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Tempus - Actas de Saúde Coletiva - O Trabalho em Saúde

Qual sujeito para qual experiência ? 1


Quel sujet pour quelle experience ?
Which subject for what experience?
Qué sujeto para qué experiencia?
o1vYves Schwartz 22 tratando de uma problemática do “sujeito”,
que possa ser coerente com os patrimônios
RESUMO aqui reivindicados na construção do conceito
ergológico de atividade.
No quadro de um diálogo aqui iniciado com
a corrente de Didática Profissional, esse Palavras-chave: Experiência. Atividade.
texto se propõe a restituir uma dinâmica Debates de normas. Epistemicidade. Sujeito.
intelectual que vai do conceito de experiência Poder de agir.
ao conceito de atividade. Esse último conceito
parece poder precisar o que se coloca como RÉSUMÉ
drama na experiência humana (debate de
Dans le cadre d´un dialogue ici initié avec
normas) e mostrar como a experiência como
le courant de didactique professionnelle, ce
sedimentação instável de atividades é matriz
texte se propose de restituir une dynamique
permanente de história. Qual pode ser então o
intellectuelle qui va du concept d´experience
estatuto dos saberes gerados por um ser assim
au concept d´activité. Ce dernier concept
definido como ser de atividade? Verdadeiros
paraît pouvoir préciser ce qui se joue comme
problemas epistemológicos se colocam nas
drame dans l´experience humaine (debats de
relações entre as diversas formas de saber e as
normes), et montrer comment l´experience
diversas formas de expressão em linguagem,
comme sédimentation instable d´activités est
como também para o estatuto dos diversos
matrice permanente d´histoire. Quel peut-être
saberes na sua relação com a historicidade.
alors le statut des savoirs générés par un être
Problema não só epistemológico, mas
ainsi défini comme être d´activité ? Des vrais
também político porque a gente pode ver uma
problèmes épistémologiques se posent dans les
cartografia de “usurpações” do estatuto próprio
rapports entre les diverses formes de savoirs et
às relações saberes / poderes e às derivas de
les diverses formes de mise en langage, comme
governança do trabalho humano. Finalizamos
aussi le statut des différents savoirs dans leur
1 Texto originalmente publicado na revista Travail et Ap-
prentissages, n. 6, dezembro 2010. Traduzido por Magda rapport à historicité. Problème non seulement
Duarte dos Anjos Scherer. Revisado por Jussara Brito, épistémologique mais aussi politique car on
Milton Athayde, Denise Alvarez e Maristela França. peut lire une cartographie des « usurpations »
2 Filósofo, professor de filosofia, diretor científico do
de statut propre aux rapports savoirs / pouvoirs
Instituto de Ergologia da Universidade de Provença -
et aux dérives de la gouvernance du travail
França.

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humain. On termine sur une reformulation de RESUMEN
la problématique du « sujet », qui puisse être
cohérente avec les patrimoines ici revendiqués En el espacio de un dialogo aquí iniciado con
dans la construction du concept ergologique la corriente de didáctica profesional este texto
d´activité. se propone restituir una dinámica intelectual
que va del concepto de experiencia al concepto
Mots-clés  : Experience. Activité. Débats des de actividad. Este último concepto parece
normes. Épistemicités. Sujet. Pouvoir d´agir. necesitar lo que se considera como un drama
en la experiencia humana (el debate de las
ABSTRACT normas) y mostrar cómo la experiencia como
sedimentación inestable de actividades es
This paper attempts to reinstitute intellectual una matriz permanente de la historia. ¿Cuál
dynamics within a dialogue herein initiated puede ser entonces el precepto de los saberes
with the current of professional didactics generados por un ser así definido como ser de
that goes from the concept of experience to actividad? Se formulan verdaderos problemas
the concept of activity. The latter seems to epistemológicos en las relaciones entre las
need what is considered a drama in human diversas formas del saber y las diversas formas
experience (the debate of norms) and to show de expresión en el lenguaje, como también
how experience as an unstable foundation of para el precepto de los diversos saberes en
activities constitutes a permanent matrix of su relación con la historicidad. Un problema
history. Which then may be the principles of no solo epistemológico sino también político
the various forms of knowledge produced by pues podemos apreciar una cartografía de
a being defined as a being of activity? True <<usurpaciones>> del precepto propio de las
epistemological questions on the relations relaciones de saberes / poderes y aquellos a la
between the various forms of knowledge and deriva de la gobernanza del trabajo humano.
the various forms of language expressions as Finalizamos tratando una problemática del
well as on the principle of the various types of <<sujeto>>, que pueda ser coherente con
knowledge in its relation with historicity are los patrimonios aquí reivindicados en la
posed. It is not only an issue of epistemology construcción del concepto ergológico de
but also a political issue for we can observe a actividad.
mapping of <<usurpations>> of the principle
distinctive to knowledge / powers and those Palabras clave: Experiencia. Actividad. Debate
adrift from the governance of human work. de las normas. Epistemicidad. Sujeto. Poder de
Last, we address a mayor issue regarding the actuar.
<<subject>>, which can be consistent with the
patrimonies recovered here while building an INTRODUÇÃO
ergological concept of activity.
Diversos eventos recentes, tais como o
Keywords: Experience. Activity. Debate of colóquio de Dijon em 2 de dezembro de 2009,
norms. Epistemological approach. Subject. que propôs refletir sobre “Qual sujeito para
Power to act. qual experiência?” nos deram a oportunidade

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de retomar nossas interrogações sobre a noção Considero de suma importância se
de “sujeito” e de “experiência” e de travar um interrogar sobre a co-definição possível dos
debate, sem dúvida tardio, com uma corrente conceitos de “sujeito” e de “experiência”, e
tão rica como a Didática Profissional1. Isso que é impossível pensá-los separadamente.
me permitiu descobrir pontos de encontro
numerosos e consistentes, mesmo se nós não EXPERIÊNCIA
expressamos as mesmas convicções com os
mesmos termos (3). Inicialmente faço algumas reflexões
sobre meu próprio itinerário conceitual, com a
A Didática Profissional é uma corrente seguinte constatação: num primeiro momento,
de pensamento que a partir de competências quando fiz minha tese2 eu dei uma importância
em psicologia, ergonomia e ciências da maior ao conceito de experiência, ponto focal
educação, progressivamente centrou-se, há de meu esforço de redimensionar a atividade
pelo menos duas décadas, sobre os processos humana. Eu tentei justificar a escolha do termo
de aprendizagem que construímos a partir “experiência”, principalmente a partir de
da experiência de situações de trabalho. quatro características que me pareceram hoje
Constatamos um interesse pelo estudo ainda circunscreverem o campo da pertinência
comparado de situações de trabalho, e desse conceito.
articulado a isso, interrogações fecundas sobre
o sujeito e suas formas de desenvolvimento Se há experiência, então é necessário
que tornam possíveis e convocam as atividades supor um ser para quem há sedimentação do
de trabalho. tempo, hierarquização de acontecimentos. A
experiência só pode ser formadora se supomos
De onde vem o termo “didática que há nesse ser uma tentativa contínua de
profissional”, ou seja, atividades de integrar os acontecimentos, um ser concebido
aprendizagem de saberes no exercício das como uma totalidade vivente, um ser tão
atividades profissionais. Dentre os principais enigmático como se queira imaginar que possa
protagonistas dessa corrente, encontramos encarar os encontros da vida e que possa fazer
Pierre Pastré, professor do Conservatório continuamente escolhas de uso de si mesmo.
Nacional de Artes e Métiers, cátedra de Se há experiência, a unidade de um “ser” que
comunicação didática, Pierre Rabardel, “faz experiência” não pode se apagar diante
professor de psicologia e ergonomia na das clivagens intrapsíquicas.
Universidade de Paris VIII, e Patrick
Mayen, professor à L´ENESAD de Dijon, De tal experiência, ninguém pode
que organizaram o colóquio anteriormente controlar integralmente as condições iniciais,
mencionado. as “condições ao limite”, como se diz em
matemática. Ninguém (indivíduo, grupo ou
3 Peço desculpas por limitar a evocação desses pontos espécie) sabe exatamente quem ele é quando
de encontro com os textos de Pierre Rabardel et Pierre ele faz experiência, nem exatamente no que
Pastré que estão na obra coletiva dirigida por eles, Mo-
ela consiste. Isto não deverá tirar a força do
dèles du sujet pour la conception (Octarès, 2005), e à
conceito, mas ao contrário incitá-lo a se engajar
suas apresentações para o seminário de Dijon.

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numa conquista parcial deste “indefinido”. um protocolo, a definir exaustivamente as
condições iniciais e dessa forma a controlar
Como consequência do ponto precedente, perfeitamente os parâmetros operando durante
desde que não se conhece integralmente as seu desenvolvimento, segundo o modelo
condições iniciais, ninguém pode dizer de que desejável de uma experiência científica; e
elas são grávidas, ou qual é o ser em potência em seguida entre “experiência do trabalho”
dentre os seres que (se) experimentam. Seria e “trabalho como experiência”6, visando a
simplificar esses seres considerar como somente distinção entre um simples tempo de presença
possível o uso que eles fazem deles mesmos numa situação de trabalho e o fato de que
a um determinado momento, e mais ainda o toda situação de trabalho é sempre em algum
uso que é feito deles. Como diz Canguilhem3 grau um chamado a escolhas de uso de si,
“quanto à saúde no sentido absoluto, ela não se apoiando sobre e retrabalhando formas
é outra coisa que a indeterminação inicial enigmáticas de saberes, “esquemas”, conceitos
da capacidade de instituir novas normas”. operativos. A respeito dessa última expressão,
Potencialidades e experiência se atraem somos reenviados a um campo de interrogações
mutuamente. da didática profissional, vemos se desenhar
aproximações com as diferentes “gêneses” e
Enfim, podemos “mortificar” ou
reflexões sobre aprendizagem colocadas por
“exaltar” todo esse implícito da experiência,
essa corrente1.
como diziam Ivar Oddone et al4 a propósito
da experiência do trabalho: a experiência Mas essa idéia do trabalho como
assim proposta tem, constata-se bem, uma sempre, em algum grau uma experiência me
relação problemática com a linguagem, parece encontrar seu verdadeiro fundamento
ela convoca o indefinido, esse apeiron dos antropológico com o conceito de atividade,
gregos que não se presta de forma alguma a progressivamente elaborado há 25 anos7.
uma clarificação fácil, embora, entretanto, a E é sem dúvida por isso que temos –
evidenciação dessas riquezas traga questões provisoriamente? – deixado em segundo plano
culturais, sociais e políticas consideráveis. o conceito de experiência, em benefício do
Ele, esse apeíron não é absolutamente neutro, de atividade (de onde vem a denominação de
e especialmente no campo do trabalho, trata- ergologia, estudo da atividade humana) para
se de uma escolha partir em conquista desse caracterizar nossa perspectiva6.
campo ou deixá-lo na penumbra sem cultivá-
lo. Era esse sentido militante proposto por Ivar ATIVIDADE
Oddone, um personagem maior na reconquista
da experiência operária5. Empregamos (a ergologia e a didática
profissional, por exemplo) conceito de
Essa tentativa de circunscrever o conceito atividade, certamente em razão de heranças
de experiência permite fazer duas distinções em parte comuns. No eixo de uma pesquisa
que considero úteis: primeiro entre experiência histórica que remontando retroativamente, a
e experimentação, a experimentação visando partir de seu uso atual, em direção à gênese
sempre, através da definição mais precisa de filosófica e aos empregos desse conceito, fui

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conduzido a defini-lo, segundo a ergologia, e vem a nós o conceito de atividade, conforme
visto do lado do ser humano singular, como os estudos mencionados há pouco. Podemos
uma tentativa permanente de sinergia do que pensar que se essa heteroderoderminação fosse
em nós é heterogênes(4). “Tentativa”  porque possível e vivível, então não haveria atividade,
essa sinergia enigmática que se opera, diante e não haveria também a vida (5).
dos encontros da vida, nada tem de evidente e
pode conhecer todos os graus possíveis, entre Se essas observações são admissíveis,
a “felicidade” e a doença ou a morte. Mas então arbitragens permanentes na vida em
ela é exigida a todo instante de vida. E isso é geral, e no agir industrioso em particular, se
particularmente verdadeiro em relação a essa impõem continuamente a nós. Seria melhor,
dimensão de nossas vidas que é “o trabalho”, aliás, falar de arbitragens incorporadas, cujas
sendo, aliás, a razão pela qual, a partir da resultantes deverão tentar, de acordo com
confrontação desse ser que experimenta com intervalos de tempo diferentes, colocar em
as situações de trabalho, teve início essa sinergia esses heterogêneos de que falamos
elaboração ergológica do conceito de atividade. a pouco (ver nota 5): arbitragem entre, de
um lado normas antecedentes oriundas do
Do ponto de vista do campo ambiente histórico, social, gerencial, técnico,
historicamente definido como do trabalho, a combinando de maneira muitas vezes perversa,
atividade, como sinergia dos heterogêneos saberes patrimoniais, genéricos e normas de
em nós em vista de renegociar nosso agir num governança assimétricas de grupos sociais
meio dado, é constitucionalmente requisitada. diferenciados por seus recursos e poderes; de
outro lado, obrigações absolutas para se dar
De fato, a estrita heterodeterminação aqui e agora normas reprocessadas de trabalho
das normas de agir, cujo modelo seria o e de vida.
governo taylorista do trabalho, nos parece
simultaneamente impossível (o meio é sempre A atividade humana pode ser então
em algum grau infiel, inantecipável) e invivível. definida como lugar de debate de normas.
Sendo assim, o agir humano é um emaranhado
Cada um desses termos - impossível de renormatisações, resultado sempre
e invivível - a ergologia os amarra como na problemático e provisório desses debates.
trama de um tecido forte para caracterizar o
drama próprio do agir humano em face de um ESTATUTO DOS SABERES
meio histórico de vida e de trabalho e às suas
normas. Estes dois termos nos parece resultar, Essas análises nos dizem muito,
por meio de um percurso por vezes paradoxal, portanto. Poder-se-ia ser preciso quanto a esses
de cada um dos dois ramos segundo os quais locias de encontro e, talvez, aos pontos que

4 Schwartz Y. Un bref aperçu de l’histoire culturelle du 5 Notemos que com respeito ao invivível, P.Pastré faz
concept d’activité. Revue @ctivités. 2007;4(2):122-133. uma bela utilização da epistemologia histórica francesa
«  Heterogêneos», como era por exemplo para Kant, a (ibid, p.244 sq), mas não, me aprece, como nós fazemos
compreensão e a sensibilidade, ou para nós, « o corpo » da filosofia de G.Canguilhem, sobre a qual nos apoiamos
e « o espírito », o consciente e o inconsciente, o verbal para justificar o « invivable ».
e o não verbal …

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eventualmente exigem debate entre nós. Assim, A “dialética do produtivo e do
o estatuto dos saberes em relação ao agir, construtivo” de que falamos, desenvolvida
diferencialmente tomados no (ou ligados a esse muito sugestivamente por Rabardel1 se
agir). Sujeito “capaz” e “sujeito que conhece”, apoiando nos trabalhos de Vergnaud9, um
“epistêmico”, não “se opõem”, diz justamente pesquisador em psicologia cognitiva, nos
Pierre Rabardel1. Ponto muito importante. parece poder com utilidade articular, do lado
Quando dizemos que toda renormatização dos saberes investidos, portanto do lado do
se opera sobre a base de saberes que essa pólo da aderência, diversos níveis ou formas de
renormatização retrabalha, significa, nos saberes diversamente ligados à singularidade
parece, estarmos próximos de uma concepção das situações vividas, então em desaderência
de aprendizagem da didática profissional, que relativa, à proporção que elas escapam às
fala da dialética entre o sujeito produtivo e dimensões as mais singulares dessas situações.
construtivo.
Da atividade construtiva, Pierre
Nós falamos desde longo tempo de Rabardel1 diz que ela “deve, para além das
“saberes investidos” no quadro do que variabilidades da singularidade, e de uma certa
chamamos de “Dispositivo Dinâmico de Três forma, contra essas variabilidades, elaborar
Pólos”6, dispositivo que visa sintetizar um as invariâncias necessárias à renovação e ao
regime de produção de saberes coerente com desenvolvimento das capacidades de ação
nossa concepção de atividade, como sucessão do sujeito em devir. Seu destino é partir da
de renormatisações. “Saberes investidos” ou atividade produtiva, ser de alguma forma
saberes que “aderem” (mais ou menos) às intrinsecamente misturado a ela, e ao mesmo
dramáticas sempre mais ou menos localizadas, tempo se opor construindo, para além dela e
contextualizadas, da atividade. contra a singularidade das situações vividas, as
invariâncias intersituacionais (organizadoras
Enquanto “saberes”, esses saberes das situações em classes), que permitirão em
investidos são comensuráveis com todas as seguida melhor retomar e tratar de novo a
outras formas de saberes, eles têm vocação singularidade. É algo relacionado com o que
para dialogar com, para reprocessar os chamamos de ingrediente 3 da competência6.
saberes produzidos no pólo do que chamamos
de “desaderência” (saberes formalizados, Nós poderíamos, entretanto, abrir uma
construídos à distância temporalmente e discussão sobre esse ponto. Sem dúvida, como
espacialmente variável do que chamamos saberes, devemos admitir certa homogeneidade
atividade). Nós temos, além disso, precisado e continuidade entre os recursos cognitivos
essa polaridade saberes investidos, ou melhor, próximos do polo da aderência e os fabricados à
saberes “em aderência relativa” / saberes distância da atividade (no polo da desaderência).
“conhecimentos”, saberes em desaderência
A continuidade da forma linguageira entre
relativa, que se apresentam como articulação
esses dois polos explica essa dimensão de
de conceitos, numa contribuição recente a uma
comensurabilidade. Quando se trata de falar
obra dirigida por P.Béguin e M.Cerf (2009)8 (6).
do e no trabalho ou de enunciados científicos
6 «  Produzir saberes entre a aderência e a desaderên- ou técnicos, a linguagem, como sistema mais
cia », pp. 15-28. Sobre uma de uma nova versão do Dis- ou menos aproximado das normas, é sempre
positivo dinâmico de Três Pólos, ver pp.21-23.

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o suporte das trocas, qualquer que seja seus suscetíveis de conceitualização, engajando os
graus de sistematicidade, muito específicos nos circuitos cognitivos e linguageiros, o nível de
diversos casos. heterogeneidade pode se tornar tal que formas
de continuidade se desintegram. Voltemos
Fazendo um parêntese antes de então a essa questão da continuidade de saberes.
continuarmos: essa continuidade da forma No polo da desaderência, nós acreditamos que
linguageira encontra, entretanto, seus limites é necessário também reconhecer uma forma de
no polo da aderência. A acuidade do olhar discontinuidade nesse continuum de saberes.
dos ergonomistas detectando os aspectos Enquanto que sobre esse continuum situaremos
observáveis na atividade tais como os gestos, “saberes de ação”, esquemas ou conceitos
os olhares, as sínteses que escapam, em um operatórios, saberes se expressando na
primeiro momento, a toda verbalização, agilidade da linguagem comum, certos saberes
manifesta que, em um determinado momento, os reivindicam o respeito de uma disciplina
saberes investidos, escondidos na inteligência claramente “conceitual”, se afirmando
do corpo em trabalho, saem tendencialmente como “conhecimentos”, demonstráveis
dessa continuidade linguageira. ou justificáveis no interior de “referências
de desaderência” (assim, no referencial
Se a atividade é permanentemente
newtoniano, os enunciados da física clássica
tentativa de colocar em sinergia, em primeiro
podem se manifestar segundo concatenações
lugar “o corpo e a alma”, a tentativa de se
rigorosas). Essa oscilação nos referenciais da
aproximar da atividade pela sua expressão
desaderência circunscreve o campo do que eu
em linguagem tropeçará sempre em um
chamo de epistemicidades.
nível desconhecido referente às sinergias,
circuitos e regulações próprias ao “corpo” Qual importância para nosso sujeito?
em trabalho nas renormatizações (um corpo
já instruído, penetrado pela história de suas Admitamos que em nossas sociedades
renormatizações). de direito (e de mercado), os debates de
normas estão às voltas com as normas
Assim, nossa tese sobre a atividade antecedentes que reenviam sempre a universos
como tentativa de colocar em sinergia os de justificação, de corpus argumentativos
heterogêneos em nós pode aqui se esclarecer técnico-científicos, dispositivos jurídicos,
como sendo essa enigmática continuidade de gestionários, procedurais... E lembremos que
saberes no agir, entretanto, atravessada por esses não poderão jamais se impor como lei
descontinuidades em pontos jamais resolvíveis, absoluta porque é ao mesmo tempo impossível
como aquele que concerne aos limites de e invivível6. A questão do estatuto dessas
se expressar em palavras a atividade. Essa epistemicidades torna-se então crucial porque
sinergia supõe uma cadeia contínua de saberes, é em nome desse corpo conceitual, é por essas
mas alguns dentre eles serão sempre resistentes formas linguageiras codificadas no interior dos
ou inaptos a “entrar em linguagem; entre esses referenciais de desaderência, que se tenta se
circuitos escondidos nos corpos engajados nos impor ou propor essas normas antecedentes.
emaranhados de renormatizações, e outros mais

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Mas se os debates de normas estão sempre ENTÃO QUAL “SUJEITO” PARA
às voltas com as “normas antecedentes”10 ESTA REDEFINIÇÃO DE EXPERIÊNCIA
(onde o impossível-invivível impedirá sempre OU DA ATIVIDADE?
a imposição como uma lei absoluta), essas
A questão me parece muito pertinente,
normas antecendentes remetem a estatutos
mesmo sendo um ponto que me parece destinado
epistemológicos diversificados, que criam
a ficar obscuro, mas sobre o qual, entretanto,
também diversos tipos de descontinuidades
eu adoraria continuar a trabalhar, notadamente
no interior desse continuum de saberes.
com meu amigo Louis Durrive (7). É claro que
Creio indispensável distinguir quatro tipos toda renormatização deve se operar no aqui
diferentes de epistemicidade. Vejamos um e agora. Mas sempre através de um diálogo
ou dois exemplos de conceitos próprios a (ou uma confrontação delicada) que dos dois
cada epistemicidade: primeiro, o conceito de lados supõe sedimentações e temporalidades
força ou de massa no referencial newtoniano, de outra ordem: a das normas antecedentes, de
segundo, o conceito de “contrato de trabalho”, início, fabricadas do lado da desaderência em
terceiro o conceito, por exemplo, de “habitus” relação ao aqui e agora (tanto como saberes
(P. Bourdieu) ou de “dom” (M. Mauss), e o codificados, como se referindo aos valores
quarto, o conceito mais próprio à perspectiva que dão, mais ou menos, sustentação a essas
ergológica de “entidade coletiva relativamente normas; de outro lado, essas normas devem
pertinente” ou de “renormatização”. ser avaliadas por um ser que não começou a
viver no instante da renormatização. Portanto,
Entendo que é importante fazê- as normas próprias que ele vai se dar para
lo, pois os diferentes tipos de gênese que tratar o impossível / invivível se enraízam em
desenvolvem de maneira fecunda meus dois saberes e valores acumulados e reprocessados
outros interlocutores se fazem em um mundo permanentemente na sua própria história.
social onde se entrecruzam de forma confusa e
muitas vezes deliberadamente esses diferentes Acumulações e reprocessamento que
tipos de epistemicidade. Através dessas não cessam de se operar através de uma
“usurpações” de estatutos, funcionam de forma avaliação mais ou menos crítica do vínculo
complexa as relações entre saber e poder, que mundo de valores – normas sociais sobre o
operam sobre aquilo que alguns chamam de qual repousam essas normas antecedentes. É
“poder de agir”, podem criar o sentimento necessário poder pensar ao mesmo tempo as
de injustiça, a arbitrariedade e o sofrimento, origens instrumentais, conceituais, identitárias,
evocados por Rabardel em relação à Demarcy, 7 Louis Durrive após uma longa experiência como res-
um dos protagonistas no livro L´Etabli1, (trata- ponsável do um organismo de inserção profissional, é
se do livro do sociólogo francês Robert Linhart hoje professor associado na Faculdade de Ciências da
publicado em 1978 no Brasil, pela editora Paz Educação da Universidade de Estrasburgo. Ele publicou
e Terra, com o título Greve na Fábrica) mais sua tese em 2006 sobre “Experiência de normas: forma-
ção, educação e atividade humana, (Lille, ANRT). Nós
amplamente isso tem a ver com a “avaliação”
trabalhamos juntos desde 1994 e dirigimos em comum
daquilo que chamamos de competência6 e com
duas obras coletivas publicadas pelas Edições Octarès,
os “sistemas totalizantes” que orientam as de Toulose, em 2003 (Travail e ergologia, entrevistas
formas de organização do trabalho1. sobre a atividade humana), e em 2009 (A atividade em
diálogo: entrevistas sobre a atividade humana II).

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porque nós não somos “marionetes” de nossas É sem dúvida para evitar toda
epistemes ou de nossos meios (ou, diria eu, das estruturação abusiva, negada permanentemente
normas antecedentes), como assinala muito por nossa abordagem à lupa das situações de
apropriadamente Pastré1 a respeito de Foucault trabalho, que eu desde o início recusei uma
. É necessário também possibilitar em nós a
( 8)
“problemática do sujeito” mesmo se eu fui
sedimentação da história e dos efeitos inscritos daqueles que desde o fim dos anos 70 se bateram
pelos nossos encontros com ela. por admitir a presença do que se chamava de
“subjetividade” nas atividades industriosas.
Os dois textos de Rabardel e de Pastré1 Eu falei de “si”, para resguardar a dimensão
que lemos por esta razão com grande prazer, de enigma, de globalidade indecisa que me
nos parece trabalhar em todos os sentidos essa pareciam especialmente recobrir a distância
exigência de uma temporalidade dual a pensar prescrito / real e este espaço da “atividade” que
no seio do mesmo ser (o aqui e agora e a me ensinavam meus amigos ergonomistas(10).
dupla temporalidade de mais longa duração da
relação normas (antecedentes ou “recentradas”) Três idéias talvez para um possível
/ valores. debate

A questão da “temporalidade longa” ou A partir dos anos 93, por levar em


do “desenvolvimento”1, a distinção do sujeito conta os aportes e reflexões saídos tanto de
“capaz” e do “poder de agir”, “capacidades” minhas leituras como da minha participação
e “poder”, todos os dois “sujeitocentrados” nas situações de trabalho e oriundas do
mas em “dinâmicas temporais diferentes”, “mundo do trabalho através do dispositivo de
a dialética do produtivo e do construtivo, do ensino chamado Análise Pluridisciplinar das
invariante e do esquema, a bela utilização Situações de Trabalho – APST (11), eu considerei
feita por Pastré1 da dualidade do idem e indispensável não falar somente de uso de si,
do ipse vindo de Ricoeur11, são maneiras mas de “corpo si” e de “dramática do uso do
convincentes de colocar um problema que
não pode ser solucionado. O “sujeito” levaria sujeito, e do sujeito adulto, é necessário se apoiar numa
permanência desse sujeito no tempo: é no fundo nessa
à idéia de um patrimônio acumulado (mas
permanência no tempo que vai poder se manifestar um
também à fraquezas e fragilidades que os anos desenvolvimento pessoal. Mas a principal dificuldade
de vida reprocessam) mas não estabilizado, está no que esse desenvolvimento restabelece simulta-
hierarquizado, estruturado, ao ponto de não neamente do registro da mêmeté e do registro da ipséité.
deixá-lo disponível às solicitações, às gêneses, (…), geralmente essas duas dimensões se sobrepõem ao
ponto de se confundirem » (P.Pastré, op.cit p.241). Não
às convocações da vida. Como pensar esta
podemos colocar de uma forma melhor o problema.
coisa “bizarra” (9)? 10 Aqui lembro Jacques Duraffourg, a quem eu devo
8 M.Foucault é para nós um grande personagem (que tanto. Minha contribuição à Je sur l’individualité (Mes-
nós conhecemos). Entretanto, nós não podemos aderir sidor Editions Sociales, editado graças à lucidez de Lu-
a esse omnireferenciamento de que ele é objeto de todo cien Sève) « Travail et Usage de soi », de 1987 e reedi-
lado. Dizendo francamente, no presente (a gente pode tado em Travail et Philosophie, Convocations mutuelles,
sempre mais e melhor o ler), ele não nos ajuda a pensar Octarès 1992.
o que nos parece hoje essencial 11 Até a criação em 1998 do Departamento de Ergologia-
9 « Se a gente quer agora pensar um desenvolvimento do APST, a pedido do Presidente de nossa Universidade.

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corpo-si”. Isto teria entre outras duas conseqüências.
Considerando que a tentativa de sinergia dos
Uma das razões era que meu patrimônio heterogêneos em nós atravessa o consciente
de leituras, aquele que me havia fortemente e o inconsciente, o verbal e o não verbal, o
ajudado a pensar as dramáticas em que nos biológico e o cultural..., esse encaixamento
encontrávamos, provinha mais largamente de de normas não pode ser verdadeiramente
uma herança de uma medicina “atípica”: uma controlado por alguma instância em nós. Desse
medicina não praticante, (como era o caso de ponto de vista, a significação de ipsedade
George Canguilhem, de Ivar Oddone ou de conservará sempre algo de obscuro, ou ao
Alain Wisner), mas profundamente orientada menos enigmático. Isso é verdadeiro para nós
por uma filosofia ampliada do que poderia ser mesmos, mas também para todos aqueles que
o “viver em saúde” para um vivente humano. pretendem categorizar e, além disso, governar
o agir industrioso humano.
Isso permitia pensar os debates de
normas da atividade como uma tentativa, para Essa dialética do idem e ipse introduz
esse vivente humano, de “viver em saúde” seu história em nós, história onde os efeitos se
encontro com um mundo social e industrioso encadeiam em nós eventualmente, no curso
(saturado de normas e valores), mas isso não de uma longa “perlaboração”. Eu partilho
autorizava, ainda assim, separar essa busca as formulações de Pastré1. Simplesmente, se
de saúde de um corpo biológico mesmo tão definimos atividade como um encaixamento
profundamente historicizado por seus debates de normas, isso quer dizer que ela é em todos
de normas. os momentos da vida, mesmo de uma forma
infinitesimal, produtora de história. O fato
A complexidade humana do corpo-
de ela se manter enigmática não significa
si, atravessando todas as dimensões da
que o ser que “experimenta” solicitações
experiência humana ou do encontro de um
ou constrangimentos de seu meio de vida
ser humano com um meio saturado por toda
desaparece na obscuridade desse encaixamento:
sorte de normas, fazia prontamente escapar o
quem diz debate diz escolha a fazer.
“suporte” da experiência (qual sujeito para qual
experiência?) de toda recuperação simplificante Essa escolha pode ser mais ou menos
por qualquer disciplina constituída. A política, presente em nossa consciência, mais ou menos
a ética, a gestão, as ciências da linguagem..., indolor ou dolorosa, mas ela nos reenvia a nós
como a psicologia cognitiva, a psicanálise, mesmos e a um obscuro universo de valores
as neurociências..., tinham todas algo a dizer a partir do qual nós construímos as nossas
sobre a atividade humana, mas certamente renormatizações (12). Isso não impede que a
não a propor ou impor de uma teoria da
12 Eu estou de acordo nesse sentido com o que diz
subjetividade. P.Rabardel p.24 a respeito da supressão da mesa de ma-
terial de apoio na linha de montagem de Demarcy já ci-
Em segundo lugar pode-se assinalar tado: « É Demarcy que sofre pessoalmente, quer dizer,
que, portanto esse corpo- si que é o lugar como pessoa humana, na perda do poder de agir que
lhe é infringido. E ele mesmo e não outro (…) Não é
do entrecruzamento dos debates de normas.
uma entidade abstrata reificada como atividade, ação ou

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tomada de consciência por nós mesmos de armam face aos que teremos pela frente a viver.
certos efeitos de nossas renormatizações não Aí pode ser retomado o termo “experiência”. As
sejam objeto eventual de uma longa percolação temporalidades não são todas equivalentes. Mas
ou percolaboração. eu diria que é por meio da sucessão de debates
de normas que nosso corpo-si, singularizado
A atividade como debates de normas desde o nascimento, mas disponível ao mesmo
introduz em todos os momentos de nossa tempo por múltiplas possibilidades a viver, se
existência uma obrigação a respeito de historicisa e tenta fazer face, com a integral (13)
escolhas de ser e de vida em comum, esse é problemática de suas renormatizações, ao que
nosso “destino a viver”. Parece-me mesmo que a ele é necessário enfrentar.
é por aí que, no nível infinitesimal, a história se
introduz na experiência humana em geral. SOBRE O “PODER DE AGIR”

Enfim, como então responder à questão: Eu diria aqui, para finalizar, minhas
qual “sujeito”? Pelas razões especialmente perplexidades sobre a própria expressão “poder
sintetizadas por Pastré1 (ver nota 10) eu não de agir”. Ela é definida de forma rigorosa e
vejo como distinguir atividade e subjetividade. coerente por meus dois interlocutores. Rabardel
Parece-me que ao longo de nossa vida nosso destaca perfeitamente a ligação capacidade-
corpo-si é colocado à prova, se historiciza poder, e explica a partir de um exemplo (sempre
através desses encaixamentos dos debates de Demarcy e seu établi – mesa com materiais de
normas. Cada renormatização (à qual ele não apoio na linha de montagem) a desconexão
pode escapar, considerando o par impossível / que pode crescer entre capacidade e poder. Eu
invivível) é um momento de escolha de si mesmo constato simplesmente que esta expressão tem
que reconfigura mesmo no imperceptível algo de sedutor, quando descolada do contexto
sua mesmidade aquela que deve enfrentar que a justifica. Vemos hoje em dia servir a toda
o momento t+1 de sua vida. Esse corpo-si sorte de contextos para designar, de forma muitas
me parece ser esse sujeito ao mesmo tempo vezes simplificadora, e pouco operacional,
produtivo e construtivo, que através de suas uma espécie de realidade ontológica subjetiva,
respostas às solicitações da vida, produz essa em oposição aos ambientes restritivos ou
singularização humana, fator incessantemente mesmo patogênicos no seio das situações
reprodutor de uma parte essencial dessa de trabalho. O encontro do patogênico e do
“infidelidade” de nosso meio de vida, para crítico, nas situações de trabalho, atualmente
retomar uma expressão de Canguilhem. sofre pouca contestação. Mas responsabilizar
a “perda do poder de agir”, fora do contexto
Então, certamente, qualquer dos de nosso debate, parece-me por vezes uma
momentos de nossa vida, desde nosso escapatória para o encontro e o processamento
nascimento, tem o mesmo poder de das situações críticas encontradas.
reconfigurar, via debates de normas, nosso
corpo-si. Criam fidelidades fundamentais1, Rabardel1 explica muito bem que o poder
acumulações de debates de normas que nos
13 No sentido quase matemático.
agir ».

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(de agir) é tentativa de atualizar, e um momento se estender bem além do campo do trabalho”. 
sempre particular, as potencialidades do sujeito
construídas em longo prazo, a capacidade. Desconectado de todo esse campo
Mas isso significa que nós somos remetidos a conceitual, o “poder de agir” pode deixar
uma modalidade local, sempre parcialmente supor que o poder é já virtualmente presente na
inantecipável de debate de normas. consciência do protagonista, já constituído (essa
realidade ontológica subjetiva), que as escolhas
A questão do poder de agir repousa então do “bem agir” são já claras e evidentes, e que
nos seguintes termos: como, com o que somos são identificados os obstáculos e as pessoas
(ou nos tornamos, no sentido da capacidade), que impedem a passagem da potência ao ato.
em um meio coletivo sempre parcialmente Isso certamente pode acontecer, e a expressão
ressingularizado, posso eu processar o debate tem tendencialmente, certo grau de verdade em
de normas? Como ele é processável para certo número de situações de trabalho. Mas na
e por mim, e a qual custo? A qual distância, sua “pureza”, sua “aderência” em relação às
aceitável ou invivível, entre meus horizontes situações concretas a viver, a expressão pode
de renormatização e as características das deixar entender que todo debate de normas
normas sociais (gestionárias, organizacionais, desapareceu, e que a boa via está inteiramente
estratégicas...) que pretendem antecipar meu traçada. Como se o agir “emancipado” não
uso de mim-mesmo, sou eu confrontado? E fosse de início a capacidade parcialmente
aí, qual é a disponibilidade do universo social restituída ao ser humano de enfrentar a questão
onde eu devo viver as escolhas de uso de mim “o que e como fazer de outro modo?”, em um
mesmoque resultariam de meus debates de universo pleno de reservas de alternativas, mas
normas? a torná-las coerentes em um mundo comum
que nunca é de imediato claramente lisível.
É também dito por Rabardel1 com relação
ao sofrimento de Demarcy: a “negação dessa É por isso que na definição do polo 3 do
dimensão criativa de sua identidade de sujeito dispositivo dinâmico de três polos, aquele que
(...)”, o que nós chamaríamos seu espaço pode tornar possível o diálogo entre os outros
possível de renormatização, é “(...) o sinal dois, está inscrito: “polo do mundo em comum
de que em alguma parte das regras do jogo, a construir”. Se ele não estivesse por construir,
as normas sociais que governam o trabalho se aos olhos de alguns, seu conteúdo fosse
mudaram ou estão em vias de mudar”. A cada substancialmente pré-formatado, então não se
vez é recolocado um espaço de arbitragem cujo precisaria desse esforço, dessa verdadeira luta
destino jamais é evidente, exatamente porque por esses diálogos socráticos em mão dupla.
ele deverá se confrontar com um conjunto Não seria mais que a violência nua entre os
de normas antecedentes, misto de técnicas, depositários dessa evidência e aqueles que se
regras, convenções, leis, conceitos com status recusam em razão da estreiteza autocentrada
os mais diversos, adequados para confundir a de sua relação com o mundo de valores que
avaliação crítica: o sofrimento de Demarcy, diz sustenta suas normas de vida.
justamente Rabardel, “tem então a ver com a
dúvida sobre si mesmo que daí resulta e pode Não existe vida sem poder de agir. O

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suicídio – e esse cenário tem para nós uma 3. Canguilhem G. Le normal et le pathologique. Paris:
singular atualidade – é aí na sua forma mais PUF; 1966.

extrema: ele nos envia à característica tornada


4. Oddone I, Marri G, Gloria S, Briante G, Chiatella
“não processável” dos debates de normas (14). E M, Re A. Ambiente di lavoro, la fabbrica nel território.
com a exigência de dar hoje, nos universos do Roma: Editrice Sindicale Italiana; 1977.
trabalho, outra visibilidade a esses debates de
5. Oddone I, Re A, Briante G. Redécouvrir l’expérience
normas, através dos quais caminha a vida social
ouvrière. Paris: Messidor/Editions Sociales; 1981.
e se produz um mundo de valores, no sentido
econômico do termo. Desconectar o agir dos 6. Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier
debates de normas suprimiria essa exigência, de philosophe. Toulose: Octarès; 2000.
esse destino a viver, de ter continuamente que
7. Nouroudine A. L´experience: creuset de rencontres
escolher - e escolher para si - mundos comuns,
et de transformations. Revues Education Permanente.
de bens comuns, nas condições sempre 2004;(60):21-33.
parcialmente renovadas, e jamais evidentes
para ninguém. 8. Béguin P, Cerf M. Dynamique des savoirs, dynamique
des changements. Toulose: Octarès; 2009.
REFERÊNCIAS
9. Vergnaud G. Schèmes et concepts dans une théorie
1. Rabardel P, Pastré P. Modèles du sujet pour la opératoire de la representation. Psychologie française.
conception. Toulose: Octarès; 2005. 1985;30:245-52.

2. Schwartz Y. Expérience et connaissance du travail. 10. Schwartz Y, Durrive L, . L’activité en dialogue:


Paris: Messidor; 1988. entretiens sur l’activité humaine II. Paris: Octarès; 2009.

11. Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil;


14 G.Canguilhem, numa obra pouco conhecida, publica- 1990.
da em 1939 com seu amigo C.Planet, e nós reeditamos
com um grupo de filósofos nas Edições Editions Vrin em
2010, Traité de Logique et de Morale, escreveu sobre o
suicídio, onde ele evidencia que essa norma extrema de
agir que alguém se dá a si mesmo, resulta de um debate
singular, não antecipável, nem julgável a priori, entre os
horizontes de vida do ser e o que a vida pode fazer valer
por ele  : «  Nós não vamos aqui aconselhar ou desa-
conselhar o suicídio, mas somente propor princípios de
julgamento diante do suicídio. A vida é ao mesmo tempo
a ocasião, o meio e o obstáculo à moralidade (…). Não
se pode saber se as razões que ele julga válidas de espe-
rança na vida não serão para um outro as razões de sua
desesperança ». E evocando com uma présciência sur-
preendente a hipótese de perseguição racial se tornando
«  a regra na terra  », ele se demanda então quem teria
audácia de julgar os candidatos ao suicídio. « Se Deus
admite os pogroms, porque ele não admite os suicídios »
(Editions F .Robert et fils, Marseille, p.251).

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