Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Quando se depara ou se deseja ler uma obra sobre a realidade, não-ficional, não
nos perguntamos, muitas vezes, se o material contido ali dentro é verdadeiro ou não.
Contentamos-nos apenas com o aviso “não-ficção” ou então “inspirado em fatos reais”.
E mesmo quando nos atemos a questão se os fatos ali narrados são verídicos ou não,
esquecemos muitas vezes que a maneira de escrever e o estilo da escrita acabam por
fantasiar a realidade dos fatos. Chegamos à conclusão de que não pode existir tal obra
100% fiel a realidade. Mas quando nos deparamos com o livro Quarto de Despejo , da
escritora Carolina M. de Jesus questionamos esta conclusão. Escrevendo sobre seu
cotidiano em uma favela, pobre, e com pouca instrução escolar, somos levados a crer
que Carolina nos irá passar sua realidade em que viveu de uma maneira integral. Se isso
é o que vai ocorrer ou não, é o que questionaremos nestas páginas.
O título da obra vem do sentimento que Carolina tinha em relação ao lugar onde
viva, e de fato ela deixa de maneira bem explícita que, no que dependesse de suas
forças, ela não estaria ali, “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala
de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E
quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar
num quarto de despejo”1, “Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de
despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”2, “... As vezes mudam algumas familias para a
favela, com crianças. No inicio são iducadas, amáveis. Dias depois usam o calão, são
soezes e repugnantes. São diamantes que transformam em chumbo. Transformam-se em
objetos que estavam na sala de visita e foram para o quarto de despejo”3.
Muitas editoras já publicaram esta obra. Neste artigo utilizo, para análise, a publicação feita pela Editora
Ática, 3ª. Edição, ano de 1994. A obra em questão tem 173 páginas, e conta com uma pequena entrevista
feita com Carolina de Jesus nas páginas finais.
1
Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo, diário de uma favelada. 3. ed, São Paulo: Ática, 1994,
p. 33. Todas as citações tiradas na íntegra do texto estarão em itálico.
2
Ibid., p. 33
3
Ibid., p. 34
A partir destes pequenos trechos, chegamos à duas conclusões: Carolina utiliza
sim de certos elementos que enriquecem através de metáforas ou imagens a situação que
ela quer passar. Outra coisa que chama a atenção é a maneira como escreve: frases
curtas e seqüenciadas, com o uso de ênclise. Se por um lado isso tira o clima de uma
obra realista ao extremo, por outro lado nos mostra a bela vocação de escritora que ela
tinha. Ela mesma menciona no livro que adora ler e escrever, e, lendo as páginas
seguintes, nos ficamos a indagar como teria sido se ela tevês tido a oportunidade de
obter uma melhor formação educacional, posto que ela mesmo admite que tem apenas o
segundo ano do que era o equivalente do nosso atual ensino básico.
Mas o eixo central de todo o livro é a constante luta de Carolina contra a fome,
contra a miséria. Essa luta é quase que diária, e tão contínua é até desnecessário pegar
algumas citações do texto, posto que nenhuma situação em si possa ser generalizada
como sendo padrão: cada dia é uma luta diferente, e cada vitória e cada derrota também
são singulares. As narrativas dela em busca de mantimentos são simples e objetivas;
elas não trazem muitos detalhes. Apenas são mencionados os ganhos ao fim de dia em
sua jornada como coletora de papeis pelas ruas, e o que ela comprou com eles. Também
são mencionadas as vezes que esteve no lixão, os que buscavam alimento lá, e os
próprios filhos dela que algumas vezes encontravam o que comer no que havia sido
jogado fora, e ela faz questão de relatar. Em poucos momentos ela perde a esperança ou
reclama, e ela faz questão de enfatizar que é diferente dos outros habitantes da favela
neste aspecto: enquanto os outros reclamam da vida, bebem ou brigam, Carolina prefere
ler e escrever. Estas são suas duas armas para enfrentar a situação em que vive, são sua
fuga para outro mundo. Ela é distinta de outras pessoas que habitam o cortiço. A
questão que surge quando lemos as narrativas é que se Carolina é a pessoa que é por
causa do seu hábito um tanto diferente de ler e escrever ou se ela se interessou por estas
duas artes pelo fato de ser uma pessoa diferente.
Tão constante como a sua luta pelo pão diário, é o amor e a dedicação de
Carolina pelos filhos. Sua preocupação em lhes dar o sustento diário é que motiva suas
lutas, e os relatos são fascinantes. A origem dos filhos fica obscurecida no livro, e
quando os relatos começam a ser lidos, as três crianças já existiam. A única menção
com relação a um dos pais é o de Vera, que é citado quando no pagamento de pensão à
4
Ibid., p. 39
5
Ibid., p. 69
menina. No mais, Carolina se mostra sempre como uma mãe atenciosa e prestativa, em
poucos momentos dá demonstração de perder a fé ou a esperança com relação aos
filhos. Mas em um destes poucos momentos de vacilo, o relato mostra a situação quase
desesperadora que poderia surgir caso ela não fosse uma pessoa mais equilibrada:
Com relação à vida pessoal, Carolina também se utiliza de uma escrita bem
aberta quando trata deste assunto, similar aos outros temas abordados. Ela não é casada,
e seus três filhos se originaram de relacionamentos diferentes, mas não se mostra uma
mulher fria com relação ao assunto relacionamento, mas deixa bem claro que as
decepções que teve ao longo da vida a fizeram ter uma visão critica sobre o assunto:
“[...] Em relação aos homens, eu tenho experiências amargas. Já estou na maturidade,
quadra que o senso já criou raízes”6, em outra, quase no final, revela que nunca amou:
“Eu, nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguem. Os homens que
passaram na minha vida só arranjaram complicações para mim. Filhos para eu criá-
los”7.
A partir destas palavras poderia se indagar se ela estava sozinha por indiferença
ao amor ou pela vontade de fugir às obrigações do casamento, pois ela considera tais
obrigações quando observa as mulheres da favela sendo agredidas pelos seus
respectivos maridos. Ela dá a entender que a mulher está apanhando por que não é uma
“boa esposa”. Se ela tinha essa concepção de casamento, com regras e obrigações da
mulher para com o homem, podemos admitir que ela optou por ficar sozinha. Aliás, ela
não reclama da solidão, reclama apenas da má sorte. O que temos nos escritos de
Carolina de Jesus é a desconstrução do amor romântico. (SILVA, 2019, p. 27)
6
Ibid., p. 36
7
Ibid., p. 166
Mas deve-se ter cuidado ao tomar a figura de Carolina de Jesus como um
símbolo ou modelo de “feminista”. Por vezes incorremos no erro de julgar os hábitos de
uma época pelos de outra, mesmo que a proximidade entre elas seja plausível, que não
haja um intervalo de tempo tão grande entre os valores e conceitos de uma época para
os de outra. Carolina construiu sua trajetória de vida ao assumir o seu papel de mulher
tal como ela reconheceu para si, e não como os valores da época o predefiniam. O
feminismo moderno é altamente complexo e muito politizado, e suas definições são
amplas, como também são amplos os aspectos de sua atuação. Não podemos aqui
incluir o conceito de ideologia, pois quem afirma que o feminismo e as teorias de
gênero e comportamento são ideologias são justamente os críticos conservadores, que
querem assim desqualificar as lutas pelas conquistas e preservação dos direitos das
mulheres.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo – Diario de uma favelada. São Paulo:
Ática, 1994.