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As confissões da carne

Michel Foucault. Les Aveux de la chair. Paris: Gallimard, 2018.

Alessandro Francisco
Doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, é professor dos
cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UNIFAI e do COGEAE (PUC-SP).
É também pesquisador associado à Université Paris 8 e à École Normale
Supérieure de Paris, em nível de Pós-Doutorado. Contato: alessandro.fco@
terra.com.br.

É um grande desafio escrever entre subjetividade e verdade.


uma resenha da mais recente É sabido que sua tradução
publicação póstuma de Michel para a língua portuguesa está em
Foucault, em especial ao se curso, uma vez que os direitos
considerar que Frédéric Gros, já foram adquiridos por uma
responsável por sua edição, o faz, editora brasileira. Nosso objetivo,
até certo ponto, na Advertência aqui, é oferecer aos interessados
que antecede o texto propriamente os principais temas e ingredientes
dito. analisados no escrito, não sem
Uma vez aceita a empreitada, risco de restringir sua abordagem
propomos a apresentação da tal como apresentados no
publicação em duas partes: na desenvolvimento do texto original,
primeira, apresentaremos o mais até que esta tradução venha a
sistematicamente possível os público.
argumentos e elementos presentes As confissões da carne (Les aveux
no escrito; na segunda, mais breve, de la chair), publicado na França
visamos situar os argumentos e em 08 de fevereiro de 2018,
elementos textuais no quadro de se inscreve no projeto de uma
um problema filosófico central História da sexualidade que perfaz,
para Michel Foucault: as relações agora, quatro volumes publicados:

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A vontade de saber (1976), O uso fizemos alusão; (2) os três densos
dos prazeres (1984), O cuidado de capítulos do livro e (3) quatro
si (1984) e As confissões da carne anexos.
(2018). Na “Advertência”, Gros apresenta
O projeto inicial, apresentado não somente o tema e alguns dos
na quarta capa da edição da elementos tratados no texto, mas
primeira brochura – A vontade também o modo como o livro foi
saber –, anunciava um total de estabelecido, baseando-se em duas
seis volumes: o publicado em versões do texto: a manuscrita e a
1976, seguido de A carne e o corpo, datilografada.
A cruzada das crianças, A mulher, Os capítulos serão tratados por
a mãe e a histérica, Os perversos, nós, mais longamente [a seguir].
População e raças, tal como nos Os anexos, que não pretendemos
faz recordar Frédéric Gros (2018, abordar aqui – com exceção
p. I). É verdade que se trata do primeiro –, compõem um
de “uma série de pesquisas que conjunto de quatro documentos,
não pretendem ser nem um todo se assim os pudermos chamar.
homogêneo nem um tratamento Segundo Gros, os três primeiros
exaustivo do tema”. Trata-se, como consistem em folhas que estavam
vemos, de um “trabalho disperso em pastas separadas no conjunto
e mutável” (Foucault, 2001, p. de manuscritos de Foucault,
136, DE 190). enquanto o quarto deles é um
“desenvolvimento do manuscrito e
1. Os elementos do texto da datilografia”. O primeiro anexo
1.1 A divisão da unidade elenca os objetivos gerais do texto;
física: as partes do livro o segundo é um “exame crítico
Considerando sua unidade física, das relações entre ‘exomologese’
As confissões da carne é dividido e ‘exagorese’” (Gros, 2018, p.
em três partes: (1) “Advertência”, X) que se situa na sequência
redigida por Frédéric Gros, a que da primeira parte do escrito; o

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terceiro, aprofunda o estudo sobre bem e os bens do matrimônio”; e
a “segunda penitência”, referida “A libidinização do sexo”. Destes
no capítulo III; o quarto, enfim, títulos, apenas aquele do primeiro
consistiria num desdobramento capítulo e aqueles da terceira parte
final do escrito, que Gros preferiu e dos dois primeiros capítulos que
publicar como anexo, considerando a compõem foram dados pelo
que, nele, Foucault trata “temáticas próprio Foucault.
que são de fato desenvolvidas Em seu conjunto o texto abrange
anteriormente”, fundamentalmente quatro períodos ou momentos da
as relações entre ato sexual e história de nossa cultura (ocidental),
concupiscência em Agostinho. ainda que as camadas destes
momentos se sobreponham e que,
1.2 Apresentação geral do por vezes, Foucault remeta ao
escrito cristianismo oriental. São eles (1)
O texto de Foucault é dividido o paganismo da Antiguidade, que
em três partes, conforme o Michel Foucault também designa
estabelecimento da publicação pelas expressões “moralistas
por Frédéric Gros. A primeira, pagãos” (p. 15), “moralistas da
“A formação de uma experiência Antiguidade” (p. 21), ”mestres de
nova”, é subdividida em quatro conduta da Antiguidade” (p. 106),
capítulos: “Criação, procriação”; “vida filosófica da Antiguidade”
“O batismo laborioso”; “A (p. 121), “filosofia helenística” (p.
segunda penitência”; e “A arte das 252), “filosofia da Antiguidade”
artes”. A segunda, “Ser virgem”, (pp. 252-253); (2) o princípio do
é subdividida em “Virgindade e cristianismo primitivo, em especial
continência”; “Artes da virgindade”; por meio dos testemunhos de
“Virgindade e conhecimento de Clemente de Alexandria (150 d.C.
si”. A terceira e última parte, “Ser – 215 d.C.) e de Tertuliano (160
casado”, é subdividida, por sua d.C. – 220 d.C.); (3) o período
vez, em “O dever dos esposos”; “O dos chamados “exegetas cristãos”,

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dentre eles, Cipriano (250 d.C. 1.3 Apresentação dos capítu-
– 304 d.C.), Metódio de Olimpo los
(250 d.C. – 311 d.C.), Eusébio de Quatro são os eixos temáticos
Cesareia (265 d.C. – -339 d.C.), correspondentes aos quatro
Gregório de Nissa (330 d.C. – capítulos estudados nesta primeira
395 d.C.), Basílio de Ancira (ca. e mais densa1 parte do texto: o
336 d.C. – ca. 362 d.C.); e (4) o matrimônio e as relações entre
momento agostiniano – expressão esposos, em especial a relação
nossa – onde analisa o discurso sexual; o batismo, que se apoia
de Agostinho (354 d.C. – -430 sobre a tríade pecado-confissão-
d.C.). Em resumo, trata-se de um penitência; a paenitentia secunda
percurso que parte dos “mestres (que dá título ao item); e a direção
de conduta da Antiguidade”, tais de consciência.
como Caio Musonio Rufo (25 Dedicando-se, mormente, à
d.C. – 95 d.C.) e Epiteto (50 d.C. análise do discurso de Clemente
– 135 d.C.), ainda que somente a de Alexandria, Foucault nos mostra
título de comparação; passa pelo o modo como o tratamento dado
cristianismo primitivo – abarcando ao matrimônio e à procriação se
dois momentos distintos–; e transforma dos “moralistas da
alcança, por fim, Agostinho. Antiguidade” a Clemente. Nos
Assim, ao longo de todo o primeiros, trata-se de indicar regras
escrito, Michel Foucault empreende de decência e de prudência (pp.
uma análise comparativa que 21-22): é a categoria do excesso
visa a destacar, de um lado, as que está em jogo nos estoicos, por
descontinuidades entre diferentes exemplo, no que concerne ao modo
períodos do desdobramento de de bem viver ou, se se preferir,
nossa cultura, e, de outro lado, de uma vida bela. No discurso de
uma possível – mas não simples Clemente, ainda que esta categoria
– continuidade. 1
A primeira parte soma 145 páginas,
enquanto a segunda totaliza 98 e a
terceira 114.

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(p. 18) esteja presente, as regras a qual portamos em nós um
ganham estatuto de regime, isto fragmento luminoso do Lógos.
é, tudo o que concerne à relação No capítulo que segue, “O
entre esposos torna-se “objeto de batismo laborioso”, é sublinhada
ocupação, de intervenção e de a importância deste sacramento:
análise” (p. 22). único ato que permite a remissão
Segundo o discurso de Clemente dos pecados, impõe uma marca,
de Alexandria, é o Lógos – numa possibilita um novo nascimento,
nova compreensão – que nos lava, ilumina. Ele é “laborioso”
oferece estas prescrições, seja por porque envolve uma série
meio da natureza, seja pela razão de preparos: a investigação
humana, seja ainda pela palavra interrogatória, as provas de
de Deus (p. 16). E uma vez que é exorcismo, onde se deve confirmar
o Lógos (p. 28) que prescreve as a expulsão do Espírito do Mal, e
regras para conhecer o momento a confissão dos pecados, isto é,
oportuno das relações sexuais, o reconhecimento de que se é
serão três as “lógicas” analisadas pecador.
por Foucault, sempre situadas no Segundo Foucault, o modo como
quadro do matrimônio, obedecendo se dá a experiência do batismo
à tripartição acima: “lógica” da neste período do cristianismo
natureza animal, segundo a qual as primitivo, mostra três implicações.
relações sexuais devem atender ao Inicialmente, o batismo testifica a
único fim da procriação, acessível “inversão do sentido da morte” (p.
pela observação dos animais e 74) ou ainda se inscreve no âmbito
de sua anatomia; a “lógica” da do problema morte-ressurreição
natureza humana, que assevera a (p. 75), pois faz o catecúmeno –
distinção entre alma e corpo e aquele que recebe o aprendizado
a superioridade da primeira; e a da vida cristã – morrer para o
“lógica” da criação e da relação pecado e para a própria morte.
com o Criador (p. 29), segunda Isto gera implicações no modo

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como se concebe e se efetua a segunda penitência”, Foucault
metánoia – conversão – sublinhadas não toca o problema da recaída,
por Foucault. Ela constituirá um analisado no curso Do governo
exercício de si sobre si voltado à dos vivos, senão indiretamente.
mortificação que, por sua vez, não Trata-se de um “segundo recurso
se reduz ao momento do batismo, para os pecadores” (p. 79). A
mas se estende demoradamente análise empreendida por Foucault,
num preparo que reclama provas no início deste capítulo, se volta
como signo de morte para o para o Pastor de Hermas – escrito
pecado. Em segundo lugar, emerge cristão dos séculos II d. C. redigido
toda uma problemática envolvendo em grego e considerado canônico,
o Inimigo que reside na alma do dentre outros por Clemente de
catecúmeno, daí a necessidade Alexandria – e para os escritos de
das provas de exorcismo citadas. Ambrósio (337 d.C. – 3297 d.C.).
O batismo como processo de Deve-se frisar que são
purificação, de limpeza, visa a diversos os passos – técnicas,
desligar o sujeito de suas máculas procedimentos – que envolvem a
no caminho da luz e da salvação. penitência, o que leva Foucault a
Por fim, o efeito do sacramento, efetuar uma bipartição da análise
que apaga as faltas e que passa de empreendida inicialmente. Num
uma concepção de relação direta primeiro momento, ele sublinha
com Deus, nos primeiros séculos todo um campo de incerteza no
de nossa era, a uma relação que concerne à concessão da nova
intermediada pelo sacerdote, em purificação, daí a necessidade de
desdobramentos ulteriores, que, uma série de “práticas de exame”
por sua vez, desempenha o papel (p. 88). Num segundo momento,
de juiz (p. 101) – o que Foucault analisa os termos confessio
designará mais adiante de “recurso e exomológesis, distinguindo
ao modelo judiciário” (idem). três elementos: a solicitação da
No capítulo seguinte, “A penitência; a exposição das faltas,

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que não é necessária à penitência uma “exposição oral” daquele que
propriamente dita; e a compreensão passará pela penitência, acrescida
da exomológesis como uma maneira de uma diversidade de “gestos,
de ser e de viver que se apoia atitudes, prantos, vestes” (p. 96);
sobre o “valor demonstrativo” (c) jurídico e dramático, uma vez
(p. 94) das práticas penitenciais, que se inicia pela evidenciação
não se restringindo somente ao das ocorrências e por uma espécie
“episódio final da penitência” (p. de “cálculo de economia” (idem),
93). seguindo-se pela mais vigorosa
Os inúmeros procedimentos ênfase possível de seu estado de
que visam ao perdão das faltas penitente; (d) objetivo e subjetivo,
e à reconciliação ou comunhão pois a se deve determinar a falta
com o Criador e envolvem esta cometida e o “estado do próprio
segunda penitência são divididos, pecador” (p. 97).
por Foucault, em quatro eixos que O último capítulo desta primeira
se subdividem em dois polos – parte, intitulado a “A arte das artes”,
formulação verbal e privada, de inicia-se por uma comparação entre
um lado, e de expressão global as formas de direção de consciência
e pública, de outro (p. 97) –, episódicas (a partir de Epiteto) e
quais sejam: (a) privado público, as contínuas (nos epicuristas, por
na medida em que a confissão exemplo), abordando também a
é realizada privativamente ao prática de exame de consciência
sacerdote, mas possui uma dimensão tal como aparecia nos pitagóricos,
pública, na medida em que o em Sêneca e em Galeno, e seu
penitente se apresenta suplicante desenrolar no modo como surge
diante dos demais, às lágrimas no cristianismo dos primeiros
e, obedecendo a uma referência séculos de nossa era.
bíblica que aparece em Ester 4.1, Com base na análise do discurso
coberto por um saco e por cinzas; de Clemente, por exemplo, dá-se
(b) verbal e não-verbal, pois há conta da distância – ainda que

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haja pontos de contato – entre a quanto às obrigações da vida
direção de consciência que evoca monástica nem se descomedir.
a figura do mestre, presente na
filosofia pagã da Antiguidade, e A segunda parte, “Ser virgem”,
aquela que se apoia na personagem apresenta o modo como os exegetas
do “Cristo, que se sacrifica pelos cristãos, aqueles que viveram
homens” (p. 115). Esta condução principalmente até o século IV
de consciência de tipo cristã- d.C., tomaram as relações sexuais
primitiva é a ars artium, analisada como problema, apontando que
por Foucault em seu “princípio de este assunto não evoca exatamente
direção”: a direção de consciência um “imperativo ou (...) uma prática
exercida por um ou mais mestres de abstenção”. Ele consiste numa
é necessária à vida perfeita, isto é, discussão realizada necessariamente
à vida monástica, e se efetua (a) por meio do tema da prática da
por meio da renúncia da própria virgindade (p. 153).
vontade, no quadro de uma rigorosa Debruçando-se, mormente,
obediência (global, total); (b) por sobre escritos de Metódio de
um contínuo exame de si, que Olimpo, o primeiro capítulo desta
permite manter rigorosa atenção parte, “Virgindade e continência”,
sobre os próprios pensamentos, expressa duas implicações
pois eles podem apresentar à importantes: a primeira, de que
alma “sugestões nocivas” (p. 137), a virgindade “não é objeto de
confundi-la; e (c) por uma perene uma prescrição”, ela é “modo de
confissão, que dá luz às faltas. relação entre Deus e o homem”
Em seguida, analisando o (p. 176); a segunda, de que a
discurso de João Cassiano (360 virgindade não constituirá uma
d.C. – 435 d.C.), é indicado submissão, como o seria em relação
que nesta prática de direção de a uma Lei, mas uma prática, mais
consciência deve-se atentar para a precisamente “um exercício da
categoria do excesso: nem relaxar alma sobre si mesma” (idem). A

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virgindade não é uma Lei nem do matrimônio, conduz uma vida
o objeto da Lei nem sequer uma tranquila e calma, dependendo
prescrição. Ela é um modo de somente de si e possibilitando
relação entre o homem de Deus, à sua alma permanecer consigo
modo de relação da alma consigo mesma, recolhida e distanciada
mesma e exercício da alma sobre de tudo que lhe é exterior. Ela
si (ibidem). é também uma “escolha livre e
No capítulo seguinte, “Artes da individual” (pp. 185-186). Trata-
virgindade”, Foucault analisará se, portanto, daquilo que Foucault
a virgindade tal como aparece designa de “caráter não-obrigatório
nos exegetas cristãos: não um da virgindade” (p. 186), que a faz
impedimento ou recusa às relações valer mais que qualquer veto ou
sexuais, mas um “estado positivo”, impedimento. Ela é uma distinção
como uma arte que se elabora no em relação aos demais pela
decurso do século IV de nossa era. conduta que requer, possibilitando
A virgindade deixa, portanto, de àquele que a exerce estabelecer
ser uma continência, uma negação, uma relação de semelhança com
uma abstenção ou rejeição, e Deus.
passa a ser algo que se busca É então que o problema do
positivamente como elemento – “crescei e multiplicai-vos aparece”
prática – da vida do cristão. A (Gênesis, 1:28). Segundo a
virgindade é, assim, analisada a leitura de Foucault dos exegetas
partir de um quadro duplo de cristãos, o homem se reproduzia
inspiração da filosofia pagã que no período paradisíaco, mas sem
foi simultaneamente transposto e recorrer à união dos sexos – não
modificado pelos exegetas: aquele havia matrimônio entre os anjos,
da crítica do matrimônio e do por exemplo –, de modo que
elogio da vida independente. A aquele que pratica a virgindade
virgindade como prática positiva se aproxima do estado pré-queda.
será o caminho daquele que, fora Restabelecendo em sua alma “a

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marca da divindade” (p. 192), No discurso de Basílio, Foucault
a virgindade “abre a existência destaca que a arte da virgindade
angélica”, ou ainda, segundo apresenta dois aspectos. O primeiro,
Eusébio de Emesa (ca. 300 d.C. naquilo que separa ou desliga
– ca. 359 d.C.), “ela faz subir ao – separação alma-corpo –, na
céu” (idem), é a “restituição da medida em que se relaciona com
vida angélica” (p. 195) no mundo a interrupção do desejo natural,
terrestre. Em suma, a evocação isto é, do prazer concebido como
da prática da virgindade ou da atração entre os sexos e como
virgindade como “experiência “forma geral de obscurecimento ou
espiritual” (p. 202) é realizada por de pesar da alma pelo corpo” (p.
meio de sua qualificação e não 209). O segundo aspecto é aquele
pela desqualificação das relações que reclama a pureza de ambos,
sexuais. o que inviabiliza uma hipotética
Ao final deste capítulo, é solução oferecida pela castração,
ressaltado que, segundo o discurso por exemplo: se todo pensamento
dos exegetas cristãos, somente é um ato, o ato do desejo estaria
será possível exercer a virgindade presente na alma, mesmo após a
como “gênero de vida” (p. 204), castração física.
como modo de relação consigo No que concerne à análise de
mesmo, sob a direção de um Cassiano, Foucault destaca que o
mestre (p. 203). quadro é diverso: trata-se da vida
No último capítulo desta segunda monástica, cenobial. Isto quer dizer
parte, “Virgindade e conhecimento que as reflexões empreendidas
de si”, Michel Foucault prossegue por ele se dirigem àqueles que já
com duas análises de escritos renunciaram às relações sexuais.
cristãos: um está localizado no E, aqui, o termo que aglutina
quadro do cristianismo primitivo as discussões sobre a virgindade
oriental, Basílio de Ancira; o é castitas (castidade), concebida
outro, ocidental, João Cassiano. como renúncia das relações sexuais

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(aspecto negativo) e “movimento Foucault marca a “abertura de um
interior do coração” (p. 217) domínio” de análise, exame, sobre
(aspecto positivo), isto é, ela é (a) o qual uma série de técnicas
estado que se visa a alcançar (a e exercícios será consagrada: o
“pureza de coração” que possibilita pensamento.
relação entre a alma e Deus), e
(b) incessante “combate espiritual” Alcançamos, então, a última
(p. 219) contra os adversários – parte de As confissões da carne,
espíritos do mal –, dentre os quais que se inicia pelo capítulo “O
Foucault analisa a fornicação. dever dos esposos”.
É preciso ainda frisar duas Diversamente da virgindade,
matérias. Cassiano não trata o prática à qual são dedicados
tema das relações sexuais. Seu tratados e que constitui uma arte,
foco reside na castidade e no uma certa técnica, o matrimônio
combate à fornicação. A relação não possui tratados específicos e
sexual não está presente senão nem mesmo reúne práticas que
pela sua ausência. É deste campo constituem uma arte de existência
que emerge a noção de libido – concebendo a noção de “arte”,
– prazer, gosto, desejo, vontade aqui, como técnica. É a partir do
– como aquilo que floresce nas século IV d.C., aproximadamente,
profundezas da alma. Em segundo que escritos sobre o matrimônio
lugar, sempre conforme a análise começam a ser dirigidos aos
de Foucault observa-se que é por cristãos casados.
meio de exercícios de si sobre si, É então que o domínio desta
de uma “tecnologia de si” que tecnologia de si se amplia,
se caracteriza esta vida cenobial, alcançando a vida dos indivíduos.
que visa à pureza e à iluminação. Trata-se do que Michel Foucault
Destarte, entre aproximadamente denomina de “pastoral da
o século II e o IV, isto é, entre vida cotidiana” (p. 252), cuja
Tertuliano e Cassiano, se se quiser, disseminação funcionará de

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maneira mais eficiente que aquela que seja inferior a ela, evoca “a
da filosofia pagã da Antiguidade união da substância da Criação”
devido principalmente à organização (p. 259). E não se deve desprezar
da cristandade como uma Igreja. que, no discurso deste período,
Uma vez estimulada esta espécie o matrimônio também reproduz a
de universalização das regras de união do Cristo com a Igreja.
vida cristãs, o matrimônio se torna O matrimônio, que não deve
elemento relevante de gestão. ser interditado e que não tem a
Neste capítulo, Foucault se procriação senão como finalidade
debruça sobre a literatura dita secundária, estaria relacionado à
homilética, isto é, aquela vigente queda: a mulher foi criada antes
nas homilias – escritos de caráter da queda para ajudar o homem
precatório, ou seja, aquele presente e não para ser sua esposa. Ele é
nos sermões dos sacerdotes –, um impedimento ao excesso que
tomando, em primeiro lugar, o adveio após a queda, despontando
testemunho do pensamento de como limite e como lei –
Crisóstomo. modalidade jurídica de regra –,
Segundo este, o matrimônio com a função de “subjugar os
não é um mal em si. Ele é desejos” (p. 272), mas jamais como
engendrado por uma força natural, sinônimo de fornicação. Ele regra,
oculta em nossa alma, e apresenta juntamente com a virgindade, a
caráter ambíguo, pois, evocando concupiscência. A relação entre
a origem dos tempos, (a) de um esposos é, portanto, concebida
lado, reclama em todos nós uma como laço econômico-jurídico: de
única identidade, como portadores um lado, o matrimônio constitui
da mesma substância, (b) de uma espécie de apropriação
outro, nos torna a todos parentes mútua – que remete à noção de
e, de certo modo, incestuosos. Se propriedade –; de outro, constitui
a virgindade “restitui o estado obrigação. O matrimônio se torna,
paradisíaco”, o matrimônio, ainda então, aquilo pelo que se passa

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com vista à salvação mútua, como concentração sobre a própria
forjando-se em “edifício jurídico” alma, possibilita uma relação com
constituído pelos “esposos como Deus que o matrimônio não pode
sujeitos de direito” (p. 280). No viabilizar; (4) uma vez que é
quadro do poder pastoral é toda um bem superior em relação ao
uma arte da vida conjugal ou matrimônio, a virgindade auferirá
matrimonial que é formulada. mais recompensas. Todos estes
O capítulo seguinte, “O bem passos já estavam presentes de um
e os bens do matrimônio”, modo ou de outro nos exegetas,
inicia um estudo sobre nexos mas a organização dos elementos
entre matrimônio, virgindade de que Agostinho é testemunha é
e relações sexuais, votado aos outra.
escritos de Agostinho. A frase Considerado o matrimônio o
inicial de Foucault nos ajuda menor dos males no quadro da
a compreender o discurso que “gestão possível de um desejo”
chega a Agostinho e que sofrerá (p. 287), Agostinho determina a
transformações: “A virgindade é conduta adequada ao cristão, sem
superior ao matrimônio, sem que jamais assumir que o matrimônio
o matrimônio seja um mal nem seja algo equivalente à virgindade.
a virgindade uma obrigação” (p. Neste âmbito, ainda segundo
283). O matrimônio aparece, então, Foucault, o discurso de Agostinho
no discurso de Agostinho, como não é testemunha da emersão de
um “‘bem’ positivo” (p. 288). um terceiro entre a virgem e os
Foucault apresenta, em seguida, esposos, mas de uma figura que
quatro passos na construção do constitui a relação fundamental
argumento presente no discurso de entre ambas: o “sujeito do desejo”
Agostinho: (1) o matrimônio não (p. 288).
é um mal; (2) a superioridade da Dedicando-se a analisar o modo
virgindade não representa vantagem como o discurso de Agostinho faz
na vida mundana; (3) a virgindade, do matrimônio um “‘bem’ positivo”,

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Foucault passa por três tópicos, uma economia (gestão) do desejo
pontuando as transformações no como a dupla base sobre a qual
discurso tal como se apresenta uma arte da vida cristã e do
nos exegetas e em Agostinho: matrimônio (relações conjugais) é
(1) as relações entre virgindade e erigida.
matrimônio, mostrando que para No capítulo final, “A libidinização
Agostinho aqueles que optam do sexo”, Foucault retoma
por uma vida conjugal também detalhadamente três elementos
participam da unidade da Igreja que possibilitaram ao discurso de
cristã; (2) o tratamento do tema Agostinho a consolidação desta
das relações sexuais, dado que, arte cristã das relações conjugais:
conforme Agostinho, havia relações (a) a distinção entre as relações
sexuais antes da queda; e (3) a sexuais antes e depois da queda,
vida conjugal, em que Agostinho (b) o modo como a libido aparece
prescreve a conduta adequada dos no homem caído e (c) a diferença
esposos. entre a libido e seu uso.
É a partir da análise destes Segundo Foucault, no próprio
elementos do discurso de processo de formação de uma
Agostinho que Foucault denuncia a “teoria da libido”, o discurso do
formulação, no século IV, de uma século IV no ocidente cristão
“teoria da libido”2 (p. 234), isto constitui os alicerces de uma
é, o discurso de Agostinho revela “concepção geral do homem de
uma teoria da concupiscência e desejo” e de uma “juridicção fina
dos atos sexuais” (p. 324),ou seja,
2
Deve-se destacar que Michel Foucault
utiliza o vocábulo libido sempre em de um abraçamento das relações
itálico, com objetivo de precisar o uso
sexuais por um discurso de cunho
latino do termo e de seu sentido antigo.
Foucault sublinha que o termo apresenta jurídico.
basicamente dois sentidos, em Agostinho,
equivalentes àquele de concupiscentia, Nesta análise, são três os itens
quais sejam: desejo daquilo que não se – ou passos – da constituição da
possui e movimento da carne manifesto
no momento paradisíaco sob controle teoria da libido em Agostinho
da vontade.

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tratados por Foucault. homem “depravado” (p. 343) por
Primeiramente, são apresentados natureza, fazendo-o desejar aquilo
os modos como se dão as relações que não quer desejar (distinção
sexuais e aquele que é conforme entre desejo da carne e desejo do
o período paradisíaco: o homem espírito); (b) o estatuto da libido
faz uso de sua vontade quando em relação ao pecado, dado que
pratica o ato sexual sem libido. a libido é consequência da falta
Segundo o discurso de Agostinho, original e é também a atualização
a libido se inscreve no próprio do pecado na humanidade (o
sujeito – sem fazer recurso à homem somente nasce da relação
partição corpo-alma –, atestando sexual que é “libidinosa” após a
a passagem da simplicidade à queda, isto é, necessariamente do
perversidade que transforma o pecado), de que o homem somente
olhar do homem sobre a nudez. estará livre no fim dos tempos;
Em segundo lugar, Foucault (c) por fim, o efeito do batismo
analisa a maneira como, segundo sobre o homem, que extingue a
Agostinho, a libido se entrelaça ao culpabilidade da concupiscentia,
regramento das relações sexuais ainda que esta permaneça na
após a queda do paraíso. É isto “estrutura permanente do sujeito”
que permite distinguir a relação (p. 349), não como pecado em
sexual do movimento involuntário ato no sujeito, mas como aquilo
da libido. que compele o homem ao pecado
Definido o quadro geral da (“lei do pecado”), concebido, por
problemática, Foucault prossegue seu turno, como chaga ou doença
com uma análise em três partes: (idem).
(a) a relação da libido com a Em terceiro lugar, são analisados
alma, pois a concupiscentia os efeitos e consequências desta
não é movimento do corpo que teoria geral da libido – ou da
subjuga a alma, ela está enraizada concupiscentia – característica
na própria alma, o que torna o do século IV de nossa era no

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ocidente cristão, de que o discurso Trata-se de querer uma vontade,
de Agostinho é testemunha. isto é, de a vontade querer a si
Um primeiro destaque que mesma concupiscência decaída.
merece atenção é o fato de estes Consentir é querer o quer, a
efeitos e consequências serem concupiscência que reside no
tratados de maneira jurídica: sujeito. O consentimento não
procede-se uma “juridificação” (p. coloca o desejo em relação
351) do discurso que envolve as com um objeto desejado, mas
relações sexuais e, portanto, as com a vontade enraizada na
relações do sujeito consigo mesmo. natureza decaída do sujeito. No
Trata-se de pensar o sujeito como que concerne ao uso, segunda
sujeito de desejo e como sujeito noção analisada, o discurso de
de direito simultaneamente. Agostinho introduz o problema da
Segue-se, então, uma análise de concupiscência em toda relação
duas noções que, segundo Foucault, sexual, mesmo aquela realizada
são primordiais neste processo de no âmbito do matrimônio. Ainda
“juridicificação”: consentimento e que o matrimônio seja um bem,
uso. No que se refere à primeira, a concupiscência o acompanha
retoma-se o tema da extinção do necessariamente quando há
aspecto jurídico da concupiscência relações sexuais. Novamente, no
pelo batismo, destacando, ainda discurso de Agostinho, o problema
mais uma vez, que ela permanece repousa na vontade, no sujeito
presente no sujeito como qualidade, de desejo: no ato sexual entre
sob a forma do desejo que pode esposos pode-se querer satisfazer a
a qualquer momento ser suscitado concupiscência ou pode-se querer
por um objeto. Assim, para que conceber filhos. Entretanto, ainda
ela se torne pecado, é preciso que que se faça uso não-concupiscente
a vontade do homem queira o da concupiscência, esta não está
que quer a concupiscência, isto é, apagada jamais da natureza do
é preciso que haja consentimento. sujeito.

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Assim sendo, consentimento e Uma leitura inicial talvez não
uso não se reportam diretamente permita perceber que o tema
às relações entre esposos. Ambos da sexualidade é analisado, por
somente alcançam as relações no Foucault, no quadro de uma história
interior do matrimônio passando das relações entre subjetividade
pela noção de desejo, atravessando e verdade – não sem se situar
o sujeito de desejo, que é no programa de uma História
naturalmente concupiscente e que dos sistemas de pensamento, nome
contrai matrimônio, possibilitando, que Foucault dá à sua cátedra
então, sua “codificação” (p. 360), no Collège de France. Tomemos,
isto é, a prescrição de uma prática então, elementos textuais que nos
adequada destas relações. auxiliem a identificar a conexão
entre o tema (da sexualidade) e
o problema (das relações entre
2. O tema da sexualidade e o subjetividade e verdade).
problema das relações entre Recorramos, primeiramente,
subjetividade e verdade ao terceiro item do Anexo I
Uma vez abordados os elementos de As confissões da carne, onde
textuais na ordem de sua apresentação, Foucault apresenta como um de
e buscando, o quanto possível e de seus objetivos gerais:“É a nova
modo bastante resumido, restabelecer definição das relações entre
as análises realizadas por Michel subjetividade e verdade que vai
Foucault em As confissões da carne, dar a este núcleo prescritivo antigo
é preciso compreender o painel uma significação inédita, e aportar
mais amplo em que se inscreve o à concepção antiga dos prazeres
tema da sexualidade, sublinhando, e a sua economia modificações
em seguida, sua importância, para importantes” (p. 365, grifo nosso).
Foucault, comparando-o aos demais Em seguida, explicitemos alguns
assuntos aos quais se ofereceram indicadores que aparecem ao longo
suas pesquisas. do texto. De início, ao tratar

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Clemente de Alexandria, Foucault preparatórias do batismo, é
aponta que a “carne” é um “modo também “prova de verdade” (p.
de experiência” concebido, já nos 69), uma autenticação da alma do
primeiros séculos de nossa era, catecúmeno como alma livre de
como “modo de conhecimento e impurezas.
de transformação de si por si” (pp. O mesmo se pode afirmar
50-51). O que interessa, aqui, a da confissão: trata-se de “dizer
Foucault é toda uma problemática a verdade sobre si”, de uma
que abarca certa verdade de si “manifestação de sua própria
que se enraíza cada vez mais verdade” (p. 72), que, ela também,
na dita “estrutura do sujeito” ao purifica, não somente permitindo
longo dos anos de desdobramento o acesso à verdade, mas também
da nossa cultura ocidental. explicitando, neste discurso, a
Ato contínuo, dirijamos-nos ao necessidade de realizar uma
batismo dito “laborioso”, isto é, “verdadeira vida” (p. 73).
aos diversos procedimentos que O percurso do catecúmeno da
envolvem a preparação para este vida pagã à “vida verdadeira” passa
sacramento. Recordemos que o sempre pela categoria da verdade,
batismo lava para que se alcance porque os procedimentos como
a iluminação. Esta iluminação batismo, exorcismo, confissão
advém da purificação empreendida etc. possibilitam, de uma parte,
pelo sacramento e permite, o acesso à verdade advinda de
consequentemente, uma relação Deus, e, de outra, a instauração
com Deus, o que torna o batismo de uma relação da subjetividade
um meio de “acesso à verdade” consigo mesma que a faz conhecer
(pp. 53 e 56-57): permite à alma sua verdade e que reclama, neste
acessar a claridade que vem de processo, que produza um discurso
Deus para que esta a preencha de verdade sobre si.
(p. 53). No caso da “segunda
O exorcismo, uma das práticas penitência”, se dá o mesmo: ela

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é também procedimento que visa se reconhecer uma “obrigação de
à manifestação da “verdade da verdade” e uma necessidade de
alma” (p. 86). Ela igualmente “dizer a verdade” (p. 100) que se
purifica e ilumina, apresentando- forjam já nos primeiros séculos de
se duplamente, no âmbito deste nossa era.
discurso, como “procedimento No que lhe concerne, a direção
de verdade” (p. 88), pois ela (a) de consciência tal como se elabora
visa a alcançar uma verdade (do nos primeiros séculos de nossa era,
Lógos, por exemplo em Clemente, a partir de um certo modelo da
e assumidamente divina, nos Antiguidade pagã, não tem outro
períodos que se seguem) por fim senão reivindicar da pessoa
meio da (b) descoberta da própria que diga a verdade sobre si e,
verdade que reside na pessoa. daquele que a ouve, “receber a
Sua constituição bidimensional verdade” (p. 112).
– privada e pública –, faz da Com a virgindade não se dá
penitência um “procedimento de algo diverso. Ela está diretamente
verdade” (pp. 96-97) não somente vinculada à pureza desejada para
porque é um ato de manifestação alcançar a iluminação da alma, que
da verdade (pp. 95 e 98), mas necessariamente passa, por sua vez,
também porque constitui um por uma direção espiritual e por
modo de viver: trata-se de uma um rigoroso exame de consciência
“verdadeira vida de penitência” – a virgindade e a castidade,
(p. 95). Por ela se põe luz sobre a se se quiser, requerem contínua
verdade do pecador e do pecado, vigilância de si (pp. 214-215) e
purificando-se também a alma de seus próprios pensamentos –
por meio desta manifestação. A fazendo se entrelaçar, na prática
penitência é, portanto, “veridicção” da virgindade, “olhar, objeto
(pp. 98 e 105): situa a falta da e luz” (p. 219) como bases de
pessoa no quadro do problema constituição de uma prática de
da verdade. À vista disso, pode- conhecimento de sua própria

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verdade. Manter-se casto exige cristã que se desenrolou a
conhecer os “movimentos mais partir de um certo modelo dos
secretos do coração” (p. 215). moralistas da Antiguidade, isto
No processo de constituição é, dos mestres da filosofia dita
de si mesmo como sujeito – helenística, não manifestou apenas
subjetivação –, em especial ao uma dimensão negativa, isto
se tomar esta constituição na é, de dominação, interdição e
esfera da sexualidade – de uma recusa/negação. Há também, nela,
“subjetivação da ética sexual” (p. uma dimensão positiva, como
215) –, a subjetividade produz observado por Foucault, dado que
continuamente a “verdade de si” (p. tratou de “refletir e de regrar
245). Ao organizar-se, constituir- os comportamentos sexuais no
se, compor-se com os elementos Ocidente: em termos de verdade
do mundo, a subjetividade se (...) e em termos de direito” (p.
viu cada vez mais lançada no 282).
campo da verdade e, ao menos de No que lhe diz respeito, no
maneira geral – ressaltamos que momento histórico de nossa cultura
há exceções, sem dúvida –, no de que o discurso de Agostinho
Ocidente, não concebeu um modo é testemunha, o processo de
de relação consigo senão aquele “veridicção” se apresenta numa
do conhecimento. E o problema do forma bastante precisa, aquela da
conhecimento não reclama senão a “juridicção” (p. 360), da constituição
decifração (p. 281), pois, no plano de um sujeito de direito. É entre os
das relações que a subjetividade séculos IV e V de nossa era que
estabeleceu consigo mesma, deve- sexo, verdade e direito têm seus
se continuadamente acessar os laços estreitados e se tornam mais
segredos profundos incrustados conectados (p. 361). No período
na própria alma, ocultos em sua agostiniano, se assim pudermos
“essência”. denominá-lo, a verdade não se
Entretanto, a cultura ocidental situou mais na alma do sujeito

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concebendo-a como algo distinto do como esfera de análise, para
corpo. O problema da partição alma- Michel Foucault. Na “história da
corpo ganha uma dificuldade, pois, experiência de si” (p. 99) que
com Agostinho, a verdade reside na Foucault empreende desde o início
“estrutura do sujeito”: após a queda, de seu percurso como pesquisador
o sujeito realiza o ato sexual imbuído – se é mesmo possível determinar
de libido e esta está incrustada um início –, o tema da sexualidade
na natureza do homem decaído. ocupa lugar privilegiado. Foram
No capítulo dedicado ao estudo quatro os escritos consagrados ao
da constituição de certa teoria da tema: os quatro volumes de sua
libido em Agostinho, como vimos, História da sexualidade.
está presente uma complexidade Desaprovamos qualquer
de relações entre vontade, vontade tentativa “psicologizante” que
da libido (concupiscentia), verdade funde a importância do tema da
e processo de “juridificação” do sexualidade para Foucault em sua
discurso. vida pessoal. O próprio professor
do Collège de France já nos fizera
Assim como o tema da loucura, compreender seu interesse nesta
da doença, da morte e do crime matéria em seu curso de 1981.
(Foucault, 2014, p. 16), o tema Diferentemente dos temas da
da sexualidade é mais uma loucura, da doença, da morte e
das matérias que possibilitam a do crime – de que se ocuparam
Foucault acessar a problemática escritos como História da loucura,
das relações que a subjetividade Nascimento da clínica e Vigiar e
estabelece com a verdade e que punir, por exemplo –, a rejeição,
se situam ainda no quadro do a recusa, a repressão, a regulação,
conhecimento e, portanto, do a desqualificação da sexualidade
conhecimento da verdade sobre si. não são nem sistemáticas nem
Contudo, não devemos preterir fundamentais e nem mesmo
a importância da sexualidade constantes (Foucault, 2014, p.

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16). Nos discursos elaborados somente distinção, mas também
no interior de nossa cultura, não nossa atenção, e ele é correlato
há qualificação, aceitação ou às dificuldades metodológicas
valorização da loucura, da doença, inerentes à arqueologia como
do crime e da morte. Por seu abordagem de análise de discursos
turno, a sexualidade não somente empreendida por Foucault.
reclama recusa, mas aceitação; não Numa leitura ligeira do escrito,
somente sofre desvalorização, mas ele parece constituir mais uma
também experimenta valorização. crítica ao cristianismo dentre
Além disso, os discursos de tantas outras já realizadas.
verdade formulados nos campos Todavia, Foucault já havia nos
da loucura, da doença, da morte e alertado que seria “imprudente
do crime – e aqui parece residir falar do cristianismo como se o
o principal motivo de privilégio cristianismo existisse” (idem, p.
dado por Foucault a este tema – 20). Os discursos analisados por
advêm, mormente, do exterior – Foucault ao longo do escrito são
afirma-se, de um dado campo de continuamente comparados àquele
saberes, a verdade sobre o sujeito do paganismo da Antiguidade e
–, isto é, trata-se, sobretudo, de destacam, em todo o percurso
um discurso “sobre o sujeito”. do escrito, que o problema de
Nos discursos sobre a sexualidade “dizer a verdade sobre si” (idem,
eles são, de um lado, proferidos p. 16) não tem sua formulação
“sobre o sujeito” da sexualidade, no interior do cristianismo, mas
mas, de outro, eles exigem que já no período helenístico: em
o sujeito produza um discurso de Sêneca, se se quiser. Como está
verdade sobre si mesmo. atestado em As confissões da
carne, “Os temas da filosofia
Enfim, há ainda um último antiga impregnaram o pensamento
ingrediente trazido pela leitura cristão” (p. 113). Sublinhe-se
deste escrito que merece não ainda que as ditas literaturas pagã

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e cristã se comunicam (Foucault, Clemente de Alexandria, pelos
2014, p. 17) e se entrelaçam, daí exegetas cristãos dos séculos III
a impossibilidade de determinar e IV d.C., alcançando Agostinho,
com clareza o que seja a literatura Foucault transita por momentos
propriamente cristã ou ainda distintos de constituição de nossa
o próprio cristianismo. Mais cultura e da “história da experiência
ainda, no item primeiro de seu de si” (Foucault, 2014, p. 17) que
Anexo I também encontramos, se fez ao longo dos tempos.
dentre os objetivos gerais do Compreende-se, então,
texto, este: “Existe um núcleo certa decepção3 que Foucault
prescritivo relativamente constante demonstrou em relação à filosofia
no cristianismo. Este núcleo é da Antiguidade greco-romana, pois
antigo. E se formou anteriormente ela “deu lugar a uma forma de
ao cristianismo. É claramente pensamento que ia se encontrar
atestado nos autores pagãos da no cristianismo” (Foucault, 2001,
época helenística e romana” (p. p. 15149, DE 354). Foucault não
365). totaliza ou universaliza sua posição
A crítica – se assim se quiser em relação à moral da Antiguidade.
chamar – de Foucault é menos Não obstante, ele frisa que, num
evidente, menos ingênua e mais dado momento de sua história, a
radical: ela mostra o tempo todo moral da Antiguidade se tornou um
que a formulação de um certo campo que reclamava a atenção
discurso de verdade e de um a si (Foucault, 2001, p. 1519,
discurso de verdade sobre si passa DE 354). Trata-se de constatar
de um período a outro da história um certo movimento realizado
de nossa cultura estruturalmente pelo pensamento ocidental de um
– como uma configuração –, período a outro, para que se possa,
arriscamos dizer, e por meio de
elementos e temas. Dos moralistas
3
Saliente-se, especialmente, a passagem:
“(...) Estes gregos, você os achou
da Antiguidade, passando por admiráveis? – Não.” (Foucault, 2001, p.
1517, DE 354).

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ao cabo de cada análise, efetuar (de condições de possibilidade
um diagnóstico daquilo que nos dos saberes) há uma contínua
tornamos. transformação do modo de ser do
Isto posto, sempre há elementos, discurso e, simultaneamente, da
temas e configurações que podem experiência que fazemos de nós
ser aproveitados numa época e mesmos.
em outra de nossa história, bem A “crítica” de Foucault é,
como há aquilo que se deve como dissemos, menos evidente,
refugar (Foucault, 2001, p. 1521, menos ingênua e mais radical: o
DE 354). Michel Foucault também problema que envolve os discursos
nos advertiu sobre isto. de verdade sobre si e toda a
Epiteto ou Sêneca, Clemente de problemática do conhecimento,
Alexandria ou Tertuliano, Basílio bem como aquela do conhecimento
de Ancira ou Gregório de Nissa, de si, não é forjado no interior
assim como Agostinho não são
senão indicadores, testemunhos (p. mesma referência à natureza e às suas
lições (p. 48); 2. há “certa continuidade”
280) do pensamento, testemunhos dos “mestres de conduta da Antiguidade
aos guias da vida ascética” (p. 106); 3.
de certo modo de formulação do “se vê que o cristianismo (...) parece
discurso na cultura ocidental. E trazer o mesmo sistema de moral sexual
da cultura antiga que o precede ou o
se há descontinuidade entre eles, circunda” (p. 151); 4. os autores do
século IV d.C. apresentam inspiração
há sempre algo que passa de um
na moral dos filósofos pagãos (p. 180);
momento a outro de nossa história, 5. há semelhanças entre a pastoral da
vida cotidiana e a moral filosófica,
não de maneira simples, é verdade. como aquela presente nos discursos de
O que nos resta é saber que Plutarco, Musonio, Sêneca e Epiteto
(p. 252); 6. há proximidade entre os
neste movimento ambíguo entre preceitos de “uma teologia complexa
das relações entre a Igreja e Cristo”
continuidade (de configurações e
e aqueles “encontrados em diversos
de elementos)4 e descontinuidade moralistas da Antiguidade pagã” (p.
256); 7. tem-se os mesmos temas e certa
4
Seguem-se alguns exemplos coletados proximidade entre os preceitos da vida
no escrito: 1. da moral pagã a Clemente matrimonial, seja em João Crisóstomo,
de Alexandria encontram-se a mesma como em Clemente de Alexandria, ou
forma de prescrição, os mesmos ainda em Musonio, Sêneca e Epiteto
interditos, as mesmas obrigações, a (p. 260).

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do cristianismo. Ele reside, no Referências bibliográficas:
FOUCAULT, M. Dits et écrits II,
percurso de constituição da cultura 1976-1988. Paris: Quarto/Gallimard,
2001.
ocidental, no uso que fizemos da FOUCAULT, M. Le gouvernement
própria Razão. des vivants. Paris: EHESS/Gallimard/
Seuil, 2012.
FOUCAULT, M. Subjectivité et
vérité. Paris: EHESS/Gallimard/Seuil,
2014.
GROS, F. Avertissement. In:
FOUCAULT, M. Les aveux de la
chair. Paris: Gallimard, 2018.

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