
rio Minho e, apesar de existir paralelismo evidente entre as colecções, nem sempre as
representações surgem à mesma escala e com grau de detalhe semelhante.
Não é esta a oportunidade para aqui discorrer acerca da origem, obviamente comum,
de ambos os conjuntos. No entanto, para que se possa ajuizar dos trilhos que tão simples
constatações vão abrindo à História do Urbanismo e a congéneres como a História da
Engenharia Militar, importa aqui registar o que, eventualmente, possa vir a servir de pon-
to de partida para um estudo pormenorizado de ambos os conjuntos - que, aliás, obriga-
toriamente terá que passar por uma sondagem arquivística que permita referenciar a exe-
cução dos desenhos, as personagens intervenientes no processo e, eventualmente, os dese-
nhos em falta na colecção lisboeta. Não restam dúvidas de a colecção da SGL ser cópia
posterior, com prováveis fins práticos, ao luxuoso álbum composto para deleite do futuro
Marquês de Pombal. O menor cuidado do desenho, o menor brilhantismo da cor, a não
utilização de formato único, são, entre outras, razões que poderiam levar a considerá-lo o
levantamento que serviu de base ao outro. No entanto, há outros detalhes, como o tipo de
letra utilizado, que levam a que, de momento, se defenda o contrário. curiosamente,
na colecção lisboeta existe um desenho (l-G-27) que difere dos restantes, não só por
possuir um grau de pormenor superior ao do próprio congénere do Porto, mas também
por ser o único da sua colecção com letra cursiva e ter a data da sua execução, 1720. Face
a estas e a outras constatações a hipótese que aqui se deixa é a da mais que provável exis-
tência de uma colecção de desenhos sobre aquela circunscrição militar desde bem cedo
- porque não desde a sua criação-, colecção essa paulatinamente enriquecida e actuali-
zada e da qual um obscuro sargento de infantaria resolveu fazer uma cópia composta em
álbum com o qual declaradamente pretendeu agradecer uma mercê.
Mas para além do que os dados expostos possam contribuir para um melhor conhe-
cimento da praxis da engenharia militar portuguesa, a importância do seu conteúdo for-
mal específico é óbvia. Não só nos apresentam a situação médio-setecentista daquele terri-
tório, como nos permitem ler, num processo quase imediato, a involução morfológica das
cinco cidades assim retratadas e por essa forma conhecer a forma urbana das cinco póvoas
532 fundadas por Afonso III e seu filho, D. Dinis, com vista à formação da rede urbana na 533
)

«Planta da Forteficação de Villa Nova de Serv."».


«Planta da Forteficaçaõ de Monçaõ».

«Planta da praça de Caminha». Tem o «casco da Villa velha» e a fortificação em redor


535
(no álbum da BPMP o perímetro da muralha medieval apresenta-se mais ovalado).
534 «Plata da Praça de Melgaço».
UNIVERSO URBAN STICO PORTUGUÊS

RAYA SHANKl!\VALKAR;P. R. V!NEETH


Goa College ofArchitecture

«Planta da Villa de Vianna sua barra, e castelo».


Apresenta ainda o «casco» antigo da vila com a respectiva muralha.

* Este estudo ganhou o Troféu G Sen na Convenção Anual da NASA, cm Bopal, em Dezembro ele 1993.
Os autores, ambos estudantes da Faculdade de Arquircctura de Goa, conduziram o grupo de estudo. Os outros
membros são: Harshan Thomson, Sandeep Sangal, Rajiv D' Silva, Anuja Parab, Rcshma Kamat, Alminaz Rasiyani,
536 Swati Nagvenkar, Shailesh Kenkre, Rolland Velho, Preeti Jaiprakash, Preeti Nayanar, Vinci Raposo, Rohect
Hede, Varsha Arolkar, Rupa Salgaonkar, Herma Sinari, Smruti Divkar, Paclma Kamat.
P angim, a última capital de Goa, foi constituída e concebida com uma mestria perfeita,
segundo padrões muito semelhantes aos de uma pequena vila tradicional portuguesa, com
ruas estreitas e praças com jardins centrais. Chamada Ponji na língua nativa, o verdadeiro
nome significa terra arável que não pode sofrer inundações. Antes da chegada dos portu-
gueses, a instabilidade política não permitiu que se estabelecesse na região o estilo hindu
ou muçulmano. Foram os 450 anos de implantação portuguesa que deram origem ao
exemplo mais fascinante de uma mistura europeia e oriental.
Os portugueses desembarcaram em 151 O, conquistaram a modesta praça-forte de
Village Talengao, composta por um forte muçulmano e algumas cabanas de pescadores
espalhadas ao longo das margens do rio Mandovi, e transformaram-na numa importante
fortificação militar. Durante o século XVII Pangim começou a ser ocupada por casas de
férias de fidalgos portugueses. Em 1827, o vice-rei D. Manuel de Portugal e Castro fez
melhoramentos significativos, mandando construir estradas largas e edifícios majestosos.
Em 1843, Pangim foi elevada ao estatuto de cidade, com o nome de «Nova Goa».
Inicialmente, sendo uma pequena vila com 1,5 km de comprimento e 1 km de largu-
ra, Pangim esteve para ser uma vila pedestre. Os vestígios da cidade antiga encontram-se
na zona das Fontainhas, onde a arquitectura tradicional goesa pode ser estudada com
maior rigor. Fontainhas é uma área residencial antiga, entre o monte Altinho e o riacho
Ourem, um subafluente do Mandovi, que teve uma certa proeminência durante o período
colo-nial. Em 1855 foi então inaugurada a bela ponte de Fénix - - o nome Fontainhas
deriva precisamente das pequenas fontes que ali existiram.
A mudança da capital para Pangim, em 1843, teve como resultado a formação dum
mundo verdadeiramente urbano. No início, os ricos viviam em mansões situadas no seio
de jardins, no campo, enquanto as cidades eram reservadas para o comércio, para toda a
espécie de negócios e para o governo. O excesso de construções para a escala urbana do
local transformou as Fontainhas numa zona em que as casas tinham de ser edificadas lado
a lado. Os mais ricos habitavam na Estrada 31 de Janeiro, a artéria principal, e os mais
pobres, nas ruas mais estreitas que dali partiam. A qualidade espacial desta área é caracte-
rizada por uma série de praças de forma regular, circundadas pelo desenvolvimento nor-
mal que lhe está subjacente. Estas praças ou largos foram espaços vitais, muito importan-
tes, e, de uma maneira geral, ficavam implantados à volta de uma igreja, de um poço ou de
uma fonte. Normalmente faziam parte da zona principal - a Praça das Fontainhas, o
Largo de São Sebastião e a Praça de São Francisco Xavier eram as mais famosas. Estes
espaços eram parte integrante da vida social dos residentes - vibrantes e sempre a pulula- 539
PANGIM: UM LEGADO PORTUGUÊS
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS

A janela era caracterizada por um arco ornamentado, tramando-se, na sua maioria, de


rem de actividades. As ruas principais ainda se abriam a vistas panorâmicas surpreenden-
janelas francesas, que também podiam ser abertas parcialmente, de acordo com o nível de
tes, mostrando outras disposições de sacadas, balcões e trapeiras, assim como variadíssimas
privacidade pretendido. Eram protegidas por folhas G/ 1 que se retiravam logo após a mon-
combinações de cores.
ção. Uma parte essencial da vista geral das Fontainhas era constituída por uma série de
O plano da casa típica goesa incluía um lanço de escadas que conduzia a uma varan-
colunas, que formavam a colunata, em ferro fundido, e uma das suas fonções era proteger as
da, com assentos de madeira ou de pedra. A varanda, chamada balcão, era utilizada como
pessoas da severidade dos elementos naturais. A varanda, no primeiro andar, possibilitava
uma espécie de antecâmara ou sala de visitas para a família, informal e, acima de tudo,
uma transição agradável do interior da casa para o exterior. Uma outra variação era a unidade
reflectia o estilo de vida extrovertido dos católicos. Era um lugar lúdico, para se espairecer
típica individual, formada por uma ampla janela que era o balcão - a sacada goesa. A sacada
e estar na conversa com. os Yizinhos do outro lado da rua. O contacto com as pessoas da
era suportada por consolas de ornatos. As formas ornamentadas das GI, assim como os
classe social mais baixa ~ra feito através do próprio balcão, pois nunca chegavam a entrar elementos rococó nas molduras das janelas, constituíam outros pormenores interessantes.
na casa propriamente dita. A, casas possuíam normalmente uma parede composta um arco de entrada inte-
Nas Fontainhas, contudo, as casas caracterizavam-se pela falta do balcão, e davam grado na própria parede, que lhe dava um outro relevo. A vista geral da rua revelava uma
directamente para a rua - uma aberração que reflectia o excesso de edificações para aque- excelente integração na paisagem, e o aproveitamento do declive do monte, através da
la escala urbana. disposição de ruas em rampa ou em escada, permitindo-lhes uma articulação a diferentes
O plano da casa hindu, apesar da elevação a oeste, girava à volta de um pátio central níveis, era uma outra utilização interessante.
com a tu/si vrindavan. Todas as divisões davam para o pátio, permitindo o estilo de vida Actualmente, a comercialização já atinge as Fontainhas, especialmente ao longo do
introvertido dos hindus, resguardando as suas actividades domésticas dos olhares alheios. riacho, onde na zona mais alta se beneficia de urna vista panorâmica sobre a vila. Mesmo no
Os cristãos eram heterodoxos no modo como dividiam a casa, com quartos a dar direc- interior pode-se ver uma estrutura moderna que se destaca além das linhas dos telhados. As
tamente para a casa de jantar ou para o hall de entrada. A, fachadas eram decoradas com estradas, muito estreitas, comportam o tráfego que, ora rápido ora lento, provoca congestio-
ornatos em ferro fundido e balcões com balaustradas de origem europeia. O estilo que reflec- namentos durante todo o dia. Os largos, em tempos cheios de actividades, são, neste mo-
tia não apresentava um conjunto de pormenores bem definidos, apesar do apreço hindu pelo mento, espaços para parqueamento. Os caminhos alternativos são erráticos, ou não existem,
artesanato de qualidade. Esta tendência devia-se ao material utilizado na construção - uma ou são demasiado estreitos para serem tomados em consideração. Fontainhas foi declarada
rocha vermelha, macia e porosa, chamada laterita, que não podia ser cinzelada. Era, de facto, área de reserva, contudo, do ponto de vista arquitectónico, continua a degradar-se.
mais indicada para se moldar. Esta característica reflectiu-se na guarnição do consolo, com O novo desenvolvimento, actualmente, a cidade propriamente dita, faz-se na mar-
ornamentos arquitectónicos - um estilo adoptado na zona mediterrânica. As cornijas eram gem sul do Mandovi, até ao monte Altinho. Está planeada segundo um modelo de ruas
modeladas à volta das janelas e das portas para afastar a chuva da monção. A laterita à vista em rede, com diversos cruzamentos que conduzem à margem do rio. O centro da cidade é
era, de facto, uma característica comum das casas goesas, enquanto a aplicação de estuque era formado por edifícios altos com estabelecimentos em que se exercem várias actividades
bancos e centros comerciais-, construções com seis ou mais andares, todos ocupados
um detalhe português adicional. Os habitantes locais desenvolveram uma técnica que levou
por companhias, resultando num conjunto arquitectónico estereotipado, no qual predo-
a que este material facilmente moldável pudesse ser lavado com sabão.
minam sem grande convicção o arco e o telhado inclinado.
As paredes eram pintadas com cores terrosas, de ocre amarelo, vermelho indiano ou
O estudo da principal zona comercial, a Estrada 18 de Junho, revela as características
azul ultramarino e as paredes feitas de laterita eram cobertas com uma camada de cal e
da rua típica. Originalmente Pangim foi concebida para ter estruturas com um ou dois
areia. Havia regras predeterminadas para a pintura das mansões, que era efectuada anual-
andares. As pressões comerciais resultaram na construção de edifícios seguidos uns aos
mente, após o período da monção. O regulamento insistia no facto de que, embora o
outros, de cinco ou seis andares em galeria, criando problemas relacionados com o excesso
branco pudesse ser usado em detalhes arquitectónicos como, por exemplo, em cantos e
de automóveis e pessoas. Porém, pode-se ver algumas casas dispersas de um único piso,
cornijas, janelas e balaustradas, de modo a contrastar com as paredes, só as igrejas podiam
fazendo lembrar a primitiva Pangim. O carácter irregular das fachadas dos prédios existen-
ser totalmente brancas. Mais tarde acabariam por se degradar.
tes é sintomático da aplicação arbitrária das Íeis.
As igrejas eram visíveis a milhas de distância, uma caraterística predominante da Inicialmente, estes regulamentos insistiam em que a colunata fosse contígua à rua.
omnipresença cristã, numa área originalmente pagã. Outra característica era a famosa
Esta exigência levou à construção em arco os regulamentos impuseram que a parte da
janela goesa em forma de concha. O «nácar» ou madrepérola das conchas era embutido
nos batentes de madeira, para proporcionar uma excelente qualidade de luz difusa nos
1 Grelha numa estrutura de madeira e folhas de palma. (N dos C.)
541
540 interiores.
UNIVERSO URBAN!STICO PORTUGUÊS PANCIM: UM LEGADO PORTUGUÊS

frente do primeiro andar fosse toda edificada em arco, de modo ao edifício poder recuar. Propostas
Esta determinação teve em vista, supostamente, o alargamento da estrada. A colunata tradi-
cional tem, no entanto, mais aplicações. Serve por exemplo para proteger as pessoas do clima Se o carácter arquitectónico original de Pangim deve ser restabelecido num contexto
tropical que é bastante severo, constituindo um espaço de transição da loja para a rua. Um contemporâneo, só pode ser criado após um cuidadoso estudo da antiga e da nova evolu-
terceiro regulamento estabelecia que nenhuma parte do edifício devia exceder a linha imagi- ção. Este estudo compõe-se de algumas propostas que aqui referimos.
2
nária, a partir do eixo central da estrada, a um ângulo de 63,5. Actualmente, nos edifícios Pangim foi concebida numa escala estritamente pedestre. O aumento do FAR e da
construídos, foram recuados dois blocos ou todos os andares, e o desenvolvimento mais segurança dos terrenos resultou numa proliferação de projectos sem nenhum planeamento.
A redefinição destes regulamentos, de acordo com normas adequadas, irá levar à reintrodução
recente tende a acabar com., a aLquitectura tradicional goesa. A construção típica moderna
reserva a frontaria ao longo,,da rua para lojas. O espaço secundário, formado pelas traseiras da relação original do edifício com a rua em termos de escala. Tendo em conta a natureza
comercial dos projectos de construção, propõe-se uma colunata com um bloco de torres
dos prédios, destina-se ao parqueamento ou mesmo aos depósitos de lixo.
recuado. As colunas na zona pedestre erguem-se à escala humana, e o conjunto de torres
Nos projectos de design, urbano raramente se considera o problema que as grandes
compensa o FAR, em que a altura dos edifícios é determinada pela largura da estrada, o
quedas de chuvas colocam, ao enegrecerem as fachadas logo após as primeiras monções.
tamanho do lote, a linha de visão a partir do eixo central da estrada, etc.
Alguns adoptam o uso simples do telhado inclinado duma maneira agradável - um ele-
O enegrecimento das paredes e os elevados custos de manutenção, provocados pela forte
mento verdadeiramente goês, mas colocado num edifício de seis andares. Um lugar comum
monção goesa, podem ser efectivamente reduzidos através de uma janela recuada num vão de
frequente é o uso do azulejo cha;ja, que serve apenas para dividir o edifício horizontalmente.
40 cm, e de uma fachada projectada outros 40 cm em todos os andares. Esta solução permitiria
O desenvolvimento mais moderno já substituiu o passado cultural latino, inconfun-
ganhar 80 cm, criando um beiral, do qual a água da chuva seria lançada para longe.
dível, assim como os ritmos naturais da vida de Goa. No meio desta nova selva situam-se A projecção em forma de mísula, uma característica tipicamente goesa, pode ser inte-
as construções coloniais - um legado português reminiscente da antiga escala humanista
grada numa caleira RC 3•
de Pangim. Os balcões, neste contexto, estão para além da mera arquitectura. São uma parte
O Secretariado, no início, o Palácio de Adi] Shah e, posteriormente, a residência do essencial da vida sociocultural da vila, dos quais os mais ricos participavam nas procissões
vice-rei, depois da Goa antiga ter sido abandonada, é um edifício construído à volta de um e celebrações, mantendo-se contudo na sua privacidade. Numa reinterpretação comercial
pátio (o único elo de ligação visível com o passado da Goa muçulmana). O edifício do desta tradição, os restaurantes ao ar livre, por cima da rua composta pelas colunas, podem
Supremo Tribunal, a Alfândega e o edifício das Contribuições e Impostos, a Fazenda (Direc- oferecer aos turistas uma experiência semelhante ao estilo de vida goesa.
ção de Contabilidade) e o Posto da Polícia (antigamente as tendas do exército) são outros A revitalização dos espaços ao ar livre é essencial para reviver o espírito da vila velha,
edifícios coloniais. Em geral, são todos estritamente utilitários, sem salões pretensiosos, de como a criação de zonas pedestres em certas ruas e praças. Desenvolver na área de três pistas
modo a fazer face aos banquetes oficiais, ou à instalação de bibliotecas ou museus. Contudo, da Avenida Dayanand Bandorkar, nas margens do rio Mandovi, um passeio público, signi-
um bom tecto com 4,5 m ou mais de altura, ao longo de inúmeras janelas, assegura uma ficaria voltar à Pangim dos vastos espaços perdidos nas Fontainhas - permitiria reviver a
ventilação e uma iluminação adequadas. Como em qualquer vila portuguesa de província, as relação íntima tradicional que os goeses sempre tiveram com o mar.
fachadas possuem uma série de janelas que reflectem um ritmo uniforme, com entradas Outro elemento típico goês é o antigo coreto, coberto pela pérgola, que pode ser
subtis que não são delineadas por nenhum tipo de saliência ou pórtico. mais uma vez reactivado com espectáculos executados pela banda local.
Além disso, os detalhes ornamentais existentes ao longo das ruas e dos passeios públi-
A rica variedade de elementos e a sua adaptação ao ambiente natural permite integrar
cos constituiriam um elemento essencial da vista geral da rua - as típicas bancadas em
o estilo goês num contexto contemporâneo. A arquitectura recente desta cidade reflecte de
ferro fundido, com batentes de madeira, e os tradicionais candeeiros de rua. Elementos
facto uma procura consciente de uma verdadeira arquitectura goesa, no contexto actual,
que até podiam vir de uma coluna típica das Fontainhas - a capital convertida numa
que possa integrar a tradicional e a moderna. Projectos como as Torres Sousa e a Praça
bancada ou uma capital invertida usada como caixote do lixo.
Mathias, por exemplo, têm até certo ponto realizado esta síntese. Por outro lado, alguns
A rápida desintegração do tecido urbano tradicional, em particular nos bairros mais
edifícios acabaram por ser um fracasso total - a fachada do Palácio do Hotel Goa, em que
antigos da cidade, requer um esforço efectivo e imediato para impedir o seu avanço.
os arcos, janelas em concha, balaustradas com ornatos e cornijas dão origem a uma facha-
As propostas aqui adiantadas visam pôr em prática esse esforço.
da muito pesada, com excesso de elementos.

2 Relação entre as alturas dos edifícios e a largura da rua. (N dos C.)


542 3 Caleira integrada no beirado do telhado. (N dos C.)
543
Plano de Pangim.

Varandas com colunas como parte integrante da paisagem urbana.

Plano do Bairro das Fontainhas,

O largo ou praça organiza-se a partir de pontos estruturantes como a igreja e o poço.


544 Perspectiva de rua mostrando uma progressiva densificaçfo urbana. Rampas e escadarias estabelecem ligações com ruas a diferentes níveis. 545
A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL:
DESENVOLVIMENTOS RECENTES*

MANUEL C. TE!XEIR/1
Instituto Superior de Ciências do Ti·abalho e da Empresa
da Universidade de Lisboa

* Este texto foi publicado na revista Análise Social, Lisboa, vol. XXV!TI (121), 1993.
Apesar da sua cultura urbana bastante rica, a história da cidade é um campo de estudo
pouco desenvolvido em Portugal. A história urbana portuguesa apresenta um atraso de
anos relativamente a historiografias europeias ou americanas. O quadro de conhecimentos
é ainda muito fragmentado, existem inúmeros vazios por preencher e é, provavelmente,
prematuro tentar identificar minuciosamente as diferentes ênfases, novas direcções ou ten-
dências na história urbana portuguesa.
Na segunda metade do século XIX, verificou-se um desenvolvimento significativo da
história local. Cada região e cada cidade tinham os seus próprios historiadores locais, e
durante muito tempo a história das vilas e das cidades permaneceu domínio destes inves-
tigadores, os quais, apesar de só muito raramente terem a formação de historiadores e de
muitas vezes lhes faltar método e rigor na investigação, geralmente, baseavam as suas
monografias na pesquisa exaustiva dos arquivos locais, tornando-as, assim, importantes
obras de referência. A maioria destes historiadores locais permaneceu isolada e não foi
capaz, ou não se mostrou interessada, em relacionar o estudo da sua cidade com o de
outras cidades, com o desenvolvimento geral do país ou com os grandes movimentos da
história, mantendo-se confinada no universo fechado da sua própria realidade.
Gradualmente, a história local foi abandonando este estatuto, mas só recentemente a
história da cidade se começou a desenvolver de forma mais sistemática. Existem sinais de
que a situação está a mudar: um crescente interesse pela história, um aumento das activi-
dades de investigação e um maior número de publicações neste domínio significam que a
historiografia portuguesa está a evoluir rapidamente. Apesar disso, actualmente, apenas
um pequeno número de obras publicadas se pode classificar sem quaisquer ambiguidades
no domínio da história urbana.
Um tipo de história local que se tem desenvolvido recentemente tem sido a publica-
ção de colecções de monografias ou guias dedicados a diversas cidades ou outros conjuntos
urbanos. Embora com objectivos mais genéricos, respondendo a um crescente interesse
social pelo conhecimento e preservação do património, alguns destes estudos têm um
interessante carácter documental no que se refere à história urbana. Estão neste caso os
estudos de Vieira Caldas e Varela Gomes sobre Viana do Castelo ou de Fernandes Pereira
sobre Óbidos 1 •

1
J. Vieira Caldas e P. Varela Gomes, Viana do Castelo (Lisboa, 1990), e José Fernandes Pereira, Óbidos
(Lisboa, 1989). Outros volumes nesta mesma série incluem R. Henriques da Silva, Cascais (Lisboa, 1989), e José
Manuel Fernandes, Angnt do Heroísmo (Lisboa, 1989). 549
UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

Paralelamente, tem continuado a produção de textos por historiadores locais, em acima referidas, em Lisboa, Porto e Coimbra, têm centros de investigação de história, mas
muitos casos beneficiando do apoio de instituições locais, que vêm suprindo as carências a sua preocupação com a história urbana é muitas vezes apenas ocasional. O Centro de
de informação em relação a muitos aglomerados urbanos. Entre muitos trabalhos modes- Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa é o centro de investigação universid-
tos de história local podem encontrar-se alguns trabalhos com valiosa investigação histó- ria com maior actividade no campo da história urbana. Em anos recentes tem vindo a
rica. Mas muitas vezes os problemas da história local oitocentista - falta de rigor teórico coordenar investigações e a publicar alguns livros sobre o tema da história das cidades.
e de sólidas bases metodológicas, deficiente referenciação, apresentação desorganizada Outra instituição activa neste campo é o Centro de Estudos Geográficos da Universidade
ainda permanecem. Mesmo assim, estes trabalhos constituem fontes de informação pre- de Lisboa. A sua revista Anisterra, fundada em 1966, tem publicado consistentemente ao
ciosas para o estudo de mui.os conjuntos urbanos. As câmaras municipais das principais longo dos anos textos de geografia urbana, alguns deles com uma perspectiva histórica. De
cidades têm também continuado a apoiar estudos de história local ou a subsidiar a sua qualquer forma, a história urbana permanece uma área de estudo menor. Mesmo em cen-
publicação, quer através de livros quer através de revistas municipais especializadas. tros de investigação onde predominam as ciências sociais, só muito recentemente e de uma
A Câmara Municipal do Porto é um exemplo deste tipo de actuação, concedendo subsí- forma tímida a história urbana tem vindo a ser encarada.
dios à publicação de alguns estudos locais e editando duas revistas de conteúdo histórico: Neste contexto académico, não é de estranhar que também não existam publicações
o Boletim Cultural, produzido pelo arquivo histórico da cidade, onde se incluem artigos periódicas dedicadas exclusivamente à história urbana. Verifica-se, apesar de tudo, um
relacionados com a história da cidade, e os Documentos e Memórias para a Cidade do Porto, interesse crescente pela história em geral, e desde os finais dos anos 70 que começaram a
uma publicação periódica que consiste em transcrições de documentos antigos. A Câmara ser publicadas algumas revistas dedicadas à história, quer ligadas a universidades quer in-
de Lisboa tem também mantido um papel idêntico na promoção do estudo da história da dependentes. De entre elas refiram-se a Revista de História Económica e Social, que se ini-
cidade: até recentemente através de uma actividade editorial própria e através da sua Revis- ciou em 1978, e Ler História, que começou a publicação em 1983, e que ocasionalmente
ta Municipal, privilegiando agora o subsídio a publicações. Quer no Porto quer em Lisboa, publicam textos sobre história urbana.
existem gabinetes de investigação integrados na estrutura municipal dedicados ao estudo Os historiadores urbanos são ainda em número reduzido, e muitos dos que escrevem
das respectivas cidades; destaque-se, no caso de Lisboa, o Gabinete de Estudos Olissipo- sobre a história das cidades fazem-no incidentalmente, como parte dos seus interesses
nenses. Outras municipalidades tomaram iniciativas idênticas de promoverem o estudo históricos mais !atos. Referências e dados sobre a história das cidades tendem a emergir na
das suas cidades, e é a este nível local que se podem encontrar muitos recursos ainda não obra de historiadores sociais, políticos ou económicos, como é o caso de José Mattoso e
explorados da história urbana portuguesa. Oliveira Marques, medievalistas, que se têm ocupado da cidade medieval em algumas das
O patrocínio da história local por parte dos municípios não é extensivo à manuten- suas obras.
ção dos arquivos municipais, que permanecem mal organizados. Para além dos arquivos A investigação na área da história urbana tem também sido levada a cabo por inves-
nacionais e das bibliotecas nacional e municipais, os arquivos municipais constituem as tigadores de outras disciplinas, os quais, embora permanecendo dentro dos seus campos
principais fontes de informação primária para o estudo da história urbana. Infelizmente, de estudo específicos, têm procurado uma perspectiva temporal para os seus trabalhos.
não existe um guia geral destes arquivos e em muitos deles ainda se encontra um volume Trata-se, nestes casos, de geógrafos, sociólogos, economistas ou arquitectos que têm reflec-
considerável de materiais por classificar. Esta situação é particularmente grave no que se tido e produzido trabalhos sobre a cidade com uma importante componente histórica.
refere à documentação cartográfica e iconográfica. Não existe nenhuma instituição encar- A identificação da cidade como um tema de análise desenvolveu-se primeiro nestas
regada da catalogação e estudo da cartografia que se encontra dispersa por bibliotecas, disciplinas, não na história. Partindo de uma perspectiva contemporânea, os investigado-
arquivos nacionais e municipais, museus e colecções particulares, sem qualquer índex ou res destas disciplinas procuraram introduzir uma dimensão temporal nos seus trabalhos.
guia que permita a sua identificação. Os geógrafos têm tido um papel relevante no estudo dos fenómenos urbanos, quer da
No que respeita ao treino académico de historiadores urbanos, não existem cursos ao cidade contemporânea quer do seu passado histórico; os geógrafos adaptaram muitas ve-
nível de licenciatura ou de mestrado em história urbana. A história é ensinada em quatro zes a posição de que a compreensão da cidade moderna só se rorna credível se incluir
universidades estatais - duas em Lisboa, uma no Porto e uma em Coimbra - e no também os processos históricos que a moldaram. Daí o seu interesse em enveredarem pela
mesmo número de universidades privadas. Todas as universidades estatais têm uma especia- investigação histórica e a admissão de historiadores nas suas equipas de investigação. Al-
lização em história de arte e três delas uma especialização em arqueologia, mas nenhuma guns sociólogos e economistas também deram aos seus estudos uma perspectiva temporal,
em história urbana. Correspondentemente, não existem instituições de pesquisa, públicas bem como os arquitectos, que sempre mostraram interesse pelo passado urbano. Contu-
550 ou privadas, especializadas no estudo da história urbana. As quatro universidades públicas do, a abordagem dos arquitectos tem sido principalmente relacionada com o estudo da 551
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUF:S A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

forma - o desenho de cidades ou de conjuntos urbanos, a morfologia dos espaços, as cidade romana em Portugal e a sua resenha de investigações recentes levadas a cabo neste
tipologias do edificado-, muitas vezes descurando as pessoas que habitavam esses espa- domínio.
ços ou os processos sociais que lhes deram origem. A ocupação sueva e visigótica do século v ao século vrn resultou no declínio da vida
Dada a origem disciplinar da maioria dos investigadores urbanos e o seu interesse urbana e mesmo no abandono de algumas cidades. A partir do século vrn assiste-se a uma
particular por questões contemporâneas, não é de estranhar que a investigação urbana em nova fase de expansão urbana, com os muçulmanos, que vão permanecer em Portugal até ao
Portugal se tenha concentrado principalmente sobre os séculos XIX e X)'.. Para alguns, a século XIII. A rede de cidades estabelecida pelos romanos foi revitalizada, e com elas a vida
dimensão histórica é apenas um prefácio à sua principal área de estudo, e nestes casos a urbana. Algumas cidades, particularmente cidades portuárias, tiveram então um considerá-
abordagem histórica da ckdack torna-se quase uma questão de ritual antes de se envolve- vel desenvolvimento, especialmente no Sul, onde a presença muçulmana foi mais prolonga-
rem no que realmente os preocupa. Apesar de tudo, a investigação histórica de aspectos da da. A sua presença está ainda hoje fortemente marcada no desenho urbano e na estrutura
vida urbana a partir de várias perspectivas disciplinares tem sido extremamente informati- viária de Silves ou de algumas zonas de Lisboa. Contudo, o significado da cidade muçulma-
va, constituindo uma base a partir da qual se podem vir a desenvolver estudos mais siste- na para a cultura urbana portuguesa e a sua importância para a caracterização formal de
máticos. Por vezes, estes estudos são suficientemente sólidos, quer do ponto de vista teó- algumas das nossas cidades têm sido bastante esquecidos. Duas excepções são o estudo, j,í
rico quer metodológico, para merecerem o título de história urbana. antigo, de Jorge Gaspar, que analisa as principais características espaciais da cidade muçul-
Adaptaremos, pois, um conceito alargado de história urbana, incluindo nela todos os mana, e, mais recentemente, um trabalho de Oliveira Marques que se ocupa, ainda que
estudos que, independentemente da perspectiva disciplinar e da formação, ou ausência de brevemente, da permanência de alguns traços da presença muçulmana em Lisboa4.
formação, do investigador, se ocupam do estudo da cidade numa perspectiva histórica. Após a conquista cristã, o sistema urbano foi reorganizado. Enquanto algumas cida-
Embora não exaustivamente, pretende-se dar um panorama das principais áreas de estudo des decaíram, outras foram revitalizadas através do repovoamento, da reestruturação da
e abordagens à história urbana portuguesa nos últimos anos. vida monástica e eclesiástica e através da reorganização das actividades mercantis. Novas
A história da cidade em Portugal pode recuar até aos castras de origem celta, que cidades de fronteira, tais como Monsaraz e Redondo, ambas no Alentejo, com caracterís-
culminavam os topos das colinas, habitados por pastores e agricultores. Alguns destes ticas urbanas idênticas às bast-ides, foram fundadas nos finais do século XIII por D. Dinis.
locais, estrategicamente importantes, viriam a ser as bases para a fundação de cidades ro- As características morfológicas destas cidades medievais planeadas foram estudadas por
manas após o século II a.C. As marcas do planeamento urbano romano são ainda evidentes Jorge Gaspar 5 , enquanto o papel destas cidades novas na defesa dos territórios recente-
nalgumas cidades, como é o caso, entre outras, de Beja, Santarém ou Chaves. Contudo, mente conquistados e as características da rede urbana medieval são analisadas por João
esta é uma área de estudo que permanece algo negligenciada, sendo poucos os investigado- Garcia no seu estudo do espaço medieval do Sul de Portugal 6 • Ao mesmo tempo, isto é, a
res que recentemente têm dedicado a sua atenção aos castras ou à cidade romana em partir de finais do século XIII, procedia-se à renovação de outras cidades, quer através da
Portugal. De entre eles refira-se o trabalho de Ferreira da Silva sobre a cultura castreja, os construção de novas cinturas de muralhas, quer através da sua reestruturação e do planea-
estudos de Gil Mantas sobre os castras e a cidade romana, particularmente o seu trabalho mento de novas expansões, como foi o caso de Lisboa.
sobre o uso da fotografia aérea no estudo da arqueologia urbana, e o trabalho de Irisalva A Idade Média é um dos períodos da história urbana portuguesa que têm sido inves-
Moita e Cristina Leite, que analisa recentes teorias sobre a estrutura urbana da Lisboa tigados mais intensamente. Oliveira Marques tem mantido um interesse constante pela
romana 2 • Importante é a síntese de Jorge Alarcão 3 sobre os povoados pré-romanos e a história da cidade medieval e os ensaios, orientações metodológicas e listas de fontes que
tem publicado são de leitura essencial para quem quer que se interesse pela cidade rnedie-
2
Armando Coelho E. da Silva, A Cultura Castreja no Noroeste de Portugal (Paços de Ferreira, 1986); Vasco Gil vaF. De José Mattoso destaquem-se particularmente as suas reflexões sobre os conceitos de
Mantas, «As primitivas formas de povoamento em Porrugal», in Povos e Gtlturas, 2 (1987), 13-55, e «Arqueologia
urbana e fotografia aérea. Contributo para o estudo do urbanismo antigo de Santarém, Évora e Faro», in Ti-aba!hos
de Arqueologia, 3 (1986), 13-26, e lrisalva Moita e Ana Cristina Leite, «Recuperar Lisboa a partir de Olisípo. 4 Jorge Gaspar, «A propósito da originalidade da cidade muçulmana», in Finisterra, 5 (1968), 19-31, e

Possibilidades e limitações», in Tiubalhos de Arqueologia, 3 (1986), 55-67. Sobre os castras, v. também José Augusto A. H. de Oliveira Marques, «A persistência do elemento muçulmano na história de Portugal após a "reconquis-
Maia Marques, «Assentamentos castrejos do concelho de Monção», in Revista ele Ciências Histórict1s, vol. 2 (1987), ta": o exemplo da cidade de Lisboa», in Novos Ensttios de História Medieval (Lisboa, 1988), 96-107.
77-120; sobre a relação da arqueol0gia com a história urbana, Jorge Rodrigues e Paulo Pereira, «Algumas perspccti- 5 Jorge Gaspar, «A morfologia de padrão geométrico na Idade Média», in Finistenu, vai. IV, 8 (1969),

vas de intervenção arqueológica na vila do Crato», in Tiubt1lhos de Arqueologit1, 3 (1986), 115-126. 1931.
3
Jorge Alarcão, «A cidade romana em Portugal: a formação de "lugares centrais" cm Portugal, da Idade do 6
João Carlos Garcia, O Espt1ço lvfedieual dt1 Reconquista no Sudoeste da Penínsult1 Ibérica (Lisboa, 1986).
Ferro à romanização», in Cid11c!es e História (1992), 35-70, «A cidade romana em Portugal: renovação urbana em 7
A. H. de Oliveira Marques, Guia do Estudante de História lvfedieval Portuguesa (Lisboa, 1988), Novos
Portugal na época romana», in Cidt1des e História (1992), 73-127, e também o estudo pioneiro Portugal Roma110 Ensaios de História Medieval Portuguesa (Lisboa, 1988), e «Cidades medievais portuguesas (algumas bases
552 (Lisboa, 1973). metodológicas gerais)», in Revista de Histó1'Ítl L'co11ómica e Social, 9 (1982), 1-16. 553
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

cidade e sobre a relação entre a cidade medieval e o poder, questões abordadas no ciclo de como a riqueza do império colonial teve expressão nas nossas cidades é uma área de inves-
conferências Cidades e Históritz 8 • Sob a orientação de Oliveira Marques, o Centro de Estu- tigação que apenas agora se está a desenvolver. Teresa Câmara incide sobre este tema,
dos Históricos da Universidade Nova de Lisboa publicou recentemente o Atlas de Cidades analisando o modo como as reformas urbanas renascentistas se reflectirarn no tecido urba-
Medievais Portuguesas9• O adas consiste no estudo comparativo de dezanove cidades, ca- no de Óbidos nos séculos XVI e XVIl 12 . Os arquivos de igrejas e de ordens religiosas, grandes
racterizando a sua população, estruturas económica e social e estrutura de propriedade, proprietárias fundiárias em muitas cidades, constituem importantes fontes de informação
administração municipal, organização militar, religião, cultura, salubridade e característi- que foram exploradas por Ana Maria Rodrigues para o seu estudo sobre a estrutura econó-
cas morfológicas básicas sintetizadas numa planta esquemática. mica e espacial de Torres Vedras no século XV e por Ângela Beirante no trabalho sobre o
Outros trabalhos, origtnalihente dissertações de mestrado ou de doutoramento, têm crescimento urbano, morfologias e transformações na estrutura económica e social de
também vindo a ser publicados. De entre estes refira-se o trabalho de Ângela Beirante, onde Santarém quinhentista 13 •
nos é apresentado um panorama da vida municipal, estrutura social e crescimento urbano de Por vezes, exposições temáticas e os seus catálogos constituem importantes fontes de
Santarém entre os séculos XIII e XV, o estudo de Rira Gomes sobre o desenvolvimento urbano informação e suprem algumas carências de investigação. Este é o caso de Lisboel Quinhen-
e a estrutura social da Guarda, a análise de Ponte de Lima medieval de Amélia Andrade ou a tista, a Imagem e a Vida da Cidade, catálogo de uma exposição organizada pela Câmara
investigação de Vasconcelos e Sousa sobre a estrutura de propriedade de instituições de assis- Municipal de Lisboa, em que, em três curtos ensaios, nos é dada uma síntese das principais
tência em Évora nos séculos XIV e XV e o seu papel no desenvolvimento e na estrutura da características do espaço urbano e da sociedade de Lisboa no século xv1 14 . Outro trabalho
cidade 10 • Estes estudos são parte de um maior volume de investigação histórica que tem relevante sobre a cidade de Quinhentos é a investigação de Renata de Araujo, que nos
vindo a ser realizada em vários contextos académicos e que reflecte as mudanças que ocorre- mostra como o espaço urbano de Lisboa funcionava corno palco e era também parte inte-
ram na historiografia portuguesa na última década. A anterior escassez de estudos de história grante de festividades profanas e religiosas quinhentistas 15 . Num registo completamente
económica e social e de história urbana tem vindo a ser substituída por uma produção mais diferente Teresa Rodrigues investiga questões de saúde pública e ambiente urbano, focando
regular deste tipo de estudos, particularmente no que se refere à história medieval1 1 , 0 que as condições sanitárias da cidade no século }.'VI 16 .
não impede que o panorama seja ainda bastante fragmentado. O urbanismo colonial é um vasto campo de investigação ainda pouco explorado.
As descobertas marítimas dos séculos XV e XVI deram origem a urna nova fase de Urna componente essencial da política portuguesa de controlo das rotas marítimas e dos
desenvolvimento urbano. As cidades portuárias foram aquelas que mais beneficiaram da territórios coloniais foi a construção, a partir do século XV, de fortes, feitorias e cidades ao
expansão do comércio, tendo o reinado de D. Manuel I sido particularmente importante longo das costas de África, Brasil, Índia e do Extremo Oriente. Estas implantações urbanas
para a transformação de Lisboa. Para além de Lisboa, o Porto, Setúbal, Aveiro ou Viana do exibem uma variedade de influências, de modelos e de referências formais, quer vernaculares,
Castelo são exemplos de outras cidades portuárias que se expandiram ou que foram pro- quer eruditos, alguns de raiz portuguesa, outros de origem local, existindo um imenso
fundamente reestruturadas no decorrer dos séculos XV e XVI. Cidades do interior, como trabalho de investigação ainda por realizar nesta área. Só recentemente, com o início das
Óbidos, Beja, Évora ou Braga, foram também objecto de reformas neste período. Contu- comemorações dos quinhentos anos dos Descobrimentos, se renovou o interesse pelo terna

do, são ainda poucas as pesquisas realizadas sobre estas transformações urbanas: o modo da cidade colonial, tendo-se iniciado alguns projectos de investigação, embora os traba-
lhos publicados daí resultantes sejam ainda raros. Uma referência clássica nesta área de
8 estudo continua a ser o trabalho de Mário Chicó, muito citado desde a sua publicação, em
José Mattoso, «Introdução à história urbana: a cidade e o poder», in Cidade e Histdrirz (1992), 9-20,
«A cidade medieval na perspectiva da hisrória das mentalidades», in Cidades e História (1992), 21-33, e também
«A cidade de Leiria na história medieval de Portugal», in Ler História, 4 (1985), 3-18.
9
A. H. de Oliveira Marques, Iria Gonçalves e Amélia Aguiar Andrade, Atlm de Cidades NfedievtlÍs Portu- 12 Teresa B. Câmara, Óbidos, Arquitectura e Urbanismo (Óbidos, 1989).
guesas (Lisboa, 1990).
13 Ana Maria Rodrigues, «O domínio rural e urbano da colegiada de São Pedro de Torres Vedras no final
"'Maria Ângela Beirante, Santarém Nfedieval (Lisboa, 1980); Rita Costa Gomes, A Gua1dr1 /11edieval, 1200-
do século XV», in Revista ele Hístdria Econdrnica e Social, 17 (1986), e Maria Ângela V. da R. Beirante, Santarém
-1500 (Lisboa, 1987); Amélia A. Andrade, Um Espaço Urhano Medieval.- P011te de Lima (Lisboa, 1990), e Bernardo
Quinhentista (Lisboa, 1981).
V.1sconcelos e Sousa, A Propriedade das Albergarias de Evora nos Finaú da idade Média (Lisboa, 1990).
11 Neste contexto, v. os trabalhos recentemente p,1blicados de Amélia Aguiar Andrade, «Um percurso " lrisalva Moita, «A imagem e a vida da cidade», Fernando António Pereira, «Atitudes e mentalidades», e
Paulo Pereira e Ana Cristina Leite, «Espiritualidade e religiosidade na Lisboa de Quinhentos», in Lisboa Qui-
através da pa1s:gem urbana medieval,,, in Povos e Cu!turrts, 2 (1987), 57-78; Maria Ângela V da R. Beirante,
nhentista, ed. Irisalva Moita (Lisboa, 1983), 9-41.
O A!ente_;o /lrt Seg1mda Metade do Século XIV (Porto, 1986), Sérgio Luís Carvalho,
15 Rena ta de Araujo, Lisboa, a Cidade e o Espectdculo na tpoert dos Descobrimentos (Lisboa, 1990).
Uma Introdução ,10 Seu Estudo (Lisboa, 1989), Iria Gonçalves, I'ostums Municipais e Vida UrbaJl(l lltl Brtixa Idade 16
Teresa Rodrigues, Crises de Morta/ir/ade em Lisboa. Séculos XVI e XVII (Lisboa, 1990), e Teresa Rodrigues,
Média: o.Exemplo de Lisboa (Porto, 1986), Iria Gonçalves, Imagens doA1unrlo lvledieVLll (Lisboa, J 988), e Fernandes
Rita Andersen e Vera Ortigão Ramos, Para o Estudo das Pestes e Epidemias na Lisboa Quinhentista (Ferreira do
Hermenegildo, Uma Círlade 110 lmagiwírio: Lisboa A1uçulillfma 11r1s Descrições de Idrisi e de Ramdfó de Gmnville
554 (Porto, 1986). · Zêzere, 1986). 555
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1956, gue trata da influência dos traçados ideais das cidades renascentistas na estrutura do iluminismo setecentista22 • Sobre este período da história de Lisboa também se debruça Luís
urbana de cidades portuguesas construídas na Índia 17 • De entre os estudos publicados Madureira, integrando a sua abordagem do espaço urbano numa reflexão mais lata sobre os
mais recentemente destaca-se o trabalho de Ilídio do Amaral, que sintetiza as principais quotidianos da cidade na segunda metade do século XVIIl, princípio do x1x25. Incidindo ainda
características geográficas das cidades coloniais construídas pelos portugueses na costa atlân- sobre Lisboa, o catálogo da exposição Lisboa e o Marquês de Pombal 24, organizada em 1982, é
tica nos séculos XV e XVI e o seu papel na nova ordem mundial que havia resultado do uma importante obra de referência pela riqueza de informação e de material gráfico que con-
18
movimento das «descobertas» • As características fundamentais do urbanismo colonial tém, resultado de uma investigação cuidada. O planeamento urbano setecentista, em particular
português foram analisadas por Madeira Rodrigues, em relação ao Brasil particularmente, as relações entre o poder político e o urbanismo, é o tema da dissertação de Horta Correia25,
enquanto Manuel Teixeir~, investiga os modelos de referência das cidades coloniais portu- que toma por referência Vila Real de Santo António, outra cidade reconstruída pelos arquitec-
guesas que, na sua perspectiva, incluem a cidade muçulmana, as cidades planeadas da tos de Pombal, após o terramoto de 1755, com um plano regular.
19
Idade Média e os modelos eruditos renascentistas • Uma obra de referência fundamental Na segunda metade do século xvm a expansão urbana da cidade do Porto foi também
para o estudo do urbanismo colonial é o atlas de cartografia e de iconografia das cidades levada a cabo recorrendo aos mesmos princípios urbanísticos e legais que haviam sido desen-
portuguesas ultramarinas organizado por Luís Silveira20 . Concentrando-se na análise das volvidos e aplicados na reconstrução de Lisboa. As principais fases e as características
morfologias urbanas, apesar da falta de um estudo comparativo dos exemplos recolhidos, morfológicas da urbanização setecentista do Porto são examinadas por Mandroux-França26;
é um trabalho valioso e a única obra de síntese neste domínio. Outros estudos que se sobre o mesmo tema, Ferreira Alves investigou detalhadamente as obras públicas executadas
ocupam das cidades coloniais em períodos históricos mais recentes, focando as suas dinâ- na cidade durante as administrações dos Alma das, governadores do Porto entre 1757 e 1804 27 •
micas de desenvolvimento, incluem o trabalho de José Venâncio sobre a cidade de Luanda Uma parte inovadora desta investigação é dedicada ao estudo dos arquitectos envolvidos nas
no século XVIII, a investigação de Ilídio do Amaral sobre a urbanização de Angola e a obras, aos vários tipos de trabalhadores e à organização do sector da construção no Porto do
investigação de Clara Mendes sobre Maputo 21 • século xvm. Bernardo Ferrão estudou também as transformações urbanas do Porto entre
Os desastres naturais parece exercerem um fascínio sobre os historiadores urbanos 1758 e 1813, sob os Almadas 28 , ainda que baseado apenas em fontes secundárias.
em muitos países. Portugal não é excepção. O terramoto de 1755 e a reconstrução da As comunicações apresentadas na conferência «O Porto na época moderna» dão-nos
cidade que se seguiu são o motivo para um renovado interesse pela história urbana. De uma leitura global da vida e da estrutura da cidade entre os séculos XVI e XVIII, ao mesmo
facto, a segunda metade do século XVIII constituiu um pomo de viragem no urbanismo tempo que nos oferecem uma perspectiva do desenvolvimento entre nós de alguns temas
português. O plano de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel para a reconstrução da Baixa importantes da história urbana. A análise dos ciclos de construção no século XVIII, de José
de Lisboa é um exemplo importante do urbanismo europeu setecentista e tornou-se o Marques e Alberico Tavares, e a investigação de José Marques sobre as propriedades reais
modelo para outras intervenções urbanas, quer em Portugal, quer nas colónias, nomeada- no Porto e o seu papel no desenvolvimento urbano da cidade; a investigação de Baquero
mente no Brasil. Este plano, construído sob a égide do marquês de Pombal, foi objecto de Moreno sobre a manutenção da ordem pública na cidade; o estudo demográfico de Cân-
vários estudos. Pioneiro entre eles é a investigação de José Augusto França sobre o planea- dido dos Santos sobre o Porto no antigo regime ou o trabalho de Maria Adelaide Meireles
mento e a arquitectura da reconstrução de Lisboa, que são interpretados como expressões sobre a cultura literária da sociedade de Setecentos29 são exemplos de linhas de investiga-

22 José Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo (Lisboa, 1966) e A Recowtrução de Lisho,1 e rt

Arquitectura Pombalina (Lisboa, 1978). Para uma síntese da evolução urbana de Lisboa, v., de José Augusto
17
Mário T. Chicó, «A cidade ideal do Renascimento e as cidades portuguesas da Índia», in Garcia de Orta, França, Lisboa.· Urbanismo e Arquitectura (Lisboa, 1980).
número especial (1956), 319-328. 23 Nuno Luís Madureira, Cidade: Esp,zço e Quotidiano (Lisboa, 1992).
18 24 Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa e o Marquês de Pombal (Lisboa, 1982).
Ilídio Peres do Amaral, «Cidades coloniais portuguesas (notas preliminares para uma geografia históri-
ca)», in Povos e Culturas, 2 (1987), 193-214. 25 José Horta Correia, «Vila Real de Santo António. Urbanismo e Poder na Política Pombalina» (disserta-

'" Maria João Madeira Rodrigues, «Olinda e Recife, uma situação de bipolaridade no urbanismo colonial ção de doutoramento em História de Arre, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1984, policopiado).
português», in Boletim da Awdemia Nacional de Belas-Artes, I (1979), 67-94, e Manuel Teixeira, «Porruguesc Marie-Therese Mandroux-França, «Quatro fases da urbanização do Porto no século A'VIII», in Boletim
tradirional serrlements, a result of cultural miscegenarion», in lraditional Dwellings and Settlement; ReZJiew, Cultural da Câmara Municipal do Porto, 2 (1984), 239-274.
vol. l, 2 (1990), 23-24. 27 Joaquim Ferreira Alves, O Porto na Época dos Almad,zs (Porto, 1988).

.'« Luís Silveira, Ewaio de lco.norm/.1a dm Cidades 1w·turues,a; 1/0 Ultmmar (Lisboa, s.d.). "Bernardo José Ferrão, Projecto e Transjàrmação Urbana do Porto na Época dos Abnadas, 1758-1813 (Por-
21
José Carlos Venâncio, «Espaço e dinâmica populacional em Luanda no século XVIII». in ReZJista rle to, 1989).
História Económica e Social, 14 (1984), 67-89; Ilídio Peres do Amaral, «Contribuição para o conhecimento do 29 José Marques e Albcrico Tavares, «Rirmos de construção civil no Porto do século XVIII», in ReZJislit de

fenómeno de urbanização de Angola», in Finisterra, 25 ( 1978), e Maria Clara Mendes, A1aputo antes da lndepm- História, vol. III (1980), 39-52; José Marques, «Património régio na cidade do Porto e seu termo nos finais do
556 dência. Geografia rle Uma Cidade Colonút! (Lisboa, 1985). século XV», in Revista de História, vai. III (1980), 73-97; Humberto Baquero Moreno, «A manutenção da ordem 557
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

ção inovadoras, relacionadas com a estrutura social e a economia urbanas, que seria inte- As condições que deram origem à forma e à localização ela habitação operária no Porto
ressante ver retomadas em relação a outras cidades portuguesas 30 . no século xrx foram identificadas por Manuel Teixeira, baseado numa investigação ele regis-
A industrialização portuguesa foi tardia e principalmente concentrada em Lisboa e tos prediais e notariais, enquamo a caracterização das formas de habitação popular oitocentista
no Porto. Os efeitos da industrialização nestas duas cidades sentiram-se com maior inten- em Lisboa havia já sido tema de investigação de Madeira Rodrigues no contexto transfor-
sidai"fe a partir da segunda metade do século XIX e constituem um catálogo de problemas mações urbanas da cidade na segunda metade do sécuJol.l. O papel das infra-estruturas de
comuns a outras cidades oitocentistas e familiares aos historiadores urbanos: crescimento transporte no desenvolvimento e na estruturação das cidades oitocentistas foi discutido por
da população urbana e aumento das densidades populacionais e habitacionais, desenvolvi- Barata Salgueiro e por Lopes Vieira em relação a Lisboa3". No final do sééulo XIX o de
mento de soluções de habit.i.çãcr precária e sobreocupação de espaços residenciais, zonas Ressano Garcia para a expansão urbana de Lisboa foi a expressão portuguesa das ideias refor-
urbanas degradadas e más condições sanitárias. mistas que desde meados do século tinham inspirado vários planos para a expansão e
A segunda metade do século XIX correspondeu a um acelerado processo de urbaniza- reestruturação de cidades europeias. O plano de Ressano Garcia tem sido objecto de vários
ção em Portugal. Em 1864 a população que vivia em áreas urbanas de mais de 2000 estudos. De entre eles refira-se o trabalho de Raquel Henriques da Silva, que trata das princi-
habitantes era apenas 10,4% da população total do país, em 1900 essa percentagem era de pais questões relacionadas com o desenvolvimento da cidade de Lisboa no século ainda
14,7% e em 1940 atingia l 7,9\¼i 31 . Para além disso, acentuou-se a forte polarização da que por vezes sem a profundidade que o tema justifica. Dois catálogos de exposições, Lisboa
rede urbana portuguesa: duas grandes cidades, Lisboa e Porto, com uma população global Oitocentista (1976) e Lisboa de Frederico Ressano Garcia, 1874-1909 (l 989) 36, dão-nos uma
correspondendo a cerca de metade da população urbana do país, dominam a hierarquia visão concisa, ainda que necessa-riamente superficial, sobre este tema. Apesar disso, qualquer
urbana, seguidas p~r um conjunto de cidades bastante mais pequenas, muitas das quais no destes estudos contém preciosos elementos de referência. Embora Lisboa a cidade mais
limite de se poderem considerar urbanas. estudada, uma investigação sistemática de Lisboa oitocentista a partir de diferentes perspecti-
Existe um maior número de estudos sobre este período do que sobre qualquer outro vas disciplinares e utilizando diversas metodologias de investigação ainda continua por fazer.
período da história urbana portuguesa, a maior parte deles focando as cidades de Lisboa e As políticas urbanas do Estado Novo têm sido investigadas fundamentalmente por
do Porto, onde foi maior o impacte do desenvolvimento urbano. Verifica-se também uma sociólogos, geógrafos e arquitectos. Entre outros, Matias Ferreira adopta uma perspectiva
maior variedade de abordagens disciplinares: para além dos historiadores, encontramos sociológica para em vários dos seus trabalhos identificar os processos de organização espa-
geógrafos, economistas, sociólogos e arquitectos debruçando-se sobre a cidade industrial e cial e diferenciação social em Lisboa ao longo do século xx·"; Nunes da Silva faz uma
os fenómenos associados ao crescimento urbano. A análise demográfica constituiu a base
para o estudo de Magda Pinheiro sobre o crescimento urbano das cidades portuguesas no
33 Manuel Teixeira, «Do entendimento da cidade à intervenção urbana. O caso das "ilhas" da cidade do
século XIX, bem como para a investigação, mais detalhada, de António Ravara sobre os Porto», in Sociedade e Território, 2 (1985). 74-89; Maria]. Madeira Rodrigues, «Ti·adição, transiçfo e mudança.
padrões de crescimento de Lisboa e do Porto na segunda metade do século e o estudo de A produção do espaço urbano na Lisboa oitocentista», in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisbot1
(1978), 3-96.
Rui Cascão sobre a Figueira da Foz 32 . 34 Teresa Barata Salgueiro, «Os transportes no desenvolvimento das cidades portuguesas» (1987), in Povos

e Culturas, 2 (1987), 113-114, e António Lopes Vieira, Os lí,wsportes Públicos de Lisboa entre 1830 e 1910
(Lisboa, 1982). Outras abordagens dos processos de transformação urbana oitocentista são o estudo de Manuel
L. Real e Rui 1,wares, «Bases para a compreensão do desenvolvimento urbanístico do Porto,,, in Povos e Cultums,
pública no Porto quatrocentista", in Revista de História, vol. II (1979), 365-373; Cândido dos Santos, «Alguns 2 (1987), 389-417, e o estudo sumfoo das principais características urbanas de Lisboa na passagem do século, de
aspectos da demografia portuense durante o antigo regime», in Re11istct de História, vol. II (1979), l 49-157, e Teresa Barata Salgueiro e João Carlos Gareia, «Lisboa nos fins do século XIX. Geografia de uma transição», in
Maria de Azevedo Meireles, «A actividade livreira no Porto no século XVIII», in Re11ista de História, vol. XV Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro (Lisboa, 1988), 399-41 O; a renovação urbana do Porto no princípio deste
(1981), 7-22. século é tratada por Rui Tavares, «Da avenida da cidade ao plano para a zona central. A intervenção de Ilarry
.1u Para além dos tenrns já referidos, a econon1ia urbana) as infra-estruturas de transportes, a cartografia e Parker no Porto", in Boletim Cultural, vols. 3/4 (1985-1986), 261-324.
a iconografia foram outros temas abordados, nesta conferência, ilustrando a diversidade da história urbana 35
Raquel Henriques da Silva, «Do passeio público às avenidas novas. Percursos, imagens e factos da
[v. Arrnando de Castro) (,O Porto na transição para o sisten1a económico conten1porâneo•>, in Revista de Históritt, Lisboa oitocentista», in Revista de Histcíria Económica e Soci,t!, 23 (1988). 21-41. Sobre este terna, v. também o jJ
vol. II (1979), 105-118, A. Barbosa de Abreu, «A evolução da cidade do Porto e os sistemas de transportes», in referido trabalho de Maria J. Madeira Rodrigues, «Tradição, transição e mudança. A produção do espaço urbano
Revista de História, vol. IV (1981), 193-202, e Xavier Coutinho, «Subsídios para o estudo da iconografia e na Lisboa oitocentista», in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa (1978), 3-96.
urbanismo da cidade do Porto», in Re11ista de História, vol. IV (198 l ), 163-180J. 3" Academia Nacional de Belas-Artes., Lisboa Oitocentistc1 (Lisboa, 1976), e Raquel Henriques da Silva
3
' F. Marques da Silva, O Po11oamento da Metrópole através dos Censos, anexo III (Lisboa, 1971), 68. (ed.), Lisboa de Frederico Ressano Garcia, 1874-1909 (Lisboa, 1989) .
Magda Pinheiro, «Crescimento e modernização das cidades no Portugal oitocentista», in Ler História, 7
.1 Vítor Marias Ferreira, «A Lisboa do império e o Portugal cios Pequeninos: estrutma fundiária e política
20 (1990), 79-107; António Ravara, «O crescimento de Lisboa e do Porto na segunda metade do século XIX e urbana de Lisboa, anos de 1930-1940», in Análise Social, 77-78-79 (1983), 693-735. «Política fundiária e re-
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558 Foz na primeira metade do século XIX», in Revista de Histcíria Económica e Social, 15 (1985), 83-122. Império a Centro ela lvfetrópole (Lisboa, 1987). 559
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

análise geográfica dos principais factores determinantes da estrutura espacial de Lisboa entre trabalhos de Francisco Bethencourt, Ramada Curto e Teolinda Gerção 44 , os quais, utilizan-
1926 e 1974 e do papel do planeamento urbano no processo de diferenciação espacial da do fontes cartográficas e literárias, fazem incursões no imaginário de Lisboa, estabelecendo
cidade 38 • Uma outra abordagem a este mesmo tema é a análise de Fernando Gonçalves sobre pontes entre a cidade material e a cidade imaginada em piferentes momentos históricos.
a estrutura legal do planeamento urbano durante o Estado Novo e as características formais Finalmente, deverão ser referenciadas algumas obras de síntese no domínio da geo-
da cidade que daí resultaram 3 ~. Dada a ausência de investigação que ainda existe nalgumas grafia urbana que nos oferecem perspectivas globais sobre os processos de desenvolvimen-
áreas, mais uma vez são os catálogos de exposições que vêm preencher esses vazios. O catálo- to urbano em Portugal num quadro temporal bastante alargado. Estão neste caso a inves-
go da exposição Arte Portuguesa Anos Quarenta (1982) 40 é uma obra de referência necessária; tigação de Pereira de Oliveira sobre a evolução urbana e as morfologias urbanas da cidade
os estudos e a informação fa<11tuaf'. que nele se incluem constituem uma boa base de conheci- do Porto, o estudo de Soeiro de Brito sobre o desenvolvimento demográfico e espacial de
mento para a compreensão da história de Lisboa na primeira metade do século. Lisboa e o trabalho de Barata Salgueiro sobre a cidade em Portugal 45 . Este último estudo
Outros trabalhos que se podem incluir num conceito alargado de história urbana são debruça-se sobre um conjunto de questões fulcrais para a compreensão da realidade urba-
os estudos temáticos, que não se concentram num período histórico particular, mas adop- na portuguesa, incluindo a estruturação da rede urbana, a caracterização do processo de
tam antes uma perspectiva temporal mais lata, ou algumas abordagens disciplinares espe- desenvolvimento urbano e a sua periodização e a estrutura formal e funcional das cidades,
cíficas. Estão neste caso a síntese da evolução urbana de Braga realizada por Pires Oliveira, tornando-se uma obra de referência necessária para investigações mais aprofundadas no
Souto Moura e João ·Mesquita, em que a linha condutora do estudo é a relação entre a domínio da história urbana.
dimensão formal da cidade e os processos de desenvolvimento urbano, ou o trabalho de Esta breve panorâmica da recente investigação urbana em Portugal mostra que o
Ana Margarido sobre as morfologias urbanas de Leiria41 • Dois trabalhos que se debruçam trabalho até agora realizado tem sido irregular e que este campo de estudo está ainda
particularmente sobre questões arquitectónicas são o estudo de Helder Carita sobre as bastante por explorar. A história urbana em Portugal não se estabeleceu ainda como uma
tipologias dos edifícios e as morfologias urbanas do Bairro Alto, em Lisboa, desde o início disciplina autónoma, com o seu próprio corpo de ideias, metodologias e objectivos. Exis-
do seu desenvolvimento, no século XVI, até à actualidade, e a investigação de Teotónio tem problemas de definição de conteúdos e de objectivos: os termos de referência da histó-
Pereira sobre as tipologias de habitação colectiva em Lisboa do século XVII até aos anos 30 ria urbana e a unidade de análise, a cidade, permanecem imprecisos. A história urbana
42
deste século, relacionando-as com as sucessivas fases de crescimento da cidade . Ainda tende a ser vista ou como a história do desenvolvimento espacial de cidades ou de zonas
neste domínio, o Guia Urbanístico e Arquitectónico de Lisboa43 , embora não pretenda ser particulares de cidades, uma espécie de história da arquitectura ou do planeamento, ou
um trabalho de história urbana, é um bom guia da história das morfologias urbanas e das como história social, em que a cidade é entendida como o palco em que tais processos se
tipologias arquitectónicas de Lisboa. desenvolvem.
O simbolismo da cidade é uma dimensão de estudo que está ainda pouco investigada. Existe, portanto, um volume considerável de investigação a realizar sobre a história
A imagem da cidade revelada, quer nas estruturas materiais quer nas estruturas mentais, dos aglomerados urbanos portugueses. Longos períodos históricos com uma dimensão
isto é, a análise das múltiplas interacções entre as estruturas físicas da cidade - edifícios e urbana bastante rica quase não foram investigados, da mesma forma que temas específicos
espaços urbanos - e as suas expressões nas atitudes, valores e imagens reveladas nas fontes importantes para a com preensão da história urbana em Portugal não foram ainda suficien-
literárias e iconográficas, constitui uma vasta área de investigação a explorar. As comunica- temente explorados ou têm sido completamente ignorados. De entre as muitas questões a
ções apresentadas ao colóquio «O imaginário da cidade» constituem uma síntese de dife- que a história urbana portuguesa deveria dedicar maior atenção incluem-se, sem a preten-
rentes abordagens, necessariamente sumárias, a este tema. De entre elas destaquem-se os são de ser exaustivo, o estudo das estruturas sociais e económicas das cidades, a industria-
lização e o desenvolvimento de mercados de trabalho locais, a emigração e as característi-
cas dos movimentos da população urbana, os serviços e os equipamentos das cidades, a
"Carlos Nunes Silva, Planeamento Jvfunicipal e a Organi:mção do E,paço em Lisboa: 1926-1974 (Lisboa, 1987).
19
Fernando Gonçalves, «Urbanística à Duarte Pacheco», in Arquitectura, 142 (J 981 ), 20-37.
40
Fundação Calouste Gulbenkian, Os Auos 40 rltlArte Portuguesa (Lisboa, 1982).
41
Eduardo Pires de Oliveira, Eduardo Souto Moura e João Mesquita, Braga. Evolução da Ertrutura Urbana 44 Francisco Bethencourt, «Descrições e representações de Lisboa no século XVI», in O Imaginário da

(Braga, 1982), e Ana Paula Margarida, Leiria: História e Morfologia Urbana (Leiria, 1988). De referir também, Cidade (Lisboa, 1989), 117-130, Diogo Ramada Curto, «Descrições e represenra,·ões de Lisboa (l 600-50), ibid.,
como exemplo de um estudo temático, a investigação sobre os facrores de localização e a escolha do sítio da cidade 131-146, e Teolinda Gerçiio, «A cidade real e a cidade imaginada. Imagens de Lisboa em 1755 em textos portu-
portuguesa, de José Manuel Fernandes, «O lugar da cidade pormguesa», in Povos e Culturas, 2 (1987), 79-112. gueses e alemães do século X:Vlll», ibid., 179-208.
42 45 J. M. Pereira de Oliveira, O Espaço Urbano do Porto, Condições Natumis e Desenvolvimento (Coimbra,
Helder Carita, Bairro Alto. Tipologias e Modos Arquitectó11icos (Lisboa, 1990), e Nuno Teotónio Pereira,
Evolução das Formas de Habitação Plurifamiliar na Cidade de Lisboa (Lisboa, 1979). 1973); Raquel Soeiro de Brito, «Lisboa. Esboço geográfico», in Boletim Cu/tum/ da/unta Distrital de Lisboa, 82
560 43
Associação dos Arquitectos Porrngueses, Guit1 Urbanístico e Arquitectónico de Lisbot1 (Lisboa, 1987). (1976), 3-206, e Teresa Barata Salgueiro, A Cidt1de em Portugal (Porto, 1992). 561
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÉS A HISTÓRIA URBANA EM PORTUGAL

saúde pública e as condições de vida urbana, a habitação - incluindo quer as políticas res se podem compreender os grandes processos sociais, económicos e culturais da socieda-
quer as formas de habitação de vários estratos da população urbana, bem como mais de urbana. Este é o nível de investigação em que a história urbana portuguesa actual se
estudos sobre as morfologias e as tipologias urbanas e sobre a cultura urbana. Trata-se, sem encontra mais carenciado.
dúvida, de um vasto plano de trabalho a desenvolver. Estas considerações podem ser prematuras no contexto da actual situação da história
De facto, alguns destes temas estão já a ser desenvolvidos em projectos de pesquisa urbana em Portugal. Existem ainda grandes vazios no conhecimento de muitos aspectos
em curso. Mas existem outros problemas, de natureza metodológica e disciplinar, que da história urbana portuguesa e são necessários muitos mais estudos, quer cronologica-
necessitam de ser explorados urgentemente. A falta de investigações interdisciplinares, a mente quer disciplinarmente e metodologicamente, diversos. No entanto, se bem que tais
falta de estudos quantitativos cidade e a falta de estudos de detalhe são alguns dos estudos sejam necessários e urgentes, a discussão de questões metodológicas e epistemológicas
principais problemas. A maior parte dos trabalhos de história urbana referidos acima são sobre o objecto de estudo e a especificidade da história urbana deve ocorrer simultanea-
estudos de cidades individuais, ou de bairros de cidades, sendo praticamente inexistentes mente, cada uma destas tarefas contribuindo para o desenvolvimento da outra.
os estudos comparativos de dois ou mais conjuntos urbanos. Também a carência de estu-
dos quantitativos, especialmente uma base sólida de estudos de demografia histórica, difi-
culta o desenvolvimento de estudos comparativos de diferentes situações urbanas. Méto-
dos de análise mais rigorosos, um maior número de estudos de casos solidamente baseados Bibliografia
em investigações de base, o desenvolvimento de estudos comparativos e equipas de inves-
tigação multidisciplinares são essenciais para o progresso da história urbana em Portugal. ABREU, A. Barbosa de, «A evolução da cidade do Porto e os sistemas de transportes,,, in Revista de História,
vol. XV (1981), 193-202.
O estudo da história urbana implica o diálogo entre vários ramos do conhecimento. ACADEMIA NACIONAL DE BELAS-ARTES, Lisboa Oitocentista (Lisboa, 1976).
Essencialmente multidisciplinar, a história urbana deve ultrapassar as barreiras existentes AGUIAR, Manuel Marques de, «Notas sobre o enquadramento urbano do jardim do passeio alegre», in Revista
de Histórit1, vol. lil (19 80).
entre os vários ramos da história e incentivar a colaboração entre diferentes disciplinas. Só
ALARCÃO, Jorge de, Portugal Rornmw (Lisboa, 1973).
através do estudo sistem,ítico de um grande número de variáveis é que as dinâmicas do - , «A cidade romana em Portugal: a formação de "lugares centrais" em Portugal, da Idade do Ferro à romanização»,
processo urbano podem ser compreendidas, sendo a tarefa do historiador sintetizar os in Cidades e História (1992), 35-70.
- , «A cidade romana em Porrugal: renovação urbana em Portugal na época romana», in Cidades e História
resultados das diferentes abordagens disciplinares num todo coerente. Uma consequência
(1992), 73-127.
inevitável disto deverá ser o desenvolvimento de pesquisas colectivas por equipas ALMEIDA, Carlos A. E de, «Urbanismo na alta Idade Média em Portugal: alguns aspcctos e os seus muitos
multidisciplinares, em vez de estudos individuais. Para tal será necess,irio o desenvolvi- problemas», in Cidades e História (1992), 129-136.
- , «Muralhas romanas e cercas góticas de algumas cidades do centro norte de Portugal. A sua lição para a
mento de estruturas académicas e institucionais que privilegiem este tipo de abordagem. dinâmica urbana de então», in Cidades e História (192), 137-142.
Por outro lado, muitos dos trabalhos acima referidos são o que se pode chamar estu- ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreira, O Porto 11a rios Alrnarlm (Porto, 1988).
AMARAL, I. Peres do, ,,Cidades coloniais portuguesas (notas preliminares para uma geografia hisrórica))), in
dos institucionais, no sentido em que se baseiam predominantemente em registos oficiais
Povos e Culturas, 2 (1987), 193-214.
ou institucionais. Estes estudos utilizam dados que foram seleccionados e guardados por - , «Contribuição para o conhecimento do fenómeno de urbanização de Angola», in Finisterra, 25 (1978).
motivos muito específicos: registar a história oficial. A história é aquilo de que nos recor- AMORIM, Maria N. B., Guimarães, 1580-1819. Estudo Demogrdjico (Lisboa, 1987).
ANDRADE, Amélia Aguiar, Um Eipt1ço Urbano MerlieVttl, Ponte de Lima (Lisboa, 1990).
damos, mas, se não formos suficientemente cuidadosos na escolha das fontes, acabamos
- , «Um percurso através da paisagem urbana medieval», in Povos e Cu!tums, 2 (1987), 57-58.
por apenas nos recordarmos daquilo que, a partir do passado, nos é dito para recordarmos. ARAGÃO, António, Para t1 História rio J-,,mchal, Pequenos l'üssos da Sua Jvfemúrit1 (Funchal, 1979).
Para evitar tal situação há a necessidade de desenvolver mais estudos de história urbana ARAÚJO, Ilídio de, «Jardins, parques e quinras de recreio no aro do Porto», in Revista de Histó1ir1, vol. II (1979), 375-388.
ARAUJO, Renata de, Lisboa. A Cidade e o Eipectáculo rios Descobrimmtos (Lisboa. 1990).
que se baseiam numa grande variedade de registos e de dados primários e que tenham ASSOCIAÇÃO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES, Guia umwmmuo11,w11cectówco (Lisboa, 1987).
fundamentalmente a ver com os indivíduos e com as suas acções como indivíduos. BEIRANTE, Maria Ãngela V da R., O Alentejo na Segunda Metade rio Século XIV(Porto, 1986).
A fim de recuperarmos esta dimensão humana dos fenómenos urbanos é essencial o - , Santarém Medieval (Lisboa, 1980).
- , Salltarérn Quinhentista (Lisboa, 1981).
estudo dos ciclos curtos da história, dos microfenómenos. E a este nível básico que a BETHENCOUR1'. Francisco, «Descrições e representações de Lisboa no século XVI», in O lrnagíndrio ria Cida-
complexidade da vida urbana e os processos que moldam a cidade podem ser compreendi- de (Lisboa, 1989), 117-130.
BRITO, R. S., «Lisboa. Esboço geogrMico», in Boletim Cultural ria/unta Distriüd de Lisboa, 82 (1976), 3-206.
dos: é a este nível que se torna evidente que as acções individuais não são condicionadas
CÂMARA, Teresa B., Ôbirlos. Arquitectura e Urbanismo (Óbidos. 1989).
simplesmente por motivações racionais, mas são necessariamente influenciadas também CARITA, Helder, Bairro Alto. Tipologit1s e !vfodosA,quitectóuicos (Lisboa, 1990).
562 por factores subjectivos e culturais. Só através da análise detalhada de situações partícula- CARVALHO, Sérgio Luís, Cidades lvfedievais Portuguest1s. Uma Introdução ao Seu Estudo (Lisboa, 1989). 563
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VIEIRA, Afonso Lopes, Os Transpqrtes Pâblicos de Lisboa entre 1830 e 1910 (Lisboa, 1982).

Apresentação .. .. ... ... ......... .... .. ... ...... .. .. ... ... ... ...... ........ ... .. .. .. .... ... .. ... .. .. ... .. ... ...... .. . 7
wALTER RossA
A Paisagem Urbana Medieval Portuguesa: Uma Aproximação .. ........ .... ............... 11
AMÉLIA AcuiAR ANDRADE

Urbanismo de Traçado Regular nos Dois Primeiros Séculos da Colonização Brasi-


leira - Origens .................................................................................................. 39
PAULO ORMINDO DE AZEVEDO

Storia della Città Come Storia delle Utopie, da San Leucio all'Amazzonia Pombalina 71
G1ovANNA Rosso DEL BRENNA

A Iconografia dos Engenheiros Militares no Século XVIII: Instrumento de Conhe-


cimento e Controlo de Território ........ ........... .... .. ...... ............. ............ ... .. ..... .. .... 87
BEATRIZ P. SIQUEIRA BuENO

Geometria Bélica: Cartografia e Fortificação no Rio de Janeiro Setecentista ........ 119


ROBERT CONDURU

Urbanismo da Época Barroca em Portugal .......................................................... l 43


JOSÉ EDUARDO HORTA CORREIA

Rural & Urbano. Espaços da Expansão Medieval: Origem da Organização Espa-


cial Ibero-Americana?.......................................................................................... 155
GLENDA PEREIRA DA CRUZ

O Início da Profissionalização no Exército Brasileiro: Os Corpos de Engenheiros


do Século XVII .... ...... ... ... .. .... .. ..... ... .... .... .. .. .. ....... ... ... .. .... . .... .. .. ... .. ..... ... ..... .. .. .. . 205
ROBERTA MARX DELSON

Para o Entendimento da Educação Colonial: O Papel das Academias Militares no


Brasil Colónia .... ... ....... ... ..... ... ... .. ........... ..... ......... ... .. .. .... . ...... ... .. ........... ........ ... . 225
566 ROBERTA MARX ÜELSON 567
UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS ÍNDICE

Índia e Sul do Brasil: Planos do Urbanismo Português no Século XVIII ............. . 243 O Urbanismo Regulado e as Primeiras Cidades Coloniais Portuguesas ............... . 507
JOSÉ MANUEL FERNANDES WALTER RossA

Cidades e Vilas Pombalinas no Brasil do Século XVIII ...................................... .. 255 Pangim: Um Legado Português ......................................................................... .. 537
MARIA HELENA OCHI FLEXOR RAvA SHANKHWALKAR; P. R. VINEETH

Do Arraial à Cidade: A Trajectória de Mariana no Contexto do Urbanismo Colo- A História Urbana em Portugal: Desenvolvimentos Recentes ............................ .. 547
nial Português .......................,,.....-;....................................................................... 267 MANUEL e. TEIXEIRA
CLÁUDIA DAMASCENO FONSECA

Encuentros, Conflictos y Sintesis en la Arquitectura Americana. Siglos XVI y XVIII 303


RAMóN GUTIÉRREZ

l:Urbanisation Commerciale en Angola au XIX0111 ' Siêcle.. ...... .... .. ................. ...... 313
ISABEL CASTRO HENRIQUES

Olinda: Evolução Urbana.................................................................................... 331


JosÉ Luís MoTA MENEZES

Um Tratado Português de Arquitectura do Século XVI (1576-1579) 353


RAFAEL MOREIRA

Urbanismo en el Reino de las Dos Sicílias en Andalucia y en America, Séculos


XVI, XVII, XVIII ...... .. ... ........ .... ... ... . ..... .. . .... .. .. ... ... .. .. .. .. .. ...... .... .... .. . ... ... .... .. ... . 399
ALBERTO R. NICOUNI

O Espaço da Colonização Açoriana na Ilha de Santa Catarina: Suas Particularida-


des e suas Marcas no Presente.............................................................................. 409
LISETE ASSEN DE OLIVEIRA

Espacios Oceânicos y Puerros de Ultramar en la América Espafíola (1500 ai 1800) 423


ALBERTO DE PAULA

Paradigmas do Urbanismo da Fase de Implantação dos Portugueses, Espanhóis e


Ingleses na Ásia: Estudo Comparativo................................................................. 455
ASHISH K. REGE

Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil........................................................ 467


NESTOR GOULART REIS FILHO

Notas sobre o Urbanismo no Brasil. Primeira Parte: Período Colonial ............... .. 483
568 NESTOR GOUI..ART REIS FILHO 569
Para o Entendimento da Educação Colonial:
O Papel das Academias Militares no Brasil Colónia
RonERTA MARX DELSON

Índia e Sul do Brasil: Pla nos do Urbanismo Po rtuguês


no Século XVIll
. JosÉ MANUEL FERN ANDES

Cidades e Vilas Pombalinas no Brasil do Século XVlll


MA RI A HELENA ÜCH I FLEXOR

Do Arraial à Cidade: A Trajectória de Mariana no Contexto


do Urbanismo Colonial Português
CLAÚDJA DA MASCENO fONSECA

Encuentros, ConAictos y Sintesis en la Asquitectura Americana.


Siglos XV1 y XVlll
RAMÓN GunÉRllEZ

L'Urbanisation Com merciale en Angola au XJXCmc Siecle


ISABEL CASTRO l-lENRIQUES

O linda: Evolução Urbana


Jost Luís MOTA MENEZES

Um Tratado Português de Arquitectura do Século XVl


(1576- 1579)
RAFAEL MOREIRA

Urbanismo en el Reino de las Dos Sicilias en Andalucia


y en Am erica, Séculos XVl, XVll, XVIII
ALBERTO R. N 1CO LINI

O Espaço da Colonização Aço riana na Ilha de Santa Catarina:


Suas Particularidades e suas Marcas no Presente
LISETE AssEN OE ÜLJVEIRA

Espacios Oceá.nicos y Puertos de Ultramar en la América


Espaiíola (1500 al 1800)
A LB ERTO DE PAULA

Paradigm as do Urbanismo da Fase de )mplantação dos


Portugueses, Espanhóis e Ingleses na Asia: Estudo Comparativo
ASHISH K. REGE

Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil


NESTOR GouLART RE1 s F 1LHO

Notas sobre o Urbanismo no Brasil. Primeira Parte:


Período Colonial
NESTOR GouLART RE1s FILHO

O Urbanismo Regulado e as Primeiras Cidades Coloniais


Pç,rtuguesas
WALTER RossA

Pangim: Um Legado Português


RAvA SHANKHWA_LKAR; P. R. V 1NF.ET H

A História Urbana em Po rtugal: Desenvolvimentos Recentes


MANUEL C. TEIXEIRA

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