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- ANPUH/SE e IHGSE - 1
ANAIS ELETRÔNICOS
Revisão
José Vieira da Cruz
Aldair Smith Menezes
Joceneide Cunha dos Santos
Cristine Vitório de Souza
Diagramação:
Adeilton Smith Menezes
Cláudia dos Santos Evaristo
Faustina Andrade dos Santos Bispo
Capa:
Adeilton Smith Menezes
Arte-finalização:
Adeilton Smith Menezes
1. História. I. Título.
CDU 94
DIRETORIA ANPUH/SE
DIRETORIA DO IHGSE
COMISSÃO CIENTÍFICA
Organização geral:
Secretaria:
Comissão de Divulgação
Comissão de Infra-Estrutura
Apoio:
Patrocínio:
SUMÁRIO
I - APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 10
I - APRESENTAÇÃO
II – PROGRAMAÇÃO
OS PRETOS DOS MATOS: A EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NA PROVÍNCIA DE SERGIPE D’EL REY (1871-
1888).
Igor Fonsêca de Oliveira ...................................................................................................................................................................... 76
AS “LOJAS DAS ROÇAS”: SUAS MÚLTIPLAS FUNÇÕES E SIGNIFICADOS PARA O HOMEM DO CAMPO.
Josiane Thethê Andrade …………………………………………………………………………………………………………… 306
MEMÓRIAS DO SERTÃO: MUCUNÃ E COURO CRU NA DIETA ALIMENTAR DURANTE A SECA DE 1932
Daiane Dantas Martins ......................................................................................................................................................................... 422
PÁS DE DEUX : ENTRE O ENSINO DO BALÉ E A SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA DE SERGIPE – SCAS
(1965 – 1969)
Mateus Antonio de Almeida Neto
José Vieira da Cruz .............................................................................................................................................................................. 528
A ESCRITA EPISTOLAR DE SÍLVIO ROMERO: O USO DAS CARTAS COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA
LEITURA
Cristiane Vitório de Souza ................................................................................................................................................................... 668
VIVER PRA PARIR, LABUTAR E NÃO MORRER: PARTO, DOENÇAS E MORTALIDADE NO COTIDIANO DE
TRABALHADORAS RURAIS DO SERTÃO BAIANO, VILA DE UIBAÍ, XIQUE-XIQUE, DÉCADA DE 1950.
Taiane Dantas Martins .......................................................................................................................................................................... 961
O ENSINO SUPERIOR PARA AS MULHERES: UMA REIVINDICAÇÃO PELO PAVILHÃO FEMININO NA CASA
DO ESTUDANTE DO BRASIL – 1931
Caren Victorino Regis
Nailda Marinho da Costa Bonato.......................................................................................................................................................... 1143
3.1– SIMPÓSIO 1:
HITÓRIA DA ESCRAVIDÃO E DAS CULTURAS
AFRO-BRASILEIRAS
Coordenação:
Profª Msc. Joceneide Cunha Santos (ANPUH-SE/UNIT/SEED)
Prof. Msc. Josivaldo Pires (Doutorando-CEAO/UFBA)
A nova historiografia da escravidão, pós década de oitenta, têm se debruçado sobre vários
temas dentre esses estão as relações de compadrio que envolvia homens e mulheres escravos.
Os escravos construíam uma rede de solidariedade, muitas vezes essas redes ultrapassavam os
limites do cativeiro. E as tais relações também podem ser percebidas através das relações de
compadrio. Este trabalho tem como intuito analisar as relações de compadrio em Santo
Amaro que envolviam escravos no interstício de 1816-1850. Enfatizo que utilizei a categoria
gênero para analisar os dados. Para atingir meus objetivos, pesquisei os registros de batismo,
os mesmos como fonte histórica permitem uma quantificação e esta foi uma das metodologias
utilizadas. Ressalto que a pesquisa ainda está em andamento, no entanto, os dados coletados
permitem discutir a condição social e civil dos padrinhos e madrinhas escravas, ou livres e
libertos, os tipos de famílias escravas, as idades que as crianças eram batizadas, também
percebemos que as cerimônias de batismo eram um ato coletivo, e por fim, os locais que as
crianças eram batizadas.
1
Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. SÃO PAULO: Companhia das Letras, 1986; DIAS, Maria Odila Leite. Quotidiano e Poder em São
Paulo no século XIX. SÃO PAULO: Brasiliense. SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e
recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX. RIO DE JANEIRO: Nova Fronteira,
1999. LARA, Silvia H. Campos da Violência: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
RIO DE JANEIRO: Paz e Terra. 1988. REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos
malês (1835). 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
2
Ressalto que acerca desse tema houve, durante algum tempo, a idéia de não existirem documentos para
pesquisar sobre a escravidão, por conta das ordens de Rui Barbosa que mandou queimar boa parte do acervo.
Vide: SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século
XIX”. Estudos Econômicos 13, N ° 1, 1983, pp. 117-150.
3
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. Sobre
batismo de escravos conferir também: GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado
original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção
da Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59.; Ver em: FALCI,
Miridan Knox. Escravos do Sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. pp.96-110; FARIA,
Sheyla. Op. cit ; METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de
Santana de Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987. pp.229-243; SCHWARTZ, Stuart.
Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras. 1988;
SCHWARTZ, Stuart. “Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In:
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
1852, 6804. Lembrando que nesse período houve um declínio na produção mineradora, e
aumento da produção açucareira, sobretudo baiana, até aproximadamente 18225, portanto,
provavelmente o aumento da produção baiana tinha a participação do açúcar produzido nas
terras sergipanas. Meu interesse é analisar a vivência dos escravos, nesse momento de
efervescência econômica. Enfatizo que a pesquisa ainda está em andamento. Poucos são os
trabalhos em Sergipe que versam sobre a escravidão na primeira metade dos Oitocentos.
Na historiografia sergipana, provavelmente o primeiro a comentar sobre os
escravos e noticiar a existência de suas famílias foi Marcos Souza, classificado pelos
historiadores como cronista. Marcos Souza foi vigário no inicio dos Oitocentos da Freguesia
de Pé do Banco6, localizada nas terras sergipanas. Segundo o Vigário, Santo Amaro era a Vila
mais afamada e rica da capitania, possuía 2000 brancos, 1500 pretos e vários mestiços. E, os
africanos, crioulos e mulatos estariam envolvidos no trabalho da lavoura7.
Ele defende que a escravidão em Sergipe era mais branda que no Recôncavo
Baiano e utiliza três elementos para sustentar a sua idéia, a alimentação, as vestimentas e a
existência de famílias escravas. Não entrarei na discussão sobre a “docilidade” das relações
senhor e escravo em Sergipe, pois a mesma já foi alvo de contestações em alguns trabalhos8.
No entanto, o vigário nos dá indícios sobre a existência das famílias escravas no período
estudado, chegando a afirmar que era possível o casamento entre escravos de senhores
diferentes. Todavia, o vigário não comenta sobre os batizados dos escravos que
possivelmente realizou inúmeros, bem como os casamentos. Talvez fosse algo tão corriqueiro
no seu cotidiano e por isso ele não julgou ser digno de nota no seu livro. Entretanto, especulo
que se os casamentos eram permitidos entre escravos de senhores distintos, a relação de
compadrio também pode ter sido. Em uma pesquisa que realizei anteriormente percebi que os
escravos batizavam seus filhos com escravos de outros senhores9. Todavia, saliento que o
compadrio em Sergipe é pouco estudado.
As fontes utilizadas nesse primeiro momento foram os registros de batismo. Os
mesmos foram quantificados e analisados. Há na paróquia dois livros no interstício
4
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. pp.145-146.
5
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-
Ásia, 19/20. (1997) p.57.
6
Atual Siriri
7
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.
8
Vê em: MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
9
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.
mencionado. Esses registros permitem termos noção dos padrões de batismo, bem como ter
alguns elementos sobre a vivência dos escravos.
Nos registros de batismo possui o nome da criança batizada, os nomes dos pais e a
condição de ambos, a cor, a nacionalidade, o nome do proprietário ou dos proprietários, pois
os pais poderiam pertencer a pais diferentes. O(s) nome(s) dos padrinho e/ou madrinha e dos
seus senhores no caso dos mesmos serem escravos. Por fim, a idade da criança, o local que foi
batizado, a data e o nome do pároco. Ressalto que os registros de batismo não são
padronizados, havia alguns párocos que colocavam mais informações nos registros de batismo
como o estado civil dos padrinhos. E no caso do livro pesquisado, como houve vários párocos
batizando e provavelmente coletando as informações, nem todos coletavam as mesmas
informações, por isso há registros diferenciados no interior do mesmo livro.
Entre o meses de setembro de 1816 e maio de 1817 foram catalogados 105
batizados de índios, africanos e seus descendentes. Desses, 94 eram escravos, incluindo os
índios e 11 livres, crianças filhas de mães libertas ou livres e pais escravos.
Este artigo está divido em três partes, na primeira mencionarei sobre os locais que
os escravos e seus descendentes foram batizados, e citar alguns elementos desse ritual, na
segunda parte, pontuarei quem foram os batizados, na última parte mencionarei alguns dados
de quem eram os padrinhos e madrinhas.
No Brasil, o compadrio foi um ritual bastante praticado tanto por livres como por
escravos e trata-se de uma herança da cultura ibérica. Através do ritual do batismo, a família
era ampliada pelos laços espirituais.
Em Santo Amaro, as crianças, filhas de homens e mulheres escravos, ou escravos
adultos foram batizados em diversos lugares. Dentre eles as capelas de Nossa Senhora do
Rosário, De Maruim de Baixo, Nossa Senhora da Conceição, no Oratório do Capitão-mor e na
Igreja Matriz.
A “ população de cor” batizou seus filhos majoritariamente na Capela de Nossa
Senhora do Rosário, 68,57% dos batizados foram nesse local. Em 1813, há notícias da
existência uma Irmandade do Rosário dos homens Pretos em Santo Amaro10; possivelmente a
mesma estava abrigada na referida capela. Ou seja, essa capela possivelmente era um espaço
que os africanos e seus descendentes cultuavam seus santos católicos, construíam as suas
relações ritualísticas através do batismo e do casamento. Em suma, era um espaço de
sociabilidade dos mesmos.
Além da capela já mencionada, o segundo lugar mais procurado pelos homens e
mulheres escravos batizarem seus filhos foi a Igreja Matriz de Santo Amaro, templo esse que
Marcos Souza classifica como majestoso11. Vinte e um escravos ou filhos de escravos foram
batizados na Matriz. Incluindo um escravo do pároco da Igreja, o reverendo Gonçalo Pereira
Coelho que batizou o escravinho Florêncio, filho da sua escrava Felizarda que era casada com
Antônio, também escravo12.
Três escravos foram batizados na Capela de Nossa Senhora da Conceição que
ficava em uma propriedade particular, o engenho Caieira13. Os escravos dos proprietários do
engenho, bem como os dos parentes, dos vizinhos ou agregados da propriedade deveriam
batizar seus filhos nessa capela. Pois, os escravos batizados encontrados até o momento não
pertenciam aos senhores do engenho14.
Quatro escravos foram batizados no oratório do capitão-mor, o Capitão Felipe
Luís de Faro. Ambrosio e Brígida pertenciam ao mencionado capitão, e Margarida e Romão a
Gregório Luis das Virgens. Por fim, dois escravos que foram batizados na capela de Maruim
de Baixo.
O batismo era um ato coletivo e por isso várias crianças – livres e escravas –
recebiam o sacramento numa mesma cerimônia. Escravos de um mesmo senhor e de senhores
distintos apadrinhavam os filhos no mesmo dia. A data do batizado era marcada num dia em
que todos pudessem ir à Vila: padrinhos e escravos. Em alguns casos, possivelmente os
proprietários de escravos também estavam presentes. Acredito que nos batizados ocorridos
nas propriedades havia uma probabilidade maior dos senhores estarem presentes nos
batizados dos filhos dos seus escravos.
10
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.p.57
11
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.p.67
12
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 13v
13
A capela existe na atualidade e é tombada pelo IPHAN desde 1944. Vê em: LOUREIRO, Kátia Afonso Silva.
Arquitetura Sergipana do Açúcar. FUNCAJU/UNIT, 1999.
14
Segundo Loureiro a família que era proprietária desse engenho era A Diniz Sobral e os escravos batizados
nessa capela pertenciam a João Pereira, Francisco Xavier do Bomfim e Manoel José de Souza.
Possivelmente alguns dias festivos foram preferidos para realizar a tal cerimônia,
por como o dia consagrado a São Benedito15. Em seis de janeiro de 1817, dia que se
comemorava São Benedito em Sergipe; quatro pessoas foram batizadas dentre elas, três
escravos gêges, Joaquim , Mathias e Bento e a menina Joaquina que era livre.
2 - Os batizados e batizadas
Os escravinhos eram batizados logo após o seu nascimento, com até três meses de
idade, 63,23% dos batizados estavam nessa categoria. Os demais batizados e batizadas eram
molecotes ou adultos. As idades dos índios batizados foram informadas nos registros, os
mesmos tinham entre 14 e 20 anos. Todavia, a dos africanos não foi mencionada, só através
do cruzamento das informações dos registros com as dos inventários post-mortem é que será
possível descobrir a idade de alguns dos africanos. Ressalto que há alguns registros sem a
referência da idade, e sem a menção de quem são os pais, assim podemos especular que
possivelmente não eram crianças.
O sacramento batismal marca a entrada no mundo cristão e o registro de batismo
era o documento que oficializava a existência das pessoas, por esses motivos era necessário
que o ritual acontecesse enquanto a criança estivesse nova. Todavia, o registro de batismo ia
além de um documento eclesiástico, ele também era um documento social, pois trazia várias
informações sobre o indivíduo, a sua família e os padrinhos. No período em estudo não havia
os registros civis. Por conta desses dados, percebemos que os senhores provavelmente se
preocupavam que seus escravos fossem convertidos à “Fé Católica”, pois assim oficializavam
a sua posse sobre a criança nascida.
Sobre a legitimidade houve um equilíbrio nas relações dos escravos e escravas.
Um pouco mais da metade das crianças batizadas eram fruto de relações legítimas 60%, e as
demais eram provenientes de relações não sancionadas pela igreja, as chamadas ilegítimas,
possivelmente algumas delas eram consensuais. A existência de casamentos entre escravos do
mesmo senhor, indicia a existência de médias e grandes posses, assim, os escravos teriam
como escolher seus cônjuges na posse do seu senhor.
15
O culto a São Benedito foi muito difundido entre os escravos, a idéia era difundir a idéia de um escravo
submisso. Vê em: PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
Colonial. Salvador, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal da Bahia.
Dos batizados dezenove eram africanos, ou seja, 18,09 dos batizados; esses eram
de nação angola, gege e Costa da Mina. Além de serem batizados os africanos também
levavam seus filhos para serem batizados, 16,20% das crianças eram crioulas, ou seja, filhos
de africanos. Dentre os africanos os gege eram maioria, no entanto, Marcos Souza menciona a
existência dos africanos da Guiné e os Angola em Santo Amaro.
8,57% eram índios, classificados como gentios de nação. E os demais eram
descendentes de africanos; distribuídos em pardos e pretos. Os últimos tinham larga maioria
sobre os primeiros, a miscigenação não era acentuada entre os escravos. Muitos pardos foram
batizados, mas eram livres.
Os homens foram maioria entre os batizados, entre as crianças houve um
equilíbrio. No entanto, entre os adultos batizados que incluíam os africanos, índios e alguns
sem informações os homens foram majoritários.
3 - Os compadres e comadres
A larga maioria das crianças e adultos foram batizados por pessoas livres e/ou
forras. Essas pessoas livres podiam ser agregadas das propriedades que os escravos
trabalhavam, vizinhos ou parentes dos senhores. Pretendo saber mais elementos sobre essas
pessoas. No entanto, possivelmente eram pessoas próximas desses escravos. Em Lagarto
encontrei o tesoureiro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário batizando uma criança
escrava. Ou seja, ele era uma pessoa próxima dos pais da criança, já que a irmandade também
admitia escravos16.
Apenas nove escravos foram batizados por escravos, desses nove, quatro eram
africanos. Sete desses padrinhos eram parceiros17 de trabalho dos pais dos seus afilhados ou
dos próprios afilhados como o caso dos africanos. Como Delfina e Pedro que batizaram
Leandro, filho de Ana; todos eram escravos de Antônio Dias de Vidal Melo 18. Possivelmente
16
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.
17
Segundo Mattos, a denominação parceiros foi utilizada pelos escravos, em algumas ocasiões. no sentido de
que eram escravos do mesmo senhor, as exceções eram os amásias(os) ou cônjuges, irmãos, pais/mães e
comadres/compadres; em outros momentos a idéia implícita é a de companheiro de sofrimento ou de jornada.
Em Lagarto, foi possível perceber as duas utilizações do termo, escravos depoentes chamaram de parceiros,
escravos que os acompanhavam no eito ou escravos do mesmo senhor e companheiros de sofrimento. Vide:
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp.130-131
18
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.9v
algumas posses de escravos eram médias e grandes, o que possibilitava aos escravos
possibilidades de escolher um padrinho no interior da propriedade do seu senhor.
Sheyla Faria chegou a conclusão que as crianças ilegítimas e que estavam em
pequenas e médias posses foram batizadas por pessoas livres que eram pequenos proprietários
de escravos, enquanto que as crianças legítimas tiveram como padrinhos escravos que
pertenciam ao mesmo senhor do batizado, eles faziam parte de grandes posses19. Ou seja, os
escravos das grandes propriedades tinham um leque mais diversificado para escolher um
compadre entre os seus parceiros de trabalho. Na Bahia, os escravos buscavam alianças: (i)
horizontais, quando os pais escravos buscavam outros escravos para serem padrinhos,
integrando ainda mais a criança à comunidade escrava; (ii) verticais, quando os pais
entregavam os seus filhos a padrinhos livres, nesta situação os escravos buscavam ascensão
social para os seus filhos20.
Em Santo Amaro, os escravos preferiam construir alianças verticais que as
horizontais. Futuramente esperamos responder as razões dessa escolha. No entanto, ressalto
que o batismo não significava apenas a entrada para o mundo cristão, mais também era uma
possibilidade de construir laços de solidariedade. E, padrinho ou madrinha seria responsável
pelos elementos espirituais e materiais do afilhado.
A maioria das crianças e adultos batizados tiveram um casal como padrinhos
63,80%. No entanto, nem todas as crianças e adultos puderam usufruir desse privilégio,
alguns tiveram apenas um padrinho ou madrinha. Dentre esses, os homens foram preferidos
para apadrinharem as crianças e adultos, 33 crianças e adultos foram batizados apenas por
homens e quatro crianças escravas tiveram somente a madrinha. Novamente, a possibilidade
de contar com ajudas materiais fizeram que os homens fossem escolhidos e não as mulheres.
Analisando os batismos dos escravos e seus descendentes percebemos que há
alguns personagens que se repetem, ou seja, houve escravos, pessoas livres e libertas que
batizaram várias crianças e/ou adultos. Jacinto e Josefa que eram escravos e possivelmente
casados, batizaram Joaquim e Paulo e Rosa. Todos eram escravos do Capitão Manoel
Rollemberg de Andrade, os dois primeiros eram africanos e foram batizados no mesmo dia, já
19
FARIA, Sheyla de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
20
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: Compadrio e Batismo de
escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção da Liberdade: estudos sobre o
negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59. Metcalf chegou a esta conclusão pesquisando
São Paulo Setencentista, acredito que ocorreu algo muito próximo em Lagarto nos Oitocentos. Ver em:
METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de Santana de
Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987.pp.229-243
Rosa era brasileira e foi batizada em outro dia21. Outro exemplo era Vicente José Barreto que
batizou em dias distintos; duas crianças Pascacia e Geronimo e Antônio Angola 22.
Cristiany Miranda Rocha estudando o compadrio percebeu que alguns escravos
batizaram várias crianças, posteriormente ela observou que esses escravos preferidos para
serem padrinhos conseguiram a alforria. Por conta, desse elemento ela deduziu que os
escravos preteridos para serem padrinhos eram próximos aos senhores ou exerciam uma
função de destaque; por esses motivos os demais escravos escolhiam os mesmos para
apadrinharem seus filhos23. Era uma possibilidade de aproximação com o senhor e assim
barganhar alguns dos seus interesses. Assim podemos especular que Jacinto e Josefa, já
citados, podiam exercer uma espécie de liderança na posse do ser senhor, que possivelmente
tinha inúmeros escravos, pois nos registros até o momento foram encontrados onze escravos,
seja na posição de padrinho ou de afilhado.
Primeiramente quero ratificar que este texto é fruto de uma pesquisa inacabada,
portanto ao término da mesma os dados poderão ser alterados. Segundo, que pretendo utilizar
outras fontes e assim fazer o cruzamento de informações.
A Capela do Rosário era um espaço dos escravos e seus descendentes, incluindo
os índios se batizarem. Talvez houvesse uma identificação dos escravos com esse espaço, já
que provavelmente no mencionado templo funcionava uma Irmandade de homens pretos.
Enfatizo que o batizado era um ritual coletivo, no mesmo dia crianças e adultos, livre e
escravos eram batizados.
Os escravos batizavam seus filhos logo após o nascimento. O batizar era algo que
interessava o senhor, pois era criado um documento que oficializava a criança como sua
propriedade, e era importante para os escravos, pois através do compadrio construíam laços de
solidariedade e/ou alianças. Os homens e mulheres escravos de Santo Amaro optaram em
construir essa rede de alianças com pessoas livres e/ou libertas; ou as possibilidades de
construção dessas redes eram escassas no cativeiro.
Em suma, através do batismo podemos conhecer um pouco a vivência dos
escravos, suas opções e estratégias cotidianas.
21
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.13 v, e 14
22
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 3,7, 9v
23
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
FONTES
FONTE PRIMÁRIA
Impressa
Manuscrita
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de
Santana de Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987. pp.229-243.
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na
Bahia. Afro-Ásia, 19/20. (1997)
PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
Colonial. Salvador, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal da Bahia.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens
e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
Dissertação (Mestrado em História). Pós-graduação em História Social – Universidade
Federal da Bahia.
SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão
no século XIX”. Estudos Econômicos 13, N ° 1, 1983, pp. 117-150.
A presente pesquisa propõe um estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira
metade do século XIX, no município de Macaé. A temática do tráfico ilegal é
significativamente recorrente nos estudos historiográficos, como por exemplo, a abordagem
dado por de Jaime Rodrigues no livro “O Infame Comércio” em que trata o tema do tráfico
ilegal como contrabando e pirataria no Brasil no primeiro meado do século XIX, mostrando
de forma abrangente como esta prática perpassou por todo o litoral do território brasileiro. Por
um outro lado, instiga e abrem leques para novos e aprofundamentos estudos sobre a temática.
Nessa abordagem de tráfico e contrabando de africanos negros, de suspeitas e apreensões de
navios, pelas auditorias instaladas pela Marinha Imperial Brasileira, mostra a apreensão do
navio Iate “Rolha” no porto de Macaé, pelo navio vapor da marinha “Urânia” com abordagem
e apreensão de 212 africanos negros boçais somando conjuntamente com a apreensão de uma
garoupeira “Santo Antônio Brilhante” com 4 homens africanos adultos no mesmo dia e porto.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé, a rota do
tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do comércio
negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de contrabando de
negros africanos no território do município, dos traficantes residentes na província, as
apreensões feitas na costa do município, seja por navios da polícia da marinha brasileira ou
inglesa, como e quantos navios foram apreendidos como suspeitos ou por contrabando e
pirataria.
nessa atividade ilegal, que foram autuados no tráfico de contrabando de africanos negros
boçais vindos da África.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé,
a rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do
comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de
contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes residentes na
província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município, seja por navios da
polícia da marinha brasileira ou inglesa, como, quantos navios e quem dos traficantes foram
apreendidos como suspeitos por contrabando e pirataria. Os desembarques clandestinos se
processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração muitas vezes da população
litorânea.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, na região do município de Macaé. Vários foram os barcos suspeitos de tráfico,
contrabando e pirataria nas imediações da cidade de Macaé como o navio brigue escuna
Tentativa e o iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante, de tantos outros foram
apresados e removidos em depósito para a Casa de Correção da Corte para inquérito e
responder ao processo-crime de tráfico, contrabando e pirataria.
A comunicação tem por objetivo demonstrar pela analise do período do comércio
ilegal de africanos vindos através do Atlântico para o Brasil. O trabalho ainda não está
concluído estando em fase de construção, mas desvela desde já um complexo sistema legal
onde processava uma emaranhada rede. Implicava numa sociedade conivente, por um país
agro-exportador expressamente representado por uma demanda de mão-de-obra escravista. A
tudo isso, somava-se ao comércio, através do contrabando de africanos. A partir fim do tráfico
legal pelas Leis de 183124 (BETHELL, 1976, p.76) e 185025 impedindo sua negociação livre
dificultando seu trânsito, portanto implicando a um comércio ilegal.
Assim, o nascente país que despontava Brasil, mantido por uma economia
escravista dependente, já com uma permanência de quase 300 anos, passa a sofrer sanções por
24 Diogo Antonio Feijó, padre liberal, responsável pela aprovação do projeto de Barbacena, (com algumas
emendas) tornando lei em 7 de novembro de 1831. Feita em obediência a um compromisso do Brasil com a
Inglaterra a fim de extinguir o tráfico de escravos, libertava os africanos chegados ao Brasil após sua assinatura.
25 Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Eusébio de Queirós - Estabelece medidas para a repressão do
tráfico de africanos neste Império. Em 4 de setembro de 1850 foi sancionada a lei que, depois de uma sucessão
de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico de escravos no Brasil. A lei tomou o nome de seu propositor, o
então ministro da Justiça Eusébio de Queirós.
parte das autoridades brasileiras também pela política inglesa que interpõe de modo
abrangente dificultando o comércio transatlântico.
A essa dificuldade somam-se acordos Brasil – Inglaterra regida por decretos,
artigos e leis fundamentando aos ingleses e brasileiros a levar a cabo e por fim ao comércio
transatlântico de escravos feito, a partir dos apresamentos de navios que comercializavam
com a Costa d’África, carga humana.
Deste modo, o Brasil torna grande provedor no contrabando de africanos, que são
embarcados e trazidos da Costa d’ África sendo então, desembarcados muito deles nas praias
desertas e afastadas ao longo do litoral brasileiro em cidades litorâneas implicadas na
manutenção do tráfico e ao abastecimento não só do próprio local do ocorrido desembarque
dos africanos, mas também no intercâmbio do comércio interno do país.
Com isso, os navios negreiros que faziam o tráfico com a África levando na ida
para o continente negro, produtos brasileiros como cachaça, fumo, cacau, e tantos outros
artigos, sua volta ao continente brasileiro era abastecido por um carregamento de africanos
para manutenção da escravidão.
Assim, o processo-crime do Iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante
com a apreensão por contrabando, tráfico e pirataria de africanos negros é o tema de estudo e
propõe acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira metade do século XIX, no
município de Macaé.
A rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da
economia do comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o
desembarque de contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes
residentes na província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município. Os
desembarques clandestinos se processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração
muitas vezes da população litorânea.
Tem por sua estrutura uma divisão que se apresenta por Ofícios do escrivão, na
nomeação por este mesmo receber impedimento para fazer parte do processo como também
da designação do Dr. Auditor Geral da Marinha encarregado de fazer junto a Comissão, a
Corte, o Ministério dos Negócios e da Justiça, a Marinha de Guerra Imperial26.
Sendo assim, dá-se prosseguimento ao processo a partir de ofícios por meio do
escrivão determinado e de despachos de Avisos feitos em Cartórios, tudo por ordem do Dr.
Auditor Geral. As intimações e de comparecimentos para auto de perguntas mais diligências.
26
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).
Devidas Cartas Ofícios são outro meio de se fazer à mediação e deferência do caso em
questão. Não só de relatórios são deferidos as questões, mas no ato de remoções e de
transferências como também o ato de se fazer um relatório constando de uma lista ou rol,
perfazendo uma relação dos africanos apreendidos constando o mesmo de vários itens na
apresentação e reconhecimento, na distinção dos africanos, seja por marcas ou mesmo de sua
etnia até mesmo pela sua idade e sexo. A relação é feita constando às referências que
possibilitam o reconhecimento e o registro dos africanos apreendidos. A relação é utilizada na
transferência dos africanos quando em depósito das instituições públicas ou privadas, e no
reconhecimento dos africanos, como é anexado um resumo da lista ou rol de africanos.
A transferência em depósito tanto dos africanos quanto a tripulação é mais outro
apêndice que consta dos processos no tramite do mesmo para que este possa ser transparente,
evidente e específico para o entendimento daqueles que o venha lê-lo. A Casa de Correção
emite um ofício do montante recebido em depósito, incorporado ao processo, dirigido ao
Doutor Auditor Geral da Marinha.
As juntadas são cartas ofícios, citando avisos, relatórios ou mesmo referências
atualizando e acrescentando ao processo fatos ocorridos a que venha esclarecer ao processo-
crime. Acrescenta algum novo episódio, evento ou uma passagem, engrossando o processo–
crime.
Os ofícios de aviso são cartas referidas de uma instituição ou repartição a outra na
qualidade de esclarecer ou incorporar com fatos que serão incorporados no decurso do
processo-crime como sendo mais um fator de justificar ou então de reafirmar o ato cometido.
Além desses tópicos da estrutura do processo como item, temos o inquérito de
perguntas e diligências que são feitas à tripulação, mestres e passageiros da embarcação
apreendida e também a tripulação do navio apresador como de testemunhas sem deixar de
mencionar os próprios africanos.
A lista de objetos é mais um recurso do processo. Listando e descrevendo os itens
encontrados a bordo da embarcação apresadas, demonstra nos artigos arrolados a justificativa
da certeza da apreensão do navio.
Diligências de perguntas e respostas são argumentos ou mais, para formalizar o
crime de contrabando, tráfico e pirataria de africanos novos. São alegações, inquirindo, aos
envolvidos, aqueles que se encontravam no momento da apreensão da embarcação estando a
bordo ou não; caracteriza-se por indagações a cerca da investigação; com intenção de provar o
crime ou refutar o mesmo.
constando também 117 africanos do sexo masculino dentre eles 29 homens e 96 jovens em
idades que variavam entre 10 a 15 anos. O total de indivíduos apreendidos foi de 221 entre
africanos e tripulação, todos destinados a Casa de Correção em depósito.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, bem como dos destinos e cotidianos dos africanos negros apreendidos na região do
município de Macaé. Destacaram-se em Macaé os traficantes: Victorio Emmanuel Paretto
(italiano), José Bernardino de Sá (português), Joaquim Ferramenta, José de Souza Velho,
Francisco Domingues de Araújo. Assim, aumentando o preço abusivamente, enriqueciam,
justificando as dificuldades encontradas para transportar os africanos, sendo um dos maiores
negócios da época.
A proibição do tráfico veio aumentar abusivamente o preço dos escravos trazidos
da África, justificada pela dificuldade para o transporte, e assim, os traficantes sediados no
litoral brasileiro, tornavam-se cada vez mais ricos, fazendo do tráfico ilegal um negócio
altamente rentável da época: O tráfico ilegal mostrava-se tão intenso que consta a entrada no
país (...) 3.000 africanos desembarcados ilegalmente em 1851, em barracões e em armazéns
no município de Macaé, informado por Charles Hamilton James, embaixador inglês. 27
Torna-se notório, o tráfico ilegal, não só em Macaé, mas, nos arredores, de Cabo
Frio, São João da Barra, Cabo de São Tomé, Ponta de Búzios, Itapemirim, Paraty,
Marambaia, Angra dos Reis; mantinham elementos de ligação, escolhendo locais de
desembarque, e estabelecem as praias desertas e de pequenos barcos para ter contato com os
navios negreiros, passam a adotar sistemas de comunicação como códigos, avisos e sinais
costeiros, para a sua própria segurança.
A terra fluminense28 foi um viveiro de escravos, tendo sido aqui introduzidos por
vários pontos de entrada, de onde seguiam a outros locais, podendo ser por via fluvial ou por
picadas feitas nas matas, os que se destinavam ao interior do Brasil chegando até Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, uma relação com o contrabando e comércio inter-regional.
O mínimo e o máximo exigido é que o julgamento aconteça num prazo de duração
de 8 meses. O processo em média: 6 meses para a abertura do processo; 37 dias para que as
comissões venha dar suas sentenças; 70 dias para que a sentença fosse executada nos casos de
navios condenados; 28 dias antes que os escravos por ventura encontrados fossem libertados
até então permaneciam à bordo.
27
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos; São João da Barra; Macaé; São Fidélis. RJ: Editora
Achhiamé. 2000. pp.78
28
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. Ed. Parceria Editorial. 2000. p. 24.
Fontes primárias:
Manuscritos
Série Justiça
IJ6 468 – Africanos. 1834 – 1864.
IJ6 469 – Africanos. 1824 – 1864.
IJ6 470 – Africanos. 1840 – 1868.
IJ6 471 – Africanos livres. 1834 – 1864.
IJ6 472 – Tráfico de africanos. Navios suspeitos. 1838 – 1860.
IJ6 480 – moeda falsa e tráfico de africanos. 1836 – 1864.
IJ6 481 – Moeda Falsa. 1855.
IJ6 510 – Moeda falsa e tráfico de africanos.
IJ6 521 – Tráfico de africanos – 1853 – 1865.
IJ6 522 – Tráfico de africanos. 1841 – 1865.
IJ6 523 – Africanos livres. 1833 – 1864.
IJ6 525 – Africanos 1831 – 1864.
IJ6 15 – Tráfico de africanos.
IJ6 16 – Africanos livres.
IJ1 450 – Africanos. Carta de emancipação.
Série Guerra
Códices 807 v.7 Diversos 1840;
Códices 807 v.2 Diversos Império 1839;
Códices 807 v.15 Diversos Portos Brasil.
Caixas Topográficas Escravos 2627, 1, 3; 2627, 1, 2; 2627, 2, 28;
Caixas Topográficas Inventários 2635, 4, 23.
Referências Bibliografias:
BARROS, Aidil J.Paes & LEHFELD, Neide A de Souza. Projeto de Pesquisa. Rio de
Janeiro: Vozes, 2003.
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. RJ: Ed. Parceria Editorial,
2000.
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé, São Fidélis.
RJ: Editora Achiamé, 1998.
PARADA, Antonio Alvarez. Tráfico de negros africanos no litoral do nosso Estado. “S.D.”
A presente pesquisa sobre a riqueza escrava em Lagarto (1800-1850), tem como propósito
analisar a participação do bem escravo na composição da riqueza dos proprietários locais.
Essa pesquisa apóia-se na análise e interpretação dos inventários post-mortem, que
possibilitam a obtenção de informações acerca da composição das fortunas locais. Dos 159
inventários catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na
composição de sua fortuna. Isto comprova que o bem escravo estava bastante difundido entre
as riquezas dos proprietários da vila. Entre os proprietários de apenas um cativo, percebemos
que na maioria das vezes esses eram mulheres. Essas eram preteridas devido sua versatilidade
e pelo fato que poderia aumentar o número de escravos. Encontramos famílias escravas em
alguns proprietários e essa tinha uma grande participação no montante-mor, houve casos em
que essas famílias representavam mais de 86% da riqueza. O bem escravo tinha maior
participação no total das riquezas de pessoas menos afortunadas, pois muitos tinham nesse seu
bem mais valioso, chegando em alguns casos a representar mais de 80%da fortuna do
proprietário. Os preços dos escravos tiveram aumento no decorrer do período.
29
MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: População, Economia e Sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. p. 242.
30
SANTOS, Joceneide Cunha dos. De senhores de engenho a lavradores de mandioca: um estudo sobre a
propriedade escrava (Agreste-Sertão de Lagarto 1850-1888). São Cristóvão, 2001. Monografia (Licenciatura em
História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
Gráfico 1
Lagarto-Sergipe
Como podemos perceber a maior parte das fortunas dos moradores locais eram
representadas pelos escravos. O escravo era sem dúvida um relevante fator de produção e um
dos componentes de grande importância no estoque da riqueza dos proprietários de Lagarto
durante o período analisado.
A posse de escravos era muito difundida nessa região, pois dos 159 inventários
catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na composição de sua
fortuna.
Sobre a distribuição dos proprietários de escravos, analisando o tamanho da posse
escrava, em pequena, média ou grande, observemos a tabela 1. Lembrando que os parâmetros
a pequena posse (1 a 3 cativos), a média (4 a 9 cativos) e a grande com 10 ou mais escravos.
31
Outros: produtos, roças, jóias, moveis, ferramentas, dívidas ativas.
Tabela 1
Lagarto-Sergipe (1800-1850).
Distribuição da posse escrava por tamanho da posse
O escravo era um bem muito valioso e cobiçado por muitos. Muitas pessoas em
Lagarto tinham no escravo o seu maior montante: chegando em alguns casos a representa
mais de 90% da fortuna.
O escravo representava uma parcela significativa na composição das fortunas,
sejam dos pequenos proprietários, médios ou grandes. Mas o bem escravo tinha um maior
percentual na composição das fortunas principalmente nas dos pequenos proprietários, onde
em alguns casos a riqueza escrava compunha mais de 90% do montante-mor, como era o caso
Dona Anna Francisca das Virgens, cujo os dois escravos que possuía equivalia a 93,98% da
sua fortuna.
pobres, os quais depositavam suas econômicas neste que às vezes era fonte
de sustento e único ativo”. (SILVA, 2003, p. 32)
Tabela 2
Lagarto-Sergipe
“Numa sociedade em que o trabalho braçal era visto como uma maldição
bíblica, portanto, depreciado, a mão-de-obra escrava apresentava-se como
sustentáculo da economia e disseminara-se em todos os setores. A
escravidão representava bem mais que uma instituição econômica lucrativa,
32
MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo Pinheiro dos. Arraia-
Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa em Lagarto-SE (1880-1850). Estância,
2007 Monografia (Licenciatura em História). Universidade Tiradentes. p. 56
Sobre as variações dos preços dos escravos, por década segundo sexo observemos
a tabela 3.
Tabela 3
Lagarto – Sergipe
Média dos preços dos escravos em Lagarto por década segundo o sexo.
Década Média
Homem Mulher
1810-1819 98$07 108$33
1820-1829 158$59 113$71
1830-1839 260$260 232$922
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE
33
Idem
Outra hipótese que justificava a compra de uma escrava, era a importantes pois,
poderiam aumentar a posse de cativos e conseqüentemente a fortuna de seu proprietário, isto
através da reprodução natural.
“Podemos supor que comprar uma escrava seria talvez, parte de uma
estratégia de ampliação ou multiplicação mais acessível da mão-de-obra
forçada, sem recorrer às parcas e difíceis poupanças familiares. Apesar dos
riscos de uma elevada mortalidade materna e infantil, e em que se pese a
necessidade de aguardar o crescimento do revento, a reprodução natural
talvez fosse, para um pequeno lavrador, um roceiro ou um artesão, uma
opção viável, que não envolvia maiores dispêndios de capital”.
(BACELLAR, 2000, p. 243)
34
Inventariado: José de Jesus de Passos. Inventariante: Rosalina Maria de Jesus. Inventário post-mortem.
Cartório de 2º Ofício de Lagarto, 06/08/1850, caixa 15, doc. 15.
O bem escravo era algo bastante difundido entre as riquezas dos moradores,
porquanto percebemos que um grande número de pessoas conseguiam adquirir escravos,
apesar da região produzir gêneros agrícolas voltado para o abastecimento do mercado interno,
e o dedicar a criação de gado, também com o mesmo fim.
Além de bastante disseminado, o bem escravo constituía na principal fortuna na
composição da riqueza dos proprietários locais. Algumas conclusões são impossibilidades
devido a pesquisa ainda estiver em andamento.
FONTES
Manuscritas
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe.
Cartório de Lagarto 1º e 2º Ofício.
Inventários post-mortem (1800-1850). Caixas 01 – 15 e Caixa 01.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARCELAR, Carlos de Almeida Prado. A escravidão miúda em Soa Paulo Colonial: IN:
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro:
Novas Fronteira, 2000. PP. 238-254.
MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo
Pinheiro dos. Arraia-Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa
em Lagarto-SE (1880-1850). Estância, 2007 Monografia (Licenciatura em História).
Universidade Tiradentes.
MOTT, Luis R. B. Sergipe Del Rey: População, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc,
1986.
OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Economia e História em Franca século XIX: Franca:
UNESP;FMDSS: Amazonas Prod. Calçados S/A, 1997.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens
e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
Dissertação (mestrado em História). Pós-graduação em História Social – Universidade
Federal da Bahia.
35
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional36.
Na Província de Sergipe, as notícias sobre quilombos remetem ao século XVII,
como bem afirma Felte Bezerra37. Contudo, é a partir do século XIX que esses quilombos
começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido ou porque
foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite a
constatação de sua existência38.
O objetivo deste texto é, portanto, analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente na região da Cotinguiba, na década de 1870,
pois parto do pressuposto que os quilombos não eram redutos de negros marginalizados e
isolados da sociedade, ao contrário, os quilombolas buscaram, sempre que possível, uma
interação com o “mundo” escravista através de uma complexa rede social de proteção, na qual
procuravam obter uma maior autonomia e controle sobre suas vidas.
Nas últimas décadas da escravidão a relação entre escravos africanos e crioulos
foi algo constante nos quilombos sergipanos, notadamente na zona da Cotinguiba. Os laços de
solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade. Antes de
serem Africanos ou Brasileiros, eram escravos tentando reinventar os significados da
liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos, seriam talvez as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e conseqüentemente o
predomínio de crioulos na terras sergipanas39.
Alguns estudiosos da escravidão, como é o caso de Kátia Mattoso; defende a idéia
de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições culturais e a
língua teriam se tornado barreiras entre esses escravos40. Contudo, como poderemos perceber,
pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam transpor as
fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
36
Ver REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
37
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
38
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
39
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139-
150.
40
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.
A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.
41
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
42
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
43
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
44
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
45
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
46
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.
lugar a que eu não prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado
algum os praças que já se achavam tão cansados47.
47
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
48
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
49
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
50
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
51
Idem
52
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
53
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.
tendo ali ido buscar ração de farinha da mão do dito Roberto, a quem ele
(Romão) tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de
ovelha que ele (Romão) muitas vezes levava54.
O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”55.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante56. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos (idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.
A documentação da década de 1870 apresenta um leque variado de informações
sobre essas mulheres que se aventuravam a fazer parte dos quilombos na região da
Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35 anos.
Algumas dessas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade
ou prosseguir sua luta nos quilombos. Foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que declarou
ter “um filho que mandou depositar na porta da igreja de São Benedito em Laranjeiras”57.
A escolha desta igreja para deixar seu filho não se deu forma aleatória. A Igreja de
São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para devoção da fé dos negros e pelos
54
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
55
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
56
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
57
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
próprios negros58. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido, era um local em
que ela confiava.
O jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:
O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas60.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarou-
se casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.
58
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
59
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
60
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.
Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”61.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”62. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”63.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”64.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
BIBLIOGRAFIA E FONTES
Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.
61
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
62
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.
63
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
64
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.
REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
JESUS, Ana Carla. Construindo a liberdade: Entre conflitos e alianças, quilombolas (re)
inventam sua história na região da Cotinguiba (1870-1879).2008.76p. Monografia (graduação
em história) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2008.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 2003.
MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
na medida em que demonstra que os escravos não eram sujeitos passivos dentro do regime
escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu é um exemplo do papel do
individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído, pois este tardou o quanto pode
para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:
A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.
Como afirma Flávio dos Santos Gomes, “através de variadas e complexas
relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
construíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas”9.
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.
aos quilombolas são sérios obstáculos: dão não só guarida no caso de qualquer emergência,
mesmo dentro das senzalas”15.
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligências
policiais:
O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”21.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante22. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos ( idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.
O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas26.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarou-
se casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.
Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”27.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”28. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”29.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “ a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”30.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.
Fontes Impressas
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
JESUS, Ana Carla. Construindo a liberdade: Entre conflitos e alianças, quilombolas (re)
inventam sua história na região da Cotinguiba (1870-1879).2008.76p. Monografia (graduação
em história) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2008.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 2003.
MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
___________________________
Notas
1
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
2
Ver REIS, João José.;GOMES,Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
3
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
4
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
5
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139-
150.
6
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.
7
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
8
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
9
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
10
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
11
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
12
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.
13
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
14
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
15
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
16/17
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
18
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
19
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.
20
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
21
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
22
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
23
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
24
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
25
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
26
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.
27
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
28
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.
29
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
30
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.
Este trabalho apresenta resultados parciais acerca de um estudo mais que amplo que venho
desenvolvendo sobre o fenômeno quilombola na província sergipana, mais precisamente
sobre a região da Cotinguiba. Neste, é demonstrado os conflitos, o desespero, as conquista e
as derrotas que diversos negros fugidos experimentaram no árduo caminho, muitas vezes sem
fim, rumo à liberdade. Toda esta conturbada realidade é demonstrada através de densa análise
crítica de fontes dispersas, onde informações a respeito de estratégias, organizações sociais,
objetivos, dentre outras questões aparecem em formas de indícios.
1. INTRODUÇÃO
65
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 4 de março de 1872, p. 5.
2. DA LAVOURA ÀS MATAS
Sergipe D’el Rey, menor província do Império brasileiro, contava com cerca de
650 engenhos nos anos setenta do século XIX. A Cotinguiba, principal região agro-econômica
provinciana, concentrava grande parte destas unidades. Núcleos pequenos, contendo em
média 20 escravos, muitos destes braços destinados quase que exclusivamente ao trabalho na
lavoura.
66
Ibidem.
67
“Emancipação de escravos”, Jornal do Aracaju, n° 226, 23 de dezembro de 1871, p. 3.
68
O cultivo da cana-de-açúcar impulsionaria o desenvolvimento de dez núcleos urbanos nesta região. A capital
da província, Aracaju, também estava ai localizado e desempenharia o papel de pólo decisório acerca da
comercialização e do escoamento do açúcar.
69
Sumário de Culpa do escravo José Africano. Fundo: Laranjeiras – cart. 1° ofício, cx. 291. Arquivo Judiciário
de Sergipe.
3. PELAS MATAS
70
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa, 25 de fevereiro de 1835,
p. 6.
71
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Francisco José Cardoso Júnior, 03 de março de 1871, p. 29.
Aurélio marcharia para dar combate a um grande grupo de criminosos que estavam alojados
as margens do rio São Francisco, justamente na encruzilhada entre as províncias de Sergipe,
Bahia e Alagoas. Diante desta realidade, couberam aos dirigentes das províncias se unirem
para combater “tal mal”. Ao total, marcharam cerca de 300 soldados para combater os
criminosos ali alojados. Na batida, apesar do grande vulto da tropa repressora, conseguiu
capturar apenas “um criminoso e um recruta”, este último, provavelmente um desertor.72
Após a batida o bando vitimara o guia Pedro, que conduzira as tropas repressoras
até o ponto que os salteadores estavam alojados. “Mataram-no barbaramente, fazendo
propalar que darão o mesmo destino a todo aquele que servir de guia as forças estacionadas
ali”.73 As autoridades recorriam muitas vezes a guias para evitar que as tropas repressoras
ficassem vagando sem rumo pelas matas fechadas.
Novas medidas teriam que ser adotadas para “reprimir a audacia dos bandidos”, e
assim “prende-los e puni-los, destruir os quilombos que se formam, para que se restitua a
tranqüilidade ao povo, e evite uma insurreição, que pode sobreviver, si, o que há, for
abafado”.74
Entre os capturados, nota-se a presença de um recruta. Como a fuga representava
uma ameaça à ordem escravocrata, e a partir deste momento eram considerados malfeitores e
bandidos, não seria incomum que pessoas livres, perseguidas pela justiça, se juntassem a esses
negros em busca de abrigo e proteção. Estas alianças forjadas em meio à escravidão eram de
suma importância para a manutenção da liberdade. Tratava-se de relações informais que
podiam ser moldadas e redefinidas a depender dos interesses daqueles imersos nesta ampla
teia.
Erguendo seus mocambos nos arredores das matas dos engenhos, os negros ali
reunidos mantinham constantes comunicações com os negros remanescentes das senzalas.
Fato este que foi bem descrito pelo Jornal do Aracaju em abril de 1872: “A experiência tem
mostrado o grau de relações que entretém os quilombolas com os escravos dos engenhos:
acham aqueles apoio e proteção: trocam estes farinhas e agasalho pela partilha nos roubo dos
primeiros e em caso de perigo invadem as senzalas”. Aos donos de escravos cabia “exercerem
assídua fiscalização na sua escravatura, cortando quanto for possível a comunicação protetora
que tanto tem embaraçado as diligências”. 75
72
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 04 de março de 1872, p. 7.
73
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo, 4 de março de 1872, p. 8.
74
Idem, p. 9.
75
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 257, 3 de abril de 1872, p. 2.
Apenas 21% das terras dos engenhos eram ocupadas com plantações, quantidade
equivalente seria ocupada com matas e cerca de 60% eram compostas por campos
(AMARAL, 2007, p. 67). Ao erguer seus mocambos nestas áreas inóspitas, os quilombolas
contariam também com forte proteção geográfica. A movimentação lenta das diligências por
dentro das florestas fechadas propiciava tempo suficiente para que os amocambados, ao
tomarem ciência das tropas que marchavam aos seus encontros, fugissem para terras distantes
ou para as senzalas dos engenhos.
Ao seguir para dar combate a um quilombo existente nos arredores do engenho
Brejo, em Laranjeiras, o tenente Jeremias Roberto de Carvalho relataria que encontrara
grandes dificuldades devido “ao mau tempo” e “a dificuldade de marchar a escolta
regularmente em uma mata extensa e intransitável”. Apesar dos esforços empregados,
evadiram-se os escravos. Conseguindo apenas a escolta apreender uma parda de nome
Francisca, fugida a mais de um ano do seu senhor Manuel Curvelo de Mendonça”.
Interrogada, Francisca relataria ter parido “um filho nos matos, e que o viera depositar em
casa de uma mulher” moradora do mesmo termo “conhecida por Maria Cabocla”.76
Tal noticiário continuaria relatando que os “quilombolas praticam toda a sorte de
perversidade nos lugares em que se acoitam. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de seus
filhos, quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá acontecido. Convém, pois,
empregar todos esforços para extinguir estes malfeitores”.77
Nota-se, diante destes relatos, qual era a visão construída pela classe senhorial
para com os negros fugidos. Esta ótica, muitas vezes destorcida e inflamada, fazia com que a
autoria de muitos crimes, mesmo sem provas, recaísse sob os calhambolas. Contudo, nem
todas as populações livres se voltaram contra estes negros. Muitos os tiveram como aliados,
sejam por serem simpáticos à suas causas ou por visarem angariar benefícios econômicos.
Em março de 1873, proprietários de engenhos de diversos municípios
(Laranjeiras, Divina Pastora, Rosário, Capela e Japaratuba), seriam acusados pelo chefe de
policia de estarem realizando um “desleixo criminoso” diante a presença de quilombolas em
suas propriedades. Estes “não só deixam que esses escravos se acoitem em suas terras, como
também não impedem que se relacionem com os que possuem nos seus engenhos, o que é de
grande proveito àqueles, que não podem ser apreendidos sem grande dificuldade”.78
76
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 376, 14 de maio de 1873, p. 2.
77
Ibidem.
78
“Captura de Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 361, 19 de março de 1873, p.2.
79
“Expediente do Governo do dia 26 de novembro de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 434, 3 de dezembro de 1873,
p. 1.
80
Ibidem.
81
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Antônio dos Passos Miranda, 15 de janeiro de 1874, p. 3.
82
“Captura Importante”, Jornal do Aracaju, n° 364, 30 de março de 1873, p. 1.
83
Relatório do chefe de polícia da província de Sergipe senhor Manoel José Espínola Júnior, 26 de outubro de
1872, p. 5. Documento anexo ao Relatório do Presidente da Província de Sergipe Cypriano Almeida Sebrão, 1 de
março de 1873.
84
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 370, 23 de abril de 1873, p. 3.
85
“Tentativa de Suicídio”, Jornal do Aracaju, n° 403, 17 de agosto de 1873, p. 2.
86
Jornal A Liberdade, n° 42, 16 de fevereiro de 1874, p. 1.
87
Ibidem.
meterem na quadrilha” que provavelmente ele era líder.88 Em julho de 1873, o chefe de
polícia informou ao presidente o paradeiro de João Mulungu e seu bando. Estes se
encontravam “residindo na margem do rio Vasa Barris, junto ao engenho Itaperoá, do termo
de Itaporanga”.89 Tomando conhecimento do paradeiro provisório do bando, a presidência
expediu ordens para que o tenente João Batista da Rocha, que até então estava à caça de
quilombolas pelos matos do município de Rosário, fosse remanejado para “promover a
captura dos quilombolas no termo de Itaporanga”.90
Porém, Mulungu e seu bando já haviam rumado para novas matas. Em ofício, a
autoridade policial do município de Divina Pastora noticiava ao chefe de polícia sobre o novo
paradeiro do tal quilombola:
88
Ibidem.
89
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
90
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
91
Ofícios expedidos – AG.1.04 – APES. 13 de janeiro de 1876, doc. 05.
92
Ofícios: escravos – AG.1.04 – APES. 14 de janeiro de 1876, doc. 06.
93
Ressalto que até então não pude saber qual o verdadeiro motivo da substituição do ex-juiz municipal Jenuino
por Manoel Cardoso Vieira. Acredito que se as acusações do Paciente fossem plausíveis, resultaria daí sua
substituição.
captura do dito quilombola. Vicente de Paula, o chefe de polícia, designou que uma diligência
sob a liderança do capitão João Batista, fosse ao encontro dos quilombolas.
Entre os dias 14 e 19 de janeiro daquele ano, João Batista acompanhado de alguns
praças bateram as matas dos engenhos da Cotinguiba sem sucesso. No caminho de retorno ao
município de Divina Pastora, a tropa nas proximidades do engenho Vassouras encontrou “um
escravo de nome Severino, do engenho Flor da Roda, termo de Laranjeira, que entregou uma
carta comunicando que se encontrava nas senzalas do engenho João Mulungu”.94
Severino ficaria incumbido de guiar a tropa até o dito engenho. Lá chegando,
constataram que o temido quilombola realmente esteve por àquelas terras, mas que no
momento tinha saído e que retornaria por volta do meio dia. No dia 20, Severino encontrando-
se com a tropa, “deu parte que João Mulungu se achava descansando com um seu
companheiro no centro de um canavial. Partiu a tropa e chegando próximo ao canavial
mandou o tenente João Batista da Rocha que seis soldados franqueassem pela esquerda, nove
pela retaguarda e três praças atacassem pela frente. Vendo a tropa, João Mulungu tentou fugir
sendo arrojado no chão com um golpe na cabeça”.95
Encerravam-se assim os quase dez anos de “vida erradia” do negro Mulungu.
Capturado, o quilombola fora trazido para a capital da província como um troféu. Segundo o
chefe de polícia, “por toda parte em que a intrépida escolta passava com o referido escravo,
era vitoriada pelo povo em massa que manifestava ainda francamente o seu agradecimento ao
Dr. Juiz Municipal de Divina Pastora, ao capitão João Batista da Rocha e ao alferes
Marcolino, os quais acompanharam aquele malfeitor até esta capital onde tem sido objeto de
curiosidade”.96
Levado a interrogatório ainda em Divina Pastora, o negro revelara que o rigor
com que o seu senhor lhe tratava desde ainda muito menino, surrando-o enquanto este já
estava acorrentado, fez com o que ele fugisse por três vezes, numa tentativa desesperadora de
arranjar outro senhor. Como não conseguira quem o comprasse, decidiu entranhar-se pelos
matos. Este negro “um pouco ladino e insinuante” no seu depoimento diria também que
preferia “ser enforcado na praça pública a voltar para a casa de seu senhor”.97
Para as forças policiais, a captura do “chefe dos escravos fugidos” representava a
vitória branca frente às sublevações negras na província. Sua captura gerou tanta euforia entre
94
Arquivo Público do Estado de Sergipe, CM3, 1876. Apud SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e
quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Aracaju, n°31, 1992, p. 38.
95
Ibidem.
96
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.
97
Ibidem.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta negra pela liberdade foi uma constante na província de Sergipe Del Rey.
Como modelo de resistência, destacou-se o grande número de fugas do cativeiro. Contudo as
grandes preocupações das autoridades estavam centradas nas ações dos quilombolas. Dentro
de uma classificação proposta por alguns historiadores, os quilombos sergipanos seriam de
caráter predatório, detentores de uma economia parasitária. Acredito que esta classificação
oculte mais do que revele os verdadeiros significados das ações dos quilombolas. Seus crimes,
furtos e delitos não são simples atos de resistência, e sim, de sobrevivência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
98
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.
população livre necessitava de seus serviços para sua sobrevivência.99 Questão também válida
para a cidade do Rio de Janeiro e até outros centros urbanos do Império. Na estimativa
adotada por Cláudio Pinheiro, 90% da população residente na cidade do Rio de Janeiro, das
três primeiras décadas do século XIX, possuía ao menos um cativo, sendo estes 50% da
população da cidade. Era um elemento essencial da vida carioca, sendo empregado nos mais
diversos serviços.100
Conforme Joseli Nunes Mendonça, referindo-se a realidade dos centros urbanos,
“para que os senhores pudessem angariar sua ‘recompensa’ pecuniária, era necessário que tais
escravos [de ganho] dispusessem de uma margem considerável de autonomia para trabalhar”.
Tais indivíduos poderiam residir fora da residência senhorial e circulavam entre a população
livre das cidades. 101 Realidade também da cidade do Salvador.102 Todavia, assim como no
campo, os senhores dos centros urbanos possuíam mecanismos que buscavam garantir a
manutenção da propriedade privada (o escravo), da ordem social e econômica vigente. João
José Reis, em artigo sobre os trabalhadores negros da cidade do Salvador de meados do
século XIX, demonstra que existia uma preocupação da população branca para com tais
trabalhadores.103
Em 1857, ocorreu em Salvador a “greve negra”, um protesto dos trabalhadores de
ganho contra uma postura municipal que prévia o cadastro – obrigatório – para os
“ganhadores” e, para além, a apresentação de um fiador que “se comprometesse pelo
comportamento futuro deles”, caso esse fosse liberto. Foi uma medida, como muitas outras,
concebida para “disciplinar o negro no espaço público, tanto de trabalho como de lazer”.
Medida que demonstra os temores que a minoria “branca” conservava sobre a população “de
cor”.104 Segundo Costa, as características da escravidão na cidade do Salvador, onde
predominou a existência de escravos de ganho que necessitavam de autonomia para trabalhar,
só foi possível porque o Estado buscou assumir o controle sobre os escravos através de seu
aparato legal e policial.105
99
COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no Século XIX”.
Caderno CHR (suplemento), 1991, p. 20.
100
PINHEIRO, Cláudio. “No governos dos mundos: escravidão, contextos coloniais e administração de
populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, pp. 432-433.
101
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na justiça. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 39.
102
COSTA, “Espaços negros”, pp. 19-20 e 27-31.
103
REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.
104
REIS, “A greve negra de 1857”, pp. 8-9 e 14.
105
COSTA, “Espaços negros”, pp. 20-21.
106
“Instrucções dadas pelo chefe de policia”, 09/08/1850. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente da
Provincia da Bahia, o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, n’abertura da Assemblea
Provincial da mesma Provincia no 1º de março de 1851. Bahia: Tipographia Constitucional de Vicente Ribeiro
Moreira, 1851, p. 7.
107
FUNCEB. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: FUNCEB, 1996, p. 171.
108
“Offício em que o chefe de policia emitte sua opinião sobre a creação dos Pedestres fallando do estado, e
numero delles”, 10/02/1851. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 4.
109
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
110
Das 131 matriculas consta que 68, saíram, por algum motivo – como morte, demissão, doenças, ingresso na
polícia – da Companhia.
111
“Creação dos Pedestres: artigos additivos ao Regulamento de 21 de março de 1850”, 21/03/1850. In: BAHIA.
Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 6.
112
FUNCEB, Legislação da Província, pp. 171-172.
113
BPEB. O Guayacuru, ano 10, n. 389, Bahia, 27/06/1853, p. 4. Laurentino José, em anúncio publicado em
periódico baiano, oferecia 200$ de gratificação cujo valor hipoteticamente dividimos entre o pedestre apreensor
e o “cofre” para as gratificações que não possuíam promessa de pagamento.
114
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), fl. 29v.
115
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 04/11/1854 e 07/11/1854. Consta entre a
documentação, enviada ao chefe de polícia, diversos comprovantes de despesas do enterro.
delegados: a apresentação de prisão é a tônica de muitas delas. Como em casos de prisão por
“desordem”, a exemplo da ocorrida com “as africanas Rozalina e Adriana encontrada ambas
em dezordem a ladeira da rua passos”, no dia nove de julho de 1854.116 Mas, também
apresenta conflitos e enseja sobre solidariedades entre o grupo.
Os capitães-do-mato, outro tipo de capturador de escravos fugidos, também foram
registrados por autoridades para exercer sua função,117 todavia não compunham um corpo
hierarquizado e burocraticamente organizado como os pedestres. Ademais, nada impedia que
indivíduos se aventurassem no exercício da função, como a personagem Cândido Neves, de
Machado de Assis.118 Os capitães-do-mato não possuíam uma autoridade hierárquica formal
que exigisse uma comunicação diária. Elemento que se relaciona diretamente com a produção
e preservação documental. Provavelmente, excetuando casos de expedições a exemplo de
Palmares (quando o combate aos escravos era uma questão de Estado) ou quando estes
sofriam atentados,119 tenhamos raros documentos que forneçam indícios sobre a vida dos
capitães-do-mato. Ademais, sua atuação particular e pulverizada foi um elemento que
dificultou a catalogação e preservação dos registros sobre e por eles produzidos.
Pertencer ao aparato repressivo oficial, à burocracia provincial, foi um elemento
fundamental para que a documentação produzida pelos pedestres fosse preservada nos
arquivos. Conforme E. P. Thompson, “‘os trabalhadores pobres’ não deixaram seus asilos
repletos de documentos para os historiadores examinarem”.120 Pedestres e capitães-do-mato,
ambos trabalhadores pobres, não fugiram a essa regra. Todavia, enquanto componente formal
do aparato repressivo do Estado, os pedestres produziram documentos – da burocracia
repressiva oficial – dos quais podemos apreender elementos de suas vidas.121 As partes diárias
116
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 10/07/1854.
117
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos”. In:
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.
118
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp.
61-71.
119
Casos em que capturadores de escravos sofreram atentados foram citados por: Isabel Cristina Ferreira dos
Reis (“Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos: fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia,
n. 23, 1999, pp. 36-37) e Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na
Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, pp. 99-108). Ademais, tais sujeitos sociais
quando aparecem em bibliografias é em menções curtas.
120
THOMPSON, Edward P. “Patrícios e plebeus”. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 26.
121
Conforme Manuela Carneiro da Cunha (“Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense: EDUSP, 1986, p. 134), o controle dos escravos ficava exclusivamente a cargo dos senhores (exceto
em casos de assassinatos e insurreições), todavia a partir do século XVIII, essa regra permaneceu válida no
campo. Já nos centros urbanos o Estado se colocou a serviço da “justiça particular dos senhores”.
122
VELLASCO, Ivan de Andrade. “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas questões sobre a
vicissitude do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50). In: CARVALHO, José Murilo de (org.).
Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 249.
123
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
124
BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do mato”. Revista
Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br, acessado em 15/09/2006;
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987,
pp. 109-110.
1871, nos indica tal possibilidade. Anselmo, personagem que atua enquanto capitão-do-mato,
é um liberto que, por características como a “lealdade” e a “coragem” – honrava a liberdade
que gozava –, é considerado apto na tentativa de destruir um quilombo. Era um liberto
considerado ideal e, para além, difusor do processo de emancipação e contenção dos
comportamentos considerados inadequados dos escravos.125
Os pedestres matriculados na cidade do Salvador eram majoritariamente “de cor”.
O engajamento de pretos (2), pardos (54), cabras (3) e crioulos (15) somam para o período
estudado um total de 74 (56,5%) do universo de 131 matrículas. Número que ainda pode ser
superior, pois em vinte e duas (16,8%) matrículas não foram apresentados este dado. Outro
aspecto que nos chama a atenção é a predominância de engajamento de indivíduos solteiros
(75,6%). Cruzando os dados relativos à cor e ao “estado civil”, notamos uma grande
incidência de engajamentos de indivíduos “de cor” e solteiros que compreendiam cinqüenta e
seis (42,74%) pedestres (ver Tabela 1).126 Tais dados indicam que os pedestres eram
arregimentados entre as camadas populares da cidade. A população de Salvador de meados do
século XIX foi estimada em 86.984 habitantes, sendo que 30% eram escravos. Pretos e
mestiços somavam 67%.127 Entres os trabalhadores de rua da cidade do Salvador, grupo que
os pedestres vigiavam e reprimiam, a maioria não eram casados. Conforme Costa, servindo-se
do censo de 1855, “91% eram solteiros e 3,5% viúvos, embora haja evidências de
concubinatos”, comportamento que acreditamos ter sido realizado também pelos capturadores
de escravos.128
Tabela 1. Relação cor e estado civil dos pedestres matriculados entre os anos de 1850 e 1857.
Fonte: APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de
Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f.
Cor
“De cor” Brancos Não apresenta Total
civi
Casados 10 7 3 20
l
125
Autores como Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade, pp. 49, 109) e Manuela Carneiro da Cunha
(“Sobre os silêncios da lei”, pp. 123-144) argumentaram que a concessão de alforria foi tida pelos senhores como
uma forma de gerar uma mão-de-obra livre subordinada. Buscavam promover um processo “ordeiro” que
mantivesse a autoridade (ex)senhorial. Podemos acrescentar que, como sugere Bernardo Guimarães, também
apta a difundir o processo de emancipação. Ver, também: GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de
quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.
126
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
127
COSTA, “Espaços negros”, p. 20.
128
COSTA, “Espaços negros”, p. 31.
Solteiros 56 26 17 99
Viúvos 1 1 0 2
Não apresenta 7 1 2 10
Total 74 35 22 131
Tabela 2. Relação cor, estado civil e faixa etária dos pedestres matriculados. Fonte: Matrícula
de Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f. Ver Tabela 1 para um quadro total.
Cor
“De cor” Brancos Não apresenta Total
Casados 1 2 0 3
18 a 29 anos
Solteiros 30 17 10 57
Estado
Viúvos 0 0 0 0
civil
Não apresenta 3 1 1 5
Total 34 20 11 65
Casados 4 4 3 11
30 a 39 anos
Solteiros 14 5 5 24
Estado
Viúvos 0 0 0 0
civil
Não apresenta 2 0 0 2
Total 20 9 8 37
Acima dos 40
Casados 5 1 0 6
Faixa etária
Solteiros 10 4 1 15
Estado
Viúvos 0 1 0 1
civil
Não apresenta 2 0 0 2
anos
Total 17 6 1 24
129
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 65.
130
Seguido por 17 que indicam serem brancos, solteiros e na mesma faixa etária.
Não apresenta
Casados 0 0 0 0
Solteiros 2 0 1 3
Estado
Viúvos 1 0 0 1
civil
Não apresenta 0 0 1 1
Total 3 0 2 5
Enfim, houve uma maior incidência de indivíduos “de cor”, jovens e solteiros na
captura oficial de escravos fugidos em Salvador para o período entre 1850 e 1857. Tal
incidência, provavelmente, foi reflexo, ao mesmo tempo, das necessidades coativas do estado
que necessitava de indivíduos culturalmente e fisicamente hábeis para o exercício da função,
bem como das condições de emprego e sobrevivência a que estava submetida a população “de
cor” da cidade do Salvador. Como destacou Kowarick, alijados do sistema produtivo, o
trabalhador não escravizado, seja livre ou liberto, foram, sobretudo, os executores da
violência senhorial.131 Ser capturador de escravo fugido era uma questão de sobrevivência,
mas pode ter representado também uma questão de prestígio social que afastava o indivíduo,
de maneira muito sutil, do mundo do cativeiro.132 Poderia representar também a possibilidade
de ingresso na polícia, força mais prestigiada e melhor remunerada que os pedestres, como foi
o caso de Estanilau de Brito Pinheiro, natural de Salvador, solteiro, pardo, engajado em oito
de abril de 1852, com trinta e três anos de idade. Em setembro do ano seguinte, Estanilau
ingressou na polícia.133
A proximidade social dos capturadores de escravos fugidos com aqueles que
deveria reprimir implicou também em casos de utilização pessoal de certos privilégios ou de
sua função. Em três de julho de 1854, o cabo-pedestre Zacarias de Castro Lima noticiava, em
sua carta diária, ao chefe de polícia, que “o pedestre Joze Perª da Rocha que rondou ontem a
tarde a fregª da Sé deo parte que deo voz de prisão […] a crioula Paulina moradora ao beco
das Campelas por insultar a elle com palavras injuriosas estando elle de ronda e o motivo foi
por que tinha elle pedido dês tustoez que ella lhe devia de Obra”.134 Esse conflito entre a
crioula Paulina e o pedestre José Pereira da Rocha indica, também, que o pedestre em questão
buscava por outras fontes de renda. Em Minas Gerais, segundo Vellasco, os pedestres eram
131
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1987, pp. 109-110.
132
Bezerra (“Entre escravos e senhores”) enfatiza justamente este aspecto. O ofício de capitão-do-mato atendia
as demandas relativas à questão de distinção social almejada pelos setores pobres e “de cor”.
133
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), fl. 25.
134
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 03/07/1854.
todos empregados em pequenos ofícios.135 Certamente, assim como outros capturadores, José
Pereira não poderia dispensar os dez tostões que lhe devia Paulina: as condições sócio-
econômicas dos pedestres não eram das melhores, o ato de solidariedade acima mencionado
demonstra isso.
O conflito entre Paulina e José demonstra que para além do aspecto cultural, os
capturadores conheciam pessoalmente os indivíduos que deveriam perseguir. Poderiam
inclusive residir em locais próximos. Essa proximidade (física, cultural e residencial) foi, de
certo modo, pensada pelos dirigentes da burocracia repressiva. Em 1857, quando foi criada a
Companhia de Polícia Urbana (e ao que tudo indica extinta a Companhia de Pedestres),136 o
chefe de polícia recomendava: “sempre que for possível, serão preferidos a servir na
Freguesia os Guardas que nellas morarem”. Os guardas urbanos tinham, assim como os
pedestres, entre suas atribuições, a função de coibir “reunião de escravos”.137 Tais reuniões
eram, sobretudo, de escravos de ganho que reunidos nos “cantos” da cidade “estabeleciam
vínculos, trocavam idéias e podiam até mesmo conspirar, na medida em que não estavam sob
o controle e vigilância direta do seu senhor”.138
Mas, a proximidade entre escravos e capturadores poderia representar perigo para
a classe proprietária ou suas finanças. O historiador e poeta inglês Robert Southey, em sua
Historia do Brazil escrita entre 1806 e 1819, e publicada no Brasil em 1862, ressaltou que os
capitães-do-mato eram “quasi tão perigosos, como os mesmos salteadores que tinhão por
dever perseguir”. Para ele os capturadores haviam inventado algumas velhacarias: “prendia
negros que não erão fugidos”, aproveitavam-se dos serviços dos capturados, e, ainda, “alguns
bargantes d’esta profissão”, enfatizou ele, “para se tornarem mais commoda a couza,
costumavão em logar de correr atraz de negros fugitivos, pagar a escravos que fugissem e
viessem ter com elles”. Segundo Southey, para previnir tais práticas “não devião os
magistrados deixar os capitães do mato residir muito tempo em qualquer villa ou arraial”,139
enfim era preciso restringir essa proximidade.
135
VELLASCO, “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão”, p. 252.
136
No ano de 1857 houve apenas dois engajamentos de pedestres: no dia três de janeiro o maranhense Zuntiliano
de Oliveira, solteiro, branco, então com 42 anos, retornava à Companhia após aproximadamente um ano e quatro
meses. E no dia 12 do mesmo mês temos o último registro de engajamento, o de Severino Rois de S. Anna,
natural de Salvados, cabra, solteiro, com 32 anos de idade. Ademais, neste mesmo ano, desaparece do Arquivo a
documentação da Companhia.
137
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Série Polícia, Atos de criação da Guarda Urbana, maço
2946 (1857), 25/07/1857.
138
COSTA, “Espaços negros”, p. 27.
139
SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro e anotada pelo
Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1862, pp. 522-323.
FONTES
Obras literárias
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin
Claret, 2002, pp. 61-71.
GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo:
Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.
REFERÊNCIAS
BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do
mato”. Revista Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br,
acessado em 15/09/2006.
COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no
Século XIX”. Caderno CHR (suplemento), 1991, pp. 18-34.
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas
alforrias de escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história,
etnicidade. São Paulo: Brasiliense: EDUSP, 1986, pp. 123-144.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos
escravos”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos:
fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia, n. 23, 1999, pp. 27-46.
REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.
SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro
e anotada pelo Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de
B. L. Garnier, 1862.
Entre 1864 e 1870 o Brasil esteve envolvido na chamada Guerra do Paraguai. O conflito
envolveu as principais Províncias do Império, mobilizando um grande efetivo de homens para
complementar os quadros do Exército Nacional e da Armada. A Província da Bahia foi uma
das mais exigidas, enviando para a guerra um efetivo superior a 18 mil homens. Entre esses
homens estavam voluntários e recrutados pegos à força. Este texto trata de um recurso
utilizado pelo Governo Provincial Baiano, sob a orientação do próprio Governo Imperial, para
complementar os efetivos dos Corpos que seguiram da Bahia, a fim de complementarem os
quadros do Exército Nacional, o envio de escravos. Segundo indicam as fontes, a idéia das
autoridades imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a
libertarem seus escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação ou mesmo
comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a guerra. Após o exame de uma variada
e diversificada gama de fontes escritas (manuscritas e impressas), oficiais e pessoais,
encontradas no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), apresento uma série inédita de
descobertas sobre o tema.
1
Pelo Decreto 3371, poderia compor esses Corpos todo cidadão entre 18 e 50 anos de idade, que aceitasse as
condições ali estabelecidas.
2
A Guarda Nacional foi criada em 1831, ainda no período regencial. Tinha a missão de substituir as extintas
Milícias, Ordenanças e Guardas Municipais, e, em último caso, auxiliar o Exército em questões externas. Em
1850 foi reorganizada, ficando subordinada aos Juizes de Paz, Presidente de Províncias e ao Ministro da Justiça.
3
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 199.
4
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos
documentos do Governo da Província. 1ª parte. Série Administração. Maço 828.
5
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 232.
6
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Presidência da Província. Avisos recebidos do Ministério da
Guerra. Originais - 1865. Maço 828; Boletim do Diário da Bahia, 04 de setembro de 1865 e Maço 3668; Arquivo
Municipal de Salvador. Atas da Câmara Municipal 1861/1869. N º. 950.
militares, de homens que pudessem completar os efetivos dos batalhões da Guarda Nacional,
transformados em Corpos de voluntários da pátria, suprindo, assim, as crescentes
necessidades do Exército em operações.
Um dos recursos utilizados pelo Governo Provincial para complementar os
efetivos dos Corpos de voluntários da pátria foi de mobilizar escravos que pudessem ser
aproveitados nos serviços para a guerra. Segundo indicam as fontes, a idéia das autoridades
imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a libertarem seus
escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação. Caso não conseguissem esse
intento, a outra estratégia seria de comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a
guerra.
Na Bahia, uma das instituições que se alinhou ao Governo no compromisso de
alforriar escravos e enviá-los para o conflito foi a Igreja Católica. Como exemplo, em janeiro
de 1867, a abadessa do Imperial Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, passou
carta de liberdade ao escravo de nome Lourenço, a fim de ele seguir para o conflito, e o abade
de São Bento, também em Salvador, apresentou 10 forros para servirem no Exército. Em
resposta, o Governo Imperial informou que esperava que a “solicitude paternal” do reverendo
fizesse com que muitos outros forros fossem apresentados para o mesmo fim. 7
Ao contrário da Igreja, o pensamento dos donos de escravos não estava
sincronizado com o objetivo que o Ministério da Guerra pensava alcançar, de conseguir o
maior número possível de escravos que pudessem combater ao lado das tropas imperiais e,
aproveitando a oportunidade e a falta de compromisso das autoridades provinciais baianas,
esses proprietários venderam ao Governo escravos em péssimas condições físicas.
Em abril de 1867, o Ministro da Guerra devolvia ao presidente da Província 12
escravos forros que tinham sido enviados para a Corte a fim de serem empregados nas
atividades de guerra. O Ministro informava que eles tinham sido inspecionados e julgados
incapazes para o serviço do Exército. Orientava a fim de que os escravos fossem
8
inspecionados, com rigor, antes de serem enviados. Anexo ao documento, existia uma
relação onde constavam os dados pessoais relativos a esses homens, o nome, a naturalidade e
o motivo da incapacidade. 9
O Ministério da Guerra, através de ofício “circular”, determinou aos presidentes
de Províncias que remetessem, com urgência, relação dos libertos que tendo ido para a Corte,
7
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série Militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.
8
Idem, maço 830.
9
Idem, Ibidem.
voltaram por terem sido declarados incapazes para o serviço militar, informando a quem
pertencia, por quem foram oferecidos, ou se foram comprados por conta do Estado. 10 Era uma
forma de o Império descobrir se estava havendo realmente dolo por parte dos proprietários ou
se as autoridades provinciais não estavam dando a importância devida para a inspeção desses
homens, e com isso penalizar os responsáveis.
Por outro lado, o caráter “circular” do documento indicava que não só da Bahia
seguiram negros alforriados para a guerra e que muitos escravos voltaram para as suas
Províncias de origem por não satisfazerem as condições físicas exigidas pelo Exército.
Embora o Governo Imperial esperasse conseguir um bom número de escravos, o
Exército, aparentemente, não teve preocupação em priorizar a incorporação de alforriados às
suas fileiras; ao contrário, manteve nas suas juntas de inspeção de saúde uma postura de
resistência a essa política, só recebendo aqueles homens que realmente tinham plenas
condições físicas.
As informações apresentadas pelo presidente da Província à Assembléia
Legislativa da Bahia, em abril de 1869, mostram que, para o Governo Provincial, seguiram
para a guerra 1.647 escravos (o somatório dos escravos enviados para o Exército e para a
11
Armada), sendo 1.376 especificamente para a Armada. Ou seja, para o Exército seguiu,
apenas, 271 escravos, o que corrobora as informações encontradas nos documentos
comentados acima, de que o Exército não priorizou a incorporação de alforriados. Ao
contrário, a Armada, aparentemente não teve o mesmo posicionamento, absorvendo grande
quantidade de escravos em suas fileiras.
No relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, de 1872, consta que na
Província da Bahia foram libertados, a fim de seguirem para a guerra: por Conventos, 12
escravos; por particulares, o mesmo número; e que foram comprados e libertados pelo
Governo Provincial e enviados para o Exército 248 escravos, dando um total de 272 homens.
12
Embora não plenamente concordantes, os dados dos dois relatórios corroboram-se.
Caso interessante ocorreu com o escravo de nome Modesto, pertencente a
Joaquim Anselmo de Barros Bittencourt. O escravo, em novembro de 1867, foi condenado
por júri popular à pena de 500 açoites, e trazer um ferro preso ao pescoço por espaço de dois
anos. Porém, em fevereiro de 1868, o Jornal da Bahia noticiou que um escravo de nome
Modesto, condenado por crime, tinha seguido para a guerra, incorporado à Armada. De
10
Idem, Ibidem.
11
APEB. Biblioteca. Relatório do presidente da Província, em 11 de abril de 1869.
12
APEB. Biblioteca. Relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, em 1872.
13
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.
14
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.
Dionísio permaneceria como praça enquanto Pedro Campos não apresentasse as provas
exigidas. 15
Também o chefe de Polícia da Capital reclamou a posse de um escravo que se
alistou com o nome de José Bomfim, na 2ª companhia de zuavos baianos, mas que era, na
16
realidade, escravo do comendador Manuel de Lima e se chamava Agostinho. E até o padre
Juvenal Fernandes da Silveira, residente em Salvador, pediu, por meio do seu procurador, o
bacharel Joaquim Baptista Rodrigues da Silva, que mandasse dar baixa do serviço militar ao
escravo Passiano, de propriedade de sua irmã, D. Rosa Oliveira da Silveira, que foi para a
Côrte, tendo assentado praça na 1ª companhia de zuavos baianos com o nome de João
17
Francisco de Souza. Esses casos nos revelam que a estratégia de fugir e se alistar nas
Unidades do Exército, em particular nas companhias de zuavos, foi uma opção explorada
pelos escravos, que viam na ida para a guerra uma maneira de conquistar suas liberdades.
Em suas reminiscências, o memorialista Dioniso Cerqueira afirma haver entre os
voluntários uma tropa trajando uniforme estranho e diferente, com largas bombachas
vermelhas presas por polainas que chegavam à curva da perna, jaqueta azul, aberta, com
bordas de trança amarela, guarda-peito do mesmo pano, o pescoço limpo, sem colarinho nem
gravata e um “fez” na cabeça. Afirma que eram todos negros e chamavam-se – zuavos
18
baianos. Que os oficiais também eram negros. O próprio Conde D’EU, em determinado
momento da guerra faz referencia às companhias de zuavos, como sendo tropas lindas, com
militares de boa postura. 19
Parcela significativa da população baiana, provavelmente constituída em sua
maioria de libertos, contribuiu para que essas companhias tivessem seguido bem
uniformizadas. O periódico político O Liberal organizou uma subscrição, em 1865, com o
apoio da população, especificamente para angariar fundos para o fardamento de militares das
companhias de zuavos. Segundo Cyrillo Eloy Pessoa de Barros, responsável pelo jornal, tão
logo abriu a subscrição houve uma grande procura para realizar doações, que, de imediato,
chegaram à quantia de um conto e vinte e sete mil réis. 20
15
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
16
Idem, Ibidem.
17
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
18
CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1974.p. 104.
19
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá, um voluntário da pátria. In: Guerra do Paraguai. 130 anos Depois. (Org.)
MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 75.
20
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.
21
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3670.
22
“Dom Obá” quer dizer “rei” em Iorubá.
23
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (Org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67.
24
Ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67,74 e 75. Ver também o texto
de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor”.
25
APEB. Biblioteca. Ordens do Dia. Guerra do Paraguai. Marques de Souza – 50- 103.1866-1867. p. 33.
26
Idem, Ibidem.
27
Com relação a essa afirmativa ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In:
MENEZES, Eduarda Magalhães (org.). Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré,
1995. p. 69.
28
Idem, Ibidem.
29
MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição
aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
30
Sobre o “ser soldado”, ver o texto de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e
pensamento de um homem livre de cor”. MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do
Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
31
Sobre a expressão “vivendo de si”, ver o texto de Hebe Maria Mattos, “Das cores do silêncio”.
32
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3671.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de
Janeiro: Edições Bloch, 1973.
33
Idem, Ibidem.
34
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1990.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Forros e brancos pobres na sociedade colonial do Brasil
1675-1835. In: História general de América Latina. Unesco. V.3. Cap. 14.
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo,
SP / Salvador, Ba: Edufba, 1996.
POMER, León. Paraguai: A nossa guerra contra esse soldado. São Paulo: Global, 1997.
Através da literatura percebemos que a liberdade era um objetivo a ser alcançado pelos
escravos e escravas, para conseguir tal intuito, em algumas situações, vários métodos foram
utilizados na conquista dessa liberdade. Ainda há poucos estudos sobre a escravidão em
Aracaju, sobretudo os que trabalham com a categoria gênero. Nosso objetivo é analisar as
estratégias de resistência das escravas e dos escravos em Aracaju, no período de 1855-1888.
Queremos compreender quais eram as possibilidades de resistência para essas escravas e
escravos. Para isso, utilizaremos anúncios de escravos nos jornais, processos-crime, sumário
de culpa. E a metodologia nessa pesquisa utilizada é o método indiciário. Entretanto, as
dificuldades impostas para algumas mulheres negras e homens negros eram tamanhos que
muitas deles perdiam a esperança e por fim chegavam a cometer o ato do suicídio, e nosso
estudo também buscará este gesto que para alguns historiadores é analisado como um ato de
resistência. Portanto, essa pesquisa pretende contribuir para a compreensão da escravidão
urbana na Província sergipana, e das relações de gênero no interior da escravidão.
140
Graduada em Licenciatura Plena em Historia – Unit/SE.
141
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade - uma Historia das Ultimas Décadas da Escravidão na Corte.
São Paulo:Companhia Letras, 1990.
1. Das Fugas
“Escravo Fugido
Fugiu do abaixo assignado o seu escravo Mauricio, de cor vermelho,
cabellos crespos, barbado, pés rachados e um tanto calvo no alto da cabeça.
Levou calça azul e chapeo de chile já usado. Quem o capturar e apresental o
a seu senhor no sitio Boa Vista, da Barra do Poxim, será bem recompensado.
Aracaju, 18 de dezembro de 1874”142.
142
Doc. Nº 467, Jornal do Aracaju, Aracaju. N. 545, 19 dez. 1874, p. 04 (SIMH 005-22-001-0184)
45 anos), com exceção de dois escravos que possuíam a idade de 13 anos e outro de 70 anos.
Os escravos em sua totalidade eram brasileiros, porém nem todos nascidos em Sergipe, do
material pesquisado podemos observar que 14 homens e 4 mulheres, com a predominância
das cores parda(4), preta(3) e fula(3), apenas dois escravos possuíam especialidade: 01
sapateiro e 01 que possuía varias profissões como: Padeiro, Pedreiro, Cozinheiro. E os sinais
do corpo: 01 castigo, que nos revelam os maus-tratos sofridos pelos escravos, sobretudo
percebemos que fugir não era uma tarefa fácil, porque os escravos que assim conseguiam,
deveriam possuir características e informações que os ajudasse na fuga.
Ainda sobre os anúncios podemos ler, que as fugas eram de caráter individual,
todos eram solteiros, convém afirmar que os escravos que fugiam na idade produtiva (18 a
45), tinham as maiores condições físicas de realizarem a fuga com sucesso, já que fugir não
era uma tarefa fácil, o escravo deveria possuir alguns atributos como conhecimentos de
pessoas e lugares e resistência física143.
Ressaltamos que alguns anúncios de jornais não informavam se o escravo era de
Aracaju, podendo assim este escravo ser de outra vila e ser anunciado aqui, por seu senhor ter
casa em Aracaju como em outra localidade.
Também por viverem nas duas localidades e por conta da distância, os senhores
esperavam um tempo para anunciar a fuga do escravo nos jornais, sendo assim decorrendo de
alguns dias da fuga ao anúncio, como vemos no anúncio abaixo descriminado:
Os escravos buscavam uma nova forma de vida e através das fugas, e os procuram
reconstruir suas vidas longe dos seus antigos senhores, podendo ser mais fácil para aqueles
que sabiam ler e possuíam alguma aptidão para este recomeço: “...os que tinham boas
aptidões para as atividades, corteses, bonitos e espertos. Essas características os ajudariam na
reconstrução de suas vidas após as fugas” (CUNHA, 2004:151).
143
Karasch, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo
Companhia das Letras, 2000.
144
Doc. 362, Correio Sergipense, Aracaju, n. 102, 24 dez. 1861, p.64 (SIMH 007-29-004-0620)
Podemos observar que em sua maioria os homens escravos fugiam mais que as
mulheres escravas, pois possuíam maior liberdade que as mulheres, já que se constituíam de
vendedores, negros de ganho, carregadores, marinheiros como relatado no 1º capitulo.
As negras escravas segundo Cunha (2004), por vezes eram domésticas ficavam
em casa e por este motivo estavam mais junto aos seus senhores, dificultando a sua fuga, as
mulheres que trabalhavam nos serviços do lar, tinham mais acesso ao afeto do senhor, assim
como melhores oportunidades de conseguir a carta, já que eram mais vigiadas. Embora
utilizassem outros métodos como através da negociação, via sexo e ou o uso de seus atributos
no afazeres e nas relações afetivas como meio de conseguir a liberdade. Um outro motivo
seriam os filhos, pois elas eram as responsáveis pela criação.
Sobre as possíveis motivações de fugas, a mais comum seria pelo castigo ou no
caso de mulheres, o assédio ou abuso sexual dos feitores, senhores e agregados. Anúncios de
jornais nos ajudam a exemplificar melhor esta problemática, eles acentuavam atributos com
teor erótico. Como o caso de Eufrásia, escrava, que no seu anúncio de fuga, vem descrevendo
que é corpulenta. O que segundo Amâncio Cardoso é uma situação muito apreciada pelos
escravocratas para iniciação dos filhos ou abuso próprio. Em casa ou na roça as negras
sofriam perseguições, e a essas investidas sexuais estão entre as razões das evasões femininas.
145
Doc- 567, O raio, Aracaju, n. 189, 25 jul. 1880, p. 04 ( SIMH-003-17-003-0423)
146
Escravo considerado compenetrados, bons ajudadores e não dado a preguiça.
147
Doc – 446, Jornal do Aracaju, Aracaju, n. 430, 19 de nov. 1873, p.04 (SIMH 005-21-002-0398)
148
Doc – 237, Correio de Aracaju, Aracaju, n. 40, 02 de agosto 1856, p.04 (SIMH 007.28.002.0225)
149
- Forma de juntar dinheiro, concedido ao escravo a partir de 1871, onde o escravo poderia juntar dinheiro para
comprar sua liberdade.
2. O Uso da Justiça
Mesmo com a afirmação de que o poder de libertar estava nas mãos do senhor,
alguns escravos, a partir de 1871, vêem esse desejo ser inserido no campo da possibilidade, a
partir da Guerra do Paraguai onde é dado o direito a alguns negros de possuir sua liberdade,
através de suas economias, o negro que já possuía projetos de uma nova vida, tem a
oportunidade de conquistá-los152.
Alguns escravos fugiam e/ou matavam seus senhores e feitores, pois não queriam
permanecer no estado escravizado, após o ato de crime, muitos destes iam refugiar-se nas
150
Doc. 490, Jornal do Aracaju, Aracaju, n.719, 02 agosto.1876, p.04 (SIMH-005-22-002-0374)
151
Doc- 536, Correio de Sergipe, Aracaju, n. 67 24 de agosto.1861, p.04 ( SIMH 007-29-003-0543)
152
CHALHOUB, Sidney. Diálogos Políticos em Machado de Assis. In: Visões da liberdade: uma história das
ultimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
cadeias, entregando-se a justiça, onde afirmavam que “preferiam morrer pela mão da justiça,
do que pela mão do senhor.” (CHALHOUB, 1999: 147)
O uso da justiça não se resumia a busca apenas em situações de atos criminosos
praticados pelos escravos, como também era o meio de muitos buscarem a liberdade, através
de ações, para o uso devido do pecúlio, e era o meio do escravo denunciar os maus tratos
sofridos pelos cativos por seus senhores ou por pessoas que sendo ou não próximas
efetuavam.
O motivo mais comum de ações de justiça por escravos eram os maus tratos e a
liberdade através da lista de classificação, onde podemos observar que muitos entravam por
não ter seus nomes inseridos na lista, mesmo que preenchendo os requisitos para tal.
Através dos curadores os escravos pleiteavam na justiça a liberdade, nas ações
realizadas por escravas, são percebidas alegações que ajudavam a escrava conseguir sua
liberdade, através da desvalorização do seu valor comercial, “algumas alegações,
provavelmente foram estratégias utilizadas pelos escravos para diminuir o seu valor”
(CUNHA, 2004:141).
Alguns escravos entravam na justiça por estarem livres pela metade (forros), onde
segundo Chalhoub (1999) eram escravos que possuíam o direito de serem considerados livres
após o seu dono lhe faltasse, ou como em muitos casos, o direito era dado como um ato de
gratidão do seu senhor a prestação de serviço do escravo que o fez com zelo, por muito anos.
Os escravos que viviam como forros, eram por muitas vezes considerados negros
“sobre si”, ora eles viviam sem a sujeição senhorial, e por conta dessa liberdade, muitos
entravam na justiça, informando que a afirmação antes mencionada de que o escravo é
escravo por necessitar de proteção senhorial, não valia para eles.
Os escravos possuíam a idéia de livres, pois trabalhavam fora e viviam como
queriam longe dos seus senhores, mesmo que esse trabalho fosse um trabalho ligado a função
do seu senhor. Já que muitos proprietários não possuíam renda para manter-se, alguns
alugavam os seus escravos para outros senhores e assim permitindo o deslocamento deste
escravo para outra localidade.
Conforme documentação do século XIX, encontrada no Arquivo Judiciário do
Estado de Sergipe, uma petição de Manoel, liberto pela metade, no qual o autor da ação
solicita que seja matriculada a parte dele escrava do peticionário, que pertence a Pedro
Nogueira, com o intuito de não o prejudicar na sua parte liberta153.
153
Petição de Manoel escravo pela metade cx 02.2476 ano de . Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe.
Podemos então notar através dos processos, a orientação do negro escravo, que
via na justiça uma forma de buscar caminhos para liberdade, sem que esse houvesse a
necessidade do embate físico que percebia que “no máximo o que poderia acontecer com ele
seria receber a pena de Galés Perpétuos, o que para ele possuía o sentido de liberdade”
(Santos, 1991: 42).
Entretanto não encontramos só ações de ordem libertária, encontramos também
ações onde o réu é o escravo por tentar fugir, e no meio de sua fuga, agredir fisicamente uma
pessoa. É o caso de Romão154, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto, solteiro,
trabalhador do serviço da lavoura, onde é acusado de agredir fisicamente Antonio Felix de
Andrade, que em sua canoa no momento da cobrança de sua passagem pela viagem, recebeu
golpes de faca.
Contudo observamos nesse processo que o ato de ferir a Antonio Felix, não
passava de um meio do escravo ser julgado pela justiça e sair das mãos do seu senhor, que o
agredia e por saber que seria castigado em razão de ter aparecido na propriedade do seu
senhor um boi espancado, e isto ser atribuído a ele. Romão afirma que por já saber que seu
senhor não o venderia, usou deste artifício da agressão, para que levado a justiça, sai-se das
mãos do seu senhor e ainda nos explica que como no momento não havia alguém que pudesse
validar o seu ato, correu para prisão.
Percebemos assim que a justiça por mais que fosse castigá-lo, não seria
certamente da mesma forma que o seu senhor, deixando assim claro a formação de caráter dos
senhores de escravos, os meios de castigá-los e afirmando novamente a corrente de
pensamento negro que preferia morrer nas mãos da justiça a morrer nas mãos do seu senhor.
3. Roubos
Outro elemento a ser destacado seria o roubo, como forma de liberdade, o escravo
utilizava desse meio para com o que foi roubado, utilizar tanto para sua liberdade, como
também para sua sobrevivência fora da casa do seu senhor. Há casos em que o roubo também
servia como abastecimento dos quilombos próximos de onde o escravo vivia.
Segundo Santos (1991), a criminalidade dos cativos esteve sempre presente na
escravidão, porém vale ressaltar que atos como roubar, matar e fugir, são apenas movimentos
de tentativa de busca pela liberdade.
154
Réu: Romão, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto cx. 03.2639-sumario de culpa.
Há que surgira que os escravos que praticavam este ato, não eram da cidade e só
acontecia nas cidades cujo o aspecto social era elevado, Todavia encontramos o caso de
Miguel, escravo de propriedade de Jose Moreira de Souza Mangueira, que foi acusado de
roubar um caixão do naufrágio do “Ventura Feliz”.
Em depoimento Miguel155, utiliza estratégias para dizer que não foi um roubo, fala
que num domingo, apareceu boiando sobre o algodão um caixão que após ser recolhido por
ele e passar muito dias sem que alguém o reclamasse, ele retirou para uso próprio algumas
peças de prata, como facas e colheres. Sendo Miguel denunciado por outro escravo por nome
Fortunato, servo também do seu senhor Moreira. Perguntado a ele para tinha roubado, Miguel,
afirma a idéia que tais peças seriam roubas para o uso de sua liberdade, podendo assim vende-
las e conseguindo o dinheiro comprar sua alforria.
Como vimos na afirmativa acima realizada por Miguel, indicamos que os roubos
em sua maioria servia para o uso do próprio escravo em comprar a tão sonhada liberdade.
Por conta dos maus tratos sofridos pelos escravos, este meio de conseguir a
liberdade seria para eles um meio justo, e com tais tentativas eles nos ressaltam que esta
forma, era apenas um meio para sair do conceito de coisa, tão inserida no pensamento do
senhor de escravos.
Os negros que não conseguiam fugir e conseguir por meio legais a sua alforria,
poderiam chegar ao ato mais trágico da historia da escravidão. O Suicídio.
4. Suicídios, Infanticídios
155
Réu: Miguel, escravo; Autor: Justiça Pública - Aracaju - 1º vara CRI- Cid. 01/2637, Sumário de Culpa
04/10/1858.
recebiam o conhecimento oficial, para que pudesse ser efetuado o enterro de quem o
cometesse, conforme a tradição da época.
Segundo Goulart (1972) o afogamento foi o mais comum, entretanto os escravos
que se matavam com esse método ao eram identificados como suicidas, só sendo identificados
se houvesse testemunha. Karasch(2000) nos fala que quando o escravo já cansado de viver,
começava a buscar formas de livra-se delas, como comer terra, onde após o ato, caso o senhor
percebe-se a tentativa de suicídio, colocavam mascaras de ferro para que não comesse mais.
Uma forma muito conhecida era o banzo, que consistia em engolir a língua viver
um sentimento de nostalgia, que sem nenhum sinal visível ou até dano físico, faziam com que
os escravos parassem de respirar.
Ainda temos também o auto-envenamento, os negros possuíam a reputação de ser
envenenadores e conhecedores de plantas venenosas. E utilizavam desses métodos para o uso
próprio.
Para alguns historiadores o estupro seria uma das causas que levavam ao suicídio,
como também a separação da família. Ora a possibilidade de vê seus familiares separados e
sofrendo castigos e açoites, poderia levar a atos violentos como o infanticídio.
Como vemos no caso do escravo do Alferes Ignácio José de Matos, que na
ocasião por ter sido vendido com sua mulher também escrava, achou por bem tirar a vida do
seu filho um menino de dois anos de idade, para que ele não sofresse a dor da escravidão
sozinho, com o ato de deferi-lhe uma cacetada que quebrou-lhe os braços e mais uma parte do
corpo156.
Quanto ao desespero pela liberdade, parece ter motivado o escravo Desidério,
conforme relato do Jornal que vem a seguir:
O escravo relata que tentava matar-se pra não ter que voltar para mãos do seu
senhor, podendo assim ser dado como criminoso do que voltar ao seu senhor.
156
APES- Pac.SP¹ 149.
157
JORNAL DO ARACAJÚ – Sergipe, Domingo, 17 de Agosto de 1879. Anno IV. Nº 403. pg 02.
Portanto podemos supor que as formas de cativeiro existentes, faziam com que
para os escravos houvesse conseqüências tão desesperadas, que o ato do suicídio era visto
como um desejo de possuir a liberdade, mesmo que seja esta de forma definitiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CISNEIROS, Sandra Maria costa. Anúncios de escravos nos jornais sergipanos do século
XIX. Trabalho de monografia apresentado a UFS, São Cristóvão, 2003.
DANTAS, Orlando Vieira. A Vida Patriarcal em Sergipe. E.d Paz e Terra, Rio de
Janeiro,1980 – pg. 20.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 31º Edição. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1996.
Karasch, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Trad. Pedro Maia
Soares. São Paulo Companhia das Letras, 2000.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003.
PRATA, Geraldo Henrique dos Santos. Teatro Aracajuano: “Um sonho Civilizador”
(1855-1910). Trabalho de Monografia apresentado a Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, 1998.
*
Este artigo inclui resultados parciais do projeto de pesquisa de mestrado, ainda em andamento.
158
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
159
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
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De acordo com Nascimento, “comerciantes, advogados e alguns proprietários rurais uniram-se, nesse
momento, para instituírem clubes, sociedades e jornais de inspiração abolicionista e republicana e inserir-se
partidariamente na política e administração local”. Ver: NASCIMENTO, Luiz Cláudio. “Terra de
macumbeiros”: redes de sociabilidades africanas na formação do candomblé jeje-nagô em Cachoeira e São
Félix - Bahia, Salvador, Bahia: Dissertação de Mestrado, CEAO, 2007.
Com bastante contentamento vos anuncio que o nosso sócio Cesário Mendes
Ribeiro acha-se livre e no seio de sua família, por ter o tribunal do Júri desta
Heróica cidade [ilegível] da justiça da causa que em má hora os perseguidores
do nosso consócio, contra ele intentaram para abafar uma idéia santa e que
motivara o Sacrifício do Gólgota, o absolveu unanimemente mostrando com
esse ato toda independência e justiça. 162
Ao que parece, Cesário Mendes ficou alguns meses retidos na delegacia local. No
entanto, ele não foi o único a utilizar-se do incitamento visando a libertação do cativo.
Segundo Walter Fraga, panfletos assinados por abolicionistas de São Félix e Cachoeira
chegaram a ser distribuídos nas senzalas dos engenhos da região, incitando os escravos às
fugas, o que levava os senhores de engenho ficarem atemorizados diante da possibilidade de
perderem suas fontes geradoras de riquezas e, simultaneamente, arruinarem-se. 163
Além do incitamento, a imprensa escrita foi um espaço privilegiado na luta pela
emancipação escrava na Bahia. Os jornais foram as principais vias de propaganda e denúncia
dos abusos sofridos por abolicionistas. A esta importância deve-se associar o fato de que os
periódicos eram importantes veículos de comunicação de massa, tendo em vista que atingia
um maior número de pessoas, embora a prática da leitura fosse um privilégio de poucos na
164
sociedade oitocentista. Apesar de muitos não lerem, não ficavam totalmente alheios aos
161
Em março de 1885 diversos senhores da freguesia de Muritiba, comarca de Cachoeira, enviaram um abaixo-
assinado, com 77 assinaturas, para o Presidente da Província onde solicitavam providências quanto as ações de
Cesário Mendes e seus companheiros, acusando-os de “seduzir os escravos alheios para acoitá-los
escandalosamente para firmarem quilombos no centro das cidades e até pregarem a insurreição (...)”. (grifo no
original) APEB, Seção Colonial e Provincial – Presidência da Província, maço 2897 (1873-1887).
162
ASMPAC – Relatório do Conselho da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos de 1886 a 1887; de
1887 a 1888. (Documento no 57)
163
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 114. De acordo com Célia Maria Marinho, o “incitamento de
escravos por elementos de fora das fazendas” tornou-se cada vez mais freqüente na década de 1880 devido a
propagação da campanha abolicionista no sudeste, o que gerou um clima de “horror” nas fazendas da região.
Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século
XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 201.
164
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 55.
assuntos veiculados nos jornais, isto porque a leitura em voz alta era prática e estilo comum
nesse período. 165
A Província da Bahia da segunda metade do século XIX não era alfabetizada.
Grande maioria da população baiana não sabia ler, podendo chegar a um total de 90% dos
indivíduos.166 Essa questão torna imperativo nosso interesse em saber o total de alfabetizados
em Cachoeira de finais do século XIX. Afinal, é fundamental saber a que público leitor se
dirigia o discurso de O Asteróide que, por sua vez, pode revelar os projetos políticos e de
futuro traçados pelo jornal. No entanto, não podemos perder de vista a possibilidade de que
muitos escravos ficaram informados do conteúdo impresso mediante a leitura em conjunto,
em voz alta ou mesmo ao ouvirem pessoas falar.
Nesse debate, não há como desprezar os objetivos políticos que norteavam toda
folha noticiosa, na medida em que atuavam como formadores de opinião. No interesse em
orientar o leitor/ouvinte para a adoção de alguns pontos de vistas específicos, os discursos
jornalísticos apresentam-se como “verdadeiros” e inquestionáveis. Segundo Meire Reis, “o
jornal é uma fonte produzida com o objetivo explícito de informar e implícito de transmitir
167
mensagens intencionais”. Desse modo, ao informar o ocorrido, a imprensa o constrói.
Portanto, ao propor um estudo da imprensa abolicionista procuro entendê-la com agente que
influencia e também é influenciada pela sociedade, que polemiza, cria conflitos. Embora
procure posicionar-se de modo imparcial, a imprensa demonstra um evidente caráter parcial
na medida em que institui normas e procura formar opiniões da sociedade.
O periódico O Asteróide era impresso na tipografia do Sr. Olympio Pereira da
Silva que também era um dos entregadores. Possuindo quatro páginas, ele tinha como
proposta duas publicações semanais. Sua circulação se daria nas terças e quintas-feiras.
Contudo, a análise dos diferentes números nos mostrou uma variação de dias para sua
veiculação. Isso pode ser atribuído ao calor da notícia, antecipando ou retardando a
publicação de determinado número ou mesmo a ausência de recursos financeiros para a
impressão haja vista que em muitos momentos do texto o leitor se depara com constantes
apelos da equipe jornalística solicitando aos assinantes o pagamento da folha noticiosa. 168
Além da possibilidade de comprar o jornal de forma avulsa, no valor de 60 réis, o
leitor poderia assinar as folhas de forma mensal ou anual. Para aqueles que optassem pela
165
REIS, Meire Lúcia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana, 1888 – 1937,
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2000. p. 8.
166
Idem, p. 7.
167
Ibidem, p. 9.
168
De acordo com Schwarcz, as assinaturas podiam representar a sobrevivência ou não de determinado jornal.
Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 16.
assinatura mensal, o valor estava fixado em 500 réis, já os que preferiam a forma anual
deveriam dispor de 5$000 réis. Em relação aos anúncios, o valor para aqueles que pretendiam
publicá-los era diferenciado. Assinantes desembolsariam 40 réis, enquanto os demais
pagariam a quantia de 60 réis. O jornal ainda abria espaços para aqueles que desejassem
publicar artigos ou correspondências. Porém, estabelecia alguns critérios como “não
contiverem ofensas a moral pública, ao decoro familiar, o que não forem de encontro à idéia
abolicionista (...)”. 169
É interessante refletir sobre o espaço dedicado à prática da publicidade e,
portanto, venda de produtos no interior dos jornais. Pensando em periódicos do século XIX,
Lilia Schwarcz entende essa prática como determinante uma vez que a prosperidade de jornais
170
estava diretamente ligada à quantidade de anúncios editados em suas páginas. Assim, os
anúncios figuram como importante recurso financeiro para a manutenção de jornais tendo em
vista que os custos com a tipografia, tintas, papel, entregadores, entre outros, eram
relativamente onerosos.
Em O Asteróide nota-se que a seção de anúncios foi adquirindo maiores espaços à
medida que o jornal foi se consolidando. A princípio, meio que timidamente, os anúncios não
chegavam a ocupar nem uma página do periódico. No decorrer das publicações eles passaram
a preencher duas páginas e, por vezes, chegaram a ocupar espaços na terceira. Esse aumento
progressivo de anúncios pode ser um indicativo de uma maior adesão à idéia abolicionista e,
também, que o jornal era lido por muitas pessoas. Porém muitas outras indagações podem ser
feitas a partir dessa primeira constatação como: quem anunciava no periódico? O que se
anunciava? A que setor social era dirigido os diversos anúncios editados? Questões
importantes para chegarmos ao lugar social ocupado pelo jornal no movimento abolicionista.
Em relação aos aspectos comerciais, acreditamos que esse não era o fim único de
O Asteróide. É evidente que para se manter era preciso contar com ajuda de parceiros – os
assinantes, compradores avulsos. No entanto, parece evidente que a linha editorial desse
veículo atribuía maior importância em noticiar questões vitais do momento, incluindo-se mais
na idéia de órgão de propaganda, deixando para segundo plano o interesse comercial, ou seja,
o desejo em auferir lucros financeiros. Isso parece se evidenciar nas constantes dificuldades
pelas quais passava o jornal, recorrendo constantemente à compreensão dos assinantes
inadimplentes na quitação de seus débitos.
169
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
170
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 66.
171
Ver BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: uma história política, 1870-1888. Salvador CEB, 2003;
MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889).
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002.
172
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
173
Jornal O Asteróide. 4 de nov. de 1887 (nº. 12) A expectativa de muitos senhores ao “conceder” alforrias
condicionais ou incondicionais, quase sempre, tinha como meta ganhar a eterna gratidão dos cativos, segundo
Sidney Chalhoub. No entanto, quando o ex-escravo não correspondia a essa expectativa, o proprietário poderia
revogar a alforria alegando ingratidão, amparado na lei. Ver CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 134
174
Jornal O Asteróide. 28 de dez. de 1887 (nº. 27)
175
Jornal O Asteróide. 6 de abril de 1888 (nº. 53)
176
Jornal O Asteróide. 6 de dez. de 1887 (nº. 21)
177
Jornal O Asteróide. 18 de abril de 1888 (nº. 56)
178
Wlamyra Albuquerque notou que muitos escravocratas baianos esperavam indenizações ou mesmo preservar
relações escravistas ao negarem libertar seus cativos na iminência do maio de 1888. Ver: ALBUQUERQUE,
Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880 – 1890). Tese
de doutorado. Campinas, SP, 2004. p. 99; Ver também MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores,
polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889). Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002. p. 15; Hebe
Mattos constatou que em São Paulo não foram poucos os senhores que se negaram a alforriar seus escravos, na
esperança de futura indenização. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 231.
Nas falas do articulista, a princípio, fica evidente a aprovação das fugas escravas.
Logo, essa postura pode apontar, numa primeira impressão, que o periódico assumiu um
abolicionismo de caráter radical, o que fica ratificado em outras matérias onde predomina a
idéia de incitamento escravo. Contudo, a análise atenta da nota acima transcrita leva-nos a
acreditar que ele possuía uma postura mais voltada para uma vertente moderada. Ou seja, a
proposta dos envolvidos na luta pela emancipação escrava tinha como objetivo uma mudança
que não produzisse transtornos à ordem estabelecida. Portanto, não pretendiam eles
“desorganizar” o trabalho nas fazendas. A transformação deveria ocorrer, mas sem atrapalhar,
sobretudo, os grandes centros agrícolas da região.
179
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. p. 461.
180
Idem, p. 442.
181
FRAGA FILHO, Walter. Op. cit. p. 118.
182
Jornal O Asteróide. 3 de abril de 1888 (nº. 53)
A postura moderada do jornal fica explicita na parte final da nota. Após comentar
a retirada de alguns cativos do ambiente de trabalho, o articulista expressa ser “digno de
louvor aqueles que reagem, com toda a prudência e moralidade, contra seus algozes”. Na
ótica do jornalista, os escravos podiam até reagir à realidade do cativeiro, desde que fossem
observados alguns princípios. Mesmo apoiando as fugas da população escrava, o jornal
recomendava “prudência e moralidade”.
Diferente de jornais paulistas ligados ao grupo de caifazes que defendiam um
abolicionismo radical, fora dos tramites legais, a leitura de O Asteróide sugere que esta folha
noticiosa adotou uma postura legal na promoção da abolição do cativo. Embora em muitos
momentos os editorias, matérias e artigos fossem constantemente inflamados, o caráter
conciliador é evidente em suas páginas. Nesse sentido, recorre-se constantemente à legislação
na intenção de demonstrar que sua posição era orientada dentro dos limites impostos pela lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
permaneceram com seus escravos até os últimos momentos certamente temeram diante de um
possível abandono em massa dos ex-escravos. No entanto, segundo noticiou O Asteróide, a
abolição foi intensamente celebrada em Cachoeira e São Félix. Durante mais de uma semana
a população desses municípios reuniu-se em clubes, ruas e praças para comemorar o fim do
sistema escravista. Acreditamos que uma análise mais especifica poderá mostrar como os
diferentes setores sociais participaram das comemorações pela abolição além de revelar
“retratos” das relações sociais no pós-abolição.
Enfim, entendemos que as matérias, anúncios e artigos veiculados n’O Asteróide
expressam imagens, embora carregadas de subjetividade, do cotidiano escravista numa
localidade com intensa predominância de escravos. Desse modo, uma reflexão sobre a
atuação da referida folha abolicionista poderá evidenciar práticas cotidianas que, por sua vez,
me fornecerão diversos caminhos para se pensar como a questão escrava era vivida, noticiada
e lida naquela parte do Recôncavo baiano, nos momentos finais do escravismo.
ARQUIVOS E FONTES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário
das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: uma história política, 1870–1888. Salvador,
CEB, 2003.
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista - Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
CRUZ, Heloisa de Farias. São Paulo em tinta e papel: periodismo e vida urbana – 1890-
1915. São Paulo. Educ, 2000. p. 20.
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKI, Carla
Bassanezi (org) Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-
abolição (1888-1889). Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
REIS, Meire Lúcia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o negro na imprensa
baiana, 1888 – 1937. Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2000.
No Brasil a abolição da escravatura foi tema central durante toda a década de 80 do século
XIX, e apesar de ser discutida com veemência por diversos setores da sociedade havia
divergências sobre a forma como essa deveria ser feita. Com isso, o lema que prevaleceu na
maioria dos discursos (salvo algumas exceções) foi o de ordem e cautela, ou seja, a abolição
não poderia acontecer de “uma hora para outra,” primeiro seria necessário preparar o país para
os “novos tempos”, pois sem isso as conseqüências seriam graves. Assim sendo, o objetivo
desse trabalho é apresentar os debates ocorridos na imprensa sergipana de cunho abolicionista
durante a década de 1880 sobre a emancipação dos escravos destacando, sobretudo, através da
analise das diversas seções dos periódicos a idéia de abolição defendida por esses. Para tanto,
foram analisadas as folhas O Libertador de Aracaju e O Horizonte de Laranjeiras onde
percebemos no decorrer da pesquisa “opiniões” divergentes sobre o tema em questão, pois
enquanto a primeira defendia uma abolição imediata a outra folha era mais cautelosa
defendendo a emancipação de forma gradual.
A escravidão no Brasil perdurou por mais de três séculos, justificada pela religião
e sancionada pelo Estado essa não foi “questionada” pelo menos de maneira mais enérgica até
o século XVIII.
Contudo, é na década de 80 do século XIX que a campanha a favor da
emancipação do escravo é intensificada com a participação de vários “setores” da sociedade e
tendo a imprensa como uma “grande aliada’ para a divulgação do “ideário abolicionista”.
Com isso, até se chegar ao 13 de maio a abolição passa a ser tema recorrente das
discussões travadas tanto pelos seus “defensores” como para os que eram contra,provocando
algumas vezes divergências entre esses grupos .
Diante do que foi exposto, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar
como se deu os debates em periódicos abolicionistas-antiescravistas sobre o processo de
“extinção do cativeiro” na Província de Sergipe durante o período de 1882-1886.
Através da analise dos discursos contidos nas diversas seções desses periódicos
apresentaremos, sobretudo a “idéia da abolição” defendida por esses, ou melhor, “o que se
falou sobre a abolição” durante o período, para tanto utilizaremos como fontes principais os
jornais O Libertador (1882-1884) de Aracaju e O Horizonte (1885-1886) de Laranjeiras.
Consideramos essa discussão pertinente já que em maio desse ano foi
comemorado 120 anos da promulgação da lei Áurea, através da reconstrução do “imaginário”
podemos apreender um pouco das inquietações que o tema provocou na época.
No que diz respeito á questão do elemento servil a grande parte dos periódicos
que circularam na Província de Sergipe durante o século XIX era omissa ou simplesmente
não condenava a escravidão já que na maioria das vezes esses eram propriedades de
escravocratas.
Porém, apesar de ser a minoria podemos destacar na Província de Sergipe como
propagadores das idéias antiescravistas, em Aracaju, os jornais Luz Matinal (1882)
propriedade da Sociedade União ás letras, O Descrido (1882) e O Libertador (1882-1884)
que pertenciam a Francisco José Alves.
Já em Laranjeiras, temos as folhas O Horizonte (1885-1886) propriedade do
negociante Francisco C.M.Polliciano e O Larangeirense (1887-1888) de Joaquim Anastácio
de Meneses.
O próximo item irá tratar sobre a idéia de abolição defendida pelo abolicionismo
brasileiro de modo geral para em seguida demonstrar como se deu esse debate na imprensa
sergipana abolicionista-antiescravista ao longo de 1882 a 1886 período de circulação dos
periódicos O Libertador e O Horizonte.
E ainda,
Com isso, ordem e cautela passa a ser era o lema da abolição no Brasil, tanto
para aqueles que eram a favor dessa (salvo algumas exceções) como para os que eram
contra.
De maneira geral os abolicionistas brasileiros tendiam a “combinar” a luta a favor
da abolição com o respeito ás leis e sem a participação dos escravos, pelo menos é o que
sugere o famoso abolicionista Joaquim Nabuco,
A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos,
externos e internos, de todas as outras. È assim, no Parlamento e não em
fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se
há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. (O Abolicionismo, p.44 2003)
Em primeiro lugar a escravidão não tem razão de ser porque não se enquadra
na fase atual de progresso e civilização (por isso é preciso aboli-la e de
forma imediata) e em segundo lugar é necessário garantir a ordem, sem a
qual não há progresso (abolição com ordem quer dizer com a introdução dos
elementos do progresso, ou seja, os imigrantes. E por fim sem a escravidão,
as famílias ficarão livres dos negros e os costumes até então pervertidos por
eles encontrarão o caminho ordeiro.
Essa citação é o reflexo do clima da época para muitos a abolição era algo
inevitável e o medo do conflito era crescente, porém nem todos pensavam dessa forma, pois
apesar da escravidão está dando os seus “últimos suspiros” a economia da Província ainda
era muito dependente do trabalho escravo.
Ao longo de nossa analise percebemos que essas posições divergentes eram
comuns até para aqueles que se diziam “defensores dos escravos” para O Libertador, a
abolição era algo inevitável já O Horizonte defendia uma abolição lenta e gradual.
Deste modo, nós próximos tópicos iremos apresentar as concepções de abolição
que são apresentadas nós jornais O Libertador e O Horizonte.
2.1.1- O Inevitável:
dizem alguns dos escravocratas, o que contestamos; Ella deve fazer-se sem perda do tempo,
porque esse mal de hoje será immemsamente compensado pelo bem de amanhã.
E para esse,
As “Festas abolicionistas” são sem dúvida o destaque dessa folha, pois além de
mostrar a interação com abolicionistas de outras províncias elas ainda servem como
argumento para essa demonstrar o quanto a escravidão está com “os dias contados” e que a
abolição é algo inevitável.
2.1.2- O Gradual:
3.1-Nacionais x Estrangeiros:
Por fim, ao fazermos uma analise comparativa entre os discursos dos periódicos,
podemos concluir que enquanto O Libertador tinha como objetivo principal os interesses dos
escravos defendendo uma abolição imediata e se preocupando com o “futuro” desses com o
emprego na lavoura.
O Horizonte até se interessava pela “causa dos escravos”, porém a sua maior
preocupação estava em “defender” a lavoura pelo menos foi o que concluímos com a sua
defesa de uma abolição gradual e o emprego de imigrantes na lavoura para acima de tudo
“purificar a raça”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fontes Primárias:
Jornais:
O Libertador (1882-1884)
O Horizonte (1885-1886)
Livro:
engendrados por quase quatro séculos em que a diferença foi constantemente reafirmada e
chancelada pela lei dos homens e até de “Deus” onde os corpos “pretos” recebiam as marcas e
as insígnias de propriedade até então inalienável. Os negros, enquanto seres humanos,
receberam da civilização a recusa de uma participação igualitária já que eram considerados
anomalias apenas suportáveis dentro da esfera servil, como corpo simples à eminência branca.
Ao discorrer sobre a historiografia brasileira, grande parte dos historiadores,
quando se dedicaram a pesquisar a escravidão no Brasil se privaram de estudar os pequenos
acontecimentos que culminaram na abolição e a reestruturação social após a abolição da
escravatura. Ganharam ênfase, assim, o movimento abolicionista, as revoltas quilombolas e a
decadência da economia açucareira. A nova estrutura social, a marginalização do ex-escravo
e as relações sociais ficaram durante anos relegadas nesse contexto historiográfico, por serem
considerados de menor importância e de pouca contribuição para o processo histórico que se
desenrolaria a partir dali.
Diversos autores, ao escrever sobre a abolição da escravatura no Nordeste e em
Sergipe, têm retratado esta temática apenas em seu contexto econômico (SUBRINHO
2000)183. Estes estudos promoveram uma grande contribuição para o conhecimento e para a
construção historiográfica do Nordeste brasileiro, mas se faz necessário repararmos as lacunas
existentes referentes ao contexto social pós-abolicionista.
No tocante as temáticas sociais pós-abolicionistas na atualidade podemos
encontrar trabalhos pioneiros e iniciante desse contexto temático. Merecem destaque os
trabalhos de Walter Fraga Filho 184 que pesquisa o pós-abolicionismo na Bahia e os trabalhos
de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios185, dentre outros. Em Sergipe alguns estudos mais recentes,
vêm contribuindo para o crescimento do conhecimento sobre a sociedade sergipana, como os
trabalhos dos autores (SANTOS, 1997)·, (NUNES, 2006)186, (FIGUEREDO, 1977)187,
Sharyse Amaral188, dentre outros, que estudam o sistema escravista em Sergipe a partir dos
movimentos sociais reconstruindo o cenário social sergipano frente à mobilização nacional no
183
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. Reordenamento do trabalho. Trabalho escravo e trabalho livre
no Nordeste Açucareiro - Sergipe 1850/1930. Aracaju: Funcaju, 2000.
184
FRAGA FILHO, Walter . Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. 1. ed. São Paulo:
HUCITEC/EDUFBa, 1996. v. 1. 189 p.
______________. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 1. ed.
São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006. v. 1. 360 p.
185
MATTOS, H. ou CASTRO, H. M. M. ; RIOS, A. M. L. . Memórias do Cativeiro: Família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 301 p.
186
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.
187
FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O negro e a violência do branco: o negro em Sergipe. Rio de janeiro, j.
Álvaro, 1977.
188
AMARAL, S. P. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888. Universidade
Federal da Bahia, UFBA, Brasil. 2007.
189
ZELICE, Gabriela de Queiros da Cruz. EX-ESCRAVOS: cidadãos sem liberdade. São Cristóvão:
Universidade federal de Sergipe, 1997.
190
AVELINO, Camila B. S. SANTIAGO, Fabio Santos e GOUVEIA, Reginaldo de Sa. ANOMALIA SOCIAL
(VADIOS LADRÕES E DEFLORADORES): O Negro na Sociedade Sergipana Pós-Abolicionista (1885-
1890). 2007. Monografia. Universidade Tiradentes. Aracaju.
grandes desafios para a sociedade sergipana, não eram menores os que se apresentavam para a
sociedade brasileira”.
Na nova estrutura social abolicionista e republicana, o Senhor de Engenho via o
trabalhador através das lentes da ideologia de explorador, não confiando nos negros enquanto
homens livres sem perceber, justamente pela deformação ideológica escravocrata, que os
negros tão pouco ou nenhuma confiança podiam ter naqueles que os exploraram
impiedosamente como escravos. Para eles, liberdade também significava, se possível, livrar-
se da fazenda. Logo, tem-se uma descrença recíproca, muito mais prejudicial ao negro, ainda
aspirante a cidadão, do que ao branco protagonista e “senhor” do sistema republicano
emergente. Esse processo leva o negro ao confinamento e, por conseguinte, ao construto de
uma nova ordem, a “ordem do diferente", muito caracterizado em nosso Estado como
“marginal”.
Marcados inexoravelmente pelo desprezo e pelo abandono, não só do Estado, mas
do conjunto da decadente sociedade tradicional de modelo europeizante, pobres, ex-escravos e
também um grande número de estrangeiros, associados aos livres nacionais marginais,
formavam um conjunto de “cultura paralela”, corporificada, diferente e subterrânea em que
pesem seus vasos comunicantes com a sociedade tradicional. Desenvolveram uma cultura
especial que servia de código idiossincrático, capaz de enganar aqueles que não conviviam
cotidianamente com a marginalidade, inclusive a polícia. Muitas vezes, este artifício servia
não só como defesa do grupo, mas também denunciava o quanto eram independentes e
autônomas estas formações.
O olhar “branco” sobre o “preto” após a abolição é um olhar pejorativo e
eminentemente racista cujos substratos racionais foram construídos pela necessidade de
legitimar a inferioridade do negro para além dos princípios hermenêuticos da lei. Uma lei que
antes dizia, categoricamente, que aquele ser era sua propriedade e agora ele é igual, mesmo de
forma quase insignificante, ou seja, era preciso reinventar a diferença, não importando se pelo
insulto, pelo deboche ou pelo desdenho.
A historiografia sergipana poucas vezes se preocupou em responder os
questionamentos suscitados referente a fase pós-abolicionista. O presente trabalho não
pretenderá responder todos os questionamentos levantados, mas sim contribuir e continuar
aprofundando o processo iniciado por outros autores. E é este o principal objetivo deste
trabalho: recriar o quadro social da sociedade sergipana, destacando a cultura negra ex-
escrava nessa província através dos agentes sociais, elucidando as relações sócias pós-
abolicionistas entre negros e brancos. Intencionar-se, com este estudo, instigar também outros
191
SILVA, Eduardo M. “E o rabo balançou o cachorro?! A crise de uma história de controle eficiente que
educou um Brasil multicultural. In : tamandare.g12.br, Profº Eduardo Marques. Acesso 10 maio de 2007.
192
Versos de um antigo samba de roda cantado pelos moradores da Usina Cinco Rios (antigo engenho
Maracangalha), registrado por Valdevino Neves Paiva em seu livro: Maracangalha: torrão de açúcar, talhão de
massape. Bahia: Gráfica Santa Helena, 1996, pp. 71-72.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. Ed. (História popular), Coordenação: Jayme Pinsky.
São Paulo: Global, 1988.
FRAGA FILHO, Walter . Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. 1. ed.
São Paulo: HUCITEC/EDUFBa, 1996. v. 1. 189 p.
MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1981.
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2006.
SANTOS, Maria Nely. Sociedade libertadora “Cabana do Pai Thomaz”, Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju, J. Andrade, 1997.
O interior da Bahia, inclusive, a região denominada “sertão”, foi receptador das populações
negro-africanas na diáspora e, portanto, responsável por uma produção de saberes e práticas
de matrizes africanas a exemplo dos sambas, batuques e candomblés em suas multifacetadas
especificidades. Nas últimas décadas os estudos históricos e antropológicos têm avançado
para além da capital e recôncavo açucareiro, região sobre a qual se restringiram, por muito
tempo, os estudos sobre o negro na Bahia. Nesse sentido, outras possibilidades de fontes
foram exploradas, entre as quais as memórias cristalizadas em seus diferentes espaços. Este é
o caso da poesia do escritor feirense Aloísio Resende, na qual este ensaio objetiva identificar
as experiências culturais produzidas pelas reinvenções africanas e crioulas na região de Feira
de Santana, BA, registradas pela pena do poeta. Assim pode-se potencializar a literatura local
como fonte para a história das práticas culturais afro-brasileiras, experimentadas no interior da
Bahia.
193
As poesias de Aloísio Resende que tratam do universo afro-religioso em Feira de Santana, foram publicadas
entre 1939 e 1940. Destaco que este conjunto de 13 poesias revela importantes elementos trabalhados por mim
na tese de doutorado. Não utilizo suas poesias na minha pesquisa precisamente como fontes, entretanto, elas me
oferecem instrumentos de interpretação da documentação que utilizo na tese, a saber: documentos judiciários e
notícias de jornais. A parte da tese que foi qualificada em 27 de agosto último intitula-se: “Os adeptos da
mandinga: uma história da repressão às práticas de candomblé em Feira de Santana (1900-1960)”, tendo
participado da banca os professores Dr. Jéferson Bacelar (orientador), Dr. Nicolau Parés (Pós-Afro) e Drª.
Lucilene Reginaldo (UEFS).
194
HEYWOOD, Linda M. (org). A diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 22-23.
195
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Campus, 2004, p. 54-55.
196
Idem
197
KLEIN, Hebert S. O tráfico de escravos no Atlântico: novas abordagens para as Américas. São Paulo:
FUNPEC, 2004, p. 176.
198
Idem.
199
Idem. Ver também MINTZ, Sidney W., e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro – americana: uma
perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas / Universidade Cândido Mendes, 2003.
200
A título de exemplo ver:
201
Sobre este caso ver REIS, João José. “A magia jeje na Bahia: a invasão do calundu da Rua do Pasto de
Cachoeira” e PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.
202
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé, p. 117.
203
REIS, João José. “Nas malhas do poder escravista: a invasão do candomblé do accú”. In ______ e SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p. 41.
204
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio – um estudo de história
regional e local. Salvador: Edufba/Feira de Santana: UEFS, 1997; PIRES, Maria de Fátima Novais. O crime na
cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003; PINHO, José
Ricardo Moreno. Escravos, meeiros ou quilombolas? Escravidão e cultura política no Médio São Francisco.
Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2000; PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú:
cidade, garimpo e escravidão nas lavras diamantinas, século XIX. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA,
2000.
205
Para maiores dados sobre a localização e outros aspectos geográficos ver FREITAS, Nacelice Barbosa.
Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização (1970-1996). Dissertação de mestrado.
Salvador: UFBA, 1998; ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário de Feira de Santana. Feira de Santana:
Editora Talentos/Gráfica Santa Rita, 2006.
206
Um projeto de pesquisa que procura trabalhar a história dessas populações foi proposto pela parceria entre a
Universidade Estadual de Feira de Santana e Universidade do Estado da Bahia. O projeto intitula-se “Itinerários
da memória: comunidades negras rurais no Paraguaçu (Bahia, 1880-1940)”.
207
Ver MOREIRA, Vicente Diocleciano. Projeto memória da feira livre de Feira de Santana – primeira fase:
texto nº 4. A escravidão em Feira de Santana (primeira parte), memeo. O estudo da professora Maria Ângela
Nascimento sobre a Matinha dos Pretos, comunidade negra rural de Feira de Santana, elevada recentemente à
categoria de distrito, apresenta pistas importantes pra revelar a história de muitas comunidades de quilombo.
NASCIMENTO, Maria Ângela. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos- BA:
eliminar, reduzir ou convalidar? Tese de doutorado. São Paulo: USP, 1997.
21.718 (42%) conseguindo alcançar em 1940 a alta cifra de 49. 593, portanto 60% da
população de Feira de Santana.208
Com base nestes dados nota-se que a população de negros e mulatos predomina
em Feira de Santana, na primeira metade do século XX. Poppino chega a afirmar que a
maioria dos habitantes que chegaram após 1872, era de origem africana, indicando assim as
209
cifras da população negra em Feira de Santana no tempo de Aloísio Resende. A
observação de Poppino sugere que entre o Recôncavo e o Sertão baiano estabeleceu-se um
circuito de mão dupla na constituição das comunidades distritais de Feira de Santana e,
portanto, das experiências culturais reelaboradas entre negros e mestiços reinventores das
práticas afro-brasileiras, constituindo assim uma memória que se é revelada através da poesia
de Aloísio Resende, como o que denomino “Áfricas do meu interior”. Com esta metáfora me
refiro tanto a perspectiva de uma produção simbólica do universo afro-brasileiro na região e
Feira de Santana, quanto a “África” produzida no subjetivo do sentimento de pertença do
poeta.
208
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Salvador: Itapoã, 1968, p. 248. Destaco as categorias entre aspas por
serem nomeadas pelo próprio autor.
209
POPPINO, Rollie. Feira de Santana, p. 18.
210
Vale ressaltar que Aloísio Resende foi autor de conhecidas marchinhas carnavalescas, muitas das quais
publicadas no mesmo periódico. Os dados biográficos que faço referência aqui e em outras partes da tese foram
extraídos de MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com
ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000.
211
PORTO, C. M. “Notas à margem”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.)
Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 85.
212
Idem, p. 87.
também dos terreiros de candomblés, de onde muita inspiração tirou para a composição de
suas poesias. Segundo Ana Angélica V. de Morais, “o olhar de Aloísio Resende sobre os
elementos que constituíam o suporte de base afro, na formação da cidade, se explicita em seus
versos”.213 De fato o Jornal Folha do Norte publicou nos últimos dois anos de sua vida, 1939
e 1940, um conjunto de poesias de autoria de Aloísio Resende, as quais dão visibilidade ao
universo da diáspora negra em Feira de Santana, com destaque a elementos representativos da
cultura afro-religiosa, aos saberes mágicos de cura, assim como aos sambas que ocorriam nas
festas de terreiro daquele período. Ainda segundo Ana Angélica V. de Morais, o poeta era
freqüentador do terreiro de uma mãe-de-santo conhecida por Filhinha, esta foi imortalizada
nas estrofes de Aloísio Resende:
MÃE-FILHA
Entre a opala do céu e a esmeralda da terra,
Alvejando na várzea a luz do sol que brilha,
Vê-se, frente ao levante, a casa de mãe-filha,
Que da negra macumba os mistérios encerra.214
213
MORAES, A. A. V. “A africanidade na poesia de Aloísio Resende”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C.
M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 100.
214
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, p. 54 (grifos das
organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 27/04/1940, p. 1.
215
Quanto à referida denominação Ver OLIVEIRA, C. F. R. M. “Um poeta contra a ordem”. In: MORAES, A.
A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, op. cit.
Lajedinho afirma o que havia dito setenta anos antes Aloísio Resende: mãe
Filhinha tinha autoridade reconhecida na região.218 É importante destacar que o narrador
(trata-se de uma crônica memorialista) estabelece como equivalente curandeira e mãe-de-
santo, destacando ainda a festa de Iansã oferecida no terreiro de mãe Filhinha, talvez fosse
esse orixá um dos principais daquele terreiro, pois se repetem as referências a ela, não
escapando inclusive da poesia de Aloísio Resende:
216
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios
críticos e dossiê, p. 55. (grifo das organizadoras)
217
LAJEDINHO, A. “Parteiras, rezadeiras e curandeiras”. In: A Feira no século XX – memórias. Feira de
Santana: Talentos, 2006, p. 43-44. (grifos meus).
218
Lajedinho é o pseudônimo do escritor Antônio Moreira Ferreira. Membro do Instituto Histórico e Geográfico
de Feira de Santana tem nos últimos anos publicado suas memórias, tornando-se importante testemunho dos
acontecimentos da “Feira antiga”.
219
RESENDE, A. “No Bembé”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio
Resende, op. cit, p. 60. (grifo das organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 29/06/1940, p.
1.
220
LAJEDINHO, A. “Os candomblés”. In: A Feira na década de 30 – memórias. Feira de Santana: s/n, 2004, p.
93.
Meu caro senhor, admiro seus versos que dizem dos costumes dessa gente,
cujos descendentes merecem instrução e educação, porque as classes
trabalhistas no Brasil são constituídas por crioulos e mestiços, em sua
maioria. Guardam ainda seus cânticos guerreiros, hinos e saudações a Deus,
e, por um egoísmo próprio da raça, chamam seus santos Xangô, lemanjá,
Õgum, Abaluaé, etc. sem que por isso mereçam pena de morte.221
O texto acima explicita um discurso que, ao mesmo tempo em que elogia Aloísio
Resende e reconhece seu compromisso com as questões relacionadas ao universo afro-
religioso, se manifesta intolerante ao culto afro-brasileiro, evidentemente ao qual estava
vinculado o poeta. Entretanto, o trecho citado vale aqui como referência de um outro
testemunho da representação que a diáspora africana produziu em Feira de Santana, a África
simbólica que circunscrevia o universo social, político e acima de tudo cultural que viveu o
poeta negro Aloísio Resende. Era a “África” do seu interior, cantava em suas poesias, a
“África” de Feira de Santana da primeira metade do século XX.
A experiência africana no sertão baiano a pouco vem sendo revelada pelos estudos
históricos. A maior parte desses estudos se concentra no século XIX buscando identificar as
peculiaridades do ser “escravo” no sertão baiano e, por mais que esses autores não tenham
como objetivo as relações sociais e políticas em torno das práticas simbólicas de africanos e
221
Vicente Reis, Jornal Folha do Norte, 31/10/1940, p.1.
crioulos revelam pistas importantes para descortinar a versão oficial da história dessas cidades
que compõem esse todo chamado sertão.
A história de Feira de Santana se enquadra perfeitamente nessa problemática, ela
ainda está refém de uma memória que estabelece a feira e o comércio de gado como único
parâmetro de compreensão das experiências vivenciadas pelos indivíduos que produziram a
história da mais importante cidade do interior baiano, e como diria Thales de Azevedo, uma
das mais importantes do nordeste brasileiro.
Os estudos em andamento já têm revelado os reclames de uma história-problema
para Feira de Santana, na qual uma história não se faz sem experiências humanas. Fala-se em
um comércio mas onde estão os mercadores? se fala em gado, qual o lugar dos vaqueiros? E
ao falar em experiências humanas não há mais como negar a eminência das populações afro-
diaspóricas na formação de Feira de Santana, portanto, a diáspora negra reclama uma reescrita
da história feirense, inclusive já sugerida pela obra de Aloísio Resende.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REIS, J. J. “A magia jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira 1785”. In:
Revista Brasileira de História, vol. 08, nº 16, 1988, p. 57-81.
Este texto tem como objetivo analisar o conto Violeta & Angélica, publicado em 1906, pela
ex-senhora de engenho Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930), no Jornal de
Notícias [Salvador-Ba]. A narrativa aborda as “desventuras” de uma família senhorial no dias
seguinte ao 13 de maio de 1888. Sob uma ótica paternalista a autora constrói dois arquétipos
nas personagens Maria e Josefa, ex-escravas da fictícia família Bastos. Enquanto a primeira
abandona sumariamente os senhores após tomar conhecimento da Lei Áurea, a segunda
repudia o comportamento “ingrato” da amiga e resolve permanecer no engenho para continuar
servindo aos ex-senhores em “agradecimento” por terem oferecido “um melhor cativeiro”.
Este conto demonstra o imaginário social de uma elite ressentida com um processo
abolicionista que não aconteceu sob o seu controle, cujas experiências foram traumáticas,
conforme se infere também nas palavras e reações dos Bastos, no decorrer da trama.
Documentos sobre a família de Anna Ribeiro, indicam que o mesmo comportamento também
foi visto em seu antigo engenho, no ano de 1888, o que reforça a idéia de que a literatura foi
utilizada como expressão das representações e dos sentidos que ela conferiu às suas próprias
experiências. Assim, utilizando o aporte conceitual e metodológico da História Cultural
intenciona-se perceber as representações e os (re)sentimentos de uma elite que viu no fim do
trabalho escravo o desfecho de sua própria decadência.
222
A autora assinava suas obras apenas como Anna Ribeiro. D. Anna assinava o sobrenome da mãe em seus
textos o que não era normal em sua época. O fato de não escrever nem o nome do marido, nem o do pai pode ter
muitas explicações, uma delas pode estar ligada ao orgulho e respeito que tinha pelo Bisavô - Major Pedro
Ribeiro – ao qual dedicou o primeiro volume do seu livro de memórias. Outra poderia ser em decorrência da
enorme consideração e respeito que tinha pela mãe – Anna da Anunciação Ribeiro – que dizia ser uma “santa”.
Assim, daqui para frente será usado o nome que ela assinava em suas obras.
República, tomando como referencial a sua realidade e a sua vivência como senhora de
Engenho.
Anna Ribeiro pertenceu a uma das famílias mais tradicionais da Bahia. Esse grupo
familiar estava ligado a outros como os Berenguer, os Calmon, os Mariani etc. Foi no século
XIX que os Araújo Góes se instalaram nos arredores de Santana do Catu, formando o que
Kátia Mattoso chama de clã. Eram inúmeros “primos e primas”, “tios e tias”, cujo poder
social e econômico foi se instituindo na medida em que, ainda na primeira metade daquele
século, a economia açucareira ia crescendo. Assim, pode-se considerar a familiar de Anna
Ribeiro como uma representante da aristocracia rural baiana, que enriqueceu com a
exportação de cana-de-açúcar e com a exploração da mão-de-obra escrava.
A sociedade baiana do século XIX se apresentava de forma fortemente
hierarquizada. No topo da sociedade do Recôncavo se encontrava uma aristocracia rural que
aspirava à condições de nobreza nos moldes do que se verificava em Portugal. Kátia Mattoso
reitera que no Brasil uma pessoa nobre poderia ser reconhecida pela sua linhagem ou pela
colocação de seus bens e educação a serviço da pátria. Mesmo que um indivíduo não fosse
fidalgo de linhagem (filho d’algo), poderia ser “agraciado” pelo imperador de acordo com a
sua disposição em “servir” ao império (MATTOSO, 1997: 154). Nos Longos serões do
campo: infância e juventude, Anna Ribeiro faz uma elucidativa referencia a esse respeito:
[...] os Araújo Góes, do Catu, que ali ocupavam vasta área de território,
gozaram sempre da reputação de homens probos, cumpridores de seus
contratos, nunca desmentindo da espécie de aristocracia formada pela classe
muito considerada dos senhores de engenho, que era a segunda nobreza do
país, como era na França a magistratura. Tendo gozado de grandes
privilégios nos tempos coloniais, conservavam ainda bastantes garantias no
Império, como ainda vi na minha mocidade (BITTENCOURT, 1992: 01).
(Itálico meu).
Entretanto, nas últimas décadas do século XIX a economia açucareira deu sinais
de desgaste. Desde o início da década de 1870, a lavoura mergulhou numa crise financeira
que se estendeu até o final do século XIX. A queda dos preços do açúcar nos mercados
externos e a concorrência do açúcar de beterraba diminuíram o volume de exportação do
produto. Para agravar a situação, a lavoura açucareira, extremamente dependente do trabalho
escravo, vinha sofrendo as conseqüências da extinção do tráfico africano, em 1850, e das
sucessivas leis emancipacionistas das décadas de 1870 e 1880 (FRAGA FILHO, 2006: 34).
Esse processo é perceptível na própria trajetória da nossa autora:
223
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, Seção Judiciária, Livro 586, p. 20.
pelo governo também não foram ouvidas. Para completar, muitos agricultores reclamaram que
a medida emancipadora foi tomada pela Coroa Brasileira sem considerar as especificidades
das províncias do norte, uma vez que era tempo de colheita quando se deu o decreto da
Princesa Isabel. O trauma com o 13 de maio e suas implicações fica patente nos discursos dos
membros de Anna Ribeiro, como atesta sua neta Anna Cabral:
Assim, continuou seguindo a sua vocação até 1888 quando veio a abolição.
Na sua família a tradição de humanidade entre os senhores e escravos era
constante.
Meus avós possuíam cera de 100 escravos, eles arruinados, pode-se dizer,
com o decreto de 13 de maio, mostravam-se inteiramente serenos e
justificavam a Princesa – pelas injustiças que haviam presenciado.
Minha avó contava que o 13 de maio fora um dia de festa no Engenho.
Danças, flores, todos manifestando gratidão aos senhores que
compartilhavam da alegria dos escravos. Depois, vieram as ingratidões,
abandono do trabalho, a paralisação do Engenho, mas ela e meu avô não
desanimaram (CABRAL, S/D).
publicar treze anos depois, com Abigail (1921), deixando uma obra inédita que teria o título
de Suzana.
Nancy Rita Vieira Fontes afirma que Anna Ribeiro produziu ao longo da sua
carreira no mundo das letras um projeto literário que tinha três objetivos básicos: construir um
romance para mulheres; o intuito de escrever romances que tivessem um caráter formativo; e
criar uma obra que enfatizasse aspectos da realidade baiana (FONTES, 1995: 78). Nas
histórias ficcionais da romancista focam-se situações onde as famílias senhoriais têm de se
adaptar às mudanças verificadas na sociedade baiana no período de decadência da cultura
canavieira e do processo abolicionista.
É paradoxalmente esta intensa “aparência” de realidade que revela a intenção
ficcional ou mimética em Anna Ribeiro (CÂNDIDO, 1968: 20). Assim, permanece a
reinterpretação dada por ela nas suas escrituras, procurando dar “tons reais” a uma obra
imaginada a partir de sua realidade de vida. A própria Anna Ribeiro menciona esta questão
quando afirma na dedicatória feita à sua prima Mariotti de Araújo Góes, em Letícia:
“Acharás, porém, princípios de sã moral, bons exemplos tirados de fatos, nem todos
imaginários e sim colhidos na experiência e observação”. (BITTENCOURT, 1908: III)
Antonio Cândido considera que na ficção em geral, também na de cunho trivial, o
raio de intenção dirige-se à camada imaginária, sem passar diretamente as realidades
empíricas possivelmente representadas (CÂNDIDO, 1968: 42). As questões que concernem
ao imaginário de Anna Ribeiro como suporte para composição de suas narrativas têm
relevância nodal dentro da perspectiva de um estudo que propõe a análise dos textos literários
e das visões de uma ex-senhora de engenho. O vínculo entre o autor e a sua personagem
estabelece um limite à possibilidade de criar, à imaginação de cada romancista, que não é
absoluta, nem absolutamente livre, mas depende dos limites do criador. Ou seja, o imaginário
dos indivíduos é engendrado por uma série de experiências e discursos inerentes à realidade
do autor.
Sandra Pesavento lembra que o imaginário224 deve ser percebido como um
dinamismo organizador, dinamismo este que se converte em fator de homogeneização da
representação. (PESAVENTO, 1995: 21) Longe de ser mera reprodução ou espelho da
realidade, ela é em si elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo.
224
O Imaginário é aqui tomado como um conjunto de imagens e relações de imagens que constituem o capital
pensante do homo sapiens. (PESAVENTO, 1995: 17).
225
Aqui a noção de representação deve ser tomada a partir da concepção de Jacques Lê Goff: “é tradução mental
de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração”. (Apud PESAVENTO, Op. Cit, p. 15)
fontes de mão-de-obra (CUNHA, 2004: 126). Com a Lei do 13 de maio no entanto, muitos
ex-cativos dirigiram-se para a cidade de Salvador, ou para outros locais abandonando o local
onde viveram o antigo cativeiro, provocando uma desestrutura nas antigas lavouras e não só
lá, mas como registra Anna Ribeiro em sua prosa, muitas ex-senhoras se ressentiram de ter
que fazer os serviços domésticos, antes atribuídos aos escravos. O Barão de Vila Viçosa
registra a situação das “pobres” senhoras nos tempos seguintes a abolição:
O artigo do Barão reforça aquilo que Anna Ribeiro registrou sob o viés da ex-
senhora de engenho. Demonstra também a visão dos ex-senhores sobre a sorte dos negros,
uma vez fora dos domínios dos antigos senhores. Descontando a manipulação discursiva
empregada pelo Barão para convencer os leitores do Diário da Bahia de que a abolição da
forma com que foi precedida pelo Estado brasileiro foi prejudicial para ambos os lados o que
fica claro também é o ressentimento do ex-senhor em verificar que as elites femininas dos
engenhos de açúcar não teriam mais a “Corte de subalternas” ao seu redor para realizar os
serviços domésticos.
O Barão de Vila Viçosa sintetiza em parte o discurso adotado por Anna Ribeiro na
construção das personagens Maria e Josefa. Para, além disso, verifica-se também certo
afinamento entre os discursos dos ex-senhores. Em Violeta & Angélica as senhoras são
obrigadas a trabalhar nas funções que antes eram atribuídas as escravas, assim como o Barão
se ressentia em ser obrigado a "testemunhar” este cenário. Nesse caso, vale destacar a
permanência desse discurso na memória social da classe dos ex-senhores e de como eles se
preocuparam em dar uma versão sua da história, culpando o governo e os ex-cativos pela sua
derrocada econômica e social. Para isso, as estratégias de estigmatização adotadas pela ficção
de Anna Ribeiro são eficazes em transformar ex-cativos em “ingratos” ou “exemplos”. Como
se pode perceber nos tipos sociais das ex-escravas da Família Bastos em Violeta & Angélica.
Na narrativa, a “ingratidão” dos ex-escravos era na verdade a demonstração pelos
cativos de que suas vidas já não dependiam da vontade dos senhores. O trauma senhorial
- Rosinha mandou-me dizer que não os esperasse para o almoço; que viriam,
porém, antes do meio-dia.
- Deus permita, disse D. Flora, que passem mais distraídos.
Que vida levam aquelas criaturas! Sempre a se queixarem, sempre de mau
humor! Isto é falta de resignação com a vontade divina.
- Na verdade, minha amiga, viver-se sempre envaidecido é insuportável!
Mas, às vezes... não se é santo. Hoje, fiquei furioso quando vi aquela
endiabrada vir despedir-se sem te haver avisado com antecedência, para
procurares outra ama. (BITTENCOURT, 1906)
D. Flora reclama do mau humor do seu irmão e das suas lamúrias ante a nova vida
sem o braço escravo. Segundo ela, eles deveriam se conformar com a “vontade divina”.
Alfredo, porém, afirma entender esse sentimento, e menciona o abandono da negra Maria, que
trabalhava para ele na casa-grande antes da Lei Áurea, mas que havia partido para a Cidade da
Bahia, logo quando soube da validação da lei. A liberta Maria encaixa-se no perfil daqueles
que, como Walter Fraga Filho menciona, entendiam que a migração significava distanciar-se
do passado da escravidão (FRAGA FILHO, 2006: 314). Alfredo Bastos conta que a negra
fora embora sem nem ao menos despedir-se, mas o verdadeiro motivo da revolta do chefe dos
Bastos se revela nas linhas seguintes:
Ela, a quem sempre trataste mais como mãe do que senhora! A quem
salvaste a vida pelos desvelos que lhe prodigalizaste, há pouco tempo,
naquela grave moléstia!
- Ora Alfredo, nunca devemos esquecer que o dia do beneficio é a véspera da
ingratidão; e quando fizermos qualquer bem, procuraremos ter sempre os
olhos de Deus, nunca esperando o agradecimento das criaturas. Tendo isso
em mira, jamais nos surpreenderá o que deu com ela, e tem se dado coma a
maioria dos escravos. Demos graças a Deus de não sofrer com isso o que
outros sofrem. (BITTENCOURT, 1906)
Como foi dito, Maria representa os libertos que depois da Lei de 13 de maio
preferiram abandonar o antigo local do cativeiro em busca de um novo lugar para levar sua
vida sem a necessidade de manter relações de dependência com os antigos senhores. Além
disso, ela traduz a imagem do negro abandonando o engenho e, na visão dos senhores,
engrossando as fileiras dos desempregados e vadios das cidades. O temor das elites baianas
está sintetizada nessa personagem. A imagem do abandono das senzalas era uma projeção de
antigos medos senhoriais, algo que se intensificou nas últimas décadas do século XIX
(FRAGA FILHO, 2006: 312-313). Após abolição essa imagem continuou presente e como
visto nos contos de Anna Ribeiro ainda duas décadas depois ela permaneceria na memória
social dos antigos senhores.
Um “favor” concedido por Dona Flora, e uma consecutiva não retribuição da
negra Maria, explica a sua ingratidão. Ou seja, na perspectiva senhorial, a dependência dos
subalternos fortalecia-se, através de uma rede de concessão de favores, que deveriam
culminar na sua “gratidão”. No desenrolar da narrativa, entra em cena outra negra chamada
Josefa que, ao contrário de Maria, reconheceria os favores dos antigos senhores, e pagaria
tanta “bondade” com trabalho condicional.
- É verdade, Yayá, que desejo ir; vossemecê bem sabe que tenho lá minha
filha. Mas, diga-me uma coisa: é certo Maria ter-se ido embora?
-É verdade, Josefa.
Oh! Meu Deus, exclamou a mulata, não podia acreditar?
O lavrador tomou aquela exclamação como um fingido sinal de sentimento,
para ocultar o gosto que a ex-escrava experimentava, vendo a colega pregar
uma peça a ex-senhora; e disse com ar zombeteiro:
- Ela fez o que vocês todas fazem. Felizmente, não sentimos a menor falta:
nunca almocei tão bem!
A mulata ficou triste e atarantada, dizendo depois:
- Minha senhora, eu sabendo que Maria saíra, vinha oferecer-me para ficar
servindo , até que vossemecê achasse outra melhor. Queria assim mostrar
que não me esqueço do que fez por mim naquela ocasião: si não me tivesse
apadrinhado, talvez hoje eu não existisse!... (BITTENCOURT, 1906)
Josefa é tão “resignada” que parece ter saído dos sonhos de qualquer senhor de
engenho. Ela mal consegue acreditar que Maria fizera o “absurdo” de abandonar seus ex-
senhores. Josefa é uma escrava que pensa a partir da lógica senhorial. Extremamente “grata”,
ela se esmera em agradar os antigos senhores. É como se ela atendesse a todas as
prerrogativas da ideologia paternalista idealizada pelos senhores. Posição semelhante assume
o garoto Pancrácio, personagem de uma das crônicas de Machado de Assis. Com toda
irreverência e ironia peculiar aos escritos machadianos, Pancrácio seria mais ou menos a
projeção do escravo presente no imaginário do senhor, enquanto o senhor seria aquele
imaginado, sarcasticamente na [re]criação de Machado. A crônica, já referida anteriormente,
conta a história de um senhor que se antecipa a abolição e decreta a “liberdade” de um de seus
escravos. A partir daí, ele simula uma situação que lhe garante a posição de benfeitor da
liberdade do “pobre” Pancrácio, e esse lhe é tão grato que continua trabalhando para o ex-
senhor mesmo depois a sua “alforria”. Um trecho da crônica, em especial, é bastante
elucidativo sobre as intenções do senhor de Pancrácio:
- Tu és, livre, podes agora ir para onde queres. Aqui tens casa, amiga, já
conhecida e tens um ordenado, um ordenado que...
- Oh! meu senhor fico.
- Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce nesse mundo;
tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho;
hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha só estás mais alto quatro dedos.
Artura qué dizer nada, não, senhô...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis, mas é de grão em grão que a
galinha enche o papo. Tu vales mais que uma galinha.
Eu vaio um galo, sim senhô.
[...] és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários,
trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra para satisfação do céu
(ASSIS, 1957 62-64).
É bem verdade que o senhor de Pancrácio machadiano foi bem mais esperto que o
Sr. Alfredo Bastos do conto de Anna Ribeiro, ao se antecipar à abolição, como o próprio
personagem afirmou “eu pertenço a uma família de profetas [...] toda essa história de lei de 13
de maio já estava prevista por mim”. Mesmo assim, a intenção era a mesma: se utilizar dos
artifícios da velha ideologia senhorial para conseguir manipular os ex-cativos e tentar
arrancar-lhes alguma expressão de “agradecimento”. No caso da Maria, ex-escrava de Alfredo
Bastos, esses recursos parecem não ter tido lá grande êxito, pois ela abandonou seus antigos
senhores, sem nem ao menos despedir-se e partiu para a Cidade da Bahia [Salvador]. Quanto
a Josefa, a escrava “agradecida” preferiu retribuir os favores “concedidos” por Alfredo e D.
Flora, sem nem ao menos intentar em combinar o salário. Nesse ponto, a ex-cativa do conto
de Anna Ribeiro aproxima-se muito do Pancrácio da crônica machadiana. Os dois estão
agradecidos pelos seus senhores, os dois prestam-lhe serviços como seres “livres”. Liberdade
essa que não lhe garantia mais que “alguns petelecos”, como os aplicados pelo senhor de
Pancrácio, no jovem garoto, por “impulso natural”. Com certeza, tanto Josefa, quanto
Pancrácio valem “mais que uma galinha”, como nos diz o narrador machadiano, pois ambos
são necessários para a manutenção dos privilégio dos seus senhores. Os dois também são
projeções do imaginário senhorial vigente no Brasil final do século XIX. Certamente, a
descrição do senhor de pancrácio resumia bem o sentimento de ex-cativos e senhores, tanto da
crônica machadiana, quando do conto de Anna Ribeiro escrito dezoito anos depois do 13 de
maio: “Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados quase divinos” (ASSIS,
1957: 64).
O “bom” Sr. Bastos zomba da negra Josefa, por não acreditar nas intenções
“sinceras” e “agradecidas” da ex-cativa. Afirmando que não estavam sentindo a menor falta e
que, aliás, como tentam mostrar também sua esposa e filhas. Se sentiam falta ou não, o fato é
que D. Flora, aceita de pronto o pedido de Josefa:
A negra afirma que só iria para a Cidade da Bahia quando os Bastos “não
precisassem mais dela”. Josefa era uma negra bondosa e agradecida, o tipo de subalterno
almejado pela ideologia senhorial. Era tipificada a partir desse ponto de vista, a opinião dos
cativos após a sua liberdade. Segundo essa forma de ver o mundo, os dependentes sempre
seriam contemplados pela bondade senhorial e em troca deveriam ser-lhes eternamente gratos.
No entanto, a própria D. Flora expõe que Josefa era apenas uma exceção – que não se deve
esquecer: fictícia. No intuito de dar uma lição às filhas ante ao “exemplo” da negra ela afirma:
“- Vejam, minhas filhas, nem todos são ingratos. É verdade que entre cem se encontra um
agradecido; mas, por isso mesmo, fica-se agradavelmente surpreendido; quando se faz
qualquer beneficio, sem a expectativa de agradecimento” (BITTENCOURT, 1906).
Essa “lição” denuncia que a ideologia paternalista fracassara, por não levar em
conta as posições dos outros sujeitos envolvidos na questão do “elemento servil”. Na verdade,
o comportamento de Josefa não é regra, e sim exceção. Assim como os mais de 100 escravos
pertencentes ao engenho dos familiares de Anna Ribeiro, a maioria dos ex-cativos dos
engenhos dos Bastos também tinha abandonado o antigo cativeiro e partido para a Salvador.
Aqui representações sociais e literárias se confundem, mas ambas expressam a mesma coisa:
os traumas de uma elite em decadência. Sem dúvida, do ponto de vista dos antigos senhores a
abolição da escravatura ocorreu de forma traumática (FRAGA FILHO, 2006: 131). E as
narrativas literárias de Anna Ribeiro não afirmam o contrário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado. Bons das. In: Obras completas. V. 31. Rio de Janeiro: W. M. Jakson. Inc.
1957.
BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Dulce e Alina. A Bahia. Salvador. 5-15 de
junho/1901.
FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna
Ribeiro. Salvador, 1995. Mestrado em Letras/UFBA, 1995.
.
.Do ponto de vista histórico, tal recorte temático consiste em uma perspectiva
unilateral, no que diz respeito às interpretações históricas do lugar da região norte na história
do Brasil, que segue outras interpretações monotemáticas A Amazônia, como referencial
simbólico, está na ordem do dia quando a mídia nacional ou internacional apresenta questões
relativas ao futuro da humanidade, particularmente no que diz respeito à preservação do meio
ambientejá desenvolvidas para o mesmo lugar. A própria noção de racismo na Amazônia
pode causar certo espanto devido à perspectiva que predominou por muito tempo a respeito da
irrelevância demográfica negra no norte do país. Fruto da teoria economicista dos grandes
ciclos econômicos e da centralização dos saberes acadêmicos no eixo centro-sul, a desatenção
à presença africana e negra no norte ficou relegado, muitas vezes, aos levantamentos de
exotismos culturais. Contudo, esse tipo de abordagem já foi duramente criticado por
antropólogos e historiadores que se debruçaram sobre a questão. Os antropólogos Napoleão
Figueiredo e Anaíza Vergolino, em 1990, ao desenvolver análise sobre a questão afro-
religiosa amazônica, depararam com uma vasta documentação sobre a presença africana na
região desde o período colonial. 226 Por outro lado, os historiadores Flávio Gomes e Jonas
Queiroz apresentam uma vasta documentação e bibliografia sobre a experiência negra na
Amazônia revelando os diversos aspectos da resistência negra no norte do Brasil.227
Neste artigo, abordarei, em um primeiro momento, o esforço de intelectuais que se
debruçaram sobre a questão negra no estado do Pará, de literatos e folcloristas aos primeiros
antropólogos e historiadores. Em seguida, desenvolverei uma interpretação acerca do lugar da
história e cultura negra no Brasil a partir da trajetória de duas práticas culturais: o candomblé
e a capoeira. O ponto central da análise será a interação entre intelectuais e produtores de
cultura afro-brasileira, particularmente os praticantes da capoeira e de outras tradições
culturais afro-brasileiras. O período escolhido abrange os anos de 1934 até 1953. O ano de
1934 tornou-se referência por sediar a realização do I Congresso afro-brasileiro, em Recife,
sob a coordenação de Gilberto Freire. Já o Ano de 1953 representa o ano da chegada de
Edison Carneiro em Belém e seu primeiro contato com o paraense Vicente Salles, que daria
continuidade aos estudos sobre o negro na Amazônia. O período escolhido contempla o
momento de reorganização dos símbolos nacionais, a partir da implantação das políticas do
Estado Novo, e de ampla divulgação do discurso nacionalista brasileiro.228
226
VERGOLINO-HENRY, Anaíza & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A Presença Africana na Amazônia
Colonial: Uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990, p. 27-31.
227
GOMES, Flávio e QUEIROZ, Jonas Marçal. “Em outras margens: escravidão africana”. In DEL PRIORE,
Mary & GOMES, Flávio (Orgs.). Os Senhores dos rios: Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2003.
228
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1996, pp. 15-25.
229
Todos os trechos contidos entre aspas constam em SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da
escravidão. 3.ed. ver. ampl. – Belém: IAP; Programa Raízes, 2005, p. 164, nota 47.
230
Idem.
231
Babaçuê ou Babassuê consiste em uma doutrina afro-religiosa Amazônica. Na Missão Folclórica foram
levantadas três versões: "Doutrina de Lamanjá (Emanjá Já Micô Oro Ireê)", "Doutrina de Dossu (La Dossu
Semenome)" e "Doutrina da Cabocla Erondina (Vem me Ajudar a Rezar)".
232
Sobre a documentação gerada pela Missão ver http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/index.html
233
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. A política da capoeiragem: a história social da capoeira e do boi-bumbá
no Pará republicano (1888-1906). Salvador: EDUFBA, 2008.
234
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.
235
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
236
LEACOCK, Seth and LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: Drums, Mediums and Trance in a Brazilian
City. Garden City/New York: The American Museum of Natural History Press, 1972.
237
SALLES (2005) e VERGOLINO-HENRY, Anaíza. & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. Presença Africana
na Amazônia: a notícia histórica. Belém, Arquivo Público do Pará, 1990.
relativos à formação da intelectualidade brasileira. Nesse caso, três trabalhos são bastante
significativos para a interpretação da temática proposta. O primeiro trata-se da pesquisa de
Nicolau Sevcenko sobre dois letrados do Rio de Janeiro – Euclides da Cunha e Lima Barreto
– que desenvolveram seus projetos literários sob uma perspectiva de intervenção nos
diferentes projetos sociais do final do século XIX238; o segundo é o trabalho de Sérgio Miceli
acerca da trajetória e engajamento sócio-político de intelectuais na República Velha e no
período do governo de Getúlio Vargas239; e por último a pesquisa de Aldrin Moura de
Figueiredo que apresenta pistas significativas em relação a produção intelectual no Pará do
final do século XIX até os anos de 1950240. A abordagem proposta neste artigo é distinta das
que foram apresentados pelos autores citados devido à atenção especial que será dada para a
interação entre os intelectuais e a cultura negra brasileira. Além do mais, os dois primeiros
estudiosos apresentados, ao tratar da construção de suas temáticas, não acrescentam
informações sobre o movimento intelectual no Norte do Brasil, salvo em relação aos estudos
de José Veríssimo.
Na Bahia, diferentes intelectuais do começo do século XX voltaram sua atenção e
estudos para a experiência africana no país. Parte de seus trabalhos tinha uma característica
literária-memorialística, mas posteriormente os temas dos trabalhos foram substituídos por
estudos “científicos” de caráter etnográfico.241 Logo a compreensão sobre a categoria raça
passou a assumir características culturais mais do que biológicas. No Pará, os estudos iniciais
voltados para a questão racial foram desenvolvidos até o início do século XX, mas em seguida
a atenção dos principais estudiosos paraenses se voltou quase que exclusivamente para a
literatura.242 Desse modo, parece não ter se desenvolvido uma atenção especial para a questão
racial entre os letrados paraenses. Até mesmo as experiências comuns entre a Bahia e o Pará,
como a ação de capoeiras na capangagem e a repressão às práticas religiosas de origem
238
SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
239
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
240
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A Cidade dos Encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-
brasileiras na Amazônia a constituição de um campo de estudo 1870 – 1950. Dissertação de Mestrado em
História, UNICAMP: Campinas, 1996.
241
No primeiro caso podemos encontrar os trabalhos de QUERINO, Manuel Raimundo. A Bahia de outrora, 3ª.
ed. Salvador, Progresso, 1946; VIANNA, Antônio. Casos e coisas da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1984; VIANNA, Antônio. Quintal de nagô e outras crônicas. Salvador: Centro de Estudos
Baianos, 1979; no segundo, os estudos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro. Sobre eles, ver
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 6ª edição. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978;
CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005; CAMPOS, Maria José.
Arthur Ramos – luz e sombra na antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004.
242
No primeiro caso destaco os trabalhos de VERÍSSIMO, José. “Raças cruzadas do Pará” [1878]. In: Estudos
Amazônicos, s/l, 1970; e nos seguintes a atuação dos letrados que trataram diretamente do tema racial em seus
trabalhos, particularmente, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir.
africana, na década de 1930, não tiveram a mesma repercussão nos dois estados. Na Bahia o
engajamento de intelectuais garantiu a transformação de certas práticas culturais em
verdadeiros símbolos culturais do estado. No Pará, como vimos acima, houve mobilização
intelectual em torno da defesa da liberdade de culto nos terreiros, mas o movimento não gerou
uma interação maior entre os letrados e os produtores de cultura, tal como ocorreria na
Bahia.243
A ênfase dada à literatura como a documentação principal para o desenvolvimento
deste trabalho tem uma razão própria. A capoeira e outras práticas culturais afro-brasileiras
são representadas na literatura paraense através de diferentes trabalhos que variam entre
romances, crônicas e poesias. O período de alcance deste tipo de trabalho no Pará é
abrangente, inicia-se em 1888 (com a publicação de Hortência, de Marques de Carvalho) e
segue até os dias atuais (apesar dos interesses desta pesquisa não ultrapassarem as obras da
década de 70). Em pesquisa anterior, tive a oportunidade de constatar que diversos capoeiras
aparecem como personagens de obras literárias. 244 A representação dos capoeiras nesses
trabalhos pode ser classificada em pelo menos três estilos e períodos distintos. Em um
primeiro, a capoeira estaria caracterizada racialmente como uma prática típica do indivíduo
mulato. É o estilo naturalista exercitado em Belém de 1888 através do romance Hortência, de
Marques de Carvalho 245. Em seguida, partindo das primeiras décadas do século XX, através
do estilo literário que ficou conhecido como “Literatura do proletariado”,246 personagens
capoeiras, ora reais ora fictícios, perpassam as obras de Nélio Reis, Lauro Palhano e Dalcídio
Jurandir.247 Esta fase interage com uma terceira, cuja diferenciação está tanto no período
abordado como na forma de trabalho escolhida. Nesta etapa estariam dois escritores que, ao
contrario dos anteriores, não teriam apresentado os capoeiras como personagens de romances
completos, mas como participantes de crônicas memorialísticas sobre a cultura popular. Neles
os indivíduos citados não seriam fictícios. Existiram e seus feitos são contados por Jaques
243
SALLES, Op. Cit.
244
LEAL, Op. Cit.
245
CARVALHO, Marques de. Hortência. Ed. especial, Belém, Cejup/Secult, 1997.
246
Tendência que se caracterizava pelo engajamento sócio-político dos literatos brasileiros. Na Bahia, destcam-
se as diversas obras de Jorge Amado. No Pará, além de Bruno e Dalcídio Jurandir, pode-se destacar o trabalho de
REIS, Nélio. O rio corre para o mar. 2 ed. Pref. de Josué Montello. Belém: Fundação Cultural do Pará
Tancredo Neves/SECULT, 1990. 250 p. (Lendo o Pará).
247
REIS, Nélio. Subúrbio, Rio de Janeiro: José Olympio, 1937; PALHANO, Lauro. pseud. de Inocêncio
Campos. O Gororoba - Cenas da vida proletária. 2ª ed. Rio de Janeiro, Pongetti, 1943; JURANDIR, Dalcídio.
Belém do Grão-Pará, São Paulo, Martins, 1960; e JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos, Rio de Janeiro,
Record, 1976.
Flores e José Sampaio de Campos Ribeiro.248 Ainda caberia nessa fase a obra Batuque, do
poeta Bruno de Menezes, cuja evidência de africanidade revela múltiplas características de
ação “capoeiral” no poema “Pai João”.249
Os jornais do período revelam o engajamento dos diversos intelectuais na política
partidária do Estado. A Folha do Norte (oposicionista), A Província do Pará (independente),
O Estado do Pará (governista), O Liberal (governista) e A Vanguarda (independente) são os
principais periódicos analisados para o recorte temporal proposto. Através deles,
considerando suas polarizadas atuações políticas, é possível captar o contexto político e
cultural em que os diferentes intelectuais estiveram envolvidos frente ao tema de seus estudos
e de seus princípios ideológicos. Resta agora compreender o significado da articulação
intelectual para a formação de certa identidade nacional para o Brasil, onde o negro poderia
ter lugar.
248
FLORES, Jaques. pseud. de Luiz Teixeira Gomes, Panela de Barro, 2ª edição, Belém, Secult/Pa, 1990,
RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém: Editora Universitária, 1965.
249
MENEZES, Bruno de. Batuque. Belém, Falangola, 1960.
250
SCHWARCZ, Lílian K. Moritz. “Raça como negociação – sobre teorias raciais em finais do século XIX no
Brasil.” In FONSECA, Maria Nazareth Soares (org). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
cultural negra no Brasil: a capoeira e o candomblé. Ambas ao logo de suas histórias têm
recebido a atenção das autoridades brasileiras visando diversos fins. Na capoeira a trajetória
variou de usos e abusos a favor ou contra seus praticantes. No candomblé, a violência contra
os praticantes caracterizou o diálogo da sociedade com este saber ancestral dos africanos no
Brasil. Em ambos os casos, os produtores de cultura negra foram os mais prejudicados.
Contudo, a interação de diversos intelectuais, brasileiros ou estrangeiros, com as
manifestações culturais negras brasileiras gerou experiências positivas tanto para a divulgação
pública destes saberes tradicionais como para a delimitação sistemática das características de
culto, rito e/ou fundamentos destas práticas culturais. 251
Em relação à capoeira, por exemplo, o ano de 1937 é um marco para a sua
emancipação. Nesse ano a sua prática sairia do rol de crimes do código penal brasileiro.252
Para muitos capoeiras a descriminalização estaria vinculada ao esforço de mestre Bimba253
em promover a capoeira como educação física ainda na década de 30. Além disso, outro fator
que teria influenciado a saída da capoeira do código penal estaria relacionado a uma
apresentação que mestre Bimba fez, também em 1937, na Bahia, para Getúlio Vargas, então
presidente do Brasil. No entanto, o que poucos capoeiras sabem é que no mesmo ano ocorreu
em Salvador o II Congresso Afro-brasileiro promovido por diversos intelectuais preocupados
com o estudo da cultura negra no Brasil. Nesse congresso, os diferentes representantes de
práticas culturais afro-brasileiras foram convidados a se pronunciar, ampliando o diálogo
entre os estudiosos e os produtores de cultura negra na Bahia.254
Por trás dos novos significados atribuídos à capoeira (esporte, luta nacional ou
folclore) estavam os diferentes interesses de capoeiristas e intelectuais que inovaram os
estudos sobre a questão negra no Brasil ao substituírem, em suas interpretações, a categoria
raça pela de cultura (Destacam-se nesse aspecto os trabalhos de Arthur Ramos, Edson
251
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
252
Em oposição a sua criminalização, de 1890 até 1937, surgiu, como alternativa funcional para a capoeira, a
folclorização, a partir da década de 1950, na Bahia; a esportivização, experimentada inicialmente nos anos 1960,
com a migração de mestres baianos para São Paulo, e oficializada em 1972 por portaria do MEC. Estes, então,
seriam os principais horizontes apontados para o futuro da capoeira. Interesses que correspondiam a projetos de
intervenção externa na capoeira, mas que na maioria dos casos também foi apoiada por capoeiras que buscavam
viver de seu ofício. Cf. REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil.
Rio de Janeiro: Publisher, 1998, p. 3; e BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas, SP:
Papirus, 2000, 24-38.
253
Manoel dos Reis Machado (1899-1974), mestre Bimba, foi estivador, carvoeiro, carpinteiro e trapicheiro.
Fundou a 1ª Academia de Capoeira, denominada Clube União em Apuros, situada à Rua do Bângala, Bairro da
Mouraria, Salvador-Ba, registrada e legalizada oficialmente na Secretaria de Educação, Saúde e Assistência
Pública, em 09 de Junho de 1937, como Centro de Cultura Física Regional, marco do ingresso da Capoeira na
“resistência legalizada.” Adaptação do site http://www.fortedacapoeira.org.br/regional.php
254
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.
Carneiro e Gilberto Freyre). Posteriormente a capoeira também seria resgatada a partir das
obras de Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger255. Literatura, pintura e fotografia seriam,
respectivamente, os instrumentos de divulgação das principais características positivas
daquela arte-luta. Claro que esses intelectuais não estavam dando atenção exclusiva para a
capoeira, mas sim a uma boa parte das manifestações culturais afro-brasileiras. Entre elas, as
práticas religiosas de origem africana, em especial o candomblé. Os homens das ciências e
das artes citados buscavam aprofundar seus estudos e trabalhos acerca da experiência africana
no Brasil a partir das manifestações culturais negras presentes em todo o país.
Nesse sentido, a capoeira e o candomblé, entre outras tradições afro-brasileiras,
desenvolveram ainda no século XX o processo de definição de sua prática e doutrina. A partir
da Bahia, a aproximação entre intelectuais e produtores culturais ajudou a expressar, dos mais
variados modos (livros, fotos, esculturas, pinturas, etc.), os significados da cultura afro-
brasileira vivenciada pelos seus herdeiros diretos: o povo do candomblé e da capoeira. Então,
podemos considerar que as práticas culturais de origem negra no Brasil transformaram-se em
um fenômeno inusitado de representação da identidade nacional às avessas. Ou seja,
carregava em si o paradoxo de ser um saber marginalizado pelos diversos projetos nacionais e
ao mesmo tempo um instrumento incomparável de divulgação da história e cultura afro-
brasileira pelo resto do mundo. Além disso, antes mesmo de qualquer debate político ou
acadêmico sobre o assunto, a capoeira e o candomblé já eram, para seus praticantes, um meio
excepcional de resistência e sustentação da identidade negra no Brasil, particularmente no que
diz respeito à guarda e divulgação de seus saberes.
Se em relação à Bahia, o processo de construção deste fenômeno pode parecer
mais evidente, o mesmo não acontece no que diz respeito a outras regiões do Brasil.
Intelectuais e artistas que contribuíram decisivamente para a divulgação nacional e
internacional da cultura negra baiana também demonstraram interesses por experiências
negras que estavam longe dos limites baianos. É o caso de Pierre Verger, Edison Carneiro e
Jorge Amado que, em momentos diferentes de suas trajetórias, construíram interações diretas
ou indiretas com a cultura, arte ou literatura sobre o negro no Pará. No entanto, estes aspectos
de suas trajetórias pouco são explicitados nos estudos relacionados aos seus respectivos
trabalhos. Cabe então interpretar os percursos destes intelectuais com outros que na Região
255
AMADO, Jorge. Jubiabá. 58ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000 e Tenda dos milagres. 30ª edição. Rio
de Janeiro: Record, 1983; CARYBÉ. As Sete portas da Bahia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987; e
http://www.pierreverger.org/br/photos/photos_themetree.php?leThemeID=1188
Norte deram atenção para a presença negra na Amazônia. Em particular, Dalcídio Jurandir,
Bruno de Menezes e Vicente Salles.
A VEZ DA AMAZÔNIA
da presença negra na Amazônia. Sua resposta, após extensa pesquisa, foi a elaboração de um
dos clássicos da bibliografia sobre o negro na Amazônia, o livro O Negro no Pará.
Somente a partir da década de 1970, com a fundação da Universidade Federal do
Pará, é que a abordagem acadêmica formal passa a se interessar pelo tema das religiões negras
na Amazônia. Nesse caso, o trabalho se inicia através da ação de Napoleão Figueiredo, um
militar convertido em antropólogo, que coletou material diverso relativo tanto às tradições
negras quanto às indígenas. Napoleão orientará a pesquisa de uma das pioneiras no estudo
das religiões de matrizes africanas no Pará: a antropóloga Anaíza Vergolino.
Relacionar praticantes de cultura com estudiosos de cultura auxilia na
compreensão da identidade brasileira como um imbricado processo de violência, negociação e
resistência do negro no Brasil. Além disso, permite que possamos pensar na própria atividade
do pesquisador/intelectual em relação aos compromissos éticos que ele poderia ter em relação
aos sujeitos estudados. Compromisso que, em primeira instância, poderia ser o rompimento
com uma das bases mais sólidas da injustiça social: a hierarquização entre o trabalho manual e
o intelectual, ou, em outras palavras, a prática cultural (experiência) e a sua respectiva análise
acadêmica (interpretação).
REFERÊNCIAS GERAIS
____________. Tenda dos milagres. 30ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1983.
BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas, SP: Papirus, 2000.
CAMPOS, Maria José. Arthur Ramos – luz e sombra na antropologia brasileira. Rio de
Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004.
FLORES, Jaques. pseud. de Luiz Teixeira Gomes, Panela de Barro, 2ª edição, Belém,
Secult/Pa, 1990. RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém:
Editora Universitária, 1965.
FONSECA, Maria Nazareth Soares (org). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
GOMES, Flávio e QUEIROZ, Jonas Marçal. “Em outras margens: escravidão africana”. In
DEL PRIORE, Mary & GOMES, Flávio (Orgs.). Os Senhores dos rios: Amazônia, margens e
histórias. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2003.
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia.
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QUERINO, Manuel Raimundo. A Bahia de outrora, 3ª. ed. Salvador, Progresso, 1946.
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VERÍSSIMO, José. “Raças cruzadas do Pará” [1878]. In: Estudos Amazônicos, s/l, 1970.
A pesquisa em destaque tem como objetivo principal narrar à trajetória do terreiro e descrever
a vida de um sacerdote, que tem como nome de batismo José Augusto dos Santos, que nasceu
em 07 de abril de 1929, e morreu no dia 24 de outubro de 2006, mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Primeiramente serão revelados os principais momentos da vida do biografado
(José Augusto dos Santos) destacando as fases como infância, juventude e adulta ao mesmo
tempo foram abordadas as dificuldades enfrentadas por José e a sua aproximação com alguns
políticos, e principalmente destacar como se deu sua iniciação para em seguida compreender
os motivos que o levou a fazer parte do Candomblé. Zé D’Obacoussou contribuiu de fato para
a expansão do Candomblé. No segundo momento esta inserida a narração da história do
terreiro de Zé D’Obacoussou em Aracaju, sendo este atualmente Axé Ilé Obá Abaça Odé
Bamirê, neste foi visualizado as mudanças de locais do terreiro abre um novo espaço no
Município de São Cristóvão no Bairro Rosa Elze, no Eduardo Gomes. A principal fonte de
pesquisa se dá através da oralidade (fonte oral) de pessoas próximas ao mesmo, com o auxilio
também de alguns documentos.
1. A Vida de um Babalorixá
256
Depoimento de Acelina Santana Bento, concedido a Flávia Delfino do Santos, no município de Divina
Pastora, no Povoado Bomfim, 27.11.2007.
José Augusto conviveu com os seus pais, sendo estes Felisberto Augusto dos
Santos e Maria Tereza de Jesus e com seus cinco irmãos. Seu pai nasceu durante a vigência da
lei do Ventre Livre. Seu Felisberto Augusto dos Santos, conhecido por “Cubéu”, segundo
Santos, era um sábio e um bom rezador. Era quem assumia as despesas com a casa, pois os
sete filhos sobreviviam da “profissão” do pai que exercia a função de boiadeiro em fazendas.
José Augusto dos Santos revelou em seu livro que eram felizes, pois tinham uma casa, cabras,
galinhas, entre outros, para ajudar no sustento da família. Um dos momentos mais
complicados para a época foi que não havia uma legislação que beneficiasse (aposentadoria)
esses trabalhadores. Infelizmente muitos se viam lançados na marginalidade e no banditismo.
257
257
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
258
MAIA, Janaina Couvo Texeira. Umbanda em Aracaju: na encruzilhada da história e da etnografia. São
Cristóvão - SE/ 1998
259
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
260
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889- 2000). – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2004.
José Augusto dos Santos nasceu laçado e revestido com uma pele, sendo que as
suas parteiras foram duas negras nagôs, Rosa de Quirino e Maria Cecília. Mas é importante
relatar que foi Rosa quem o aparou na gamela e deu o primeiro banho nele com uma cuia e
colocou o primeiro nome dele, José, justamente por causa da película e pelo cordão umbilical
ter sido laçado na criança. Ou seja, segundo as memórias, é possível perceber que José
conviveu com pessoas de descendência africana. 261
Dona Maria Tereza de Jesus faleceu no dia 31 de Julho de 1932 e foi enterrada no
Cemitério de São Gonçalo em Divina Pastora. José se encontrava apenas com quatro anos de
idade incompletos. Nessa fase, em Divina Pastora, observa-se que a assistência médica da
época era muito precária, pois não houve um laudo pericial da causa morte da mãe de José.
Em termos de estudo José só conseguiu freqüentar a escola pública até a quarta
série primária, pois foi expulso. Em seguida, José foi para a Escola Municipal Filenila Fontes,
onde, por intermédio de D. Finé, ele conseguiu algumas roupas como também aprendeu a
magia da leitura. Mais por motivo de sobrevivência foi trabalhar no campo.
(...) logo fui obrigado a deixar a escola para ir para o campo trabalhar”...
plantei capim, cana-de-açúcar, chamei boi e também lancei tijolo na olaria.
Quando tinha tempo pescava guanhamum de ratoeira. Quando havia caxixe
pescava de jerére nos rios. Caxixe era sobra dos caldos-de-cana que o
engenho soltava e apodrecia as águas. Os peixes ficavam como bêbados e ai
eu podia pegar muitos para comer. (SANTOS, 2000: 10)
261
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
262
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
José Augusto, com intuito de ajudar o seu pai vinha a pé para a Cidade de Aracaju
ou na Marinete do Senhor Mizael para trabalhar na casa de Dona Feia. Logo em seguida, sua
irmã Luzia foi trabalhar com ele na mesma casa. Tanto José como Luzia faziam doces na
Casa de Dona Feia sendo que estes eram vendidos de porta em porta. Já durante os finais de
semana quinzenalmente e de trem Cubéu e Luzia levavam o que ganhavam para o pai
(Felisberto). José ia nos finais de semana fazer carrego264 no Mercado Central da época
levando em um cesto apoiado na cabeça as compras.
263
Idem.
264
Carrego é ato de carregar as compras de alguns consumidores em troca de alguns trocados as quais eram
revertidos para o seu pai.
Percebe-se que entre a infância e a juventude José Augusto teve que encarar
diversas dificuldades como fome, a perda da mãe com sua pouca idade, o afastamento dos
irmãos e depois tentar encontrar subsídios para cuidar de seu pai e para sobreviver, sendo que
ele foi o único que não abandou o pai com a vinda para o município de Riachuelo, mais
precisamente para uma fazenda localizada em Olinda.
Vários dos seus irmãos migraram para municípios vizinhos e até para outros
estados, como Rio de Janeiro e Salvador.
Então, diante das dificuldades, Cubéu resolveu sair da zona rural para a zona
urbana. No ano de mil novecentos e quarenta e três, o pai de José, Felisberto tem uma
infecção intestinal a qual provoca o seu falecimento no mesmo ano. Após o ocorrido José,
com o objetivo de mudar de vida, sai de Riachuelo (Olinda) para tentar uma nova vida na
capital aracajuana.
Após sua mudança definitiva, Cubéu encontrou a sua primeira mãe de santo
Maria das Dores, depois ele conheceu Maria de Pelage, e posteriormente Bailó. Estas eram
mães- de- santo antigas aqui na capital de Aracaju. Maria das Dores foi que o “abrigou” em
sua pensão. Essa senhora era filha de santo de Nanã de Aracaju.265
Ainda jovem, com exatamente 18 anos de idade, Cubéu namorou uma senhora,
Dona Flora, que teve a oportunidade de conhecer na casa de Nanã. Ela morava no Bairro
América, no Alto da Bela vista e era iniciada. Mas José Augusto só esteve pouco tempo ao
lado desta senhora. Com ela teve o seu primeiro filho, chamado Emanuel, mas a senhora
vendeu a criança, segundo Santos, quando esta tinha exatamente três meses de nascida. José
ao descobrir o acontecido foi conversar com D. Flora e soube que a criança tinha sido levada
para conviver ao lado de um casal. Logo em seguida, abandonou D. Flora e depois de algum
tempo ele soube que ela estava grávida do segundo filho chamado de José Augusto. No
entanto, José falou a Dona Flora que só criaria os dois filhos. 266
José Augusto foi por um tempo evangélico, mas depois ele se deu conta de que a
parte espiritual ou mediunidade continuava prevalecendo, ou seja, mesmo sem nenhuma
preparação ou iniciação a mediunidade já era aflorada. Tentou também ser coroinha da Igreja
Católica, levando o defumador, mas também não encontrou nessa a sua religião.
Observa-se que José circulou por várias religiões. É nesse momento que amplia-se
o Toré ou Torreia em Aracaju. Nesse contexto ele começou a freqüentar o Toré, pois achava
265
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
266
Idem.
bonito. Quando passou a freqüentar seus orixás boiadeiro, amazoneiro e senhores caboclos
que já se faziam presentes, desde muito cedo para ensinar remédios.
Segundo suas memórias, desde sua infância se torna perceptível a sua
mediunidade, fato que marcou sua vida. Então constata-se que era realmente um autodidata,
pois, mesmo sem possuir "formação” alguma, conseguiu aprender e ensinar aos seus “filhos”
diversos conhecimentos desde relacionados à natureza até o ato de lidar com os cultos e o
respeito para com a tradição.
Já que naquela época ele se encontrava solitário, José começa a freqüentar casas
de santo. Entre as pessoas que ele conheceu na cidade de Aracaju tem a Srª. Maria Luiza a
qual narrou que era praticamente vizinha dele no Bairro Suíssa e por gostar de freqüentar e
olhar Candomblé o conheceu. Maria Luiza revela que nesse momento José estava casado com
uma senhora com o nome de Zizinha. É exatamente nessa fase que os três (Zé D’Obacoussou,
Maria Luiza e Zizinha) saíam, com o intuito de brincar nas casas de Candomblé.
Segundo Santos:
Outra senhora que chegou a compartilhar parte da vida com Zé D’Obacoussou foi
a Srª. Ondina Borges ou D. Zizinha, que era viúva e foi à primeira esposa dele. Ela era natural
do município de Riachuelo, local onde Zé D’Obacoussou morou durante alguns anos, sendo
uma das fases da sua vida com o seu pai. Ao lado de Zizinha, José chegou a ter sua primeira
filha oficialmente reconhecida. Foi chamada Maria Tereza Borges dos Santos que chegou a
gerar um filho Francisco César Borges, neto de Zé D’Obacoussou.
Ao receber seu adecá, o babalorixá ou pai- de -santo, passa fazer iaô, que são os
filhos de santos; ogan, que são responsáveis pelos toques para que os virantes (filhos de santo)
recebam as entidades de acordo com o seu chamado, havendo assim uma hierarquia no
Candomblé.
Francisco, filho de Maria Tereza, morava com a sua avó mais com o falecimento
de sua avó Srª. Ondina, passou a residir na casa de seu avô (Zé D’Obacoussou) durante um
ano e meio. Os filhos que Zé D’Obacoussou teve do primeiro namoro, com a senhora D. Flora
foram Emanuel Lima e José Augusto dos Santos, a primeira filha fruto (casamento) foi Maria
Tereza, já Acácia Maria é a quarta filha e Elielson, são fruto de um novo casamento entre Zé
D’Obacoussou e a Senhora Nercília Silva quando este já se encontrava morando no Estado do
Rio de Janeiro.
Durante a década de setenta, fase em que Zé D’Obacoussou foi ao Rio de Janeiro,
ele passou por momentos complicados, pois teve em uma noite de natal uma trombose
cerebral. Depois, no próximo ano, exatamente no mês de dezembro, teve um problema na
garganta e recebeu a notícia de que não iria mais conseguir se comunicar. Mas no mês de
dezembro com os festejos para Iansã, com a finalização dos festejos, houve a cura para José.
Já na década de oitenta, Zé D’Obacoussou tem um infarto agudo no miocárdio,
com a sua melhora depois de um intenso tratamento. Após retorna para casa e faz suas
obrigações. Depois de certo tempo José tem uma infecção intestinal que teve duração de um
ano e alguns meses. Após driblar tantas vezes a “morte” por intermédio dos Orixás que o
protegia, retorna para Sergipe de forma um tanto forçada, pois José não tinha o objetivo de
retornar para Aracaju.
Segundo Acácia “(...) ele fundou a casa dele não é, a primeira casa de candomblé
que ele fundou foi na Suíssa, ai da Suíssa, quando ele começou a crescer e daí venho para a
Avenida Rio de janeiro número 1949, dali ele foi fazer uma filial no Rio de Janeiro onde
durou trinta, trinta e um anos, na Rua Helena, número 12 cidade Leal”.
Com a saída “definitiva” de Zé D’Obacoussou para o estado do Rio de Janeiro a
sua irmã Maria da Glória (Dofona) assumiu e ficou à frente do terreiro na Avenida Rio de
Janeiro, conhecida como Linha de Ferro. Entre os filhos de santo que foram iniciados lá tem
Manuel Antônio (Sileu Ace) que foi recebido por Dofona e foi iniciado na Avenida Rio de
Janeiro,
Com a sua saída para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por 31 anos, Zé
D’Obacoussou conseguiu criar e confirmar diversos adeptos, inclusive foi no Rio que ele
conseguiu se tornar mais conhecido e respeitado, com a nação Angola.
Entre as suas viagens realizadas pelo sacerdote, existiram as nacionais como para
São Paulo e as internacionais (sendo estas a África, Paraguai, Uruguai, Argentina, Estados
Unidos). Todas as viagens realizadas foram de cunho principal voltado para trabalhos e a
viagem para a África, mais especificamente para a terra de Xangô (Oió), com o objetivo de
conhecer mais fundo a origem de sua entidade maior.
Com o retorno, de Zé D’ Obacoussou abre um novo espaço religioso no Eduardo
Gomes.
É através destas viagens que o sacerdote Zé D’Obacoussou consegue “conhecer”
adquirir e aprimorar o culto religioso, pois estas viagens possuem um papel muito
significativo para alguns sacerdotes, por serem uma forma de promover transações ou até
ligações com as raízes dos Cultos, desde viagem ao Rio de Janeiro, até principalmente para a
África, tida como o berço dos cultos. Deste espaço é possível retirar não só o conhecimento,
267
Depoimento de Manuel Antônio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 08.11.2007.
mas profundo sobre os cultos mais também trazer elementos do continente africano para o
Brasil como forma de veracidade ao culto ou até mesmo de continuidade e de valorização da
tradição africana.
Com o falecimento de sua irmã Maria da Glória (Dofona) e com grave problema de
saúde, Zé D’Obacoussou retornou para Aracaju onde acaba abrindo um novo espaço
religioso, localizado no Eduardo Gomes no município de São Cristóvão, na Rua Almir Caz de
Azevedo, número 595.
Foi no Eduardo Gomes que Zé D’Obacoussou conseguiu manter bons
relacionamentos com políticos, entre estes Leandro Maciel, que foi Senador e Deputado
federal, servindo como representante do estado de Sergipe. Essa relação é refletida e
comentada, por seus descendentes, Segundo Acácia:
Na época que meu pai morava aqui em Aracaju, ele contava pra gente que
dia de aniversário dele, Leandro Maciel mandava sempre uma banda do
corpo de bombeiros acordar ele, então ele era acordado com aquele toque
das cornetas dos bombeiros, meu pai sempre foi muito querido, muito bem
quisto.268
Percebe-se então que Zé D’Obacoussou mantinha uma relação muito boa para
com a política da época. A prova disso é que era realizado um tipo de homenagem durante os
dias de seu aniversário, sendo que essa homenagem era mantida por parte de um político de
destaque na época, ou seja, se encontrava em grande evidência no cenário político, sendo este
Leandro Maynard Maciel que por intermédio da UDN (União Democrática Nacional) foi
eleito em uma fase em que no Brasil os udenistas estavam sendo considerados como os
causadores da morte de Getúlio Vargas. Mesmo assim, o Leandrismo é considerado como
uma das fases que Sergipe teve realmente uma liderança política que sempre desenvolveu em
atividade administrativa uma política desenvolvimentista voltada para o Estado.
Com o seu retorno para a cidade diversos adeptos promovem uma festa, em que se
comemorou a volta do sacerdote mesmo estando gravemente debilitado, pois as doenças
268
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
Com o seu retorno para a capital aracajuana o Babalorixá já tinha suas mãos
abençoadas pelos Orixás de Xangô, Oxosse, Oxum, Oxalá e Iansã.
Entre as viagens realizadas anualmente por Zé D’Obacoussou, estava a ida a sua
cidade natal no município de Divina Pastora para o Povoado Bomfim com o simples objetivo
de estar presente na celebração de missas anuais e rever parentes e amigos de infância.
O espaço religioso fundado e mantido por Zé D’Obacoussou durante muitos anos
recebe atualmente o nome de Axé Ilé Obá Abaça Odé Bamirê, sendo que quem assumiu o
trono foi o Babalorixá Obá Fanidê, Arvanley Augusto.
Diante dos ensinamentos deixados pelo sacerdote Zé D’Obacoussou é visível que
tanto na música ou através de seus cânticos e do seu livro o respeito e a tradição da cultura
afro permanecerá viva dentro de cada um dos seus três mil filhos de santo que reconhecem e
valorizam a vida de Zé D’Obacoussou.
Nosso personagem principal morreu em 24 de outubro do ano de 2006 no
aeroporto internacional do Rio de Janeiro o Babalorixá Odê Bamirê mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Essa então foi a última vez que Zé D’Obacoussou retornou para a sua cidade.
Seu corpo foi transportado até o cemitério no carro do Corpo de Bombeiros, onde teve
centenas de seguidores. Durante o cortejo e diversos poderes civis, militares, federais,
administrativos e políticos de Aracaju e de outras localidades prestaram sua homenagem.
Zé D’Obacoussou foi uma pessoa ilustre, que valorizava a beleza natural das
plantas, ervas, era um sacerdote que adorava principalmente dançar e cantar Candomblé, um
personagem da História da cultura afro de Sergipe para o mundo e para a maioria das pessoas
que o conheceram, o tinha como “rei”.
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DANTAS, Beatriz Góis. Vovô nagô e papai branco – usos e abusos da África no Brasil.
1988.
ENTREVISTAS
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, São
Cristóvão, 10.10.2007.
Depoimento de Acelina Santana Bento, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Povoado de
Divina Pastora – Bomfim, 27. 11. 2007.
Depoimento de Maria Luiza, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 09.11.2007.
Depoimento de Maria de Lurde Santos; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.
Depoimento de Maria José Jesus; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.
cultos das religiões afrodescendentes em geral e dos candomblés da Bahia em particular, nas
décadas de 1930 e 1940. A referida relação de alianças fez parte dos posicionamentos anti-
racistas do período, tomados em espaços de sociabilidade como o 1º Congresso
AfroBrasileiro do Recife, 1934, o 2º Congresso Afro-Brasileiro ocorrido na Bahia em 1937, é
1º Conferência do Negro Brasileiro, realizada no Rio de Janeiro em 1949, bem como a
manifesto público pela liberdade religiosa feita nas páginas do jornal Quilombo em 1950.
Tomaram parte nessas redes de relações especialista nos estudos das religiões de origem
africana como Arthur Ramos269 e os intelectuais ativistas negros como Edson Carneiro270.
por Rüdiger Bilden, Fernando Ortiz, Richard Pathee, Melville Herskovits (CARNEIRO e
FERRAZ, 1940. 8).
A ampla rede de solidariedade, na qual se assentara o 2º Congresso Afro-
Brasileiro, era formada também pelo apoio de instituições religiosas e laicas. Assim como em
34, os “terreiros” da Bahia teriam participado do Congresso de 37. Mas neste último ficou
registrado oferecimento de festas aos congressistas. O Axé Apo Afonjá, do Engenho Velho,
“o mais velho ‘terreiro’ do Brasil”, teria oferecido uma delas. Outras festas teriam sido dadas
pelos terreiros de Procópio, de Bernadino e do Alaketu (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. 8). O
Congresso da Bahia foi o primeiro a receber significativa atuação e apoio de organizações
definidas por Arthur Ramos como “Associações Negras Contemporâneas” (RAMOS, 1971).
Foi recorrente a reivindicação de Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz, em relação à
cientificidade do Congresso da Bahia. Contudo, vinculado aos “movimentos negros”, neste
evento se deu a fundação de uma entidade em defesa da liberdade de culto religioso, a União
das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. p. 11).
A luta pela “liberdade religiosa dos negros” na Bahia parece ter sido uma
iniciativa de Edison Carneiro. No dia 3 de agosto ele teria convocado ogãs, pais-de-santo e
gente de candomblé para fundar o Conselho Africano da Bahia. O Conselho designaria um
representante de cada candomblé para substituir a polícia no controle dos cultos. Neste dia
todos teriam assinado o memorial ao governador, solicitando a liberdade religiosa e o
reconhecimento da autoridade dos conselheiros. Nessa tomada de posição anti-racista
Carneiro contava com o prestígio de um importante aliado: Arthur Ramos, a quem escreve.
“Já fiz o memorial e vou fazer os estatutos do Conselho. Acho que conseguiremos tudo, pois
o governador271 tem uma bruta admiração por você e por Nina”.272 O argumento central do
“Memorial” é de que Nina Rodrigues, Arthur Ramos e os participantes do 1º e 2º Congresso
Afro-brasileiros já teriam provado que a prática de seitas africanas não atenta contra a moral
ou ordem pública. Todos os intelectuais ligados aos congressos “têm reclamado a liberdade
religiosa dos Negros como uma das condições essenciais para o estabelecimento da justiça
entre os homens”.273
O “Memorial” é uma evidência dos resultados possíveis da aliança entre
intelectuais e os ativistas dos movimentos sociais. Todavia é o processo de utilização do nome
271
Segundo Waldir Freitas Oliveira, o governador citado era o capitão Juracy Magalhães interventor do estado
da Bahia e eleito para o cargo em 1934. Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos de 04/01/1936 a 06/12/1938.
(FREITAS e LIMA, 1987. p.152-153).
272
Carta de Edson Carneiro a Arthur Ramos 19 de julho de 1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ
273
O documento foi publicado em RAMOS, Arthur. O Negro na Civilização Brasileira(1939). Rio de Janeiro,
Guanabara, Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971. p. 200.
274
Nas correspondências Arthur Ramos e Melville Herskovits comentam a proximidade
existente nas abordagens de Religiões Negras e O Negro Brasileiro. Sobre esta obra,
Herskovits a teria utilizado extensivamente para a elaboração do “paper” enviado ao 2º
Congresso Afro-brasileiro. Cartas de Arthur Ramos a Melville Herskovits de 01/12/1936 e de
Melville Herskovits a Arthur Ramos de 7/01/1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.
275
“Lista dos brasileiros de qualquer raça que influenciaram sobre a vida dos Negros”. Manuscrito de 1937, S/L.
Arquivo Arthur Ramos/FBN-RJ.
276
Abdias Nascimento nasceu em Franca, São Paulo no dia 14 de março de 1914. Diplomou-se em contabilidade
em 1929 e ciências econômicas em 1938. Foi diretor-fundador do Teatro Experimental do Negro (1944-1968) e
um dos organizadores do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro de 1950. Dicionário Histórico Biográfico
Brasileiro Pós 30. (ABREU et al. 2001. p. 4030-4031).
277
Alberto Guerreiros Ramos nasceu em Santo Amaro, na Bahia, em 13 de setembro de 1915 e faleceu em Los
Angeles, Califórnia, nos Estados unidos, em 7 de abril de 1982. Bacharel em Direito em 1943 pela Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, Assessorou Getúlio Vargas entre 1951 e 1954 e dirigiu o Departamento de Sociologia
de ISEB. bid. ABREU, Alzira A. et al. p. 4883.
278
Gilberto Freyre nasceu em 15 de março de 1900 em Pernambuco, onde faleceu em 18 de julho de 1987. Foi
Sociólogo formado na Universidade de Bayler e em Columbia, nos EUA. (COUTINHO e SOUSA, (Dir), 20001.
p. 733-734.
279
Roger Bastide nasceu em 1898 (o dicionário não informa data ou local de seu falecimento). Foi Professor da
FFCL da USP e membro do Instituto Internacional de Sociologia. Foi especialista em Sociologia e Folclore da
Religião. (Dicionário de Sociologia., 1981. p.42).
280
Idem p. 1 e 8. Sobre a cobertura jornalística de Schuyler ver também os nº. 2. p. 1; 3. p. 6-7..
George S. Schuyler nasceu na Provincia de Rhode Island, nos Estados Unidos da América, em 25 de fevereiro de
1895. Foi editor do The Pittisburgh Courrier. Descrição Biográfica de Schuyler S/D. S/L. Arquivo Arthur
Ramos/ FBN. Dª Ruth de Souza confirmou a presença de Schuyler no Brasil em 1949 e o descreveu como
“negro”. Entrevista com a atriz Ruth de Souza, feita em dia 31 de julho de 2004.
281
Carta de George S. Schuyler a Arthur Ramos 22/4/1949. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.
Anti-Racismo e Cidadania: A Luta pela Liberdade Religiosa dos Negros nas Páginas do
Quilombo
Em janeiro de 1950 Edison Carneiro retoma o tema da liberdade dos cultos afro-
descendentes ao publicar nas páginas do jornal Quilombo o artigo “Liberdade de culto”. A
publicação deste artigo, treze anos após a publicação do memorial apresentado ao Governador
da Bahia, evidencia a longevidade destas reivindicações.282 Em outras palavras, associações
negras e seus líderes lutavam por esse direito na segunda metade da década de 1930 e
defendiam essa causa ainda no último ano da década de 1940. O artigo aponta os limites para
a prática da cidadania naqueles dias. Em diversas passagens do texto Edison Carneiro faz uma
etnografia do conflito dos religiosos com a policia (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
“Nenhuma das liberdades civis tem sido tão impunemente desrespeitada no Brasil,
como a liberdade de culto”. Apesar de sua base democrática o texto constitucional não tratava
com a clareza necessária quais eram os limites para as práticas religiosas. Por isso qualquer
policial “se acha no direito de intervir numa cerimônia religiosa para semear o terror entre os
crentes.” Segundo Carneiro esse tipo de intervenção teria se tornado uma prática cotidiana,
um “habito”, mesmo que a casa de culto possua “personalidade jurídica”, como prevê a
Constituição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
O autor refere-se ao desrespeito a um direito elementar do cidadão afro-
descendente e dos demais seguidores daqueles cultos. Segundo Carneiro está era uma
liberdade “elementar”. Contudo, sua limitação seria diretamente proporcional à escala da
hierarquização na qual eram percebidas “as religiões chamadas inferiores” por diversos
setores da sociedade e também pela polícia: “E quanto mais inferiores, mais perseguidas”, ao
contrário da Igreja Católica que não seria incomodada pelas autoridades policiais, mesmo que
seus fieis em procissão interrompam o tráfego de uma cidade como o Rio de Janeiro. As seitas
protestantes, budistas e mulçumanas também não seriam alvo da atenção policial por terem
seus cultos protegidos pelo manto da discrição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
As evidências de experiências de discriminação praticada e patrocinada pelo
Estado através da polícia às religiões de origem africana remontam ao final do século XIX.
282
Ver também “O problema da liberdade de culto” seguida da transcrição da carta do Sr. Paulo Eleutério Filho,
ex-chefe de polícia para o Prof. Nunes Pereira. Quilombo, nª 10, jun/jul de 1950. p.4.
‘O Sr. Dr Secretário de Polícia e Segurança Pública por oficio que dirigu ao Dr.
Primeiro Comissário Falcão recomendou-lhe que faça cessar um candomblé,
que há dias está funcionado no lugar denominado Gantóis, e contra o qual tem
havido queixas’.283
283
Diário de Notícias. Salvador, 6 de outubro de 1896. Apud. (Memórias das Palavras, 2006).
arregimentar seguidores das mais diversas religiões, para a luta de uma causa comum: a
liberdade de culto.
Contando com o declarado apoio de dezenas de milhares de pessoas, em cada
cidade brasileira, as religiões perseguidas necessitam de coesão entre si, precisam organizar-
se para a conquista comum – por cima das divergências e das diferenças de concepção do
mundo – de um direito que interessa a todas. Não é a polícia quem assegura o exercício dos
direitos do homem – a prática o tem demonstrado – mas a organização, a vigilância e a
combatividade dos cidadãos. Lutando organizadamente pela liberdade de culto, as pequenas
religiões conquistarão o seu lugar ao sol (Quilombo, nª 5, 1950. p.2).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
284
Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. In Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, Brasília, 2004, p.35.
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Movimento Negro no Brasil e o Anti-racismo em Arthur Ramos (1934-1949). Dissertação
de Mestrado. Niterói, PPGHS-UFF, 2005.
A comunicação presente visa refletir sobre alguns elementos que permeiam o universo
religioso das Rezadeiras do município de Governador Mangabeira, levando em consideração
a presença do catolicismo (re) significado, tido como popular, um misto das contribuições do
catolicismo europeu associado a contribuições das populações afro-brasileiras. Assim,
pretende-se investigar de que maneira o apego religioso pôde contribuir para pensarmos na
formação identitária das Rezadeiras.
INTRODUÇÃO:
285
Pesquisadores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Gilberto Freyre, desde o
início do século XX já investigavam a formação cultural brasileira e mais tarde chegaram a
conclusão que esta descendia especialmente da influência de três povos: brancos, índios e
negros. Tais populações experimentaram um mesmo “espaço” territorial, desde o Brasil
colonial, e puderam a partir daí externalizar práticas culturais provenientes de suas diferentes
concepções de mundo.
Os portugueses logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos elementos
culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia. Contudo, na prática, o que se verificou foram outros
acontecimentos, os portugueses se depararam com demonstrações de resistência indígena e
posteriormente resistência africana ao ignorar as diversas concepções culturais já existentes.
Os ameríndios e africanos possuíam concepções culturais que zelavam o mundo
natural e as diversas entidades sobrenaturais, o que se contrapunha ao mundo pré-moldado e
ortodoxo ao qual os lusitanos faziam parte. A importância que diversos elementos advindos
da natureza possuíam, sobretudo nas religiões tradicionais africanas, recebiam interpretações
285
Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”, Roger Bastide em “As religiões Africanas no Brasil” e
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala já se dispunham a historiar as raízes culturais brasileiras.
CATOLICISMO POPULAR
O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito
menos suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa
o possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a
necessidade de intercessão de um membro religioso. Os santos são
acessíveis a todos os fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).
A srª Celina287 embora tenha tido uma vida muito ativa ao freqüentar a igreja
católica, mesmo assim reconheceu a importância e eficácia da reza, independente do espaço
que é executada.
Ainda hoje, a rezadeira Celina possui um altar em sua casa com diversos santos:
Cosme & Damião, Rita de Cássia, São Pedro, Santo Antônio, São José, Nossa Senhora
Aparecida, Santo Expedito etc e ela insiste em dizer que faz suas orações para todos eles e por
isso se sente muito abençoada e protegida, mesmo que não possa freqüentar a igreja como
fazia antes. Segundo ele, mais importante que está sempre presente nas celebrações da igreja,
é estar em dias com as orações.
As rezadeiras que vivenciam esta atmosfera de crença parecem não atentar para a
existência dessas duas modalidades de catolicismo, o popular e o oficial, simplesmente
286
Srª Celina Neris, charuteira aposentada e rezadeira. Apelidada de Dona Celininha.
287
Depoimento da srª Celininha.
comungam desses dois universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das
concepções de mundo presentes entre elas. A rezadeira Neném288 contribuiu sobre o assunto
com o depoimento:
Sou católica, tenho devoção a santo, Santo Antônio. Sete flecha, D. Oxum,
a princesa do mar, todos orixá 291.
288
Srª Francisca Santos Oliveira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de Dona Neném.
289
Depoimento da srª Neném.
290
Srª Aumerinda Conceição Rodrigues, lavradora e charuteira em exercício da profissão. Apelidada na
comunidade como dona Merú.
291
Depoimento da srª. Merú já citado.
católica, Sete flecha, o caboclo e Oxum, orixá das religiões tradicionais africanas ou do
Candomblé brasileiro, nos leva a acreditar que o “sincretismo é fluído e móvel, não é rígido e
nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural defendida por Bastide
(1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do
orixá do Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões
tradicionais africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário
da cultura ocidental, não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando
novos símbolos e ritos. Portanto, nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser
católica e ao mesmo tempo resguardar práticas dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum
problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São
Benedito. Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos
seus filhos. As súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de
angústia, tornou-se de fundamental importância para alcançar a graça:
Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher
,...e tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha
amiga ai disse: Isso não foi a toa( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá
em Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que
me valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito
qui quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São
Benedito que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda
pra fora , pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto
vida eu tiver. Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou
lá e disse: Seu Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui
mais não. O senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a
fazenda quem vai tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz,
quem quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem
quem me faça sair!292
292
Depoimento da srª. Neném já citado.
São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”293, os santos foram
“associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo oficial
venerar a figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a praticar a
medicina caridosa, os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos cultos afro-
brasileiros, e é justamente dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela maior parte
de seus devotos: os santos meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam
doces, balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional
caruru de sete meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século
XVI, sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se
tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e
aos poucos se identificando com os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo
nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de
uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a
forma pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos
cultos afro-brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das
trocas culturais. As rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função
da presença marcante dos elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram
293
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada em
relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil, desde
a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões, sobretudo
por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico, tendo em
vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos africanos.
Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do
Candomblé! Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente
tem que escolher um caminho só!294
Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a frente.
O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e não essas
coisas!296
294
Depoimento da srª. Celininha.
295
Srª Maria Custódia Cerqueira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de dona Teka.
296
Depoimento da srª. Teka.
rezadeiras que careceram de atenção especial, os santos gêmeos conseguiram adentrar nesses
espaços da cultura popular com relativa facilidade:
O São Cosme era de meu pai, mas eu era uma filha tão amada de pai que ele
já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,...297
A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo
de seu nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o
santo era de cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e
proteção entre eles, membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos
gêmeos existiam de maneira incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de
favores. O São Cosme deveria proteger a família da srª Celininha independente das
solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos
e razões. A rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela
saúde de suas netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança
com os santos. No caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de
“abrir seus caminhos” e ter mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira
Neném:
O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete
ano eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos,
morreu também,... a vida miorou, miorou sim!298
Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram
obtidas, assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que
logo eles puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª
Neném mencionou a srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que
dava orientações espirituais.
297
Depoimento da srª. Celininha.
298
Depoimento da srª. Neném.
A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São
Cosme e Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo
firmado. Segundo ela, só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença,
seguida da interferência de outras pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a
curiosa situação em que um médico dá orientações à paciente para que se sirva dos serviços
de uma mandingueira no combate da doença. Tal situação nos remete a pensar que o Dr.
Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-brasileiros, inclusive reconhecendo
as limitações que a medicina oficial possui em determinadas “doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os maus
fluídos que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não conseguia
encontrar no plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou
explicações científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por
fim recorreu a uma explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam
dado nos últimos tempos acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú,
relembrou possíveis falhas em suas condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação
firmada entre ela e São Cosme e Damião: a oferta do caruru todos os anos. Assim, o
299
Depoimento da srª. Merú já citado.
dendê encontraremos marcas do “mundo africano”, que por hora encontra-se imbricado nos
festejos aos santos gêmeos.a
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos
preocupar em não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e
complexo, podendo abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo
participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos
defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não
devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada,
pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos
gêmeos trazem elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma
empreitada difícil de se resolver, contudo dentro desse universo é possível identificar
elementos presentes nessas duas tendências culturais. Ora a rezadeira tida como católica
recorre a uma médium – denominação mais amena, para muitas depoentes, que curandeira –
ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.
FONTES ORAIS:
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In: CARVALHOS, Tereza Cristina Pereira Fagundes (org.).Ensaios sobre Identidade e
gênero. Salvador: Helvécia, 2003.
300
Emprego este termo no sentido de um ato de estabelecimento, criação, instauração.
301
Entende-se por estética negra, conceitos e juízos de beleza baseados nas características dos negros
302
Termo que define a valorização das características físicas dos negros como belo, contrapondo-se ao padrão de
beleza da sociedade brasileira, que baseia nas características o “ariano”.
Nos Estados Unidos surgiram movimentos que lutaram pelos direitos dos negros
com variadas estratégias, entre outras de modificação do padrão de beleza, baseado numa
estética branca. Por exemplo, na década de 1960: “A Fuller Products Company fatura mais de
10 milhões de dólares com o lançamento de cremes para branquear a pele e alisar o cabelo. A
303
propaganda promete com isso, o fim da discriminação” . Empresas como esta continuam
faturando com a falsa propaganda de modificação dos fenótipos dos negros.
Na África, as mulheres consomem produtos para branquear a pele. O sucesso
destes produtos é devido à insatisfação da maioria da população negra com as suas
características físicas, gestando uma “necessidade” de mudar e de assumir um padrão de
beleza branca muito grande. Em contraponto com esta situação surgiu o movimento Black
Power304, na década de 1960, caracterizado pelo uso dos cabelos sem intervenção química ou
física para “alisar”, o que foi definido como “natural”, por jovens negros, juntamente com este
movimento surgiu o slogan “Black is beautiful” defendendo a afirmação de que “ser negro é
lindo”.
Foi nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, os dois centros irradiadores
da influência norte-americana, que apareceu o corte black power – cabelo
redondo e cheio, in natura. Por conseguinte, com a crescente valorização da
busca da “consciência racial”, procurou-se uma “naturalização” dos cortes,
traçados e penteados afro, com repúdio do alisamento – “além de decadente
[o alisamento], é prejudicial porque impede o crescimento do cabelo”.
A imagem do cabelo natural passou a ser reverenciada como aquela que se
contrapõe ao cabelo liso que estaria em consonância com uma nova
mentalidade do “ser negro”.305
O Brasil do final dos anos 60 vivia a ditadura militar, com censura, prisões,
exílio e tudo mais por isso, o que chegou à população afro-brasileira do
movimento norte americano foi só a estética Black Power os cabelos, a soul
music, as roupas, boinas e a ginga tornaram-se moda. Artistas com Tim
Maia, Tony Tornado e Trio Ternura reproduziam o que James Brown, a
banda Paliamment, os Jackson Five e tantos outros faziam palcos
americanos, fortalecendo a auto estima dos negros. Gravações mais
explicitas foram feitas por Wilson Simonal, com Tributo a Martin Luther
King e por Elis Regina com Black is Beautiful.306
Quando na década de 70 os movimentos da contracultura instauraram a
onda do ‘black is beautiful’ (preto é bonito), o negro finalmente pôde ter
orgulho de suas características físicas. Os cabelos alisados deram lugar aos
crespos naturais e o corte black-power virou moda. Os traços faciais
303
Oswald Faustino. A década que mudou tudo. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 26, Ano 3, out.
1998, PP. 50 – 52. p. 51
304
Expressão que significa poder negro criada por Stokely Carmichael. Este movimento surgiu, no final dos anos
60 em oposição a direção reformista do movimento pelos direitos civis – no sul dos EUA e em outras partes da
América do norte.
305
Jocélio Teles dos Santos. O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza étnicos. In: Estudos
afro-asiáticos. nº. 38; Rio de janeiro: dez/2000. p.55
306
Oswaldo Faustino. Black Power. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 8, Ano 2, abr. 1997, pp. 102 –
107. p. 106
307
Manuela Barros. “Beleza Negra” A Tarde. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro. Salvador, 20
nov. 2003, p 5.
308
Gênero musical desenvolvido na Jamaica em 1960
309
“A palavra dread teve origem na Jamaica e significa ameaça ou perigo. (...) Atualmente, a palavra dread é
usada para definir um estilo de cabelo. (...) Dreadlock são cabelos que se enrolam naturalmente e não voltam a
sua forma original, a não ser que sejam cortados.” ISSO é dread, sim! Visual da Raça, São Paulo, Editora
Símbolo, nº. 8, Ano 1, 1997, pp. 36 – 38. p. 37
310
Idem, op. cit. p. 36
311
Márcio José Macedo. “Quero uma nega de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br,
23/09/2004. Acesso em: 21/11/2005. p. 1
Foi o Ilê Aiyê que fez este trabalho, em seguida os outros blocos também.
Que ajudou a população negra a botar a cara pra fora, se assumir, assumir a
sua estética, assumir a sua fala, a conquistar espaços cada vez mais, foi com
a canção, com a letra da música que deu essa força pra gente caminhar.313
Um dos objetivos do Ilê era justamente o de dar visibilidade ao negro que assumia
um papel secundário no carnaval e dentro da sociedade. A Noite da Beleza Negra foi um dos
projetos do Ilê Aiyê que teve grande repercussão na discussão sobre a auto-afirmação e na
valorização de uma beleza negra.
312
“Marca registrada que dá trabalho” In: A Tarde. Salvador-Ba: 30/04/2000, A Tarde – Local, p.7.
313
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
314
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.42
315
Deusa do Ébano: concurso a Noite da Beleza Negra. Realização Ângela Figueiredo. Salvador, 2003. Filme-
Documentário.
Nesse evento, que ainda acontece, é escolhida a negra mais bonita do Ilê Aiyê, a
Deusa do Ébano, aquela que irá reinar durante um ano, participando das atividades do bloco.
Os pré-requisitos analisados para a escolha da rainha são os penteados, dança, vestimentas.
Além disso, a candidata deve ter consciência da sua negritude e ter participação na sua
sociedade.
A primeira saída do Ilê teve grande repercussão negativa nos meios de
comunicação, como pode ser observado nesta matéria do jornal “A Tarde”, que permite
evidenciar o preconceito diante dos blocos afros.
Dessa matéria à leitura que realizamos, ilumina um discurso sustentado pela elite
branca da existência de uma democracia racial, e também a discriminação que sofriam os
blocos de negros, assim assumidos, enquanto reivindicatórios, que se “atreviam” a sair no
carnaval. Fica evidente que quando levantadas discussões sobre a questão racial em Salvador,
estas eram massacradas com a afirmação que nesta cidade não existiam problemas raciais,
pois aqui era o “paraíso racial”, onde todas as “cores” viviam harmoniosamente. O protesto
cabia àqueles que estavam insatisfeitos com a sociedade. Insatisfação que era tida como
desnecessária pelas elites baianas.
316
“Bloco racista nota destoante” In: A Tarde. Salvador-Ba: 12/02/1975, p.3.
Fazendo uma análise de como a beleza negra começa a tomar espaço na sociedade
baiana, acredita-se que seja interessante fazê-lo através de um fator que gera bastante
discussão entre os negros(as) da sociedade: o cabelo. “O elemento em cima do negro, da
estética negra, um dos elementos que mais incomoda tanto ao branco quanto ao próprio negro
é é é a história do cabelo”.317Isto porque este é um ponto importante na vida do negro,
principalmente da mulher, o que não significa dizer que o homem não se preocupe com isto,
porém este fator não faz com que este se sinta tão diminuído por não ter uma das suas
características físicas aceitas pela sociedade. Porém, se formos analisar a concepção defendida
por alguns homens, como Ronaldinho o fenômeno do futebol, que andou afirmando que não
era negro e verificarmos que ele mantém a sua cabeça raspada o tempo todo. Podemos até
chegar a conclusão de que este é um artifício utilizado pelo homem para fugir de uma das
características físicas marcantes que o negro possui.
Hildegardes Viana defende: “O cabelo duro, para o homem de cor, não pesava
tanto, a ponto de se transformar em problema. Bastava cortar o cabelo bem rente ao casco”.318
Porém no mesmo capítulo chama a atenção para relação entre os homens de cabeça raspada e
a marginalidade, como afirma:
317
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
318
Hildegardes Vianna. A Bahia já foi assim: crônicas de costumes. 2ª ed. Rio de Janeiro: GRD, 1979. p.138
319
Ibidem
lidar com o cabelo sempre foi extremamente complicado e existia uma insatisfação desta com
seu cabelo independente da forma que ele se apresente. A folclorista baiana Hildegardes
Vianna enumerou apelidos pejorativos, comuns e correntes na sociedade baiana para
classificar o cabelo dos negros, dentre eles: “(...) cabeça seca, cabeça fria, cabeleira xoxô,
cabelo de romper fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo,
cabeleira teimosa, pão de leite, etc”.320 Afrânio Peixoto defendeu em Breviário da Bahia que
o feio da raça não era sua cor, mas sim o seu cabelo. Peixoto afirmou que torços e panos eram
utilizados para esconder a cabeleira dura, conceito que difere do defendido e aceito pelos
africanos, que utilizam seus torços e panos para rituais ou para compor as cabeças das
mulheres, ou homens, como é o caso da religião muçulmana. Raul Lody pertinentemente
adverte que:
320
Ibidem
321
Ivonne Ferreira e Carla Nascimento. A Magia dos turbantes. Visual da Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº.
12, Ano 2, 1998, pp. 22 - 25.
Até por volta de 1990, na Bahia, era difícil se encontrar mulheres que
desenvolvessem penteados afros, como afirma Risério,“(...) os penteados afro. Eles se
encontram, atualmente, no estágio de arte corporal, ainda não diluída em salões de beleza. E
são tão poucas as cabeleireiras afro, aqui, que acho até que conheço todas elas, de Ura a
Dete”323. Era difícil encontrar salões que tratassem do cabelo afro. Era mais fácil encontrar
mulheres especializadas em passar ferro, “fritar” os cabelos. O uso do cabelo afro estava
muito relacionado com momentos festivos, especificamente com o carnaval, como define
Risério:
Antes o negro não expunha seus traços, pois a características de sua raça
não eram consideradas bonitas”, comenta. Era comum, segundo a
muséologa, as negras tentarem disfarçar seus traços (como nariz e lábios
grossos), cabelo e cor da pele, na tentativa de atingir o padrão branco.
322
Nilma Lino Gomes. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. p.351
323
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.102
324
Idem, Op. cit. p.100
Na entrevista que Negra Jhô concede no livro de Raul Lody, ela deixa claro que
cinco anos atrás era difícil uma mulher negra assumir tranças nos seus cabelos, pois era mais
fácil ela alisar (fritar) ou escová-lo. As pessoas que a procuravam eram turistas que tinham
curiosidade e vontade de fazer nos cabelos tranças, amarrar torços, fazer penteados diversos.
326
Negra Jhô é trançadeira do Pelourinho, reconhecida nacional e internacionalmente pelo seu
trabalho com trançados, penteados afro e torços. Em entrevista concedida ao Correio da
Bahia, diz que nasceu com a carapinha sarará e que não crescia, o que fazia com que grande
parte de sua família zombasse dela, chamando-a de John (João), o que gerou o apelido que
usa até hoje. No início do seu trabalho como cabeleireira de penteados afro, botou a cadeira
em pleno largo do Pelourinho para fazer o cabelo dos fregueses, pois o salão só viria mais
tarde. Hoje, ela ocupa o lugar de uma das melhores cabeleireiras de penteados afro com
reconhecimento nacional. Chegou a ser titulada como Baiana Símbolo no carnaval de 2003,
quando o tema foi “Carnaval das Baianas”.327
O sentimento de inferiorização e busca de aproximação de outra imagem esta
muito forte no cotidiano de meninas no período escolar e é discutido por Nilma Lino Gomes,
no artigo em que a mesma aborda que é por meio da educação que a cultura é introjetada,
sendo a escola um dos espaços que interferem na construção da identidade.328 Diante disto,
encontramos na matéria A cor da infância o relato de observações de um professor:
325
“Beleza Negra” A Tarde. Apud. Manuela Barros. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro.
Salvador, 20 nov. 2003, p 5.
326
Raul Giovanni Lody. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Nacional, 2004.
p. 119 e 123
327
Regina Bochicchio. “Baiano – símbolo”. Correio da Bahia. Salvador-Ba, 26 dez. 2002. Perfil. p.11
328
Nilma Lino Gomes. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e
o cabelo crespo. In Educação e Pesquisa. São Paulo, v.29, n.1, p.167-182, jan./jun. 2003.
329
Marcos Frenette. A cor da infância. Revista Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº. 38, Ano 4, out. 1999, pp.
88 - 92. p. 90
330
Marcos Frenette. A cor da infância. Revista Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº. 38, Ano 4, out. 1999, pp.
88 - 92. p.88
331
Bells Hooks. Black looks: race and representantion. Boston: South End, 1992.
Diante disto, verificamos que hoje está na moda ser negro, e se assumir como tal,
principalmente com um mercado que disposto a oferecer uma gama de produtos para esses
consumidores. A questão é que a moda passa. E fica a questão: as pessoas que se relacionam
com essa moda conseguiram construir uma consciência do que é ser negro no Brasil?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Eliane. Raça Conceito e Preconceito. 2 edição. São Paulo: Editora Àtica, 1990.
BOAHEN, Adu (coord. do volume). A África sob dominação colonial In História Geral a
África VI 1880-1935. São Paulo: Ática/UNESCO, 1985.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade
negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
HABERT, Nadine. A década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São
Paulo: Ática, 1992.
HUME, David. “Do padrão do gosto” In Ensaios Morais, Políticos e Literários. São Paulo:
Nova Cultural; Coleção Os Pensadores, 1999 pp. 333-350.
LODY, Raul Giovanni. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Nacional, 2004.
RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil: quando a multidão voltou as praças. São
Paulo: Ática, 1992.
SANTOS, Jocélio Teles dos. “O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza
étnicos”. In Estudos afro-asiáticos. Rio de janeiro, nº. 38, dez/2000, pp. 49- 64.
SOUZA, Ana Lúcia Silva, [et al...]. De olho na cultura: pontos de vista afro-brasileira.
Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2005.
WALKER, Alice. “Cabelo Oprimido é teto para o cérebro”. In Vivendo pela palavra. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988. pp.1- 4
3.2 – SIMPÓSIO 2:
HITÓRIA SOCIAL
Coordenação:
Prof. Dr. Dilton Maynard (ANPUH-SE/UFS)
Delmiro era dono de carros, objetos rarefeitos nos dias em que viveu nas
Alagoas. Os impactos da circulação dos seus veículos, cruzando as estradas
do sertão, principalmente à noite, surgem noutras quadras “Minha mãe o
que é aquilo/Que vem assombrando a gente?/- É o carro de Delmiro/Com [o]
um fogo aceso na frente”337.
Sem dúvida alguma o sertão habitado por Delmiro Gouveia era uma exceção. De
maneira geral as novidades apareciam primeiro nas grandes cidades. A introdução dos
veículos automotores e dos bondes elétricos imprimiram um novo ritmo às ruas. Isso gerou a
necessidade instituir os direitos e deveres de veículos e pedestres para evitar acidentes.
332
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
vol. 3, p. 9.
333
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.: FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 161.
334
BENJAMIM, Walter. Paris, Capital do século XX. In: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Coleção
grandes cientistas sociais; 50), p. 35.
335
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.:FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 162
336
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O senhor da Pedra: produções e usos das memórias sobre Delmiro
Gouveia (1940 - 1980). Recife, 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Pernambuco.
337
Idem, p. 208.
338
. Cf. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Universidade Federal de Sergipe, 1984. p. 216
339
Normalmente essa matrícula poderia ser feita em qualquer época do ano e renovada nos meses de Janeiro e
Fevereiro. Cf. Códigos de Postura.
340
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1912, Seção 3ª, capítulo II , art. 96, p.
26..
341
MAGNÍFICO! Diário da Manhã, Aracaju, 11 nov. 1924, p. 2.
completo com todos acessórios de força de 36 a 45 H.P. efetivos. A tratar com o proprietário
n. cidade de Itabaiana ou com R. Wynne Queiroz nesta capital. 9 – 30”.342
No entanto os automóveis ainda precisam conviver durante um bom tempo com os
veículos a tração animal que circulavam pela capital sergipana e, principalmente, nas cidades
do interior. Assim não é incomum aparecer anúncios de venda dos “Carros de praça”. Em
1924 José Freire Barreto estava vendendo “uma Charrete, tipo francês, com sete assentos,
com ou sem animal, e devidamente arreada”343.
A disputa pelos espaços nas ruas aumentava. Os pedestres precisavam competir com
carroças, bicicletas e bondes. Mas o veículo mais perigoso parecia ser mesmo o automóvel.
Daí porque a necessidade de regulamentar o comportamento dos veículos e, principalmente
dos condutores, pelas ruas das cidades. O código de posturas de Aracaju de 1926 determinava
no segundo capítulo como deveria ocorrer o trânsito de veículos. Conforme o regulamento:
342
LOCOMOVEL LANZ. Diário da Manhã. Aracaju, 1 dez. 1925, p. 2.
343
CARRO DE PRAÇA. Diário da Manhã. Aracaju, 11 nov. 1924, p. 3.
344
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, p. 24.
345
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, p. 9 – 10.
346
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, art. 43, p. 9.
347
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, art. 103º p. 23.
Os animais que eram encontrados soltos pelas ruas poderiam ser apreendidos. E caso o
dono não pagasse a multa estipulada, o bicho era vendido publicamente. Isso não estava
limitado apenas aos cavalos ou mulas. Qualquer bovino ou caprino que fosse encontrado
largado pelas cidades apresentando risco ao trânsito era imediatamente retido por funcionários
da prefeitura, policiais, ou mesmo cidadãos comuns. E, se por um lado havia preocupação
quanto à velocidade dos automóveis e dos animais, por outro, a lentidão e desconforto dos
bondes puxados por burros eram motivo de vergonha para muitos moradores de Aracaju.
A eletricidade fora introduzida no estado em 1913, mas era usufruída por poucos. Em
comparação com outras capitais, Aracaju demorou a se desfazer dos candeeiros e lampiões.
Nicolau Sevcenko descreve as impressões de Oswald de Andrade, ainda criança, sobre a
mágica dos bondes movimentados sem impulso externo em São Paulo desde 1900348.
Entretanto, nos anos vinte, Aracaju ainda contava com bondes puxados por burros.
Voluntariosos, os animais precisavam ser chicoteados durante os trajetos. Isso ocorria porque
“subitamente os burros empacavam, deitavam-se nos trilhos, faziam greve pacífica e não
havia chicote que o arredasse dali”. Os passageiros eram obrigados a descer e assistir a luta do
condutor “para ‘convencer’ os animais de sua obrigação”349.
Finalmente, em 1924, a Empresa Tração Elétrica de Aracaju cumpriu a promessa de
melhorar os bondes. Estes “já deixaram o passo de cágado para correrem nas linhas, e sem o
barulho, pelo fato de lhes haverem sido aplicadas novas rodas”350. Nem todas as substituições
haviam sido feitas, mas esperava-se que isso acontecesse em breve. Além disto, os pedestres
esperavam que os novos bondes, prestassem melhores serviços. Os condutores deveriam zelar
pela apresentação pessoal e a lotação do meio de transporte deveria ser respeitada, deixando
assim de causar inconvenientes para os pedestres que precisassem utilizar o serviço, uma vez
que
Não se pode admitir por gosto que numa capital já modernizada como
Aracaju haja calhambeques desarticulados e escandalosos acudindo pelo
título pomposo de bondes.
Estamos de pleno acordo com a providência tomada quanto ao
chicoteamento dos animais, porquanto se eles não puxam certos carrões de
assalto, não é por preguiça, mas por impossibilidade.
Uma coisa que os senhores da E.T.E.A. devem fazer quanto antes: vestir os
condutores e caixeiros, que andam semi-nus e sujos.
348
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 546.
349
CABRAL, Mário. 3 ed. Roteiro de Aracaju. Aracaju: Banese, 2002. p. 113.
350
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.
Não devem também permitir que os bondes, com a lotação completa, ainda
leve passageiros de pé na plataforma. Estando cheios, os bondes só devem
parar para descida351.
Os bondes puxados por dois burros tinham cinco bancos, e a lotação máxima de vinte
passageiros. Isto explica porque andavam sempre lotados e não ofereciam conforto. O balanço
do bonde provocava até mal estar. Certo dia o mestre de padaria 2 de Julho José dos Santos
almoçou à tarde e subiu no bonde que passava às 15h. Quando estava em frente a padaria
União na rua de Laranjeiras, centro da cidade, não suportou “o jogo do veículo, caiu sem
sentidos no calçamento acometido por um forte ataque de congestão cerebral. Resultou da
queda sofrer um enorme talho na cabeça. Socorrido por um soldado do 28 e guardas civis”352.
Levado à farmácia Central, recebeu os primeiros curativos e foi removido para a Assistência.
A indisposição do padeiro José dos santos até poderia ter tido outra causa como um ataque
epitético. No entanto, o jornal aproveitou o fato para atribuir o “ataque de congestão cerebral”
ao inconveniente de ter bondes puxados por burros nas linhas do centro da cidade. Um
incidente como esse remetia ao atraso em que Aracaju estava em comparação a outras
capitais. Enquanto os jornais das grandes cidades reclamavam da velocidade dos bondes, em
Aracaju se noticiava o quanto o transporte maltratava os usuários.
No Rio de Janeiro, por exemplo, havia disputas entre pedestres e veículos. Para
atravessar uma rua era preciso estar atento ao movimento dos automóveis e dos bondes. Em
muitas de suas crônicas Machado de Assis comentava “o subido número de atropelamentos,
sobretudo de pessoas mais idosas, não adaptadas ainda ao novo ritmo de deslocamento dos
veículos elétricos”353. E se os bondes não conferiam grandes emoções aos usuários em
Aracaju, os automóveis se encarregavam de trazer os tão sonhados problemas das grandes
metrópoles para as ruas da capital sergipana. No dia 27 de julho de 1924 um garoto foi
atropelado por um automóvel. O Correio de Aracaju fez questão de noticiar o fato na primeira
página
351
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.
352
CAIU DO BONDE ATACADO DE CONGESTÃO. Correio de Aracaju. Aracaju, 28 jul. 1924, p.1.
353
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 549.
bonde, verificaram não ter o menor sofrido coisa alguma, salvando deste
modo a responsabilidade do chofer354.
Assim, pode-se perceber apesar das transformações que pareciam devorar o mundo,
Aracaju demorou a exibir as benesses e os problemas de uma capital moderna. Apesar de
querer regulamentar o trânsito de pedestres e veículos para evitar acidentes, as cidades
contavam ainda com um grande número de veículos a tração animal, ou mesmo eqüinos e
muares que eram usados como meio de transporte.
Os automóveis não tinham preços acessíveis. E para dificultar ainda mais o acesso aos
carros, Sergipe passava por uma das maiores crises de carestia nos anos vinte. Assim como a
eletricidade ou o telefone, o automóvel chegou a Sergipe, mas nem todos puderam desfrutar
da novidade.
E enquanto os códigos de postura limitavam a velocidade máxima a 10 km por hora,
os usuários do bonde a tração animal reclamavam da vagareza do transporte. Esses indícios
levam a crer que os sergipanos desejavam desfrutar dos mesmos benefícios, e em alguns casos
até dos mesmos problemas, encarados pelos moradores de cidades como São Paulo ou Rio de
Janeiro. Assim, o que contava era a possibilidade de identificar traços da modernidade nas
cidades sergipanas, e, principalmente, na capital.
As tão almejadas novidades ganharam espaço, mas precisaram conviver com costumes
e tradições. Não se pode falar em mudanças bruscas, ou assimilação imediata das inovações.
A regulamentação do trânsito em Sergipe entre as décadas de 1910 e 1920 apresenta algumas
das contradições em torno da modernidade. Nesse sentido cabe a definição de Willi Bolle de
que “a modernidade é a expressão artística e intelectual de um projeto histórico chamado
‘modernização’ – contraditório, inacabado e mal resolvido”355.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
354
MENOR ATROPELADO, MAS O CHAUFFER NÃO TEVE CULPA. Correio de Aracaju. Aracaju, 28 jul.
1924, p.1.
355
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin. 2 ed.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 24
BENJAMIM, Walter. Paris, Capital do século XX. In: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática,
1991. (Coleção grandes cientistas sociais; 50).
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.: FILHO, Daniel Aarão
Reis, FERREIRA, Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2000.
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O senhor da Pedra: produções e usos das memórias
sobre Delmiro Gouveia (1940 - 1980). Recife, 2008. Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.
NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Aracaju: Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Universidade Federal de
Sergipe, 1984.
SEVCENKO, Nicolau. 2 ed. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. vol. 3.
História e Trabalho
356
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: Operários, mulheres e prisioneiros. Tradução Denise
Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Pp.169-170.
357
BEAUVOIR. Simone de. O Segundo Sexo: Tradução: Sérgio Milliet. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1949. P.14
358
Mª Nilza de Jesus (D. Nita), 70 anos. , Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida, Ba.
Entrevistada em 02/12/2005 Duração: 80 minutos.
359
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.584.
360
XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Ediouro, 2000. P.917.
Idade Média viam o trabalho como uma forma de suprir as necessidades humanas, cabendo,
no entanto esta função aos pobres que não tinham como se sustentar, aos ignorantes. O
trabalho intelectual é separado do trabalho manual, algo que se perpetua até os dias atuais.
As trabalhadoras pobres eram vistas na sociedade como pessoas ignorantes, “sem
cultura”. O trabalho braçal, historicamente, sempre foi associado à escravidão, a incapacidade
de desenvolver habilidades intelectuais. Esta idéia explicita os privilégios sociais nos quais os
dominantes justificam seu poder formando uma gama de valores contraditórios, modernos e
arcaicos.
As vivências e experiências dos agentes sociais se estabelecem através das
relações muitas vezes difundida pelos interesses da classe dominante, que fazem questão de
preservar seus valores, criando uma totalidade cultural, desvalorizando os movimentos sociais
e as lutas dos grupos pobres, é o que nos afirma E. P. Thompson, ao escrever contra “o peso
das ortoxias dominantes, em que apenas os vitoriosos são lembrados”361. O cotidiano do
trabalho forma e estabelece um lugar onde o tempo se transforma, na qual a oposição entre a
classe dominante e a classe dominada se opõe numa relação de mudança ou de continuidade.
Com o crescimento das cidades, a expansão da economia capitalista estimulou a
criação de um novo modelo econômico e de produção com o surgimento das fábricas, a
mercantilização de matérias-primas e de mão-de-obra, exigiu a adaptação de homens e
mulheres a um novo ritmo de trabalho passando ao compasso da alta produtividade.
A mão-de-obra passou a ser assalariada, houve diversos movimentos
reivindicatórios e de reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, ocorreram lutas por
melhores condições de trabalho e por salários mais justos e por uma verdadeira justiça social.
No Brasil a partir de 1930, ocorreu a expansão dos direitos trabalhistas, com a
criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio através do decreto lei de 19.433 que
institui a Carteira Profissional e disciplinou a duração da jornada de trabalho. Neste período
também surgiram os Sindicatos Únicos, que contribuíram para a regularização das
convenções do trabalho, estendendo o direito á férias, direito à estabilidade no trabalho, a
licença maternidade, entre outros.
Em 1º de maio de 1940 o Decreto-Lei nº. 2162 instituiu o primeiro salário mínimo
que deveria suprir as necessidades básicas do trabalhador. Sobre este fato há uma crítica
constante no que tange as relações econômicas do trabalho, na qual, a maior parte dos
361
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. 12-13.
Meu marido não queria que eu trabalhasse, dizia que eu não sabia fazer nada,
mas fui trabalhar e aprendi com as companheiras, comecei a ganhar meu
dinheirinho e até o que é meu, comprar coisa pra dentro de casa e pra meus
filhos, trabalhar é uma honra.362
362
Maria Margarida Nunes, 74 anos aposentada, Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do
Almeida, Ba. Entrevistada em 16/12/2005 Duração: 60 minutos
gente era pobre um ajudava o outro.”363. “A memória é um processo individual, que ocorre
em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou
sobrepostas”364. Discorre Portelli.
O companheirismo e a ajuda mútua também faziam parte do cotidiano das
famílias, o sofrimento e as dificuldades eram também compartilhados e muitos homens já
tratavam as mulheres de forma mais condizentes, não se sabe se por sentimento de igualdade
ou uma forma de dividir despesas.
O trabalho não significava apenas o recebimento do salário. Era uma conquista,
supria as necessidades materiais, mas ofereceu as essas trabalhadoras uma ascensão social e
econômica. As mulheres passaram a se sentir ‘sujeito do seu próprio destino’. O trabalho
proporcionou a estas mulheres certo domínio. Sobreviver às custas do marido era algo que
deveria ser superado, neste sentido trabalhar tinha um significado de orgulho e de ter a própria
dignidade, e um sentimento de realização.
A elevação da participação econômica das mulheres, mesmo que em ocupações de
postos de trabalhos de “menor qualificação” é responsável pela mudança de vida destas
mulheres. “Meu marido não queria que eu trabalhasse, aí eu perguntei a ele, se ele tinha
condição de me dá uma casa. A gente morava de favor no fundo das casas dos outros, aí eu fui
trabalhar, fui ganhar o ‘meu’ dinheiro.” 365 desabafa Dona Clemilda.
Para a mulher ter um emprego significa embora isto nem sempre se eleve em
nível de consciência muito mais do que receber um salário. Ter um emprego
significa participar de uma vida comum, ser capaz de construí-la. Sentir-se
menos insegura na vida.366
363
Crispiniana Santos Maia, 77 anos, ex-trabalhadora dos armazéns de fumo – residente em
Conceição do Almeida – Ba. Entrevistada em 14/12/05. Duração: 60 minutos.
364
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética e história
oral. Ética e História Oral. Projeto História no. 15 Revistas do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História-PUC/SP. São Paulo: Educ, abril de 1997, p.16.
365
Clemilda do Amor Divino, 65 anos, aposentada. Conceição do Almeida Ba. Entrevistada em 14/12/2006.
Duração: 70 minutos
366
SAFFIOTI, Helleieth Iara Bongiovani. A Mulher na Sociedade de Classe. Mito e Realidade. São Paulo.
Quatro Artes. 1969. P. 63
367
Mª Nilza de Jesus (Dona Nita), 70 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 02/12/2005. Duração 80 minutos
368
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense. P.148
Este moralismo dominante foi vivenciado com maior força sobre as mulheres de
décadas anteriores ao período deste estudo, no qual, o fato de terem uma profissão, estas eram
estigmatizadas e “associadas à imagem da perdição moral, de degradação e de prostituição”.
Porém, historicamente a participação social das mulheres foi sendo modificada. Ao longo dos
tempos passaram a ter uma participação mais direta nos espaços sociais, políticos e culturais,
“as relações entre homens e mulheres deveriam ser, portanto, radicalmente transformadas em
todos os espaços de sociabilidade (...) A condição feminina, o trabalho da mulher fora do lar,
o casamento, a família e a educação seriam pensados e praticados de uma outra maneira.”370.
Há em muitas mulheres um conflito entre os diversos papéis a que foram
tradicionalmente atribuídas, não é fácil conviver com estas mudanças e diferenças, pois fazem
parte de um conjunto de valores que foram internalizados na sua formação enquanto
mulheres, padrões e regras arbritarias estabelecidas historicamente. “Mulheres tem sido
levadas nos últimos anos, assim a buscar um novo entendimento do seu papel.” 371
Mesmo com estas mudanças no ritmo de trabalho das mulheres, suas
responsabilidades não diminuíram. Passaram a vivenciar um enorme desgaste físico e
emocional, na medida em que assumiam efetivamente esta realidade, trabalhar durante o dia
no armazém e a noite em casa, cuidar de todos os afazeres domésticos, não ter folga nem nos
finais de semana. “No domingo ia lavar roupa na fonte, trançar os cabelos das meninas,
372
arrumar tudo pra segunda-feira, não tinha tempo pra nada,” reforça a idéia do trabalho
contínuo Dona Laura de Jesus, 66 anos, ex-trabalhadora de armazém de fumo. Discurso que é
repetido pelas trabalhadoras dos armazéns, o que sinaliza a fala de Dona Raimunda.
369
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.582.
370
Idem. 14. P.579
371
ROCHA COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: A mulher brasileira nas relações
familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P.62
372
Laura Pereira de Jesus, 66 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 20/08/06. Duração 40 minutos.
Percebe-se que a rotina de trabalho destas mulheres não tinha fim, quando não
estavam nos armazéns, trabalhavam nos lares, as responsabilidades domésticas lhes
pertenciam, ficando os homens eximidos destes deveres. As mulheres trabalhavam nos
armazéns e ainda tinha o dever de cuidar dos filhos e da casa, cozinhando, limpando,
‘cuidando bem do marido’, um trabalho sem fim. Os homens geralmente trabalhavam e
chegavam a casa para descansar, quando realizavam algum trabalho era visto como uma
“mera ajuda” e não uma obrigação a ser compartilhada, já com as mulheres ocorria o inverso.
Esta situação tem suas raízes nos aspectos culturais que naturalizam e
transformam deveres às diferenças biológicas em fatos sociais, construindo com isso uma
desigualdade social que afeta principalmente as mulheres, consolidando comportamentos no
seu cotidiano, se estipulado os “trabalhos próprios de mulheres”, que são afirmados e
reafirmados pela educação formal ou não formal.
O direito ao lazer e ao descanso é algo quase imperceptível nas falas destas
mulheres. O lazer é um direito assegurado a todo trabalhador e trabalhadora como uma forma
de repor energias, quando trabalhando ininterruptamente poderá desenvolver uma estafa física
e mental. “O corpo está às vezes esgotado, à saída da fábrica, mas o pensamento está sempre
esgotado, mais ainda do que o corpo.”374
A dupla jornada de trabalho impõe limitação de tempo, e legitima uma forma de
exploração que inclui a falta de lazer, do direito ao descanso sendo explicita a exploração
duplamente da mulher.
373
Raimunda Ribeiro Cunha, 73 anos Ex-trabalhadora do armazém de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 03 /12/06 Duração: 50 minutos
374
WEIL, S. A condição operária e outros estudos sobre opressão. Seleção e organização de Ecléia Bosi. Rio
de Janeiro: Paz e Terra. P.61
375
SARDENBERG. Cecília Maria Bacellar (Org.) A face feminina do complexo metal-mecânico: mulheres
metalúrgicas no Norte/Nordeste. Salvador: UFBA/FFCH/NEIM; REDOR: São Paulo; CNM/CUT, 2004.p.32.
Marilena Chauí aborda que foi neste processo histórico que estas mulheres foram
se libertando das diversas instâncias de poder que ocorriam entre pai, marido e patrão, mesmo
se sujeitando as leis de dominação de mestres e fiscais, construíram estratégias de resistência
e superação, desmistificando o imaginário criado em torno destas mulheres que eram vistas
como figuras vitimizadas, passivas, coitadas, sem expressão.
Sobre as dificuldades do trabalho há uma observação bastante pertinente no
depoimento da Dona Nair Bispo dos Santos.
376
HELLER, Agnes. Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 1982. P.162
377
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. P. 148.
378
Nair Bispo dos Santos, 70 anos. Ex-trabalhadora de armazéns de fumo, residente em Conceição de Almeida.
Entrevistada em 23-01-06. Duração: 90 minutos
em relação à dupla jornada de trabalho, a preocupação na criação dos filhos, o tempo escasso
até para as necessidades básicas como à alimentação.
O processo de dominação é visivelmente observado no início do diálogo quando a
entrevistada fala do sofrimento, do cansaço, a experiência vivida que denuncia como as
condições de trabalho eram precárias, mas a necessidade de sobrevivência era maior, quando
direciona a idéia de um trabalho “forçado” quase escravo, sem uma remuneração justa. As
palavras deixam marcas na forte expressão e de emoção ao falar dos filhos, buscando uma
evocação religiosa e de fé, como uma força maior que estariam com eles no momento de sua
ausência. “A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do
trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, (...) dos seus sentimentos”. 379
Esta narrativa entrelaça diversas lembranças e várias dimensões da memória que
estão presas a recordações que são pedaços de um cotidiano, na qual se estabeleceram
relações concretas, com o trabalho, com os filhos e com as crenças.
O relato de Dona Nair marca o cotidiano que não pode ser visto particularmente,
mas uma realidade comum a muitas mulheres. No seu depoimento a sua expressão, seus
gestos, mostrava marcas de um cotidiano difícil, sofrido, mas também visto como um esforço
recompensado quando afirma “ser vitoriosa”, apesar de toda difícil experiência vivenciada.
Sobre este tema há um artigo de Edinélia Mª Oliveira Souza que considera relevante á
explicação detalhadas dos gestos e das expressões, na qual é possível entende o cotidiano que
compõe a memória:
379
PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001. P. 07
380
Projeto História, São Paulo (18), maio 1995. Cruzando Memórias e espaços de culturas. Dom Macedo
Costa-Bahia (1930-1960). Por: Edinélia Mª Souza. P. 372-373
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Tradução: Sérgio Milliet. Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira. 1949.
BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: Lembranças dos Velhos. 3ª Ed. – São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico: Tradução: Fernando Tomaz- 3ª ed.- Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2000.
381
Raimunda Ribeiro Cunha (Dona Mundinha), 73 anos Ex-trabalhadora do armazém de fumo. Conceição do
Almeida Ba. Entrevistada em 03 /12/06 Duração: 50 minutos
382
SCOTT. Joan. História das Mulheres. A Escrita da História: Novas Perspectivas/ Peter Burke (Org.). – São
Paulo: Ed. Da Universidade Estadual Paulista, 1992. P.77.
CALDAS, Alberto Lins. Oralidade texto e História. Para ler a história oral. Ed. Loyola,
São Paulo, 1999.
COUTINHO. Mª Lúcia Rocha. Tecendo por trás dos panos: A mulher brasileira nas
relações familiares. Rio de Janeiro: Rooco. 1994.
DEL PRIORE. Mary. História das Mulheres no Brasil São Paulo: Contexto. 2001.
DIAS. Mª Odila Leite Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense. 1995.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991(Tradução Marcos
Santarrita): Companhia das Letras, 1995.
LE GOFF, Jaques. A História Nova. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1995.
ROCHA COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: A mulher brasileira nas
relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
SCOTT, Joan W. Entrevista dada a revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro. IFCS
(UFRJ). V.8, nº1, 1998.
SILVA, Elizabete Rodrigues da. Fazer Charutos: Uma Atividade Feminina. Salvador-Ba,
2001. P.il 2004. Dissertação de Mestrado. UFBA.
_________________A voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
REFERÊNCIAS ORAIS
Entrevistadas:
Esse trabalho tem por intuito analisar o processo de inserção das mulheres nas primeiras
fábricas têxteis em Sergipe entre 1910-1932 demonstrando que o pensamento de que a
libertação feminina viria após a sua admissão no mercado de trabalho mostra-se insuficiente
para entendermos as raízes da opressão da mulher. Não obstante ao fato de que as mulheres
adentraram no âmbito do trabalho produtivo (esfera pública), elas ainda tinham sob sua
responsabilidade todas as tarefas do trabalho reprodutivo (esfera privada). Ou seja, o papel
desigual que a mulher assumiu no espaço público tem origem na esfera privada, haja vista as
condições desiguais de trabalho e a situação de vida que estavam inseridas a qual
explanaremos.
1. INTRODUÇÂO
mesmo “de fora” dele (nas universidades) que é a tendência de confundir “classe operária”
com “movimento operário” ou até mesmo com organizações, ideologias e partidos
específicos383.
Partindo dessa premissa pretendemos resgatar aqui o ofício e a difícil vida das
primeiras operárias em Sergipe, sendo estas sindicalizadas ou não, nas fábricas: Sergipe
Industrial, fundada no ano de 1882, a Fábrica Confiança criada no ano de 1891 (ambas de
Aracaju).
A escolha dessas fábricas e o recorte temporal feito tem haver com os altos
índices de produtividade alcançados no período entre 1910-1930 e noticiado nos jornais da
época, conquistados certamente por causa do número de operários e da super-exploração dos
que nelas trabalhavam.
No que diz respeito à metodologia e a utilização das fontes confrontaremos neste
algumas fontes primárias e orais, tais como: relatórios de presidentes da Província do
referido período, jornais operários (levantamento da Imprensa operária feito pela Profª.
Maria das Graças); entrevistas com duas operárias da fábrica Sergipe Industrial cujos nomes
eram Maria Antônia de Oliveira e Alice Sousa Barros, realizadas no ano de 1990 pelo
Professor Dr. Antônio Lindvado Souza. Além dessas entrevistas, iremos nos valer dos relatos
feitos por Maria Ligia Pina sobre algumas operárias em seu livro: “A mulher na História”.
Ainda reconhecemos neste a importância da literatura como forma de nos trazer algumas
discussões acerca dos fatos da época, por isso usaremos o romance realista de Amando
Fontes, “Os Corumbas”.
Objetivamos por meio deste, contribuirmos para os estudos sobre História Social
do trabalho e aumentarmos a discussão acerca da divisão social e sexual do trabalho
revelando as diferenças existentes dentro da própria classe operária, ao mesmo tempo em que
buscamos fazer através desse estudo uma denuncia as condições de exploração que sofriam
as primeiras operárias, mostrando que o resultado de séculos de opressão, ainda se fazem
presentes nas relações de trabalho atuais. Sendo assim, entendemos a classe operária:
Não como... uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como
algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstradas nas
relações humanas)...a classe acontece quando alguns homens, como
resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra os outros homens
383
HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho. Rio de janeiro: Paz e terra, 2000
A abordagem que será travada tentará fugir do paradoxo que só revela a história
da mulher implícita a do homem não precisando mencioná-la, ou, ao contrário, de forma
fragmentada não percebendo que a História desta, faz parte de um todo.
384
Friedrich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. José Silveira Paes; Apresentação Antonio
Roberto Bertelli.-São Paulo: Global, 1984.
mulher poderia relacionar-se com quem quisesse e da mesma forma os homens porque não
havia necessidade de comprovar a paternidade, as crianças eram criadas pelos clãs e estes
tratavam todas as mulheres do clã de “mães” (gens materna). Se morresse um proprietário de
rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs e aos filhos destes
últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos seus próprios filhos, eram
deserdados. 385
Com o surgimento da propriedade privada e a divisão do trabalho entre os sexos o
homem acabou acumulando mais riquezas que a mulher, fazendo com que ele adquirisse
assim uma posição mais importante na família e consequentemente nascendo nele a idéia de
utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de sucessão
tradicional. Para tanto era necessário romper a linhagem materna e estabelecer agora uma
linhagem paterna e foi assim que foi estabelecido o Patriarcado.
Destarte, com a reversão do direito materno o homem passou a governar também
na casa, fazendo com que a mulher se tornasse sua escrava, um simples instrumento de
reprodução. Tal divisão sexual do trabalho se manteve a longo do processo histórico e foi a
apropriado pelo modo de produção capitalista para hierarquização do modo de produção e
reprodução do capital e o arraigamento da exploração da mais-valia feminina.
É por isso que durante muito tempo, com base em tal visão, vários pensadores e
movimentos feministas consideravam que o processo de emancipação feminina passaria
necessariamente pela sua inserção no mundo do trabalho produtivo.
No entanto, ao contrário do que se pensava de forma limitada, quando Engels
afirmava que na família o homem é o burguês e a mulher o proletário, ele fazia mais que uma
simples analogia. Ele apontava para o fato de que a exploração da mulher não se esgotaria
com a sua inserção nas relações de produção, mas que tem um condicionamento básico no
seu papel dentro da família. 386
385
IDEM, ibdem
386
ALVES, Branca Moreira. Ideologia IN: Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Ed.Vozes, RJ,
1980, p. 25-63.
não havia condições de conciliação das duas esferas. Comumente as mulheres ficavam
trabalhando na fábrica até se casarem, depois retornavam aos seus lares, a não ser que seus
maridos não tivessem condições de provê seu sustento.
Podemos perceber também que as tarefas domésticas continuaram sendo
incumbências da mulher e foi dessa forma que se estabeleceu a família operária patriarcal:
marido provedor e esposa provedora complementar e dona-de-casa ratificando a injusta
divisão sexual, pois as mulheres acabavam sofrendo uma dupla jornada de trabalho.
Nos dias de “folga” a mulher acabava trabalhando ainda mais em seus lares, não
lhe restando tempo algum, seja para o lazer ou para organização política. Vejamos o relato de
D. Antonia (ex-operária da Sergipe Industrial):
387
Mensagem a Assembléia Legislativa do presidente do Estado Mons. Olímpio Campos em 07 de setembro de 1900.
388
Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1919 ao instalar-se a 3ª sessão ordinária pelo Cel. Dr. José Joaquim
Pereira Lobo, presidente do Estado.
389
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. A indústria têxtil em Sergipe: Gênese, crescimento e limites de uma
indústria periférica IN: Economia regional e outros ensaios, org. Nilton Pedro. São Cristóvão: UFS, 2001.
somente em casos raros o patrão dispensava uma operária de tal obrigação, até porque em
muitas fábricas ganhava-se por produção o que acabava estimulando a competição, sem falar
que isso se fazia necessário para garantir a sua sobrevivência.
Esse rígido controle imposto pelos capitalistas era uma tentativa de disciplinar os
operários, por isso a exigência no cumprimento de uma série de horários, para almoçar, para
chegar à fábrica etc. e quem chegasse um pouco atrasado não poderia entrar na fábrica.
Não obstante a todos esses fatores que prejudicavam a integridade física dos
operários estavam às condições de moradia bastante desumanas a que eram submetidos,
390
Entrevista realizada com a ex-operária Alice Souza Barros (1990).
391
IDEM
392
Voz do Operário. Aracaju, n, 28 de fevereiro de 1932, BPED,Sergipe, extraído de ROMÃO, Frederico.
393
Depoimento de Dona joaninha, ex-operária da Sergipe Industrial, extraído de ROMÃO, Frederico. Na trama da
História: o movimento operário em Sergipe, 2000.
394
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990), sobre a doença que a proibiu de trabalhar.
somente a minoria tinha condições de se estabelecer nos bairros próximos das fábricas, a
maioria do operariado precisava ir para locais distantes mais condizentes com a sua realidade
financeira. Como as residências não se situavam perto das fábricas, para se chegar a ela no
horário estabelecido era necessário acordar ainda pela madrugada e andar quilômetros,
apontando para a ocorrência de que não sobrava tempo algum para as operárias, pois
retornavam a noite para fazer algumas atividades domésticas e descansar (muito pouco) para
o outro dia de trabalho.
Numa entrevista realizada com uma operária de nome Maria Antonia de Oliveira
que trabalhou em média trinta anos na Fábrica Sergipe Industrial, podemos constatar a
precariedade das condições de moradia:
Morava em casa de palha. Essa casa daqui caiu. Era de vara. Naquele tempo
tinha aqueles invernos fortes, a chuva vinha e derrubava tudo. (Dentro da
casa) Cada qual tinha seus banquinhos para se sentar. Quando o inverno era
muito forte entrava água até os quintais. Eu, por exemplo, e todas as
operárias para dormir tinham que colocar os chinelos em cima... senão a
água tomava conta. 395
395
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990)
396
Voz do operário. Aracaju, maio de 1921.PDPH,UFS,SE, levantamento da Imprensa operária.
Foi Misael, o contramestre da minha seção... safado! Uma vez me deu uma
palmada nas cadeiras. Mas eu desgracei logo com ele. Gritei-lhe: atrevido,
moleque!... Hoje só porque eu cheguei um pouquinho mais tarde - ainda
não tinha fechado o ponto – o infame disse que eu não entrava mais nesse
quarto. E veio logo com enxerimentos: Se eu quisesse esperar por ele de
noite,... Nem deixei que ele acabasse... xinguei tudo e vim m’embora... com
toda certeza o miserável vai dar parte de mim... Não houve explicações...
que tivessem força para manter o seu emprego (dela) na Sergipana
(fábrica). (FONTES 1933:25, 28-29)
Mas não foi só na literatura que essas práticas sórdidas se fizeram presentes.
Ocorrera aqui o caso da operária Pureza Farias, que trabalhava na fábrica Sergipe Industrial e
era associada ao Centro Operário Sergipano. Ela foi reclamar ao centro operário contra as
investidas e o tratamento agressivo do contramestre Odilon Torres, que também era
associado ao COS. Por isso os associados como forma de fazer justiça e apresentando-se
como “defensores da moral das mulheres trabalhadoras” acabaram se unindo para agredir
Odilon. A ação acabou tendo uma repercussão horrível para o Centro Operário Sergipano,
fazendo com que o presidente do Estado interviesse e boicotasse o centro.
Como demonstração mais nítida desse triste episódio, expressaremos uma outra
denúncia feita pelo jornal operário: O contramestre da fábrica Confiança tentou seduzir,
ameaçar e agredir a tecelã daquela fábrica, Maria Silva. A operária fora reclamar ao gerente
Sr. João Silveira e este não tomou providência alguma.
Vale ressaltar que toda essa trajetória de exploração que envolve a classe operária
e em especial a mulher em sua formação perdurou por muitos anos. Apesar da anunciação de
vários avanços no sentido de conquistas de direitos, como por exemplo: a licença
maternidade, construção de creches, salas de amamentação próximas à fábrica dentre outros
decretos acordados entre os industriais e o presidente estadual, esses avanços não foram
colocadas em voga devido à intransigência de alguns patrões.
5. CONCLUSÕES
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALVES, Branca Moreira. Ideologia IN: Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no
Brasil. Ed.Vozes, RJ, 1980. P.25-63.
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930-
Rio de janeiro: Paz e Terra, 1985.
___Trabalho Feminino e sexualidade IN: História das mulheres no Brasil, org: Mary Del
Priore, São Paulo: Contexto, 2005.
SANTOS, Ana Maria. A mulher operária: artesã da história na “cidade sem lei”... Estudo das
relações sócias e de produção que envolve a mulher no processo produtivo na Copervest.
(1983-1998). São Cristóvão: Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe,
1999.
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. A indústria têxtil em Sergipe: Gênese, crescimento
e limites de uma indústria periférica IN: Economia regional e outros ensaios, org. Nilton
Pedro. São Cristóvão: UFS, 2001.
THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. 2ª ed. Paz e Terra, 1978.
7. FONTES
Impressas:
-O Operário (1915-1916)
Orais (entrevistas):
Rio Fundo, uma vila emancipada em 1962 como o nome de Muniz Ferreira, possuía um
comércio ativo e uma feira livre movimentada em sua praça principal, além de uma estação da
Estrada de Ferro de Nazaré, a Train-Road. Contudo, em um intervalo de treze anos, a vila foi
arrasada por três enchentes do rio Jaguaripe que corta a cidade. Essas enchentes foram a “gota
d’água” que faltava ao processo de estagnação e posterior decadência do comércio e da feira
livre da vila. As casas comerciais foram derrubadas pelo Jaguaripe e os moradores já não
tinham mais condições de reconstruí-las, pois também a Train-Road, principal responsável
pela exportação dos produtos da vila, entrara em decadência. Esta pesquisa, em andamento,
pretende analisar a vida cotidiana em Rio Fundo, seu processo de decadência e como as
transformações ocorridas afetaram o modo de viver dos munizferreirenses e contribuíram para
a construção de uma memória de exaltação da referida vila e ao mesmo tempo de desprezo
pela cidade atual, a qual consideram “atrasada”. É intenção compreender por que as
dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são “esquecidas” pelos munizferreirenses
que viveram tal período e somente a “fartura” do comércio e da feira livre é lembrada,
construindo representações de uma Rio Fundo digna de orgulho e saudade.
O povoado de Rio Fundo397 já era conhecido no século XVIII, pois foi citado
como trecho de estradas administrativas da Freguesia de Jaguaripe em documento datado de
1796 até 1799.398 Então, pode-se afirmar que Rio Fundo surgiu em torno de uma estrada
397
Rio Fundo foi o nome do povoado até este ser elevado à categoria de vila em 30 de novembro de 1938 já com
a denominação de Muniz Ferreira, em homenagem ao filho da terra Dr. Manoel Muniz Ferreira, médico e
provedor nos anos 1919/1920 da Santa Casa de Misericórdia de Nazaré. No entanto, até hoje, alguns moradores
se referem à cidade como Rio Fundo. Por isso, este trabalho adotará esta denominação para a vila, em
consonância com a memória de seus habitantes e só se referirá a Muniz Ferreira após a emancipação política da
cidade.
398
Maço Freguesia de Jaguaripe. Arquivo Público da Bahia.
vicinal, a qual passava por dentro da fazenda de Antonio Francisco Tinta, o Barão de
Taitinga. Embora não fosse a única fazenda existente naquela região, a Fazenda Paracoara
destacava-se dentre as demais por, além de ser propriedade de um Barão do Império, era
grande produtora de cana-de-açúcar, mandioca, café e fumo na região. Além disso, o trecho
da estrada administrativa passava por dentro de suas terras e, quando da chegada da tão
esperada ferrovia nazarena, a Train-Road, recebeu seus trilhos a poucos metros de sua sede, e
ainda foi presenteada com uma estação. O trem trazia consigo um adjetivo de progresso para
aquela época e, por isso, o povoado de Rio Fundo foi crescendo também embarcado no
transporte do desenvolvimento.
O pequeno povoado possuía, já na década de 1930, muitos comerciantes que
estabeleceram suas casas comerciais seguindo o curso do rio Jaguaripe que corta a localidade,
na qual, nesta época, já existia uma praça principal, local de compra e venda de mercadorias
na tão relembrada feira livre.
Rio Fundo pertencia à cidade de Nazaré, à qual estava atrelada econômica e
politicamente. Os diversos comerciantes eram cadastrados no governo municipal de Nazaré.
A ele pagavam os impostos, mas dele não recebia os serviços dos quais necessitavam. Embora
este comércio abastecesse os povoados e fazendas circunvizinhas, além de exportar produtos
para outras localidades do estado da Bahia pela estação ferroviária existente na vila, os
recursos municipais não eram aplicados ali para garantir melhorias. Por causa disso, vários
comerciantes começaram a protestar contra a cobrança de impostos pela prefeitura de Nazaré.
O Sr. Pedro Antonio, proprietário de um prédio à Rua Siqueira Campos em Rio
Fundo, a 29 de abril de 1939, vem solicitar ao então prefeito de Nazaré, “a exclusão do
mesmo do imposto predial urbano visto como a referida rua não tem calçamento nem
iluminação e assim preceitua estar isento de referido imposto”399 . Este foi apenas um dos
inúmeros proprietários que solicitaram ao prefeito de Nazaré a exclusão de seus nomes do
imposto predial urbano, todos pelos mesmos motivos, em ruas diferentes. Contudo, todos
estes pedidos foram negados e nenhuma melhoria foi feita na vila em decorrência disto.
Quanto à feira livre localizada na praça central, hoje Praça Barão de Taitinga, os
feirantes para ela acorriam não só da própria localidade, mas das fazendas circunvizinhas e
dos povoados próximos para venderem seus produtos e também comprarem aqueles dos quais
necessitavam. Embora houvesse um projeto para a construção de um mercado municipal por
parte do governo de Nazaré (projeto que ficou apenas no papel), não havia estabelecimento
399
Livro de Expediente Geral, Governo do Município, 1938-1940, p. 81. Arquivo Público de Nazaré.
público destinado ao trabalho dos feirantes. No entanto, tudo seguia a uma lógica própria
destes trabalhadores que, em sua prática diária, demarcavam os locais para a venda de acordo
com o tipo de produto: verduras, frutas e hortaliças, por exemplo, eram expostas em esteiras
em frente à Igreja Católica.
Os vendedores que vinham de outras localidades não tinham como trazer barracas,
posto que as mesmas precisavam ser removidas da praça após a feira. Esta ocorria aos
sábados até o entardecer, pois os feirantes e fregueses precisavam voltar para as suas casas,
muitas em regiões afastadas, e era necessária a luz do sol para clarear o caminho, já que não
havia eletricidade, nem automóveis com seus faróis. As pessoas se deslocavam a pé ou,
quando muito, montados nos lombos dos seus animais.
Os feirantes que moravam em Rio Fundo poderiam se considerar “privilegiados”,
pois tinham suas barracas para protegê-los e a seus produtos do sol e da chuva. Em seu
cotidiano, acordavam cedo para armar suas barracas, cada um já tinha o seu local estabelecido
que conquistara no seu viver diário de trabalho na feira livre. Suas barracas, cobertas de lonas,
eram, após as horas de labor, retiradas da praça e transportadas para as residências onde
ficavam guardadas até o próximo sábado de feira.
Além desses feirantes, existiam os ambulantes que vendiam suas mercadorias
andando pelas ruas e, principalmente, na estação ferroviária para os passageiros que ali
chegavam ou paravam, que estavam apenas de passagem. A Train-Road, cujo trem
movimentava ainda mais o comércio e a feira, visto que ele trazia mercadorias para Rio
Fundo e levava para outras localidades os produtos dali, trazia pessoas que se tornavam
fregueses desses vendedores ambulantes que trabalhavam nas imediações da estação,
principalmente, à hora da parada do trem, para venderem seus produtos, tais como camarões
torrados e água.
Homens, mulheres e crianças, passageiros do tão famoso trem, estendiam suas
mãos para esses vendedores ambulantes, comprando seus produtos, contribuindo para a
manutenção de um comércio típico de locais movimentados. Essa atividade perdurou até o
fechamento da estação ferroviária com a desativação da Estrada de Ferro de Nazaré. É certo
que, quando a Train-Road entrou em decadência, essa atividade também começou a declinar.
A década de 1930 e até final de 1940 passaram para Rio Fundo como anos de
fartura e abundância. Novas casas comerciais surgiam, as exportações via Train-Road e via
porto de Nazaré continuavam. Mas, a partir de 1945, “aparecem nitidamente os sintomas que
marcavam a sua (Train-Road) decadência.” (CARLETTO, 1979, p.79). Segundo Carletto,
um dos fatores responsáveis pela crise ferroviária que se manifestava claramente no Brasil
após 1945, era a concorrência do transporte rodoviário que começou a absorver grande parte
dos transportes, diminuindo as toneladas transportadas pelas Estradas de Ferro, reduzindo, por
conseguinte a sua renda bruta (p.204). Toda esta crise no setor ferroviário em âmbito nacional
chegou à tão pequena e próspera vila de Rio Fundo. O seu principal meio exportador, a
locomotiva, começa a entrar em decadência em virtude da preferência crescente pelo
transporte rodoviário que, ao poucos, passou a realizar o trabalho característico das vias
férreas: “o carregamento de grandes massas a grandes distâncias.” (CARLETTO, 1979,
p.206).
Além de tudo isso, como já foi dito anteriormente, Rio Fundo estava atrelada
econômica e politicamente à Nazaré. Portanto, juntando-se aos fatores nacionais, existiam os
fatores locais que desencadeavam a decadência da sede e, por conseguinte, da vila. Entre estes
fatores locais, o mais importante foi a redução da produção agrícola da região. A diminuição
das safras, ao lado da concorrência rodoviária. (CARLETTO, 1979, p. 207)
Desta forma, a partir do final da década de 1940, Rio Fundo começa a declinar
economicamente. As exportações diminuem e cessam a abertura de novos estabelecimentos
comerciais. No entanto, os comerciantes e feirantes continuam sua vida cotidiana, enfrentando
as transformações históricas que estavam ocorrendo em sua vila. Contudo, a crise teria um
agravante, a enchente do rio Jaguaripe no ano de 1947. Esta foi a primeira das três grandes
enchentes que transformaram Rio Fundo, desde a sua economia até a vida cotidiana dos
habitantes, permanecendo na memória de quem as vivenciou.
Carletto aponta a enchente de 1947 também como um fator de agravamento da
crise da Train-Road. Esta cheia atingiu “ toda a zona servida pela ferrovia, abrindo aterros,
(...) deslocando a linha, (...) desorganizando tudo, enquanto, de parceria, chuvas copiosas
desabaram, destruindo culturas impedindo o rápido escoamento das águas.” (p. 214). Além
de todo este estrago feito à ferrovia, principal elo do comércio de Rio Fundo às zonas
receptoras de seus produtos, as águas do Jaguaripe inundaram a vila deixando muitos estragos
para os comerciantes e moradores.
Cinco anos se passaram em meio às mudanças que estavam ocorrendo, mas a vila
continuava com a sua “rotina”: sua feira livre na praça e seu comércio. Até que, em novembro
de 1952, uma nova e mais impetuosa cheia do rio Jaguaripe inundou repentinamente a vila,
levando em suas águas grande parte das casas comerciais, as quais se estabeleciam à margem
do rio. Levou também muitas residências, deixando para trás um rastro de destruição e dor.
Esta cheia de 1952 é a mais lembrada pelos moradores da então cidade de Muniz
Ferreira. Ela faz parte do imaginário de quem a vivenciou e, para estes, foi o grande fator que
contribuiu para a decadência do comércio e feira da vila. O Sr Valdomiro escreve sobre ela
em seu livro de memórias:
Em 1952, é que tivemos a maior cheia dos dois rios. (...)Dentro da vila de
Muniz Ferreira, as ruas mais baixas estavam sendo invadidas (...). Ao meio
dia já havia derrubado todas as casas da Rua Nova Nazaré, as da
comunidade do Pedrão e chegado à cumeeira das casas de palha da Rua da
Linha e do Sapo, e chegado a lateral da estação ferroviária. (...) Na Rua
Nova Nazaré, a altura da água chegou a seis metros aproximadamente do seu
nível normal. O maior estrago foi o do empresário Olavo de Souza Barreto,
por haver perdido a sua bela casa residencial localizada no início da Rua
Nova Nazaré, a destilaria, depósito, três casas geminadas anexo, toda a
matéria-prima e produto estocados, localizados junto a ponte do riacho Rio
Fundo. 400
400
Manuscrito do livro de memórias do Sr. Valdomiro Figueiredo, morador da cidade de Muniz Ferreira.
águas levaram as casas residenciais e comerciais que estavam instaladas na praça e ruas que
margeavam o Jaguaripe. Os comerciantes que viveram a enchente de 1952 novamente tiveram
seu patrimônio destruído pelo rio e agora estavam em situação pior, pois não tinham de onde
tirar recursos para se reerguerem. Sem a ajuda extra de Nazaré, também arrasada pelas cheias,
os comerciantes e feirantes amargaram a nova tragédia que se abateu sobre a vila e, aos
poucos, foram tentando reconstruir dos destroços as suas casas. Mas o comércio nunca mais
se ergueu como antes.
Mais do que as marcas materiais deixadas pelas águas do Jaguaripe na vila, esses
episódios deixaram marcas na memória de seus habitantes que começaram a construir a
imagem de que ali, onde eles moravam, nada mais “vai para frente”. Talvez a partir daí, uma
representação de Rio Fundo começou a ser elaborada pelos seus moradores, até porque,
passando por essas inúmeras dificuldades, a vila foi emancipada com o nome de Muniz
Ferreira a 30 de julho de 1962. Começou um novo tempo, de cidade, imbuída em problemas
econômicos e sociais. Assim, “cristalizou-se” na memória dos agora munizferreirenses a
representação de Rio Fundo enquanto vila próspera, lugar bom para viver, digno de orgulho e
saudade, pois se deparavam com uma recente cidade na qual faltava a “fartura” do comércio e
da feira livre. Os munizferreirenses tiveram que construir novos modos de vida em uma
cidade que “depende” economicamente da vizinha Santo Antonio de Jesus.
Não obstante, Rio Fundo, embora com um comércio ativo e feira livre (atualmente
inexistente), era um lugar de ruas sem calçamento, com iluminação deficiente, sem hospital
ou qualquer médico. Fora as ruas do centro, as ruas periféricas eram constituídas de casas de
taipa e a água para consumo, carregada em baldes, era de riachos e do rio, pois o sistema de
abastecimento de água só veio a ser implantado em 1973. Ou seja, a “fartura” não era para
todos.
Por que, então, as dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são
“esquecidas” pelos munizferreirenses que viveram tal período e somente a “fartura” do
comércio e da feira livre é lembrada? Por que os munizferreirenses construíram
representações de Rio Fundo como lugar digno de orgulho e saudade?
Tendo em vista que a história não é fechada em si, mas passível de várias
interpretações, não há como reconstruir o passado como ele foi de fato. Assim, segundo
Darnton (1998), a história não está presa a um passado estático no tempo. É mediante o
contato com o passado, algo que só se consegue através das fontes, que o historiador altera o
sentido do que possa vir a ser conhecido. O historiador, portanto, não deve ser categórico em
suas conclusões, pois, de acordo com a reflexão de Darnton (1998, p.37), o que vemos hoje no
material que nos chega às mãos enquanto fonte histórica de determinado fato, pode não ser a
mesma visão que os contemporâneos deste fato possuíam a seu respeito. Uma mesma fonte
pode ser utilizada por historiadores diferentes e estes darem-lhe interpretações diversas, ora
divergentes, porque cada um a olhará de uma maneira (GINZBURG, 1991, p.204).
Assim, como perceber as representações elaboradas pelos munizferreirenses a
respeito da vila de Rio Fundo? Como compreender porque somente as “coisas boas” dessa
vila são recordadas pela imensa maioria de seus moradores? No entanto, a recordação
somente de coisas boas não assegura que somente elas foram registradas na memória.
Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar informações e
remete-nos, num primeiro momento, a um conjunto de funções psíquicas que capacitam os
indivíduos atualizar impressões ou informações passadas ou que se julguem passadas. A
memória, para Le Goff, é mais ainda: é o objeto e a própria matéria-prima da história. A
memória é a matéria-prima e a história é a interpretação dessa matéria prima. (LE GOFF,
2003). Como elaboração a partir de variados estímulos, a memória é sempre vista em diversos
estudos enquanto uma construção feita no presente a partir de vivências/experiências
ocorridas no passado.
Para Maurice Halbwachs (2006) a memória aparentemente mais particular que se
conheça remete a um grupo. O indivíduo traz em si a lembrança, mas ele está sempre
interagindo com a sociedade, seus grupos e suas instituições. É no contexto destas relações
que os indivíduos constroem as lembranças, sendo que a rememoração individual se faz na
contextura das memórias dos diferentes grupos com os quais estes indivíduos se relacionam.
Assim, Halbwachs diz que existem dois conceitos de memória: a individual e a coletiva e,
fazendo uma análise dos aspectos que envolvem esses dois tipos de memória, afirma que são
indissociáveis e que o individual está estritamente ligado ao coletivo.
A perspectiva de Halbwachs é a de que a formação dessa memória comum se dá
mais por afinidades afetivas, por trajetórias comuns. Esses aspectos são apresentados pela
História Oral na medida em que privilegia grupos sociais minoritários, excluídos,
marginalizados, e se utiliza das suas narrativas para propor “outra história”, outra visão, ou
visões, de determinada realidade.
Poderíamos dizer, de maneira geral, que a memória constituída por grupos
formados a partir desses conceitos e procedimentos operacionais específicos seja uma
memória “não-oficial”. Não somente porque se preocupa com os excluídos, mas,
principalmente, por se interessar por questões desprezadas pelo conhecimento formal como,
por exemplo, os silêncios, as mentiras, as múltiplas versões, as hipérboles da lembrança, os
segredos. No entanto, a memória constituída pela História Oral deve estar preocupada não em
reforçar os vínculos comuns, as fronteiras sociais, mas permitir que as contradições e
subjetividades das pessoas, que virtualmente compõem a razão inicial do projeto de pesquisa.
Dessa maneira, poder-se-ia verificar os confrontos entre a memória individual e a memória
coletiva, na medida em que a constituição da memória está, segundo Halbwachs (2006),
relacionada com o convívio entre pessoas que vivenciaram algo em comum e com o presente
que irá estimular a lembrança.
Para Ecléia Bosi é necessário que o pesquisador sofra de maneira irreversível o
destino dos sujeitos observados, criando “um vínculo de amizade e confiança com os
recordadores” (1998, p. 37). A partir de uma postura de entrega, expressa prática e
teoricamente pelos sujeitos envolvidos (pesquisador e recordadores), formam uma
“comunidade de destino”, criando as condições para que “se alcance a compreensão plena de
uma dada condição humana” (1998, p. 38). Esta pesquisa seguiu o ponto de vista que Ecléa
Bosi deixou claro em seu trabalho:
Desta forma, a fartura da feira livre e do comércio da vila de Rio Fundo foi o tema
que primeiro se apresentou na fala dos entrevistados. Todos relembraram esse período com
muito orgulho como se esses anos “áureos” do comércio na praça compensassem o tempo
presente em que não há feira na cidade de Muniz Ferreira:
Tinha feira, tinha feira no meio da rua, açougue, era meio mundo de gente,
era dois só? Só dois matano boi? Teu avô João Figueiredo, o pai de Galo
Moreira matava boi, Cravinho, Augusto Preto, o pai de finada Lina, era
Alencar, tudo era, num dia de sábado matava esse boi tudo e vendia tudo.
Era meio mundo de gente porque tinha feira. Era feira... esses pessoal da
roça vinha tudo pra feira aí. Era feirona! Feirona mesmo! A feira era o dia
todo. 401
401
Entrevista com Maria Antônia Campos, ex-trabalhadora rural, aposentada, moradora da cidade de Muniz
Ferreira.
Pessoal daí das roça tudo vinha fazer feira aqui. Eu vendia farinha, vendia
farinha, vendia batata. Era! Era feirona! Agora que não, que quando dá dez
hora acabou a carne, não tem mais nem carne. Naquele tempo não tinha
supermercado não. Só era feira, os negócio era no meio da feira e na rua.402
O comércio não era como hoje. Agora, tinha até feira no meio da rua! (...)
Tinha açougue no meio da rua, era bem divertido. Tinha barraca... meu pai
mesmo tinha barraca no meio da rua de carne de sol, feijão, ele vendia feijão,
milho, requeijão, amendoim, farinha... toda semana tinha farinha... era assim
no meio da rua sem cobertura sem nada. Verdura era mesmo no passeio, na
igreja, ali na Comac. Era as verduras ali, eles forravam e colocavam as
verduras tudo ali, qualquer coisa, fruta, galinha... ali, todo mundo passava
ali. A gente escolhia as coisas ali pra comprar, fruta, verdura... verdura tudo
fresca, era tudo verdura de roça, não é como hoje tudo verdura encaixotada,
verdura melhor que a de hoje porque não tinha agrotóxico; era verdura boa
mesmo, tomate bom, quiabo, tudo fresquinho, bom... Tinha de tudo na feira
para quem quisesse comprar.403
402
Idem.
403
Entrevista com Nicilda Campos Santos da Silva, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.
Essas pessoas que traziam da roça as coisas vendiam pr’aqui, pra feira.
Também no tempo do trem eles vendiam na hora que chegava o trem, aí
saíam: “Olha o não sei que lá!” Aí saíam assim, como o povo vende assim,
como tem em Bom Despacho aqueles meninos que saem vendendo assim.
Florzinha vendia água, Camarão vendia camarão, Marinalva, todo mundo. 404
404
Entrevista com Maria Conceição Santos, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.
405
Expressão muito utilizada por Antonia Campos Santos.
Guardam informações relevantes para os sujeitos e têm, por função primordial, garantir a
coesão do grupo e o sentimento de pertinência entre seus membros.
Assim, analisando as memórias dos entrevistados sobre o viver em Rio Fundo,
podemos perceber que essa memória foi reelaborada e que ela é seletiva, construindo
representações desta vila mediante o olhar das próprias pessoas que vivenciaram tal período.
Isto é muito relevante para a história, pois “aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu
(...) pode ser tão fundamental quanto aquilo que de fato aconteceu”. (THOMPSON, 2002,
p.184). É um olhar sobre o viver em Rio Fundo sob a perspectiva da memória dos
entrevistados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 5 ed., São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. 3 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
Esta comunicação tem como tema a análise de lutas de representação travadas em torno da
imagem de nação moderna para o Brasil através da perspectiva do literato Lima Barreto
acerca das transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A
partir da análise dos romances, contos, crônicas e correspondências desse autor, objetivamos
discutir a sua percepção da apropriação pelas elites cariocas das representações de
modernidade forjadas na Europa e a forma como expressa a relação das camadas populares
com aquele espaço urbano modernizado. Diante disso, concluimos que as imagens textuais
produzidas por Lima Barreto salientam os diferentes usos do espaço urbano carioca, discutem
as contradições da modernização imposta pelas elites e sugerem alternativas a esta.
Afonso Henriques de Lima Barreto foi um escritor que viveu entre 1881 a 1922 na
cidade do Rio de Janeiro, produzindo seus textos entre os anos de 1902 a 1922. Mulato, de
origem pobre, conseguiu com muita dificuldade concluir seus primeiros estudos com certa
desenvoltura. No nível superior, deparou-se com problemas relacionados às condições de
sobrevivência de sua família e outros decorrentes de suas relações na Escola Politécnica do
Rio de Janeiro.
Diante disso, não concluiu o curso de Engenharia e teve que trabalhar como
amanuense na Secretaria de Guerra para garantir o seu sustento e de sua família. Contudo,
isso não o impediu de se dedicar também a sua grande paixão: a literatura. 406
A sua trajetória nesta atividade, marcada por discriminações e dificuldades
financeiras, foi sendo traçada a partir da leitura de autores internacionalmente reconhecidos
como Balzac e Dostoiévski e dos contatos com outros intelectuais brasileiros, através dos
406
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1975
407
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. BARRETO, Lima.
Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomos I e II)
408
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67-68.
409
SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República das Bruzundangas”. In: SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. p. 198.
410
BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: FERREIRA,
Jorge & DELGADO, Lucílio. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da
república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 233–286.
411
O Bota-abaixo, como ficou conhecida esse momento inicial da reforma urbana no Rio, iniciou-se em 1903.
412
PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e
Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.
maior segregação social, refletindo na organização do espaço urbano a ordem pretendida pelo
regime republicano.
A partir das suas personagens e das suas opiniões expressas em crônicas, artigos
de jornais e anotações íntimas, Lima Barreto constrói imagens textuais que nos fazem
percorrer esse Rio modernizado. A partir delas, tece uma discussão sobre a constituição da tão
proclamada chegada da civilização no Brasil que era defendida por boa parte dos literatos de
sua época bem como pelas elites política e econômica do país.
O grande veículo que possibilitava o diálogo entre a produção fortemente
contestadora de Lima Barreto e dos demais literatos era a imprensa. A imprensa foi
responsável pela publicação de muitas obras literárias e meio de sobrevivência para autores
que lhe prestavam serviços com a produção de reportagens, críticas literárias, crônicas e
contos. Além disso, nesse início de século XX, teve papel importante na divulgação de novos
hábitos de consumo, novas práticas de diversão bem como veículo de apoio ou oposição
política.413
E é justamente em seu trabalho na imprensa que encontramos Lima Barreto em
março de 1921, em uma crônica publicada na revista Careta. Nesta crônica, intitulada
414
“Leitura de Jornais” , Barreto tece comentários sobre o embelezamento da cidade a partir
de notícias veiculadas por dois jornais da época, afirmando, logo de início, que esse
embelezamento ia além das “questões de higiene e de assistência que elas também
reclamam”.
A fim de comprovar sua afirmação de que, depois da proclamação da República,
passamos a obedecer à regra seguida “no mundo inteiro” de erguer monumentos, porém “com
o caráter cenográfico, que nos é próprio”, Lima Barreto destaca a notícia do O Jornal que
lamentava que o governo não tivesse realizado a construção de um “stadium” no Leblon
(bairro da zona sul do Rio e um dos locais de residência das famílias abastadas). Depois,
discute outra publicada no jornal O Dia que relatava a condição deplorável de habitações
populares no Rio e a solução encontrada pelo governo de Buenos Aires (exemplo de cidade
moderna, civilizada na América Latina naquele momento) que ofereceu casas com ótimas
condições para seus moradores.
Com boa dose de ironia, Barreto denuncia o descaso do governo pelos menos
favorecidos, o caráter elitista e autoritário da modernização da cidade, evocando os
413
Ver BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005. MARTINS, Ana
Luiza & LUCA, Tânia Regina de.Imprensa e Cidade. São Paulo: UNESP, 2006.
414
BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 103 – 106.
acontecimentos da Revolta da Vacina de 1904 e, com isso, fornecendo ao leitor uma versão
diferente em relação à divulgada pelo poder estatal no início do século para justificar a
vacinação obrigatória415. Além disso, deixa explícita a tensão presente na sociedade carioca
quanto aos “melhoramentos” na cidade.
A preocupação com o caráter cenográfico da modernização da cidade que aparece
nessa crônica “Leitura de Jornais” é algo presente no autor desde o início da reforma do
prefeito Pereira Passos. Em suas anotações pessoais de janeiro de 1905416, Lima Barreto
registra a sua passagem, no dia 26 de janeiro, pelo centro da cidade e identifica algumas
modificações nas ruas.
Ele reconhece que as modificações tornarão o ambiente belo, porém acredita “que
o Rio, o meu tolerante, bom e relaxado, belo e sujo, esquisito e harmônico, [...] vai perder, se
não lhe vier em troca um grande surto industrial e comercial; com suas ruas largas e sem ele,
será uma aldeia pretensiosa de galante e distinta, [...]”.
A perspectiva apresentada pela imprensa através da manchete “As festas da
417
República” do jornal A Tribuna (16/11/1905) e da crônica assinada por Bilac intitulada
“Inauguração da Avenida”418 e publicada na Gazeta de Notícias (19/11/1905), ambas
referentes à inauguração da Avenida Central ocorrida no dia 15/11/1905, é bem otimista
quanto à modernização da cidade, se comparada com a impressão de Lima Barreto meses
antes, acima demonstrada, na qual imperava a dúvida.
O jornal A Tribuna aponta a inauguração da “monumental Avenida” como algo
que bem caracteriza o aniversário da República e “a aurora luminosa de um futuro grandioso”,
lamentando apenas que o entusiasmo popular não pôde corresponder às expectativas devido à
forte chuva que caiu no dia da inauguração.
Já Bilac narra, em sua crônica, a admiração do povo pela avenida e explica que,
se até aquele momento não houve aclamações, isso devia ao choque que aquele ambiente
moderno provocara, salientado que esperava uma “revolução moral e intelectual” da
população “em virtude da reforma material da cidade”.
Lima Barreto, no entanto, aprofunda mais a sua visão crítica com o passar dos
anos e procura discutir os referenciais que eram tomados como representativos de uma nação
415
Essa evocação também está presente em BARRETO, Lima. Recordação do Escrivão Isaias Caminha.
Erichim: EDELBRA, s/d. Para maiores detalhes e esclarecimentos, ver GRUNER, Clovis. De uma revolta a
outra: memória, história e ressentimento em Lima Barreto. Revista Artcultura, Uberlândia. V. 8, N. 13, p. 85-95,
jul.-Dez.. 2006.
416
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasileinse. 1961. p.91–92.
417
A Tribuna, 16.11.1905. Disponível em: http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em: 08 ago. 2008.
418
BILAC, Olavo. Vossa insolência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 260-267.
419
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Erichim: EDELBRA, s/d. p. 181.
420
Id., Idid., loc.cit.
421
BARRETO, Lima. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e discussões dispersas. Rio de
Janeiro: Graphia Editorial, 1993. p. 378-382.
topografia da cidade de Nova York e não à do Rio. Nas linhas seguintes, considera “o fundo
do espírito americano” como sendo “a brutalidade, o monstruoso, o arquigigantesco” e
inspirador de um sentimento de “esmagamento e de opressão”, apontando que a “fascinação
do modelo estrangeiro [...] entra sempre em algum grau na formação de qualquer sociedade,
mas, para ser útil e progressiva, não deve substituir inteiramente o modelo próprio e
ancestral”. 422
Lima Barreto, com essas considerações, demonstra sua capacidade de
contextualização e como determinada forma de se apropriar de modelos de civilização pode
acarretar a descaracterização da capital federal, apresentado uma postura que sugere diálogo
entre idéias vindas do estrangeiro e nossas “raízes culturais”. Como o próprio autor afirma
nesse artigo “O nosso ianquismo”, “[...] o mundo não é sempre o mesmo [...]; e os homens,
portanto, não o podem ser e devem variar com ele”.
Outra postura tomada por Lima Barreto no sentido de evitar a descaracterização
de sua cidade foi destacar outros espaços do Rio de Janeiro que foram “ofuscados” com a
modernização do seu centro. Para isso, ele promove caminhadas pela cidade através de seus
personagens como, por exemplo, no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)
com os personagens Augusto Machado e Gonzaga de Sá.
Num dos momentos dessa obra, encontramos aqueles dois personagens
caminhando pelo subúrbio de Engenho da Penha, localizado à margem de um canal que
separa a Ilha do Governador da terra firme. Após percorrer determinado trecho, eles
desembocavam diante do mar e Augusto questiona Gonzaga acerca de um sobrado em ruínas
que avistou num ilhote no meio do canal423.
Diante daquela paisagem, Gonzaga explica que “as comunicações com o interior
se faziam pelo fundo da baía” através de faluas que passavam por aquele local, sustentando a
venda que havia no andar térreo daquele sobrado em ruínas. Nas linhas seguintes, Gonzaga,
aproveitando-se de outra observação de Augusto, inicia uma exposição sobre a formação da
cidade do Rio de Janeiro, selecionando dois elementos espaciais da cidade com o intuito de
mostrar a complexidade da paisagem urbana e a maneira como Augusto (ou os leitores)
deveria orientar seu olhar para compreendê-la. Vejamos o primeiro:
422
Id., Ibid., p. 379
423
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 61
E ao segundo:
424
Id., Ibid., p. 67.
425
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67
426
BARRETO, Lima. Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomo I). p. 90-91
427
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 105
das desigualdades sociais e o apagamento dos registros de sua história. Esse autor procurava
representar em seus textos uma cidade com uma grande diversidade sócio-cultural, a qual não
deveria ser negada, pois isso acarretaria uma perda de referencial muito drástica e a
constituição de um verdadeiro “cemitério de vivos”.
Quando Lima Barreto pensava na sua cidade, não lhe vinha à mente “o palacete”,
“o patrão ou criado”, “o teatro ou o cemitério”, “o capitalista ou o mendigo” e sim “a soma do
trabalho, de riqueza, de miséria, de dores, de crimes de quase quatro séculos contados”. 428 A
cidade que ele almejava era contrária à concepção burguesa de cidade marcada pelo
fracionamento de seu espaço e por um presentismo avassalador que negligenciava as
diferenças culturais e temporais.
A cidade almejada por Lima deveria apresentar sua diversidade cultural como
bandeira a ser defendida e permitir um contato maior entre seus habitantes a fim de promover
a compreensão e solidariedade entre eles. Ao que parece, esse foi o principal argumento
apresentado por Lima Barreto na disputa pela constituição da imagem de país moderno para o
Brasil nos princípios do século XX, a servir de reflexão para os dias atuais, em que nossas
cidades estão se transformando em verdadeiros barris de pólvora prontos para explodir a
qualquer momento.
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olímpio, 1975.
428
BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 96
BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In:
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucílio. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo
excludente: da proclamação da república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 233–286.
BILAC, Olavo. Vossa insolência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005.
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: UNESP,
2006.
PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos
(Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.
Site consultado:
http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em: 08 ago. 2008.
O Tabuleiro como povoado rural, localizado num ambiente marcado pela vida
campestre não foge a sua dinâmica cotidiana. As práticas sociais do lugar estavam,
diretamente, associadas ao trabalho na roça, a lida com os animais, a convivência com a
natureza, aos costumes e tradições do campo, expressas nas relações de solidariedade entre os
moradores, nas festas, nas rezas, nos conflitos, nas relações de trabalho e exploração presentes
nas práticas e vivências da população local.
Aí, de tarde, como não tinha a violência que tem hoje, de tarde o povo vinha
tudo pra porta da venda, que chovesse ou que fizesse sol. A boca da noite a
venda era cheia de gente, uns vinha comprar, outros fazer a feira. Trabalhava
o dia inteiro, aí quando era de noite, às vezes, tinha alguma coisa pra vender
ou farinha ou cacau, trazia pra vender, outros vinha fazia a feira, outros
vinha comprar alguma coisa que tava faltando em casa, outros vinha mesmo
beber, tomar uma cachacinha e contar piada. Outros vinha bestando mesmo,
pra vê o povo, pra ver todo mundo que tava e conversar a boca da noite. E,
às vezes, de dia, quando chegava assim... Antigamente vinha os
cavaiadeiros429 pra aqui. Na época de 60, 70 e 80 ainda vinha cavaiadeiros
aqui. Ai o povo passava aqui, chegava por aqui pra vender animal,
barganhar, trocava, fazia barganha, um animal pelo outro, por burro, por
cavalo, por boi. Outra ora vendia por dinheiro, fazia esse tipo de negócio,
barganha. E, ai de noite os meninos mais novo ia jogar sinuca, outros vinha
jogar.430
429
Negociantes de gado bovino, eqüino e asinino.
430
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
Outro ponto seria a presença do jogo nas vendas, fosse do bicho ou de cartas, a
maior parte delas oferecia esse tipo de divertimento, mesmo proibido o jogo de azar em
algumas épocas. No decreto lei no. 9 215 de 30 de abril de 1946, o presidente Eurico Gaspar
Dutra proibiu a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional
reafirmando a lei de Contraversões Penais de 1941, que já proibia os jogos de azar431. O fato é
que estas leis nunca foram plenamente respeitadas, os jogos de bicho e de cartas eram
constantes no Brasil. Vários depoentes narraram episódios envolvendo as tentativas da policia
de coibir o jogo, quase sempre sem sucesso, já que muitos fugiam às batidas policiais ou
jogavam escondido para evitar possíveis multas e prisões:
Os jogos a dinheiro nas vendas podiam resultar em certos casos em brigas. Havia
jogadores que não suportavam perder, surgiam acusações de trapaças ou estas aconteciam
por existir antecedentes que levassem ao ajuste violento da rixa433. O Sr. Pedro Andrade,
como bom narrador, trazendo em suas falas sempre um ensinamento moral434, no trecho de
seu depoimento transcrito abaixo, expõe suas impressões a respeito das brigas nas vendas:
Botava bebida, cachaça, era jogo, coisas que não prestava. Mas nunca
registrou uma briga, pois quando começava uma briga, uma confusão, eu
falava:
- Isso aqui nem começa nem termina. Aqui não começa briga nem termina,
porque quem tiver sua rixa é onde começou, não é na minha casa, por isso
aqui é um ponto de prosa não de briga435.
A historiadora Maria Izilda de Carvalho Matos nos seus estudos sobre alcoolismo
e masculinidade na sociedade paulista na segunda metade do século XX. Aponta para as
associações que se faziam entre alcoolismo, jogo, fumo, vagabundagem, boemia e violência,
constituindo hábitos incompatíveis com as idéias higienistas da época, fugindo ao ideal de
sociedade moderna almejado para o Brasil na época. Para os homens do campo o discurso
431
Dados retirados do site oficial do Senado Federal: http://www.senado.gov.br. Consulta feita em Julho de
2003.
432
Manoel Amado da Silva depoimento citado.
433
A ação violenta de muitos sujeitos nos jogos que ocorreram em bares ou em outros locais públicos,
geralmente tinha antecedentes de conflitos anteriores como aponta: CHALHOUB. Op. Cit. p. 214.
434
Walter Benjamin, destaca que bons narradores sempre trazem um ensinamento moral em suas narrações.Ver:
BENJAMIN, Walter. O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia, técnica, arte e
política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200.
435
Pedro Andrade de Souza depoimento citado.
Cobrava, uns dava pra valente, queria até bater na gente, mas a gente ia
atravessando. Teve um dia que aquele Paulo Correia, me, [...] escorou na
porta da venda porque eu fui cobrar uma conta, ele escorou com uma
espingarda veia, que se eu saísse fora tinha ele me atirado.437
436
José Gonçalves depoimento citado.
437
Idem
A freqüência das mulheres na venda era comum sim. Elas iam, assim,
quando ia fazer a feira, que um dos marido adoecia, que não podia ir a feira.
Aí elas iam na venda fazer a feira. Aquelas que não tinham marido, que elas
tomavam conta da suas próprias vida e elas mesma era quem ia fazer a feira,
vender os produtos da roça. Vendiam cacau, vendia farinha. Às vezes
adoecia alguém e elas precisava ir para a cidade, ai passava na venda,
comprava o que precisava. Se precisava de algum dinheiro prá depois pagar,
elas ia tomava o dinheiro... Mas as mulher não participava, assim, tanto da
venda não, quem ia mais pra venda era os homens. As mulher ia, mais, só ia
assim, quando tinha grandes precisão. Que os homens ia por precisão e,
também ia assim nos dias de domingo de tarde pra conversar, pro bate-papo,
ia passeando, mas as mulheres não ia passear ia por necessidade, por
precisão mesmo. 438
438
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
439
Laura de Jesus Andrade depoimento citado.
440
O termo meota é usado pelos freqüentadores da venda para designar uma garrafa reaproveitada que serve para
conter cachaça comprada a granel.
“um dedo de prosa” e tomar uma branquinha. Muitos se empolgavam e acabavam demorando,
para preocupação das mulheres que os esperavam com a feira.
Contudo, havia aquelas mulheres casadas cujos maridos não as impediam ou
talvez não se deixassem impor o limite de ir às vendas fazer as compras. Mas, a grande
presença masculina pode ser justificada por preceitos morais arraigados numa cultura
tradicional, tecida num passado paternalista da sociedade brasileira, no qual os papéis
femininos e masculinos deveriam ser pré-definidos (embora isto não signifique que todos os
assumissem). O homem exercia a função de chefe de família - provedor - trabalhador, já as
mulheres as funções de mãe - donas do lar. E mesmo com o passar do tempo, e as novas
configurações que as relações sociais entre os gêneros masculino e feminino foram
assumindo, como a crescente introdução da mulher no mercado de trabalho e maior
participação na esfera pública. Permanecia, ainda que com características diversas, o
predomínio masculino no gerenciamento da família entre os moradores do Tabuleiro.
O homem, provedor, ia às vendas cuidar daquilo que era necessário ao sustento
material básico da família e as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos e dos
afazeres domésticos. Talvez, por isso elas não tivessem tempo de ir às vendas, sem contar
com a imagem da venda de um lugar que não deveria ser freqüentado, sobretudo, à noite “por
mulheres de respeito”. Visto que lá também era um lugar de jogos de azar, bebidas e
comportamentos masculinos impróprios que “moças de família” não deveriam presenciar para
não desvirtuá-las do caminho da moral e dos bons costumes, como lhes ensinavam seus pais.
A maior presença masculina nas vendas também pode ser atribuída ao próprio
ritmo de vida do homem do campo, que tem maior flexibilidade em relação aos seus horários
de trabalho, como destacou Thompson (1998). Podendo até mesmo escolher os dias e
horários, caso a terra seja de sua propriedade ou variando conforme a época de produção e
colheita. Ao contrário dos trabalhadores urbanos que têm horários pré-definidos e muitas
vezes trabalham aos dias de sábado, ficando impossibilitados de freqüentarem as feiras ou
mercados para fazem as compras, o que acaba se tornando uma tarefa feminina. Todavia, é
preciso ressaltar que esta observação não se estende a todos os grupos de trabalhadores
urbanos e muitos encontram formas alternativas de fazerem suas compras semanais, como
escolhendo outros dias da semana para fazê-lo ou em horários alternativos.
As mulheres do campo, é preciso ressaltar, também tinham uma relação
econômica com as vendas que superava o simples consumo de mercadorias. Muitas vendiam
nas vendas os frutos do trabalho nas ricinhas para suprir suas necessidades pessoais e de seus
filhos sem ter que recorrer ao marido. A historiadora Sylvia Maria dos Reis Maia (1985, p.92-
94) na sua tese de doutorado sobre as estratégias de vida e cotidiano dos trabalhadores rurais
do município de Sapeaçu-Ba, define as rocinhas como subdivisões da propriedade familiar
que são distribuídos entre os membros da própria família de maneira informal.
Nela o menino ou a menina aprenderia a ter responsabilidade e passava a ganhar
algum dinheiro. Em média com oito anos de idade a criança recebia a rocinha, que no
momento de cultivar e preparar o terreno sempre recebia uma ajuda dos adultos (MAIA,
1985). Para às esposas, elas representavam uma fonte independente de renda, que lhes davam
certa autonomia financeira em relação aos maridos, e até mesmo ajudava-os nas despesas do
lar. A maior parte do dinheiro era gasto com roupas, sapatos, material escolar para os filhos
que estudavam etc. No trecho da entrevista abaixo a Sra. Aurineide deixa clara a importância
das rocinhas:
Tinha pais que o filho e a mulher trabalhava todo mundo junto com ele. E o
que a família precisasse ele dava o dinheiro pra comprar o que precisassem.
Mas tinha pai também que era os dono da terra e que dava um pedaçinho da
terra pra mulher plantar. Pra ela ter uma rocinha, pra ela ter, assim, o
dinheirinho dela. Pra ela comprar as coisas que ela precisava: calcinha, sutiã,
perfume, xampu, creme pra pele... Essas coisa. E também dava pros filho,
também, que era uma maneira... Muitos pensava assim, que dá aos filhos
pros filhos aprender a trabalhar pra também ter seu dinheirinho, quando
fosse numa festa, comprar os perfumes deles... [os produtos] vendia nas
venda ou nos armazéns. 441
Outro aspecto interessante era o fato do dinheiro ganho com as rocinhas ser
gerenciado pelas próprias mulheres e crianças. Havia mulheres que mantinham contas
separadas dos maridos nas vendas para que elas pudessem gerenciar seus ganhos da forma
que achassem mais adequada. Para os homens, supõe-se, era uma forma de lhes livrar de
algumas despesas extras. Muitos consideravam gastos com vestuário, produtos de beleza, etc.
desnecessários e deixavam ao encargo das mulheres o cuidado com estes detalhes da
economia doméstica.
Além do mais, isto demonstra que as mulheres do campo não ficavam confinadas
ao espaço privado do lar, esperando que os maridos ou pais lhes provessem seu sustento. O
trabalho delas na roça era fundamental para manter economicamente a família. Nos núcleos
familiares mais pobres não havia recursos financeiros suficientes para contratar empregados
para cultivar a terra, era preciso que toda a família trabalhasse junto para garantir seu sustento.
E, mesmo que o homem administrasse o dinheiro ganho no trabalho familiar, a mulher tinha
441
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
formas alternativas de sobrevivência e conseguia manter sua identidade sem ter que se anular
por viver numa sociedade em determinados aspectos conservadora e que ainda sustenta certos
preceitos sexistas na diferenciação entre homens e mulheres.
Já para as crianças esses espaços de sociabilização descortinavam-se como um
mundo de encanto e diversão. Doces, bombons expostos em frasqueiras giratórias aguçavam
tanto o paladar quanto a vontade de ir às vendas se deliciar com essas gostosuras. Ou mesmo,
quando seus pais iam às vendas entre seus pedidos estavam guloseimas que elas esperavam
ansiosamente. Para os meninos havia as sinucas, os jogos de baralho e dominó, a venda
acabava se tornando um espaço onde o garoto de certa forma desenvolvia padrões de
comportamento e conduta masculinos.
Desta forma, essas “lojas das roças” assumiam múltiplas funções e significados
para os homens, mulheres e crianças do campo. E, são estas pessoas comuns que ao darem
voz a suas experiências, deixando emergir as memórias de um tempo passado que sobrevive
no presente, possibilitaram a reconstrução de uma memória social criada e forjada na vida
campestre, no trabalho árduo na roça, nos conflitos, nas festas, nas vendas, nas conversas e
experiências compartilhadas, permeadas de sociabilidade. O que possibilitou escrever
aspectos históricos não só de um lugar, como de pessoas que imprimiram neste espaço sua
própria história.
Fontes Orais:
3. Aurineide Thethê Andrade, 47 anos de idade, trabalhava na venda Santa Ana. Reside
na sede do município. Entrevistas em 30/07/2003, 20 minutos 14/04/2007, 8 minutos.
4. José Gonçalves de Oliveira, 84 anos de idade, exerceu a função de vendeiro desde a
segunda metade da década de 40 permanecendo até os anos 80 no povoado do
Tabuleiro. Reside na sede do município de Mutuípe. Entrevista em 19/01/2003, 30
minutos.
5. 3. Laura de Jesus Andrade (1944-2006), conhecida como Caboclinha, faleceu poucos meses
após a entrevista. Trabalhadora rural residia na sede do município. Entrevista 24/10/2006, 30
minutos.
6. 4. Manoel Amado da Silva, 72 anos de idade na ocasião da entrevista, exerceu a função de
vendeiro no Tabuleiro nas décadas de 40, 50 e 60. Reside na sede do município de Mutuípe.
Entrevista em 16/07/2003, 15 minutos.
7. 5. Pedro Andrade de Souza, 72 anos de idade, pequeno proprietário rural, exerceu a atividade
de vendeiro tanto no Tabuleiro, quanto em outros povoados e cidades. Reside no povoado do
Tabuleiro, município de Mutuípe. Entrevista em 06/07/2003, 45 minutos.
Referências Bibliográficas:
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis- RJ: Vozes, v.1,
1994.
MAIA, Sylvia Maria dos Reis. Dependency and survival of Sapeaçu small farmers – Bahia,
Brazil, 1985.(Tese de doutorado). Boston University.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
MIGUEL, Maria Lúcia Cerutti. A fotografia como documento: Uma investigação à leitura. In:
Revista Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2. Jan-dez. 1993.
O presente texto trata de aspectos históricos, sociais e culturais da comunidade negra de Tomé
Nunes/BA. A fonte oral é uma das principais metodologias aplicadas à pesquisa para
conhecer o surgimento desta comunidade e a construção de sobrevivência deste povo ao longo
do tempo. A partir destas entrevistas inicia-se uma busca a materiais impressos para que possa
haver um confrontamento entre as fontes. Estas fontes são analisadas sob a perspectiva
teórico-metodológica da história social. No que concerne às questões culturais e à lógica do
auto-reconhecimento como comunidade quilombola, consideram-se as suas influências
externas (agentes da pastoral) para a análise de depoimentos dos moradores dessa antiga
comunidade do Médio São Francisco.
Introdução
Hoje em dia, o morador mais velho da comunidade, o Sr. João Pereira dos Santos,
de 94 anos, passa horas contando histórias (verdadeiros causos) de Tomé Nunes, para quem
estiver interessado em ouvir. De acordo com sua filha dona Maria, de 70 anos de idade, e
alguns netos, não é todos os dias em que ele “está para conversa”. Eles afirmam que há dias
em que ele não se lembra de quase nada, há outros em que a lembrança flui.
442
Em julho de 2004 os moradores locais se reuniram e fizeram um ofício solicitando da Fundação Palmares o
reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo. A certidão de quilombola foi recebida em
dezembro do mesmo ano.
443
Estes moradores são: Joanita Dias de Brito, Raimundo Nonato Nery, Sônia, João Pereira dos Santos, Benedita
Pinto de Jesus, dentre outros. Depoimentos prestados entre os meses de abril e maio, do ano de 2008.
Provavelmente nos dias em que o Sr. João está interessado em conversar, o fato
presente que ele vive naquele momento o chama a lembrar do passado conforme Bérgson
afirma em sua obra Matéria e Memória (2003), mas é importante salientar que lembrar não é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado, porque por mais nítida que nos pareça à lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então
e porque nossa percepção alterou-se e com ela, nossas idéias, nosso juízos de realidade e
valor444.
Tomé Nunes era o dono desse lugar aqui, pruque essa família de gente não
morava aqui não, morava pra baixo de onde hoje é Guanambi (...). Ali era
no terreiro dele, veio uma enchente (...). Com aquilo ele ficou enjoado e
resorveu vender e agora meu avô soube, veio pra comprar e comprou445.
Este relato da formação da comunidade de Tomé Nunes vem sendo passada de pai
para filho há anos. O Sr. João diz que ouviu esta história de seu avô e que depois foram
confirmadas por seus pais. Portanto a História da comunidade hoje está ligada também ao que
Halbwachs446 chama de memória coletiva, visto que ele não presenciou estes acontecimentos,
estas informações lhe foram anexadas àquele espaço antigo que ele viveu através da memória
dos mais velhos.
Dona Benedita Pinto de Jesus447 confirma esta formação da comunidade, mas ela
apresenta maiores detalhes, ao dizer que a família que veio para esta região estava, segundo
ouviu contar, fugindo de conflitos com fazendeiros na região onde habitavam, sendo esta
localizada nas proximidades do que hoje é reconhecida como Quilombo da Parateca e que a
compra destas terras não teria sido tão simples como relatado pelo Sr. João. Assim, seu relato
aponta que:
444
Veja-se Ecléa Bosi, Memória e Sociedade: lembranças de velhos, 2007, p 53-68
445
A transcrição da entrevista está feita conforme dita pelo depoente.
446
Maurice Halbwachs. A memória Coletiva, 1990.
447
Antiga moradora da comunidade que foi entrevistada pelo Padre José Evangelista de Souza. Esta entrevista
pode ser encontrada no livro: Mucambo do Rio das Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. Distrito Federal:
Documentário, Arte e Movimento, 1994. (Mimeografado) de autorias do Padre Evangelista de Souza e João
Carlos Deschamps de Almeida.
[...] Os pretos para não matar, nem morrer, foram obrigados a mudar do
lugar. (...) Vieram então cinco irmãos: três homens, duas mulheres. Quando
vieram ver o terreno do Tomé Nunes: João, Clara e Reginaldo; pai, filha e
genro. O João morreu afogado, na volta. Sofreu um passamento, dentro do
barco, caiu n´água. Quando ouvimos a pancada, ele já tinha afundado. Só
ficou o chapéu. Os cinco irmãos: Joaquim, José Mendes, Paulo Mendes,
Isabel Dias e Teodora Dias da Conceição. Teve notícias de que esse homem
estava vendendo este lugar; vieram e compraram. 448
Ambos os depoimentos dizem que não houve dificuldades com a compra da terra,
mas o relato de dona Benedita é mais rico em detalhes quando a mesma expõe a dificuldade
que os compradores tiveram quando vieram visitar a terra a ser comprada, certamente
dificuldades estas encontradas devido à precariedade de transportes e o alto volume de água
do Rio São Francisco, isto há mais de cem anos atrás.
Certamente, os fatos lembrados por dona Benedita e omitidos pelo Sr. João não
são considerados tão importantes para ele ou para a pessoa que o contou, “[...] a memória só
retém o especial: nunca o total” (PORTELLA, 1958, p. 186). Considerando essa afirmativa,
recriar um acontecimento passado pode representar uma experiência purificadora ou, até
mesmo, bastante traumatizante, visto que diversas vezes alguns acontecimentos remetem o
indivíduo ou grupo a situações, locais ou sentimentos desagradáveis, e assim, ao invés de
abrir aquela ferida ele prefere-se omitir ou pouco aprofundar determinados fatos, o que
possibilita a constituição de duas ou mais versões do mesmo episódio.
448
Relato de Dona Benedita ao Padre Evangelista. A transcrição está feita como no livro: Mucambo do Rio das
Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. 1994.
Para alguns moradores de Tomé Nunes, foi justamente a memória dos mais velhos
e a prática de culturas dos antepassados que ajudaram para que a comunidade se mobilizasse e
solicitasse o reconhecimento. Esse processo de conscientização é apresentado em
depoimentos, como o seguinte:
449
A Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei
Federal nº 7.668, de 22.08.88. Sua finalidade esta definida no artigo 1º, da Lei que a instituiu, que diz:
"promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na
formação da sociedade brasileira".
450
Segundo D. Maria, uma das pioneiras das danças na comunidade, o boi girá é uma cantiga de roda cantada
pelos antigos. De acordo com ela hoje em dia ela quase não é mais cantada pelas crianças do lugar.
451
Entrevista feita com a ex-presidenta da Associação dos Moradores de Tomé Nunes, dona Sônia de 30 anos de
idade. A transcrição está feita de acordo a fala da mesma.
Este último fato, das lutas pela terra, pode ser presenciado em trabalhos de
diversos pesquisadores que estudam a região do Médio São Francisco454, como por exemplo,
na dissertação defendida por DUTRA (2007. p. 21) onde ele diz que.
452
Aprovada pela Resolução/CD nº 6/2004 – D.O.U nº 78, de 26.04.2004, seção 1, p-64.
453
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma autarquia federal criada pelo Decreto
n. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional
de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Está implantado em todo o território nacional por
meio de 30 Superintendências Regionais.
454
A Região do Médio São Francisco compreende os territórios de Pirapora (MG) até Remanso (BA), incluindo
as sub-bacias dos afluentes Pilão Arcado a oeste, e do Jacaré a leste e, além dessas, as sub-bacias dos rios
Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente, Grande, Verde Grande e Paramirim, situando-se nos estados de Minas
Gerais e Bahia.
Disponível em: <http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/recus/medio-sao-francisco>. Acesso
em: 10/07/2008.
455
Alistair Thomson. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. 2005, p.69.
456
Dona Maria é filha do Sr. João Pereira dos Santos e hoje está com 70 anos de idade.
457
Folia é como é chamado pela própria moradora, quando esta se refere à Festa de Santo Reis.
Ó no meu tempo eu era menina, nós saía pra brincar assim isso aqui era
tudo limpo, tudo, tudo, tudo, tudo. Aí nós ia cantar roda, nós ia pular boi
girá, nós ia, nós inventava Reis, não tinha tempo marcado, não tinha dia
marcado da semana, qualquer dia pra nós era dia, só queria ficar assim nas
casa batendo caixa, agora ó a caixa: um prato que nós batia, tum, tum, nesse
prato. Aí nós era na base de 8 ou 9, aí nós começava brincar e falava: ‘bora
cantar Reis?’ ‘bora!’ Aí nós saía com esse prato tan, tan, tan, cantando tudo
errado, toada de Reis nós num tinha, nem nada e nós na roda mesmo nós
fingia que era Reis.458
Dona Maria conta também que sua mãe e seu pai não gostavam que ela ficasse de
porta em porta cantando “Reis”, mas que depois sua família acabou aceitando, visto que nada
mais podia fazer para mudar a situação.
Finada Antônia, ela morava bem ali assim nesse pezão de Juazeiro que era
pequenininho ficava de junto da casa dela. Aí finada Antônia chamou nós e
falou: “Oia ocês tem boa vontade eu vou ajudar ocês. Cantar Reis num é
assim não, eu vou ensinar” Eu tinha 7 anos459.
A mesma dona Maria também confirma que, com o passar dos anos, até a sua mãe
passou a cantar Reis com ela e a lhe ensinar as novas toadas e que hoje em dia todo 1º de
janeiro eles iniciam a jornada festiva de porta em porta. E mais, a mesma senhora ainda
afirma que as pessoas que lhe acompanham na atualidade são praticamente novatas e novatos,
tendo aprendido a “folia” com ela, visto que praticamente todos os de sua geração, que
cantavam com ela antigamente, já faleceram.
Considerações Preliminares
A partir das visitas realizadas à comunidade e das entrevistas coletadas com alguns
de seus moradores, é possível caracterizar um discurso uníssono e uma união entre eles.
Representado e demonstrado pelo interesse na resolução dos impasses para a demarcação das
terras e pelo reconhecimento cultural, desde os mais antigos moradores até os mais jovens.
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
460
Moradora e agente de saúde municipal que atende as famílias da comunidade de Tomé Nunes
SOUZA, Padre Evangelista de e ALMEIDA, João Carlos Deschamps de. Mucambo do Rio
das Rãs: um modelo de resistência Negra. Distrito Federal: Documentário, Arte e
Movimento. 1994. (Mimeografado)
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Introdução:
Considerando que desde 1895, com os primeiros passos dados pelo cinema e das
primeiras filmagens feitas por Louis e Auguste Lumiére461, verificou-se uma aproximação
cada vez maior do cinema e história, entretanto o filme enquanto documento foi inserido na
produção historiográfica apenas em meados do século XX. Tendo em vista que a sétima arte
ganhou certo valor mercadológico e de entretenimento, percebeu-se também que este poderia
refletir aspectos de uma sociedade, transformações políticas econômicas e, até mesmo,
ideológicas e filosóficas.
A apreciação do cinema como difusor das representações sociais, possibilitará a
compreensão da infra-estrutura deste meio de comunicação e através das quais ele atendia às
ideologias de um determinado contexto, nesse caso as concepções de mundo de uma classe
dirigente, a qual se propõe difundir-se por toda a sociedade,462 revelando um imaginário
urbano e seus vínculos a determinados grupos sociais.
461
Cf. NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA,
2000. nª 03.
462
Conceito de ideologia usado por Antonio Gramsci. Cf.: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico;
tradução de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
463
[...] tem como objeto principal identificar a forma como em diferentes lugares e momentos uma realidade
social é construída, pensada, dada a ler. Conceito de representações sociais usada na pesquisa é a definida por
Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações. Trad. Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
464
Ilusório, fantástico; fazer idéia sobre algo que não conhece. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Pp. 1077. No caso do urbano como a sociedade da cidade e de cotidiano urbano imagina, fantasiam o mundo
rural e como pode representá-lo.
465
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. São Paulo: Forence, 1972.
466
DÓRIA, Carlos Alberto. O cangaço. 2ª, São Paulo: Brasiliense, 1981.
467
Idem. Ibdem.
468
Isaura P. de Queiroz, homens que viviam fortemente armados na região da caatinga do
sertão nordestino.
Nesse sentido iremos observar como essas relações e as ações do cangaço foram
cinematografas, analisando os possíveis estereótipos e as representações de sertão que nos
foram apresentados. Estudos como esses nos a compreensão da relação cinema e história e de
como um grupo intelectual urbano se apropriou de temas pertencentes ao mundo rural para
reproduzi-los cinematograficamente.
468
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15.
469
CARONE, Edgard. A Quarta República (1945 – 1964). São Paulo: DIFEL, 1980, pp. 03 – 33. (corpo e alma
do Brasil)
comunicação. Entre 1950 e 1970 houve grande inserção do cinema norte-americano no Brasil,
tornado-se um modelo a ser copiado, tanto na estética quanto o modelo de vida, moda,
político e de modernização, fazer cinema significava industrialização e desenvolvimento para
o país e um bom negocio para os investidores.
Nesse contexto pós-guerra o país seguia a tendência da “boa vida americana”,
inspirada no cinema hollywoodiano470, não tardando o cinema paulistano apareceu no cenário
cinematográfico nacional e algumas companhias de peso foram fundadas no Estado. A
Companhia Vera Cruz, a Maristela e a Multifilmes surgem num momento em que o cinema
brasileiro estava voltado para as chanchadas cariocas, o que conferiu ao cinema paulista um
tom de renascimento.
Nesse período foram criadas outras instituições culturais, como o Museu de Arte
Moderna, o Teatro Brasileiro de Comédia e depois fundaram a Cia. Cinematográfica Vera
Cruz em 4 de Novembro de 1949. Nos vinte primeiros anos do cinema falado, a produção
paulista foi quase inexistente, enquanto que a carioca se consolidou e prosperou as famosas
chanchadas da Atlântida.
Iniciou-se o processo de grandes produções cinematográficas no Brasil, a primeira
delas da Vera Cruz “O Cangaceiro” de Lima Barreto abriu as portas para um novo estilo de
filmes brasileiros, o estilo Nordestern.471 Essas produções demonstraram que também
tínhamos o nosso bang bang, filmes que seguiram a tendência dessa modalidade, a do
vaqueiro norte americano, defensor da lei e da ordem. Segundo Tolentino472 esta foi à forma
que retrataram o cangaço no filme de Lima Barreto (1953).
O nosso Nordestern inseriu o Brasil nas produções cinematográficas do bang
bang, além de aventura, romance e ação os filmes sobre o cangaço trouxeram, certamente,
tipos e estereótipos, ou seja, o sertanejo que tendia a ser um bandido social era mestiço e
selvagem, o brasileiro original. Nosso “vaqueiro” estereotipado atendendo aos interesses de
uma burguesia paulista e propagava um modelo de cinema que refletia hegemonicamente os
interesses dos EUA.
Avaliando os filmes do ciclo do cangaço como “O Cangaceiro” teremos diversas
interpretações sobre esse sujeito histórico, considerando que a transformação de personagens
470
Hollywood centro industrial cinematográfico Norte Americano.
471
Criação do pesquisador potiguar-carioca Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923 – 2000), tal neologismo fora
utilizado para identificar filmes com a temática rural e principalmente sobre o Cangaço feitos no Brasil. A
película O Cangaceiro (1953), certamente, atende a esse estilo.
472
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira . O Rural no cinema brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Editora da UNESP,
2001.
473
Fonte: Diário do Grande ABC (www.dgabc.com.br)
474
Relativo à hegemonia; para maiores informações: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico; tradução
de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
475
TOLENTINO, 2001.
476
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Editora Brasiliense. 1983.
Além dessas exposições sobre a obra de Barreto (1953), outro fator preponderante
foi a película de Rocha (1963), este explica sua criação da seguinte forma: “o que quis fazer
foi uma fábula com uma lição de moral. Dentro da fábula, tudo é permitido, porque aquilo
está dentro do Nordeste. A cultura do Nordeste é aquilo, enrolado”.477
A película de Glauber Rocha, que pertenceu ao movimento do Cinema Novo478,
contrapõe o filme de Barreto (1953), nele o cangaço foi representado como alternativa para o
sertanejo. De acordo com o cineasta o homem rural do sertão não tinha direito e a justiça
funcionava apenas a favor dos coronéis. Cada personagem do filme trás um tipo de
representação e neles se reflete a visão de uma sociedade sob um mundo tido como selvagem,
bárbaro e miserável. Esse ponto de vista também tinha um cunho ideológico segundo Silva
Jr.,
477
LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: Ed. Universitária/ FUNAPE/UFPb, 1982, p. 39.
478
Movimento de jovens frustrados com a falência das grandes companhias cinematográficas paulistas
resolveram lutar por um cinema com mais realidade, mais conteúdo e menor custo. Na primeira fase desse
movimento, trabalharam com temas voltados ao nordeste e os problemas que a região abrigava.
479
SILVA Jr. Humberto Alves. Glauber Rocha: arte, cultura e política. In: O olho da História, Revista n° 09.
Bahia, dezembro de 2006.
480
NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA, 2000.
nª 03.
481
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mestrado em História UFBA. Pp. 11.
482
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483
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O Cangaceiro
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Companhia(s) produtora(s): Companhia Cinematográfica Vera Cruz S.A.;
O uso da internet como dispositivo sociotécnico capaz de imprimir nas novas gerações,
maneiras diferenciadas de convivência, relacionamento, pertencimento social e aprendizagem
cultural vem constituindo novos espaços de debates sobre a história social das mídias
contemporâneas. O surgimento de uma nova cultura juvenil baseada nas interações sociais,
mediadas pelas infovias, tem gerado inquietações a respeito do registro historiográfico na
investigação em ciências sociais a respeito de elementos do cotidiano. Esta pesquisa tem
como objetivo identificar os processos de apropriação e uso da Internet como dispositivo de
formação cultural, utilizados por jovens sergipanos com idade entre 12 e 22 anos, em fase de
escolarização, de modo a documentar e analisar interesses comuns, concepções, conceitos e
idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet como dispositivo de formação
sociocultural. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas
da pesquisa. Briggs e Burke (2006), Mcluhan (1999), Castells (2002), Costa (2002), Cardoso
(2007), Lèvy (1998; 1999), De Certeau (1996), são os principais referências utilizadas. Por
fim, essa pesquisa explora a produção da história social da mídia no estado de Sergipe.
INTRODUÇÃO
A internet foi desenvolvida entre 1968 e 1969 pela ARPA – Administração dos
Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Durante a
Guerra Fria através dos militares surge a primeira rede de transmissão de dados entre
através da internet, devem ser seriamente analisados. De pronto, ao se tratar dessa nova
cultura digital, faz-se necessário observar as mudanças de comportamento humano,
caracterizadas pela interação com os meios tecnológicos, ou em outras palavras, aquilo que
podemos denominar de tecnocultura.
A tecnocultura pode ser definida como fenômeno mediador entre o homem e o
mundo social. Essa mediação dá-se através dos artefatos sociotécnicos de forte expressão
cultural que altera características fundamentais das interações sociais humanas em relação
ao tempo, ao espaço e, conseqüentemente, afeta a produção da subjetividade e a percepção
da experiência cultural vivida em tais espaços (COSTA 2003).
Essa nova cultura tecnológica é denominada por Lévy (2000) de cibercultura e
tem como pressuposto uma mudança do modo de vida humano, caracterizada, sobretudo, pela
influência da cultura digital. É importante destacar que o termo cibercultura é relacionado ao
conceito de ciberespaço. Em A inteligência coletiva (1998), Lèvy define o ciberespaço como
espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores, onde transitam
informações provenientes de fontes digitais, ou seja, um ambiente virtual de
compartilhamento de informações entre pessoas interconectadas.
Costa (2003) faz uma abordagem historiográfica dos elementos da tecnocultura e
sua influência na vida cotidiana das pessoas. Este autor discute as mudanças ocorridas no
campo da comunicação e a crescente interação de diferentes indivíduos em ambientes virtuais,
destacando o processo de interatividade ocorrido através da internet, quer seja na inserção
e/ou participação de usuários em comunidades virtuais, na portabilidade de telefonia móvel
digital, no consumo de programação de TV digital e, inclusive, nos vários formatos WEB dos
veículos de comunicação de massa (WebTv, Webjornalismo, Webrádio etc). Assim sendo, a
cultura digital é eminentemente resultado de uma sociedade em acelerado desenvolvimento
tecnológico. Nesse caso, a tecnologia ganha lugar de destaque em discursos relacionados à
educação, à sociabilidade e à formação cultural de sujeitos sociais.
Nesse sentido, Lima Jr (2006) chama atenção para o emprego do termo tecnologia
como processo humano, ratificando a desmistificação de um ideal mecânico, tecnicista,
instrumental do desenvolvimento tecnológico. Então, faz-se necessário entender os processos
de constituição do desenvolvimento humano através das transformações exercidas pelo
homem na sua relação com as tecnologias. Segundo o autor “trata-se de uma relação onde o
ser humano transforma a realidade da qual participa e, ao mesmo tempo transforma a si
mesmo” (LIMA JR. 2005, p.15). Para nós, é imprescindível destacar a articulação entre o
485
O que corresponde à idéia de agrupamento, lugares sociais demarcados pela legitimação de culturas
específicas.
486
A idéia segundo a qual os atores sociais se ausentam das redes de relacionamento social, mas não as
abandonam definitivamente.
487
Essa idéia é válida, também, para as questões das redes sociais de relacionamento oriundas da Internet.
Então, a aprendizagem cultural torna-se importante prática social a ser mais bem
investigada pelas ciências humanas. Não é verdade que a aprendizagem cultural resulte
apenas da influência de fatos sociais, externos, coercitivos e generalizáveis, ao critério
funcionalista. A exterioridade das práticas sociais delineia não apenas os aspectos
supracitados, mas, também, o uso, a inserção e a apropriação direta de atores sociais sobre os
objetos sociotécnicos de determinada cultura, numa dinâmica mais ativa, na qual a
reflexividade dos atores sociais se manifesta, exprimindo a natureza complexa das
interatuações negociadas entre os mesmos. A aprendizagem cultural, então, resulta de um
intrincado processo de interação com objetos, símbolos, comportamentos, crenças e sentidos
de diferentes atores sociais em circunstâncias sociais historicamente vividas através da
experiência(STEPHENS, 1993). Trata-se de um processo de vivência não superficial onde os
elementos da cultura são partilhados, utilizados e manipulados mediante as trocas sociais,
sendo que, nesse processo, não apenas se multiplicam os sentidos partilhados, como também,
muitos deles são abandonados, ressignificados e/ou articulados uns aos outros a tal ponto que
se apresentam como novos, inéditos, singulares. Para nós, o olhar das ciências humanas deve
se voltar para essa natureza multiforme, inédita, construtiva e constituinte das interações
vividas no tempo presente.
O surgimento de uma nova cultura juvenil tem gerado inquietações a respeito do
registro historiográfico de elementos do cotidiano. Na cultura digital, interações sociais
cotidianas são exercitadas de modo intenso por jovens através da utilização, exploração e
desenvolvimento de instrumentos tecnológicos de informação e de comunicação cada vez
mais sofisticados. No cenário social, encontra-se um crescimento vertiginoso de acesso às
tecnologias da informação e da comunicação por parte de populações juvenis. Em pouco
tempo, ocorreram fenômenos como as Lans Houses, centros de entretenimento, espaços de
interação digital (bancos, empresas, televisão, rádio) que se propagam com uma velocidade
impressionante (CARSOSO, 2007).
O uso e a exploração de variados instrumentos sociotécnicos tornam públicos
interpretações de cenários que exigem novos conceitos, novas maneiras de interpretar,
analisar e conceber as realidades sociais. A perspectiva construcionista, firmando a
importância de se voltar mais aos processos de produção da realidade social do que aos
produtos de tal fenômeno, imprime ao legado das ciências humanas, uma enorme
contribuição: a vida social é produzida e reinventada cotidianamente. A estática social sofre
influências das ações, crenças, comportamentos e sentidos atribuídos pelos atores sociais
sobre seu cotidiano (DE CERTAU, 1996). Sobremaneira, o processo de apropriação de
488
O Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação é responsável pela
produção de indicadores e estatísticas sobre a disponibilidade e uso da Internet no Brasil, divulgando análises e
informações periódicas sobre o desenvolvimento da rede no país.
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Edições Loyola, 1998.
O Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS) foi criado no ano de 1987 antecedendo o
Sistema Único de Saúde (SUS) este por sua vez está completando vinte anos e foi instituído
legalmente na constituição de 1988. O SUS é fruto de reivindicações anteriores desaguadas na
VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de 1986 aglutinando entidades e pessoas com
objetivos e formas de manifestações articuladas no cenário social, econômico e político.
Destarte, o propósito desta comunicação é analisar através das notícias do Jornal da Cidade do
ano de 1987, a forma como se deu a implantação do (SUDS) em Sergipe identificando a
dinâmica utilizada e os atores que fizeram parte deste momento. A escolha do jornal da
Cidade se deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste
ano analisado.
deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste ano
analisado e também pelo que diz a Maria Helena Capelato e Maria Ligia Prado:
que não dera certo; a oposição dos diretores do Instituto Nacional de Assistência Médica e
previdência Social (INAMPS) que não queriam ter seu poder dirimido com o novo sistema;
oposição do segmento dos médicos empresários e de setores da política como é o caso do
Partido da Frente Liberal (PFL), etc. Assim sendo a implementação do SUDS foi
inviabilizada e com a confecção da Constituição brasileira em 05 de outubro de 1988 a qual
representa uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro é que se
estabelece um novo modelo de política instituindo e desenhando o SUS como sistema de
saúde pública do Brasil. (COSTA, pg. 03, 2002).
Em Sergipe o Prefeito de Aracaju era Jackson Barreto de Lima do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que ganhou a eleição no ano de 1985 com 66%
dos votos. O eleito contou com o apoio do Governador João Alves Filho do Partido da Frente
Liberal (PFL) derrotando o candidato Marcelo Déda filiado ao Partido dos Trabalhadores
(PT) que obteve 15,43% dos votos e Gilton Garcia do Partido do Desenvolvimento Social
(PDS) candidato da família Franco que ficou em terceiro lugar com 11,77%. Barreto
substituiu José Carlos Teixeira que tinha administrado de maio a dezembro de 1985, ou seja,
sete meses, pois, Teixeira entrou na Prefeitura Municipal fruto de um acordo entre o PFL e o
PMDB substituindo o interventor Heráclito Rollemberg que há anos administrava a cidade
(DANTAS, pg. 38, 2002).
No ano seguinte, 1986, Antônio Carlos Valadares filiado ao recém criado PFL foi
eleito Governador do Estado obtendo 48,24% dos votos com o apoio do recém saído
Governador João Alves Filho (PFL). Valadares derrotou José Carlos Teixeira (PMDB) que
era o candidato da família Franco e obteve 39,60% dos votos depois de um racha na sua
agremiação partidária na qual o prefeito de Aracaju, que era do mesmo partido de Teixeira,
foi apoiar Valadares (DANTAS, pg. 52, 2002).
Dentro desse contexto o SUDS chega oficialmente ao Estado com a vinda do
Ministro da Saúde Roberto Santos e do Ministro da Previdência e Assistência Social Rafael
de Almeida a Aracaju para assinatura do convênio de implantação do novo sistema de gestão
da saúde entre as três esferas do poder: Federal, Estadual e Municipal. (Jornal da cidade, 07
de agosto de 1987. Local. Pg. 3). Esse convênio institui o sistema de descentralização de
recursos da saúde, participação social e a unificação do Instituo Nacional de Assistência
Médica e Previdência Social (INAMPS), Instituto de Administração Financeira da
Previdência e Assistência Social (IAPAS), Serviço Especial de Saúde Pública (SESP),
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), Secretaria Municipal de Saúde
(SMS) e Secretaria Estadual de Saúde (SES) onde esta ultima passava a coordenar todo o
processo.
O Prefeito da capital também assina o convênio para a implantação em definitivo
do Sistema Único e Descentralizado de Saúde do município de Aracaju. Com esta medida as
unidades de saúde que pertenciam ao Estado e funcionam na capital sergipana, passam a partir
de agora para a administração da prefeitura de Aracaju. (Jornal da cidade, 08 de agosto de
1987.)
Novas perspectivas surgem devido a implantação do SUDS, pois, com o convênio
as secretarias municipais de saúde passam a desempenhar a função antes exercida pelo
INAMPS e secretarias de Estado. Assim, a capital sergipana passaria a gerir sua própria
política de saúde, recebendo um volume maior de recursos financeiros e físicos aumentando o
seu potencial de atuação e a sua responsabilidade (Jornal da Cidade 20/08/1987, local).
No ano de 1987 a expectativa da chegada do SUDS era grande. A sociedade civil
aguardava o sistema, os funcionários do Inamps fizeram seminários e reuniões para debater e
entender o SUDS e a Reforma Sanitária. O Secretario de Saúde do município de Aracaju,
Gilmário Macedo, implantou os distritos sanitários, capacitou os profissionais de saúde e
criou os conselhos comunitários. O convênio entre a Prefeitura e o Ministério da Saúde e o
Ministério da Previdência Social chegou prometendo mudanças conforme mostra o jornal:
para ele com a instalação do Sistema o atendimento será mais facilitado (Jornal da cidade, 10
de setembro de 1987.).
As lideranças sergipanas que tinham afinidade com o tema da saúde pública
parecem que estavam bastante articuladas com a discussão realizada na esfera nacional sobre
democracia, participação, reforma, saúde, etc, é o caso de Maia:
O Conselho era presidido pelo secretário de Saúde, Edney Freire Caetano que
realizou um estudo preliminar dividido por grupos temáticos durante três meses como forma
de entender melhor a implantação do SUDS.
A chegada do sistema era esperada como solução das ações pontuais. É o que
afirma o novo Secretário de Estado da Saúde Caetano. Pois ele acreditava que com a
execução da Reforma Sanitária instrumentalizada pelo SUDS haveria melhorias no modelo
assistencial, proporcionando grandes benefícios à comunidade, acabando com as dificuldades
de acesso ao tratamento de saúde que a população enfrentava (Jornal da Cidade, 13 e 14 de
dezembro de 1987).
Como vimos nos discursos das autoridades gestoras do novo sistema, a
implantação do SUDS seria o inicio de uma nova era para a saúde no Brasil. Isto nos parece
uma visão idílica frente aos problemas que o país sofria como ingerência, miséria, falta de
habitação, falta de saneamento, etc, merecendo de nosso lado uma análise mais atenciosa.
Assim, ao tentar entender o significado desses discursos temos que perceber qual o contexto
em que eles estão inseridos, o que está nas suas entrelinhas ou como diria Foucault “O novo
não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Foucault, pg. 26, 1996) até por
que continua ele: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(Foucault, pg. 10, 1996).
Os atores aqui destacados estão a todo tempo relatando a importância do SUDS, a
sua eficácia, sua intenção social, seus benefícios, etc. Eles estão em sintonia com o que num
dado momento diz Campos: “Há certo consenso entre estudiosos de que o Sistema Único de
Saúde tem representado uma política favorável à construção da justiça social e do bem-estar
entre os brasileiros” (Campos, pg. 2, 2007).
Ao analisar a implantação do SUDS, com o seu mecanismo de unificação dos
sistemas que já existiam e a descentralização das ações, percebemos nos discursos dos
gestores e da opinião do próprio diário que foi criado uma expectativa de o SUDS ser a
grande solução para todos os problemas da saúde publica sergipana. Por exemplo, os
questionamentos sobre a saúde que se indagavam aos gestores, de imediato eles respondiam
que tudo seria resolvido com a implantação do SUDS. Seja a falta de profissionais na rede de
saúde, a falta de medicamentos nos hospitais, as dificuldades de acesso aos serviços ou a
melhoria das instalações e condições de atendimento aos usuários, etc.
A opinião do jornal deixa claro que com a assinatura do convênio iria melhorar
significativamente o perfil da saúde publica no Estado. Fato este curioso já que o Jornal
pertencia a uma das famílias mais influentes politicamente de Sergipe e que saíram derrotadas
nas urnas para prefeito da capital e para Governador. Qual o interesse do tablóide em defender
e acreditar no SUDS? Será que algum acordo já estava em tela para as próximas eleições? O
diário tinha real independência ao ponto de não manipular nem intervir nas noticias?
É inegável a importância e os avanços do SUS que teve como precursor o SUDS.
Entretanto, apesar do diário pesquisado não demonstrar com clareza a diferença entre o
planejado e o que realmente foi realizado, fica evidente que em um país de dimensões
continentais e graves problemas sociais, conforme citamos, essas dificuldades no campo da
saúde não estariam resolvidas com a inicialização de um novo sistema de tamanha
complexidade. A conjuntura desfavorável da implantação distancia significativamente a
expectativa do garantido na norma do concretizado, ou seja, entre a visão altamente resolutiva
que os atores davam ao SUDS e o que no real pode ser feito. Isso nos leva a concordar com a
indagação que Campos faz:
A preocupação que Nestor Piva leva a Assembléia e pede a ajuda dos deputados
era com o desvio de foco que a implantação poderia tomar ao ponto de inviabilizar a reforma
sanitária ao não descentralizar e não ter a participação social como fiscalizadora do sistema.
(jornal da cidade, pg 02, 13/11/1987). Assim sendo, ficamos a pensar o que o presidente do
sindicato dos médicos quer dizer ao afirmar que se a Reforma Sanitária não for efetivamente
colocada em prática quem pagaria era a sociedade. Será que havia algum tipo de ameaça para
o sistema não ser implantado? Será que as forças políticas que foram contra a implementação
do sistema trabalharam para não ser uma experiência exitosa. Será que a participação e o
controle social no sistema incomodavam os demais atores? Enfim essa fala do Nestor Piva
nos leva a perceber que possivelmente existiam pressões em torno da chegada do SUDS em
Sergipe.
Com essas mudanças no sistema de saúde, as gratificações pagas aos servidores da
rede sofrem alterações e gera reação da categoria que se reúnem em assembléia para discutir o
assunto, apesar do Secretário da Saúde Edney Freire ter anunciado que concederia
gratificações de Cr$ 11 mil, (jornal da cidade 14 de outubro de 1987, local. Pg. 3). Porém, no
dia 18 de novembro de 1987 o Jornal da Cidade noticia que as gratificações ainda não tinham
sido pagas o que gerou protesto dos funcionários (jornal da Cidade 18 de novembro de 1987,
).
No dia 21 de novembro de 1987 a Prefeitura Municipal de Aracaju paga as duas
parcelas de gratificações referentes a setembro e outubro aumentando a insatisfação dos
servidores estaduais da saúde gerando tensão e a convocação de mais uma assembléia geral,
ganhando a primeira página do Jornal da Cidade: “Profissionais da área de Saúde ameaçam
greve” (Jornal da Cidade, 24 de novembro de 1987, capa).
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Reforma Sanitária será implanta em Aracaju. Jornal da Cidade. 23 de julho de 1987. Local.
Pg. 7.
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Secretário destaca unificação dos serviços de saúde. Jornal da Cidade. 14 de agosto de 1987.
política . pg. 2.
Servidores da Saúde decretam greve. Jornal da Cidade. 25 de novembro de 1987. Local. Pg.
3.
Este breve trabalho constituísse, sobretudo, de relatos acerca da trajetória de vida do famoso
sargento-mor Bento José de Oliveira, obtidos, principalmente, em fontes de época e na
historiografia sergipana. Esse personagem tornou-se célebre pela quantidade de crimes que
cometeu ou mandou praticar entre 1773 e 1806. Apesar de ser um simples soldado, chegou a
controlar e/ou inquietar às altas autoridades de Sergipe, Bahia e Pernambuco. Em 1806
encerrou sua famosa carreira criminosa ao ser enviado a Portugal, onde foi preso e faleceu
numa masmorra, ao que tudo indica. Ao estudar esse personagem pouco conhecido, talvez o
maior criminoso das plagas sergipanas, procuramos identificar indícios sobre violência, poder
e cotidiano durante as últimas décadas do período colonial na capitania de Sergipe.
489
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.27.
490
Felisbelo Freire (1891, p.200) comete grave erro ao além de incorrer num gravíssimo erro de considerá-lo
sucessor do capitão-mor José Gomes da Cruz em 1776, quando Bento José nunca foi capitão-mor de Sergipe
nem de parte alguma.
Amaro das Brotas, na região do Vazabarris. O pequenino tinha por irmão o futuro tenente-
coronel Francisco Teles de Oliveira491.
A primeira menção de sua existência que conseguimos colher data de 6 de março
de 1773. Nessa data Bento José sofreu processo na Vila de Santo Amaro sob a acusação de
deflorar a menor Isabel Teles, filha do capitão Pedro Muniz Teles. Para fugir das garras da
justiça decidiu fugir para a Bahia. No dia 24 do mesmo mês sentou praça, voluntariamente,
como soldado na Companhia do Antonio Lobo Portugal. Tal era a proteção das altas
autoridades por sua distinta condição social que logo foi promovido ao posto de sargento-mor
de ordenanças da Bahia. Dois anos depois (1775) volta a Sergipe. O irmão Francisco Teles de
Oliveira era, nessa época, nomeado pelo Governador da Bahia Manoel da Cunha Menezes,
para capturar recrutas. Bento foi chamado para a missão e os dois provocam badernas e
desvio de 60 mil cruzados492.
O capitão-mor José Gomes da cruz denuncia o golpe dos irmãos Oliveira ao
governador da Bahia que mandou prender Bento José, em 11 de dezembro de 1775. A ordem
de prisão mais parece um castigo dado a uma criança travessa: “Ordeno a Vmc., (que) o
chame com toda a civillidade a sua presença, e lhe intime que eu mando que elle Sargento-
Mór se recolha logo a hum dos engenhos de seu pai, do qual não sahirá, sem ordem minha”. É
bem provável que tal ordem não tenha sido respeitada, mas mesmo assim a “prisão” foi
suspensa em 9 de março do ano seguinte493.
Solto, Bento resolveu requerer durante os meses seguintes de sua “prisão” cinco
licenças consecutivas. Ameaçou ao Capitão-mor que se não concedesse mais licenças tiraria
de qualquer forma. José Gomes da Cruz resolveu comunicar o ocorrido ao Superior. O vice
rei, então, ordena que o abusado soldado comparecesse a sua presença. Bento foi forçado a
trazer a família e os bens e ficar longe de Sergipe. A ordem foi cumprida e o insolente
sargento-mor viveu os anos posteriores a 1776 em uma das vilas do sul da Bahia servindo a
Theodoro Gonçalves. Em 1776 deve ter casado com Josefa Maria de São José494. Não custou
491
Quando foi preso em Portugal, em 1808, alegou ter 59 anos e ser filho de Manoel Sandes Ribeiro (AHU,
Caixa 08, doc.09). Os livros de notas de São Cristóvão atestam a existência dos genitores de Bento que em 1738
faziam escritura de um sítio de terra no Vasa Barris ( APJES, CX.01, LV.02-FLS.149-155 e CX.02, LV.01-
FLS.264-266 ).
492
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 29 de agosto de 1920. p.2. Não conseguimos detectar os documentos
transcritos por Lima Júnior, talvez nem existam mais, visto que a pesquisa desse historiador foi realizada nos
últimos anos do século XIX e inicio do século seguinte.
493
idem.
494
Em 30/01/1776 era passada no cartório de São Cristóvão escritura de mandado feita entre Francisco Marques
da Silva, como administrador de sua filha Josefa Maria de São José, a João Lopez Chaves para contrato de
casamento. (APJES, LIVROS DE NOTAS. CX.02, LV. 01-FLS. 264-266);
para retornar a terra natal. Nos primeiros anos da década de 80 do século XVIII retornava
Bento José à vila de Santo Amaro sedento por vingança495.
Prontamente, buscou restabelecer seus antigos domínios. Nesse intuito, montou
um quartel-general no engenho Pati. Ciganos, criminosos de morte, ladrões, soldados,
prisioneiros eram seus funcionários. Baltazar Vieira de Melo, Tenente Coronel de Cavalaria
de Sergipe, faz representação ao Governador da Bahia, D. Rodrigo José de Menezes, em 26
de janeiro de 1786. Pedia para que o desobediente soldado fosse retirado da guarnição de
Sergipe. Reforçou com outra representação contra Bento José o Tenente Felipe Luis de Faro.
Prudente, D. Rodrigo, Governador da Bahia, quis ouvir o que tinha a dizer em sua defesa o
acusado. Bento exibiu em sua defesa com uma série de documentos oficiais que abonavam
sua conduta. Os documentos eram forjados por pessoas bem conceituadas. Diante de tais
provas e atestações, Bento não sofreu penalidade alguma. Esse acontecimento mudou o
comportamento do sargento-mor que se tornou mais violento.
A partir de 1786, Bento redobrou a prepotência e perversidade. Seus adversários
ou supostos adversários sofreram. O sargento-mor mandar assassinar na cidade de São
Cristovão a Antonio Teles e espanca com cacetadas a Manoel José Buena por dar queixa dele
ao Marques de Valença, governador da Bahia, por ter Bento roubado-lhe uma mulata. Em
Santo Amaro manda matar ao advogado Julião de Campos Pereira, por servir numa causa
contra o seu cunhado, Manoel Vital de Araujo, e surrar, a chibatadas, a viúva, a parda Ana
Roza. Apesar de a vítima ter dado queixa em Salvador, o crime ficou impune. Por desavenças
familiares, mandou tirar a vida a Manoel Alves, marido de sua sobrinha. O crime foi
executado por um escravo de sua irmã, que ganhou carta de alforria pelo serviço prestado496.
Junto a Jacinta e Antonio Pereira da Silva mandou assassinar ao tenente Francisco
de Faro Leitão. O irmão da vítima, capitão-mor de ordenanças Felipe Luis de Faro Leitão,
sabendo da proteção que contava Bento José em Sergipe, resolveu denunciá-lo na Bahia.
Outro crime impune. Na vila de Itabaiana, ordenou, sem motivo aparente e autoridade para
isso, a prisão efetuada pelos suas capangas, um homem do povo que em seguida foi
misteriosamente assassinado. Mandou matar ao cabra João Pereira e ao cabo Antonio Felix.
Em Laranjeiras, próximo a localidade de Comandaroba, mandou matar a uma mestiça,
escrava de José Alves Quaresma, por ela ter dado queixa na Bahia ao Governador D.
Francisco da Cunha Menezes por ele ter vendido duas filhas menores (uma a Francisco Alves
495
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 31de agosto de 1920. p.2.
496
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
497
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
498
Idem.
499
Idem.
500
Idem.
meses de 1806, mandou surrá-lo em sua própria residência por José Alves Quaresma com
espada, cacete e chicote. Por ter barganhado um cavalo de seu sobrinho501.
O governo Baiano mostrava-se indiferentes a sorte das vitimas das atrocidades do
sargento-mor. Intimado a comparecer em Salvador para responder pelos seus crimes, Bento,
ao que tudo indica, de modo matreiro consegue um atestado do cirurgião Manoel Rodrigues.
Alegou motivos de saúde para empreender tão longa viagem. O estratagema deu certo502.
Bastante ousado era Bento que para confirmar o título de autoridade suprema
mandou construir em sua propriedade um cárcere onde cobrava dos prisioneiros uma pataca
(320 réis) pela estada em seu cárcere privado; tirava mulheres, inclusive as “bem nascidas” de
seus esposos ou pais e dava-as a quem bem entendia, exigia dívidas não contraídas e perdoava
dívidas reclamadas sem ganho de causa para a parte lesada. Era o supremo Juiz da Capitania.
Furtou com ostentação a Santa Casa de Misericórdia – foi nomeado pelo ouvidor provedor e
procurador da dita instituição. Com o cargo de Provedor de ausentes, roubou legalmente os
bens de muitos desvalidos. Aos corruptos ouvidores e juízes corrompeu e os tornou servis a
seus desejos. Engenhoso na prática criminosa e bem protegido pelas autoridades eram as
receitas do sucesso de Bento José503.
Em 1805, Bento se apossou de 6 mil cruzados dos bens dos ausentes e mais 80
mil réis de dois infelizes naufragados de duas embarcações perdidas na barra do rio
Cotinguiba. Contudo maior ousadia cometeu ao receptar a arroba e meia de carne do capitão-
mor Mesquita Pimentel. O meirinho, temendo as conseqüências, levou as belas postas de
carne que deveria alimentar ao capitão-mor e família, primeiro a casa de Bento que se
apropriou da melhor parte e deixou ao dito capitão-mor apenas meia arroba de pescoço e
costela. Mesquita Pimentel mandou prendê-lo, ordem que nenhum dos oficiais de justiça quis
ousar pôr em prática. Revoltado, Mesquita Pimentel envia suas queixas ao Governador da
Bahia. Na denúncia mencionou os diversos crimes em que Bento era acusado504.
Nos primeiros anos do século XIX formou-se um grupo forte de oposição às
arbitrariedades de Bento José. Fazia parte Antonio Muniz de Souza, autor de Viagens e
observações de um brasileiro, o ouvidor interino Henrique Luis de Araujo Maciel e a Câmara
de Santo Amaro das Brotas. O mais poderoso adversário era Henrique Luis de Araujo Maciel.
501
Idem.
502
APEB. Secção de Arquivo Colonial e Provincial. Maços 190, 192, 196. Nessas pacotilhas há outros delitos
em que Bento e seus protegidos são acusados de outras atrocidades.
503
Idem.
504
Idem.
Bento tentou eliminá-lo. Enviou, em 1805, 13 bandidos para matar o ouvidor interino que
morava em Santo Amaro. Por sorte, o ouvidor escapou do sinistro plano505.
Cansados de reclamarem ao governo baiano, os camaristas de Santo Amaro e
outras vítimas resolveram denunciar os abusos ao príncipe-regente D. João VI. A
representação mandada pela Câmara. Dom João VI ordena em 24 de maio de 1806 a captura
de Bento. Em 28 de abril o conde de Ponte, governador da Bahia, manda capturar sem êxito o
criminoso.
A execução da ordem régia deu-se pela ação traiçoeira do capitão-mor Felipe Luis
de Faro Menezes e do juiz de ordinários José de Barros Pimentel. O sargento-mor acabou
sendo surpreendido no engenho de seu pai em 22 de novembro de 1806 e remetido à cadeia de
Santo Amaro, vigiado e guardado com toda segurança e cuidado. José Leandro de Almeida,
amigo de Bento e juiz ordinário de Santo Amaro, tentou ainda tirá-lo da cadeia.
No mês seguinte foi remetido à Bahia em diligencia comandada por João
Fernandes Chaves com oito soldados na lancha Triunfo. A 26 de dezembro, o Conde de Ponte
informa ao Príncipe Regente da prisão do famoso criminoso. A 24 de abril, o visconde de
Anadia, por ordem do mesmo príncipe, ordenou que o réu fosse remetido em navio seguro a
terrível prisão do castelo de Lisboa. Bento acabou sendo mantido preso numa masmorra fria o
que debilitou sua saúde. Tentou, em vão, ser liberto para se tratar da enfermidade. É bem
provável que o famoso sargento-mor tenha falecido em alguma prisão lisboeta506.
A fígura de Bento José de Oliveira nos possibilita enxergar os conflitos e cisões
da elite sergipana setecentista, a vida difícil dos homens livres bem como o clima de violência
e insegurança das últimas décadas do século XVIII e início do século XIX atestadas pelas
fontes de época. Bento José, de certa forma, mostra-nos as vicissitudes da ordem social e
política de uma época. Pelo uso da força e de crimes, Bento José foi, indubitavelmente, o
homem mais poderoso da capitania de Sergipe, mesmo sem ser o mais rico.
505
Idem.
506
Idem
Referencias bibliográficas
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da História de Santo Amaro das Brotas. Santo Amaro das Brotas: s/d, 2007. p.79-93;
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p.243-244;
Tratava-se de mais um alerta emitido pelos poderes públicos, por meio de um dos
seus instrumentos de controle – a Guarda Municipal. No entanto, este breve aviso publicado
discretamente na imprensa oficial é um sinal dos propósitos e dos meios utilizados para tentar
criar um padrão de comportamento e de organização na cidade no ano de 1933. A Guarda
Municipal foi inaugurada para se tornar um dos principais elementos dentro do sistema de
fiscalização implantado em Itabuna. A principal referência desta polícia de costumes seria o
Código de Posturas publicado e apresentado aos habitantes no mesmo ano de 1933. São esses
dois elementos que constituíram parte da política urbana adotada para os itabunenses que
poderá nos oferecer a medida com que os trabalhadores se relacionavam com as ações da
ordem estabelecida dominante.
Em 2 de abril de 1933, em inauguração solene que reunia as tradicionais figuras
políticas da cidade por volta das 10 horas da manhã, além da presença de estudantes e de
associações do município, foi apresentada a Guarda Municipal de Itabuna. Acerca dos
motivos que levaram a criação desta instituição, Alpoim justificava a intenção em dotar a
cidade com medidas de segurança que ratificariam o estado de paz da sociedade itabunense.
O Sr. Dr. Claudionor Alpoim, Prefeito Municipal, disse dos motivos que o
levaram criação daquela Guarda, em que todos terão de ver mais um fator
de segurança, ordem e engrandecimento do município.
Esclareceu que esse melhoramento foi organizado, sem maiores ônus para
os cofres públicos e que da ação da profícua da Guarda é de se esperar
grandes resultados, não só no que concerne a ordem pública e respeito à
moral, como na observância das posturas municipais e, finalmente, também
na arrecadação das rendas.508
A Guarda Municipal parecia ser uma instituição há muito desejada pelo poder
político. Encaixando-se como um dos melhoramentos urbanos realizados pela administração
pública, as atribuições dos soldados passavam de uma maneira geral em manter a segurança e
a ordem com vistas ao desenvolvimento da cidade. Do ponto de vista filosófico, reforçava-se
a crença positivista de que somente com o estabelecimento da “ordem” será possível alcançar
o crescimento local. Outra função da nova segurança municipal seria a de preservar a
moralidade no seio da sociedade itabunense, atuando de forma a policiar os costumes de
origem popular. Está claro que essas condições de ordem e os aspectos morais impostos para
507
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 16 de junho de 1933, Ano II,nº 112, p.6.
508
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de abril de 1933, Ano II, n.º 102, p.16.
a sociedade eram criados pelos segmentos hegemônicos e dispostos aos trabalhadores, ainda
que de forma pouco democrática. O instrumento que sintetizaria todos os itens citados acima
deveria ser o Código de Posturas de Itabuna, o que daria o peso da medida para julgar o
comportamento e as ações dos habitantes.
A estrutura da Guarda Municipal de Itabuna foi montada a partir de hum inspetor
geral, responsável maior pelas atuações dos guardas na cidade; quatro guardas de primeira
classe; e vinte guardas de segunda classe, que foram nomeados através de concurso pela
prefeitura. Sua sede, situada à Rua 23 de novembro, era considerada pequena, mas suficiente
para atender a demanda local, como informava o órgão noticioso do governo. Em nota
reproduzida do jornal ilheense Diário da Tarde, o Jornal Oficial comparava a nova instituição
às das capitais do país, que tinha por objetivo “zelar pelo respeito às leis municipais e auxiliar
a ação da polícia na manutenção da ordem, impedindo a prática de atos que possam ferir o
progresso e a segurança.”509 Isso sugere que, em última instância, aqueles que ferissem “o
progresso e a segurança”, isto é, não concordassem com a política urbana adotada pelas
municipalidades e apresentasse maior resistência, haveria sempre o recurso da contenção mais
efetiva da Guarda Municipal.
As condições para se tornar um guarda municipal eram bastante rígidas.
Consultando o Regimento Interno desta instituição, observa-se que no item relacionado aos
Deveres e Direitos dos membros da corporação é chamada atenção para que os pretendentes
às vagas devessem “primar pela sua disciplina irrepreensível, extrema dedicação ao serviço, a
urbanidade, zelo e solicitude.”510 Para ser mais específico, uma das premissas defendidas no
regimento dizia respeito à proibição da entrada dos soldados em “cabarets” e casa de jogos (a
menos que estivessem a serviço), da prática de agiotagem ou venda de rifas entre os membros
da corporação, ou ser remunerado pelos serviços prestados pela guarda municipal.
Se as recomendações a serem seguidas pelos soldados já eram rígidas, não seria
diferente com relação às competências a serem desenvolvidas pelos membros da corporação
nas ruas da cidade. O regimento deixava claro o que e quem deveria ser detido e
encaminhando à autoridade municipal:
511
Idem, Ibidem.
512
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. Trad. Jônata Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. O autor trata dessa questão ao estudar os códigos eclesiásticos que
permearam as relações entre homens e mulheres durante a Idade Média, especialmente acerca do amor cortês
que fundamentava o matrimônio na sociedade medieval. pp.12-13
Não deixa de surgir das trevas, meia dúzia de espíritos maléficos, tentando
implantar entre nós a desunião; mas, felizmente, sempre tem sido cortadas as
suas covardes investidas, pois eles não resistem a luz que clareia o cérebro
dos bem intencionados, assim como a ave agorenta não resiste a luz do dia!513
513
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 6 de janeiro de 1942, Ano VIII, n. 553. p.2.
514
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 1 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6.
515
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 5 de agosto de 1935, Ano V, n.º229.
516
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231
517
MAUCH, Claúdia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 1992. Partindo de uma visão foucaultiana da
ação policial em Porto Alegre do século XIX, a autora busca compreender o olhar vigilante dos policiais através
das condutas e dos comportamentos impostos à estes trabalhadores.
518
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de junho de 1933, Ano II, n.º 114. p.8; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de julho de 1933, Ano II, n.º 116. p.4.
519
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 27 de maio de 1933, Ano II, n.º 114. p.8
520
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 231.
sempre, essas medidas eram entendidas pelas autoridades como condutas desviantes que
deveriam ser punidas e eliminadas numa cidade que buscava um padrão de urbanidade.
Quanto mais esses comportamentos fossem freqüentes, mais forte e intensa seriam
as medidas do poder público. Não é por acaso que diante do elevado número de desordens e
de desacato registrados pelos membros da corporação, João Moraes, comandante da força
pública, publicasse no Jornal Oficial uma série de leis que deveriam ser obedecidas em 1938.
entre vários pontos relativos hábitos, higiene e segurança, destaco aquela que se referia a
importância da moral e da obediências aos princípios de urbanidade de Itabuna, em que dizia:
“Tudo que não é verdadeira moral é imoralidade [...] É expressamente proibido a quem quer
que seja proferir palavras ou atos obscenos ofensivos à moral ou bons costumes, em qualquer
parte. [...] Governar sem a contribuição espontânea do povo não é fácil.”524
Em 1942, o mesmo João Moraes aparecia ainda mais ufanista quanto ao papel da
Guarda Municipal. Talvez influenciado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o
comandante oferecia ares patrióticos à função cumprida por seus subordinados. Dizia que os
soldados da guarda deveriam ajudar no policiamento da cidade, ajudando ao delegado local,
devendo agir com serenidade e prudência. Mas não se esquecia de dizer que sua instituição
não toleraria qualquer movimento subversivo em defesa do “povo, e se parte desse povo,
confundir patriotismo com anarquia devemos voluntariamente [...] repelir o inimigo exterior e
manter a ordem interior.” 525
Ao lado da polícia, a Guarda Municipal atuava fortemente na repressão ao jogo do
bicho. Entre abril e maio de 1938, ocorreram diversas apreensões de materiais relacionados a
jogatina. Isso porque o Interventor do Estado Landulfo Alves e o secretário da prefeitura
Nathan Coutinho trocaram telegramas acerca da importância de se combater os jogos ilícitos.
Negando a existência de tal transgressão em Itabuna, a prefeitura prometia se manter vigilante
aos jogadores, afirmando que “Município Itabuna onde jamais entrou malfadado vício confia
esclarecido governo V. Exc.ª manter sua tradição hipotecando inteiro apoio todas as medidas
visem o saneamento de nosso Estado.”526 Firmando esse propósito, possivelmente o executivo
tenha pressionado a Guarda a reforçar sua atuação contra a jogatina. Somente no mês de maio,
foram cinco apreensões. Destaca-se a diligência efetuada Argemiro de Oliveira, que
encontrou sob posse de Adelino Soares da Silva vários talões de jogo do bicho e a quantia de
48$000 (quarenta e oito mil réis) decorrente de seus clientes. Além de oferecer ajuda para a
524
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379.
525
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 19 de agosto de 1942, Ano XI, s;nº, s/p.
(documento deteriorado)
526
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de abril de 1938, Ano VII, n.º 365. p.6.
527
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367. p.6.
528
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 15 de agosto de 1936, Ano VI, n.º 281; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano IX, n.º 455. p.10.
descontinuidades históricas evidentes no agir, nos discursos das autoridades municipais e nas
vontades rebeldes, como afirma Certeau, foram se erguendo a sociedade itabunense.529
Apareceram assim os sujeitos históricos “de baixo” para reafirmar suas posições e negar a
força “preponderante” dos coronéis, e descobrir as diferenças e as desigualdades sociais.
529
Apud CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. TRad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 161. Para Chartier, Certeau produz uma noção de
história onde a coerência pode ser encontrada nos “desvios”, que na verdade não são desvios, mas sim, formas
elucidar a relação mantida entre o discurso hegemônico e o corpo social que o sustenta e o questiona ao mesmo
tempo.
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
âmbito daquilo que identificamos como “criminalidade”, 530 no intuito de, acompanhando as
trajetórias de vida de sujeitos criminosos ou criminalizados, identificar as relações
estabelecidas entre os mesmos e os demais segmentos da cidade de Salvador.
O contato com as fontes nos possibilita afirmar que, entre 1940 e 1964, havia uma
forte incidência de ações consideradas como criminosas, tendo a imprensa, em alguns
momentos, alertado para os altos índices de violência na cidade. Se tomarmos este veículo de
comunicação como ferramenta de representação dos anseios e angústias dos grupos
hegemônicos, podemos, a partir de seu discurso, ter uma idéia de como esses grupos estavam
pensando os problemas oriundos da criminalidade.
Preocupado em analisar o momento da perspectiva das mudanças e permanências
na cidade de Salvador, buscaremos mostrá-las a partir da dinâmica da criminalidade, visando
captar, entre os sujeitos dos mais variados segmentos sociais, as táticas531 cotidianas532 de
sobrevivência face à violência presente nas relações familiares, de trabalho e de lazer. Temos
por hipótese que, de certa forma, a criminalidade acabou transformando e redefinido as
relações sociais antes estabelecidas na Salvador Republicana de 1940-1964. Isso nos remete a
pensar como esses conflitos e tensões ocorridas na cidade foram capazes de influenciar nas
práticas cotidianas da época.
II – APRESENTANDO O LABIRINTO
530
Criminalidade e crime serão aqui trabalhados de acordo com a definição de Boris Fausto, em sua obra Crime
e Cotidiano, na qual o mesmo entende as duas expressões como tendo significados específicos. Para ele,
“’criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de
padrões através de constatações de regularidades, cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno na sua singularidade,
cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas
percepções.” (FAUSTO, 2001, p. 19).
531
Utilizo-me aqui da definição de Michel de Certeau, que o denomina tática, “... um calculo que não pode
contar com um próprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática
só tem por lugar o do outro (...) Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas
expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias (...) Tem constantemente que jogar os
acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, os fracos deve tirar partido de forças que lhe são
estranhas.” (CERTEAU, 1994, pp. 46-7).
532
Sobre a idéia de cotidiano, optamos por trabalhar com os argumentos de Maria Odila Leite da Silva Dias, que
assevera ser este, “sempre legado ao terreno das rotinas obscuras, o quotidiano tem se revelado na história social
como área de improvisação de papeis informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se
multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o político no campo da história social
do dia-a-dia... (DIAS, 1995:14-5)”. Processo que tem como implicação, a reconstrução da organização de
sobrevivência dos grupos historicamente marginalizados do poder.
por sujeitos pertencentes às camadas subalternas. Os indivíduos aos quais buscamos estudar
serão aqueles que de certa forma ocuparam espaços marginalizados da sociedade
soteropolitana, tanto nos espaços físicos, como pelas posições sociais de pouco prestigio na
mesma.
Concentrar-nos-emos naqueles sujeitos cujo exercício da cidadania, de certa
forma, foi-lhe extirpado pelas elites dominantes locais. Trata-se de pessoas de pouca ou
nenhuma escolaridade, trabalhadores das mais variadas profissões, desempregados, de baixo
poder econômico e em sua maioria, negro. Cabe ressaltar que ao longo dos séculos de história
brasileira, as camadas subalternas têm sido comumente estigmatizadas de diversas maneiras
pelas elites dominantes, as quais impuseram uma imagem às populações negras e pobres,
sempre associada à violência.
A partir de diversas formas de segregação impostas a esses grupos, construiu-se
um discurso da busca pela segurança, cujo objetivo foi assegurar às camadas dominantes o
controle sobre os mesmos, que eram vistos como uma ameaça à sociedade. Para alguns
autores, aqueles que seriam considerados “vitimas” desse violento processo de exclusão que
historicamente se constituiu, tornaram-se os principais alvos do novo projeto de repressão,
formulado na sociedade (CANCELLI, 1994; FRAGA FILHO, 1996;).
No contexto da década de 1940, foram realizadas várias obras na cidade buscando
o “bem estar social” para os habitantes, um período de grandes construções.533 O processo de
urbanização e, a tentativa de industrialização realizada durante a década de 1950 em Salvador,
incluso em um projeto de modernização da cidade, foi capaz de modificar os pensamentos e
hábitos de seus moradores.534 A partir desse processo aumenta-se o perímetro urbano da
mesma, surgindo novos bairros e avenidas, ampliando-se a população local.535 Com isso
passam a surgir graves problemas sociais, resultado desse processo de modernização vivido
pela capital baiana, para os quais as autoridades reservavam pouca atenção.536 Começam
surgir habitações irregulares, em espaços sem saneamento básico, iluminação elétrica, entre
outros serviços necessários para o bem estar dessa população.
A insuficiência do mercado de trabalho na Bahia de 1940, teria contribuído para
ampliação do êxodo de pessoas de alguns municípios para a capital do Estado na busca por
melhores chances profissionais. Segundo Ferreira Filho (2003), neste período o mercado de
533
Precisamos de terra para construir nossas casas. . Jornal da Bahia, Salvador, 28 set. 1958, p. 6
534
GOMES, Pimentel. A industrialização da Bahia. Jornal da Bahia, Salvador, 28 out. 1958, p. 2; GOMES,
Pimentel. Salvador, cidade culta e dinâmica. Jornal da Bahia, Salvador, 01 out. 1958, p. 2
535
Enquanto novas construções se fazem e a cidade se amplia. A Tarde, Salvador, 22 de mar. 1941, p. 2
536
Ao povo não se engana. Jornal da Bahia, Salvador, 24 set. 1958, p. 2; Salvador, cidade imunda: das 250
toneladas de lixo apenas 120 são coletadas. . Jornal da Bahia, Salvador, 11 ago. 1958, p. 5
trabalho era extremamente restrito, o qual contava com o fraco poder de consumo, fruto do
baixo poder aquisitivo da população. Isso teria contribuído para o surgimento de novas
alternativas de sobrevivência na cidade, coincidindo com os índices assustadores de vadiagem
e violência urbana.
A tentativa de modernização da cidade de Salvador é pensada por Fonseca (2002),
enquanto um projeto amplo de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais e políticas. Para
ele, nas primeiras décadas do século XX, o bojo da luz das reformas urbanas vivenciadas pela
cidade, buscou-se reformulações comportamentais, melhor dizendo, normatizações
comportamentais. Desta forma, para se conseguir reformar a cidade foi necessário “...
incorporar modernas práticas de lazer, escolarizar as mulheres, repensar a família, redefinir as
formas de sociabilidade no espaço publico...” (FONSECA, 2002, p.25).
Desde os primeiros anos desse período, o crescimento da criminalidade já era
noticiado pela imprensa baiana que via os problemas de ordem estrutural como elementos que
facilitavam a ação dos criminosos. A falta de policiamento nas ruas da cidade era
constantemente questionada por essa imprensa. Segundo a mesma, a onda de criminalidade
vivida em Salvador não se restringia apenas aos “bairros populares”, incluía também os
centros da cidade, cujas políticas de prevenção exercida pelos policiais tornavam-se uma
prática de pouco efeito.537
As fontes evidenciam uma cidade com altos índices de violência, cuja falta de
segurança, quase sempre denunciada pela imprensa baiana, refletia os descasos das
autoridades frente aos problemas enfrentados por essa sociedade. Nesta última existiam certas
modalidades de crimes mais comuns, os quais refletiam o universo social no qual o criminoso
se inseria. Esse sujeito aparecia envolvido em disputas pessoais que, em alguns casos,
resultavam em morte. Além disso, é possível perceber como o processo de exclusão e
violência, contra alguns grupos sociais, era bastante evidente nas décadas de 1940-1964. Isso
remete à questão de que, historicamente, as políticas adotadas no combate à criminalidade,
pelas autoridades policiais, têm sido resumidas às medidas repressivas.
A violência sempre esteve presente na sociedade brasileira envolvendo sujeitos
das mais diversas esferas sociais, porém, a repressão institucionalizada quase sempre foi
direcionada contra grupos marginalizados por essa sociedade. O Estado se utilizou da
prerrogativa de estar buscando a manutenção da “ordem social”, submetendo toda sociedade
civil organizada ao seu jugo, sob vigilância policial, sendo que certas camadas foram mais
537
A repressão é enérgica mais os infratores não desistem. A Tarde, Salvador, 21 de fev de 1951, p. 8
perseguidas por essa vigilância, as quais formadas, em sua maioria, por pessoas negras, de
baixa renda e de pouca escolaridade. As representações policiais, quase sempre,
reivindicavam o monopólio do uso da violência no combate à criminalidade, tendo o poder de
definir quais os grupos seriam criminalizados e, por sua vez, perseguidos (CANCELLI, 1994;
FRAGA FILHO, 1996;).
Cancelli (1994), ao estudar a violência durante a “Era Vargas”, vai afirmar que o
Estado, obcecado pelas transformações, apropria-se do uso da violência como instrumento
transformador, outorgando o monopólio da mesma, na tentativa de impor seu poder na
sociedade. Sobre isso, a autora argumenta: “... ao conjunto de instituições o Estado reserva
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer a forma
específica de poder que é a ‘governamentalidade’ e, cujo alvo é a população...” (CANCELLI,
1994, p. 22-3). A justificativa para sobreposição do Estado à Lei e às garantias dos direitos
dos cidadãos era que o uso da violência ─ entenda-se aquela direcionada aos sujeitos
considerados criminosos ─ seria defendida pelos poderes públicos como necessária para
preservação da “ordem” e do bem estar da população.
A temática das “formas de compreensão, vivência e construção da
criminalidade538 em Salvador de 1940-1964, pelos criminosos pertencentes às camadas
subalternizadas”, se insere em um contexto histórico, no qual aspectos da violência são
apresentados com freqüência em nossa sociedade, seja através das políticas públicas de
segurança, seja pelos conflitos entre os indivíduos em particular.
Nas últimas décadas, a História Social tem realizado um grande esforço no sentido
de tentar compreender as relações historicamente estabelecidas entre as diferentes camadas
sociais, sobretudo a historiografia que estuda as práticas cotidianas dos sujeitos pertencentes
aos seguimentos ditos subalternos. Neste contexto, para a apreensão dos comportamentos
violentos das camadas sociais que constituía a população soteropolitana, buscamos situá-los
538
Para realização de um estudo sobre a criminalidade é necessário que delimitemos quais os tipos de crimes que
pretendemos pesquisar, pois pensar este problema social é remeter-se a uma série de atos contrários às Leis,
tornando-se algo muito generalizante para uma pesquisa. Diante dessa questão, buscamos delimitar nossas
atenções em estudar, especificamente, duas modalidades de crimes: as formas de Homicídios: Simples,
Qualificado, Culposo e as formas de Lesões Corporais: de Natureza Grave, Seguida de Morte, Culposa, ambas as
modalidades presentes no Código Penal de 1940, na Parte Especial, Título I, Dos Crimes Contra a Pessoa,
especificamente Capítulos I e II, que dispõe de crimes Contra a Vida e das Lesões Corporais, respectivamente.
prática dos crimes indicam padrões culturais, com os quais o autor acredita refletir o estágio
tecnológico da sociedade na qual o sujeito está inserido.
Para Fausto (2001), a violência pode ser empregada com o objetivo de alcançar
determinados objetos materiais, ou pode ainda ser utilizada para resolução de conflitos
pessoais nos quais os sujeitos acabam se envolvendo. Com base nesse pressuposto tentarei
identificar os motivos mais comuns para as ações criminosas, visando entender de que forma
essas ações foram capazes de deixar suas marcas em alguns espaços da cidade de Salvador.
Em seu trabalho, Sodré (1992) analisa a relação dos indivíduos com o território
ocupado, asseverando que o território está muito ligado à questão da identidade daquele que o
ocupa, pois o mesmo refere-se à demarcação de um espaço na diferença com os outros
sujeitos. Segundo este autor, é no território que as pessoas traçam limites, especificam o lugar
e criam as características de suas ações. Com base nesses argumentos, as práticas criminosas
ocorridas na cidade de Salvador podem ser pensadas enquanto demarcação espacial, por parte
dos sujeitos criminosos, na sociedade ao qual os mesmos estão inseridos, bem como uma
forma encontrada para afirmação de um suposto poder frente aos outros.
A idéia de pertencimento a um mesmo território não impedia que houvesse
conflitos entre as pessoas que nele habitavam, pois, num mesmo espaço urbano se encontrava
presente um conjunto de famílias, cujas experiências de vida eram muito distintas umas das
outras, mas que em certo sentido se respeitavam, firmando uma espécie de “contrato social”.
Para Certeau (1996), esse compromisso só é considerado quando as pessoas renunciam “à
anarquia das pulsões individuais” o que, segundo o ele, contribui para o relacionamento
coletivo da convivência cotidiana, embora algumas vezes esse compromisso pareça não ser
considerado.
Em sua obra, Trabalho Lar e Botequim, Chalhoub (1996) desenvolve argumentos
no sentido de conclui que os conflitos entre os trabalhadores, estudados por ele, surgem da
dinâmica dos grupos como ajuste das tensões no interior das relações sócio-culturais dos
micro-grupos, para os quais o crime é apresentado como representação ou leitura de mundo.
A partir dessa leitura, o autor mostra o crime como uma possibilidade de solucionar as tensões
e conflitos existentes entre eles.
A incorporação da violência enquanto um modelo de conduta socialmente válido,
evidenciado por Chalhoub (1996), constitui-se através de normas próprias que regulam os
conflitos entre os trabalhadores livres do Rio de Janeiro. Segundo o autor, algumas dessas
tensões entre esses micro-grupos eram solucionadas sem a intervenção do Estado, evitada
sempre que possível como forma de resistência à nova ordem social. Recorremos a este
IV – LABIRINTO DOCUMENTAL
539
Os periódicos que estão sendo utilizadas nesta pesquisa são: A Tarde, Correio da Bahia, Diário Oficial,
Diário da Bahia, Diário de Notícias, Jornal da Bahia.
dos periódicos baianos, em especial do Diário Oficial do Estado da Bahia, no qual podemos
encontrar ações e atos promovidos pelo governo estadual.
Por fim, recorreremos às obras de memorialistas que escreveram sobre a cidade no
período em que a pesquisa está contextualizada, por entender que estes trabalhos nos
possibilitarão captar vestígios da história da cidade. Assim como as demais fontes aqui
pretendidas, os livros de memórias com suas subjetividades serão entendidos como reflexo do
pensamento de determinados grupos da sociedade baiana, cujas formas de compreensão sobre
a cidade, como as diversas informações sobre a mesma serão significativas para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Os inúmeros vestígios contidos nas fontes mencionadas, embora dispersas em
algumas instituições responsáveis em garantir sua preservação,540 visam dar conta da
problemática aqui elaborada. A diversidade dessas fontes contemplará os objetivos almejados
nessa pesquisa, pois esses vestígios contêm muitas informações sobre as trajetórias cotidianas
dos mais variados sujeitos históricos que este trabalho pretende estudar, tanto o criminoso em
sua particularidade, como sua relação com a sociedade.
As fontes que tratam da temática são produzidas por profissionais que se
apropriam do discurso jurídico-policial, refletindo assim, a linha de pensamento desses
setores. Destacamos, porém, que toda documentação possui suas peculiaridades discursivas e,
devido a sua complexidade, os discursos contidos nessas fontes, não podem ser simplesmente
reproduzidos, indiscriminadamente. Para além disso, é preciso submetê-los a uma análise
crítica, fundamentada num conjunto de referências bibliográficas que versem sobre a
temática, tendo como objetivo, entendê-las no contexto em que foram produzidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
540
Arquivo Público do Estado da Bahia – APEBa; Biblioteca Pública do Estado da Bahia – BPEBa; Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia – IGHBa.
_______________ Textos, Impressão, Leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural.
2. ed São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. O que a micro-história tem a nos dizer sobre o
regional e o local?. In: História. Unisinos – Vol. 8, Nº 10, jul/dez, (157-178) 2004.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed.
rev São Paulo: Brasiliense, 1995.
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. Criminalidade em São Paulo, 1880/1924. São Paulo:
Brasiliense, 2001.
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance!: mundos
femininos, maternidade e pobreza em Salvador, 1890-1940. Salvador: CEB, 2003.
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX.. 1. ed.
São Paulo: HUCITEC/EDUFBa, 1996.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais escravos e cidadãos em São
Paulo no final do século XIX - São Paulo, 1987.
SODRÉ, Muniz. O social irradiado: violência urbana, neogrotesco e mídia. São Paulo:
Cortez, 1992.
A notícia acima é mais um dos vários reclames encontrados acerca dos valientes.
Encontrar tal personagem assim referido: “valientes”, provoca indagações a respeito desta
categorização. Quem seriam os “valientes”? Por que indivíduos eram assim designados nos
541
Arquivo Público Municipal de Itabuna – José Dantas (APMIJD). Voz de Itabuna, 27/04/1954.
idos dos anos 1950. Quais os elementos que estavam implícitos ao discurso enunciado no
jornal? Quais eram os lugares que freqüentavam?
Os valientes eram sujeitos históricos que permeavam as matérias dos jornais da
década de 1950 como indivíduos de má conduta e promotores de desordens que, quando não
estavam nas páginas policiais, estavam nas crônicas sendo alvo de duras críticas e acusações.
Segundo o Voz de Itabuna, nessa década a violência era algo muito presente no
cotidiano da cidade, sendo alvo de indignação e denúncia expressada nos artigos desse jornal
e por vezes associada aos problemas de ordem estrutural, “... a partir das 18 horas as ruas dos
subúrbios transformam-se em zonas perigosas, onde só os bêbados e os meliantes têm
passagem franca”542 e, “saindo-se do centro, onde nunca falta iluminação, entra-se no restante
da zona urbana onde o silêncio e a treva fazem denotar ameaças de bombardeiro...” 543.
A respeito da matéria que se refere aos subúrbios enquanto zonas perigosas a
partir das dezoito horas, havendo espaço apenas para os “meliantes”544 – essa designação,
meliante chama atenção, posto que é um dos termos da linguagem policial recorrente na
documentação onde é atribuído à pessoas de má conduta, que está em desacordo com a ordem
estabelecida, principalmente àqueles oriundos das camadas sociais mais pobres - que segundo
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa malandro, vagabundo. Isso ocorria
porque esses lugares tinham a iluminação precária o que facilitaria a ação desses indivíduos.
Notícias como estas precisam ser problematizadas.
O Voz de Itabuna, no decorrer dos anos de 1950, pertencia à oposição em relação
aos partidos que estiveram no comando da máquina administrativa . Logo é possível perceber
uma crítica à administração local, que perpassou muito por questões ligadas ao
beneficiamento de determinadas áreas da cidade em detrimento de outras. Centro e o subúrbio
eram pauta cotidiana das páginas desse periódico. E segundo essas notícias havia um
privilegiamento do centro da cidade. Talvez, seja porque o discurso modernizador tenha
chegado à Itabuna, ou pelo menos a seus jornais. Já que a vontade de modernização pela qual
a cidade estava passando naquele momento, respaldava as reivindicações encontradas
naquelas páginas.
Voltando à notícia, fica mais fácil de compreender o teor e o tom, dessa matéria,
quando leva-se em consideração que o Voz de Itabuna, além de ser um jornal da oposição,
542
Voz de Itabuna, 25/05/1951.
543
Ibidem, 07/10/1950.
544
Etimologicamente encontramos a seguinte origem: cast. maleante (1609) 'burlador', de malear, este der. de
malo 'mau'; ver mal(e)-; f.hist. 1858 miliànte, 1877 meliànte .Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=meliante&stype=k. Acessado em junho de 2007.
como já referido acima, tinha como proprietário Aziz Maron, deputado federal pelo Partido
Trabalhista do Brasil (PTB), que cedia um espaço privilegiado em seu jornal para as
campanhas eleitorais de Getúlio Vargas. Este, por sua vez, estava empenhado no processo de
industrialização do Brasil, que fazia parte de um projeto maior, o de contemplação do
discurso modernizador iniciado nos primeiros anos do século XX, que posteriormente foi
muito criticado pela historiografia545.
Em meio a esse contexto, Itabuna aparecia nas páginas dos jornais destacando os
problemas com a violência, de forma, inclusive sangrenta. Retomando o início dos anos de
1950, encontra-se um alerta sobre o comércio de armas em Itabuna, que estava acontecendo
sob os auspícios da polícia, os “elementos de farda”.
545
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves. O tempo do liberalismo excludente: da
Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
546
Ibidem, 25/03/1950.
547
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro:
1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
548
Voz de Itabuna, 25/03/1950.
549
OLIVEIRA, Maria Delile Miranda. Tecendo Lembranças. Itabuna: 2006.
550
D’ANDRADE, Cláudia Viana Ávila. Capoeira: de luta de negro a exercício de branco. Itabuna, BA: Via
Literatum, 2006, p. 71.
551
Ibidem.
As ruas eram o palco principal da atuação desses valientes, eles precisavam ser
conhecidos e reconhecidos. O espaço público, assim, configurava um ambiente propício para
sua demonstração de poder e por vezes transformou-se em privado por conta da atuação
destes valientes. Eles eram os valentões donos da rua.
A rua tinha uma expressão maior para alguns sujeitos históricos que dela viviam.
Ela se configura enquanto um espaço de sociabilidade. Um local de trabalho, de lazer e de
acertos de contas. As relações sociais advindas desse espaço público têm como característica
fundamental a variedade de uso que se faz dele. O trabalhador do dia é o mesmo do lazer da
noite, o arrimo de família pode ser o mesmo “arruaceiro” bêbado das sombras da cidade após
as dezoito horas. O mendigo ou “vadio”, tem nas ruas um lugar de moradia e sobrevivência,
as prostitutas tem nas esquinas um trabalho que lhe rende o pão de cada dia. Assim, o que
para uns não passa de um lugar comum, para outros são a sua própria casa, o caminho que a
vida lhe oferece.
Para Josivaldo Pires de Oliveira, em sua obra No tempo dos Valentes: os
capoeiras na cidade da Bahia, uma das características dos capoeiras, é a valentia, a
ostentação de seus atributos – principalmente os físicos – por meio da força ou de ameaças,
sempre exaltando seu domínio sobre aquela área e/ou situação. Ainda em sua obra, Oliveira
cita Manuel Querino onde este descreve que o capoeira é, “em geral, pernóstico,
excessivamente loquaz, (...) typo completo e acabado do capadócio”, e Oliveira continua um
“notório tipo de rua, que inclusive determinava regras para a mesma. Era ele um tipo de
‘dono’ das ruas ou pelo menos dos territórios sociais que se constituíam nessas ruas”552.
Em Negregada Instituição, de Carlos Eugênio Líbano Soares, os capoeiras
também aparecem como um típicos valentões, que se envolvem com brigas tanto com a
polícia, quanto entre eles mesmo, e nesse último caso a disputa dos territórios é algo
recorrente, e faz parte das relações entre as maltas de capoeiras. Essas maltas eram grupos que
variavam entre 3 a 20 componentes que brigavam entre si por ocupação e defesa de
territórios, e em outros momentos enquanto rivais políticas da época, transição da monarquia
para república, as mais famosa apoiavam partidos políticos que defendiam a república e a
monarquia, entre ela estavam “gauiamus ” e “nagoas”. Essa rivalidade era percebida nas ruas,
palco de atuação desses capoeiras, ora em grupo, ora individualmente, ora por questões
internas às suas relações, ora por questões políticas partidárias. Esses conflitos tinham
552
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. No Tempo dos Valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador:
Quarteto, 2005. p36.
ressonância nos jornais e no parlamento, ou vice-versa: “Ao mesmo tempo que capoeiras se
digladiavam nas ruas, no parlamento e nos jornais aliados e inimigos(...) terçavam duelos”553.
Segundo os autores, é possível verificar a proximidade dos valentões com os
capoeiras. E é a partir da análise das fontes que procuro, na medida do possível, perceber a
relação existente entre os valientes e os capoeiras da cidade de Itabuna na década de 1950.
No exemplo da Praça da Estação que foi um lugar de destaque em Itabuna naquele
período, logo freqüentadora assídua das páginas dos jornais, mais especificamente nas páginas
policiais, podemos encontrar indícios dessa relação:
Havia capoeira, onde havia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um
largo bem em frente, propicio ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias
santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a
tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a
cachaça era animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos dons das
vendas, através de toque espacial de berimbau, que eles já conheciam. 556
Este autor é reconhecido por todos que escreveram sobre a capoeira depois dele.
Seu trabalho etnográfico é um amplo estudo sobre os costumes dos capoeiras, passando por
553
SOARES, Carlos Eugênio Líbano Soares. A Negregada Instituição: capoeiras na corte do Rio de Janeiro
(1850-1890). Rio de Janeiro: ACCESS, 1999. p 59.
554
Voz de Itabuna, 17/06/1954.
555
PASTINHA. Manuscritos do mestre pastinha.
556
REGO,Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-etnográfico. Ed. Itapuã. Coleção Baiana, p. 36.
discussões sobre identidade, e quebrando tabus acerca de uma homogeneização em torno dos
hábitos, vestimentas e rituais da capoeira. Ele, problematizou as canções que envolveram e
ainda envolvem as rodas de capoeiras, sobre tudo na Bahia. Discorre sobre as variadas formas
de compreensão da capoeira desde quem a pratica a quem escreve sobre ela. Teve a
oportunidade de conversar com mestres de capoeiras que quebraram paradigmas, que é o caso
de Mestre Bimba, Manuel dos Reis Machado, o criador da capoeira regional. Viveu um
momento onde esta arte estava sendo transferida do campo criminal para ser um esporte
nacional. Assim, é um autor que muito contribuiu e continua contribuindo para os estudos
sobre este tema ainda em processo de desvendamento.
A capoeira foi uma prática proibida, que constava no Código Penal de 1890, ela
era tida como uma das práticas mais violentas que assolava o Rio de janeiro desde a
escravidão segundo Carlos Eugênio Líbano Soares em sua obra A Capoeira Escrava: e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Ele conta que aquele que fosse pego
exercitando a capoeira era preso e condenado a trezentas chibatadas, ou seja, o mesmo que
condenado a morte557. Essas são as raízes da capoeira, violenta, perseguida e mal vista.
Apesar dela não constar mais no Código Penal de 1940, ela apenas deixa de ser
crime, mas continua sendo marginal. A política nacionalista de Getúlio Vargas, retira do sub
mundo da criminalidade práticas oriundas dos negros escravizados, dentro de um discurso
populista ,ele zela por um Brasil homogêneo, com símbolos próprios, tenta reunir todos as
atributos do país em uma identidade nacional558, com isso procura disciplinarizar, manter
sobre controle os ânimos da maioria da população, que era negra.
Voltando um pouco no tempo, no início do século XX, já se pensava na capoeira
como um esporte. No Rio de Janeiro, um professor de educação física, argentino que morava
no Brasil, sugere que a capoeira poderia ser enquadrada na modalidade de esporte, já que
cuidava do corpo de forma exemplar .559Aquele era o tempo do culto ao corpo, do estímulo à
atividade física. Quem se exercitava não adoecia, estava mais disposto e preparado para o
trabalho, e no caso da capoeira podemos pensar que, sendo esta um esporte, estaria sob
controle ao invés de ser praticada nas ruas de “qualquer forma”. É o que vai acontecer anos
mais tarde, mas não detiveram o controle esperado.
Nos anos de um mil e novecentos e trinta, nas capitais do país, principalmente em
Salvador, a capoeira surge com uma nova roupagem. Os mestres de capoeiras, em especial
557
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). São Paulo: Unicamp, 2004.
558
FAUSTO, Boris. Getulio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
559
SOARES, A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), op. cit.
Bimba e Pastinha, versam a capoeira em outra perspectiva, agora a capoeira era cultura e não
pertenciam mais ao mudo dos malandros e vagabundos. Pastinha, em sua obra Manuscritos de
Pastinha, classificou os capoeiras de outrora de violentos e desordeiros.560
Já o Mestre Bimba, enquanto criador de uma modalidade diferente da capoeira, a
Capoeira Regional, apesar de argumentar que criou essa nova versão por entender que a
Capoeira de Angola era fraca e estava desaparecendo, também a seu modo excluiu aqueles
que tinham um comportamento inadequado daquele que julgava correto561. Em sua academia,
a maioria dos seus alunos fazia parte de uma elite econômica, e as regras eram rígidas, entre
elas, a proibição de envolvimento em brigas na rua. A mensalidade excluía os pobres, logo
seus iguais. Bimba sofreu duras críticas por conta dessa nova opção, “ (...) na visão de mestre
Noronha, Bimba teria ido ao meio dos ricos."562
Esse processo de “culturalização” para Antônio Liberac Cardoso Simões Pires
ocorre a partir do momento em que houve uma busca por um “status na hierarquia social”,
houve uma negação do espaço para aqueles que eram malandros, e malandros neste caso tinha
a conotação negativa, tanto para Bimba, quanto para Patinha. A partir daquele momento a
capoeira era para trabalhadores e estudantes, sendo divulgada “enquanto símbolo cultural”.563
A violência, no discurso em prol da capoeira a partir da década de 1940, não tinha
mais espaço, Pastinha chega a declarar a respeito daqueles capoeiristas de alguns anos atrás
classificando-os de arruaceiros e desordeiros que, “tudo isso é mancha suja na história da
capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? Os canhões? E as
bombas?”564 Mestre Pastinha porém, admite que a violência é algo inerente à própria arte da
capoeira: “ o que serve para defesa também serve para o ataque. A capoeira é tão agressiva
quanto perigosa”565
O próprio Mestre Bimba, de certa maneira preservou o esteriótipo de violência
dentro da prática da capoeira. Em seus treinamentos rigorosos com “perfil militarista, (…)
utilizava os treinamentos de ‘emboscada’, semelhantes aos treinamentos de guerrilhas de
mato, realizados nas forças armadas”566. Apesar da inovação no treinamento tornando-o mais
ostensivo, mestre Bimba manteve outros aspectos, no tocante aos conflitos, uma das suas
recomendações, por exemplo, era:
560
PASTINHA, op. cit.
561
ABREU, Frederico. Criador da capoeira regional. Revista Memórias da Bahia II. Governo do estado da
Bahia.
562
PIRES. Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. op. cit.
563
Ibidem, p. 39.
564
Ibidem, p. 66.
565
Ibidem, p. 66.
566
Ibidem, p. 48
Meninos não se metam em brigas. Se souberem que numa rua qualquer, está
acontecendo alguma, voltem, passem por outra. Mas se no atalho, também
houver, sem que haja meios de evitá-la, vão em frente, com segurança.
Vocês não podem sair perdendo e voltar para casa pra fazer tratamento na
cara. Iodo e arnica custam caro e o pai de vocês não é ladrão para gastar
dinheiro à toa.567
567
Ibidem, p. 50.
568
Voz de Itabuna, 27/04/1954.
569
Ibidem, 25/05/1951 p.04
570
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre
Maiol. Petrópolis, RJ: Vozes, 1966. p. 26.
violência tem várias faces, aparecendo a que convém para quem a denuncia, a questão é
analisar a versão que se apresenta considerando o fato de haver outro viés que não pode ser
menosprezado.
Sendo assim, voltemos à Sururu. Além de capanga e capoeirista, também “era
auxiliar de polícia”571, neste tocante, além da obra de Viana, ele encontra-se nas páginas do
jornal Voz de Itabuna, onde aparece sendo criticado por conta de sua omissão diante de uma
atitude criminosa que acontece em um cabaré:
Sobre Sururu, ele aparece no romance, como um mestre da capoeira angola que
coordenava rodas de capoeira ordinariamente na Praça Adami, centro da cidade. Era um
capoeirista respeitado na cidade, isso já foi confirmado por Claudia Viana acima, onde
convida o Zeca (personagem que representa o Manuel Brandão, ou Maneca, como também é
conhecido) para um jogo de capoeira, esse convite é atribuído pela fama de valentão que já
corria na cidade a respeito de Zeca capoeira.574
A trajetória desse personagem é permeada por um comportamento que se
assemelha aos valientes da cidade de Itabuna divulgado pelos jornais da época. A freqüência
na zona do meretrício, as recorrentes brigas, o excesso da bebida alcoólica, e demonstração de
força e exibicionismo. Este último sendo confirmado por Cláudia Viana quando ela comenta
sobre um outro capoeirista de Itabuna, de nome Alberto Ascênio Fernandes (Alemão), amigo
de Maneca Brandão, onde a autora coloca:
571
D'ANDRADE, op. cit., p. 71.
572
Voz de Itabuna, 06/07/1954.
573
BRANDÃO, Manuel Coelho. O Capoeira. Itabuna. 1979. s/e. p. 4.
574
Ibidem.
Se envolvia com brigas e chegou a ficar preso quinze dias, fato que não se
esquece, pois junto com Maneca, sempre se metia em confusão (...). Muito
alegre, conta-nos que o que mais gostava no esporte era o fato de poder se
exibirem. 575
Na verdade, o rapaz passara de uma fase negativa em seu destino para uma
outra que muito lhe prometia em termo de dignidade e respeitabilidade.
Deixara de ser um elemento pernicioso à sociedade, para tornar-se uma
célula viva do mecanismo de um trabalho honesto e honrado. 577
Essa tendência à valentia como forma de ocupação e defesa de espaços, esse apelo
à briga como demonstração de força e poder, e o papel da capoeira em meio a este contexto
ocupando um lugar pejorativo submetido a um julgamento tendencioso, permite uma brecha
para uma avaliação mais cuidadosa sobre quais parâmetros é adotado para o julgamento de
atitudes oriundas de indivíduos com esse perfil. Pois, apesar de ter a mesmas características
de qualquer um dos valientes da cidade, Maneca foi poupado das linhas, não menos
agressivas, dos jornais. O fato de pertencer a uma elite econômica permitiu que suas ações
estivessem livres dos combates emitidos pelos jornais da época, lhe poupou constrangimentos
e execração pública que a outros foram impostos.
Apesar do reconhecimento do autor no que diz respeito à imagem da capoeira –
pernóstica – ele permite a interpretação de que converge com esse pensamento, onde a
capoeira só tornou-se algo menos danos a partir do momento que foi instituída pelo Major Da
575
D’ANDRADE, op. cit., p 76.
576
BRANDÃO. op. cit.
577
BRANDÃO, op. cit.
Hora – Major Dórea, dono da primeira academia de capoeira de Itabuna, inaugurada para
atender os filhos de coronéis que voltavam de Salvador já conhecedores da arte, talvez até
pelo exemplo que tiveram de Maneca, ou seja, já que não posso impedi-los, ao menos tento
vigia-los – que o colocou com instrutor de capoeira para seus iguais, socialmente falando.
Esse parâmetro de comportamento, tanto dos jornais, quanto dos valientes, ricos
ou pobres, deixa claro que Itabuna passava por um momento de remodelação também dos
valores, já que bem ou mal a capoeira e alguns de seus valentões passam a ser um pouco mais
tolerados com o advento da academia. A academia de capoeira tentou domesticar o furor dos
jovens ricos e mantê-los longe dos “antros” dos bairros pobres que só ofereciam brigas,
bebidas e prostitutas, mas nunca o contrário, esses rapazes no auge do seu vigor físico, não
colaboravam de jeito algum com suas presenças nestes locais, já que o problema era o lugar e
não quem o freqüentavam.
Os valientes e capoeiras de Itabuna compartilharam e disputaram espaços e
méritos, morreram e sobreviveram a contentas e armadilhas, cercaram-se e eram cercados de
mitos e estereótipos que os colocaram na condição de principais fomentadores da violência,
mas também foram os responsáveis pela manutenção da ordem da cidade, da sua cidade
inclusive fazendo vigorar suas própria leis.
Itabuna, cidade ao sul da Bahia, teve seu desenvolvimento urbano marcado pela sua influência
como entreposto comercial da economia cacaueira deste estado. A história desta cidade na
primeira metade do século XX é marcada por um grande fluxo de pessoas que a buscaram na
tentativa de terem melhores condições de vida. Com este fluxo migratório a paisagem urbana
modifica e as vivências de rua também. Na década de 1950 o grande número de mendigos – e
de outros agentes que viviam das ruas da cidade – se tornou uma pauta dos poderes públicos e
das preocupações das classes hegemônicas (cacauicultores e comerciantes, em geral). A
presença e a agencia destes grupos subalternos organizavam territórios simbólicos que
estiveram em tensão com os projetos urbanos de modernização para a cidade. Foi esta a
tensão que levou as classes hegemônicas a construírem a Casa dos Mendigos com a proposta
de recolhimento desses sujeitos das ruas da cidade. Neste trabalho eu analiso a insubordinação
dos mendigos ao não aceitarem o projeto de higienização da cidade a partir desta instituição,
analisando como estes usaram da própria autoridade cultural das classes hegemônicas para
construir seus domínios e territórios nesta cidade. O movimento de emancipação dos grupos
subalternos, assim, passar pelo uso não autorizado dos próprio mecanismos de subordinação
das classes hegemônicas.
Itabuna é uma cidade localizada no sul da Bahia. Se desenvolveu tendo como pivô
a produção cacaueira. No início da década de 1950 era a terceira maior cidade do Estado.
Suas classes hegemônicas a representavam com símbolos de progresso e civilidade. Mas a
história que vou contar aqui está imersa nas experiências de agentes subalternos
negligenciados pelas representações hegemônicas sobre a cidade. Trata-se da recusa dos
578
Voz de Itabuna, 19.03.1954, p. 01.
579
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
580
Em 1957 as Senhoras de Caridade fizeram festas intimas nas casas de suas associadas no sentido de angariar
fundos para a Casa dos Mendigos. Estes eventos ficaram conhecidos como chá social. Uma destas festas foi na
casa de Milton Viterbo, vereador e membro do Rotary Club. Diário de Itabuna 26.10.1957, p. 01 e Jornal
Oficial do Município, 12.07.1958, p. 07. Agradeço a Danilo Ornelas Ribeiro por informações cedidas de sua
pesquisa sobre as elites locais em Itabuna.
relevância da Casa do Mendigo não era, assim, um entimema, algo que não precisava ser
enunciado, baseado “num menor número de premissas (porque conhecidas e, como tal, não
declaradas)”581. Esta necessidade de enunciar a importância já começa pelo título desta
matéria do dia 23 de março: “Significação social da inauguração da Casa do Mendigo”. E
qual seria esta?
A significação da inauguraão da importante casa de caridade, está à vista de
todos: proporcionar aos esmoleres desta cidade, uma vida mais condizente
com a evolução dos nossos tempos, livrando-os de dormirem ao relento e
vegetarem pelas ruas semi-nús, famintos, num atestado pouco recomendável
para uma população que se ufana de encontrar-se integrada os sentimentos
cristãos. (grifo meu)
Se realmente estivesse “à vista de todos”, tal significação, não seria necessário enunciá-la de
modo pormenorizado. Ao mesmo tempo que ressaltava a preocupação cristã de assistir os
“esmoleres desta cidade”, o editor mostrava uma real preocupação: livrar os mendigos de
“vegetarem pelas ruas semi-nús”. Não poucas vezes os periódicos locais queixaram-se dos
atentados à estética urbana, à moral e à sociabilidade pública que os mendigos causavam na
cidade, e recolhê-los à Casa dos Mendigos era uma forma de evitar tais atentados. É o que
denuncia claramente o editor na continuação desta matéria: “por outro lado há de se etinguir a
malta de pedintes que perambula pelas ruas, muitos do quais apenas exploram ao comércio e
às famílias itabunenses, uma vez que ainda podem fazer alguma coisa para a sua
subsistência”. Colocados como exploradores, os mendigos ainda são denunciados como
preguiçosos por não quererem trabalhar, e é esta denuncia que justifica, então, a proposta de
racionalização da caridade:
Isto não quer dizer, entretanto, que vamos deixar de dar esmolas. Esta
teremos que fazer de então em diante, através das Senhoras de Caridade, que
não pode dispensar o concurso dos itabunenses para a manutenção da
meritória casa pia. Será uma esmola muito mais racional e que atingirá
melhormente os seus objetivos. Se foi necessário o auxilio de todos para o
acabamento da Casa do Mendigo, mais imprescindível torna-se ainda esse
auxílio para a sua manutenção. Vamos todos ajudar as Senhoras de Caridade
na sua árdua missão.582
581
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
50.
582
Voz de Itabuna, 23.03.1954, p. 01.
583
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
584
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buraque. Novo dicionário Aurélio eletrônico – século XXI. Software,
versão 3.0. 1999.
então, assustado com a “ingratidão” dos mendigos. De alguma forma estava em jogo a
dominação paternal das classes hegemônicas sobre os subalternos (por isso tomar os
mendigos como ingratos), como se a “medição institucional das relações sociais” entre ambos
tivesse se quebrado, nos temos thompsonianos585.
Esta mesma matéria foi comentada por Eduardo Medeiros, colaborador do Voz de
Itabuna: “lemos no 'O Intransigente', de 03 do corrente o 'Bom dia' intitulado 'Chegou sua
vez'. Pela litura daquela nota vemos que mendigos não estão animados a se recolherem á casa
para eles destinada”. O texto de Ottoni em O Intransigente seria o primeiro a mostrar os
mendigos aparecem como sujeitos políticos que possuem opções e se manifestam no mundo
público (se bem que na matéria que afirma que os mendigos exploram o comércio e as
famílias, eles também apareçam como agentes, ainda que com uma imagem depreciada) e isto
chocava inclusive o periódico opositor. Eduardo Medeiros afirmou sobre esse desânimo dos
mendigos: “achei absurda a atitude desta classe sofredora, recusando essa dadiva e procurei
ouvir os que ás sexta-feiras percorrem as ruas J. J. Seabra e 7 de Setembro, fazendo o catado
semanal”. O colaborador da folha buscou entrevistar os mendigos para confirmar, ou não, o
que dizia a nota de O Intransigente. E eis o que nos reporta: “alguns confirmaram o que
disseram ao redor da nota acima, mas outros disseram não confiar na sinceridade dos que
viessem a dirigir aquela instituição e daí preferirem continuar pedindo ou mudarem-se daqui
caso fossem proibidos de esmolar”.586 Como na matéria de Ottoni, aqui os mendigos também
tomaram a migração como última alternativa ante o recolhimento.
É exatamente esta agência dos mendigos que aquela medida da racionalização da
caridade (monopolização do destino da esmola) visava combater. Os mendigos tinham
manifestado não apenas em um periódico, mas em dois, uma opinião contrária à idéia de que
a Casa dos Mendigos era a melhor saída para eles. Mais do que isso, os mendigos chegaram
mesmo a questionar “sinceridade dos que viessem a dirigir aquela instituição”, e se para o
mundo das classes hegemônicas havia um consenso sobre o mérito de tal empreitada, no
mundo subalterno este consenso foi questionado, foi quebrado, interditado
momentaneamente. Michel Foucualt afirma que “por mais que o discurso seja aparente em
bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder”587. Assim, a interdição que os mendigos realizaram no discurso de
beneficência pura da Casa dos Mendigos acabou por denunciar a ligação deste discurso com a
585
THOMPSON, Edward P.. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32.
586
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
587
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 10.
vontade de controle e, de algum modo, essa interdição se instaurou no seio da própria classe
hegemônica, pois se tornou pauta dos dois periódicos locais. O Voz de Itabuna, então, com
aquela matéria sobre a “significação social da Casa do Mendigo”, estava tentando rearticular a
coerência discursiva após esse corte instaurado por aqueles que seriam os “beneficiados” do
dito trabalho “benemérito”. Tanto o é que nesta matéria o periódico ameniza o tom (não
utilizando, por exemplo, o verbo “infestar”, o substituindo por “perambular”) e conclama para
tomar este projeto como um dever cristão. De modo que destinar a esmola tão somente à Casa
dos Mendigos seria uma forma de obrigar os mendigos a não permanecerem nas ruas,
destinando-se à dita instituição.
O senso de dever cristão se mostrou presente na solenidade de inauguração –
mostrando a preocupação daqueles que coordenavam o projeto em se fazer uníssono ao
periódico. A solenidade foi realizada às 15 horas da sexta-feira, dia 19 de março, segundo o
Voz de Itabuna, “perante o que Itabuna possui de mais representativo”. Se encontravam ali
representantes das camadas médias e altas de Itabuna. Estavam ali para fortalecer a campanha
por aquela instituição, para se mostrarem enquanto colaboradoras e para conferir o produto de
seus investimentos.
É possível, então, afirmar que simbolicamente a solenidade de inauguração
tentava fazer jus ao discurso do Voz de Itabuna no quesito senso de dever cristão e consenso
social. Assim tentava rearticular uma coerência quebrada, uma vez que se tornara pública a
opinião dos mendigos. Contudo, é necessário perguntar por que tanta preocupação com os
mendigos, já que vimos anteriormente que tantos grupos subalternos preocupavam os poderes
públicos e as classes hegemônicas da cidade. Por outro lado é preciso questionar por que os
mendigos se negavam a se recolherem a uma instituição que os assistiria.
Com tantos problemas causados por distintos grupos subalternos, aprofundar o
questionamento sobre o por que das classes hegemônicas em Itabuna na década de 1950 se
preocuparem tanto com os mendigos. O que eu quero ressaltar é que talvez (e para os valores
de hoje) a mendicância na cidade não fosse o maior dos problemas a ser resolvido, contudo
emergiu como uma pauta a partir da inauguração da dita “casa pia”. Daí será necessário
pensar um pouco no cotidiano dos mendigos. Os mendigos construíram territórios simbólicos
– híbridos e efêmeros – que tocavam os limiares da dominação dos espaços pelo capitalismo:
o centro de Itabuna era assaltado por práticas não autorizadas pelas estratégias de controle da
cidade. O centro em Itabuna, na primeira metade da década de 1950, pode bem ser
reconhecido pela zona da cidade iluminada durante a noite. Podemos fazer também um
recorte espacial dele, uma vez que os acidentes naturais o definiram: “estava circunscrito pelo
Rio Cachoeira ao sul, à leste e a norte pelo canal do Lava Pés, e à oeste pelo fim da cidade”.
Mas politicamente o centro se demarcava pelos prédios ocupados pelas elites locais: “a
Prefeitura Municipal, a Câmara de Vereadores, o prédio da Associação Comercial de Itabuna
(ACI), o da Associação Rural de Itabuna (ARI), os bancos”. Ou seja, as “várias edificações
não negavam que este era o lugar de poder na cidade”.588
E era justamente neste lugar do capital, na cidade, onde os mendigos construíram
sua arquitetura territorial – é no mesmo espaço de poder e de ostentação que também se
encontram marginais, policiais, mendigos, etc, afirma o antropólogo urbano Antônio Augusto
Arantes Neto589. Preferiam as ruas de maior fluxo de pessoas, mercadorias e dinheiro, a saber:
J.J. Seabra e 7 de Setembro. Precisar uma cartografia para os mendigos, entretanto, não é
fácil. Em parte, porque seus territórios eram tomados como algo “natural”, de modo a não ser
necessário enunciar. Edward P. Thompson afirma que estes aspectos da sociedade tomados
como “naturais” por seus contemporâneos, “acabam deixando registros históricos
imperfeitos”, assim “um modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio ou uma
situação atípicos”590. De modo que é possível localizar parte desta cartografia, quanto mais
ostensivas forem, as ações destes mendigos e as queixas dos periódicos. Estavam em diversas
ruas, praças e nos limites do centro de Itabuna.
Papai Noel, por exemplo, tinha também um cotidiano imerso nos símbolos de
poder da cidade. Segundo afirma a memorialista local Adriana Dantas Andrade-Breust, ele
“escolheu um lugar estratégico para instalar-se: a porta do Cine Itabuna”591, até então o único
cinema e teatro da cidade, localizado na rua Benjamin Constant, centro. Gostava de andar pela
região central de Itabuna carregando seu saco e seu porrete. Ou seja, qualquer transeunte, na
década de 1950, que visitasse o famoso teatro com alguma regularidade ou mesmo que
transitasse pelo centro, saberia reconhecer Papai Noel. De modo que os mendigos e Papai
Noel se faziam presentes ao lado de símbolos do poder e da ostentação econômica da região,
disputando o espaço político e desviando os valores da paisagem urbana.
Fora das dimensões do controle, a cidade oferecia certa possibilidade de uma vida
de subsistência. O Rio Cachoeira, muito utilizado pelos mendigos (até nos dias de hoje, em
meio à tamanha poluição de suas águas, há aqueles que pescam e se alimentam do pescado),
588
Ibidem, p. 14.
589
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 112.
590
THOMPSON, Edward P.. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: Antonio Luigi
Negro e Sergio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 235.
591
ANDRADE-BREUST, Adriana Dantas. Itabuna: histórias e estórias. Ilhéus, Ba: Editus, 2003, p.205.
era um lugar onde se poderia pescar, lavar, tomar banho, beber água, apreciar a paisagem,
brincar.
O que talvez seja necessário ressaltar aqui é que o centro de Itabuna – mas
também o Rio Cachoeira – dava uma condição de sobrevivência aos mendigos. O ato de
caridade era rotineiro e por vezes um ritual, muito próximos dos descritos por Walter Fraga
Filho em seu livro sobre a pobreza em Salvador no século XIX. Segundo este, quanto mais
fiel ao ritual o mendigo fosse, mais era tratado com conivência, porém “o mendigo podia
deixar de ser tolerado desde que seu comportamento não se adequasse à imagem de
humildade e resignação dele esperada”592. Muito embora o quadro descrito por Fraga Filho se
refira à Salvador do século XIX, há muita permanência neste sentido, sendo inclusive o termo
“Deus lhe favoreça” algo ainda recorrente para a negação de um pedido de esmola. O fato é
que teatralizando humildade, cumprindo com os rituais, passando nos dias corretos para
receber esmola, por exemplo, às sextas-feiras (algumas casas podiam separar uma caixinha
com moedas para distribuir em determinado dia da semana), se posicionando nos locais
adequados nas ruas do centro, era possível aos mendigos sobreviverem em meio às ruas.
Ressalta-se, aqui, por hora, a habilidade, a astúcia, dos mendigos em tirarem
proveito da supremacia e autoridade cultural dos agentes das classes hegemônicas. Aqueles
que davam qualquer trocado ou que assistiam em alguma necessidade aos viventes de rua, em
geral se consideravam, numa hierarquia social e reconhecida no mundo público, superiores
aos mendigos. Nos termos de Arantes Neto, significa que aqueles que doavam tinham uma
referência no mundo público, que eles se situavam no mapa social, pois “pertencer a uma
classe, grupo, categoria ou nação é possuir uma localização no mapa social, ou seja, ter uma
posição social reconhecida como legítima e situar-se num espaço físico compartilhado”593. O
contrário seria uma ausência de referência, de presença no mapa social – ou algo tão móvel,
incapaz de ser capturado –, que tornaria o sujeito não reconhecido na coletividade (contudo
nós veremos que os mendigos podem construir tal reconhecimento, ainda que sempre em uma
condição hierárquica no mundo público inferior e depreciada). Se uma referência de prestígio,
os mendigos usavam desta posição para, ao teatralizar humildade, fortalecer a referência
daqueles que os davam algo. Era uma troca: os mendigos ganhavam recursos materiais e os
doadores ganhavam um prestígio público pela ação benevolente.
592
Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA,
1996, p. 39 e 40.
593
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 133.
594
FREITAS, Antonio Fernando Guerreiro de; PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro do
mundo: a capitania, os frutos de ouro e a princesa do sul, Ilhéus 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p. 100.
595
Ibidem, p. 105.
596
Ibidem.
597
ANDRADE-BREUST, op. cit., p 201-212.
Um deles [um dos mendigos], para ilastrar a razão de sua recusa, citou o que
ocorrera na cidade de Vitória da Conquista com a 'Casa dos Mendigos' dalí.
Afirmou que os dirigentes surrupiavam o dinheiro e as novidades destinadas
áquela casa e os mendigos passavam fome e ficavam nús.
Com essa experiência pessoal, disse-me enfaticamente o mendigo 'não irei
para lá'.599
Havia, assim, até mesmo para Eduardo Medeiros, uma razão plausível para a não
mais “absurda atitude” dos mendigos: eles recusavam tornar-se objetos de exploração de
instituições que com simulacro de beneficência, o que faziam era usar da situação de
mendicância como um mercado para lucrar ao passo que aprisionavam e buscavam controlar
sujeitos que viviam da erraticidade do mundo das ruas. Medeiros não concordou com a recusa
dos mendigos, o que chamou de descrença. Concordou com a causalidade desta atitude ao
afirmar que “a falta de critério e de excrúpulo dos que dirigem as casas de assistência social
(com algumas exceções) é um fato indiscutivel”, mas ao fim lutou contra a “descrença”:
598
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p.02.
599
Ibidem.
Entretanto, creio que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o
que aconteceu com a sua congênere em Vitória da Conquista.
Os mendigos devem confiar no bom êxito de seu abrigo, ainda mais quando
sabemos que o mesmo será dirigido pelas Senhoras de Caridade, e a
disciplina estará a cargo das irmãs de caridade. 600
600
Ibidem.
601
ARANTES NETO, op. cit., p. 125.
então responde: “É verdade[,] esta é a vida que eu aprecio, pois não gosto de viver sem
'liberdade'[!]”. (Um pausa nesta história para dar ênfase ao “não gosto de viver sem
'liberdade'” que um homem que vivia nas ruas disse para um homem em seu imponente jipe.)
“Muito bem”, disse Nicolau, “e lá na Casa dos Mendigos voce não tinha direito a passeios ao
ar livre e apreciar o panorama da cidade, roupas limpas[,] bôa cama, boa comida e tudo
enfim?” (observemos aqui a “liberdade” dentro da Casa dos Mendigos e a liberdade para
Nicolau). Papai Noel, então responde:
Tinha moço, mas acontece que lá é casa pra ficar aleijados e doentes e eu
não tenho nada disso, e outra, gosto de tomar vez em quanto minha 'pinga' e
tirar minha soneca, criar minha barbicha, minhas unhas e o melhor de tudo
isto que é meu pau que serve para me amparar nas longas caminhadas pelas
ruas, todo enfeitado de pedaços de panos velhos tiraram-me: e isto significa
a minha maior felicidade. (grifo meu)
(apenas uma informação que ajuda: Papai Noel esteve como interno daquela instituição, mais
do que o próprio Nicolau, sabe o que se passa por dentro.) Nicolau curioso pela vida de Papai
Noel pergunta-lhe se na Casa dos Mendigos, ele tomava banho diariamente. O velhinho
responde que “lá, todos tomavam, porem, eu já havia acostumado no meu velho regime e
dava pra ruim, pois já me havia habituado a tomar banho de 3 em 3 meses e para tomar todo
dia a gente estranha não é mesmo?”. Saciada a curiosidade, o entrevistador volta a se
interessar pela vida de Papai Noel na rua: “Voce saiu da Casa dos Mendigos recentemente por
sua livre vontade ou fugia, conforme dizem por aí?” (observe que as duas possibilidades não
são opositivas para o uso do “ou”). Papai Noel responde seco e duro: “Saí porque quiz e não
voltarei mais, pois a vida que gosto e hei d e acabar meus poucos dias, é esta, adeusinho
moço”. E corta a prosa se retirando (talvez tenha cortado a conversa porque Nicolau tocou em
algo incômodo, o fato de ter fugido). O final desta história fica para depois.602
A lição que tomo, por hora, é que há lógica e indícios de que a recusa a ir para a
Casa dos Mendigos esta associada à liberdade das ruas. Por outro lado, Papai Noel entendia,
como Ottoni na primeira entrevista com mendigos, que a Casa dos Mendigos não era para
quem mendigava, e sim para doentes – o que ele não era. É bem verdade que Papai Noel é um
caso atípico, não servindo como modelo ou exemplo para pensar uma coletividade chamada
mendigos. Ainda assim, o mendigo anônimo consultado por Eduardo Medeiros afirma que
não irá porque teve uma experiência de exploração em outra casa beneficente, num outro
602
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.
momento de sua vida, em um outro lugar. Papai Noel também não era nascido em Itabuna. O
único rastro de sua origem, como vimos, aponta que ele, também, seria da região de Vitória da
Conquista603. As experiências migratórias desses mendigos talvez marcassem um
conhecimento das continuidades que existiam de um lugar para o outro, como por exemplo, a
tentativa das cidades de controlá-los (este é um fator a ser pesquisado numa pesquisa
posterior).
Pois bem, tanto no caso de Papai Noel como no mendigo entrevistado por
Eduardo Medeiros, os mendigos agiram colocando os seus interlocutores, seus representantes
no mundo público (o próprio Medeiros e o Nicolau), para refletir, indagar, questionar o
mundo a sua volta – e de algum modo, ajudá-los em seus interesses. O mendigo entrevistado
por Medeiros fez este perceber que a oposição ao recolhimento à Casa dos Mendigos não era
uma atitude tão absurda como ele acreditava antes de entrevistar o mendigo. Mais do que isso,
a experiência deste mendigo fez brotar a primeira – e, até este momento da pesquisa, a única –
crítica às casas de beneficência, por, muitas vezes, explorarem os “beneficiados”. De modo
que o Medeiro apenas “crê” “que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o que
aconteceu com a de Vitória da Conquista”604.
Com Papai Noel a situação foi diferente, mas o resultado foi muito próximo.
Aquela história (matéria) terminou com Papai Noel decidindo pelo fim da conversa (ele
decidiu falar e findar a “palestra” com Nicolau, ele é o protagonista da trama). Ao ir
descansar, deixou Nicolau prosseguindo seu caminho e dizendo para seus “botões”: “Oh
Deus, como soubeste tão bem dividir esta humanidade em formas e costumes, e dar
conformação a muitos, enquanto outros, têm tudo nesta vida e ao chegar mais tarde diante de
VOS não merecem nada”605. Nesta matéria intitulada “As pedras se encontram quanto mais as
criaturas!...”, um encontro se realizou: Papai Noel argumentando sobre sua vida aproximou
uma distância e fez o homem que passeava com seu Jeep refletir nas coisas espirituais de que
nos falam Walter Benjamin em sua quarta tese Sobre o conceito de história. Coisas estas
inexistentes sem a as “coisas brutas e materiais”, objeto da luta de classes, contudo que
“questionarão sempre cada vitória dos dominadores”606. Elas são essencialmente importantes,
pois, como afirma Michael Löwy comentando esta tese benjaminiana, “o que está em jogo na
603
ANDRADE-BREUST, op. cit.
604
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
605
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.
606
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232
Disponível na web em http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/benjamin/benjamin_01.htm. Página 2.
luta [de classes] é material, mas a motivação dos atores sociais é espiritual”607. E nesta luta
Papai Noel produziu uma agência reveladoramente importante: sensibilizou Nicolau, fazendo-
o pensar que o apego às coisas materiais de nada vale perante Deus. Noutras palavras, Papai
Noel faz Nicolau refletir que pessoas muitas ricas e materialistas, tendo tudo de material, não
possuem uma moral integra, ética e correta (“não merecem nada” diante de Deus). Nicolau
agora questiona os ricos. E quem sabe se os leitores de Nicolau também não se puseram a
refletir? Quem sabe não respeitaram um pouco mais a forma de viver de Papai Noel (alguém
que merecia algo diante Deus). Se essa luta parece essencialmente abstrata, é preciso dizer
que ela é grandiosa quando se percebe que havia um consenso estabelecido em meio às
classes hegemônicas de que não há nada de político na agência de mendigo, de loucos (eram
tratados como desajuizados, infelizes seres).
Contudo os mendigos em Itabuna, ainda que contingencialmente, asseguraram
uma luta política pelos lugares na cidade. Desta luta emergiu, por alguns instantes, uma
contra-visão em meio aos periódicos locais. Se antes estes estavam acostumados a negativá-
los, caricaturá-los e denunciá-los à polícia, Eduardo Medeiros e Nicolau, contraditoriamente,
aprendiam, tiravam lições do contato com os mendigos. A insubmissão e a diferenciação
cultural dos mendigos conseguiram, junto com a disposição e a curiosidade dos colaboradores
dos jornais, romper uma barreira simbólica que separava os mendigos dos produtores de suas
representações no mundo público. Aquela representação estereotipada, mascarada e velada,
que os mendigos tinham perante as classes hegemônicas, cedeu lugar a um reconhecimento,
ainda que parcial, do outro, com sua história e experiências. Essa mudança começou a marcar
uma emergência dos mendigos como sujeitos da história, como seres falantes, que decidiam
sobre sua vida, que possuíam opiniões e lutas.
Se ao fim da matéria de Medeiros, ele tenta convencer os mendigos a irem à Casa
dos Mendigos, é preciso que se diga que desde o começo os mendigos convenceram-no a
conhecer suas motivações e suas ações. Por um lado Medeiros se mostrou apreensivo,
chocado de certo modo, por uma atitude não esperada, insubmissa, da parte dos mendigos.
Talvez ele, como muitos, entendessem que os mendigos não tinham direito de escolha, não
tinham liberdade de ação. E no estarrecimento por conta da recusa dos mendigos, Medeiros
acabou por mostrá-los como sujeitos políticos (que escolhem e lutam), como sujeitos com
história e experiência. Onde se via passividade e piedade, agora é possível ver reflexão,
astúcia e ensinamento. Ou seja, os mendigos agiam, mesmo que a superfície que se projetava
607
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
São Paulo: Boitempo, 2005,p. 59.
sobre eles fosse caricaturada como passividade. Ainda mais, os mendigos falavam, mesmo
que a superfície que se projetasse sobre sua fala fosse o texto e a fala de agentes das classes
hegemônicas
INTRODUÇÃO
Sendo assim, o que propomos com esse trabalho é discutir a seca de 1932, a partir
da análise das memórias de pessoas que conviveram com a referida seca que eram tanto
moradores da vila, quanto de imigrantes que lá chegaram em decorrência dela. Serão
abordados aspectos referentes à adaptação da dieta alimentar experimentada pelos moradores
da vila, que recorreram a folhas, frutos, etc., ou seja, aproveitaram tudo o que natureza lhes
oferecia naquelas condições. Dessa forma, pretendemos discutir e analisar as estratégias de
sertanejas e sertanejos a partir da observação de sua alimentação como forma de resistir às
agruras desse flagelo.
O recorte espacial apresentado nesse trabalho refere-se a uma pequena Vila com o
nome de Uibaí. A primeira denominação de Uibaí foi Canabrava do Gonçalo que com o
crescimento de sua população “passou à categoria de Vila em 1929, com o nome de Uibaí e
sendo distrito do município de Xique-Xique, cuja sede municipal era a cidade de Xique-Xique
localizada à margem direita do Rio São Francisco” (SOUZA, 1984, p. 9).
A rotina dessa pequena vila, assim como de grande parte da Bahia e de outros
Estados do Nordeste, foi abalada por conta do flagelo que viria marcar profundamente a
memória de sua população, a seca de 1932.
Existe algo que não pode ser desconsiderado neste estudo que é a própria situação
em que vivem os sertanejos, para que possamos compreender os motivos da angústia
despertada quando há a possibilidade de ocorrência de estiagens. Esses sertanejos, que em sua
maioria – devido às más condições da distribuição de renda em nosso país - não dispõem de
condições materiais elevadas, dependem da ocorrência de chuvas suficientemente distribuídas
para que seja garantido o seu sustento. Quando por ventura, isso não ocorre, a população já
sabe que dificuldades virão.
Vale ressaltar que entendemos a seca enquanto um fenômeno social que, todavia,
tem esse caráter mascarado quando abordado de forma a refletir um problema apenas de
ordem natural.
O fenômeno seca faz parte do cotidiano sertanejo e carrega significados que vão
além do momento em que ela está presente. Com isso, recorremos a Alfredo Macedo Gomes
que afirma que o significado que a seca tem para os moradores do semi-árido nordestino
[...] não se restringe ao período seco, mas muito pelo contrário, estende-se a
todos os momentos da vida social, econômica, religiosa e cultual do
nordestino sertanejo. Se é período seco, de estio, a sua significação é
inquestionável; se é período de chuvas, onde se vive o “inverno” e as
plantações se concretizam, é a ausência da seca que lhe dá significado, pois
dela o sertanejo não pode esquecer (GOMES, 1998, p. 57).
Não há como falar em seca no sertão sem falar da resistência apresentada pelos
sertanejos no tocante à sua alimentação. Em 1932, quando culminou a seca, na região em que
se situa o objeto de estudo, consumiu-se de tudo. Desde cuca de umbu1, até couro cru,
mucunã1, xiq608ue-xique, etc. O gado qu609e existia não resistiu ou estava demasiado
magro, mas tendo em vista o que se preserva nas memórias que subsidiam a produção desse
trabalho, as precárias condições a que se chegou deu-se em decorrência da falta de farinha –
que constituía e ainda constitui em determinadas localidades, a base da alimentação. A
ausência desse alimento, devido à escassez de chuva seria, portanto, a principal causadora da
fome, e em conseqüência, do sofrimento.
Silvanito Dias e Silva, cordelista natural de Central1, em seu poema de cordel “A
a610ngústia de Zé Carote na seca de 32” traz um panorama dessa seca na região que Uibaí
faz parte. Apesar dessa fonte não ter sido produzida em Uibaí, mas em Central, retrata uma
realidade que permeou toda a região no período e foi produzido recentemente com base em
608
Mucunã é uma fruta considerada tóxica encontrada na vegetação da caatinga que foi consumida na forma de
cuscus durante a seca de 1932 em Uibaí.
609
O município de Central é vizinho ao de Uibaí, e em 1932 também fazia parte do município de Xique-Xique.
610
Cabeça de frade é o nome de um cacto bastante comum na vegetação da caatinga que normalmente não é
aproveitado na alimentação nem de animais.
vários depoimentos. Acerca da alimentação destaca-se o fato de que “Mucunã e coro cru, /
Sirvia de alimento, / Pra aliviá a fome, / Dum povo em disalento, / Padiceno noite e dia, / Na
severa agunia, / Asperano livramento”. Aqui ganha destaque a mucunã e o couro cru como
fonte de alimento utilizados durante a seca. A fruta mucunã aparece em várias fontes talvez
por ter sido um grande desafio sobreviver dependendo de um fruto que acreditava-se ser
tóxico. Assim,
Quando nós cerçava assim [milho] numa peneira pra tirar as peles da canjica
o povo aparava chegava e dizia: [...] me dá essas pela pra eu torrar pros
menino comer, aquelas sementes de melancia que tinha, pegava tudo [...]
comia até a raiz da taboa o povo comia, mucunã
É notório na fala dessa depoente o lugar ocupado por seu pai nessa sociedade, já
que ele possuía roças de mandioca possibilitava a obtenção de farinha tão fundamental para a
dieta alimentar dessa população e nesse momento encontrava-se escassa, bem como ia até
Xique-Xique comprar farinha para ser consumida, vendida e doada. Quando é revelado o que
as pessoas comiam D. Joaquina cita: “aquelas carne véia magra que a gente tem nojo, [...]
comia carne de gado, mas feijão era muito pouco [...], comia bode também, [carne] de bode,
de porco, uns porco véio magro [...], cozinhava os imbu verde e botava água e botava um saco
pra escorrer e comia ali puro; folha de mandioca, frevia as folha de mandioca, moía na
máquina, comia com imbu maduro também, de batata, as folha de batata”. Sua fala revela um
universo de possibilidades alimentares nesse cotidiano. Além disso, ela identifica a existência
de diferença na dieta alimentar entre os que ela considera como “os que podia” em oposição
aos outros. Segundo ela “os que podia comia cuscus de manhã e de noite, comia o angu de
milho, os que tava bem, farinha era com um tiquinho de feijão um taquinho de carne, carne
era barata”.
Algo interessante a ser destacado diz respeito ao final de sua fala citada acima. O
fato de se enfatizar que “carne era barata”. Contudo, apesar da carne ser barata, as
dificuldades eram maiores pela escassez de farinha e “tudo a gente comia com farinha e não
tinha farinha”. Assim, apesar de se encontrar em uma posição que permitia ajudar outras
pessoas não podemos desprezar o fato de D. Joaquina e sua família estarem incluídos nesse
universo de pessoas que resistiram à seca de 1932 enquanto ela mesma se inclui entre as
pessoas que passaram por dificuldades e por fim, revela “ia passando, passou, a gente passa,
come tudo quanto é coisa e passa”.
Uma segunda entrevistada foi D. Idália, que era de Irecê (distante 36 quilômetros
de Uibaí), e juntamente com sua família em 1932 emigraram para Jequié e de lá voltaram para
Uibaí após seu pai e alguns irmãos falecerem em decorrência da seca. O depoimento dessa
senhora mostra uma realidade diferente da anterior, pois D. Joaquina em momento algum cita
que sua família chegou a pedir esmolas, enquanto a fala de D. Idália está permeada por isso.
D. Idália também aponta a escassez de farinha como responsável pela
precariedade da situação. Quando ela fala da saída de sua família de Irecê diz que “meu pai
tinha um jegue, vendeu o barraco a troco de bode e daí panhou os bode e salgou e botou
dentro das bruaca, pra nós ir comendo os pedacinho, só salgado sem farinha, até onde
encontremo farinha”.
Tal era dificuldade de encontrar esse alimento que da saída de sua família de Irecê
em direção a Jequié só foram encontrar farinha em Morro do Chapéu, farinha esta que era
feita de palmito de coco. É provável que essa farinha de palmito já fosse feita com a
finalidade de ser doada aos flagelados, pois, o senhor Valmyr, outro depoente, nos fala de
parentes seus que faziam farinha de cuca de umbu para ser misturada à farinha de mandioca e
doada aos pedintes.
D. Idália quando narra a saída de sua família até chegar em Jequié revela o que era
ingerido oriundo de esmolas dadas a esses flagelados. Segundo ela, as pessoas davam “cabeça
de fralda1 pra nós comer e nós comia e 611achava bom. Palmito de coco aqueles pedaço, nós
comia e achava bom, inda dava Deus que te ajude”.
Em contraposição à escassez de alimentos em todo o caminho percorrido até
chegar em Jequié, suas memórias revelam o lado da fartura encontrada “no sul”. “Ne Jequié.
Quando nós chegamo ne Jequié tantas barriga nós tivesse pra carne, banana e tudo quanto é
fruta era um farturão. Graças a Deus aí a fome acabou”.
Por fim, apontaremos as indicações do Sr. Valmyr, que em 1932 tinha 6 anos,
acerca da alimentação a qual os sertanejos recorreram durante a seca de 1932 “comia rato,
gato, rabudo, naquele tempo eles matavam e comiam a fome era devastadora era pouca gente
que não passava fome”.
O lugar ocupado pela família do Sr. Valmyr se assemelha à de D. Joaquina pois,
ele reporta a sua fala à solidariedade prestada por seus familiares às pessoas que estavam
passando fome. Ele fala de seu tio Dió Miranda que era considerado rico nessa época e
marcava um dia para matar um boi do qual se aproveitava tudo, “tripa, não ficava nada”.
Além disso, ele diz que “muitos tomavam água com sal não tinha outra coisa até hoje tem
esse ditado tá vivendo n`água e sal, naquele tempo era mesmo n`água e sal”
Em vista disso, podemos perceber uma infinidade de recursos oferecidos pela
natureza em momentos de escassez que eram aproveitados através de uma adaptação da dieta
alimentar como forma de resistir ao flagelo. Tudo isso foi aproveitado e ajudou esses
sertanejos a superar as agruras dessa seca e reproduzir as suas experiências como forma de
aprendizado para as gerações posteriores que retratam essa vivência seja através da oralidade,
de poemas de cordel e até mesmo de músicas como a de Wilson Oliveira, cantor e compositor
611
Arquivo Público Municipal de Itabuna – José Dantas (APMIJD). Voz de Itabuna, 27/04/1954.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, Alfredo Macedo. Imaginário social da seca: suas implicações para a mudança
social. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1998.
SOUZA, Antônio Machado de. Pequena História do Uibaí. Monografia. Ed. Prefeitura
Municipal de Uibaí. Uibaí-Ba, 1984.
3.3 – SIMPÓSIO 3:
HITÓRIA POLÍTICA
Coordenação:
Prof. Msc. JoséVieira da Cruz (UNIT/SEED/ SEMED/Doutorando /UFBA
Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo(UNIT/FASE)
Este artigo científico pretendeu analisar as diferentes visões acerca da região Nordeste, sob as
óticas de Euclides da Cunha (visão política ), em sua obra maior, Os Sertões, Graciliano
Ramos ( visão social ), Vidas Secas e, finalmente, em José Lins do Rego ( visão memorialista)
em Menino de Engenho. Através dessas análises, sobretudo de Os Sertões e Vidas Seca,
verificou-se o quão é discriminado o homem que vive no Nordeste, principalmente, àquele
que reside nos mais distantes arredores de um Brasil, por ele, desconhecido – o litorâneo.
Enquanto isso, José Lins do Rego aborda com saudosismo o desfalecimento da sociedade
açucareira nordestina. Contudo, mesmo de ângulos diferentes, esses renomados escritores
contribuíram para perpetuar entre nós, através da arte, muitos conhecimentos sobre esta tão
sofrida região Nordeste.
O presente artigo foi elaborado com o propósito de fazer uma análise acerca de
Os Sertões, Vidas Secas e Menino de Engenho. Para tal, foram verificados não só os aspectos
político, social e saudosista, como também considerada a conjuntura artística vigente no final
do século XIX e início do XX. Em se tratando dos aspectos românticos e realistas no
Regionalismo do século XIX, segundo Afrânio Coutinho, desde o Romantismo o Brasil
regional vem sendo valorizado de forma significativa. Vários aspectos contribuíram para que
esse fato viesse à tona, entre eles, a aspiração de se tornar independente tanto na política
quanto na cultura. Contudo, o regionalismo romântico e o realista são vistos e postos em
prática de forma diferente.
Isso porque escritores como José de Alencar ao tempo em valoriza o pitoresco e a
cor local, os seus personagens são idealizados segundo a cultura européia. Em virtude disso,
foi criticado por Franklin Távora, que por sua vez, desvestiu-se do sentimentalismo e do
idealismo e aborda em sua obra O Cabeleira, um regionalismo que valoriza a análise e a
interpretação do nordeste brasileiro.
612
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu na fazenda da Saudade, no município de Cantagalo, Rio de
Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Em 1896 abandonou as armas e foi para São Paulo de onde no ano
seguinte foi enviado para Canudos como correspondente do jornal “ O Estado do São Paulo” com o propósito de
observar a campanha contra os fanáticos de Antônio Conselheiro. Em 1903, foi eleito para a Academia Brasileira
de Letras. Em 1904 iniciou a estafante viagem para Amazônia, colhendo também material histórico- sociológico
para seus futuros livros. Em 1909, inscreveu-se para o concurso de Lógica do Colégio Pedro II, classificou-se
mas não chegou a reger a cadeira, porque a 15 de agosto desse mesmo ano, morreu tragicamente na estação da
Piedade.
613
Os Sertões foi publicado em 1902 e teve a primeira edição esgotada. Seu autor foi consagrado por críticos
brasileiros e internacionais por ser representante de um dos grandes compêndios da literatura do século passado.
614
Essas tendências acreditavam que a Ciência poderia resolver tanto problemas de ordem humana, como
também àqueles causados pela natureza. Entre outras, o Determinismo de Taine, o Positivismo de Auguste
Comte e o Evolucionismo de Espencer.
Graciliano Ramos615 aborda em sua obra maior, Vidas Secas, segundo José
Maurício Almeida, uma adequação entre forma e conteúdo. Isso porque a integração entre o
615
Graciliano Ramos ( Quebrângulo, Alagoas, 1892, Rio de Janeiro, 1953 ). Primogênito de casal sertanejo de
classe média que teve 15 filhos. Fez estudos secundários em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Em
1910 estabeleceu-se em Palmeiras dos Índios. Em 1914, esteve no Rio de Janeiro e trabalhou como revisor do
Correio da Manhã e da Tarde. Entre 1928 e 1930 exerce a prefeitura daquela cidadezinha. Em 1925 redige seu
primeiro romance Caetés. De 30 a 36 conhece autores como José Lins do Rego e Raquel de Queiroz e escreve
São Bernardo e Angústia. Nesse mesmo período é preso. Na prisão redige Memórias do Cárcere.
Nesse universo artístico criado por Graciliano Ramos em que as personagens são
criaturas sofridas, tristes, infelizes e inúteis desprovidas da própria sorte, está implícito o
desabafo do próprio autor a cerca de uma experiência de vida sufocante e solitária, pois no
dizer de Álvaro Lins “existem obras que explicam o autor”. Por isso, sua arte mantém uma
certa verossimilhança com os caracteres do viver no solo árido do sertão. Nesse aspecto,
notou-se a objetividade do autor de Angústia em exprimir das páginas de suas obras
principalmente, Vidas Secas, suas raízes. Sobre isto nos diz Álvaro Lins: o autor não pode
exprimir piedade, porque o pudor e a dignidade artística o impede de ter piedade de se mesmo. Ele
não tem pena de seus personagens, porque estar projetado neles, e dispõe de forças suficientes para
de se mesmo não ter pena nenhuma..( VIDAS SECAS, p. 137:1947)
Essa incapacidade de verbalizar seus pensamentos, a marginalidade lingüística,
está devidamente atrelada à aridez do solo sertanejo. Assim como o solo reflete aridez,
improdutividade, também a vida dos retirantes se encontra mal resolvida, mal projetada,
inconstante. Esses fatos podem ser perceptíveis tanto nos capítulos Mudança quanto no
denominado O Mundo Coberto de Penas. Neles, encontra-se a inconstância de uma vida
nômade, sem perspectiva de um futuro promissor já que são obrigados a evadir, porque como
de costume, a seca sempre existiu e irá existir. Para Alfredo Bosi, por eles não conseguirem
exteriorizar seus pensamentos de acordo com os padrões lingüísticos adequados à
comunicação, tornam-se a expressão concreta da incapacidade de interagir e compreender o
mundo que os cercam.
Um outro aspecto encontrado em Vidas Secas é a questão da zoomorfização. Isso
porque homem, animal e natureza são nivelados ao processo de animalização. Contudo,
verificou-se que Baleia, mesmo sendo animal recebia um tratamento individualizado, por isso,
era carregada de superioridade frente aos seres humanos, sobretudo, aos meninos que eram
identificados como O Menino Mais Velho e O Menino Mais Novo. Fato que nos revela
coisificação e / ou, por assim dizer, a impessoalidade ou ainda a generalização do viver
naquela inóspita região.
No plano estrutural, percebeu-se que ao contrário do que alguns autores insistem
em dizer que Vidas Secas é um romance desmontável, e composto por narrativas isoladas,
Frederick Willamis em recente ensaio, afirma-nos que isso é um absurdo, já que para ele, esse
romance é constituído tal qual a estrutura cíclica das secas e das chuvas torrenciais que
caracteriza a região retratada em Vidas Secas. Desta forma, qualquer alteração que houver na
estrutura de suas partes causa prejuízo no entendimento e / ou no significado que o autor quis
abordar por meio de sua obra. Nesse tocante, percebe-se que o livro termina como começa:
com o êxodo da família de retirantes em busca de novos lugares para sobreviver. Fato que
pode ser constatado através dos capítulos Mudança e Fuga, respectivamente como nos afirma
Castro:
A propósito deste último, mais precisamente nos versos seguintes: Falo somente
por quem falo: / por quem existe nesses climas / condicionados pelo sol / [... ] de tantas
condições caatniga / em que só cabe cultivar o que é sinônimo da míngua. Através destes, o
autor de Morte e Vida Severina quis trazer à tona uma dramática situação da seca nordestina.
Conquanto, escritos em 1967, século XX, encontram-se tão nítidos em nossos dias como
naquela época. Fato que pode ser comprovado por meio de uma entrevista realizada pela
revista Veja a Amaro José da Silva, 46, bóia-fria conhecido como “Gabiru”. Essa
denominação lhe é proveniente, em virtude de ele pertencer “a geração de homens nanicos”.
Aspecto este, ocasionado pelo fator da subnutrição. Esse fator, a nosso ver, patenteia-se ao
caso da família de Fabiano. Como nos diz Castro: em certos trechos dessa premiada matéria
ecoam falas da vivência dos personagens de Graciliano Ramos.
E, assim como Fabiano não tem perspectiva nenhuma de melhorar a situação: (...)
Eu trabalho há 23 anos para a usina Bonfim. E o que eu tenho? Vou morrer como nasci:
nu e com fome. [...] cansa, mas não tem jeito de ser diferente. Cada dia a miséria e o
sofrimento aumentam” [...] ( p. 101).
de suas memórias a decadência do patriarcado açucareiro. Para tal, José Lins do Rego616,
lançou mão de repetitivas narrativas denominadas o ciclo-da-cana, na tentativa de perpetuar
via memória ficcional o prestígio e a dominação de seus antepassados.
E, como nos afirma Moema Selma D’Andréia, em sua obra A Tradição da
Redescoberta, essa repetição verificada na estrutura dos cinco primeiros romances do ciclo,
para o autor, é: “a única maneira de evitar a “morte” do mundo patriarcal é redescobri-lo e
desdobrá-lo em narrativas reinterantes”. Percebe-se também que essa foi uma maneira
encontrada para espantar os males presentes na memória de um menino de engenho que
outrora fora engenhosa no mais amplo sentido da palavra.
Um outro fator que o impulsionou foi ter comungado com cronistas do
regionalismo nordestino da década de 20, tanto na percepção do declínio da aristocracia
açucareira como também na necessidade de lutar pela sua revalorização. Nesse sentido, sua
obra segundo Flora Süssekind está arraigada de um certo caráter documental sob o ponto de
vista do neto-autor já que tende retratar a realidade social dessa década.
Em se tratando da reação de protesto sobre as mudanças que abalam a ordem
estabelecida aqui, no Brasil, far-se-á nos meados da década de 20 por meio de dois pensadores
– Gilberto Freyre e Jackson de Figueiredo. Eles se colocam ao lado do tradicionalismo e, por
isso pregam contra as novas forças arraigadas com propósitos de desagregar a sociedade
brasileira, entre elas, o militarismo, o positivismo, a democracia e o futurismo.
No tocante a essa visão tradicionalista, pode-se dizer que do ponto de vista do
regionalismo tradicionalista nordestino, são elementos fundamentais da ideologia da ordem da
década de 20, tradicionalismo via colonização e a tradição via patriarcalismo.
Para os tradicionalistas, a integridade de nossos valores na concepção da ideologia
nacionalista dependeria da capacidade de sustentação e respeito das classes dominantes,
naquela época, as rurais, ameaçadas pelo crescimento das grandes cidades. Essa visão
exógena não tarda implicar sua verdadeira conotação: O cosmopolitismo das grandes cidades
viria atrapalhar os interesses “nacionais”. Interesses esses que se vinculavam estreitamente
aos dos senhores patriarcais.
Contudo, nota-se que a reivindicação da nacionalidade pelos aristocratas do
nordeste açucareiro, ou como o chamou Gilberto Freyre de paróquia açucareira, seria reduzida
aos interesses que estivessem em consonância com os ideais dessa classe. Dito isto, todas as
616
José Lins do Rego Cavalcante, nasceu em 1901 e faleceu em 12 de outubro de 1957. Escreveu várias obras,
entre elas, as denominadas como “o ciclo- da – cana”, Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo, Usina, Fogo Morto
e, a primeira do ciclo e mola propulsora de nosso trabalho, Menino de Engenho.
transformações que vão de encontro a tais propósitos são vistas como nocivas e perigosas para
o desenvolvimento “nacional”. Este por sua vez, liga-se a uma concepção do regionalismo
atrelado aos interesses do estado de Pernambuco que podem ser em última instância os
interesses dos senhores de engenho.
Esse discurso do regionalismo-tradicionalista nordestino vem confirmar a
aistoricidade aliada, ao tradicionalismo. Essa negação do tempo histórico surge como reforço
da falsa representação do real e, por conseguinte apaga as marcas históricas de outros
movimentos e de outras praticas sociais: militarismo, democracia, futurismo. Nesse sentido, a
luta pela antiga hegemonia da classe rural fica mais explícita, uma vez que a volta da ordem é
ameaçada pela anarquia.
Alguns estudiosos comentam que Menino de Engenho, sua primeira obra do ciclo,
recebeu uma forte influência do escritor de Casa-Grande e Senzala. Isso porque o famoso
antropólogo havia confessado ao paraibano que iria escrever um livro que contasse se não
apenas sua meninice, mais a meninice de vários tipos regionais de brasileiros. Sete anos mais
tarde Lins do Rego escreve o seu Menino de Engenho. Disso, pode-se dizer que o escritor de
Soldados e Mucambos o incentivou, porém devemos reconhecer que, para tal acontecimento,
o crescido menino de engenho já possuía de pronto a sua própria substância romanesca na
vida que viveu nos engenhos de seus antepassados.
No plano estrutural, nota-se o caráter memorialístico da obra em que o narrador
observador combina forma autobiográfica para retratar o mundo onde viveu, com as
atividades produtivas, tipos humanos característicos, costumes e aspectos da paisagem. Desta
forma, o autor recupera através da memória e da arte, o efeito corrosivo do tempo sobre a
vida. Em um contexto mais amplo de nossa literatura nordestina Menino de Engenho deixa
transparecer a influência que recebera outrora de Gilberto Freyre e a atitude consciente de
questionamento e denúncia da realidade social, imperante na região. Contudo, o autor de
Usina deixa transparecer também, no decorrer da narrativa o predomínio de suas raízes, ou
seja, como o romance é composto por uma matéria que retrata a sua vivência enquanto filho
da aristocracia rural, como não poderia deixar de o sê-lo, focalizando os acontecimentos a
partir de uma ótica dominante.
Demonstra, com isso, a neutralização de sua consciência crítica acerca da
realidade. Isso porque ao invés de deixar aflorar sua consciência crítica, deixava fluir o
sentimentalismo e o predomínio dos tons vocativo e elegíaco frente àquele mundo que o
cercava. Nas palavras de Olívio Montenegro: Em José Lins do Rego o romance é como se
fosse mais de instinto do que da reflexão.( p .173)
O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águas que cresciam em
ondas nos enchendo os ouvidos. Num instante não se via mas nem um banco
de areia descoberto. Tudo andava inundado. E grandes tábuas de espumas,
árvores inteiras arrancadas pela raiz (...) (M de E., p.24-25)
A partir disso, nota-se que a relação natureza x homem, em José Lins do Rego,
sobretudo em Menino de Engenho dá-se de forma desintegrada. Uma vez que, de um lado,
aparece como um simples pano de fundo e suas cores e o frescor dos ventos; de outro, a
miséria humana. Nesse sentido pode-se dizer que a posição do autor em relação às obras desse
ciclo era meramente saudosista. Já que não trabalha o contraste natureza x homem como uma
formulação contida no conteúdo da obra, mas como uma matéria de vida.
Contudo, o ciclo da cana-de-açúcar não só está arraigado dos tons evocativo e
elegíaco como também possui caráter extremamente memorialístico, constituindo assim, o
maior expoente narrativo da vida literária de José Lins do Rego. Através dele, esse autor
transmite de forma espontânea e intuitiva suas recordações tanto da infância quanto da
adolescência enquanto descendente de senhores de engenho. Para tal, faz uso de uma
linguagem, forte e poética ou como afirmou Josué Montello, “uma espécie assim de estilo
palestrado, que viesse diretamente da boca do povo para a pena do escritor”.(Obras
Completas, V.II. p.19) Verificou-se que o regionalismo de Graciliano Ramos e o de José Lins
do Rego se colocam em patamares distintos. Isso porque enquanto de um lado Graciliano
Ramos faz uso da natureza para denunciar as precárias condições a que são relegados os
sobreviventes do sertão; do outro, José Lins do Rego preza por uma visão memorialista em
que lança mão de suas experiências para nos conta o seu viver enquanto neto de uma
aristocracia de fogo morto.
Através das leituras das obras anteriormente mencionadas, foi verificado que a
região nordeste ao tempo em que reflete a fome, a miséria e o descaso político, demonstrando
assim uma vida estigmatizada pela seca, é palco também de grandes propriedades de terra
onde impera a supremacia dos senhores de engenho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41 ed. Cultrix. São Paulo,
1994
CASTRO, Dácio Antôniode. Roteiro de Leitura: Vidas Secas. Ática. São Paulo,1997.
CITELLI, Adilson. Roteiro de Literatura: Os Sertões.2 ed. Ática .São Paulo, 1998.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões, Texto Integral. Editora Martin Claret. São
Paulo,2003.
FILHO, Adonias. O Romance Brasileiro de 30. Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1967.
MELO NETO, João Cabral de. Melhores Poemas. Seleção de Antônio Carlos Secchin. Editora
Global.9 ed. São Paulo, 2003.
REGO, José Lins do. Menino de Engenho, Literatura em minha casa. José Olympio. Rio de
Janeiro,2003.
INTRODUÇÃO
Viver e analisar o tempo presente não é algo para todos. O pai da Psicanálise,
Sigmund Freud (1927), entende que, de modo geral, há certo ar de ingenuidade quando se vai
tratar do presente. O distanciamento torna-se necessário para que uma gama de fatores possa
ser avaliada em conjunto. Para ele a percepção do presente só poderá ser realizada por alguns
poucos. Ele mesmo acredita não fazer parte desse grupo tão seleto. Tendo em vista que a
percepção deve remeter a um contexto amplo, e a maioria das pessoas só consegue analisar
um ou outro aspecto, não todos ao mesmo tempo. Para ele os artistas conseguem ter tal
dimensão. Sua percepção, apesar de ser uma visão de mundo particularizada, exprime, no
conjunto das produções de sua época, aquilo que Raymond Williams define como “estrutura
de sentimento”.
A relação entre ficção e História revela que “a manipulação da realidade histórica
tem pois como objetivo primeiro transformar a história em aventura individual; o elemento
histórico se integra à ficção, acaba por acomodar às suas leis” (FREITAS, 1989, p. 51).
sobre pedra. Retirando tudo de quem tinha dinheiro ou não. Deixando a pessoa na miséria
e/ou em desgraça, quando não lhe tirava a vida. Dessa forma, pode-se imaginar que havia uma
igualdade de tratamento entre rico e pobre, patrão e empregado, escolarizado ou analfabeto.
Não importava. Era a expressão viva do próprio “demo” (SOUSA, 1996).
O jornalista Carvalho Deda (1967) ao relatar a passagem de Lampião pela cidade
de Simão Dias, município de Sergipe, retrata como o medo da invasão provocou a saída de
alguns munícipes de suas casas, a união dos que ficaram combater os invasores, e, ainda, a
necessidade de solicitar reforço policial para proteger a cidade. Durante a narrativa é revelado,
também, como uma senhora grávida foi “fulminada por uma bala que partira da resistência”,
segundo ele, “num evidente erro de fato” (p.132). O ocorrido mostra o despreparo da
comunidade para lidar com os cangaceiros. O medo, então, passou a comandar suas ações,
impedindo-os de distinguir entre uma mulher em estado avançado de gravidez e um
cangaceiro. Medo que pode ser justificado a partir do imaginário social sobre o cangaço. No
romance “Os Desvalidos”, Coriolano apresenta bem essa face do medo. Sua visão impregnada
das histórias dos cordéis que lera e dos causos que ouvira. Para ele um cangaceiro
representaria estar acima de qualquer regra socialmente imposta. Eles possuíam regras
próprias. Imagem que corresponde à da realidade da época, para alguns.
Para além dessa imagem negativa, havia toda uma construção que envolvia
aspectos ligados à salvação, à proteção, à quebra da ordem vigente. Nota-se a presença de um
traço revolucionário cuja principal função seria proteger os pobres contra os desmandos dos
poderosos. Uma espécie de Robin Hood do sertão. Imagem positiva que revela o anseio por
justiça social por vezes associada ao cangaço. A presença marcante do cangaço imprime
respeito, mesmo aos que não lhe tinham simpatia.
É esse o aspecto que o personagem Coriolano cuja saída do Rio-das-Paridas,
cidade em que morava com seu tio-avô, humilhado e sem recursos, após uma temporada
remendando as roupas e as peças de couro do bando de Lampião, irá usar ao retornar a sua
cidade. Passa a utilizar a imagem do cangaço a partir de uma visão que representa força e
positividade. Mente, inventa estórias para se vangloriar. Mostrar-se forte, independente é
importante para retornar à cidade de Rio-das-Paridas em busca de melhores condições de
vida. Pois não poderia admitir continuar sendo um pobre coitado aos olhos de seus
conterrâneos.
Coriolano, assim, lida com a ambivalência da fama de Lampião. São dois aspectos
que irá manipular. Por um lado, externamente, contando e recontando histórias do tempo em
que conviveu com o cangaceiro. Por outro, internamente, reza para que nunca mais encontrá-
lo. Numa mesma formação social, ocorre a disputa entre o bem e o mal: ora dentro do
personagem, ora com suas relações sociais. Percebe-se que a ficção consegue desempenhar
seu papel de estranhamento. Ir além da realidade.
Refletindo a respeito o historiador Fernando Sá argumenta que de fato o que
ocorre é um mosaico entre uma realidade e uma criação mítica na qual o fato histórico
encontra-se presente sob a forma de ficção. Acrescenta, ainda, que
como bem ressaltou Patrícia Sampaio Silva (...) que o cangaço é um terreno
privilegiado do imaginário social, na medida em que há um leque de
representações a partir do deslocamento de um mesmo símbolo. Como a
família é, ao mesmo tempo ideal de refúgio, abrigo, de segurança e imagem
de cela de prisão, símbolo da opressão carcerária, de jazigo, o cangaceiro é
um símbolo contraditório associado a múltiplas representações que vão do
bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro ao mau-caráter sem
escrúpulos, tornando-se, portanto, aberto a várias ressonâncias(SÁ, 2005, p.
288).
seu tio-avô: não deixar remédio industrializados entrar na botica. Essa promessa irá fazê-lo
perder tudo, sendo obrigado a aprender a lidar com a arte do couro junto a Mestre Isaías. Não
aprendendo tudo, pois as necessidades materiais obrigaram-no a pôr em práticas seus
conhecimentos deixando de lado o aperfeiçoamento nessa arte.
Nessas idas e vindas que o rumo de sua vida tomou sem assentar praça em lugar
algum, Coriolano encontra-se a contragosto por algumas vezes com Lampião. Momentos não
muitos agradáveis, pois o chefe do bando o chama de remendão. Palavra que ele abomina
completamente, mas quando pronunciada por Lampião o faz calar por medo de morrer na
ponta da faca do cangaceiro. Encontro carregado de medo que irá deixá-lo inerte diante da
proposta do chefe do bando:
Com medo de morrer, o coitado até tresvaria com o casco da cabeça assim
no tempo, escaldado e sem arquivo pra fichar coisa nenhuma; pois quando
este Coriolano se vê em má situação, amolece logo o tino e só toma pé
mesmo nas miudezas que não servem pra medir o que se passa, nem se
prestam a dar sossego ao coração. Vai assim indo o pobre homem, sumido
do seu natural, e já amolecido de sobrosso e de vergonha, a vidrar os olhos
naqueles chapelões de couro endurecidos, com a testeira enfeitada de estrelas
de níquel e signo-salomão” (DANTAS, 1996, p.103).
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Francisco J. C. Os Desvalidos. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão (1927). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996,
vol. XXI.
FREITAS, Teresa de. Literatura e História: o romance revolucionário de André Malraux. São
Paulo: Atual, 1986.
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão;
editora UFS; Aracaju; Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.
SOUSA, Aninio Lindvaldo. “Homens de parte com o diabo”: violência, medo e ordem
pública no cotidiano das fronteiras e do agreste de Itabaina/SE (1889-1930). Belo Horizonte:
UFMG, 1996. (Dissertação de Mestrado).
617
No Programa de Pós-Graduação em História/FFCH/UFBA ver: AGUIAR, Fernando José Ferreira. Em
Tempo de Solidão Forçada: epidemia de varíola, sistema de saúde, revolta popular e fé em Sergipe oitocentista.
(2002); SANTANA, Joanelice Oliveira. Introdução ao estudo da escravidão em Estância. Comarca da Província
de Sergipe Del Rei (1850-1888). (2003)), Janete Ruiz de Macedo e João José Reis. NASCIMENTO, Jairo
Carvalho do. José Calazans: a história reconstituída (2004); SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre Farinhadas,
Procissões e Famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888)
(2004); SILVA, Sheyla Farias. Nas Teias da Fortuna: Homens de Negócio na Estância Oitocentista (1820-
1888).(2005)).
discussões apresentam novas formas de discutir esses temas e apontar para os sujeitos que
participaram das tramas e teias que engendraram as relações entre uma e outra região ao longo
de suas histórias, de forma a analisar os papéis desempenhados por cada um e/ou grupo nos
contextos específicos.
A instalação dos pontos de ocupação da costa do Brasil desde os tempos coloniais
possibilitou a construção de redes de comunicação, comércio, apoio militar e político ao longo
desse período. O fortalecimento das relações entre esses pontos se deu mais no sentido de
cooperação e, em alguns momentos, de concorrência econômica para certas regiões que
produziam os mesmos produtos para exportação, como foi o caso de Bahia e Pernambuco,
com a produção e comercialização do açúcar, ou como economia complementar como foi
entre Bahia e Sergipe. Essa concorrência mercantil contribuiu, de um lado, para movimentar a
economia e, por outro, em constituição de práticas comerciais que fortaleciam o poder
econômico e político dos grandes proprietários, sejam eles, donos de engenho, terras, gado,
escravos. Por outro lado, havia um contato direto entre a Bahia e Pernambuco, o mesmo
acontecendo com Alagoas e Sergipe, parceiras no circuito do norte.
618
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências. Ensayos sobre lãs revoluciones hispânicas.
México: Fundo de Cultura Económica, 1993. P. 17
São Francisco a Itapuã619. Segundo Felisbello Freire620, entre “1696 até quase o meado no
século XVIII o que salienta-se e caracteriza o desenvolvimento histórico –é, além destas
questões de limites, a luta de jurisdição em que viviam as principais autoridades da
capitania.”.
619
LIMA Junior, Francisco A. de Carvalho. História dos Limites entre Sergipe e Bahia. Aracajú: Imprensa
Oficial, 1918. Esta obra faz uma discussão sobre o estabelecimento dos limites entre os Estados de Bahia e
Sergipe, apresentando uma documentação preciosa sobre o tema. No entanto, chamo a atenção para o caráter
político de seu texto, onde busca demonstrar a supremacia política da Bahia ao longo da história e a usurpação
por esse Estado das terras sergipanas.
620
FREIRE, Felisbello. P. 173
621
Salvador foi capital do Estado do Brasil até 1763.
622
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracajú: UFS/BANESE, 1991P.
131.
623
Documentos Históricos da Câmara Municipal de Salvador. Salvador: PMS, 1959. p. 202.
624
Ver: QUINTAS, Amaro. O nordeste In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico. São Paulo:
DIFEL, 1985, Tomo II, Vol 22. p. 193-240.
Luis Henrique Dias Tavares ao estudar a “adesão da Bahia às Cortes de Lisboa” não
discutiu o papel que a Bahia exerceu sobre Sergipe naquele ano de 1821625. “Na Bahia, a
adesão às cortes ocorreu já em fevereiro de 1821, antes do juramento do rei no Rio de Janeiro,
e a formação da junta de governo indicou a vitória dos constitucionalistas da nova
província.”626 Após o juramento da Constituição portuguesa, a Junta da Bahia, para reverter as
perdas dos territórios que agora pertenciam a Sergipe, decidiu pela reincorporação da
Comarca e para isso enviou uma tropa em direção à Sergipe, realizada em 26 de agosto de
1821, quando em São Cristóvão e em outras câmaras municipais os sergipanos foram
obrigados a fazer o juramento da Constituição e a fidelidade à Junta da Bahia. Tais ações
projetaram na história de Sergipe um ressentimento que se fazem presentes nas páginas da
historiografia sergipana.
O quadro político baiano, que naquele período estava dividido entre liberais e
“corcundas” (conservadores) e influenciou diretamente na política sergipana que também foi
marcada pela disputa desses dois seguimentos políticos, mas com um agravante: os liberais
defendiam a manutenção da independência e os “corcundas” o retorno da união com a Bahia.
Essa disputa levou a revolta armada, sobretudo devido à participação de militares na
contenda, o que trouxe grande turbulência ao governo da província recém-criada627.
Com a ordem restabelecida, o governo provincial foi totalmente consolidado em 1822
e muito dos revoltosos foram julgados e punidos, alguns foram, inclusive, julgados na Bahia,
o que já indica a permanente relação de cooperação entre essas duas províncias o que será
analisado nesse trabalho. Devo chamar a atenção que para a consolidação da independência
em Sergipe estiveram presentes tropas saídas da Vila de Cachoeira e contou com o apoio das
tropas do General Labutut que estava de passagem por Sergipe, após ter desembarcado em
Maceió, em agosto de 1822.
A constituição do poder provincial com a criação das Assembléias Provinciais
encaminhou a articulação política regional. Todavia foram os presidentes de províncias que
executaram a política monárquica nas províncias e funcionou como reforço político
administrativo para as suas co-irmãs. Segundo Nora de Cássia,
625
TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora da UNESP/Salvador: EDUFBA,
2001. p. 221-227.
626
MALERBA, Jurandir. A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. P.
187.
627
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracajú: UFS/BANESE, 1991. P.
133.
“PROCLAMAÇÃO
Soldados de 1a Linha! A glória que tenhais perdido, degenerando-vos do
caráter Brasileiro, acha-se felizmente recuperada. O Vosso Presidente muito
se apraz ao ver, que vos conduzires como soldados, defensores do
Imperador, e da Pátria! E os vossos Concidadãos se congratulam do Vosso
comportamento Garantir os Direitos da Sociedade, a que pertence, é o
primeiro dever de todo soldado, maiormente
Do Soldado Brasileiro. Isto o que vos cumpre, e o q recomenda o Nosso
Augusto Imperador e Defensor Perpetuo. Soldados Brasileiros! Que
felicidade não será para os outros restituir-vos a Capital da Província entre
aplausos, e vivas os mais significativos? É desta arte, que se costuma
distinguir a virtude do vicio que, ainda agora apoderado dos ex
Comandantes, q vos depositavam vão principia a retribuir-lhes o excesso de
suas malfeitorias nos detrimentos do Asilo dos crimes. Soldados! A vossa
conduta passada não mais vos lembre; e se, suceder, que tenhais de encará-
la, seja somente para comparardes com a presente, e enlevados nas delicias
da Paz, e Tranqüilidade, que se nos acerca, gritardes entusiasmados Viva a
Religião e Viva o Nosso Imperador Constitucional e Perpetuo Defensor do
Império do Brasil. Viva a Independência Perpetua do Brasil. Viva a Septima
Constitucional. Viva os Brasileiros.
Povoação da Estância, 3 de Maio de 1824, 3º da Independência e do
Império.”630
628
OLIVEIRA, Nora de Cássia Gomes de. Os ilustrados, prudentes e zelosos cidadãos bahianos e a construção
do Estado nacional (1824-1831). João Pessoa: UFPB, 2007. p. 109.
629
“O decreto de 8 de julho de 1820, pelo qual D. João VI externava a sua simpatia pela ajuda sergipana na luta
pela sufocação do movimento republicano de 17, desanexava Sergipe da anterior sujeição a Bahia. Mas o seu
primeiro governador, o Brigadeiro Carlos Cesar Bulamarqui, nomeado a 24 de outubro de 1820, tendo posse a
20 de fevereiro de 1821, quase não chegou a governar”. Ver: QUINTAS, Amaro. O nordeste In: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico. São Paulo: DIFEL, 1985, Tomo II, Vol. 2. PP. 193-240.
630
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.
631
TAVARES, Luis Henrique Dias. O levante dos Periquitos. Salvador: CEB, n. 144.
632
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.
633
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.
Pernambuco, que havia sido abalada pela Confederação do Equador. Essa era uma prática
recorrente em tempos de estruturação do Estado nacional, onde ainda existiam focos de
resistência à centralização do Estado imperial.
No que diz respeito à administração provincial foi freqüente o pedido de orientações
ao governo baiano sobre vários aspectos e formas de como se proceder diante de algumas
situações, tais pedidos foram mais freqüentes nos primeiros anos da década de 1820, como
reflexos do processo de consolidação do poder e organização administrativa provincial local.
Em 18 de abril de 1828, o presidente da província de Sergipe registrou suas dificuldades:
634
NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe a partir de 1820. Rio de janeiro: Cátedra, 1978. p. 27
série de fatores: primeiro com o bloqueio feito pelo governo imperial ao porto de Salvador
durante a revolta de 1837 (mais conhecida como Sabinada), os sergipanos passaram a
comerciar diretamente com outros mercados produtores e consumidores; segundo, o
estabelecimento de empresas estrangeiras em solo sergipano contribuiu para a quebra do
controle exercido pela praça comercial de Salvador; e, por fim, – mas não menos importante -
o próprio desenvolvimento de alguns seguimentos econômicos da província, que gerou a
aplicação e empréstimos de capital sergipano na sua província vizinha.
A Bahia permaneceu sendo o principal consumidor do que era produzido em Sergipe,
dentre esses gêneros destaco: a farinha de mandioca amplamente usada na alimentação da
escravaria e dos despossuídos sociais. Outro gênero de relevância na economia da província
sergipana era o algodão, que era vendido tanto para a Bahia, usado na fabricação de tecidos
grosseiros, como também foi exportado para os Estados Unidos da América, que teve sua
produção de algodão no sul do país comprometida durante a Guerra de Secessão e necessitava
desta matéria prima para suas manufaturas emergentes. Entretanto a Bahia não constituiu
apenas um mercado consumidor dos gêneros produzidos em território sergipano, também
constituía uma fornecedora de produtos de primeiras necessitadas em momentos necessários,
a exemplo, dos períodos de graves secas, como no ano de 1828, quando o presidente da
província de Sergipe escreveu em 30 de abril:
Do ponto de vista social pudemos constatar o fato de que muitos sergipanos iam
estudar nas instituições de ensino superior (principalmente médicos para estudarem na
Faculdade de Medicina da Bahia) e retornavam para sua província de origem para trabalhar
nas principais cidades como profissionais liberais. Além disso, também médicos baianos iam
tentar carreira profissional em terras sergipanas, mas apesar disso a política de saúde pública
do governo local era muito precária e o abastecimento de material usado nos hospitais e na
635
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1148. “Tendo principiado agraciar
nesta provincial a peste das bexigas, rogo a V Excia se digne enviar-me uma porção de vacina, para com a
instituição da mesma, remediar tão grande mal.” Nesse caso o auxilio não foi imediato, pois foi feito novo
pedido, já que o primeiro não foi atendido, cerca de 2 meses depois (13 de janeiro de 1830)
Este trabalho fui inicialmente produzido como Trabalho Conclusão de Curso (TCC)
entregue ao Curso de Especialização Ensino de História: Novas Abordagens, promovido pela
Faculdade São Luis de França (FSLF).
O texto a seguir busca apontar perspectivas sobre a implantação do sistema
republicano em Sergipe. Utilizando como respaldo teórico Terezinha Oliva de Souza, Ibarê
Dantas, Ângela Castro Gomes, Ariosvaldo Figueiredo, Emilia Viotti da Costa e a análise de
alguns os discursos parlamentares daquele que se consolidou como o maior ícone do
republicanismo em Sergipe: o deputado federal Fausto de Aguiar Cardoso.
636
Cujo nome completo era Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança
e Bourbon
em uma estrutura perversa que o amarrava as velhas composições da elite latifundiária que
sobrevivia em um sistema penoso de produção e exportação de açúcar.
Dantas aponta que mesmo de uma “vida cultural acanhada” seria ela a responsável
pela divulgação das idéias republicanas, e seria desse pequeno círculo de pessoas que sairiam
os principais republicanos, que buscaram fomentar uma nova vida política para Sergipe. Para
este grupo havia a esperança de que a chegada do sistema republicano trouxesse uma
alternância no poder principalmente no executivo sergipano.
O período monárquico sergipano era marcado, segundo Dantas, por uma estrutura
nefanda, que entre outros aspectos impunha duras condições de trabalhos para a maioria em
prol de alguns que gozavam de vantagens e benefícios herdados pelo montepio.
Sergipe pode ser analisado como um exemplo da insatisfação política com os rumos
da nova República, o que provoca uma espécie de reinvenção da república em caráter local,
para Dantas:
Para Freire e Celso Castro a república não significou uma reestruturação de poder
entre os Estados, mas sim uma nítida manutenção da “ordem” em prol do “progresso” e
protagonizada pelas lideranças do sudeste do país. Para estes autores a grande mudança
republicana seria a admissão do federalismo como forma administrativa do território.
637
IN: GOMES, Ângela de Castro. PANDOLFI, Dulce Chaves. ALBERTI, Verena (Org.). A República no
Brasil. Rio de janeiro: Nova Fronteira. 2002.
638
Nascido em 1853, foi padre, dominou a política sergipana através do partido Conservador entre os anos de
1885 a 1906, ocupou mandatos de deputado, Intendente de Aracaju, senador e de presidente do Estado de
Sergipe (1899 – 1902).
Na prática o monsenhor Olímpio Campos manteve seu status político inalterado com
a chegada da república, tanto é que segundo Carmelo, será ele que irá presidir a assembléia
Estadual Constituinte que elaboraria a Constituição republicana do Estado de Sergipe.
O que se verifica na bibliografia existente, é que de modo geral a república era algo
desconhecido da maioria dos brasileiros, de modo que foi preciso impor o novo sistema com a
mais moderna e brilhante transformação política do país, era preciso atribuir todos os males
do Brasil ao antigo regime monarquista. Assim, ficou a carga da monarquia brasileira
carregando toda a simbologia do atraso e do anti-modernismo político do país.
avançadas, trazidas geralmente da Europa, sendo um dos centros irradiadores dos ideais
republicanos no Brasil.
Fausto de Aguiar Cardoso irá apontar em suas duas obras: Concepção Monistica do
Universo e na Taxinomia Social, assim como em seus discursos parlamentares realizados
entre 1900 a 1903 e posteriormente em 1906, que a trajetória da história do Brasil, assim
como a história de todas as nações, segue um fatalismo histórico, que ele irá denominar de
“leis immutáveis” da História. Sendo assim as sociedades teriam que percorrer caminhos
muitos semelhantes, pois:
Dentro dessa visão as sociedades são regidas por “leis immutáveis”, de uma evolução
constante. E assim também seria a narração dos fatos dessas respectivas sociedades, por
mais que eventos inesperados ocorressem, a História teria uma linha lógica e racional de
evolução, ou seja, esse desenvolvimento das aglomerações humanas não ocorre de forma
aleatória, eles seguem uma ordem “immutável”.
Assim, o surgimento da República em 15 de novembro de 1889 era fruto dos
movimentos e articulações da própria sociedade e de seus grupos, que estavam apenas
movendo a “Maquina da História” que levaria à República como uma fatalidade da trajetória
do nosso país. Pois para o deputado sergipano a proclamação da República era:
640
Sessão da Câmara dos deputados de 9 de junho de 1902. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.688-711.
A busca incessante pela liberdade é para Cardoso uma das “leis immutáveis da
história” pode ser vista em todas as sociedades ao analisarmos suas respectivas histórias,
como afirma ele em um de seus discursos na capital federal em 1900:
641
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1900. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.227-261.
642
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1902. IN: IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p. 688-711
643
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1900. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.227-261.
Para ele, a República brasileira era um desses acontecimentos ocasionados pelas “leis
immutáveis da história”, pois o sistema republicano era certo e inevitável. O fato de o Brasil
ter se tornado Monarquia, a princípio poderia quebrar a teoria da “imutabilidade”, mas Fausto
Cardoso assegurara que não, pois a República chegaria ao País, mesmo que isso retardasse no
tempo. O ocorrido em 15 de novembro de 1889 era algo já determinado pelas “leis
immutáveis da história”.
A República brasileira seria uma obra da História, e não dos militares associados aos
interesses econômicos da aristocracia de algumas províncias. O sistema Republicano, segundo
Fausto Cardoso, “não fora obra do homem, mas da História, que um impulso destruíra o fruto
artificial da razão transviada: o império; e insinuara o natural que a razão esclarecida aceitou e
cultiva: a República” (CARDOSO, 1900, p.398).
A monarquia foi apenas um hiato na seqüência entre a Colônia e a República que não
destrói a teoria de Fausto Cardoso, apenas a confirma. Pois as “leis immutáveis” não regem os
meios, mas o alvo. Os processos pelos quais a República fora implantada não fazem parte das
“leis immutáveis da História”, porém, a sua concretização sim.
Em seu discurso de 9 de junho de 1902 Fausto Cardoso aponta que “revolução e
república foram a expressão da lei fundamental, precípua, inconsciente, fatal do envolver de
nossa espécie, lei que faz da história particular do povo, qualquer que seja a sua posição na
escala do progredir humano”644.
E acreditando que a República é uma obra da História, Cardoso convoca todos os
brasileiros a defendê-la com sangue, se necessário. O sistema que se implantou em 15 de
novembro foi uma “solicitação da História”.
Cardoso afirmava que a atuação das “leis immutáveis” poderia também ser vista
no efeito ação e reação, pois, em qualquer sociedade humana, sempre que se implanta algum
regime de restrição da liberdade, em algum momento futuro se ocasionará uma reação em
busca do livre-arbítrio.
Fausto Cardoso acreditava que, assim como “phenômenos” fixos agiam sobre a
natureza, as sociedades eram regidas por “leis fixas e immutáveis”. (CARDOSO, 1894, p.1).
Para fazer tal afirmação ele buscou fundamentos na filosofia monistica de Ernesto Haeckel645.
644
Sessão da Câmara dos deputados de 9 de junho de 1902. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.688.
645
Pensador alemão nascido em Postdam, na Prússia, em fevereiro de 1834. Morreu em Lena, na Alemanha, em
agosto de 1919. Seguidor e um dos principais divulgadores da doutrina da evolução de Darwin. Criador do
“monismo materialista” onde a natureza é vista como única substância, submetida ao processo da evolução,
negando a existência de uma teoria da criação ou destruição,acreditando na concepção da transformação. Foi
Tal filosofia acredita que a natureza segue uma seqüência lógica de acontecimentos e tem por
premissa o fato natura non fácil saltus. De igual maneira, a “história não dá saltos”, segue um
encadeamento lógico de acontecimentos.
As “Leis immutáveis da História” fariam sempre o mesmo percurso que Cardoso
descreve como “Utopia, Revolta e Instituição”. Tais etapas seguiriam a seguinte ordem: o
período da “Utopia” seria quando a idéia “brilha na mente solitária de um gênio”; no segundo
momento, seria quando essa idéia ultrapassa a mente desse gênio, tomando corpo e abraçando
“camadas humanas” a ponto de tornar-se a etapa da “Revolta”; o terceiro e último momento, é
o da “Instituição”, que seria quando aquilo que em outra ocasião fora uma idéia “utópica”
ganha forma e consolida-se em instituições.
Do mesmo modo, a história da conquista da liberdade estaria condicionada às mesmas
etapas na constituição de qualquer agrupamento humano, uma vez que e a história das
sociedades é a história da busca e da conquista da liberdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
árduo crítico da teoria criacionista. São de sua autoria, entre outras, as obras: A Origem do Homem, Formas de
arte da natureza.
que conviver com velhos vícios de uma elite que aprendeu a acomodar-se à qualquer situação
política.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Fausto. Concepção Monistica do Universo. Não consta data nem editora. 1894.
293p.
__________. Taxinomia Social: cosmo do Direito e da Moral. Rio de Janeiro: Tipografia
Morais. 1898. 216p.
__________. Discurso Pronunciado na Câmara Federal, a 09-06-1902 no Rio de Janeiro. IN:
CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e
comentários do deputado Francisco Rollemberg). Brasília: Câmara dos Deputados. 1987.
p.688-711.
__________. Discurso Pronunciado na Câmara Federal, a 04-09-1900 no Rio de Janeiro. IN:
CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e
comentários do deputado Francisco Rollemberg). Brasília: Câmara dos Deputados. 1987.
p.227-261.
CARMELO, Antônio. Olímpio Campos Perante a História. Aracaju: Degrase. 2005
CARVALHO, Jose Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não
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editora e ano.
GOMES, Ângela de Castro. PANDOLFI, Dulce Chaves. ALBERTI, Verena A República no
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SOUZA, Terezinha Oliva de. Impasses do Federalismo Brasileiro: Sergipe e a revolta de
Fausto Cardoso. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra/UFS, 1985.
VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras – Volume 1. 3 edição. Belo Horizonte:
Itatiaia: São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1987.
Sabe-se que o Brasil das primeiras décadas do século XX é marcado por significativas
disputas ideológicas e confrontos políticos além de transformações profundas em sua
economia e nos encaminhamentos filosóficos dos movimentos sociais. Neste universo
marcado por disputas políticas e crises econômicas, as disputas ideológicas sofreram um
acirramento nos primeiros anos da década de trinta do século passado quando Integralistas e
Comunistas confrontavam suas idéias e militavam ardilmente no cotidiano. O movimento dos
“camisas verdes” foi bastante difundido nas cidades do Recôncavo Baiano, existindo uma
memória pouco explorada pela academia. Neste sentido, a presente pesquisa tem como
objetivo central investigar a trajetória do Integralismo no Recôncavo Sul Baiano a partir de
uma reflexão sobre o discurso dos jornais que circularam no Recôncavo entre os anos de 1933
a 1937, temporalidade que abrange o apogeu e o declínio do Integralismo no Recôncavo Sul.
A partir da analise de narrativas e de jornais pode-se verificar diversos aspectos do
integralismo em cidades do Recôncavo como Cruz das Almas, Maragogipe e Cachoeira.
1-INTRODUÇÃO:
Em Salvador, vários núcleos distritais foram fundados por toda a cidade, mas
foi no vasto interior baiano que a AIB conseguiu maior êxito em seu
processo de expansão. Numa atuação intensa, a AIB fundou núcleos
municipais por todo o interior, inclusive em cidades importantes como
Ilhéus, Itabuna, Jequié e Feira de Santana. No pequeno município de
Tucano, localizado no nordeste da Bahia a Ação Integralista conseguiu a
limitado o avanço dos trabalhos com as fontes orais, não obstante, tem instigado a avançar no
sentido de conhecer os personagens que participaram de um momento tenso e decisivo da
política brasileira.
Por conseguinte, as fontes escritas produzidas pelo movimento Integralista, como
jornais, revistas, boletins dos núcleos tem se apresentado de forma um tanto quanto
fragmentada, uma vez que muitas pessoas queimaram jornais, fotografias, atas de núcleos no
momento da dissolução da AIB com a instalação do Estado Novo, como rela o Sr. José
Souza646:
Quando houve o golpe de Getúlio, Rapaz Getúlio foi esperto deu o golpe
certinho, agente ia chegar no poder, só tinha os grandes no movimento, ate
ele era, ai, ai eu joguei a foto que eu tinha com Plínio que eu gostava tanto
na fose, mas não adiantou eu fui preso do mesmo jeito.
Temendo a prisão com a dissolução da AIB pelo Estado Novo implantado por
Vargas, muitos Integralistas acabaram destruindo seus documentos pessoais que poderiam
corroborar como evidência de sua participação no movimento no Recôncavo Sul. Essa atitude
dos militantes “camisas verdes” deixou como legado para posteridade um “silêncio” histórico
que esconde diversas nuaceas do cotidiano do movimento Integralista. Por outro lado, pode-se
entender com essa atitude uma tentativa de luta pela sobrevivência, que permitiu muitos
militantes do “Sigma” permanecerem vivos e no presente externarem memórias desses
tempos tensos da história política do Recôncavo Sul baiano e do Brasil.
A evidência contida na narrativa do ex-Integralista Senhor José Souza reafirma
de forma impar uma atitude coletiva que se expressa na sua lembrança de um momento tenso
de sua vida e de decisão imediata em ter que destruir as evidências de sua participação no
movimento do Sigma. A memória externada por seu José não é resultado de uma assimilação
de um evento experimentado individualmente, mas “o suporte em que se apóia a memória
individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela
memória histórica.” HALBWACHS (2004).
646
Sr. José Souza Pereira ( 94 anos), conhecido como Zeca da Breda, residente em Cruz das Almas
Bahia, participou ativamente do Núcleo Integralista de Cruz das Almas-BA.
(...) Nestor Fernando Távora, que tomou posse em sessão realizada no dia
31corrente na sede, à rua Geni Morais número 16. No domingo passado teve
lugar uma sessão extraordinária onde tomaram posse os secretários
nomeados pelo Chefe que são os seguinte; Dr. Marivaldo Cotias – S.M.O.P.,
Eustorgio C. Junior – S.M.E, Bolívar Pinto – S.C. M., José Pereira Borba –
S.M.P., Eduardo Vieira de Melo – S.M.C.A., N.Fernandes Távora –
S.M.F.C.F., Otavio Batista Soares – S.M.F. DEPARTAMENTOS: Stela
Machado Todt – D.M.I, Manoel Lucas Larangeiras D.N.E.s, André Mato
Groso – D.M.C.I Florisberina Andrade – D.M.F. Eurípides Alves Peixoto –
D.M.P., Eraldo Lopes Mota – D.M.J., CHEFES DE DIVISÃO; Pedro
Baião de Jesus – D.M.G.I.C. Antonio F. Almeida do D.M.P., Meneleu
Batista Soares do D. M. E., Hereliano Jorge de Souza da S.M.C. A.:” ( A
Faúla,31 /10/1934).
O jornal era organizado não apenas com o fim precípuo de doutrinar, mas,
mais do que isso, de transmitir a doutrina de modo uniforme. Os jornais do
interior, aqueles que chegavam até o militante mais distante, eram
organizados de modo a reproduzir os jornais maiores, editados nos grandes
centros onde se concentrava a elite dirigente do movimento
todo discurso expresso no jornal de uma maneira explicita ou implícita acabava sempre
levando a doutrinação das “mentes desavisadas” dentro do campo ideológico do integralismo.
Em 1935 o jornal “A Faúla” fez referência ao núcleo de Cruz das almas com a
meteria intitulada; “ Histórico do Núcleo Integralista de Cruz das Almas-BA”. A matéria vem
assinada pelo chefe Integralista do Núcleo Cruzalmense Fernando Pinheiro;
ESCOLA PRIMARIA: Possui este Núcleo uma escola primaria para ambos
os sexos, a qual foi instalada em junho deste ano, já contando com o numero
de 30 alunos matriculados.funciona 3 dias por semana com uma freqüência
de 20 alunos. MOVIMENTO DA SEDE: Atualmente o Núcleo conta com
o número de 104 integralistas fichados, do seguinte modo; Milicianos 70,
juventude 30 e Departamento feminino 4. As sessões doutrinarias são às
terças feiras onde comparecem geralmente diversos simpatizantes e um
numero elevado de companheiro que varia de 30 a70, para ouvirem a palavra
de fé dos oradores designados sobre o ideal do “Sigma” que empolga o
Brasil.DISCIPLINA; A disciplina dos integralistas deste Núcleo é
irreparável, são geralmente rapazes obedientes e fervorosos defensores do
nosso ideal. EXERCÍCIO; adotamos os exercícios físicos como
determinantes e regularmente e agora estamos organizando a nossa
biblioteca. Tudo isto fazemos com extraordinário sacrifício, tendo os olhos
fitos num futuro grandioso para nossa Pátria afim de que muito breve
possamos realizar a obra monumental traçada pelo chefe Nacional que
consiste na integralização de um Brasil altaneiro e respeitado por nações pela
sua grandeza econômica, moral e patriótica, assentado sobre as bases
espirituais que enobrecem um povo tendo por lema; Deus, Pátria e família.
Fernando (Pinheiro C.M de Cruz das Almas-BA)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O integralismo de modo nenhum pode ser esquecido pela academia. Movimentos
neo-nazistas no mundo contemporâneo se organizam e militam cotidianamente, sobretudo nas
grandes cidades do planeta.
O próprio movimento integralista esta se organizando novamente no Brasil isso se
constitui como prova contundente da importância da academia e, sobretudo dos historiadores
de discutirem um assunto de tamanha relevância para a sociedade.
O sistema ideológico criado por Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale
“viaja” no tempo espaço, e na contemporaneidade, não se limita ao campo das idéias, mas se
torna vivo na prática de jovens integralistas que começam se organizar no Rio de janeiro.
A Bahia foi um dos estados que abraçou essa doutrina com afinco, cidades como
Maragogipe, Cruz das Almas, Cachoeira, Castro Alves, Muritiba, foram palco para os desfiles
das hostes Integralistas nos anos de 1934 a 1937. Muitas vidas experimentaram a militância
no movimento e depositaram seus sonhos e desejos na construção de um novo país dentro do
arcabouço das idéias Plinianas.
Frustadas ou não, as narrativas dos ex-militantes da A.I.B. analisadas a partir de
um cruzamento com o discurso produzido pelos jornais oficiais dos “Camisas Verdes” em
conjunto com os periódicos que se posicionavam contra o movimento do “Sigma” revelam
um tempo de tensão, de “sussurros políticos” que projetavam a tentativa de colocar em prática
um ideal político, um “projeto de nação”.
A presente pesquisa, apesar de está se iniciando tem desnudado aspectos
importantes da estrutura política e organizacional do movimento Integralista no Recôncavo
Sul Baiano nos primeiros anos de 1930. Neste sentido, pode-se dizer que, se entender o
movimento do Sigma já é bastante relevante, devido a sua abrangência em todo país e pela
sua construção ideológica, que dirais perceber que sujeitos socais distantes do grandes centros
do país se posicionaram e militaram ardilmente defendendo uma posição política em seu
cotidiano não apenas em momentos de eleição.
Por fim, A A.I.B. no Recôncavo Sul baiano não foi um movimento político que
isolava o individuo em partes estaques da vida social, mas toda multiplicidade do viver
cotidiano em suas diversas temporalidades e espaços, - o viver na Igreja, na família, na escola
– esteve permeada pela militância diária como bem próxima do que afirma Sr. Jose Souza
“Era uma militância ferenha!”
2-Fontes
Histórica:
Jornal “A Faúla” Diretor .Fernandes Távora, Redator Chefe Eustorgio C.Junior – 25
exemplares depositados na casa Osvaldo de Sá em Mragogipe-BA e um exemplar no Centro
Cultural de Maragogipe-BA
Oral:
Sr. José Souza Pereira ( 94 anos), conhecido como “Zeca da Breda”, residente em Cruz das
Almas Bahia na rua Crisogno Fernandes S/N, participou ativamente do Núcleo Integralista de
Cruz das Almas-BA – OBS: Encontra–se lúcido sendo um exímio jogador de xadrez, vive
com a família, a esposa e filhos e Netos.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Jerffeson Rodrigues. A ascensão da ação integralista brasileira (1932-1937), In:
Revista Brasileira de Iniciação Científica da FFC. V.6, Nº. 1, 2, 3, Ano: 2006.
FERREIRA, Laís Mônica Reis. O integralismo da Bahia: O caso de o Imparcial, In: Revista
de História regional, Vol.11, Nº1 Ano: 2006.
Esta comunicação se afirma nas reflexões surgidas no doutorado em Memória Social, sobre a
reconstrução das identidades assumidas pelos imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro,
associadas ao processo histórico da construção da nação caboverdiana, ou seja, de uma
situação de disputa da memória oficial. Utilizando a metodologia de História Oral, foram
computadas vinte e nove (29) entrevistas, sendo dezoito (18) de imigrantes da primeira
geração e, onze (11) da segunda geração, ou seja, brasileiros, filhos daqueles imigrantes. Da
análise das narrativas orais identificamos as principais características da identidade, atreladas
às disputas das elites política e intelectual em três momentos históricos, desenvolvidos por
nós no doutorado, a saber: Cabo Verde Portuguesa (1400-975); Reivindicação da
Independência (1956-975); Cabo Verde Independente (1975 em diante). A questão é saber
como os acontecimentos integram a estrutura simbólica nacional e, consequentemente, como
os imigrantes caboverdianos reconstroem as múltiplas identidades. Desta forma, procuramos
desvendar as implicações históricas da construção da nação que se dá a conhecer no presente,
a partir do exame das narrativas orais dos depoentes.
terreno montanhoso, pela seca – até fatores econômicos, políticos e demográficos, como a
pobreza, a agricultura de subsistência e, consequentemente, as fomes que até os anos de 1940
chegou a matar em média 40% da população local. Assim, a partir do século XVIII, a
emigração marcou as trajetórias dos caboverdianos. Por estas razões, atualmente, contamos
com uma média de 517 mil caboverdianos vivendo no exterior das ilhas, enquanto 475 mil
vivem no arquipélago, conforme estimativas do INE (2008).
De acordo com nossas investigações, os imigrantes instalaram-se no Rio de
Janeiro entre 1950 a 1973, à procura de melhores oportunidades de trabalho e moradia. No
entanto, na década de 70, constatamos o fechamento da corrente imigratória no Brasil, devido
ao processo da reivindicação da independência de Cabo Verde, culminado em 1975. Com
relação ao retorno, a maioria desses atores sociais não visitou a terra de origem, porém, os que
assim o fizeram foram em média uma a duas visitas num período compreendido entre 30 a 50
anos. Entretanto, reconstruam as várias fases das identidades nacionais, através das relações
sociais mantidas no novo espaço. Sendo assim, a análise das memórias nos permitirá resgatar
as características identitárias assumidas pelos imigrantes quando relatam as trajetórias de
vida.
português Aníbal Lopes da Silva, chefe da missão seroantropológica, considerou que embora
não se constatou a predominância de sangue português, o caboverdiano é “um povo
absolutamente integrado na civilização ocidental e é, e assim se considera absolutamente
português pelo pensamento” (Silva, 1960: 95). Por outro lado, alguns debatedores ao
focalizarem os estudos de Chevalier (1935), contrapuseram a predominância de sangue negro,
afirmando que os caboverdianos têm na sua maioria sangue português. Mas, não pensam em
português, à medida que são pouco empreendedores, se expatriam com facilidade e, mais
facilmente regressam a Cabo Verde.
Ilustração 1
Bandeira de Cabo Verde (1975-1991).
medida que a bandeira da República de Cabo Verde assumiu novas proporções, digamos
europeísta, conforme a ilustração 2.
Ilustração 2
Bandeira Caboverdiana (1992 em diante)
Arquivo: Antonio Martins.
Assim como Barth (1978), a compreensão de uma determinada força social deve
ser realizada a partir da atuação concreta dos agentes sociais envolvidos na institucionalização
naquela memória. Para ele, dependendo da sociedade abordada, os atores podem ser os grupos
do processo, mas também, poderão se referir os indivíduos sem vínculos com a memória em
disputa, nos quais seja possível perceber processos de tomada de decisões. Aqui, “as decisões
tomadas pelos atores e as conseqüências das mesmas serão responsáveis por desenhar um
padrão agregado dessas ações, que junto aos padrões dos demais atores sociais é responsável
pelo surgimento de uma determinada forma social” (Barth, 1981, apud Comissoli, 2007: 6-7).
como forma de organização das relações sociais, mas silencia as raízes da identidade africana.
Nesta direção, Pollak (1989), considerando a teoria que norteia o lembrar e o esquecer,
enfatiza que o silêncio tem, por vezes, razões muito complexas, e, algumas vezes, às causas
políticas somam-se as causas individuais e sociais. Daí a versão do lembrar e esquecer se
fundamenta no caráter seletivo da memória. Portanto, nem tudo é lembrado, pois, fica o que é
significativo para o grupo. Assim, pressupomos que o silêncio pontuado nos relatos a respeito
da identidade africana, pode significar uma estratégia que tende a preservar a memória do
branqueamento, tendo em conta que a categoria branca passou a ser atribuído a qualquer
caboverdiano, independente da tonalidade da sua cor, à medida que ascendia socialmente,
financeiramente e intelectualmente na sociedade. Por outro lado, pode representar versões
oficiais da superação da questão racial, quando dizem que a escravidão foi superada sem
traumatismos de cor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. IN: POUTIGNAT, Philippe & STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teoria da etniticidade, seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de
Fredrik Barth. Tradução Elcio Fernandes. 2a ed. São Paulo: UNESP, 1978.
BENTO, Artur Monteiro. Memória híbrida, identidade e diferença: uma visão múltipla da
Comunidade Caboverdiana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: edição do autor, 2007.
CERTEAU, Michael de. A escrita da história. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2002.
CHEVALIER, August. Lês iles du Cap Vert. IN: Rev. Botan. Appliquée, 1935.
LESSA, Almerindo; RUFFIÊ, Jacques. Seroantropologia das ilhas de Cabo Verde. Mesa
redonda sobre o homem caboverdiano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1960.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Revista estudos históricos, n° 10, 1992.
SILVA, Aníbal Lopes da. O perfil psicossocial do homem caboverdiano. IN: LESSA,
Almerindo; RUFFIÊ, Jacques. Seroantropologia das ilhas de Cabo Verde. Mesa redonda
sobre o homem caboverdiano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1960.
O presente trabalho tem como objetivo expor a atuação dos órgãos de segurança, a partir de
seus desdobramentos em Sergipe no decurso da Ditadura Militar. É inquestionável a presença
militar nas universidades, através da sua rede de informação, todavia ao longo da
historiografia pouco se pesquisou de que forma tal presença se consolidou, como é o caso, por
exemplo, das AESI´s nas instituições federais. E particularmente como essa assessoria
funcionou junto à UFS no período entre 1971-1988. Nessa perspectiva, este trabalho pretende
traçar um panorama da performance das assessorias de informação de modo a perceber os
seus mecanismos de espionagem e repressão sobre estudantes, professores e funcionários.
Além do uso das fontes documentais expedidas pela Assessoria de Segurança e Informação –
AESI/UFS – a grande chamada da pesquisa é o resgate da memória daqueles que vivenciaram
a UFS vigiada no período estudado.
647
FICO, Carlos. Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política.
Rio de Janeiro: Record, 2004.
648
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula: 1927-2005. RJ: Record, 2005.
649
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge &
DELGADO, Lucilia A. Neves. Brasil Republicano: o Tempo da Ditadura - Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006, pp. 13 - 42.
650
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004,
p.174.
651
Sobre maiores detalhes acerca do projeto da Reforma Universitária de 64, consultar CUNHA, Luiz Antônio;
Góes, Moacyr de. O Golpe na Educação. 11° edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
Informações (e mais a frente como veremos pela AESI) do MEC652. À exemplo do que
acontecia em outras universidades653 no Brasil a presença do aparato militar no meio
acadêmico tornar-se-ia uma constante.
A imposição da comunidade de informação nos órgãos públicos tinha como alvo,
principalmente, as universidades, classificadas pelas autoridades militares como “áreas de
potencial subversão”654. Aliás, esta expressão diz muito sobre a resistência estudantil nas
universidades frente ao regime militar. E, os estudantes sergipanos não fugiam à regra. No
contexto nacional, a mobilização estudantil universitária estava a todo vapor no calor,
influenciados também, pelos acontecimentos do ano de 1968, marco na história mundial.
Assim como no resto do mundo, no Brasil as manifestações de protesto ganharam
proporções consideráveis ao ponto de serem violentamente reprimidas, provocando as reações
de diversos setores da sociedade contra a agressão policial e o sistema autoritário e repressivo.
Nesses anos, os estudantes se reorganizaram em cada faculdade, universidade ou mesmo
escola secundaria, reivindicando mais vagas e melhores condições de ensino, reestruturando
suas entidades e realizando congressos. Sucediam-se greves, ocupações e passeatas.
Na verdade, podemos pensar a inserção de órgãos de informações como a AESI
nas universidades como complemento à tarefa de controle sob os estudantes já que medidas
vinham sendo implementadas visando frear a mobilização estudantil contra o Regime Militar.
Exemplo é a Lei Suplicy e o decreto nº 477. A primeira, aprovada pelo Congresso em
novembro de 1964, apelidada de “lei do suplício” em homenagem a seu mentor o ministro da
Educação da época, Flávio Suplicy de Lacerda, extinguia a UNE e vedava às representações
estudantis qualquer manifestação de caráter político-partidário 655.
O decreto nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, versava acerca das infrações
disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de
estabelecimentos de ensino público ou particular. Portanto, vê-se que o movimento estudantil
estava de mãos atadas. Os DA´s estavam sob permanente controle, cada passo era monitorado
652
DANTAS, Ibarê. Op.cit. p. 101.
653
Cf. CLEMENTE, José Eduardo Ferraz. Perseguições, espionagem e resistência: o Instituto de Física da
Universidade Federal da Bahia durante a ditadura militar (1964 – 1979). In: Revista da SBHC, Rio de Janeiro:
v. 4, n. 2, jul - dez 2006, p. 145-145 e CHRISPINIANO, José, PICANÇO, Marcy e GONZALEZ, Marina. Filha
Bastarda da USP, AESI desempenhou diferentes papéis na repressão interna. In: Revista ADUSP, São Paulo:
out, 2004, pp. 37- 48.
654
Expressão usada pelos ideólogos da Doutrina da Segurança Nacional. MARTINS FILHO, João Roberto.
Movimento Estudantil e Ditadura Militar 1964/1968. Campinas, 1987, p. 86.
655
Sobre os decretos e atuação estudantil neste período Cf. MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento
Estudantil e Ditadura Militar, 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987 e POERNER, A.J. O poder jovem. 2.ed.
Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 1979.
656
Caso se desejar ter acesso a tais documentos procurar no AGUFS ou no arquivo documental do DALH.
657
Detalhes sobre a estrutura da DSI / AESI, cf. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001
e FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula: 1927-2005. RJ: Record, 2005.
658
Resolução nº16/71 do CONSU de 06 de agosto de 1971.
659
Ata de Sessão Ordinária do CONSU, 30 de julho de 1971, fl. 01.
660
Estatuto da UFS, 1971, art.55, alínea f.
661
Estatuto da UFS, 1971, art. 62, alíneas: a, g.
662
Regimento Interno da UFS, s/d, fl. 19 – 20 in: Arquivo UFS, Fundo: UFS/PROEX – 21.
663
Cf. DANTAS, Ibarê. Op. Cit. p.106.
expulsar os alunos, contudo os militares faziam questão que as autoridades civis, no caso a
Reitoria, assumissem suas responsabilidades pela repressão.
A “punição” designada pelo reitor para com os estudantes veio por meio da
portaria “ad referendum” do Conselho Universitário que suspendia os estudantes do exercício
das funções que estivessem ou exercendo representação no Corpo discente da Universidade
(eleições estudantis)664. Tal fato mostra a existência de impasses entre a interferência militar e
os gerenciadores da instituição que, por vezes, se mostrava predisposta a “defender” os
estudantes. No entanto, ressalva que era um relacionamento difícil entre a reitoria e o
Movimento Estudantil.
A produção de informações se efetivou, e se tornaria habitual nos expedientes do
setor adminstrativo, com a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), a qual
funcionaria no gabinete da Reitoria, evidenciada nos ofícios expedidos e recebidos. O prédio
da Reitoria, nesta época, se localizava no centro de Aracaju, na Rua de Lagarto, onde hoje
funciona o prédio da FAPESE.
De lá, o seu chefe ou assessor mantinha contatos com os Centros e demais setores
da Universidade aos quais solicitaria informações sobre as movimentações de alunos e
professores quanto à participação política e posição ideológica, enviadas a DSI em Brasília.
Durante seu período de existência até a sua extinção em 1982, a AESI/UFS teve
dois efetivos assessores nomeados: Hélio Leão (1972 -1975) e o Coronel José Brito da
665
Silveira (1976- 1977) , sendo que após este último, a AESI ficou inativa666. A partir de
então, a estrutura da Assessoria ficou somente no MEC, passando a funcionar no
DEMEC/FAPESE – Delegacia do MEC – que funcionaria no antigo prédio da reitoria,
localizado no Centro de Aracaju, já que a parte adminstrativa da UFS foi transferida para o
atual Campus Universitário 667.
Em novo endereço, porém cumprindo as mesmas funções, a Assessoria de
Segurança e Informações foi reativada tendo na chefia, o militar da reserva, Amintas Viera
Machado, em 1987, cuja secretária Ivanilde Santana de Souza, assume a chefia do setor em
664
IDEM, pp. 100-106. Os citados ofícios encontram-se no Arquivo Geral da UFS ou podem ser consultados na
monografia CARVALHO, Adriana Melo. Universidade Vigiada: Documentos para a História da Ditadura
Militar na UFS (1969-1977). UFS: DHI, 2005. (Monografia).
665
Dados extraídos do livro de DANTAS, IBARÊ. A Tutela Militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e
eleições num estado autoritário. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1997, pp.132-133. Todavia, tais informações foram
confirmadas em entrevistas com pessoas ligadas a AESI, expostas no capítulo seguinte.
666
Aliás, no ano de 1985, um decreto federal extinguiria as assessorias das universidades, contudo no caso
específico da implantada na UFS continuou a vigorar até meados dos anos 90. A documentação referente a este
momento de transição encontra-se sob a guarda da DEMEC, ainda localizada na FAPESE.
667
Entrevista concedida por Ivanilde Santana de Souza em 08/08/08.
1988. Os assessores eram indicados pelo Reitor e, obviamente, aprovados pela DSI, no
entanto, não pertenciam ao quadro de funcionários da universidade. Hélio Leão, funcionário
via cargo comissionado, e o coronel José Brito da Silveira, militar reformado do 28º BC
ascenderam ao cargo de chefia da AESI por convite dos Reitores da época, João Cardoso do
Nascimento e Luiz Bispo. Ao contrário destes, os seus respectivos secretários eram
funcionários da própria instituição, Walter Carvalho Mendes e Ivanilde Santana de Souza
perfazendo, assim a sua estrutura.
O sigilo sem dúvida nenhuma é o sobrenome deste tentáculo da SNI em Sergipe
cujas informações ainda se encontram bem guardadas. Quando dizem que um documento se
bem explorado, pode muito dizer basta observar os documentos da AESI. Ainda que raros
dentre a vasta documentação existente no AGUFS, os ofícios originários da AESI explicitam
suas peculiaridades: tais ofícios sempre vinham atestados com um carimbo com o nome da
universidade/assessoria e a classificação de sigilo “CONFIDENCIAL” ou “RESERVADO”
quanto ao assunto, ambos em tom vermelho sangue. A tonalidade poder-se-ia considerar uma
ironia já que a cor vermelha é assinalada como símbolo do comunismo e, a partir disto,
deduz-se que a intenção era sinalizar que o assunto era de caráter emergencial668.
A produção de informações supunha uma rotina bastante regulamentada, que
atribuía classificações quanto à fideginidade e veracidade das fontes e normas rígidas de
sigilo, basta observa os carimbos, também em vermelho, em que constava o seguinte aviso:
“O destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento. (art. 62 - Dec.
64.417/67. Regulamento para salvaguarda de assuntos sigilosos” ou a “Revolução de 64 é
irreversível e consolidará a Democracia no Brasil” 669.
Mas a que tipo de informação tanto se referiu? Uma das mais almejadas pela
AESI era o levantamento de dados biográficos – LDB - uma ficha em que se indicava o perfil
ideológico e as atividades políticas da pessoa investigada, fosse estudante, funcionário ou
professor, indispensável à nomeação de alguém para um cargo público. Sob o argumento de
manter o perfeito entrosamento entre a assessoria e os respectivos Institutos da Universidade
solicitava-se:
668
Tais características podem ser vistas nos ofícios anexados.
669
Característica encontrada no Ofício da Assessoria Especial de Segurança e Informações para a Diretoria do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, profª Maria da Glória Costa Monteiro. [Aracaju], 09 de novembro de
1972, 1 fl. A fim de confirmar que a produção de informações pela AESI/DSI seguia um padrão vigorado em
todo país recomenda-se consultar FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 95-105.
670
Oficio da AESI para o Diretor do Instituto de filosofia e Ciências Humanas, prof. Fernando de Figueiredo
Porto. [Aracaju], 07 de junho de 1973, 1fl. In: CARVALHO, Adriana Melo. Universidade Vigiada:
Documentos para a História da Ditadura Militar na UFS (1969-1977). UFS: DHI, 2005, p. 113.
671
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de novembro, 1974. 1fl.
672
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 28 de novembro, 1973. 1fl
673
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de março de 1974.
fosse na gestão de Hélio de Souza Leão e Walter Mendes de Carvalho ou até mesmo na época
do Coronel José de Brito da Silveira, as respectivas assinaturas eram representadas pelas
iniciais de seus nomes: “hsl/ wcm” e “jbs/wcm”. Explicação para este procedimento?
Pesquisas futuras poderão responder.
Até aqui tudo o que foi descrito acerca da AESI/UFS são dados formulados a
partir das informações extraídas das correspondências trocadas com os Centros. O conteúdo
dos ofícios pode parecer vago ou desconexo, no entanto, apresentam pistas que tendem a
caracterizar a estrutura e as funções da assessoria na universidade.
São evidentes as dificuldades da sociedade brasileira em recordar o período da
ditadura militar. A inserção dos órgãos de informação e repressão do governo, que tinham na
espionagem e na repressão política suas armas de combate na esfera da administração federal,
se deu nos quatro cantos do país. E, ao contrário do que muitos esquecem ou pensam, Sergipe
também sentiu o braço forte da atuação dos citados órgãos. A Universidade Federal de
Sergipe fez parte deste trajeto percorrido pela SNI e sua rede de espionagem cujas faces
autoritárias do regime foram demonstradas.
A Assessoria Segurança e Informação – ASI – instalou-se na universidade,
seguindo a risca os preceitos ideológicos que fundamentavam o regime de 64: dissipar
qualquer indício da ameaça comunista. Cumpriu sua função de acompanhar as atividades
estudantis, além é claro do cotidiano da instituição como um todo cujos resultados se
resumiram a perseguir e reprimir estudantes, violar direitos como à liberdade de expressão e
de pensamento.
Entretanto, a escassez de seus documentos não foram o suficiente para apagar da
memória e da própria história da UFS, que neste ano completou 40 anos, as marcas deixadas
por um tempo abominável. Ainda que controversas e seletivas, as lembranças persistem no
imaginário daqueles que lidavam diariamente com tensão, medo e desconfiança. Tudo isto
fazia parte da rotina de estudantes, docentes e funcionários disseminados por um setor que se
localizava no gabinete do Reitor.
O panorama desenhado da AESI, propósito deste trabalho, entendeu-se que foi
traçado observando a conjuntura política do país e o desdobramento dos órgãos de informação
e de segurança aqui no Estado. Um primeiro passo foi dado, todavia, pesquisas futuras devem
complementar as lacunas deixadas ao longo da escrita do trabalho. E em se tratando de
memórias do período turbulento da ditadura, o desejo é que este início de escrita da história
sobre a AESI na UFS possa resgatar um pedaço de um todo que se encontra perdido e
guardado a sete - chaves acerca do regime militar em Sergipe. Como bem disse Daniel Aarão:
Fontes Escritas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
674
Introdução do livro. REIS, Daniel Aarão (orgs.). O Golpe e a Ditadura militar- 40 anos depois (1964-2004).
São Paulo: EDUSC, 2004, pp. 11.
DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e eleições num estado
autoritário. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1997.
GOES, Moacyr de. O Golpe na Educação. 11° edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
POERNER, A.J. O poder jovem. 2.ed. Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 1979.
REIS, Daniel Aarão (orgs.). O Golpe e a Ditadura militar- 40 anos depois (1964-2004). São
Paulo: EDUSC, 2004.
O presente trabalho possui como temática a censura teatral em Sergipe durante a Ditadura
Militar, tomando como base para seu desenvolvimento as memórias de artistas envolvidos
com o teatro nesse espaço de tempo. A censura foi uma prática que marcou diversos períodos
da história brasileira, no entanto a Ditadura Militar é lembrada como a fase mais “negra” da
censura no país, pois nesse período essa prática radicalizou-se e tornou-se rotineira. Em vista
disso, esse artigo busca descortinar os mecanismos de censura cultural impostos pelo regime
militar, através do resgate e análise de memórias de atores e diretores que vivenciaram essa
experiência cultural e política. Os resultados obtidos além de atender ao objetivo proposto,
apresentam os reflexos da censura cultural no teatro em Sergipe.
INTRODUÇÃO
675
FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Revista Brasileira de
História, 2004. Vol. 24, no 47, pp. 40-41.
existindo no Brasil, embora com seus poderes diminuídos, em vista do contexto em que se
encontrava o país. O enfraquecimento e a perda de autonomia desse órgão, já é patente a
partir de 1980, quando foi regulamentada uma lei, criada em 21 de novembro 1968 (Lei no
5.536), que instituía o Conselho Superior de Censura e designava como sua atribuição rever,
em grau de recurso, as decisões finais, relativas à censura de espetáculos e diversões públicas,
preteridos pelo Departamento de Polícia Federal. Cabendo a esse Conselho elaborar critérios
de orientação para a censura676.
Mas a efetiva extinção das leis de censura, só ocorreria, definitivamente, após a
promulgação da Constituição de 1988, que regula a liberdade de expressão. Através do Artigo
5º, que trata dos direitos e deveres individuais e do Artigo 220 que trata da comunicação
social. Vejamos agora os trechos dessa legislação que proíbem a possibilidade de uma censura
institucionalizada ou não proibir:
Art 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independente de censura ou licença;
XIV - é assegurado a todos a acesso à informação e resguardo do sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.677
676
FICO, Carlos. “Prezada censura”: Cartas ao regime militar. Disponível em:
http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/fico_prezada_censura.pdf
677
Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. 20 ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenação de Publicações, 2003.
Com a Ditadura tudo que estivesse no âmbito da cultura passava pelo crivo,
direto ou indireto, da censura. Era difícil a expressão verbal sem liberdade, a
678
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002.
679
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
Junto a esse quadro, encaixa-se a descrição de Bosco Santos, que vê o teatro como
681
“um instrumento forte contra o regime militar” . As opiniões evidenciam que o regime
militar ficou na memória desses artistas como sinônimo de censura e repressão. Analisando a
bibliografia a respeito do teatro no Brasil é perceptível o descontentamento de vários
representantes do meio cultural com regime militar. Era o período do auge da “arte engajada”,
tinha-se a impressão de que o país todo havia se convertido para a esquerda682.
Diante disso, é importante saber se os artistas envolvidos com o teatro em Sergipe
faziam algum tipo de crítica ao regime. Segundo a maioria dos entrevistados, em Sergipe “não
havia um diálogo engajado politicamente”683. Luís Antônio Barreto, diz que os artistas não
faziam uma crítica direta, “mas representavam e cantavam sobre temas que não agradavam
684
aos dirigentes militares” e Isaac confirma, dizendo que os artistas sergipanos não se
685
ligaram a movimentos, se atentando apenas, a promover a cultura . Também João Costa
ratifica essas informações, mas acrescenta a opinião de que:
você acabou de escrever, você tinha que submeter o texto à censura para que
ela dissesse o que teria que constar ou não constar no texto. Você ia a Policia
Federal, preenchia um formulário no balcão, levava o texto, me parece que
680
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
681
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
682
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2001, p. 59.
683
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
684
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
685
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
eram duas ou três copias, dava entrada e eles davam um prazo para você
retornar lá, era um prazo que eles iam ler e analisar o texto 686
você tinha que montar a peça sem aquela parte, aí tinha ensaio geral só para
eles no teatro, apresentava só para uma pessoa e ele tinha o direito de
censurar o espetáculo por completo, podia até está marcado a estréia e ele
cancelava, era um absurdo era uma ruptura muito grande de liberdade de
expressão. 687
Eles não explicavam a gente, eles cortavam do jeito que cortavam não tinha
explicação nenhuma, não tinha a menor justificativa era completamente
aleatório, se você dissesse “forisbundo”, essa palavra não existe, mas eles
achavam que você poderia estar se referindo a não sei quem, e cortavam.
Depois chamavam você, era uma loucura cara, completamente arbitrária,
você não tinha nada, não tinha nenhuma explicação lógica. 688
686
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
687
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
688
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
nunca sabia que tipo de análise eles iriam fazer, mas de uma coisa a gente
tinha certeza, qualquer peça ou música, qualquer coisa que ia de encontro à
política do governo militar era um critério prático para que não passasse. 689
Isaac Galvão também concorda com a falta de critérios claros da censura, contudo, ele
acredita que as proibições eram:
de cunho pessoal eram coisas bobas que eles cortavam, pois eles pensavam
que aquela palavra teria duplo sentido e estava relacionada a tal coisa
entendeu, exemplo a palavra brigadeiro tem o doce e a patente brigadeiro.
Eram coisas bobas que para gente não tinha importância levavam eles a
pensar que o público iria entender de outro modo. 690
Quando indagado sobre a questão, João Costa ressalta, não a falta de critérios, mas a
inadequada especialização da censura e elenca os temas mais recorrentemente vetados, assim
dizendo que:
A Ditadura Militar não possuía comissões especializadas em crítica a textos,
tanto de músicas cantadas, como discursos, artigos de jornais, peças teatrais,
quaisquer escritos, isso tudo, parece-nos, metia medo ao regime. Por isso
quaisquer referências a liberdade, fome, injustiça, escravidão, tudo isso
amedrontava os partidários do regime. Por isso até peças de dois séculos
atrás, ou mais, eram censuradas, face ao desconhecimento literário.
Dessa maneira, os testemunhos ratificam o fato de não existir uma padronização por
parte da censura a respeito do que devia ser vetado em um texto. Por isso, a decisão sobre o
que censurar ou não, de certo modo, se tornava algo pessoal, já que dependia do julgamento
do censor. Mas após a análise da censura como ficavam as peças que eram vetadas
parcialmente? Pois apesar de receberem a permissão para serem encenadas, algumas delas
tinham boa parte do texto censurado, como foi o caso de “Atascal” de Jorge Lins. É ele quem
comenta a respeito, dizendo que as peças ficavam “... terríveis, isso eu não falo só das minhas
peças, falo de outras também. Eles censuraram as peças e às vezes você não tinha como
montar o espetáculo, pois perdia a lógica do espetáculo que era aquela coisa que eles
censuraram” 691.
Para Bosco Santos havia “... duas opções: retirar o que eles cortaram e depois
692
voltar para obter os registros ou apresentar correndo o risco de ser pego” . Claro que a
segunda opção era inviável, devido ao contesto repressivo em que se vivia. Além disso, Isaac
689
Entrevista concedida aos autores por Bosco Costa, em 30/04/2008.
690
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
691
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
692
Entrevista concedida aos autores por Bosco Costa, em 30/04/2008.
Galvão informa que “às vezes eles [os censores] iam às apresentações para o público, para
verificar se tinham realmente feito os cortes, se estavam sendo obedecidos” 693.
Buscou-se saber como esses artistas sentiram-se ao passar pela censura e todos os
entrevistados são unânimes ao dizer que era uma imensa frustração. Jorge Lins diz que “É
terrível, é como se tivessem colocado uma mordaça em sua boca, que você não podia falar
uma coisa que você está vivendo” 694. E Bosco Santos conta:
Luís Antônio Barreto concorda, mas ressalta que apesar de toda a repressão, vários
daqueles que passaram pela censura, se tornaram grandes personalidades em sua área de
696
atuação, citando o diretor Benvindo Siqueira e Luiz Gonzaga Júnior (O Gonzaguinha) . Já
João Costa ao expressar seu ponto de vista acerca da pergunta faz uma breve análise sobre a
ação da censura nas produções artísticas, afirmando que:
693
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
694
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
695
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/40/2008.
696
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
Uma das curiosidades reveladas durante as entrevistas veio de Jorge Lins, que ao citar
697
“A cigarra e a formiga” , como uma de suas peças censuradas, afirma que esse foi o único
texto infantil censurado, possuindo treze cortes. Sendo, inclusive, mencionado em um curta
698
metragem de 35 minutos, dirigido pelo cineasta carioca Antônio Moreno . Muito
interessante são também as afirmações de Luís Antônio Barreto, que contou como viveu sua
experiência de censura:
697
Essa peça não foi encontrada no APES.
698
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
699
Entrevista concedida por Luís Antônio Barreto, em 30/04/2008.
700
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
701
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
702
Op. cit.
Bosco Santos e Luís Antônio Barreto têm respostas parecidas, sendo que o
primeiro coloca a situação como “um desafio e uma realização pessoal um desejo interno de
703
você não aceitar a vontade dos militares” e o último é enfático ao dizer que foi “um
704
exercício de resistência” . As respostas evidenciam a importância de se fazer arte num
período onde o governo queria controlar as criações e até a mente dos artistas, onde você era,
não só proibido de manifestar suas opiniões, mas também de pensar qualquer coisa que fosse
de encontro com os interesses dos políticos ou moralistas daqueles que estavam à frente do
controle do Estado Brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
703
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
704
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
705
Jorge Lins, Bosco Santos, Luís Antônio Barreto e Isaac Enéas Galvão.
hoje pelo menos eu tenho certeza que no Brasil tem muitas coisas, mas
liberdade democrática eu não posso reclamar, eu vim de uma geração que
sofreu, então quando eu vejo alguém falando pra votar nulo, branco, me
magoa porque as pessoas lutaram muito para conseguir essa liberdade eu
nem fui de esquerda, eu sempre fui um cara centrado, eu sempre quis
liberdade democrática, acho um absurdo você censurar a palavra, a vida de
alguém. 706
Assim, ao tratar da censura, esse trabalho deixa implícito sobre como cada um
deve exercer sua cidadania, valorizar a liberdade e os direitos conquistados. Pois esse é um
passo fundamental para evitar que novamente ocorram atos que atentem contra os direitos
humanos e a democracia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2004.
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de
Janeiro, dezembro 2002.
FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Revista
Brasileira de História, 2004. Vol. 24, no 47.
706
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Influenciada pela Frente de Mobilização Popular- FMP nacional formada Sob a liderança de
Leonel Brizola, a formação e trajetória da FMP em Una na década de 1960, é observatório
singular para mobilizar discussões em torno das relações políticas e sociais que se
desenvolveram no cotidiano da cidade, após o debate nacional sobre reformas de base. As
propostas desse movimento como: reforma agrária, inclusão de trabalhadores de baixa renda
no cenário político partidário e formação de sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos,
colaborou para que houvesse mudanças políticas. Em 1960, Una vivia sob condições políticas
ainda em moldes tradicionais. Manuel Pereira de Almeida prefeito de 1919 á 1939, manteve
influência no executivo até 1965, através de parentes e correligionários, mantendo uma
política em moldes coronelistas. Este cenário começou a mudar após a eleição de Libberalino
Barbosa Souto, prefeito (depois pertencente a FMP) que realizou reforma agrária e permitiu
criação de sindicatos, dando a política em Una, um caráter reformista.
707
Mestranda em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
708
Ver: RIBEIRO, André Luis Rosa . Família, poder e mito: o município de São Jorge dos Ilhéus (1880-
1912). Ilhéus: Editus, 2001. A historiografia regional tem como foco a história de Ilhéus, cidade vizinha a Una, e
que durante muito tempo, foi principal cidade da região.
709
Coronelismo aqui é compreendido a partir da análise de Vitor Nunes Leal, que entende que “a modificação, e
não o declínio do coronelismo deveria ser o tema da história política depois de 1930. O impacto da explosão
demográfica, a industrialização substituindo a importação e a conseqüente urbanização, a ascensão de um
sistema multipartidário em 1945, e as crescentes tendências centrípetas da presidência federal contribuiram para
a modificação do coronelismo. Os coronéis tornaram-se os intermediários do poder dos diversos partidos, nas
décadas de 1960 e 1970, ressurgindo assim, ‘como uma nova elite política partidária modificada’. ” PANG. Eul
Soo. Coronelismo e oligarquias: 1889-1934. RJ: Civilização Brasileira S.A, 1979. E conforme Maria de
Lourdes Monaco Janotti, como uma estrutura plástica, que se adapta a sucessivos momentos históricos, trazendo
a idéia de que o poder local não se enfraquece com a mesma intensidade em todo o país, pois ele se mantém sob
nova roupagem, ou se extingue nas áreas de maior concentração urbana, persistindo nos mesmos moldes em
regiões de economia tradicional. JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo: uma política de
compromissos. SP: Brasiliense, 1992.
710
TOLEDO Caio Navarro de (org.) 1964: criticas do golpe: democracia e reformas no populismo. São
Paulo: Ed. da Unicamp, 1997, pág.74.
711
Manoel Pereira de Almeida chegou á Una em 1919, engenheiro vindo de Salvador, herdou o prestigio político
e econômico do Sogro David Fuchs, suíço detentor de terras na região. Casou-se com Alice Fuchs e mais tarde
com a irmã desta, Adalice Fuchs. Foi intendente e prefeito em Una entre os anos de 1924 á 1939 exerceu
influência política no município até meados dos anos 1960. É denominado por alguns historiadores de “coronel”.
Ver sobre ele em: SILVA, Rosilane Maciel. O coronel Manuel Pereira de Almeida e a formação do
município de Una. Ilhéus: UESC, 2001. TCC em história, 45f.
orais, discutia sobre a legalidade das decisões que eram no período, tomadas Carlos Cincurá
de Andrade, prefeito de (Abril de 1959 a Abril de 1963), genro de Manoel Pereira de
Almeida, político local, que foi talvez o mais influente dos Almeida-Fuchs. Um dos aspectos
do confronto aqui discutidos foi resultante exatamente a partir da formação da Frente de
Mobilização Popular.
Em Una, a FMP foi formada, em junho de 1963, sob a liderança de Victor Paes de
Barros Leonardi. Estudante do curso de Direito, da FESPI em Ilhéus, participou ativamente
do centro acadêmico, de congressos da União Nacional dos Estudantes - UNE e de reuniões
do diretório executivo. Membro de família endinheirada de Salvador foi apelidado de cabeção
pelas idéias modernizadoras que discutia freqüentemente com a população. Não era nativo,
mas seu pai havia adquirido para ele uma grande propriedade na chamada “capital da seringa”
(Una). Chegando neste município já como detentor de poder econômico, Victor Leonardi,
confrontou-se politicamente com o poder da família Almeida-Fuchs.
Fazendeiro na região formou a FMP entrando em conflito com os interesses da
família. Suas pregações em defesa da reforma agrária e democratização dos setores da
sociedade representaram para a administração local, uma ameaça para a suposta “ordem”
existente, e talvez, pela primeira vez na história de Una, um grupo de homens com ideais
contrários aos do grande fazendeiro Manoel Pereira de Almeida ganhava espaço.
Esta organização foi formada sob a influência da FMP nacional, esta última, por
sua vez havia sido criada em janeiro de 1963, sob a liderança de Leonel Brizola, no Rio de
Janeiro, logo nos primeiros meses em que se tornou deputado federal e após ter se destacado,
no seio das esquerdas, por sua trajetória no PTB, pela nacionalização de empresas norte-
americanas de comunicação e energia no RGS, quando governador (1959-1962) e também
com a Campanha da Legalidade.
Brizola percebendo a necessidade de ampliar as forças de esquerda formou a
Frente de Mobilização Popular, e extinguiu a Frente de Libertação Nacional, á qual havia
formado em 1962, juntamente com Mauro Borges, governador de Goiás. Um quarto dos
deputados eleitos e que tomaram posse em 1963 juntamente com Brizola eram integrantes da
712
FMP. Ruy Mauro Marini qualificou esse Congresso como “parlamento das esquerdas” .E
712
Citado em DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB. Do getulismo ao reformismo (1945-1964). São
Paulo: Marco Zero, 1989, p.236
713
FERREIRA, Jorge; “Leonel Brizola os Nacional-revolucionaios e a Frente de Mobilizacao Popular”. IN
FERREIRA, Jorge. REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) Nacionalismo e reformismo radical. (1945-1964) As
esquerdas no Brasil . v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.P.35..
714
Utilizo o termo esquerda com o mesmo sentido que o utilizaram Jacob Gorender em Combate nas Trevas.
SP: Ática, 1998. e Marcelo Ridenti, na obra, Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 17
“para designar forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida, identificadas com as lutas de
trabalhadores pela transformação social”.
715
FERREIRA, Jorge. “A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular” In: Revista Brasileira de
História, Dossier: Brasil, do ensaio ao golpe, 1954-1964, São Paulo: Associação Nacional de História, ANPHU,
n.47, 2004. pág.200.
716
Citado em FERREIRA e REIS. Op.cit. Nacionalismo...p.543
717
LEONARDI, Victor Paes de Barros. Entrevista realizada em 5/05/2008.
718
José Carlos da Silva. Entrevista realizada em 30/11/2007.
719
João XXIII considerado papa de transição (1958-1962), convocou o concílio vaticano em 1962, para explicar
os dogmas católicos ao mundo, e promoveu uma reestruturação da igreja católica, chamando atenção para os
problemas sociais do mundo.
720
Fontes, Lino. Entrevista realizada em 15 de Junho de 2007. Lino Fontes era funcionário de Manoel Pereira de
Almeida, trabalhador do seringal.
721
FREYRE, Paulo. Pedagogia da libertação. São Paulo: paz e terra, 1998.
722
FERREIRA e REIS Filho (orgs.) op. cit. Nacionalismo... p.548
723
Informação concedida pela maioria dos entrevistados.
724
Brasil Urgente foi um jornal editado em São Paulo por freis dominicanos com ideais de esquerda que
provocaram mudanças progressistas dentro da igreja católica.
de rádio como o de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Brizola convidava
os indivíduos de todo o Brasil a lutar pelos projetos de reformas agrária, universitária,
administrativa, urbana, bancária e a extensão dos votos aos analfabetos que João Goulart
havia defendido.
A sindicalização rural naquele ano tinha dado um salto. A FMP em Una iniciou a
organização do sindicato de construção civil e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais no ano
de 1963, eles atraíram muitos camponeses e assalariados, apesar de naquele momento no
Brasil haver grandes restrições à formação destes sindicatos, os trabalhadores reivindicavam
melhores salários e melhorias de condições de vida na zona rural, através dela. A atuação
destes sindicatos juntamente com a FMP, trouxe para a cidade indíviduos que fortaleceram os
ideais de esquerda e passaram a questionar a política local, segundo evidenciam as fontes
pesquisadas. Além disto, as ligas camponesas no nordeste eram notícias diárias no rádio, a
luta pela reforma agrária se intensificara e o partido comunista que atuava junto ao
trabalhador urbano voltou suas atenções para a politização dos trabalhadores no campo.
Outro aspecto que será investigado na trajetória da Frente em Una é o que se
refere às influências e atuação da Igreja, outro agente presente no campo, no período. Um das
normas da carta de princípios da Frente que era metodologicamente organizada a partir da
carta de princípios nacionais da FMP, foi exatamente, “agradecer a Deus e Nossa Senhora as
vitórias alcançadas”726.
No contexto nacional, setores conservadores da Igreja, com o objetivo de reforçar
seus vínculos com os trabalhadores buscaram conter a influência dos grupos de esquerda que
pregavam a transformação do campo. Ela criou associações de caráter civil por intermédio de
grupos leigos a ela ligados. A partir do momento em que a Igreja percebeu que perdia fiéis
grupos progressistas se organizaram e começaram a pregar uma doutrina social, que culminou
725
FONTES, Lino. Entrevista realizada em 30/05/2007.
726
Carta de princípios da Frente de Mobilização Popular em Una. (arquivo particular de Victor Leonardi)
na teologia da libertação defendida por Leonardo Boff, inaugurando uma defesa pelos pobres
dentro da Igreja727.
A ação católica era formada por grupos de jovens como a Juventude Universitária
Católica – JUC, Juventude Estudantil Católica - JEC, da Juventude Operária Católica - JOC,
Juventude Agrária Católica – JAC. Integrantes destes grupos aderiram às posturas da esquerda
e contrariando a hierarquia conservadora da Igreja criaram Ação Popular (AP). Esta última,
por sua vez, em aliança com o PCB, criou a Confederação dos Trabalhadores Rurais –
CONTAG, que foi às ruas mostrar indignação com os problemas sociais nos centros urbanos.
Percebe-se assim a influência da religiosidade tanto a nível nacional como
municipal. Foi durante o papado de João XXIII, com a construção das encíclicas papais728,
que a igreja passou a expressar seu compromisso com o social.
Elemento que também instiga à problematização é o que se refere a influencia das
teorias políticas propagadas. Os integrantes da FMP, segundo Leonardi, liam Régis Debray,
que via a cidade como o túmulo da revolução, exaltando a guerrilha rural e ridicularizando os
revolucionários urbanos, chamando-os de acomodados burgueses de esquerda. O livro Guerra
de Guerrilhas de Ernesto Che Guevara, que afirmava a guerrilha rural como forma absoluta
de ação revolucionária e A Caminho da Revolução Brasileira, escrito em 1962, por Moniz
Bandeira, também estavam, segundo ele, na lista de obras que deveriam ser lidos pelos
integrantes da Frente de Una. E a ideologia maoísta também foi divulgada, pois atraía sua
afirmação de que “o poder nasce da boca do fuzil” tendo se tornado um manual para a ação
729
revolucionária da FMP. . Em Una, Adayrton Leite730·, redator da FMP, afirmou que o
desejo deles era pegar em armas antes que a revolução acontecesse.
O prefeito Carlos Antonio Cincurá em Una, tinha buscado manter restrito o
círculo político a integrantes da família Almeida e seus correligionários. Porém, no final de
seu mandato, em abril de 1963, foi eleito Libberalino Barbosa Souto pelo Partido Democrata
Cristão (PDC) criado na cidade em 1962, com apoio de Lomanto Júnior, recém eleito
governador do Estado da Bahia. A criação desse partido em Una já representava o
crescimento da disputa política e certa decadência da influência do jogo-partidário
monopolizado pela família Almeida731.
727
Ver: BOFF, Leonardo. E a igreja se fez povo. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
728
Encíclica, é um documento construído pelo papa para exercer o magistério ordinário, trata de doutrina para os
campos da fé, sociedade, cultura etc.
729
Os livros citados pelo entrevistado existem.
730
LEITE, Adayrton. Entrevista realizada em 01 de agosto de 2007.
731
Sobre Libberalino Barbosa Souto ver SANTOS, Soanne Cristina Almeida dos. Una: poder político
municipal de 1939-1967. Ilhéus: UESC, 2007. TCC em história, 54 f.
Apesar disto Souto inicialmente fazia parte do grupo de influência dos Almeida-
Fuchs, porém, ao perceber que o poder político parecia escapulir das mãos dos setores
tradicionais, passou a dar atenção às reivindicações da esquerda buscando angariar seu apoio.
Em maio de 1963, sob pressão da FMP, Libberalino desapropriou algumas terras
para fins de reforma agrária, na região de Pedras, distrito de Una. Este ato representou a força
da influência que a Frente exerceu naquele momento732.
No entanto, as atividades da FMP, foram interrompidas com o advento do Golpe
militar, que caracterizou as ações da Frente como subversivas ao regime.
Mesmo depois de 1964, a FMP, continuou existindo, mas sua atuação foi
enfraquecida, pois os integrantes foram perseguidos, como foi o caso de Victor Leonardi,
exilado no Uruguai em dezembro de 1964.
Portanto, investigar a formação e atuação da FMP, é conhecer e problematizar a
estrutura da política local em Una, buscando identificar quais foram os elementos que
implicaram em tais transformações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
732
Decreto municipal número 18 de 20 de maio de 1963. Local: Câmara Municipal de Una.
733
Os “grupos dos onze” eram comandos nacionalistas organizados por Brizola em 1963, com o objetivo de
organizar-se em defesa das conquistas democráticas, e fazer resistência a uma tentativa de golpe. Sobre o tema
ver: FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. São Paulo:
Record, 2004. p. 270-71.
734
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1998.
Este artigo objetiva estudar, através da História oral e artigos de jornais, as memórias e as
histórias que narram o início do balé clássico em Sergipe, do ensino desta arte com a Escola
Sergipana de Ballet as apresentações de companhias que vieram para o Estado de Sergipe
patrocinada pela Sociedade de Cultura Artística de Sergipe – SCAS. A trajetória destas duas
instituições representa uma alavanca para a dança clássica no Estado, área reveladora do
universo artístico, cultural e intelectual em terras sergipanas. O estudo se situa entre os anos
de 1965 com a criação da Escola Sergipana de Ballet pela bailarina Dorinha Teixeira ao ano
de 1969.
INTRODUÇÃO
735
FARO, Antonio José. A dança no Brasil e seus construtores. Rio de Janeiro: FUNDACEN, 1988.
sementes através de seus artistas que se estabeleceram nos países visitados e abriram suas
respectivas escolas, foi o caso da bailarina russa, Tatiana Leskova, que se fixou no Brasil,
mais precisamente no Rio de Janeiro e fez do país um celeiro de grandes bailarinos736.
Em Sergipe, os primeiros registros do balé clássico se relacionam a segunda
metade do século XX. Em particular, ao estudo biográfico das memórias da professora
Dorinha Teixeira, que teve nessa época seus primeiros passos no balé quando participou do
Curso de Desenvolvimento Artístico, aos oito anos de idade, em 1955. Este curso fazia parte
de um projeto educacional do colégio da professora Neyde de Albuquerque Mesquita, o então
Colégio Sílvio Romero, localizado na Rua Lagarto, nº. 1147 no centro da cidade de Aracaju.
Ensinando além do balé, a poesia, a música e o teatro. Segundo Dorinha Teixeira, esse curso
plantou a semente da dança em Sergipe e serviu de estímulo para que ela fosse estudar balé
clássico no Rio de Janeiro, em 1965, onde teve contato com os grandes mestres do balé no
Brasil, Tatiana Leskova, Erick Valdo, Leda Yuqui, entre outros737.
Nesta época, o curso da professora Neyde já havia se encerrado foi quando
Dorinha percebeu a necessidade de dar continuidade ao ensino do balé em seu estado. Assim,
aos dezoito anos de idade, em março de 1965, esta jovem bailarina criou com o apoio de sua
família, a Escola Sergipana de Ballet. Para o historiador Ibarê Dantas, o profissionalismo na
dança clássica em Sergipe, surge com Dorinha Teixeira e sua Escola Sergipana de Ballet
(1965-1969), dedicando-se ao seu ensino, sobretudo, para as jovens mais abastadas do estado,
ensinando coreografias ritmadas com técnica aprimoradas, cultivando principalmente, o estilo
clássico738.
Com uma formação sem muita experiência, no entanto, Dorinha fez surgir em
suas alunas um despertar para o balé, pois, algumas de suas bailarinas preferiam os prazeres
da dança ao invés das viagens de férias. Estas viagens, às vezes, eram bastante aguardadas por
estas meninas, pois era um tipo de recompensa para quem se comportasse e tirassem boas
notas em seus estudos escolares. Além de ser uma oportunidade de rever parentes distantes739.
Não obstante, o que se observa pelos relatos nos jornais que a arte desta jovem bailarina vinha
crescendo consideravelmente em terras sergipanas. Assim, afirma a gazeta de Sergipe,
736
FARO, Antonio José. Pequena história da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
737
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
738
DANTAS, José lbarê Costa. História de Sergipe República: 1889-2000. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
2004. p. 219.
739
Entrevista concedida por Moema Sobral Mayanard ao pesquisador Mateus Antonio de Almeida Neto, em 21
de maio de 2007.
Neste sentido, arte de Dorinha Teixeira foi facilitada por causa do período de
mudanças que essa sociedade se encontrava, vivia-se uma conjuntura em que novos valores
culturais começavam a despontar nos anos de 1960. Foi uma época marcada por
manifestações artísticas que atraía todo tipo de público, era o tempo das pantomimas tanto
para o teatro como para a dança. O Brasil passava por um governo ditatorial. Em Sergipe não
era diferente, encontrando-se carentes do ensino do balé.
740
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 15 mai. 1966. nº. 3002. p. 05.
741
FARO, Antonio José. A dança no Brasil e seus construtores. Rio de Janeiro: FUNDACEN, 1988. p. 86.
742
MACHADO, José Carlos. 21 de dezembro de 2006, Machado registra aniversário da TV Sergipe. Fonte:
Câmara dos Deputados. [online] Disponível na internet via http://www.deputado
machado.com.br/discursos_view.asp?id=%7B9622A046-294B-4BF3-A552-650C5F8E901F%7D. Arquivo
capturado em 23 de maio de 2008.
743
CRUZ, José Vieira da. Artes Cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe. Aracaju. In:
Jornal da Cidade, 29 jan. 2004.
o Ballet de Nora Korach e o Ballet de Dalal Achcar que estiveram em Sergipe no ano de
1962; o Ballet da Caravana da Cultura sob o patrocínio do MEC que esteve em Aracaju, em
1964; Mercedes Batista com o Ballet Folclórico do Rio de Janeiro; o Real Ballet da
Dinamarca, entre inúmeros outras744.
Com todo este frenesi cultural patrocinado pela SCAS, Dorinha Teixeira se
destacou em Sergipe por ser a única a ensinar os prazeres do balé nos idos de 1960 para as
jovens sergipanas que se encantavam pela arte européia apreciadas nas visitas dessas
companhias culturais ou nos livros especializados.
Em nota a Gazeta de Sergipe, o colunista Luiz Adelmo nos esclarece a
equiescência dessas famílias em matricular suas meninas nas aulas de balé e o sustentáculo da
Escola Sergipana de Ballet, além de retratar o sentido desta arte que ainda estava no início no
estado.
De fato, quando Dorinha abriu sua escola de balé suas alunas eram as filhas das
colegas de sua matriarca, que por ser uma refinada pianista todos adoravam ouvi-la tocar.
Entretanto, como toda arte erudita e seleta, o balé era fruto de distinção social e fez parte da
formação de algumas jovens distintas e elegantes da sociedade sergipana. Portanto, o
desenvolvimento desta arte nos idos de 1960 em Sergipe, deve-se ao entrelaçamento
resultante do incentivo do trabalho educacional desta jovem bailarina, a imprensa falada e
escrita que contribuíram para que suas aulas e espetáculos fossem divulgados746, e, sobretudo,
da sensibilidade dessas famílias ao notar a importância dessa vanguarda cultural para a
educação de suas filhas, passando a matriculá-las na Escola Sergipana de Ballet. Além,
evidentemente, da SCAS que patrocinou um fervor cultural, não apenas para o balé, mas para
as artes em geral.
744
SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da Sociedade de Cultura
Artística de Sergipe (1951 a 1980). São Cristóvão, SE, 2002. (monografia de graduação). Universidade Federal
de Sergipe, UFS.
745
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 05 mar. 1966. nº. 2952. p. 07.
746
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
Tinha uma porta lateral para a entrada das crianças; meu irmão Kleber, tinha
acabado de ganhar uma máquina de tirar retrato, uma Polaroid, ele não
cansava de tirar fotos de minhas aulas. A sala era toda arrumadinha, com
vestuário, sanitários; era toda pintadinha com paredes de bailarininhas, eram
as artes da minha mãe750.
Com toda sua simetria e formação apriorística, a jovem bailarina com sua escola
de Ballet, em quase quatro anos de atividades conseguira realizar e produzir alguns
espetáculos: o Primeiro Festival Sergipano de Ballet, no auditório do Colégio Estadual de
Sergipe, no dia 01 de novembro de 1965; o espetáculo Prelúdio da Primavera, no Ginásio de
esportes Charles Moritz, no dia 03 de setembro de 1966; O Sonho de Natasha, no dia 11 de
novembro de 1967 e o Segundo Festival Sergipano de Ballet, no dia 30 de novembro de 1968.
A efervescência desta versátil e refinada bailarina patrocinou um fervor cultural no Estado de
Sergipe. Segundo a Gazeta de Sergipe, “Devido o sucesso alcançado, a bailarina Auxiliadora
Teixeira foi convidada para apresentar alguns dos números do Festival de Ballet, no Cine Rio
747
Idem.
748
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 04 set. 1966. nº. 3088. p. 08.
749
Entrevista concedida por Moema Sobral Mayanard ao pesquisador Mateus Antonio de Almeida Neto, em 21
de maio de 2007.
750
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
Branco em próximo show beneficente”751. Assim, sua produção cultural, mesmo estando no
início repercutiu, significativamente, na distinta sociedade Sergipana.
As formas como os agentes culturais do estado apoiavam o balé de Dorinha,
elucida também, a priori, como em pouco tempo a arte desta bailarina fora bastante
divulgada, seja alimentando o imaginário cultural ou despertando talentos artísticos. Ao
descortinar algumas das suas contribuições, revela que a jovem bailarina participou do evento
III Jogos da Primavera, acontecimento de tamanha relevância disputado entre os Colégios do
Estado, chamando a atenção, principalmente, de toda a população, tanto por causa dos jogos
esportivos e pelo desfile das instituições de ensino que eram aguardados pelas autoridades
sergipanas e a massa populacional. Portanto, os Jogos da Primavera fora um evento de
grandes proporções em Sergipe, pois, nos anos de 1960 era um dos poucos, ou o mais
importante no sentido de revelar o potencial dos atletas sergipanos. A bailarina que organizou
as balizas do Colégio Estadual de Sergipe assistira o desfile dos Colégios da sacada do
Palácio Olímpio Campos752.
751
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 13 set. 1966. nº. 3949. p. 03.
752
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 21 set.1966. n°. 3101. p. 05.
753
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 20 set.1966. nº. 3100. p. 05.
Então, tentando conquistar este público, inclusive com uma contribuição primorosa da família
Teixeira, Dorinha e sua Escola Sergipana de Ballet com
754
Mário Cabral. Teatro Tobias Barreto. In: Jornal Gazeta de Sergipe. Ano XLII, n° 11651 5 out. 1997. p. 03.
755
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). Tradução Marcos Santarrita;
revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 190-192.
756
CRUZ, José Vieira da. Artes Cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe. Aracaju. In:
Jornal da Cidade, 29 jan. 2004.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
757
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
758
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 07 jun. 1966. nº. 3020. p. 05.
759
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 17 jun. 1966. nº. 3028. p. 05.
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VICENZIA, Ida. Dança no Brasil. São Paulo: Atração Produções Ilimitadas, 1997.
O corpo docente que fundou a Faculdade de Filosofia da Bahia era formado por nomes da
elite baiana. Alguns desses docentes foram membros da Academia de Letras da Bahia e do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, formando, assim, redes de sociabilidades. Enquanto
homens de saber, alguns exerceram cargos políticos, e é esse campo de atuação que
pretendemos discutir neste artigo, investigando de que forma esses intelectuais estavam
envolvidos na política baiana, ao tempo em que atuavam como educadores. E por que meios
buscavam legitimar suas atuações.
760
Sobre as transições políticas e os intelectuais ver PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil:
entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
761
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982,
p. 3-23.
762
Ver CUNHA, Luiz Antônio. A Universidade Temporã: o ensino superior da Colônia à Era de Vargas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira/UFC, 1980.
763
OLIVEIRA, Lúcia Lippi (coord.). Elite intelectual e debate político nos anos 30: uma bibliografia
comentada. Brasília/Rio de Janeiro: INL/FGV, 1980, p. 52.
764
PÉCAUT, op. cit., p. 34.
765
Id., ibid..
Esta geração fazia parte de uma rede de sociabilidade baiana que transitava entre o
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a Academia de Letras da Bahia, além das
faculdades em que atuavam, principalmente com professores catedráticos e, em nosso
trabalho enfocaremos a FFB. Além disso, estavam inseridos na política estadual, alguns
também na política nacional.
766
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1980, p. 19.
767
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p. 41-42.
768
Seguindo esta linha de pensamento, Aldo Silva, em um estudo sobre o IGHB, nos diz que a instituição fora
criada para servir como espaço de interlocução das elites, centro privilegiado para a reflexão e produção de um
saber específico, absolutamente articulado às idiossincrasias locais. In: SILVA, Aldo José Morais. Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia: origens e estratégias de consolidação institucional (1894-1930). Tese de
Doutorado. Salvador: FFCH/UFBA, 2006, p. 15-16.
769
GOMES, op. cit., p. 42.
770
TREBITSCH, Michel. “Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme”. In: Le Cahiers de l’Institut d’
Histoire du temps présent. Paris: CNRS, nº 20, mars, 1992, p. 15-18.
771
TREBITSCH, op. cit., p. 17-20.
Assim, propor uma história dos intelectuais pautada nas redes de sociabilidade
significa “seguir as trajetórias de indivíduos e grupos buscando mapear suas idéias, tradições,
comportamentos, formas de organização, de modo que seja possível caracterizar e
compreender seus esforços de reunião e de afirmação de identidade em determinados
momentos.”773
Paulo Santos Silva informa que, para além dos diversos laços de parentescos,
longas amizades, credos políticos, casamentos, apadrinhamentos e outros, um aspecto
importante “é que os baianos sempre se dedicavam a escrever uns sobre os outros, traço
comum a qualquer agrupamento que busca unidade ou pretende manter-se coeso.”774 Havia os
discursos de posse da Academia de Letras da Bahia e textos biográficos. Ainda sobre a
coesão, Silva acrescenta:
772
SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora FGV/UFRJ Editora, 1996, p. 250-255.
773
GONTIJO, Rebeca. “História, cultura, política e sociabilidade intelectual”. In: SOIHET, Rachel, BICALHO,
Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria da Fátima Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história
cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 277.
774
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso histórico na
Bahia (1930-1949). Salvador: EDUFBA, 2000, p. 103.
775
Id., ibid..
776
TREBITSCH, op. cit., p. 20-21.
777
CHARTIER, Roger. História cultura: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1991, p. 15-20.
778
BULST, Neithard. “Sobre o objeto e o método da prosopografia.” In: Revista Politéia: História e Sociedade.
Vitória da Conquista: Edições UESB, v. 5, nº 1, 2005, p. 47. Para uma análise pormenorizada ver HEINZ, Flávio
Madureira. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
779
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 69.
780
SILVA, Helenice Rodrigues de. “A história intelectual em questão.” In: LOPES, Marcos Antônio. Grandes
nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 16.
781
Id., ibid..
782
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999, p. 17.
783
As pastas pessoais são uma de nossas fontes e estão organizadas no Arquivo da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBA. Nelas estão documentos pessoais, cartas, crrículos, rascunhos de trabalhos, além
de documentos administrativos.
784
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20.
compreender “suas tendências mais marcantes, seus níveis de enquadramentos sociais e sua
escala de valores”.785
785
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 22.
786
GRAMSCI, op. cit., p. 3.
787
MOTA, op. cit., p. 19.
788
VERGER, op. cit., p. 22.
789
GOMES, op. cit., , p. 39.
790
Id, ibid.
791
Id, ibid.
792
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório,
propostas cautelares”. Revista Brasileira de História, vol.23, nº45, São Paulo, Julho, 2003, p. 11-36.
793
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 93.
794
SIMÕES FILHO, Afrânio Mário. Retratos baianos: memória e valor de culto na Primeira República (1889-
1930). Dissertação de Mestrado. Salvador: EBA/UFBA, 2003, p. 8.
795
“A palavra retrato se refere à representação de uma pessoa real por processos artísticos tais como o desenho, a
pintura, a gravura. [...] A imagem pode também ser conseguida através de processos industriais. Em literatura o
termo retrato é descrição de alguém ou de algo.” In: SIMÕES FILHO, op. cit., p. 15.
796
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 13.
802
EL FAR, op. cit., p. 96.
803
GUIMARÃES, op. cit..
804
EL FAR , op. cit., p. 102-103.
recomendada por Edward Carr, àquele que pretende se dedicar a escrita da história tendo
como fontes as imagens, “que inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores
destas imagens”.805
Cabe, então, estabelecer os diversos propósitos que motivaram os realizadores do
processo de confecção dos quadros dos professores da Faculdade de Filosofia da Bahia em
suas múltiplas fases, diferenciando idealizadores e executores, tentando entender as
ambivalências de seus anseios e a medida em que a idealização foi cumprida quando da
execução das tarefas encomendadas. Mesmo que tenham acatado ordens diretas e restritas, os
pintores sempre carregam doses variadas de subjetividade que marcam seu estilo, suas
preferências e influências artísticas e o resultado, por mais pragmático que pareça, está
impregnado pela mundividência do autor. Deve ficar registrado que os três pintores
contratados para execução dos quadros eram, eles também, componentes do quadro docente
da Universidade da Bahia, o que estimula a formulação de uma pergunta: qual a relação entre
artista e modelo? Mesmo que não tenhamos a resposta neste momento, tal interrogação
enriquece a discussão.
Os quadros devem ser vistos como documentos privilegiados que permitem
entabular diálogos entre diferentes tendências da narrativa histórica. Na condição de fontes a
serem utilizadas para enriquecer o entendimento da sociedade baiana de meados do século
XX, coadunam-se como elementos fundamentais para ajudar a elucidar traços das
mentalidades e dos costumes que norteavam os anseios e as convenções dos diversos
segmentos sociais, especialmente daqueles que alimentavam os grupos docentes com seus
representantes.
Traços da cultura material que, produzidos sob os auspícios de uma elite política
num contexto antidemocrático e conservador por excelência, apontam os mecanismos
utilizados por elementos destas elites que buscavam prestígio social através da atuação
intelectual para sacramentar suas ações e preservar sua memória, num período em que o culto
da personalidade era a tônica da atuação na vida política.
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Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
INTRODUÇÃO
806
Mestre em Sociologia/ UFS. Doutorando em História Social/UFBA. Atualmente é Prof. Adjunto da UNIT e
Diretor da ANPUH-SE. E-mail: josevieiradacruz@uol.com.br
807
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002
808
BÉDARIDA, François. “Tempo presente e a presença da História” in: FERREIRA, Marieta de Morais &
AMADO, Janaína (Orgs). Usos e Abusos da história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1998, pp.219-232.
809
ARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Relume Dumará: Fundação Roberto Marinho, 2007.
810
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, pp.314-332.
811
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, p. 320.
812
PINTO, Álvaro Vieira. A Questão da Universidade. 2ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986;
POERNER, Artur José. O Poder Jovem. Op. cit.; MENDES JÚNIOR, Antônio. Movimento Estudantil no
Brasil. Op.cit.; RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da tv.
Op. cit..
juventude se relacionam às estruturas sociais de classe813. E, por fim, uma tendência aliada
aos estudos contemporâneos com tendência a abordar as ações coletivas e individuais desses
atores sociais a partir de olhares mais pluralizados e descentrados814.
Em relação à participação política e/ou cultural dos estudantes na história
brasileira não rara foram às vezes em que eles se envolveram com fatos relacionados à
“grande política”, tomando partido diante de questões nacionalistas e/ou de cunho
universalizantes como as discussões pela modernização e a democratização do país. Estes
posicionamentos muitas vezes foram utilizados para construir uma imagem “progressista” e
“revolucionária” acerca da atuação estudantil, uma das muitas interpretações possíveis a
respeito dos estudantes e dos movimentos dos quais eles fizeram ou fazem parte. Atualmente
o alargamento do entendimento a respeito da atuação e do comportamento estudantis, em
particular identificados como jovens, tende a elaboração de estudos sobre estes atores sociais
dentro e fora dos limites institucionais que convencionalmente é a eles associado. Abordagens
que tem levado em consideração os valores culturais do lugar e da época em que estes
protagonistas estão inseridos815.
A Historiografia
813
IANNI, Otávio. “O Jovem Radical” in: BRITTO, Sulamita (Org.). Sociologia da Juventude I: Da Europa da
Marx à América Latina de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 225-242; FORACCHI, Maria A. A Juventude
na Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1972; GUILHON ALBUQUERQUE, J. A. Movimento
estudantil e consciência na América Latina: teoria e método sociológico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977;
COIMBRA, Marcos Antônio. Estudantes e ideologia no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamè, 1981;MARTINS
FILHO, João Roberto. Movimento Estudantil e a Ditadura Militar. São Paulo: Papirus, 1987.
814
SOUSA, Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da Utopia: A militância política dos jovens dos anos 90. São
Paulo: Hacker, 1999; MARTINS FILHO, João Roberto (org.). 1968 faz 30 anos. Op. cit.;. ALMEIDA, Maria
Hermínia Tavares de e Weis, Luiz. “Carro zero e pau de arara: o cotidiano da oposição de classe média ao
regime militar” in: Schwarcz, Lilia Mortiz (Org.). História da Vida Privada no Brasil IV: contrastes da
intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp. 319-409.
815
LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude. História dos Jovens 2: A época contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
estudantil dos grandes centros urbanos nacionais, focalizando também realidades sócio-
culturais de grupos situados na periferia: as chamadas tribos urbanas816.
Em seu conjunto, esses estudos ainda não têm dado conta das diversidades
espaciais, temporais e sócio-culturais que envolvem o tema. Este tipo de atitude tem
proporcionado à construção de leituras que desconsideram os desdobramentos e
especificidades regionais em seus mais diferentes contextos. Dentro dessa problemática,
novas tendências têm se voltado para fomentar pesquisas sobre os estudantes dentro e fora do
eixo Rio - São Paulo.
Esse é o caso do livro organizado por Martins Filho, 1968 Faz 30 anos, uma
coletânea de estudos sobre o movimento estudantil vista não mais de maneira centrada em um
único viés, em um único espaço, mas sim articulada às especificidades e aos desdobramentos
regionais817. Em seu conjunto, este livro traz à luz novas fontes, novos objetos e diferentes
enfoques regionais. Destacam-se neste sentido o artigo de Margarida Vieira que esquadrinha
acertos e erros dos líderes estudantis mineiros dos anos 60 mostrando como as “lembranças”
818
podem nos ajudar na reflexão de “... uma sociedade mais justa e mais livre” . Voltando a
atenção para Curitiba, Rafael Hagemeyer analisa as imagens do “estudante-povo”, do
“estudante-elite”, do “estudante-paranaense” e do “estudante-subversivo” utilizadas pela
imprensa durante o período militar. Já em Goiânia, os confrontos analisados por Teresinha
Duarte ressaltam o movimento secundarista e a rigidez das autoridades militares e civis. Já as
mobilizações estudantis em Alagoas, analisadas por José Saldanha, mostram como o
movimento estudantil, apesar de ter apresentado enfoques em políticas diversas, ficou
concentrando na luta pela ampliação das vagas para ingresso na universidade naquele Estado.
Este autor ao analisar os acontecimentos relacionados, particularmente ao
movimento estudantil durante a ditadura militar, visualizou os contornos de quatro momentos
históricos: o primeiro vinculado à inserção do movimento estudantil nas campanhas
reformistas do final do período populista (1962-1964). O segundo, associado a resistência do
movimento estudantil ao projeto educacional e político-repressivo implantado pelo golpe
civil-militar de 1964. O terceiro, tencionado a partir de 1968 com o “golpe dentro do golpe”
silenciando o movimento estudantil e levando alguns de seus participantes a luta armada. E
816
CARRANO, Paulo César Rodrigues Carano. “Juventudes: as identidades são múltiplas” in: Movimento. Rio
de Janeiro: DP&A, n. 1, maio de 2000, p.11-27; CARMO, Paulo Sérgio do. “Juventude no Singular e no Plural”
in: Cadernos Adenauer II. no 6, São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, dezembro 2001, p. 9-29; SOUSA,
Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da Utopia: A militância política dos jovens dos anos 90. São Paulo:
Hacker, 1999.
817
MARTINS FILHO, João Roberto. 1968 faz 30 anos. Op.ct.
818
Op. cit., p.9.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
823
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, 2002, pp.425-438.
824
RÉMOND, René. Por que a História Política? In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,v.7, nº13, 1994.
825
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, p. 324.
826
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, 2002, p.426.
ocorridas nos grandes centros urbanos do país nem sempre dando conta das diversidades
espaciais, temporais e socioculturais que envolvem o tema. Esse tipo de atitude tem colocado
a necessidade de fomento de pesquisas que consideram os desdobramentos e especificidades
regionais que os movimentos relacionados à juventude podem ter assumido em seus mais
diferentes contextos.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Relume Dumará: Fundação Roberto Marinho, 2007.
CARMO, Paulo Sérgio do. “Juventude no Singular e no Plural”. In: Cadernos Adenauer II .
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Salvador (1969-1971). Salvador: UFBA, 2003. (Dissertação de mestrado).
SOUSA, Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da Utopia: A militância política dos jovens
dos anos 90. São Paulo: Hacker, 1999.
SPOSITO, Marília Pontes. “Estudos sobre a juventude em educação” in: Revista Brasileira
de Educação. ANPED. No 5, mai/jun/jul/ago; 1997, pp. 37-52.
TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: Fábrica de Ideologias. São Paulo: Ática, 1977.
3.4 – SIMPÓSIO 4:
HITÓRIA DA EDUCAÇÃO
Coordenação:
Profª. Msc. Cristina de AlmeidaValença (ANPUH-SE/UNIT/
Doutoranda na UFBA)
Profª. Msc. Cristiane Vitório de Sousa (SEED/FA)
Pelo lado da medicina, além das costumeiras condenações aos hábitos ditos
desregrados e inconvenientes das famílias no que diz respeito à criação dos
filhos, os ataques passaram a ser dirigidos á caridade, partidários que eram –
os novos filantropos -, de uma racionalização da assistência baseada em
princípios de higiene e da Eugenia829.
827
KUHLMANN Jr., Moysés; FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In: FARIA FILHO,
Luciano (org.) A infância e a sua educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil). Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. p. 33.
828
Idem. p.15.
829
KUHLMANN Jr., Moysés; FERNANDES, Rogério. Op.cit. p.12.
837
RIZZINI, Irene. Op. cit. p. 176.
838
RIZZINI, Irma. Op. cit. p.22
839
PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. (Org.) A arte de governar crianças: a história das políticas públicas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino,
Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. p.12.
Nas primeiras décadas do século XX, foi feita a racionalização dos processos
educativos, principalmente na escrita e na leitura. A infância tornou-se alvo do discurso
higienista, “educar, atenuar, corrigir e conservar, são constituídos em ações diretamente
vinculadas à Higiene, recobrindo-a de uma perspectiva antecipatória, preditiva e
preventiva”840.
As iniciativas legislativas e jurídico-sociais para resolverem o problema da
infância abandonada estavam consoantes com o projeto civilizatório do país e com as teorias
da criminalidade nas nações ditas civilizadas e defensoras da necessidade da intervenção do
Estado. Caberia à sociedade escolher a justiça repressiva àqueles que cometessem algum
crime ou recuperá-los para que pudessem viver em sociedade. Tal situação era possível
devido à construção jurídica da categoria menor, que dividia a infância em duas – sendo
considerados pobres aqueles potencialmente perigosos. Era o momento de intervir neste
problema.
Por conseguinte, houve uma ampliação semântica do vocábulo menor, que passou
a abranger também as crianças pobres e abandonadas além das infratoras, pois “a partir de
1920 (...) a palavra passou a referir-se à situação de abandono e/ou marginalidade, além de
definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhe correspondem”841. Diante deste fato,
era necessário criar instituições de amparo às crianças – pobres, infratoras e abandonadas.
Preocupação referente ao futuro da sociedade, “pois caso não fosse contida – leia-se
disciplinada – viria a ser um criminoso adulto de amanhã”842. Se a sociedade possuía alguns
males, era necessário atuar sobre os seus componentes para prevenir e controlar o perigo.
Essa categoria social e jurídica destinada aos menores recebeu várias divisões no
Código de Menores de 1927 – quando se tratava de crianças em estado de vadiagem,
mendicidade e libertinagem, eram consideradas como menores moralmente abandonados e
quando viviam em companhia do responsável, mas praticavam atos contrários à moral,
poderiam ser chamadas de menores em perigo moral.
A infância pobre tornou-se, então, objeto de intervenção higiênica e disciplinar
pelo Estado, que via, potencialmente nessas crianças, futuros criminosos, na medida em que
as pobres, de modo geral, eram tidas como delinqüentes. Apesar do debate sobre a
importância da educação básica para as crianças, no sentido de diminuir a ociosidade e a
840
GONDRA, José. “Higienização da infância no Brasil.” In: GONDRA, José. (Org.) História, infância e
escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. p.109
841
VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Op.cit. p. 49.
842
FONSECA, Sérgio. Instituto disciplinar de Tatuapé e a infância em conflito com a lei na cidade de São Paulo.
1890-1927. In: I CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2000, Rio de Janeiro. Anais.
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. p.15.
criminalidade e não de obter uma igualdade social, a preocupação com uma política nacional
voltada para a infância privilegiou o controle do segmento infanto-juvenil pobre.
Fazia-se uma associação entre a infância e o crime estabelecido a partir de uma
multiplicidade de fatores – ociosidade, vício, raça, tendências hereditárias, condições de vida
familiar e social. “Em seu nome, justificar-se-á a criação de um complexo aparato médico –
jurídico – assistencial, cujas metas eram definidas pelas funções de prevenção, educação,
recuperação e repressão”843.
A ociosidade representava para o Estado um vício perigoso devido ao fato de os
prazeres da vida ociosa desvirtuarem o homem do trabalho, uma vez que enquanto este
trabalhava estaria “docilizado” e não apresentaria perigo à sociedade. Uma medida saneadora
foi incidida sobre o pobre na tentativa de manter a “ordem pública” e a “paz das famílias”,
pois, ao atingir as famílias, poderiam não só regenerá-las como também incutir valores
morais, que iriam refletir no processo educacional dos filhos. O termo regeneração era
utilizado pelos criminólogos, uma vez que indicava a possibilidade de cura, sendo possível
corrigir, reabilitar ou reeducar.
Em nome da higiene, o Estado interferia no âmbito doméstico, na educação das
famílias e na vigilância dos seus filhos, estabelecendo se os responsáveis pelas famílias eram
considerados capazes e dignos de criá-los. Essa ação estatal tinha como base a teoria da
degenerescência, esta afirmava que vícios e virtudes poderiam ser tanto adquiridos
hereditariamente, quanto socialmente.
843
RIZZINNI, Irene. Op. cit. p. 29
844
RIZZINI, Irma. Op. cit. p. 23
845
Idem, p. 207.
846
ESTADO DE SERGIPE. Secretaria da Justiça e Interior. Decreto n.342, de 07 de agosto de 1954. Dá
Regulamento do Serviço de Assistência Social a Menores. 1954.
847
Idem
848
Gazeta de Sergipe. Caótica a Situação da Cidade de Menores. Aracaju, 19 de outubro de 1968. Ano XIII, n.
3687, p.6.
849
Gazeta de Sergipe. Cidade de Menores. Aracaju, 20 de outubro de 1968, Ano XIII, n. 3688, p. 3.
850
SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura da Sessão
Legislativa de 1957 pelo Governador de Estado de Sergipe Leandro Maynard Maciel. Imprensa Oficial. 1957. p.
66.
851
VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A infância no sótão. Belo Horizonte:
Autêntica. 1999. p. 52
852
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Op. cit. p. 29.
853
SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura da Sessão
Legislativa de 1953 pelo Governador de Estado de Sergipe Arnaldo Rollemberg Leite. Imprensa Oficial. 1953.
p.22.
FONTES
Gazeta de Sergipe. Cidade de Menores. Aracaju, 20 de outubro de 1968, Ano XIII, n. 3688, p.
3.
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Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, 1993.
VEIGA, Cynthia Greive; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A infância no sótão. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
Os bens e serviços ofertados aos alunos, na condição de internos, são partes das condições que
garantiam o funcionamento ou a sustentabilidade dos internatos das instituições federais de
ensino agrícola. Nos colégios-internatos da segunda metade do século XIX eram
disponibilizados aos internos, mediante o pagamento de mensalidade ou “pensão”, vestuário
(uniforme escolar), dormitório, lavagem de roupa, médico, correio, iluminação, alimentação,
entre outros. Esses mesmos bens ou serviços continuaram sendo oferecidos nos internatos em
colégios do século XX com a inclusão de serviços como os de engraxate e barbeiro. A
existência desses recursos no próprio colégio, além de ser uma fonte de recurso para o
estabelecimento, possibilitava a diminuição das saídas dos internos e, portanto, um maior
controle deles por parte da “equipe dirigente”. Nos internatos dos estabelecimentos federais
de ensino agrícola, no período de 1934 a1967, basicamente era disponibilizado aos internos,
sem a cobrança de mensalidades ou qualquer tipo de custo, um espaço determinado no
dormitório com a respectiva cama e colchão, o enxoval (fardas e roupas de cama),
alimentação e cuidados com a higiene e saúde.
1-APRESENTAÇÃO
Os bens e serviços ofertados aos alunos, na condição de internos, são partes das
condições que garantiam o funcionamento ou a sustentabilidade do internato. Nos colégios-
internatos da segunda metade do século XIX eram disponibilizados aos internos, mediante o
pagamento de mensalidade ou “pensão”, vestuário (uniforme escolar), dormitório, lavagem de
roupa, médico, correio, iluminação, alimentação, entre outros (ANDRADE, 2000). Esses
mesmos bens ou serviços continuaram sendo oferecidos nos internatos em colégios do século
XX com a inclusão de serviços como os de engraxate e barbeiro (COSTA, 2003;
MANGUEIRA, 2003; SILVA, 2000). A existência desses recursos no próprio colégio, além
de ser uma fonte de recurso para o estabelecimento, possibilitava a diminuição das saídas dos
internos e, portanto, um maior controle deles por parte da “equipe dirigente”.
854
Fica situada no povoado Quissamã, município de São Cristóvão-SE e atualmente é vinculada ao Ministério da
Educação, através da Secretária de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC).
855
Instituição assistencial dedicada à regeneração de menores desvalidos e formação de mão-de-obra agrícola.
NERY, Marco Arlindo Amorim Melo. A Regeneração da Infância Pobre Sergipana no início do Século XX:
o Patronato Agrícola de Sergipe e suas práticas educativas. São Cristóvão. Dissertação de Mestrado. Núcleo de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. UFS. 2006.
3-O ENXOVAL
Nº Bens e serviços
01 Dormitório, refeitório, instalações sanitárias, enfermaria, auditório, centro social
02 Alimentação (três refeições diárias, lanche)
03 Artigos de higiene pessoal (sabão, escova e pasta de dente)
04 Fardas: uma farda mescla (calça /camisa), uma farda cáqui (calça /camisa), um par de
reiúnas, um par de rolós, um par de borzeguins, um casquete cáqui e um casquete
mescla)
05 Roupas de cama (lençóis, forro, fronhas, colcha, pijamas, toalhas de banho)
06 Cama patente ou beliche, colchão e travesseiro
07 Serviços de lavanderia (fardas e roupas de cama lavadas e passadas)
08 Serviços de rouparia (confecção de fardas e roupas de cama, consertos e guarda de
roupas lavadas)
09 Serviços médico-odontológicos
Fonte: BRASIL-EAFSC, 1935, 1939, 1946, 1955, 1957; SANTOS, M., 2005; LIMA, 2005;
SANTOS, J., 2006.
o sapato, a farda para o desfile cívico, a pasta de dente e a escova. Recebíamos a toalha de
banho, pijama, forro de cama, alojamento, tudo gratuito” (SANTOS, Ademilson, 2006).
Finalmente, a partir da segunda metade da década de 1960, os internos ficaram
obrigados a providenciar o seu próprio enxoval de acordo com lista entregue no ato da
matricula. O trecho em seguida, parte do relato de José Cláudio dos Santos, ex-interno da
escola no período de 1963-1968, é elucidativo sobre o fim da gratuidade do enxoval: “o
enxoval era o colégio que fornecia, mas a gente já levava alguma coisa. (...) Essa fase acabou.
Eu entrei em 1963 quando chegou em 1965 eu concluí o ginásio. Em 1965 não davam mais
nada. Já avisaram: ‘Quem vai entrar em 1966 tragam tudo’ Inclusive a farda, mal dava o
colchão” (SANTOS, J., 2006).
Evidentemente, o fim da gratuidade do enxoval foi mal recebido pelos internos e
sobretudo por seus familiares que agora teriam que custeá-lo. A mudança recebeu os protestos
principalmente dos pais dos internos já matriculados na escola e, portanto, acostumados com
o beneficio. Os alunos ensaiaram sem sucesso, através da liderança do grêmio estudantil,
reações contra a decisão (BARROS, 2006). Muitos internos tiveram que “se virar” para
comprar o enxoval; outros tiveram que contar com a ajuda de terceiros para poderem
continuar estudando no estabelecimento (SANTOS, J., 2006). O fim da gratuidade do enxoval
deu-se de maneira definitiva, trazendo para os alunos pobres dificuldades para manter-se no
internato. Contudo, a dualidade de atuação da escola (formação/assistência) continuou com a
disponibilização aos internos de alojamento, alimentação e assistência à saúde.
4-OS COMENSAIS
manhã: pão, com ou sem manteiga, café, leite, chá mate, mingau de amido de milho;
mungunzá, arroz doce; b) no almoço: feijão, arroz, farinha de mandioca, macarrão, carne
(bovina, suína), ave, peixe, salada e às vezes, refresco; c) no jantar: pão, macaxeira, café,
mate, leite, sopa.
Não há registros que tenha faltado alimentação no internato. Entretanto, a
quantidade e qualidade dos alimentos servidos foram sempre variáveis e no geral descritos por
ex-internos como “razoáveis”. Em seguida, expõe-se um relato de Ademilson Vieira Santos,
ex-interno (1961-1967), sobre a alimentação servida no refeitório do internato: “Eu cheguei a
comer pão, pão de milho como a gente chama, pão seco com chá mate. (...) Mas era um pão com
manteiga, uma xícara de café, (...) uma jabá (...). Tínhamos o peixe, o atum, a galinha. Não de boa
qualidade, mas na época tínhamos. Nunca passamos privação com alimentação” (SANTOS,
Ademilson, 2006)
Ocorreram manifestações dos internos motivadas pela insatisfação com a
alimentação servida pela escola, principalmente por parte dos colegiais da década de 1960 que
se sentiam muitas vezes, mesmo diante do rigor disciplinar do internato, encorajados a
realizar protestos por causa da qualidade e da rotina dos alimentos servidos no refeitório da
instituição. Os protestos tomavam forma através de discursos: “Certa feita eu entrei numa
sala, os alunos estavam revoltados: ‘Nós somos tratados como porcos. A comida é ruim,
parece uma lavagem, mal feita...’ Tinha um aluno revoltadíssimo. Esse era da Bahia, os
colegas aplaudiam (...) Uma voz até muito simpática e ele se inspirou...” (BARROS, 2006) e
até mesmo com a paralisação das atividades: “A gente fez greve lá. Pelo feijão com gorgulho e
não gorgulho com feijão. Porque vinha gorgulho mais do que feijão. (...) Chegava lá a charque e o
bacalhau ultrapassado já. Era ruim” (SANTOS, J., 2006).
As reclamações por causa da alimentação servida foram comuns nos colégios-
internatos (FREYRE, 1968). Os “romances de internato” também descrevem a insatisfação
dos internos com os alimentos. É exemplar, entre outros, a “revolução da goiabada” narrada
na escrita autobiográfica de Raul Pompéia:
Além das três refeições diárias servidas, existe registro da distribuição de lanche
aos internos, embora de forma descontínua e provavelmente somente até a primeira metade da
década de 1960. O lanche consistia em pão, bolacha, frutas, leite com achocolatado, mate e
era servido principalmente no período da tarde (LIMA, 2005). No entanto, a complementação
da alimentação regular servida pelo estabelecimento ficava mais por conta das possibilidades
de cada família que enviava encomendas para os seus filhos internos: “Como em todas as
épocas sempre tinha o sacolão. Os mais antigos que sempre saíam no final de semana traziam
encomenda da família. Os pais faziam a sacolinha mandando a bolachinha, um queijo pra
gente merendar, porque não era fácil também lá” (SANTOS, Ademilson, 2006)
A indicação específica dos gastos com a ali QUADRO 3: CUSTO MÉDIO DA ALIMENTAÇÃO
DOS INTERNOS NOS ANOS DE 1955, 1956 E 1957
7-CONSIDERAÇÕES FINAIS
8-REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ANDRADE, Mariza Guerra de. A educação exilada. Colégio do Caraça. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
SANTOS, Manoel Isaú Souza Ponciano. Luz e Sombras: internatos no Brasil. São Paulo:
Salesianas, 2000.
9-FONTES PESQUISADAS
contribuição do Ensino de Biologia vai além da mera compreensão técnica e serve para um
exercer efetivo de cidadania plena.
No Ensino Médio, o exercício professoral de Biologia em nosso país variou
bastante nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1990. E por parte dos governos, americano e
brasileiro, não faltaram incentivos que propunha uma “melhoria” do Ensino das Ciências de
maneira geral, e em particular do Ensino de Biologia.
Desde a década de 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases de 20 de dezembro
de1961, houve uma descentralização das decisões curriculares, até então sob responsabilidade
federal856.
Especificamente na década de 70, o projeto nacional de ditadura militar, que
estava no poder, era o de modernizar e de desenvolver o país. E o ensino de Ciências era
considerado importante componente para a preparação de um corpo qualificado de
trabalhadores, conforme foi estipulado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada
em 1961857.
Embora visasse ao desenvolvimento do ensino voltado à qualificação, os
currículos escolares brasileiros de Biologia da década de 1970 eram atravancados por
disciplinas que pretendiam levar o aluno ao mundo técnico do trabalho (zootecnia,
agricultura, técnica de laboratório, etc), sem que os estudantes tivessem bases científicas para
aproveitá-las (KRASILCHIK, 2004).
Já no final da década de 1970, a chamada “Guerra Tecnológica” exigia novas
reformas urgentes no ensino de Ciências, entre elas a Biologia. Foi a vez dos currículos
chamados de socializantes.
Em Sergipe, a década de 70, sob a tutela militar, utilizou-se mais acintosamente do
modelo capitalistas na Cultura, sobretudo na Educação. Dentro desse contexto, o atendimento
à demanda do Ensino Médio e o nascimento da Universidade Federal de Sergipe receberam
incentivos sem precedentes (DANTAS, 2004). Em Sergipe, Colégio Atheneu Sergipense, foi
856
Art. 4º Os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional, e
uma parte diversificada rara atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades
locais aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos. (LDB, 1961).
857
Art. 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e
preparo para o exercício consciente da cidadania. (LDB, 1961).
Art. 5º §2º A parte de formação especial de currículo: a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciarão para
o trabalho, no ensino de 1º grau e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau; b) será fixada, quando se
destine a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local
ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados. (LDB, 1961).
criado em 1870, por Manuel Luiz de Azevedo e recebeu inúmeras denominações (ALVES,
2006).
Este trabalho tem como objetivo caracterizar o ensino de Biologia no Colégio
Atheneu Sergipense durante a década de 70; situar os conteúdos ministrados pelos
professores, a formação docente e a constituição das turmas de Ensino Médio. Também se
objetiva, secundariamente, inserir a formação professoral sergipana em Biologia, dentro da
instituição mencionada, no contexto brasileiro da época. Para esta pesquisa historiográfica,
investigou-se diversas fontes documentais, como: diários de classe, livros de ponto,
avaliações escritas, ficha documental de professores, e outros.
O projeto mais conhecido que teve também circulação no Brasil foi, para a
Biologia, o BSSC – Biology Science Study Committee ou Comitê de Estudos de Ciências
Biológicas. E embora o IBECC, desde 1960 já se dedicasse à preparação de materiais para o
ensino prático de Biologia, optou por adaptar dois projetos do BSCS, ambos destinados às
escolas do Ensino Médio: as chamadas “Versão Azul”, que analisava os processos biológicos
a partir do nível molecular, e a “Versão Verde”, que centralizava sua análise ao nível de
população e comunidade.
Com o regime militar, a implantação desse projeto foi muito facilitada; pois o
golpe militar acabou gerando um modelo econômico que acelerou uma demanda social de
educação, com acordos com o MEC-Usaid que visavam atuar sobre os conteúdos, métodos e
técnicas de ensino. Introduziu-se no Brasil uma rede de Centros de Treinamento de Ensino de
Ciências que foram os locais de implementação dos projetos. E uma das alternativas para a
execução desses treinamentos foi o Programa de Expansão do Ensino Médio (Premen). Estes
e outros programas influenciaram profundamente o ensino de Biologia atual (KRASILCHIK,
2004).
baseboll, de rubgy e mesmo sugeriam que os estudantes trouxessem para a sala um pouco de
neve”.
858
Nesta época, as universidades estavam optando pela sucessão dos antigos Cursos de História Natural, que
englobavam grande carga horária de disciplinas de Ciências Geológicas, pelos Cursos de Ciências Biológicas,
mais centrados na área de Biologia. Essa foi uma tendência de modernização na Ciência e no ensino no Brasil, e
a Universidade Federal de Sergipe, então iniciante, a seguiu. (ALCÂNTARA & FRANCO, 1998)
Além disso, as classes divididas pelas três séries (1º, 2º e 3º anos) apresentavam-se
numerosas, com uma média de 40 alunos por classe. No ano de 1970, por exemplo, eram: 10
turmas de primeiros anos, 17 turmas de segundos anos e 16 turmas de terceiros anos, nos três
turnos em que funcionava a escola; contando com a passagem de 20 professores de Biologia
durante este mesmo ano nesta instituição escolar. Em 1978, o número de professores de
Biologia alocados na instituição cai para sete, mas o número de turmas é ampliado para 52.
Apesar das dificuldades derivadas da falta de dados e da pouca tradição do estudo
do currículo de Biologia, verificou-se desarticulação e cientificismo em excesso no ensino de
Biologia no período e instituição pretendidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, E.M.S. A congregação do Atheneu sergipense: das ações pedagógicas aos acirrados
debates. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v.12, p. 59-72, jan/jun.2006.
DANTAS, I. História de Sergipe República (1889 – 2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2004.
LIMA, J.F. UFS: História dos Cursos de Graduação. Centro de Impressão Eletrônica da UFS,
1998.
Segundo Nunes (1984, p. 181), de acordo com os anseios dessa época é elaborado
outro Regulamento que,
Entre os principais fatores que, ao nosso ver, vêm concorrendo para as falhas
da educação elementar, no Estado, desejamos, de início, assinalar:
Mendonça (1958, p. 81-199) reforça ainda mais sua opinião, segundo a qual a
problemática educacional em Sergipe estava na administração escolar, uma vez que
(...)
(...)
(...)
ANEXO ÚNICO:
(...)
(...)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NUNES, Maria T. História da educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de Sergipe,
1984.
SERGIPE, Lei n. 981, de 5 de abril de 1960. Cria a Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.
Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 13.023, 7 abr. 1960.
Data dos fins do século XIX a primeira tentativa de fundar uma Academia
de Direito em Sergipe. Por ato de 20/8/1898, o Presidente em exercício, Dr.
Daniel Campos, nomeou uma comissão de cinco membros, composta de
homens “notáveis pelo saber” para elaborar o plano de fundação. Justificava
o ato ante a marcha regressiva que dia a dia se observa na instrução pública,
o declínio de nível intelectual, a diminuta freqüência do Ateneu, já por lhes
faltar desideratum que lhe assegura o governo da União no art. 430, do dec.
nº. 1.232 de 2 de janeiro de 1891, já pelo desânimo que invade a alma dos
moços sergipanos, em geral baldos de recursos, a procura de uma escola
superior. (NUNES, 1984, p. 194)
Estado de Tobias Barreto e João Ribeiro, privado de ter de volta seus filhos
mais preparados. (DANTAS, 1998, p. 10)
Com relação ao ensino superior, foi também nesse período que o Governo Estadual
criou duas casas de instrução superior públicas, primeiro a Faculdade de Ciências Econômicas
mediante a Lei nº. 73 de 12 de novembro de 1948 e logo depois a Escola Superior de Química
pela Lei nº. 86 de 25 de novembro do mesmo ano. “Esta incorporou em seus quadros mestre
de grande competência que aqui viviam expatriados e o curso tornou-se referência nacional”.
(DANTAS, 2004, p. 158)
Em 1950, foram criadas a Faculdade de Direito e a Faculdade Católica de
Filosofia. A partir de 1954, a Igreja Católica fundou a Faculdade de Serviço Social. Já na
década de 1960 a Faculdade de Direito foi federalizada e criou-se a Faculdade de Medicina.
Com a instalação da Universidade Federal de Sergipe em 30 de abril de 1968,
todas essas faculdades isoladas do estado, foram incorporadas a recente instituição:
A certeza de tal aprovação por parte do Governo Federal era tão evidente
que já se veiculava a preparação de um curso pré-vestibular gratuito para
fevereiro de 1951, com o possível mês de março para a realização da
seleção. O programa do concurso vestibular, inclusive, já estava pronto e
poderia ser encontrado no Seminário Diocesano com o Pe. Luciano Duarte.
As inscrições para o mesmo também já estavam abertas e as exigências
eram, entre outras, o curso ginasial completo (dois ciclos) ou o curso normal
também completo. (LIMA, 1993, P. 79-80)
Foi com muita expectativa, que durante os meses de dezembro de 1950 e janeiro
de 1951, o Padre Luciano e o Governador do Estado, aguardavam a publicação no Diário
Oficial da União o Decreto Presidencial que autorizava “oficialmente” a criação da FAFI.
Basta lembrar que a fundação da FAFI ocorreu em 20 de setembro de 1950, pela entidade
mantenedora Sociedade Sergipana de Cultura, mais seu funcionamento ainda não havia sido
aprovado pelo governo federal.
[...] Quase nada se tem feito para atrair ao magistério candidatos interessados
e portadores dos requisitos indispensáveis ao respectivo desempenho, bem
como para facilitar a tôdas as camadas da população, principalmente aos
jovens do interior, a formação pedagógica [...] O ideal das moças sergipanas,
residentes na Capital ou proviniêntes da classe média nas cidades do interior,
não é mais o magistério. As suas aspirações voltam-se para os cargos
federais e autárquicos, hoje acessíveis a todos mediante habilitação em
concurso, e para as profissões mais bem remuneradas. (MEDONÇA, 1958,
p. 158)
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. São Paulo, Ed. Universidade de Brasília,
1963.
CHAGAS, Valnir. Formação do magistério: novo sistema. São Paulo: Atlas, 1976.
CUNHA, Luiz Antônio. “Ensino superior e universidade na Brasil”. In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira; FARIA Filho, Luciano Mendes e VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educação no
Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.
DANTAS, Beatriz Góis (Coord.). UFS 30 anos. São Cristóvão: UFS, 1998. 1 v.
FONTES, Carmelita Pinto. Cursos Superiores em Sergipe. In: DANTAS, Beatriz Góis (Coord.).
UFS 30 anos. São Cristóvão: UFS, 1998. 1 v. Não paginado.
NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas Bôas Carvalho do; NASCIMENTO, Jorge. C. do; OLIVEIRA,
Maria Antonieta Albuquerque de; TAVARES, Maria das Graças Medeiros. Educação Superior em
Sergipe (1991-2004). In: GIOLO, Jaime; RISTOFF, Dilvo (Orgs.). Educação Superior Brasileira
(1991-2004): Sergipe. Brasília: Inep, 2006. p. 21-72.
NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra:
Aracaju; Secretária da Educação e Cultura do Estado de Sergipe/ UFS, 1984. (Coleção
Educação e Comunicação).
NUNES, Maria Thétis. Dom Luciano Duarte e a Faculdade Católica de Filosofia. In: Informe
UFS, Ano XII, nº. 398 de 26 de janeiro de 2007.
SANTOS, Lenalda Andrade. Da dispersão à unidade: o trajeto da UFS. In: UFS: História dos
Cursos de Graduação. São Cristóvão: Centro de Impressão Eletrônica da UFS, 1998.
SANTOS, Lenalda Andrade. Curso de História: resgate da memória histórica. In: ROLLEMBERG,
Maria Stella Tavares; SANTOS, Lenalda Andrade. UFS: História dos cursos de graduação. São
Cristóvão: UFS, 1999(a). p. 159-170.
SANTOS, Maria Nely. Professora Thétis: uma vida. Aracaju: Gráfica Pontual, 1999.
WYNNE, João Pires. História de Sergipe (1930 a 1972). Vol. 2, Rio de Janeiro: Pongetti,
1973.
A educação cumpre importante papel nessa nova realidade e a cidade que antes
assistia os seus filhos partirem para outros centros a busca de um curso de nível superior, a
partir da efetivação das suas instituições de ensino superior passa a irradiador de
conhecimento e cultura.
1855, torna-se o centro receptor das migrações do Estado e favorece o intercâmbio cultural. A
ampliação urbana de Aracaju se diferencia à medida que ela se torna o destino de migrantes
de várias localidades864. Desta forma, as relações humanas, além das geográficas, são o
grande desafio da nova capital. É preciso aprender a lidar com peculiaridades, com as
diferenças. É mais um desafio imposto pelos tempos modernos. Diante dessas circunstâncias,
além daquelas conferidas pelo século XX, Aracaju segue os trilhos da tão almejada
modernização. Os trilhos de ferro transportam mercadorias, pessoas e sonhos. O progresso
traz consigo grandes construções, afinal, era preciso ter um aspecto condizente com a posição.
A ampliação comercial e industrial são os álibis necessários para a expansão dos
meios de comunicação e da imprensa, em especial. Os jornais fazem parte do cotidiano das
pessoas. Através deles, chegam muito mais que informações, chegam atualidades. É através
deles que a modernidade encontra a sua melhor ambientação. A alquimia tecnológica fez o
tempo correr nesses últimos 100 anos, muito mais rápido do que nas diferentes revoluções
tecnológicas que vem sucedendo desde a invenção da imprensa por Guttemberg nos idos de
1455. Além disso, as interferências da comunicação no meio social são amplamente
discutidas por autores como Marshal McLuhan, que numa alusão a retribalização do mundo
numa “aldeia global” proporciona reações e interações na sociedade, bem como na cultura, na
economia e na política.
Na medida em que desenvolvia os serviços públicos e os veículos de comunicação,
Aracaju buscava inserir-se na modernidade e dessa forma, adquirir o status do poder
pertinente a uma capital. Era preciso estar em harmonia com a sua época, caminhar na mesma
velocidade que os outros Estados865. Segundo José Silvério, a centralização das vias de
comunicação, instituiu um novo centro cultural, antes ocupado por Laranjeiras e Estância. Isto
passou a assegurar a superioridade de Aracaju sobre as demais cidades do Estado866.
Trata-se, portanto, de uma busca frenética em legitimar a escolha e a decisão
tomada outrora. O engrandecimento do setor secundário era, nesse momento, o tentáculo mais
promissor da economia do Estado, os novos rumos estavam ali, e sua expansão, significava
não só uma economia mais estável, mas sim a possibilidade de ascensão social. Ibarê Dantas
trata deste período da história salientando a dilatação do comércio, afirmando que “O setor
864
CARVALHO, Fernando Lins de. “O popular e o popularesco: perspectivas para Aracaju” in: Revista de
Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2003.
865
NASCIMENTO, Edna Maria do. SANTOS, Waldefrankly Rolim de Almeida. “Aracaju urbana e humana:
aspectos de uma leitura da cidade” in: Revista de Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju:
FUNCAJU, 2003.
866
FONTES, José Silvério Leite. A formação do povo sergipano. Universidade Federal de Sergipe, 1992.
secundário prosseguiu em seu perfil no fim dos anos vinte. O número de estabelecimentos
industriais, excluídos usinas e engenhos, continuaram subindo, assim como o número de
trabalhadores, que teria duplicado.”867
O progresso da cidade demandava ampliar o nível de escolaridade da sua
população, afinal, impulsionada pelo desenvolvimento dos meios de produção, carece de
mão-de-obra qualificada e especializada, sendo necessário oferecer oportunidades para esse
contingente, preparar melhor seus atores sociais e conseqüentemente, ampliar as suas
possibilidades de inserção no mercado de trabalho. A modernização do Estado exigia a
construção de um farol para o seu desenvolvimento e posterior irradiação para o Estado. Esse
foral de consubstanciaria com a efetivação das instituições de ensino superior no Estado.
A cena de pessoas em volta de fogueiras, compartilhando experiências do
cotidiano, narrando acontecimentos, produzindo idéias, já delineava o que viria a ser a
educação que conhecemos hoje. Os milênios que separam essa cena da atualidade nos
mostram a constante busca do homem pelo conhecimento, o que mudou ao longo da História
foi à forma e a intensidade dessa busca. Por sua vez, a modernidade obriga os homens a
ampliar o seu campo de visão, a adaptar-se a um cotidiano mais movimentado e dinâmico,
onde as desconstruções antecedem às construções, onde é preciso apagar todos os resquícios e
saudosismo da vida pacata de outrora para implantar os ícones do mundo moderno.
A modernidade descrita em obras como Tudo que e Sólido Desmancha no Ar do
crítico literário Marshal Berman, não tem se universalizado de forma eqüidistante. Mesmo no
Brasil os estudiosos discutem quando o ritmo mais intenso da modernidade chegou em
algumas regiões. A historiadora Maria Nely dos Santos, a exemplo, escreve artigo mostrando
como em Aracaju as marcas da modernidade tardam a se manifestar com maior intensidade
868
. A capital do Estado de Sergipe parece só vivenciar este ambiente a partir dos anos
vinte do século passado mais ainda próximo. Uma Aracaju que assiste a chegada da linha
férrea, dos bondes com o seu leva e traze de pessoas, atraindo-os de suas casas e levando-as
para a rua. O ritmo citadino de Aracaju começa a sinalizar os primeiros passos de vida
moderna. Sinais que pareciam se materializar com a criação das primeiras faculdades ainda no
governo empreendedor de Graco Cardoso869. Uma importante iniciativa que não conseguiu se
867
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889 – 2000). Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
2004.
868
SANTOS, Maria Nely dos. Aracaju na contramão da ‘Belle Époque’. in: Revista de Aracaju / Prefeitura
Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2002.
869
NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e terra; Aracaju: Secretaria de
Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 1984..
870
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).
871
Idem.
872
Idem.
873
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).
pretendidos para a capital mostram-se mais próximos aos olhos da sociedade, que por sua vez,
passa a participar do remodelamento da política, da economia e, sobretudo, da cultura local, à
medida que capacita melhor os seus jovens.
As relações de poder são motivos de contestação, sendo os movimentos estudantis
um dos mais importantes meios de mobilização sócio-cultural, apresentando-se então como
instigadores das manifestações em favor das reformas que eclodiam no Brasil 874.
As discussões em torno da criação de uma Universidade que aglomerasse os
cursos oferecidos nas faculdades locais eram um dos principais pontos tocados pelos
estudantes. Esta proposta, como aponta José Vieira da Cruz, era contestada pelos acadêmicos
da Faculdade de Direito, já que estes estavam numa instituição federalizada, temiam o que os
recursos para uma instituição diminuíssem.
Neste contexto, a participação estudantil provocou certa efervescência na
sociedade sergipana, contribuindo assim para despertar na sociedade uma nova visão dos
acontecimentos. Os problemas da realidade nacional também são alvos desses estudantes, que
repensam o papel das Universidades na construção de uma sociedade democrática 875.
A juventude é, nesse instante, sinônimo de renovação, de novas perspectivas e é,
através dela, que a sociedade sergipana abre-se para a nova realidade do país e integra-se com
os acontecimentos que eclodiam em todo o mundo. É também símbolo da modernidade, a
expressão mais contundente dos novos tempos.
Mesmo sob a contestação de alguns, em 15/05/1968, é criada a Universidade
Federal de Sergipe e a sua chegada significava uma nova fase do ensino superior em Sergipe.
Os professores, por sua vez, são atingidos, à medida que, passaram a receber salários
condizentes com a profissão e, além disso, as atualizações passaram a ser mais freqüentes 876.
A instalação de uma Universidade traz consigo o espectro do desenvolvimento.
Uma formação profissional qualificada passa a estar ao alcance de um número maior de
sergipanos, num espaço plural, onde era possível exercitar o conhecimento, a cidadania, a
tolerância e principalmente a diversidade social. José Fernandes de Lima, atual reitor da
Universidade Federal de Sergipe, salienta que “a criação de uma massa crítica pensante, capaz
874
Idem.
875
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).
876
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889 – 2000). Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
2004.
877
LIMA, José Fernandes de. Universidade: problema ou solução? www.rnufs.ufs.br/rn/artigos.
878
MENDONÇA, Jouberto Uchoa de. Universidade Tiradentes – Catálogo 1999. Aracaju: 1999.
879
Relatório final da comissão de acompanhamento para transformação das Faculdades Integradas Tiradentes em
UNIVERSIDADE TIRADENTES – UNIT. ASA – Associação Sergipana de Administração – Projeto UNIT –
Aracaju - SE
880
UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma identidade / UNIT –
Aracaju: UNIT, 2005.
881
Idem.
882
SOBRINHO, Josué Modesto dos Passos. O Terceiro Estado. www.rnufs.ufs.br/rn/artigos.
883
CRUZ, José Vieira da. “Artes cênicas e literatura: o teatro da cultura artística de Sergipe”. In: Jornal da
Cidade, 29/01/2004.
884
UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma identidade / UNIT.
Aracaju: UNIT, 2003.
desenvolvimento, os seus valores culturais, artísticos, lutar para que a educação e o ensino
cheguem para todos com a qualidade e oportunidades iguais.” 885
A Universidade tem importante papel, ao passo que é formadora de recursos
humanos qualificados e como produtora de conhecimento, através de suas pesquisas,
essenciais ao desenvolvimento científico e tecnológico, e só através desse passaporte dar-se-á
o grande salto qualitativo sócio-econômico almejado para todos os brasileiros. Contudo é
preciso estar atento, já que as “comemorações tendem a inscrever os atos humanos em um
tempo mítico, destituindo do homem a sua historicidade.” 886.
Para Antônio Fernando Araújo de Sá, as comemorações cumprem outro
importante papel no sentido de ritualizar a história, analisando o passado e buscando neste,
instrumentos para a construção de uma identidade e dessa forma instaurando uma
solidariedade coletiva. Dessa forma, demarca-se na memória coletiva as passagens e
acontecimentos que devem ser lembrados, assim como, os que devem ser esquecidos 887.
A dinâmica de uma sociedade é visualizada pelo grau de desenvolvimento cultural
que ela alcança. A sociedade moderna em particular aposta na educação como um dos
caminhos possíveis para o auto-desenvolvimento humano. Modernizar se constitui nessa
perspectiva em esclarecer, em melhorar. As universidades neste contexto é um espaço
privilegiado no qual a formação profissional e a produção do conhecimento encontram abrigo.
O ensino superior em Sergipe sintoniza-se com as intenções dessa sociedade
moderna. Aracaju em particular, construído a partir de ideais modernos, aproxima-se dessa
busca e não sem razão comportou a efetivação e o desenvolvimento do ensino superior em
Sergipe. Processo que tardou a se concretizar, mas ao ser organizado a partir da segunda
metade do século XX, ganha impulso e logo cria um ambiente cultural propicio a produção do
conhecimento. A contribuição esperada de uma instituição de ensino superior e a sua
interação com a sociedade na qual esta inserida. É nesse contexto que se insere a participação
das Universidades no desenrolar da História da cidade de Aracaju. Pensada inicialmente para
ser o grande projeto urbanístico do Estado, Aracaju também vai ser o ponto irradiador do
conhecimento acadêmico em terras sergipanas. Uma História que entrelaça princípios
modernizadores articulados ao desenvolvimento social e cultural. Sintonizadas com esse
propósito, a História das instituições de ensino superior em Aracaju, de modo particular da
885
Discurso proferido pelo Reitor da Universidade Tiradentes – UNIT, Jouberto Uchôa de Mendonça, na
Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe, em ocasião da entrega da “Comenda do Mérito”.
886
SÁ, Antônio Fernando Araújo de. História e Memória na Era das Comemorações. ” in: Revista História e
Memória. Brasília: UNB, 2005.
887
SÁ, Antônio Fernando Araújo de. Op. cit.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Fernando Lins de. “O popular e o popularesco: perspectivas para Aracaju” in:
Revista de Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2003.
CRUZ, José Vieira da. “Artes cênicas e literatura: o teatro da cultura artística de Sergipe”.
In: Jornal da Cidade, 29/01/2004.
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889 – 2000). Editora Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, 2004.
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889
HERSCHMANN, Micael M. e PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O Imaginário moderno no Brasil”. In:
A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Micael M. Herschmann e
Carlos Alberto Messeder Pereira (orgs.) – Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 15.
formador das futuras professoras primárias. Não bastava instruí-las; era necessário reformar
os padrões de ensino dessa instituição890.
890
Durante o governo de Prudente de Moraes, Caetano de Campos empreendeu, em 1890, a reforma que marcaria
a historiografia educacional como o momento que deu início à modernização do ensino. Como visto em
capítulos anteriores, o intuito dessa reforma era criar uma escola que servisse de modelo às instituições de ensino
dos outros Estados. A Escola Normal e a Escola Modelo constituíram o núcleo da reforma. Para assumir a
direção da Escola Modelo foram indicadas Miss Browne e Maria Guilhermina Loureiro de Andrade. Cf.:
SAVIANI, Dermeval. “O Legado educacional do ‘longo século XX’ brasileiro”. In: O Legado educacional do
século XX no Brasil. Dermeval Saviani ... [et. al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 23. –
(Coleção Educação Contemporânea).
891
As instituições beletrísticas existentes em Sergipe: Clube Literário 24 de Julho, Clube Literário Tobias
Barreto, Clube Literário Sílvio Romero, Clube Literário Progressista, Centro Literário e Educativo, Grêmio
Literário Simãodiense, Hora Literária Sílvio Romero, Hora Literária Tobias Barreto, Hora Literária Fausto
Cardoso, Hora Literária Gumercindo Bessa, Hora Literária General Calazans, posteriormente intitulada de Hora
Literária do Santo Antônio, Biblioteca Pública Epiphânio Dórea e Academia Sergipana de Letras. Cf.: SOUZA,
Cristiane Vitório. A Republica das Letras. 1889-1930. São Cristóvão: UFS, 2001. Monografia (História
Licenciatura).
892
As instituições científicas presentes no campo intelectual sergipano desse período foram: a Sociedade Médica
de Sergipe, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Sociedade de Medicina e Cirurgia de Sergipe, o
Instituto Parreiras Horta e Sociedade Odontológica de Sergipe.
893
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
894
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju:Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1.
895
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Reformas da Instrução Pública”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;
FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003. p.226.
896
SOUZA, Rosa Fátima de. “Lições da Escola Primária”. In: O Legado Educacional no século XX no Brasil.
Dermeval Saviani.. [et.al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 119. – (Coleção Educação
Contemporânea).
897
SOUZA, Rosa Fátima de. “Lições da Escola Primária”. In: O Legado Educacional no século XX no Brasil.
Dermeval Saviani.. [et.al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 119. – (Coleção Educação
Contemporânea).
898
Carlos Silveira era diretor do Grupo escolar da Avenida Paulista.
899
SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Estado em 7 de Setembro de 1910 pelo
presidente do Estado José Rodrigues da Costa Dórea. Aracaju: Typografia d’O Estado de Sergipe, 1910. p.
56.
900
VEIGA, Cynthia Greive. “Educação estética para o povo”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA
FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. p. 531.
901
VALENÇA, Cristina de Almeida. “Escola-Palácio: a monumentalidade e a educação estética do ideário da
modernização pedagógica em Aracaju. (1911-1928). In: Anais da 7 semana de História, 26 a 30 de janeiro de
2004: a historiografia de Maria Thetis Nunes. Universidade Federal de Sergipe. CECH, Departamento de
História. – São Crisóvão, SE: Departamento de História, 2004. p. 86.
902
VIÑAO FRAGO, Antonio. “La renovación de la organización escolar: la escuela graduada”. In: SATUER, G.
O. (coord.). Psicologia y pedagogia em la primeira mitad del siglo XX. Madrid, UNED Ediciones. p. 77.
(Cuadernos de la UNED).
903
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju:Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1-2.
904
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju: Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1-2.
ou mesmo, a prepotência da política sobre a Instrução Pública. Ao retornar para São Paulo,
Carlos Silveira passou a atuar como professor do Instituto Pedagógico905.
Ressaltados por esse professor como o maior símbolo de atraso, os castigos físicos
eram o meio disciplinar mais utilizado nas escolas sergipanas, principalmente as de ensino
primário. Conforme acreditava, esse método produziria apenas meninos neurastênicos que
estudavam mais pelo “terror da férula” que por amor ao saber, ou mesmo, crianças
negligentes que se habituavam aos castigos e relaxavam. A escola moderna não poderia mais
submeter-se aos processos condenados pela ciência pedagógica, afirmava Helvécio de
Andrade. Suas premissas sobre a condenação aos castigos físicos estavam pautadas nos
fundamentos da metodologia implantada por Carlos Silveira na reforma de 1911. Ao tecer
suas argumentações contra o uso da palmatória, Helvécio de Andrade lembrou do seguinte
episódio ocorrido ainda no período da administração de Carlos Silveira.
que a proprietária do amável traste deu pela sua falta, foi um tanto
commovida pedir licença para verificar se estavam no dito móvel uns papeis
que lhe eram pertencentes. O distincto educador, risonho respondeu: lá só
havia isso, cujo cabo desastradamente quebrei. Peço desculpas do prejuízo
que involuntariamente dei a v. ex.911.
911
ANDRADE, Helvécio de. “Sobre a nova cadeira de Pedagogia da Escola Norma III”. Correio de Aracaju.
Aracaju, 8 de dezembro de 1911, ano VI, n. 635. p.2.col. 2.
BIBLIORAFIA
______. “Velho Thema”. Correio de Aracaju, Aracaju, 21 de Agosto de 1912, ano VI, n.
738. p.1 col. 3.
______. “Sobre a nova cadeira de Pedagogia da Escola Normal II”. Correio de Aracaju.
Aracaju, 6 de dezembro de 1911, ano VI, n. 634. p. 2. col. 2.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Reformas da Instrução Pública”. In: LOPES, Eliane
Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos
de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas, São
Paulo: Editora da Unicamp, 1999. – (Coleção Momento).
SOUZA, Cristiane Vitório. A Republica das Letras. 1889-1930. São Cristóvão: UFS, 2001.
Monografia (História Licenciatura).
SOUZA, Rosa Fátima de. “Lições da Escola Primária”. In: O Legado Educacional no século
XX no Brasil. Dermeval Saviani.. [et.al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 119.
– (Coleção Educação Contemporânea).
______. Entre livros e agulhas: representações da cultura escolar feminina na Escola Normal
em Aracaju. 1871-1931. Aracaju: Nossa Gráfica, 2005.
VEIGA, Cynthia Greive. “Educação Estética para o povo.” In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
WYNNE, Pires. História de Sergipe. (1575-1930). vol. I. Rio de Janeiro: Pongetti, 1973.
São Paulo, 1917. As escolas públicas paulistas recepcionam uma das grandes obras que
propõe um modelo de educação higiênica da infância, emergida nos discursos republicanos,
em particular no discurso médico-higienista no início do século XX, configurando uma nova
prática escolar e trabalhos pedagógicos. Hygiene Escolar e Pedagógica para uso de médicos,
educadores e estabelecimentos de ensino (1917) é uma obra que faz parte de uma nova
literatura voltada a um receituário de civilidade, condutas e posturas. Assim, objetivamos
analisar as representações do corpo infantil contidos nesta obra e os ditames de condutas e
comportamentos, em nome da saúde, pensadas pelos princípios moralizantes e
disciplinarizantes tecidos pelos saberes/poderes. Contudo, nos apropriamos dos conceitos
como “disciplina” e “anormais” de Michel Foucault para a nossa narrativa no intento de
refletir acerca dos discursos classificadores e hierarquizantes no que referem as condutas e
práticas às crianças. Dentre algumas conclusões a que podemos chegar, uma é que não só a
História da Educação, como também os atuais educadores compartilham o consenso de que a
escola moderna é espaço dotado de visibilidade e dizibilidade, voltado para a homogeneização
dos corpos para a produção de crianças “perfeitas”.
O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes
descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do
universo e do lugar que ocupamos nele, (...) a idéia de modernidade,
concebida em inúmeros fragmentários caminhos, perde muito da sua nitidez,
ressonância e profundidade e perde sua capacidade de organizar e dar
sentido à vida das pessoas. Em conseqüência disso, encontramo-nos hoje em
meio a uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria
modernidade. (BERMMAN, 1999, p. 16-17)
No texto que abre essa introdução, as palavras de Marshal Berman ilustram bem a
“vertigem” abissal de um jogo de vida e de morte entre a possibilidade de
publicação do seu livro intitulado A Hygiene Escolar. E como final do recorte elegemos o ano
de 1917 por ter sido o ano da publicação do segundo e último livro do Vieira de Mello
intitulado Hygiene Escolar e Pedagógica para uso de médicos, educadores e
estabelecimentos de ensino.
A narrativa que tomo como fonte nesta pesquisa compõe um “manual de receitas”
discursivas e não-discursivas expresso nos dois livros publicados pelo o médico-pedagogo Dr.
Vieira de Mello, fazendo uma análise dos discursos pelos livros disseminados,
esquadrinhando a infância e as práticas educacionais em torno dela, percebendo como um
sistema de códigos, condutas e hábitos higiênicos contribuíram “quebrar” o silêncio a cerca da
infância configurando uma nova (re)significação para as crianças, inserindo-as em um novo
contexto. Os discursos do Dr. Vieira de Mello postulavam métodos e formas adequadas de
como a criança deveria de comportar e se higienizar. Os livros usavam de usos e costumes de
como a crianças deveria ser educada.
A metodologia utilizada neste trabalho é a análise dos discursos912. Discursos
esses inventa(ria)dos e que desempenharam papel importantíssimo no recorte temporal
referido, pois os discursos científicos emergidos no período Iluminista ecoaram séculos
adiante, configurando-se em dispositivos de poder como um imperativo nas sociedades
modernas, que vigia, pune e corrigi os que não se inserem às normas.
Pode-se perceber que nesse lugar próprio de poder e saber, que as práticas para
com as crianças eram ali construídas em aproximação a figuras de disciplina e saúde,
apresentada sob a forma de um ato cujo objetivo era satisfazer as necessidades do Estado.
Está posto nas páginas dos livros do Dr. Vieira de Mello um legado discursivo que institui a
criança a aprender a motivar a saúde, a norma e a motivar a Pátria de maneira positiva.
O médico-pedagogo nos lega discursivamente interesses singulares sobre a
infância e que articula uma “trama” de visibilidade e de dizibilidade, a qual se pode
vislumbrar a partir de análises dos livros: A Hygiene Escolar (1902) e Hygiene Escolar e
912
Neste contexto, entendo o conceito de discurso a partir da acepção de Helena H. Brandão, como o espaço em
que saber e poder se articulam, se entrecruzam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito
reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional)
é gerador de poder. “Um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma
mesma formação discursiva”. Esta, por sua vez, é entendida como a regularidade de uma dispersão de elementos
que não estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cf. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução a
análise do discurso. 6º ed., Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, pp. 28, 29, 30 e 31. A categoria discurso
pode ser também entendida segundo a concepção de Foucault, o qual defende como o conjunto das coisas ditas,
as relações, as regularidades e as transformações que aí se podem observar o domínio em que certas figuras, no
caso, a infância, em que certos encruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito e podem receber o nome
de um autor. “Não importa quem fala, mas o que ele diz, ele não o diz de um lugar qualquer”. Cf. ARAÚJO, Inês
Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Ed. UFRN, 2001, pp. 96-97.
913
O trecho citado faz parte da legislação, cabendo registrar que, dentre as atribuições que competiam aos
médicos inspetores em relação aos estabelecimentos de ensino sob a sua responsabilidade, figura em primeiro
plano, na lei n. 1.541, artigo 6º.
914
Aos médicos inspetores lhes foram atribuídas novas funções, mesmo àqueles que não pertenciam aos quadros
de funcionários da IME, mas que engrossavam a lista dos que compartilhavam do mesmo intento do inspetor
sanitário no trabalho de inspeção em escolas públicas e particulares, ensino primário, normal, secundário e
profissional com a coordenação do médico chefe, o livro serviria como um manual, uma cartilha de consulta dos
mais variados tópicos. O roteiro da obra foi baseado na literatura internacional e nos regulamentos estrangeiros
para uma eficaz organização do trabalho desse corpo profissional. A escola, segundo Dr. Vieira de Mello no
prefácio, era concebida como um “centro de irradiação de homens aptos a defende-la [a Pátria] e de mães
compenetradas dos seus deveres sociaes” (MELLO, 1917, p. 8), e deveria ser inspecionada por seus agentes com
orgulho e amor patriótico no peito.
915
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. OP. Cit., p 54.
916
Dentre as complicações septicas “destacam-se a inflamação e suppuração dos gânglios submaxilares, ao
abcessos dentarios, as osteítes, seguidas algumas vezes de necrose parcial dos maxilares e, mais que tudo, a
infecção tuberculosa”.
917
Artigo 3º, número III da lei nº. 1541 de 30 de dezembro de 1916: “A inspecção dentaria dos alunnos, quer
por meio dos médicos-inspetores, quer por meio das clinicas dentarias escolares a que poderá o medico-chefe
confiar, gratuitamente, a tarefa”. (MELLO, 1917p. 170).
918
Conferir a referência que faço à tuberculose no Capítulo I desta monografia.
A partir do que foi esquadrinhado sobre o corpo infantil, o Dr. Vieira de Mello
tem a preocupação de induzir os profissionais da educação e os próprios educandos, trazendo
um jogo de circunstâncias que coloca a infância como principal alvo do conhecimento
científico (médico e pedagogo). Trata-se, ao que se percebe, do “olhar do poder e o estrépito
919
de sua cólera” que, possivelmente, suprime qualquer pensamento ou sentimento de
“paparicação” que se tenha para com a criança. A partir da maneira como investe na
descrição, esquadrinhamento e classificação é possível perceber como o discurso do Dr.
Vieira de Mello demonstra frieza e tecnicidade com relação ao corpo infantil.
O esquadrinhamento (de órgãos) e a educação dos sentidos (visão, olfato, e etc.),
têm por efeito colocar as crianças em contato com os objetos exteriores, além de lhes dar
noções a cerca da natureza, da realidade social e material, o que atribui ao julgamento dos
educandos as qualidades essenciais de ponderações, polindo o mundo fantasioso das crianças
através de uma razão sadia920.
A narrativa apresentada pelo Dr. Vieira de Mello, além de demonstrar tais
objetivos, desempenha investigações que não se restringiam aos aspectos visíveis tentando
responder às interrogações mais peculiares das características humanas. Sendo assim, as
crianças eram classificadas como (a)normais, tendo por referencial os dados de
desenvolvimento físico, intelectual e moral comuns à suas respectivas idades. A classificação
pedagógica dos alunos era calcada no critério de inteligência, dividindo as crianças em
“supernormais ou precoces, normais, subnormais e tardias”, sendo que o último grupo
compreendia: a) astênicos, indiferentes, apáticos; b) os instáveis, inquietos, impulsivos,
indisciplinados; c) os ciclotímicos (que apresentavam características das duas categorias
anteriores).
Mantém-se, na abordagem dessas questões, a preocupação em formular um
esquema, uma espécie de catálogo das deformidades específicas dos anormais. O capítulo
intitulado Classificação dos anormaes é marcado pelas orientações em relação à classificação
dos educandos mentalmente anormais, traçando uma descrição e identificação do “anormal”
intelectual, moral e pedagógico, assim descritos: “estygmas de degenerescência, ou anomalias
physicas de caracter permanente” (MELLO, 1917. p.105). O esquema proposto para
classificar os alunos anormais divergia das fichas sanitárias individuais, pois não deixava
margens para o registro das características das crianças. Visando orientar a identificação das
919
Cf. Michel Foucault. “Ávida dos homens infames”. Op. Cit., p. 101.
920
Demeny apud SOARES, Carmem Lúcia. Imagens da educação do corpo: estudo a partir da ginástica
francesa no século XIX. 3º ed. Campinas, SP: Autores associados, 2005.
921
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. 2001.
922
Idem, ibidem.
Referências Bibliográficas:
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SILVA, Kalina Vanderlei et al. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005.
VIGARELLO, Georges. Lês corps redressé. Paris, Jean Oierre Delarge, 1978.
.
O jornal católico A Defesa foi criado em 13 de julho de 1932, pelo cônego Lauro
de Souza Fraga. Surgiu como um jornal da Paróquia de Propriá-SE. Em função das
dificuldades financeiras que enfrentou, essa publicação foi interrompida em vários momentos.
Com a criação da Diocese de Propriá, em 1960, e a chegada do bispo Dom José Brandão de
Castro, esse impresso foi revitalizado, tornando-se órgão oficial de imprensa dessa Diocese.923
923
CASTRO, Dom José Brandão de. A Defesa é mais antiga do que se pensa. A Defesa, Propriá, n. 378, p.01, 15
abr. 1962.
informações e as idéias nele contidas, mas também a sua materialidade. Forma e conteúdo
demandam uma observação atenciosa. Partindo dessa premissa, apresento alguns dispositivos
que fizeram parte do suporte do jornal A Defesa ou que viabilizaram sua caracterização, na
perspectiva de perceber como esses mecanismos contribuíram com o processo de formação
empreendido pelos produtores do referido impresso católico.
924
Cf. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000, p.
17.
925
Idem.
Por outro lado, não existem apropriações universais. Assim, os diversos leitores se
apropriam dos impressos de formas distintas. Isso significa que os enunciados não chegam
aos leitores conforme a vontade de seus produtores. Todavia, as diferentes apropriações não
ocorrem de forma aleatória. Dependem também do suporte material em que o texto está
inscrito. Assim, o exame da materialidade dos impressos é de fundamental importância para
os estudos acerca desses documentos. Chartier mostra que cada suporte, cada forma, cada
estrutura da transmissão da escrita interfere na construção do sentido e se destina a um
público leitor determinado. Dessa forma, através da letra, dos anúncios, dos editoriais, das
imagens lançadas no jornal, dentre outras características que compõem a parte material do
impresso, foi possível perceber a que público(s) o jornal A Defesa era dirigido e as estratégias
que foram utilizadas para conformar os leitores à mensagem católica que era transmitida.
926
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 183.
A distribuição do periódico era feita através dos Correios e com a colaboração dos
leigos. Rapazes e moças distribuíam grande parte dos impressos, entregando-os diretamente
nas casas. Além da entrega de grande parte dos impressos, alguns jovens também se lançaram
à busca de novos assinantes e anunciantes.927 Estes colaboradores habitavam a cidade de
Propriá e as circunvizinhança. No ano de 1968, a Diocese era composta por 25 municípios.
Destes, 17 tinham correspondentes que colaboravam com A Defesa.
Embora a maior parte dos textos que apresentam autoria tenha sido escrita pelo
bispo ou por padres, é válido salientar que a maioria dos autores do jornal foi provavelmente
formada por leigos. Foi grande a importância que a redação do jornal dispensou à atuação dos
leigos no processo de evangelização empreendido com a utilização do periódico católico.
927
.DONA Didi fez aniversário. A Defesa, Propriá, n. 404, p. 04, 30 jun. 1963.
928
SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. Um lugarzinho no coração. A Defesa, Propriá, n. 452, p. 01, 22 de
ago. 1965.
929
Cf. MARQUES, Luíz Henrique. Teoria e prática de redação para jornalismo impresso. Bauru – SP: EDUSC,
2003.
930
Cf. PORTA, Frederico. Dicionário de Artes Gráficas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958, p. 124.
diante de Jesus Cristo; a carência de sacerdotes na Diocese; o culto à Nossa Senhora nas
Paróquias da Diocese; o comunismo; as celebrações da Semana Santa em Propriá; a compra
de votos com bolsas de estudo; a luta dos católicos pela paz; a importância de dar o dízimo; a
campanha da fraternidade; a luta da Igreja para promover as vocações sacerdotais; as
mudanças nos setores litúrgico e teológico da Igreja; o erro cometido por aqueles que
acusavam vários bispos brasileiros de subverterem a ordem política e católica; os ideais da
Teologia da Libertação; os padres redentoristas que atuavam na Diocese; todos os padres que
compunham a Diocese de Propriá e a sua atuação; a evangelização e a colaboração dos leigos
na pastoral católica. Alguns temas foram abordados em mais de um editorial.
Além dos editoriais, muitos textos veiculados em outras edições serviram para
expressar o posicionamento teológico e as opiniões dos produtores de A Defesa. Por se tratar
de um jornal católico, cuja função principal foi promover a formação ou reforçar a
mentalidade cristã dos fiéis, é importante ressaltar que vários dispositivos foram utilizados
para favorecer a civilização dos leitores. Alguns deles merecem destaque:
5 - Poesias, orações e hinos religiosos. Foram produções textuais que, com sua
leveza e graciosidade, podem ter sido usados para envolver os leitores e servir como reforços
aos ensinamentos bíblicos ou àqueles resultantes da postura teológica adotada pelos
produtores do jornal. O que existia em comum entre esses textos era o fato de todos
favorecerem a formação do católico idealizado pelos redatores de A Defesa: um ser humano
que utilizasse a fé não apenas para orientar sua conduta individual, mas também para guiar
suas ações em sociedade, no sentido de ajudar ao próximo e promover a justiça social.
931
Cf. AMBRÓSIO, Frei. Esposa, mãe e anjo. A Defesa, Propriá, n. 366, p. 2-4, 21 set. 1961.
932
Cf. KOSSOLMOLOV, Frei Bono. O comunismo promete a paz e fomenta o ódio. A Defesa, Propriá, n. 375,
p. 2-3, 28 fev. 1962.
933
Cf. SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. O divórcio é inadmissível. A Defesa, Propriá, n. 479, p. 01, 29
set. 1966.
934
Cf. 934 Cf. SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. Cuidado moças. A Defesa, Propriá, n. 454, p. 04, 15 set.
1965.
935
Cf. FRANTZ, Theobaldo. Juventude transviada: cópia carbono de adultos transviados. A Defesa, Propriá, n.
390, p. 02, 28 out. 1962.
que merece especial atenção dos poderes públicos”936 (chama a atenção das autoridades
competentes para a exibição de filmes considerados inadequados para menores de dezoito
anos); “Presidente Castelo Branco: Brasil não tem ditadura”937 (afirma que os militares que
promoveram a “revolução de 1964”, não implantaram no Brasil uma política ditatorial). Esses
títulos são representativos da posição cristã, teológica e sócio-política assumida pelos
produtores de A Defesa.
A maior parte das edições de A Defesa era distribuída entre os assinantes. Existiam
dois tipos de assinaturas: a simples, mais barata, e a do benfeitor. Essas assinaturas eram
pagas anualmente, podendo ser feitas na secretaria do bispado, localizada na Catedral
Diocesana ou com os correspondentes que colaboravam no processo de distribuição do jornal.
Conforme os agradecimentos veiculados no impresso, os benfeitores eram principalmente
comerciantes e bancários, além de outros profissionais liberais. Os anunciantes também deram
sua contribuição para a manutenção do jornal A Defesa.
936
Cf. MENORES no cinema: fato que merece especial atenção dos poderes públicos. A Defesa, Propriá, n. 370,
p. 04, 15 nov. 1961.
937
Cf. PRESIDENTE Castelo Branco: Brasil não tem ditadura. A Defesa, Propriá, n. 471, p. 01, 29 mai. 1966.
Por outro lado, é provável que muitos católicos tenham tido acesso aos
ensinamentos veiculados no jornal através da disseminação oral, realizada principalmente
pelos clérigos.
938
Cf. ARAGÃO, Carlos Roberto Britto. Propriá e sua região: apogeu, crise e perspectivas. São Cristóvão:
UFS, 1997. (Dissertação de Mestrado). p. 59.
939
Cf. ARAGÃO. Op. Cit. p. 62.
A difusão oral das idéias escritas tem sido realizada ao longo dos séculos. De
acordo com Alberto Manguel, mesmo com o domínio da Igreja sobre a cultura letrada, já na
Idade Média era praticada a “leitura ouvida” 940
Não obstante a forma pouco harmoniosa ou mesmo precária como o jornal era
organizado, a parte visual não descuidou de imagens capazes de reforçar os discursos
enunciados. É provável que tais imagens tivessem a função de reforçar as representações
940
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 138.
941
FERREIRA JR., José. Capas de jornal: a primeira imagem e o espaço gráfico-visual. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2003.
942
Expressão utilizada por Marcos Napolitano. NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In:
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto. 2005, p. 236.
Nas edições em que foram discutidos assuntos considerados de grande relevância, alguns
textos giravam em torno do tema central, apresentando idéias semelhantes, se reforçando
mutuamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARAGÃO, Carlos Roberto Britto. Propriá e sua região: apogeu, crise e perspectivas. São
Econômica, 2000.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
FERREIRA JR., José. Capas de jornal: a primeira imagem e o espaço gráfico-visual. São
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MARQUES, Luíz Henrique. Teoria e prática de redação para jornalismo impresso. Bauru –
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
PORTO, Frederico. Dicionário de Artes Gráficas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958.
O objetivo desta pesquisa é evidenciar a utilidade das cartas como fonte para a análise do
Sílvio Romero leitor. Serão analisadas as missivas enviadas a Artur Guimarães, Artur
Orlando, Almáquio Diniz, Magalhães Carneiro, Barão do Rio Branco e Conde Afonso Celso.
Além das cartas, serão utilizadas como testemunhos a literatura de época e sobre a época. Para
interpretar essas fontes serão empregados: a noção de documento/ monumento de Jacques Le
Goff, o método indiciário, de Carlo Ginzburg; e os conceitos de apropriação e representação
de Roger Chartier. A leitura das cartas evidenciou que o intelectual sergipano costumava
trocar materiais bibliográficos com os destinatários, principalmente com Artur Orlando, Artur
Guimarães e Almáquio Diniz; que preferia a leitura matutina; que às vezes precisava
interromper por causa da reinação dos filhos ou das doenças e mortes de familiares; e que até
mesmo necessitava mudar de cidade para poder produzir. Revelou também que ele se
apropriava das leituras ao seu modo, construindo a partir delas suas próprias representações
do mundo social.
943
GUIMARÃES, Artur. Sílvio Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p.
41.
944
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 283.
945
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 26 de novembro de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 303-304.
946
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 2 de fevereiro de 1898. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 234-236.
947
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 22 de julho de 1900. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 236-237.
948
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 12 de junho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 303.
949
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 13 de outubro de 1891. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 279.
950
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de setembro de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 312
951
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de julho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 287-289.
952
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
953
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de fevereiro de 1904. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 294-295.
sobre Direito Penal954. Afirmou ter recebido também os volumes de Guerra e Paz e o do
Greef, mas informou que não teve tempo de lê-los955. Lamentou não ter recebido de folheto
com o parecer sobre a Constituição de São Paulo956. Na correspondência que manteve com
Almáquio Diniz informou que a sua família recebeu a Estética na literatura comparada e
guardou, mas não recebeu Escarpa e Na Imortalidade que também foram remetidos pelo
amigo.957 Afirmou ter recebido livros de Almáquio para apreciar958. Acusou o recebimento da
revista Seara de Rute, editada pelo amigo, e de livro que o mesmo escreveu sobre Domingos
Guimarães959. Em carta enviada a Artur Guimarães agradeceu a remessa do Jornal do
Comércio960.
Prometeu a Artur Orlando o envio de Pátria Portuguesa, de Teófilo Braga e
exemplares de Brasil Social961, de artigos sobre a educação nacional que estava publicando no
Diário de Notícias962, os artigos Haeckelianismo em Sociologia, que publicou na Revista
Brasileira, e História do Direito Brasileiro no Século XVI, que saiu na Revista da Academia
Livre de Direito, a memória Literatura Brasileira que sairia no Livro do Centenário e Vários
escritos de Tobias Barreto963, e um exemplar de História do Brasil através da biografia de
nossos heróis.964 Prometeu ainda enviar Parnaso Sergipano e Martins Pena assim que
saíssem do prelo.965 Em cartas a Almáquio Diniz prometeu enviar o primeiro capítulo das
Zeverissimações e algumas palavras sobre seu livro966. Prometeu enviar também A Geografia
954
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de fevereiro de 1900. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 288-289.
955
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 1 de fevereiro de 1896. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
956
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
957
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz sem data. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de Sílvio Romero.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 247-248.
958
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
959
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 12 de agosto de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 245.
960
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 12 de setembro de 1900. In: GUIMARÃES, Artur. Sílvio
Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p. 83-84.
961
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 3 de fevereiro de 1907. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 304-305.
962
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 13 de outubro de 1891. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 279.
963
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de fevereiro de 1900. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
964
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 14 de outubro de 1908. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 307.
965
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de julho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
966
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 12 de agosto de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
da Politicagem e Castilhismo, obras que já havia remetido, mas que não chegaram ao
destinatário. Lamentou não poder reenviar A Bancarrota por esta estar esgotada967. Em carta a
Magalhães Carneiro perguntou se recebeu Minhas Contradições e se deu um exemplar ao
amigo Prado Sampaio.968
Além da troca de materiais bibliográficos a correspondência de Sílvio permite
entrever alguns hábitos de leitura. Em carta a Almáquio Diniz afirmou que faria “um passeio
matinal” pelos livros do interlocutor.969 Essa informação é um indício de que preferia a leitura
matutina. Esta suspeita é confirmada por Artur Guimarães, que menciona que durante todo o
tempo de convívio nunca viu o mestre ler à noite970.
Através da leitura das cartas também é possível perceber alguns fatores que às
vezes atrapalhavam sua leitura: a agitação dos filhos menores e as reiteradas doenças e mortes
de seus familiares. Na mesma missiva a Almáquio Diniz informa que não fez as leituras
prometidas por causa da reinação de suas crianças: “O prometido é devido; mas é com vagar.
Não é por falta de amizade; é por invalidez e falta de sossego... Seis meninos a berrar!...
Tenha paciência comigo!”971. Em carta a Artur Orlando afirmou que para fugir do barulho
aproveitou as férias do Colégio Pedro II e foi para Campanha, Minas Gerais, a fim de ter
sossego para ler e escrever o terceiro volume da História da Literatura Brasileira972. Em carta
ao referido amigo asseverou que em virtude da doença da sua esposa Mocinha e da doença de
Maria e da morte de Aquiles, seus filhos, não estava fazendo muita coisa; apenas tirou provas
da nova edição de Cantos e Contos Populares do Brasil.973 Em outra missiva informou ao
destinatário que a filha Regina morreu e não estava podendo escrever.974
Sílvio sentia a necessidade de externar para os letrados mais próximos a
apropriação que fazia das leituras. Nas correspondências mantidas com Artur Guimarães,
Artur Orlando e Almáquio Diniz compartilhava freqüentemente essas experiências.
967
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz sem data. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de Sílvio Romero.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 247-248.
968
ROMERO, Sílvio. Carta para Magalhães Carneiro sem data. In: CARNEIRO, Magalhães. Sílvio Romero na
intimidade. Aracaju: Imprensa Oficial, [s.d.], p. 9-10.
969
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
970
GUIMARÃES, Artur. Sílvio Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p.
62.
971
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
972
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de fevereiro de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 308.
973
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 8 de janeiro de 1897. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 283-284.
974
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de fevereiro de 1909. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 308-309.
Nas cartas que escreveu para Artur Orlando entre 1896 e 1908 fez diversos
comentários sobre suas leituras. Em 1896, comentou que estava fazendo a História e
Geografia do Estado de Minas Gerais, um trabalho sob encomenda, e que a leitura de textos
975
sobre os bandeirantes colocaram-lhe “os miolos em água" . Também comentou os textos
produzidos pelo amigo. Em 1903, comentou que gostou muito do artigo que publicou na
Gazeta, ficou "mergulhado no infinito de satisfeito” a ponto de “relê-lo e tornar a ler"976. Em
outra missiva do mesmo ano afirmou que adorou seus três artigos sobre o Japão. Achou-os
977
“magníficos, esplêndidos!” . Em 1904, mencionou que gostou dos textos que recebeu:
"Devorei, deixando tudo que estava fazendo, de lado!”978. Em 1906, comentou a leitura de um
livro do amigo. Informou que estava na página 125 e estava gostando, principalmente da
comparação entre o direito criminal americano e europeu e das discussões sobre a
coexistência do arbitramento, o ensino pan-americano e o direito econômico979. Na carta
seguinte, após terminar a leitura, comentou que no oitavo capítulo gostou das páginas sobre a
economia da família, da cidade e da nação; no nono das páginas sobre direito econômico,
confederação do continente americano; no décimo das páginas sobre o papel dos negros na
América, sobre a participação de Nabuco, Patrocínio, João Alfredo e da Princesa Isabel na
Abolição; no décimo primeiro das páginas sobre o papel da religião e das ciências nas
sociedades modernas, a comparação entre protestantes e católicas e a discussão sobre lógica
racional e lógica emocional. Porém, ficou chocado com a citação de Castelar no começo do
livro “na qual aquele demônio nos molestava com loucas fantasias de latinos sobre
germânicos”. Afirma que se tivesse visto a tempo teria pedido para tirar980. Em 1908, elogiou
os seus livros O Porto e a Cidade do Recife. Achou muito boas as notas sobre clima,
temperatura, salubridade, chuvas, águas e produções naturais, recursos de viver e as
considerações gerais de caráter biológico e social981. Numa última missiva sem data afirma
que leu os textos Zonas geográficas, Flora e fauna brasileiras e Mato Grosso. Afirma que o
975
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 1 de fevereiro de 1896. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
976
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 14 de setembro de 1903. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 292-293.
977
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 11 de outubro de 1903. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 293.
978
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 23 de junho de 1904. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 295-296.
979
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de julho de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 301.
980
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 17 de julho de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 301-302.
981
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 23 de setembro de 1908. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 305-306.
primeiro tem novidades e instrui. O segundo tem ainda mais novidades e instrui mais. O
terceiro contém pontos de vista mais inesperados e é mais instrutivo ainda. Sugere que o livro
deve-se chamar Brasil: o solo e a sociedade ou Brasil: a terra e o povo. De antemão dá-lhe os
parabéns982.
Nas cartas enviadas à Artur Guimarães faz comentários mais minudentes sobre as
suas leituras. Em 1904 escreve:
tendo acabado todas as leituras de preparo para o seu amplo quadro social do
Brasil durante os quatro séculos de sua existência, máxime o último, submeti
a uma leitura rigorosa e de conjunto os originais de seu livro e fiquei
satisfeito. Vamos ser os primeiros a falar não no Le Play, mas na sua bela
escola de análise social, sob a direção de seus discípulos. Meti-me no
inferno, isto é, a fazer um quadro do estado real, positivo, exato, do Brasil,
seu povo, sua cultura, sua vida social e política, segundo os princípios da
escola de Le Play, e estou abarbado. Tive de ler quarenta e tantos livros, e
estou abarrotado...983
Li o Mahan, escritor americano, sobre raça branca e seu futuro e perigos que
corre, e gostei. Estou acabando o Lapouge, que é muito bom para as
questões técnicas na antropologia. Ele e o Ammon são os fundadores da
antropossociologia, ciência que reúne a antropologia à sociologia, une Broca
a Spencer, como a escola de Le Play une a sociologia à etnografia, une
Spencer a Jubainville e outros. Como processo e método para estudar e
classificar povos, a escola de Le Play é melhor. Leva-lhe vantagem a de
Lapouge e Ammon, quando estabelece no fundo de tudo o elemento raça,
que foi sempre a minha velha mania. Há, porém, concordância nas duas
escolas quanto aos resultados: o homo europaeus de Lapouge é o
particularista de Le Play e consortes; e o alpinus e mediterranaeus de
Lapouge são ali os comunários de Le Play984.
Através dessas longas, mas necessárias, citações dos trechos das missivas que
trocou com os amigos, é possível perceber que Sílvio fazia predominantemente leitura
extensiva. Ao entrar em contato com os impressos ele ia comparando os autores, identificando
as semelhanças e diferenças, de modo a selecionar as idéias mais adequadas para forjar as
suas representações do mundo social.
982
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando sem data. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao
Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 313-314.
983
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 1904. In: GUIMARÃES, Arthur. Sílvio Romero de perfil.
Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p. 34.
984
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 14 de fevereiro de 1910. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 241-242.
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CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio
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985
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GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: _______. Mitos, emblemas,
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GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora
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GUIMARÃES, Artur. Sílvio Romero de perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de
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LE GOFF, Jacques. Documento/ monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional/
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MACHADO NETO, Antônio Luiz. Estrutura social da república das letras. São Paulo:
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RABELLO, Sílvio. Itinerário de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
1. INTRODUÇÃO.
A matemática tem sido estudada em seu contexto histórico por muitos autores, e
sob os mais diferentes aspectos, que retratam a trajetória desta ciência em suas diversas
ramificações, enfatizando, sobretudo, a natureza dos conteúdos, sua aplicação e as
transformações ocorridas ao longo da história. A aplicação desta ciência e seu
desenvolvimento relatam, sobretudo, a matemática praticada nos meios acadêmicos, não
levando em consideração a forma e a apropriação de uma matemática contextualizada,
produzida em comunidades de culturas marginalizadas, que utilizam para essa construção
seus conhecimentos de origens social, cultural e étnica.
Para Geertz (1997) as configurações do saber são sempre locais e não podem ser
separadas de seus instrumentos e de seus invólucros. Assim, a análise dos significados surge
de um contexto social onde a interpretação dos símbolos ganha significados, e são como
sistemas de símbolos públicos interpretáveis. Compreende-se assim que as mais variadas
formas de saber estão relacionadas com a observação e a interpretação que cada indivíduo
realiza, o que nos leva a concluir que cada aluno na sala de aula produz significados através
dessas interpretações, fazendo relações com suas informações externas e transformando assim
em conhecimento científico tais interpretações. Ainda segundo Geertz (1989, p.61):
Conforme Weber (apud Poutignart e Fernart, 1998, p. 37), grupos étnicos são:
(...) esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade
de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes,
ou os dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que
essa crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco
importando que a comunidade exista ou não objetivamente.
Podemos então considerar que cada indivíduo faz uma interpretação de suas
experiências e organiza seus significados, daí se esta percepção for descrita por um texto, uma
idéia que implicitamente determine um problema de resolução através dos conhecimentos da
geometria, será conseqüentemente interpretada de várias maneiras, desenvolvendo diversas
concepções. A variedade de interpretações na sala de aula, determinantes para a ampliação
das barreiras interpretativas em virtude da homogeneidade de sentidos presente nesse
ambiente, acarreta, diferentes formas de construção de um significado, presentes no
imaginário de cada indivíduo e decorrentes da pluralidade de culturas presentes na sala de
aula. Tais indivíduos são oriundos de ambientes diversos, com simbologias construídas
socialmente conforme seu contexto histórico e, sobretudo sua localização geográfica. Durad
(2004, p.91) esclarece que:
[...] para sua formação todo símbolo necessita das estruturas dominantes do
comportamento cognitivo inato do sapiens. Assim, os níveis “da educação”
se sobrepõem na formação do imaginário: em primeiro lugar encontra-se o
ambiente geográfico [...], mas desde já regulamentado pelo simbolismo
parentais da educação [...] e das aprendizagens.
Pensando dessa forma, tomamos como objetivo principal desse trabalho analisar a
influência cultural na construção do conhecimento matemático a partir das relações entre a
matemática tradicional, presente nos livros didáticos, e a Etnomatemática, levando em
consideração os significados da prática geométrica executada pela comunidade quilombola de
Irará, representada na construção dos utensílios domésticos, estabelecendo com isso,
concepções relacionadas entre as suas experiências anteriores e as imagens e desenhos
utilizados para a contextualização dos problemas de geometria plana, espacial e métrica.
O tema aqui abordado se condiciona a uma visão importante que temos sobre a
historiografia da matemática no que diz respeito à construção do conhecimento pelas camadas
sociais discriminadas, que têm muitas vezes esta historicidade negada, uma vez que a idéia
refletida nas imagens dos livros não reflete a realidade local e está focalizada no modo de vida
das regiões sul e sudeste do país, refletindo não só uma imagem descontextualizada do ponto
de vista social, como também mantendo uma barreira intransponível entre o universo cultural
dos quilombolas e a proposta de leitura de imagem que privilegia as informações externas.
Essa proposta pode favorecer, para que não se perca a diversidade cultural e manter vivos
seus costumes e tradições, contribuindo para que a relação étnica fortemente estabelecida pelo
grupo também seja preservada como forma cultural e não como um processo de exclusão,
conforme afirma Fredrik Barth apud Poutignart e Fernart (1998, p.188):
Justificamos, pois, a escolha do tema diante das leituras feitas no decorrer dos
nossos estudos, que apontaram a necessidade de verificar até que ponto as imagens grafadas
nos livros de matemática do ensino fundamental, corroboram com a produção dos
significados a partir das figuras geométricas presentes no cotidiano da comunidade,
proporcionando a construção do saber matemático. Buscaremos desenvolver essa pesquisa
baseados na perspectiva de que os alunos da comunidade e os professores, enquanto sujeitos
ativos imersos em experiências próprias de origem cultural, social e econômica distintas e a
conseqüente exposição de figuras geométricas apresentadas nos livros didáticos determinam
possibilidades interpretativas, principalmente na geometria plana e espacial, como esclarece
Souza (1987, p.13):
5. CAMINHOS A PERCORRER...
assim, usaremos estratégias metodológicas que destaquem nem tanto o produto final da
pesquisa, mas que valorizem o processo percorrido até o resultado final da mesma. A
metodologia aplicada será o estudo de caso, porque entendemos ser uma alternativa
metodológica indicada quando estamos interessados em descobrir algo novo nas ciências
sociais e quando queremos enfatizar um contexto específico, no qual a pesquisa se
desenvolve.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. Ed. Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1987.
A sala de recursos Luan Fagundes Domingos, inserida na Escola Estadual Vicente Machado
Menezes, localizada no município de Itabaiana, tem como função apoiar os estabelecimentos
de ensino da Diretoria Regional de Educação Três - DRE’03 que atuam na inclusão de alunos
com necessidades especiais no ensino regular. Esse espaço oferece atendimento educacional
especializado de forma complementar ao processo de escolarização. Assim, foi feita uma
análise das atividades realizadas em sua atuação de 2003 a 2008. Como fontes foram
utilizadas documentos da escola e da sala de recursos e colhidos depoimentos de professores e
alunos. A presente pesquisa teve o objetivo de mostrar como foi realizado o trabalho dessa
sala durante esse período e sua importância para a comunidade regional. Após a coleta de
dados, foi feita análise e constatado que, desde a sua implantação, essa classe tem contribuído
para a inclusão e desenvolvimento de vários alunos, como também para o apoio e orientação a
professores.
comprometimento maior. A partir de 1930, começa-se a criar algumas escolas para esses tipos
de aluno junto a hospitais, nas quais os educadores teriam que corrigir o que consideravam
falhas, como por exemplo, ensinar um surdo a falar.
Em 1962, surge no Estado de Sergipe o Centro de Reabilitação Ninota Garcia
que, segundo Souza foi “pioneiro na atuação com Educação Especial no Estado e o terceiro
do país” (2000, p.73-74).
No século XX duas importantes instituições surgiram no Brasil: a Sociedade
Pestalozzi (1934) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE (1954). Esta
última aparece em Sergipe em 1967. Além disso, foi criado pelo governo federal, em 1973, o
Centro Nacional de Educação Especial - CENESP. Dentre as suas diretrizes encontrava-se a
criação de salas de recursos. E foi neste ano que Sergipe volta o seu olhar para educação
especial: “O Estado só vem assumir a educação especial como sua responsabilidade, em
Sergipe, no ano de 1973, através da solicitação do MEC (Ministério da Educação e Cultura)”
(SOUZA, 2000, p.75).
Em 1977 já se verifica a existência de várias classes especiais implantadas nas
escolas estaduais de ensino regular na capital e no interior. Algumas escolas especializadas
vão surgindo, como a Sociedade de Ensino e Reabilitação Rosa Azul (1979), o Centro de
Educação Especial João Cardoso do Nascimento Junior (1989) e a Associação de Pais e
Amigos dos Deficientes Auditivos - APADA (1991), entre outras. Até então, todas essas
instituições realizavam um trabalho de maneira segregacionista ou, no máximo, promovia
apenas a integração de alunos com necessidades especiais com os considerados “normais”.
Finalmente, a partir da década de 1990, aponta-se a inclusão em vez da integração,
principalmente após a Declaração de Salamanca (1994). E a própria Lei de Diretrizes e Bases
da educação de 1996 ressalta que essa modalidade de educação deve ser oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino.
E é neste mesmo ano que a Escola Estadual Vicente Machado Menezes, do
município de Itabaiana, começa seu trabalho na área da educação especial. Criada em 26 de
dezembro de 1994, através do decreto nº. 15.163, a escola oferece inicialmente o ensino
fundamental e a Educação de jovens e adultos. Quando inicia o trabalho na área de educação
especial, teve primeiro como propósito atender a alunos surdos em classes especiais.
A primeira turma especial iniciou com dez educandos surdos e três anos após a
implantação da educação especial já se encontram matriculados trinta e seis alunos surdos.
Entretanto, com o advento da inclusão fez-se necessário adequar a escola às novas exigências.
Assim, em 2003, foram incluídos nove alunos surdos nas turmas regulares das 3ª e 4ª séries
do Ensino Fundamental. Desta forma, fez-se necessário também inserir uma sala de recursos
na escola para dar o suporte necessário aos alunos surdos incluídos e aos professores. Nesse
sentido, foi criada a sala de recursos Luan Fagundes Domingos, em 2003. A sala recebeu esse
nome para homenagear o aluno surdo Luan que estudou na classe especial e que veio a falecer
em agosto de 2002 com oito anos, devido a problemas de saúde.
A implantação desta sala foi essencial para a inclusão dos alunos surdos, visto que
essa classe é um espaço indispensável para o desenvolvimento dos educandos, pois contribui
com a aprendizagem dos alunos dando o suporte necessário. Sobre isso afirma Alves (2006, p.
15):
Observando o gráfico abaixo, pode-se verificar que desde a implantação desta sala
cresce a cada ano o número de alunos matriculados:
Isso demonstra a importância desta sala para uma comunidade que carece de
atendimento educacional especializado. Entretanto, junto com o aumento de matrículas de
alunos com necessidades especiais diferenciadas surgem também obstáculos para que possa
ser dado o atendimento de qualidade. Entre eles, pode-se destacar a falta de material adequado
para se trabalhar os diversos tipos de comprometimentos, como também a escassez de
educadores com especialização na área. No próprio Plano Nacional de Educação aprovado
pela Lei nº. 10.172 de 2001, pode-se ler alguns desses obstáculos:
Apesar das dificuldades existentes, esta sala tem realizado um importante papel na
inclusão dos alunos especiais, pois o atendimento que é dado aos alunos no horário contrário
tem possibilitado aos mesmos um melhor acompanhamento das aulas, como também uma
melhor aprendizagem. Além disso, os professores da sala de recursos estão sempre à
disposição dos professores da inclusão, realizando um trabalho de colaboração e cooperação.
Sobre isso, confirma Alves (2006, p.15)
Portanto, essa classe não pode se limitar a explicar assuntos e tirar dúvidas de
alunos, mas desenvolver atividades que possibilite o desenvolvimento do educando como um
ser agente, tornando-o independente e capaz dentro das suas limitações. Nesse sentido, há
uma preocupação em desenvolver as potencialidades de tais alunos, que têm participado de
eventos estaduais como as olimpíadas especiais, realizada pela UNIMED (2005 e 2007); o III
festival de educação especial (2005), a III mostra de potencialidades de pessoas com
(Foto: Mônica de Gois Silva Barbosa. Acervo: Sala de recursos Luan Fagundes Domingos)
sistematizando e organizando outros para serem aplicados no segundo semestre, com o intuito
de possibilitar a inclusão dos discentes com necessidades especiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desta classe, alunos especiais tem tido um melhor nível de aprendizagem,
como também uma maior formação integral e os docentes das turmas regulares recebem
constantemente o apoio das professoras desta sala. Portanto, o atendimento especializado em
salas de recursos é indispensável para alunos com necessidades especiais, pois na maioria dos
casos, somente nos espaços de recursos é que esses discentes conseguem concretizar sua
aprendizagem.
Apesar dos obstáculos que surgem a cada momento e dos desafios que aparecem a
cada decisão tomada, verifica-se que as tentativas são válidas para proporcionar um ambiente
mais inclusivo. Com as sementes que são plantadas e as folhas que desabrocham, mesmo
diante das provações que existem, torna-se gratificante para educadores que atuam na sala de
recursos colherem os frutos e apreciá-los. Torna-se também prazeroso para alunos sentirem-se
inseridos em um ambiente que tenta acolhê-los e incluí-los.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Fátima. Inclusão: muitos olhares, vários caminhos e um grande desafio. 3 ed. Rio de
Janeiro: Wak Editora, 2007.
BRASIL, Presidência da República. Lei nº. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano
Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília: 2001.
A última década do século XX foi marcada por discussões acerca do sistema educacional
brasileiro, questionava-se acerca da qualidade do ensino oferecido nas escolas e sobre
qualificação dos professores, principais promotores do processo ensino-aprendizagem. No
início da década de noventa essas discussões aumentaram, já não dava para esperar, era hora
de rediscutir as políticas educacionais a fim de promover uma educação de significativa
qualidade. Após vasta discussão chega-se a algumas conclusões: é necessária uma
reformulação no processo de formação inicial dos professores, a promoção da formação
continuada e o alargamento da autonomia na sala de aula, isso para que ele possa avaliar a
necessidade de seus alunos e tomar iniciativas efetivas na promoção do processo ensino-
aprendizagem. É dentro deste processo de tantas modificações e transformações do sistema
educacional que se traçará, através da revisão bibliográfica, uma análise do papel social dos
cursos de formação de professores, analisando se estes são formadores de docentes capazes de
desenvolver a consciência crítica, responsável pela mobilidade social, ou se apenas
“adestram” reprodutores de classe.
INTRODUÇÃO
Toda esta tentativa de se criar uma ideologia não passa de uma armadilha do
capitalismo moderno que vem através de seu discurso negar a possibilidade de uma
identificação classista, negando ao trabalhador sua sociabilidade e sua subjetividade. A
história do capitalismo é a história da reestruturação produtiva, pois desde os tempos passados
o capitalismo teve que freqüentemente rebelar-se sem cessar e expropriar os trabalhadores,
tanto em relação aos instrumentos de produção quanto ao conhecimento e quanto à sua
condição enquanto classe social.
Como podemos observar a luta de classes não deixou de existir, mas apenas se
travestiu de uma roupagem moderna; essa luta de classe se tornará inteiramente clara se
observarmos as atuais privações que a classe operária passa devido à reestruturação produtiva,
pois o que observamos é que o capitalismo operará diversas mudanças no setor de trabalho o
que fará com que se tenha a necessidade de se limitar os gastos com o social, e assim sendo
deixa-se de se investir verba estatal em educação, moradia e saúde.
As mudanças operadas pelo capitalismo reestruturarão todo o cenário social, pois o
Estado passará abandonar o mesmo e torna-lo-á um terreno de caça mercantil, isso porque
para o capitalismo tudo deve ser submetido à mercantilização.
986
Texto extraído do artigo Reestruturação produtiva de Edmundo Fernandes Dias
Portanto, são computados mais alunos para um mesmo professor, que atua
em maior número de turmas. Esse é um elemento de forte incidência sobre a
precarização do trabalho do professor, o qual, para preencher uma carga
horária de trabalho que lhe forneça subsistência, precisa trabalhar com um
volume de cerca de 600 jovens!989
CONSIDERAÇÕS FINAIS
989
Dado extraído do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREITAS, Luiz Carlos de. Projeto histórico, ciência pedagógica e didática. Revista Educação e
Sociedade. Campinas, SP, n 27, p.122-140, 1987.
______. Uma pós- modernidade de libertação: reconstruindo as esperanças. São Paulo, Autores
Associados, 2005.
GASPARIN, João Luiz. Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 2 ed. São Paulo, Autores
Associados, 2003.
MÉSZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2003.
Este estudo se propõe analisar a contribuição da Escola de Trabalhadoras Cristãs (ETC) para a
formação das moças protestantes de confissão batista a partir das práticas escolares durante o
período de 1917 a 1952. A pesquisa investiga também os antecedentes históricos desta
escola, apoiando-se em fontes bibliográficas e documentais como: atas, prospectos, livros,
revistas, jornais, dissertações, entre outras. Os resultados apontam que, no início do século
XX, um grupo de missionárias batistas norte-americanas sentiu a necessidade de organizar um
plano educacional, para ministrar o ensino pedagógico e religioso. Desde então, a escola
apresentou-se como uma estratégia fundamental para a formação da mulher que atuaria como
professoras das escolas anexas no ensino primário, educadoras religiosas nas igrejas e esposas
de pastores. Constatou-se também a presença do Instituto de Educação Religiosa (IBER), que
desde 1916 preparava moças para o ensino e evangelização, no Rio de Janeiro. Neste período
atuaram como diretoras da “Casa Formosa,” como era conhecida, as seguintes missionárias
batistas norte-americanas: Graça Taylor (1917-1919); Paulina White (1919-1924); Essie
Fuller (1926-1932); Mildred Cox Mein (1933-1945); Maye Bell Taylor (1947 -1952).
990
As escolas de primeiras letras correspondiam ao início da escolarização. Seu currículo estava voltado para o
ensino dos rudimentos da escrita, da leitura, da Aritmética e dos princípios da Doutrina Cristãs. FREITAS,
Anamaria Gonçalves Bueno. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do século XX.
Campinas: UNICAMP, p. 33. (Tese de Doutorado).
991
MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil de 1907 até 1935. Vol. II. Rio de Janeiro:
Casa Publicadora Batista, 1984. p. 15.
992
Jane Filson Soren era norte-americana, nascida em Kentucky, casada com um brasileiro, Francisco Fulgêncio
Soren.
993
BERRY, Lois Roberts; BERRY Edward Grady. IBER: uma porta aberta para o serviço cristão. Rio de
Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicação, 1986. p. 37.
994
SELLARO, Leda Rejane Accioly. Educação e Religião: Colégios protestantes em Pernambuco na década de
1920. Recife: UFPE. 1987. p. 82 (Dissertação de Mestrado)
995
SELLARO, Leda Rejane Accioly. Educação e Religião: Colégios protestantes em Pernambuco na década de
1920. Recife: UFPE. 1987. p. 82 (Dissertação de Mestrado)
996
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.17.
997
HACK, Osvaldo H. Protestantismo e educação brasileira: presbiterianismo e seu relacionamento com o
sistema pedagógico. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, p. 64 -65.
Amorim. A ETC estava destinada a preparar as jovens que pretendiam trabalhar no serviço de
Deus e se dedicar ao magistério nas escolas batistas. Outra função da instituição era formar
moças para trabalhar nas diversas instituições batistas: hospital, escola, igreja, Casa Batista da
Amizade e com o serviço social.
Este projeto recebeu apoio das mulheres batistas do Brasil, e da União Feminina
Missionária Batista do Sul dos Estados Unidos da América, que em 1935, doou a quantia de
dez mil dólares, para a construção de um novo prédio; com dois pisos, favorecendo ainda
mais, o crescimento da instituição e seu reconhecimento como uma escola de qualidade e
prestígio. Além de despertar outras jovens, residentes nos vários Estados do Brasil e do
estrangeiro, para se tornarem alunas.
A ETC vivenciou algumas mudanças educacionais que favoreceram a melhoria do
programa educacional. O primeiro mecanismo estratégico para dar sustentação, foi promover
a instrução primária capacitando as suas alunas para o exercício do magistério.
Os relatos encontrados nas fontes deixadas por Mein atestam parte das
características do ensino da época em Pernambuco.
998
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 56.
999
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.20.
1000
As duas alunas foram convidadas para lecionar no departamento primário do Colégio Americano Batista.
Silva assumiu posteriormente a direção. Em 1922, depois de ter realizado um curso de aperfeiçoamento, nos
Estados Unidos da América, Josefa criou o Jardim de Infância que segundo Mildred Cox Mein se tornou modelo
para todos que estavam sendo organizado. Casou-se com Euclides Meneses, mas continuou exercendo o
magistério até seu falecimento.
1001
Anísia exerce o magistério com professora do Colégio Americano Batista, posteriormente seguiu para
Salvador. Fundou várias escolas anexas às igrejas e no interior da Bahia.
1002
MESQUITA, Antônio Neves. História dos Batistas no Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1984. p. 166-167.
1003
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.56.
1004
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.61.
1005
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.61.
Lopes convidava todos os batistas para participar deste movimento tão importante
para a educação, em seguida, apresentou uma proposta delineando dessa forma:
Desde sua criação a ETC, oferecia as suas alunas uma educação integral.
Conforme explica Nascimento:
1006
LOPES, Luciano. A grande campanha de educação. O Jornal Batista. Ano XLVI, Rio de Janeiro, 01 de
agosto de 1946, nº 31.
1007
LOPES, Luciano. A grande campanha de educação. O Jornal Batista. Ano XLVI, Rio de Janeiro, 01 de
agosto de 1946, nº 31.
1008
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.13.
1009
FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do
século XX Campinas: UNICAMP, p. 33.
1010
NASCIMENTO, Ester Fraga Villas Boas Carvalho do. Educar, curar, salvar: uma ilha de civilização no
Brasil tropical. P. 109
1011
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 24.
1012
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 65.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERRY, Lois Roberts; BERRY Edward Grady. IBER: uma porta aberta para o serviço
cristão. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicação, 1986.
MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil de 1907 até 1935. Vol. II.
Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1984.
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs.
(1917-1967). Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966.
NASCIMENTO, Ester Fraga Villas Bôas Carvalho do. Educar, curar, salvar: uma ilha de
civilização no Brasil tropical. Maceió:UFAL. 2007.p.33.
DOCUMENTOS
Esta pesquisa visa demonstrar que as atividades desenvolvidas pelas famílias, para a
satisfação das necessidades de seus membros, compreendem processos administrativos
complexos que envolvem relações de interação entre a Economia Familiar Doméstica e o
Gênero. Dessa forma esse trabalho busca fortalecer o campo da Economia Doméstica, em
função de abordagens amplas, do avanço do movimento feminista, do desenvolvimento de
capacitação científica de profissionais da área e da conceitualização da teoria de gênero, para
explicar as mudanças socioculturais e econômicas entre mulher e homem na sociedade. A
partir daí serão utilizado dados de revistas, entrevistas, documentos, relatos e conceitos. Este
artigo visará assim mostrar que a Economia Familiar Doméstica não tinha sua história
própria, sendo confundida com a história da humanidade, que era baseada no trabalho
conjunto da família, ou seja, homem, mulher, criança, jovens e velhos, ocupando o mesmo
espaço na sociedade. Como também a referida pesquisa irá apresentar a contribuição do
feminismo para a ciência, bem como para todos os campos de conhecimento, incluindo a
Economia Doméstica e as abordagens inovativas no pensar epistemológico, metodológico,
teórico e ético que estão ocorrendo em resposta às questões feministas.
INTRODUÇÃO
Essa teoria postula que o gênero é uma interpretação cultural das diferenças
biológicas entre a mulher e o homem; que é construída por meio de processos socioculturais,
criando um universo simbólico que fica institucionalizado na estrutura e nas relações sociais e
refletido nas vivências e experiências diferenciadas de pessoas de ambos os sexos. Sendo uma
construção sociocultural, o gênero não tem conteúdo fixo, mas é construído e reconstruído por
processos socioculturais através da história e toma variadas formas diferentes e nos extratos
sociais distintos, na mesma sociedade.
O conceito de gênero fornece ferramentas novas e incisivas da análise da vida
sociocultural e de seus “produtos” (instituições, símbolos, teorias,etc.), oferecendo a
possibilidade de produção de um conhecimento mais detalhado e abrangente da realidade em
que vivemos.
Para Dwyer e Bruce em análises de gênero, aplicadas a estudos de economia
familiar, mostram que:
Doméstica na qual se produzem e se consomem bens e serviços com valor de uso, com troca
em espécie e afeto.
Ao falarmos de Economia Doméstica, estamos falando também daquelas
atividades ligadas ao produzir e ao reproduzir a vida, nas quais estamos todos envolvidos.
Esse envolvimento sugere uma familiaridade natural das pessoas com as questões domésticas,
seus problemas e procedimentos para a satisfação das necessidades, a qual não é verdadeira.
Em parte, essa suposta familiaridade também explica o “status” da Economia Doméstica na
sociedade, pois há tendência de se considerarem sem importância ou corriqueiras aquelas
coisas que nos cercam e que fazem parte do cotidiano. Essa pretensa familiaridade com as
estratégias, para satisfazer às necessidades básicas, tem levado todos, dentro e fora da
academia, a uma simplificação excessiva do que constitui, de fato, a administração de
recursos na família, escondendo a complexidade do cotidiano nas cidades, em virtude da
especialização das instituições.
Em geral, a produção e o consumo na família estão estreitamente relacionados
com o seu poder aquisitivo e com a situação econômica da sociedade. Em épocas de declínio
ou de estagnação da economia, com retração da oferta de emprego, verifica-se intensificação
nas atividades domésticas. Se o poder aquisitivo da família cai, quer por desemprego, quer
pela desvalorização dos salários ou aumento dos preços, verificam-se duas conseqüências
imediatas: a ativação da produção doméstica e a modificação no padrão de consumo. A
economia familiar tem a função importante de absorver os desempregados da economia de
mercado por meio da produção doméstica, indispensável para a manutenção do grupo familiar
e, portanto, para a sociedade.
Assim a invisibilidade da economia familiar resulta não apenas da exclusão social
da mulher no trabalho, como também da falta de remuneração. Ainda que se reconheça a
eficiência da Economia Doméstica e das pessoas que fazem essa economia, ela é desprezada
por não ser um trabalho, uma atividade remunerada. Para BURNS (1975), a desvalorização do
trabalho doméstico reside em sua não-remuneração. Segundo esse autor, a economia familiar
fere um dos artigos intocáveis do credo do capitalismo: os indivíduos trabalham (produzem)
em troca de dinheiro.
Diante de tudo que foi exposto podemos dizer que a Economia Familiar no
âmbito da Economia Doméstica não tem sua história própria, ela se confunde com a história
da humanidade. O modo de produção na sociedade pré-capitalista e no início do capitalismo
era baseado no trabalho conjunto da família, isto é, homem, mulher, criança, jovens, velhos,
parentes e não-parentes que constituíam uma " household", não separado da ordem pública,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BADIR, Doris. Research: exploring the parameters of home economics. Canadian Home
Economics Journal 41 (2). Spring, 1991, p.. 65-70.
BURNS, Scott. The household economy: its shape origins and future. Boston, Bacon Press,
1975. 225p.
DWYER, D. & BRUCE, J. A home divided: womwm and income orientationin the third
world. Stanford, Cal. Stanford university Press, 1993.
GALBRAITH, John Kenneth. The economics & the public purpose. Boston, Houghton
Mifflin Company, 1973. 334p.
REID, M. The economics of household production. Nem York, John Wiley and Sons, 1934.
Este artigo é um recorte de uma pesquisa, fruto da dissertação de mestrado que se encontra em
fase de investigação sobre o Jardim de Infância José Garcez Vieira, inaugurado em 10 de
novembro de 1944. O presente trabalho tem como objetivo aprofundar os estudos sobre
História da Educação Feminina em Sergipe, procurando desenvolver uma análise sobre os
caminhos traçados pela mulher para chegar ao magistério e sua contribuição para o
desenvolvimento educacional da sociedade, verificando, especificamente, de que forma se deu
essa influência no Brasil e em Sergipe. As fontes utilizadas para análise dessa trajetória foram
documentos oficiais e institucionais, como atas, ofícios, decretos, entrevistas e depoimentos
de ex-professoras, registros da imprensa e diplomas das respectivas professoras. Os aportes
teóricos da Nova História Cultural possibilitaram subsídios para identificar que as moças
sergipanas no início do século XX eram encaminhadas para escolas particulares para
realizarem o ensino primário e, em seguida, grande parte para a Escola Normal Rui Barbosa,
que formou grande parcela de moças de famílias sergipanas.
INTRODUÇÃO
Nas duas últimas décadas do século XX, o campo da História da Educação, sob a
influência da História Cultural, sofreu uma revolução no que se refere aos temas, objetos,
fontes e contornos teórico-metodológicos.1013
1013
CASTANHO, Sérgio. 2000. Questões teórico-metodológicas de História Cultural e Educação. IN: Anais do
1º Congresso Brasileiro de História da educação. Rio de Janeiro. SBHE. CDROM.
1014
LOPES, Eliana Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da educação. Rio de Janeiro
DP&A. 2001.
1015
VIDAL, Diana Gonçalves e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. “História da Educação no Brasil: a
constituição histórica do campo (1880-1970)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº45, p.37-
70. 2003.
1016
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Historiografia educacional sergipana: uma crítica aos estudos de
História da Educação. São Cristóvão, UFS, 2003, p.72. (Coleção Educação é História, 1).
sobre História da Educação feminina em Sergipe, procurando desenvolver uma análise sobre
os caminhos traçados pela mulher para chegar ao magistério e sua contribuição para o
desenvolvimento educacional da sociedade, verificando especificamente de que forma se deu
essa influência no Brasil e em Sergipe. As fontes utilizadas para análise dessa trajetória foram
documentos oficiais e institucionais como atas, ofícios, decretos, entrevistas e depoimentos de
ex-professoras, registros da imprensa e diplomas das respectivas professoras. Os aportes
teóricos da Nova História Cultural possibilitaram subsídios para identificar que as moças
sergipanas no início do século XX eram encaminhadas para escolas particulares para
realizarem o ensino primário e em seguida grande parte para a Escola Normal Rui Barbosa,
que formou grande parcela de moças de famílias sergipanas.
Sendo assim, a história de vida das entrevistadas possibilitou a compreensão da
realidade vivenciada no cenário educacional sergipano em meados do século XX. Assim,
como lembra Catani,1017 o fato de narrar a sua vida favorece a constituição da memória
pessoal e coletiva, inserindo o sujeito professor “nas histórias” e possibilitando, a partir desse
exercício, a compreensão e renovação de suas práticas.
Ainda que cada depoimento contenha a sua particularidade, é possível identificar
semelhanças nas informações transmitidas devido ao fato das educadoras dividirem o mesmo
contexto sócio-histórico, conforme pode ser acompanhado posteriormente.
As trajetórias dessas professoras foram marcadas por uma visão idealista da
educação, percebida como um sacerdócio, o que é expresso em referências como “amor”,
“vocação” e “doação”. O ser professor nesse período histórico está associado à noção de
mestre sábio e respeitado.
A idéia de compreender a memória de professoras da pré-escola em Aracaju tem
como pressuposto a necessidade de ampliar os estudos sobre os professores sergipanos, e
analisar a sua contribuição no cenário educacional em Aracaju.
Foram realizadas entrevistas com as ex-professoras, através dos instrumentos
metodológicos da pesquisa biográfica semi-estruturada através da coleta dos depoimentos e da
análise documental, procurando perceber as concepções e práticas do magistério, e, seus
reflexos na formação educacional.
1017
CATANI, Denice Bárbara. Práticas de formação e ofício docente. In: BUENO, Belmira Oliveira; CATANI,
Denice Bárbara; SOUSA, Cynthia Pereira de. A vida e o ofício dos professores. São Paulo: Escrituras. 1998.
aparecerão como parte de sua natureza, o que vão colocá-los como mais capazes de violar os
condicionamentos que lhes são apresentados. Enquanto para as mulheres, consideradas
dóceis, frágeis e menos capazes de ousar, os elementos da educação são mais determinantes e
cobram delas um comportamento submisso, entendido como constitutivo de sua condição
feminina.
A educação feminina para alguns pais era entendida como aprender a ler e
escrever, dentro dos lares e que o ensinamento oferecido aos meninos seria diferente. A ida
dessas jovens ao convento significava aprender a bordar, coser, culinária, ler, escrever e
contar, latim, música e história sagrada, era uma educação que preparava as jovens para o
casamento em idade de tenra mocidade.
O movimento de feminização do magistério correspondeu a uma ampla
transformação social relacionada ao projeto modernizador. Simultaneamente à urbanização e
industrialização do país, aumentaram as possibilidades de trabalho para os homens, as
expectativas de escolarização da população, a presença dos imigrantes e a ascensão de grupos
sociais médios. Os homens foram, então, abandonando paulatinamente o magistério. Aqueles
que ficaram foram sendo remanejados para funções mais altas como a de inspetores escolares
e diretores para disciplinas específicas, de caráter mais técnico, justificando-se, desse modo a
diferenciação salarial do corpo docente relativos ao gênero. O discurso sobre a incapacidade
feminina, “[...] sua pouca energia e grande fragilidade física e intelectual”1019, descredenciava,
pois, as mulheres a ocupar cargos mais altos na educação e as legitimava a ensinar disciplinas
atribuídas ao gênero feminino, em especial, as prendas domésticas1020.
A profissão docente no Brasil vem passando por grandes transformações desde o
século XIX, quando surgiram as primeiras Escolas Normais incumbidas da formação de
professores para atuarem nas escolas primárias do país. Desde o período imperial, já existia o
propósito de formar o professor para o magistério "primário", sendo que o governo imperial
responsabilizava-se pela manutenção dos cursos superiores então existentes e reduzidos e
atribuía às províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário.
A criação das escolas normais, nas décadas de 30 e 40 do século XIX, representou
nova etapa no processo de institucionalização da profissão docente, o qual foi marcado pela
restrição do controle estatal e pela busca de melhoria do estatuto sócio-profissional dos
docentes. Os primeiros decretos de criação de Escolas Normais surgiram em vários pontos do
país: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Nem todas essas instituições foram
logo inauguradas.
1019
ALMEIDA, Jane. Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998, p.197.
1020
NOVAES, M. E. Professora Primária: mestre ou tia. 4ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.
1021
FREITAS, Op. Cit, p.52.
1022
NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju: Secretaria
de Educação e Cultura do Estado de Sergipe; Universidade Federal de Sergipe, 1984, p.47.
1023
FREITAS, Op. Cit, p.149.
1024
NUNES, Maria Thétis. Op. Cit, p.244-245
1025
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:
Vozes, 1997.
1026
LOURO, Op. Cit, p.95
desenvolvimento de sua prática. Behrens1027 cita dois principais desafios que os professores
têm que transpor, “um relaciona-se ao profissional, que enseja um realinhamento do seu papel
como docente; o outro se relaciona ao âmbito pessoal (...) na reconstrução de crenças, valores
e convicções”. A primeira etapa desse desafio tem sido mais comentado, mas o segundo que
se refere ao aspecto pessoal, na maioria das vezes é esquecido, como se o professor não
tivesse a sua prática direcionada também por este aspecto. Nóvoa comenta a respeito da
dimensão pessoal e profissional no processo de formação docente.
1027
BEHRENS, M. A. Formação continuada de professores e a prática pedagógica. Curitiba: Champagnat, 1996,
p.95.
1028
NÓVOA, Antônio. A formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, Antônio. (org.) Os
professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995, p. 25.
1029
DANTAS, José Ibarê Costa. O tenentismo em Sergipe. 2. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade Editora, 1999,
p.48.
Barbosa. Além de Escola Superior de Serviço Social, contava o Estado com as Faculdades de
Filosofia, Ciências, Letras, Ciências Econômicas, Direito e Química, direcionando para essas
instituições a aspiração das classes média e alta.
As moças sergipanas no início do século XX em geral eram encaminhadas para
escolas privadas, que funcionavam em regime de internato ou semi-internato, para realizarem
o ensino primário e posteriormente a maioria delas seguiam para a Escola Normal Rui
Barbosa, que formou várias gerações de intelectuais sergipanas.
Assim, em Sergipe, a presença das mulheres no magistério foi marcante, assim
como em outros setores do mercado de trabalho como nas indústrias e nas atividades
relacionadas com a esfera doméstica. A partir das primeiras décadas do século XX, mais
precisamente na década de 1960, vamos perceber uma maior presença das mulheres em
alguns campos profissionais, mas em outras áreas profissionais ainda era difícil o acesso ao
trabalho feminino.
1030
BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 1914-1940.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 180,181.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DANTAS, José Ibarê Costa. O tenentismo em Sergipe. 2. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade
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FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de. Educação, trabalho e ação política: sergipanas
no início do século XX. Campinas: Faculdade de Educação. 2003. (Tese de Doutorado).
LIMA, Ana Paula dos Santos. Uma mestra dedicada: trajetória da professora sergipana Lúcia
Melo da Silva e os seus 64 anos de trabalho prestado à educação em Sergipe. In: Anais do III
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1).
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Aracaju: Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe; Universidade Federal de
Sergipe, 1984.
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In: Anais do III Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica: formação,
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São Paulo, v.23, nº45, p.37-70. 2003.
INTRODUÇÃO
Patriarcal. A família patriarcal, no período colonial como um todo, era rigorosa e autoritária
para com a mulher, impossibilitando-a de desenvolver-se em todos os sentidos, execrando-a
aos limites do âmbito doméstico como um ser de segunda categoria, cuja única função seria a
procriação, a produção de seres humanos.
de Catarina Paraguaçu, que parece ter sido a primeira mulher brasileira a aprender a ler e
escrever. Não se sabe ao certo, conforme diz Ribeiro (2007), se seria filha ou esposa de Diogo
Álvares Correa, o Caramuru, que já se encontrava na Bahia, e fora incumbido pelo Rei de
Portugal a auxiliar Tomé de Souza no processo de colonização portuguesa no Brasil. No
entanto, no “Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade”, organizado por
Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil, estes esclarecem que Catarina Paraguaçu era uma
índia tupinambá, filha do morubixá Taparica e tinha o nome indígena Guaibimpará. Presume-
se que ela tenha nascido em 1503. Casou-se com Diogo Álvares Correa, que chegou ao Brasil,
mais precisamente no litoral da Bahia, em 1510, vítima de um naufrágio, quando se encontrou
com Guaibimpará, a qual intercedeu junto a seu pai a fim de que este poupasse a vida de
Diogo Álvares Correa. Ademais, acrescentam os autores anteriormente citados sobre a
importancia e as representações desse casal para a historiografia brasileira, senão vejamos:
[...] Catarina Paraguaçu foi uma figura histórica; representou a união das
duas culturas e sua vida deu origem a inúmeras imagens criadas em torno
desse processo civilizatório, especialmente por autores do século XIX.
Consolidou-se na memória construída em torno das mulhrres indígenas
como uma das mães do povo brasileiro (Scumaher; Brasil, 2000, p.144-
145).
Nessa época, século XVI, a colônia brasileira tinha poucas mulheres portuguesas.
Dessa forma, seria necessário que fossem enviadas, com urgência, mulheres brancas para a
Colônia. Ademais, decorrente de tal fato foi criado o mito da mulher branca. Assim, o
preconceito em relação às mulheres de outras etnias aumentou com a vinda da mulher branca
portuguesa, independentemente de sua procedência. Poderia ser ladra, alcoólatra, prostituta ou
portadora de debilidade mental, pois [...] na colônia brasileira elas seriam responsáveis pela
perpetuação do domínio europeu, por meio da procriação (RIBEIRO, 2007, p.82).
As primeiras escolas na colônia foram criadas pelos jesuítas. Entretanto, a
educação não era um bem que as pessoas valorizassem naquela época. Apesar de os padres
deterem muito poder, eles não enfrentavam o senhor patriarcal, que era o dono de tudo:
terras, escravos, inclusive da mulher e filhos. Contudo, os padres usaram de muita delicadeza,
mas não deixaram de ensinar a religião às crianças, nas escolas que fundaram, e as mulheres
ministravam suas lições nas capelas da Igreja Católica. Assim, a mulher discriminada em
todos os espaços encontrou na Igreja uma espécie de refúgio. Entretanto, a Igreja pregava que
a mulher deveria obedecer não só ao marido, mas também à religião, como pregava São Paulo
(CARDOSO, 1981). Logo, a Igreja nesse período, pode-se afirmar, muito contribuiu para que
A Igreja teve sua grande parcela de responsabilidade, contribuindo para que tal
quadro fosse mantido, na medida em que reforçou a reclusão da mulher no mundo privado e
em contrapartida, a libertinagem dos senhores no trato com as escravas. De acordo com essas
autoras, para manter a estabilidade estrutural da família patriarcal, a condição de vida da
mulher não poderia ser modificada. Para tanto, deveria ser acatada a filosofia da rejeição das
tentações da carne, e ainda, submissão aos inúmeros sacrifícios, através dos quais se
purificaria o espírito para alcançar a tão almejada salvação. As mulheres brancas, pela
situação de subalternidade e submetidas aos seus maridos e senhores, não tinham o direito de
reclamar das cópulas extraconjugais que eles praticavam com as escravas no âmbito
doméstico. Contudo, não deixavam de assumir a posição de senhoras e descontavam nas
escravas, duplamente exploradas, infringindo-as a castigos variados. “Se a beleza dos dentes
das negras incomodava a desdentada sinhá, estas mandavam arrancá-los” (Quintas, 2001, p.
125). O que se observa, então, é que, diante da impossibilidade de enfrentamento do jugo
patriarcal, as senhoras vingavam-se nas escravas, que se encontravam sob sua orientação e
administração nos afazeres domésticos, assim se a [...] a escrava adoçava a boca do senhor e
recebia chicotada a mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam
destinadas à mãe de família (FREYRE¹ apud QUINTAS, 2001, p. 210). O Estado também
contribuiu para a manutenção de tais idéias. Dessa feita, a autoridade inquestionável do
patriarca, os dogmas impostos pela Igreja e as normas determinadas pelo Estado
representaram as bases de sustentabilidade do domínio sobre a mulher, cujo mundo era
Assim, a pouca religiosidade de algumas freiras era explicada por diversos fatores,
como a falta de vocação para a vida monástica, a pouca idade e os motivos que levaram seus
pais a interná-las no convento contra a vontade delas. Dessa forma, diz essa autora, os
mosteiros eram considerados “prisões místicas,” que serviam tanto para a família como para
as decisões do Governo. Assim, as moças que infringiam as normas e os preceitos morais e as
esposas que, supostamente, traíam seus maridos eram, também, encaminhadas para esses
ambientes. Dessa forma, estes representaram, além da educação formal, o reflexo das
questões econômica e comercial, pois de certa forma os conventos desempenharam o papel de
banco, pois na época, no Brasil Colônia, não havia bancos.
para a mulher. De acordo com Cardoso (1981), em relação às primeiras professoras, algumas
começaram o ensino equivalente às primeiras séries do “primário”, atualmente ensino
fundamental, sem programa e sem amparo legal. A iniciativa de estudar não partia
propriamente das moças, como é possível inferir dos registros que as professoras fizeram em
seus diários, onde constava que [...] as alunas mostravam-se indiferentes e eram verdadeiras
selvagens, que chegavam a se comportar com intenso nervosismo, obrigando as professoras a
trancá-las num armário para se acalmarem (CARDOSO, 1981 p. 16).
A situação da educação formal da mulher durante o período colonial permaneceu,
em sua totalidade, precária, quase inexistente. Entretanto, somente com a instalação do
Governo Imperial, após a Proclamação da Independência, ocorreram mudanças significativas,
principalmente no que concerne à educação da mulher. Na constituição de 1823, que não
chegou a ser promulgada ou outorgada, já havia propostas para a educação da mulher. No
entanto, tal idéia apenas foi cristalizada na Constituição de 1824, ocasião em que a educação
escolar passou a ser uma preocupação da Assembléia Legislativa, que propôs o ensino
obrigatório para as meninas. No entanto, as professoras não precisavam ensinar Geometria
para as meninas, que deveriam estudar somente as quatro operações.
As professoras das meninas, pelo fato de terem sido dispensadas de ensinar
Geometria, ganhavam menos que os professores dos meninos, apesar de a lei dispor que os
salários devessem ser iguais. Na legislação de 1827, as mestras ficaram desobrigadas desse
ensino, o que representou uma diferenciação na grade curricular das escolas femininas e
masculinas (SANTOS & TORRES, 2001). No entanto, diz Saffioti (1976) que:
Somente se apresentou algum avanço a partir de 1827, com a publicação dessa Lei
de Instrução Pública, determinando que [...] se estabelecessem escolas de ‘primeiras letras’,
as chamadas ‘pedagogias’ em todas as cidades, vilas e lugarejos mais populosos do Império
(LOURO 2000 p.,445). Assim, segundo dispõe o art.11 da citada lei, as meninas passaram a
ter direito à instrução formal em Instituição Escolar, embora com certas restrições, “Artigo11
– Haverá escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas, em que os Presidentes, em
Conselho, julgarem necessário este estabelecimento”.(Lei de 15 de outubro de 1827).
Entretanto, a realidade estava muito distante. Ler, escrever e saber as quatro
PALAVRAS FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Jane Soares de. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? Campinas:
Editora Associados, 2007.
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MORAES, Márcia. Ser humana: quando a mulher está em discussão. Rio de Janeiro: DP&A
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NUNES, Maria Thétis. História da educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
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Nabuco, Editora Massangana, 2000.
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sua vinculação ao magistério. In: FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho. Ensaios
sobre gênero e educação. Salvador: UFBA, Pró-Reitoria de Extensão, 2001.
SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, E.V. Dicionário das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.
As histórias de vida são hoje utilizadas com bastante freqüência na antropologia, sociologia,
psicologia e história, em conseqüência da crescente importância atribuída à utilização da
memória oral e dos documentos pessoais na investigação em ciência sociais. Esta pesquisa
tem como objetivo identificar, inicialmente, os principais educadores da microrregião de
Itabaiana-Sergipe, suas influências e contribuições para a história da profissão docente no
Estado. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas da
pesquisa em educação. O referencial teórico utilizado está relacionado aos autores das
abordagens biográficas procurando situar-se no plano metodológico de duas novas
metodologias: a da etnobiografia e das histórias de vida cruzadas. Por fim, trata-se de um
estudo em fase de desenvolvimento que disponibiliza aos pesquisadores e aos estudantes
envolvidos um confronto com duas tarefas distintas, embora complementares: em primeiro
lugar, recolher a documentação e, em seguida, explorá-la, fazendo a síntese dos elementos
coletados e retirando deles o seu significado para a história da profissão docente e do
pensamento pedagógico sergipano.
1- PONTO DE PARTIDA
Autores com Bertaux (1980) e Pujadas (1992) vêm discutindo a complexidade das
abordagens biográficas, destacando a reviravolta provocada pela mudança de análises sobre a
vida social de populações humanas. Tais análises focalizavam as dimensões pessoais sem
desarticulá-las da influência do social sobre a vida dos sujeitos estudados. Destaca Negré
(1986) que, inicialmente, a abordagem biográfica procura analisar a vida urbana e os
problemas da cidade. Assim, as abordagens biográficas foram se constituindo como
referências importantes no tratamento de questões de problemáticas epistemológicas, culturais
e sociais variadas. O caráter interdisciplinar dos métodos biográficos é considerado por Finger
(1984) como sendo fundamental para as inúmeras possibilidades de leituras sobre uma
considerável gama de aspectos da cultura. Não cabe apenas aos métodos biográficos, a
descrição da vida de um sujeito, ou de um grupo de sujeitos, mas, sobremaneira, a
É nesse contexto que tem surgido uma variedade de pesquisas sobre vida de
professor. A constante recorrência às teorias aplicadas aos contextos de formação de
professores, ou ainda, a recorrência à utilização da abordagem biográfica aos contextos da
terapia, da indústria, da educação de adultos etc, somando-se à influência das produções de
autores internacionais, especialmente os autores francófonos e americanos, foram marcante
para o estabelecimento de um movimento cada vez mais em ascensão: a pesquisa-formação,
inspirada em abordagens de pesquisa, agora denominadas (auto) biográficas. Nessa
perspectiva, os estudos sobre o professor ganham destaque permitindo trazer-se à tona
dimensões pouco discutidas no âmbito das políticas públicas de formação docente. Para
António Nóvoa (1995, p.25) “urge por isso (re) encontrar espaços de interação entre as
dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus
processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida...”. Por
conseguinte, deseja-se fazer da abordagem (auto) biográfica uma reflexão estritamente
pedagógica.
de vida vão ser ampliadas pelo desenvolvimento de trabalhos e estudos sobre a formação de
adultos.
Henri Desroche (1991) e Bernadette Courtois (1991), dentre outros autores, vêm
desenvolvendo tendências ou movimentos dentro da chamada abordagem (auto) biográfica,
centrada na perspectiva teórica da história de vida. Pode-se citar, por exemplo, a biografia
educativa, a narrativa de formação, a autobiografia-projeto, a pesquisa-formação. Não
obstante, as abordagens (auto) biográficas têm mantido uma aproximação considerável com
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOM MEIHY, José Carlos S. – (Re)introduzindo história oral no Brasil. São Paulo: Xamã,
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(O Sentido da Escola, 15).
No Jornalismo, iniciou sua carreira ainda na Bahia, no ano de 1864. Mas, foi em
Sergipe que freqüentou assiduamente os órgãos de maior publicidade do Estado, onde recebeu
de Acrísio Torres, o qualitativo de “príncipe do jornalismo sergipano” (1999).
No magistério, dedicou maior parte de sua vida, era conhecido como a “alma” da
Escola Normal (Valença, 2005, p.28), sendo considerado como uma das principais
autoridades educacionais de Sergipe.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Serafim Vieira de. Anthologia de Poetas Sergipanos. São Paulo: Typographia
Cupolo, 1939.
ALVES, Eva Maria Siqueira. O Atheneu Sergipense: uma casa de educação literária
examanida segundo os planos de estudos: 1870-1908. Tese (Doutorado). Programa de
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Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.
___________. Pó dos Arquivos: morte dos boticários. Brasília: s.n. 1999. p28-29
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. (trd.) André Telles. Rio de
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DANTAS, José Ibarê Costa. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro:
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SILVA, Eugenia de Andrade Vieira da. A formação intelectual da elite sergipana (1822-
1889). Dissertação. (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação.
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2004.
Fonte Arquivistica:
Jornais
Escrever sobre a história de vida de alguém é abrir uma janela para a compreensão da
realidade, assim na abordagem biográfica, o objeto de estudo é, portanto, o indivíduo com sua
singularidade. Dessa forma, artigo tem como objetivo reconstruir a trajetória de vida de
Manoel Clemente Cavalcanti de Albuquerque como segundo Presidente da Província de
Sergipe no período de 1825-1826. A análise dos dados auxiliou no entendimento que Manoel
Clemente trouxe um ritmo novo e progressista para Sergipe. A abordagem biográfica foi a
ferramenta metodológica utilizada para desvendar os percursos da trajetória de Manoel
Clemente. Assim, a pesquisa foi estruturada fazendo relação entre a História da Educação
com a História Cultural, trazendo conceitos de teóricos como: Norbert Elias (1993), Roger
Chartier (2002), Carlo Ginzburg (2002), e Pierre Bourdieu (1989), os quais oferecem
categorias de análise como representação, capital simbólico, biografia, história de vida. De
acordo com a análise das fontes, é possível identificar que muitas das medidas tomadas para o
desempenho cultural da vida sergipana repercutiu para a qualidade do serviço prestado a
Província, sendo o percussor do Ensino Profissionalizante em Sergipe. Por fim, a pesquisa
contribui para a construção da trajetória de um personagem da história sergipana.
INTRODUÇÃO
subordinado a tal estrutura, posto ser “ simplesmente impossível para uma pessoa ter uma
propensão natural geneticamente enraizada de fazer algo”. (ELIAS, 1995, p. 58 , apud
Nascimento)
O sociólogo alemão Norbert Elias abordou as possibilidades dos estudos que
buscam relacionar História e Sociologia. Para o estudo das trajetórias dos intelectuais as
reflexões de Elias são muito importantes, uma vez que permitem buscar o entendimento das
figurações (configurações), nas quais estes estiveram inseridos e as relações de
interdependência que estabeleceram:
Nesse sentido, vários aspectos da vida do biografado podem ser relevantes para a
pesquisa, como sua origem, formação, atuação profissional, valores políticos, ideais, bem
como suas redes de interdependência. Sobre isso, Norbert Elias afirma que
(...) cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente
desvinculados na rua, está ligada a outras por laços invisíveis, sejam estes
laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais
díspares de funções tornaram-se dependentes de outrem e tornaram outros
dependentes dela. Ela vive, e viveu desde pequena, numa rede de
interdependências que não lhe é possível modificar ou romper pelo simples
giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria estrutura dessas
dependências o permita; vive num tecido de relações móveis que a essa
altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal (ELIAS, 1994, p. 22).
Como os documentos são evidências que podem ser utilizados para fazer História,
resultando de opções feitas durante o processo de apropriação daquilo que se acredita fazer
parte de um contexto, é necessário problematizar as fontes encontradas. Pois, nenhum
documento é inofensivo, ele sempre será o resultado dos acontecimentos da sociedade que o
produziu e, por isso, pode ter sido manipulado pelos interesses da época em questão.
Como exemplo estão os estudos de feitos a partir de memórias. Segundo LE GOFF
(2003),
Sendo necessário, portanto, ao historiador fazer a confrontação das fontes obtidas, com
o cuidado de não isolar os documentos do conjunto de seus monumentos. Por isso, muitos são
os aspectos a serem observados pelo pesquisador quando da construção de uma possível
versão de acontecimentos históricos.
1031
Felisbelo Freire. História de Sergipe. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p.272
1032
Sebrão Sobrinho. Fragmentos da História de Sergipe. Aracaju, 1972.
Dificuldades foram encontradas por ele para levar avante seus avançados planos
administrativos, a começar pela grande seca que em 1826, assolou a região trazendo escassez
de alimentos. Manteve constantemente a maior harmonia com o comandante das armas.
Além de deixar esclarecido que possuía bens que poderiam pagar suas dívidas,
informa ainda que:
Assim, sua vontade foi acatada, sendo sepultado na Igreja do Convento de São
Francisco, em São Cristóvão1035. Assumiu em seu lugar o Sargento – Mor Manuel de Deus
Machado.
1033
Felisbelo Freire. História de Sergipe. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p.272
1034
Testamento de Manoel Clemente, pesquisado no Auditório do Arquivo do Poder Judiciário de Sergipe, Caixa
162. Estado de Sergipe
1035
In: RIHGS, vol. II, 1914, p. 331 a 333.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
3.5– SIMPÓSIO 5:
ENSINO DE HISTÓRIA
Coordenação:
Prof. Dr. Itamar Freitas (ANPUH-SE/IHGS/UFS)
Prof. Hermeson Alves de Menezes (PPGG-UFS/GPEH-UFS)
1 – Apresentação:
mundo do trabalho, dentro de uma perspectiva voltada para o mercado, fazendo frente a
exigências de competitividade e produtividade.
A Reforma da Educação no Brasil adota o conceito de competências nos cursos da
Educação Básica, de nível Básico, Médio e Superior conforme é expresso nas Diretrizes
Curriculares Nacionais e passa quase que instantaneamente a fazer parte do vocabulário diário
dos profissionais da Educação, levantando grande polêmica quanto à sua teoria e aplicação.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores da Educação Básica
consideram “a competência como concepção nuclear na orientação do curso; os
conteúdos como meio e suporte para a constituição das competências”.
O debate que cerca a questão da formação e profissionalização de historiadores e
professores de História está marcado por dilemas políticos e pedagógicos envolvendo os
profissionais da área dos mais diversos níveis de ensino, associações sindicais e científicas e
especialmente a ANPUH (Associação Nacional de História).
As grandes transformações do sistema capitalista dos anos 80 trazem uma nova fase de
internacionalização do capital e a globalização. O fenômeno em questão se espalha
mundialmente e aporta num Brasil em crise, lutando para restabelecer o crédito internacional
e a estabilidade econômico-financeira, dando início a uma série de modificações profundas,
como o processo de privatização, reforma do Estado, flexibilização das leis trabalhistas e a
nova lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394 de 1996, que surge como decorrência da
Constituição de 1988 (NUNES, 2002). A Reforma Educacional implantada no Brasil “assume
como concepção orientadora o modelo das competências” (DELUIZ, 2001).
Surgindo no bojo de um fenômeno que tende a considerar a crise na educação uma
crise de gerenciamento e avaliação, a transferir processos, metodologias e conceitos do
sistema produtivo para os demais setores da sociedade, a nova lei introduz no mundo da
Educação um conceito, o das competências, importado do mundo do trabalho. A adoção do
modelo das competências na gestão da mão-de-obra relaciona-se ao uso, controle, formação e
desempenho da força de trabalho diante das novas exigências requeridas pelo padrão de
acumulação capitalista flexível (DELUIZ, 2001).
1036
Portaria do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) nº 3020 de 21 de
dezembro de 2001.
3- Considerações Finais:
5. Referências:
NUNES, Clarice. Ensino Médio. (Diretrizes Curriculares Nacionais). Rio de Janeiro: DPA,
2002 (Diretrizes Curriculares Nacionais).
TANGUY, Lucie; Ropé, Françoise (orgs). Saberes e competências. O uso de tais noções na
escola e na empresa. Campinas, Papirus, 1997.
ZARIFIAN, Philippe. Objetivo: Competência. Por uma nova lógica. São Paulo: Editora
Atlas S.A. 2001.
1037
Entendemos essa religião enquanto de “matriz africana” ou seja, que contem elementos significativos dos
povos africanos que se estabeleceram no Brasil.
1038
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão. IN: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e Escravidão. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.142-159.
1039
KARASCH, C. Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.p. 375.
1040
A historiografia sergipana registra um estudo relevante sobre essa prática cultural. Ver:
DANTAS, Beatriz Góis. A taieira de Sergipe: pesquisa exaustiva sobre uma dança
tradicional do nordeste. Petrópolis: Vozes, 1972.
1041
Um das funções do “olhar” do historiador é detectar a existência dessas camadas e removê-las para tornar
visíveis as histórias e as memórias que elas encobrem.
1042
SANTOS, Marcelo. As Irmandades no campo religioso de São Cristóvão. In: IV SEMANA DE CULTURA
AFRO-BRASILEIRA: políticas públicas e ações afirmativas, 2007, São Cristóvão. Anais eletrônico da IV
Semana de cultura afro-brasileira: políticas públicas e ações afirmativas., 2007. P.1
1043
A autonomia construída historicamente pelas irmandades foi perdida no final do século XIX, quando elas
voltaram a se constituírem “meros apêndices da Igreja.” Cf: SILVEIRA, Renato da. Sobre o exclusivismo e
outros ismos das irmandades negras na Bahia colonial. IN BELLINI, Lígia; SOUZA, Evergton Sales;
SAMPAIO, Gabriele dos Reis (orgs). Formas de crê: Ensaios de História religiosa do mundo luso-afro-
brasileiro, séculos XIX-XXI. Salvador: Edufba: Corrupio, 2006.p.184.
1044
Além desses, a bibliografia consultada indica outros santas e santos cultuados por africanos e afro-
descendentes: Santa Ifigênia, Santo Elesbão, Santo Rei Baltazar, Santo Antônio de Categeró, Senhor da
Redenção, dos Martírios, da Ressurreição; além das diversas invocações de Nossa Senhora, como Amparo,
Guadalupe, Das Dores e Conceição. Cf. p. ex: REGINALDO, Lucilene.Os Rosários dos Angolas: irmandades
negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005,Tese (Doutorado em
História-UNICAMP).p.60
1045
Cf: SANTOS, Marcelo.“Irmãos da santa conveniência”: a Ordem Terceira de São Francisco de Assis na
Cidade de São Cristóvão (1840-1870). São Cristóvão: DHI/UFS, 2001. (monografia de conclusão de curso).
p.35-6; OLIVEIRA, Vanessa dos Santos.Identidade e religiosidade no universo católico da cidade de São
Cristóvão-Se (1860-1880). CadernosUFS: História. São Cristóvão: CEAV, 2008.p.25
1046
Nosso propósito foi destacar questões gerais sobre a Educação para o Patrimônio, na perspectiva étnico-
racial. Nesse sentido, a ênfase recaiu na etapa da exploração. Para um conhecimento mais detalhado desta
metodologia ver: HORTA, Maria de Loudes Parreiras, GRUMBERG, Evelina, MONTEIRO, Adriane Queiroz.
Guia básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN,1999.
1047
REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.49
1048
BITTERCOURT, José. Invenção do passado: ascensos e descensos da política de preservação do patrimônio
cultural (1935-1990). IN: MENEZES, Lená Medeiros de et al (orgs). Olhares sobre o político: novos ângulos,
novas perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ. 2002.p.207.
A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos está localizada na rua
Erundino Prado, antiga rua do Rosário. Este templo, de estilo barroco, foi construído pelos
jesuítas1049 no século XVIII.Trata-se de um bem cultural tombado, em 1943, pelo Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A Igreja do Rosário abrigou a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
composta por negros. A administração desta irmandade “estava limitada aos angolas e
crioulos, ocupando cada grupo quatro vagas como juizes e quatro como procuradores,
divididas entre homens e mulheres1050”, até meados do século XIX.1051
A presença das mulheres, angolas e crioulos nesta irmandade pode proporcionar
discussões sobre relações étnicos-raciais e de gênero, bem como apresentar um momento
privilegiado de debates sobre a construção, circulação e apropriação da idéia de “nação” por
diferentes grupos sociais ao longo da história.
1049
Um dos principais divulgadores da devoção a Maria.
1050
OLIVEIRA, Vanessa dos Santos. Etnicidade e religiosidade: fronteiras no campo religioso de São Cristóvão-
SE (século XIX). In: Reunião Equatorial de Antropologia e X Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste.
Aracaju-SE: UFS. 08 a 11 out. 2007. Cd-rom. P.7
1051
Na Bahia, em 1685, era admitida, na Irmandade do Rosário, apenas negros de Angola.”com a Consolidação
social ‘houve aceitação de negros brasileiros e até de brancos”. Ver: RUSSEL-WOOD, A. J R. Fidalgos e
filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.p.108-
109.
Segundo a historiadora Mary Karach, a idéia de nação, além de outros usos, foi
apropriada por grupos de africanos em Salvador, no Rio de Janeiro e em Goiás, no período
colonial, para a construção de identidades1052.
Esta evidência serve para relativizarmos posturas que enfatizam que “as confraria
ou irmandades religiosas contribuíram para descaracterizar a cultura africana, sobre a qual já
incidiam tantos fatores desagregadores”.1053 Acreditamos que não podemos perder de vista
esta ênfase, entretanto, é fundamental ampliarmos as possibilidades de interpretação das
funções destas instituições na formação de identidades.
As discussões sobre a idéia de nação na perspectiva étnico-racial bem como sobre
a presença/ausência das mulheres nas irmandades religiosas de leigos têm um espaço
insignificante na historiografia sergipana. Diante desta lacuna, o saber histórico escolar sente
a falta desta discussão nos dispositivos didáticos, principalmente, nos livros que são utilizados
nas escolas.
Mas, esta constatação não encerra possibilidades do professor incentivar seus
alunos a perceberem a importância deste espaço - a Igreja do Rosário- como elemento
relevante na construção de identidades dos afro-sergipanos. Diante da parca produção
historiográfica local, mas com estudos nacionais disponíveis, o professor pode estabelecer,
com seus alunos, relações entre o local e o nacional, discutir a construção e o emprego de
conceitos históricos, como a idéia de “nação” e justificar por que esse bem deve ser
preservado.
Para além do binômio acomodação-resistência, as irmandades também foram
espaços de sociabilidades diversas. Nesta direção, não podemos deixar de citar as festas, os
casamentos, as danças e os rituais que eram realizados nos templos religiosos, ou no seu
entorno, e que são alguns dos exemplos de “formas de pensar e agir” da cultura afro-
brasileira.
As festas eram acontecimentos importantes na vida dos irmãos das irmandades, era
a principal atividade destas instituições. Elas eram momentos de rivalidades, distinção e
integração social, enfim, elementos relevantes na construção de identidades.
Segundo a professora Thétis:
1052
KARASCH, Mary. “Minha nação”: identidades escravas no fim do Brasil colonial. IN SILVA, Maria beatriz
Nizza da (org.). Brasil: colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.p134-5.
1053
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS-Fundação Oviêdo Teixeira, 2006.
p.243
1054
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1996.p219
1055
OLIVEIRA, Vanessa dos Santos. Etnicidade e religiosidade: fronteiras no campo religiosos de São
Cristóvão-SE (século XIX). In: Reunião Equatorial de Antropologia e X Reunião de Antropólogos Norte-
Nordeste. Aracaju-SE: UFS. 08 a 11 out. 2007. Cd-rom. P.8
1056
SOUZA, Fabio Silva. Arqueologia do cotidiano: um Flaneur em Sao Cristovao-Sergipe. 2004. 181 f.
Dissertacao (Mestrado em Geografia)p. 136 que cita taeira e chegança. SERGIPE. SECRETARIA DA
CULTURA DO ESTADO. São Cristóvão e seus monumentos: 400 anos de historia. Aracaju 1989. P.19
1057
“Dança brasileira de origem negra, o coco surgiu na época da escravidão, principalmente em Alagoas e
Pernambuco, tendo-se espalhado por todo o norte e nordeste do pais {...}.Conta a história que os negros escavos,
para aliviar as dores do trabalho de quebrar cocos secos com os pés e embalados pelo barulho que faziam,
cantavam e dançavam.” Ver: CÔRTES, Gustavo. Dança, Brasil! Festas e danças populares.Belo Horizonte:
Editora Leitura, 2000.p.94.
1058
SERGIPE. SECRETARIA DA CULTURA DO ESTADO. São Cristóvão e seus monumentos: 400 anos de
historia. Aracaju 1989. P.19
1059
Sobre a construção de identidades nesse espaço, Ver: OLIVEIRA, Vanessa dos Santos, SOGBOSSI,
Hippolity Brice. Devoção com diversão: A Festa de Nossa Senhora do Rosário na Cidade de São Cristóvão-SE
(século XIX). In Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste. Maceió-AL: UFAL. 03 a 06 set. 2007.
1060
REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p.234.
1061
Idem. P.78.
1062
SANTOS, Marcelo. A Ordem Terceira de São Francisco de Assis na Província de Sergipe (1840-1870).
Caderno de Estudantes da UFS. São Cristóvão: CEAV, 2007.
Algumas considerações
Neste texto procuramos apontar um possível itinerário de visita a alguns dos bens
culturais da cidade de São Cristóvão, tendo como objetivo direcionar “um olhar” para as
discussões étnico-raciais a partir das construções religiosa que abrigaram as irmandades.
Nesta perspectiva, somos simpáticos à leitura da cidade proposta por Fábio Silva
Sousa. Para este autor:
1063
FARIAS, Claudia Maria Lima Trindade. A Irmandade do Santíssimo Sacramento: Expressão religiosa da
Elite Sancristovense/1820-1887. São Cristóvão: DHI-UFS, 2004. (monografia)p.21-22
1064
Este santo “era constantemente chamado no caso de escravos fugidos (século XIX)” Ver: MOTT, Luiz.
Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. IN: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida
privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhi das letras,
1997.p.186-187.
1065
As imagens de Santa Efiênia, Santo Antônio de Catagerona e São Benedito tinham ocupavam posições na
tradicional “Procissão de Cinzas” organizadas pelos terceiros franciscanos da cidade de Salvador. Cf:CAMPOS,
João da Silva. Procissões tradicionais da Bahia. Bahia: Museu da Bahia/Secretaria da Educação e Saúde, 1941.
p.30.
1066
José Teófilo de Jesus era um pardo forro que se destacou como pintor entre o final do século XVIII e na
primeira metade do século XIX. Pintou várias obras, principalmente, para as irmandades religiosas. Ver:
ALVES, Marieta. Dicionário de artistas e artífices na Bahia. Salvador: Universidade Federal da Bahia/Centro
Editorial e Didático, Núcleo de Publicação, 1976.pp-90-91.
1067
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracaju: UFS/BANESE, 1991,
277.
1068
As Diretrizes Curriculares Nacionais incentiva ações educativas de divulgação de artistas africanos e
afrodescendentes. Cf: BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação,
2005.p21-24.
Dos inúmeros olhares que podem ser lançados sobre a cidade, procuramos um que
focalizasse a presença de parte da cultura afro-sergipana. Neste sentido, convidamos os
interessados a construírem outros olhares sobre essa mesma parte ou outras que não
conseguimos alcançar, para evidenciamos outras memórias, outras histórias e outras culturas.
Tentamos confeccionar o itinerário exposto a partir de problemáticas que dessem
sentido à coleção dos bens culturais selecionados. Dessa forma, procuramos compreender o
que esses bens podem nos dizer sobre à história e a cultura afro-sergipana.
Poderíamos discutir todas as questões elencadas acima sem necessitar visitar esses
monumentos? Sem seguir este, ou outro itinerário?
Claro que sim. Mas, é importante lembrarmos que estamos falando sobre
memórias, histórias, culturas e identidades. Tais elementos são materializados através de
diferentes suportes e percebidos pelos homens através de diversos sentidos. Portanto, o
contato com o patrimônio edificado pode marcar, significativamente, a memória daqueles que
o visita.
Assim, citando Dominique Veillon, Michael Pollak nos informa sobre a
importância dos elementos sensoriais como o barulho, o cheiro e as cores como pontos de
referência nas lembranças pessoais1070. Nesta direção as sensações visuais provocadas nos
visitantes que entram em contato com os lugares edificados tornam a visita dos estudantes
bastante proveitosa.
Isto nos leva a justificar a visita dos alunos à cidade, aos monumentos religiosos e
aos museus da cidade de São Cristóvão, não apenas como um dispositivo de ilustração de
conteúdos trabalhados em sala de aula, mas também como uma experiência sensorial que
essas instituições e os espaços que elas ocupam podem proporcionar aos alunos e professores.
1069
SOUZA, Fabio Silva. Arqueologia do cotidiano: um Flaneur em São Cristóvão-Sergipe. 2004. (Dissertação
Mestrado em Geografia)
1070
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.. 2, n. 3,
1989.p.9.
Entretanto, as instituições e os espaços sociais devem ser vistos como artefatos. Nesta
condição eles devem ser interrogados a partir de problemáticas específicas.
1071
“Com os Estados modernos munidos de arsenais cada vez mais cheios de uma tecnologia da morte
tremendamente superior, mesmo seus adversários mais formidáveis só podiam esperar, na melhor das hipóteses,
um adiamento da retirada inevitável. Esses conflitos exóticos eram materiais para livros de aventura ou
reportagens de correspondentes de guerra (...), mais que assuntos de relevância direta para a maioria dos
habitantes dos Estados que os travavam e vivenciam. Tudo isso mudou em 1914. A Primeira Guerra Mundial
envolveu todas as grandes potencias.” HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 31.
1072
OHISTORIADOR.HPG. O Positivismo, Os Annales e a Nova História. Disponível na internet via <
mhtml:file://C:\Documents%20and%Settings\Katia\Meus%20documentos\SHIS.mht> capturado em 20/01/2005.
1073
“Hoje, o cenário já está pronto: basta comprar um ingresso, ao entrar na saca de exibição, sentar-se numa
poltrona e assistir ao filme escolhido – em cores,as pessoas falando (ou cantando), conforme as intenções dos
autores. Mas há apenas 85 anos, o cinema sequer existia” CUNHA, Wilson. Cinema.Rio de Janeiro: Bloch
1980.
1074
“Carlota Joaquina não é um filme em cima do muro, é um filme que toma um partido, que tem uma visão
sobre o contexto ali apresentado. Acredito que isso aconteça em tudo o que fazemos, o que é muito natural. As
idéias passam pelo diretor, que é um filtro dessas idéias já por si tendenciosas. A pessoa já tende para aquilo que
acredita ser bom, é a sua maneira de ver o mundo. Para fazer Carlota Joaquina, formei uma biblioteca enorme
sobre o período. Li livros portugueses, livros com características do Rio de Janeiro e autores que enfocaram só
Carlota.” Ver em: NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
Paulo: Editora 34, 2002.
A História e o Cinema se prestam a muita polêmica, e, por isso, talvez seja útil
primeiramente, argumentar sobre o gênero documentário. As filmagens com um intuito de
documentar são caracterizadas por mostrar algo que aconteceria independentemente da
realização de um filme, diferentemente, de uma produção fictícia, em que ocorre uma
preparação textual antes das filmagens, o famoso enredo1076.
O filme documentário tem um fator muito inerente na sua produção, que é a
personificação do participante da obra fílmica. Ou seja, o cineasta ao entrevistar um homem
da vida pública, por exemplo, a argumentação dada pelo participante é a melhor possível de
sua caricatura, além do que o entrevistado pode melhorar seu aspecto e modular o tom de voz
especialmente para a filmagem. Seja por timidez, seja por vaidade, o entrevistado oferece ao
espectador uma imagem que ele julga mais interessante. Com isso, os atuantes do
documentário estão sempre interpretando. É óbvio que ele interpreta de forma diferente do
ator profissional que encarna um personagem que não é ele, mas assim mesmo interpreta a si
mesmo, numa situação que, talvez, fuja ao seu cotidiano. Portanto, a diferença entre o
documentário e as obras de ficção pode não ser nítida, de modo que é exatamente correto
dizer que o documentário apresenta fatos e situações que ocorreriam, independentemente da
filmagem, porém, com uma visão particular deste fato1077.
O cineasta filma os participantes do documentário de acordo com o intuito dele em
focar este fato isolado, isto é mais presente em filmes que acarretem uma posição política ao
longo da História. O diretor vai preferir o ponto do assunto em que ele possa argumentar seus
preceitos, dependendo da situação política. Por exemplo: um documentário sobre um
determinado político, o enfoque deste poderá ser sisudo ou sorridente, dependendo da
instrumentalização. Como se vê, uma série de opções deverão ser feitas e estas dependem da
escolha do cineasta e das condições de filmagens. O resultado disso é que por mais que o
1075
“Os redatores da Annales rejeitam a história factual, biográfica, historicizante, a erudição monográfica, o
corporativismo ciumento e deliberadamente imperialistas dos historiadores do estabilistment universitário, a sua
fé ingênua no método milagroso graças ao qual o fato brota do texto.” Ver em: CARBONELL, Charles Olivier.
Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.
1076
Ver em: BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 1988.
1077
Op. Cit.
cineasta queira ser independente, a obra sempre terá uma identidade do diretor, embutindo
seus pontos de vista1078.
E é impossível ser de outro modo, portanto, não se pode filmar a não ser de uma
determinada maneira, com isto, o filme documentário serve também para uma análise sobre o
pensamento dos intelectuais da arte cinematográfica à cerca de um determinado fato. Esses
são detalhes que vão construir significações. Esses elementos não são reproduções da
realidade, eles constroem uma interpretação da realidade1079.
Além da filmagem, temos a montagem, quando as imagens filmadas serão
selecionadas e colocadas numa determinada ordem. Conforme a imagem do conteúdo e dos
participantes, apresentando-os sorridentes ou, ao contrario, sisudos: será mantido ou será
eliminada qualquer imagem não condizente com o argumento do diretor1080. Não esqueçamos
a música: o silencio poderá provocar um efeito solene ou de solidão; uma música pomposa
também poderá contribuir para a solenidade, a não ser que seja justaposta, pela mixagem,
desta maneira, resultará um efeito irônico; uma musica mais leve sobre o sorriso de algum
participante poderá torná-lo uma figura mais amistosa, simpática1081.
Em suma, o que vemos é uma reprodução da realidade enquanto olhos do cineasta.
Vemos um discurso. Se esse discurso tiver sido montado habilmente, quase não percebemos e
ficaremos com a impressão de tê-lo visto de forma coesa1082.
Diante dessa, aparentemente, perfeita reconstituição da realidade, todas as
precauções metodológicas devem ser utilizadas, ainda mais que os documentários e cine
jornais são comumente associados à atividade histórica. Acredita-se que eles tragam consigo
um alto grau de confiabilidade, ou melhor, que eles se apresentem como perfeitas
reconstituições da realidade1083.
Acredita-se que o filme documentário, o noticiário semanal, o histórico,
constituem uma fonte nova e diferente de todas as fontes históricas até então existentes. Em
1934, quando se criou o Arquivo Nacional dos Estados Unidos, mandava-se recolher aos seus
depósitos, alem da documentação em papel, mapas, gravações sonoras, documentos
fotográficos, com projeções fixas, vistas aéreas cartográficas e filmes cinematográficos.
Reconhecia-se a capacidade, sem par, oferecida pela câmara cinematográfica de documentar
1078
Op. Cit.
1079
Op. Cit.
1080
BERNARDET, Jean-Claude. O Que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000.
1081
Ver em: BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 1988.
1082
CUNHA, Wilson. Cinema. Rio de Janeiro: Bloch 1980.
1083
RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2ªedição. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969.
CONCLUSÃO
1084
Op. Cit.
1085
Ver em: RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2ªedição. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969. e BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil.
São Paulo: Editora Contexto, 1988.
1086
Op. Cit.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, José Vieira da. “A Juventude Estudantil em Aracaju: Trilhando seus primeiros
passos” in: Revista de Aracaju. V.9, Aracaju: FUNCAJU, 2002, p. 65-83.
_____. “Artes cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe” in: Jornal da
Cidade, 29/01/2004.
DANTAS, Vinicius. Quando o Cinema Chegou a Sergipe. Revista Alvorada. Aracaju, 22 jun
1970, p. 26.
DANTAS, José Ibarê Costa. A Tutela Militar em Sergipe, 1964-1984: partidos e eleições
num estado autoritário. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
FRANCO, Alessandra. Loucos por Cinema. CINFORM, Aracaju, 02 abr. 2006, Cultura e
Variedade, p. 1.
HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 31.
MEIHY, José Carlos S. Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
Paulo: Editora 34, 2002.
NETO, Onesino Elias Miranda; SANTOS, Shislane Cristina dos; FILHO, Walter César
Vasconcelos Campos. Cinéfilos em Ação: História do Clube de Cinema de Sergipe (1960 –
1969). 100 p. Monografia (Curso de História) – Universidade Tiradentes, Aracaju, 2007.
RAMOS, Fernão. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: ART Editora, 1987.
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre História e Memórias. São Cristóvão:
Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.
Este artigo estuda a escrita escolar da história regional elaborada pelo professor Acrísio
Tôrres Araújo, em Sergipe, entre as décadas de 1960-70. Nosso objetivo é observar, a partir
da exposição de características que compõem o livro didático Pequena História de Sergipe
(1966), qual foi a relevância didático-pedagógica assumida por este manual diante da
sociedade e comunidade escolar sergipana. No contexto educacional sergipano das décadas de
1960-70 - que se ressentia da publicação de obras do gênero didático sobre a História local -,
a Pequena História de Sergipe possibilitou um melhor desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem histórico nas escolas do Estado, bem como uma relação mais intima do
público leitor em geral com temas da História de Sergipe. A obra chamou à responsabilidade,
ainda, sergipanos estudiosos da História que viviam alheados da realidade circundante,
relegando a segundo plano a realização de pesquisas que colaborassem com a ampliação da
cultura intelectual das crianças.
1087
As críticas interna e externa são operações que, como orientavam Charles Victor Langlois e Charles
Seignobos (1946, p. 46), visam observar a relação que prende o documento ao fato, através da reconstituição de
toda a série de causas intermediárias que produziram o documento.
1088
ARAÚJO. 2008. Carta para o autor em 24 de janeiro de 2008.
professor Acrísio Araújo o mais completo êxito nesta tarefa histórica que êle
em tão boa hora empreendeu (...) (A CRUZADA. Aracaju. 22 jan. 1966).
1089
Parecer transcrito por AcrísioTôrres em carta ao autor de 24 de janeiro de 2008.
1090
Segundo alguns estudiosos da obra histórica de Acrísio Tôrres Araújo, o professor foi estimulado a escrever
a Pequena História de Sergipe após o primeiro contato na biblioteca do IHGS com o livro História de Sergipe
(1891) de Felisbelo Freire e ter-se dado conta da sua insuficiência para os escolares da época, pois as suas
pesquisas chegavam somente até meados século XIX. (SANTOS, 2004).
1091
A Cruzada. Aracaju, 19 de Fevereiro de 1966.
preparando outro livro sôbre Sergipe, trata-se desta vez de uma obra
exclusivamente física. (A CRUZADA. Aracaju, 6 fev. 1967, p. 7).
Alcançado o seu intento, Acrísio Tôrres Araújo iniciou, com apoio do órgão
governamental responsável pela promoção de atividades culturais no Estado, a confecção de
uma edição renovada e ampliada de sua obra (História de Sergipe 3º ano primário).
Assim, observou-se que:
1092
Antes da publicação pelo professor Acrísio de manuais didáticos como a Pequena História de Sergipe (1966)
e o Sergipe e o Brasil de (1973), havia mais de 50 anos que não se produzia livro do gênero em Sergipe, desde a
iniciativa de Elias Montalvão que legou o Meu Sergipe: Ensino da História e Chorografia de Sergipe (1916) aos
alunos das séries primárias das escolas do Estado. Considerado o primeiro livro puramente didático em matéria
de História e Corografia de Sergipe, apresentava, segundo o autor, “uma linguagem bem accomodada à
comprehensão da creança”. Em Meu Sergipe quem contava a história eram os personagens ligados à vida do
estudante como a avó, a tia, os colegas de turma e o professor. A obra foi reeditada em 1919, sem muitas
alterações no conteúdo original (FREITAS, 2002).
exemplo, fornecendo aí um importante indício sobre qual espécie de cidadão que desejava
formar a partir dos ensinamentos introduzidos no livro.
Como quem pretendia preparar os futuros cidadãos sergipanos para assumirem as
tarefas político-administrativas do Estado, a leitura de excertos de alguns capítulos do manual
didático em questão permitiu inferir que, o exemplo da experiência dos grandes homens – os
heróis da ciência, da poesia, das artes – poderia fazer daquele Sergipe o Estado promissor que
se desejava e de seus habitantes “o povo do futuro”.
Sobre esta questão, é sugestiva a leitura do décimo oitavo parágrafo do décimo
segundo capítulo intitulado “Do ano 1836 à maioridade”, que trata do período politicamente
conturbado do governo regencial no Brasil e suas implicações no contexto sergipano.
Após relato das ações do presidente Mariano Albuquerque, considerado como
principal responsável pelo retorno à província de Sergipe, embora em curto prazo, de dias de
paz e tranqüilidade, o autor afirmou: “Por tudo isso e mais alguns serviços prestados, o
presidente da província, Mariano de Albuquerque deve ser considerado como O pacificador.
Que a posteridade sergipana nunca o esqueça, como belo e seguro exemplo a orientar os
passos e atitudes de futuros administradores...” (cf. ARAÚJO, 1966, p. 81).
À guisa de finalização das idéias aqui apresentadas, reitera-se que o “surgimento”
e introdução da Pequena História de Sergipe nos currículos das unidades de ensino do Estado
representaram acontecimentos de grande importância para o desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem histórica.
Sua presença no mercado editorial permitiu que o público leitor em geral
desenvolvesse, com a prática da leitura do manual, uma relação mais íntima com
conhecimentos acerca da evolução histórica do povo sergipano. O livro torna-se ainda mais
relevante quando sabemos que anteriormente a sua publicação reinou um prolongado vazio no
que dizia respeito à composição de obras do gênero.
A iniciativa de confecção da Pequena História de Sergipe pelo professor Acrísio
Tôrres teve, conseqüentemente, outro mérito; como percebeu José Silvério Leite Fontes em
1976: “reabriu o interesse pela História sergipana. Mostrou a responsabilidade dos sergipanos
que, estudiosos da História, viviam alheados da realidade circundante, e isso pelo simples fato
de sua publicação.” (FONTES, 1976, p. 8).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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ARAÚJO, A. T. Aracaju, Minha capital: segundo ano primário. 4. ed. São Paulo: Editora
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_____. Geografia de Sergipe: terceiro ano primário. 6. ed. Editora do Brasil S/A. [196].
_____. Geografia de Sergipe. Aracaju: Livraria Regina, 1969.
_____. História de Sergipe 3º ano primário. 2. ed. Aracaju: 1967.
_____. Leituras Sergipanas. Primeiro ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia S/A,
[196-].
_____. Leituras Sergipanas. Segundo ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia S/A,
[196-].
_____. Leituras Sergipanas. Quarto ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia, [196-].
_____. Minha Terra, Minha Gente. Área Estudos Sociais. 1. ed. Bahia: Editora do Brasil na
Bahia S/A. 1973.
_____. Pequena História de Sergipe. Aracaju, 1966.
_____. Sergipe e o Brasil. Área Estudos Sociais. 4ª série. São Paulo: Ed. Do Brasil, 1973.
SANTOS, V. M. dos. A Geografia e os seus livros didáticos sobre Sergipe: Do século XIX
ao século XX. Aracaju, 2004. 204 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Departamento de
Educação, Universidade Federal de Sergipe.
Referencial teórico.
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Histórias do ensino de história no Brasil. São Cristóvão: Editora da UFS, 2006. p 208-224.
LANGLOIS, Ch. V; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo:
Renascença, 1946.
MUNAKATA, K. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo, 1997. Tese
(Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
Na virada do século XIX para o século XX, o grupo de intelectuais da “geração de 1870”–
dentre eles João Ribeiro – que se dedicava à escrita da história era formado, em sua maioria,
de poetas, romancistas, jornalistas, ou seja, “homens de letras”. O ser historiador no início da
República era operado por intelectuais que transitavam em várias áreas já que não havia
faculdades dedicadas à formação desse profissional. Com o objetivo de compreender a
trajetória intelectual de João Ribeiro e como esta fundamentou a sua escrita da história – em
especial do livro didático História do Brasil (1900). Esse estudo pretende investigar os
intercâmbios estabelecidos entre esse polígrafo e uma rede de intelectuais reunidos não só no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) - local destinado oficialmente à produção
histórica - mas também no Colégio Pedro II e na Academia Brasileira de Letras (ABL). A
análise das relações nesses locais de sociabilidade permite identificar elementos importantes
na formação e canonização de João Ribeiro como historiador.
1093
Sobre os dados biográficos de João Ribeiro ver: HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do
Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000; LEÃO, Múcio. João Ribeiro. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1962; GASPARELLO, Arlete Medeiros. Construtores de identidades: A pedagogia da nação nos livros
didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: IGLU, 2004; GOMES, Angela de Castro. História e
historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
1094
“Seu livro repercutiu no mundo intelectual da capital e teve ampla aceitação no ensino, atestada por
sucessivas edições, principalmente na versão Curso Superior para Ginásios e Escolas Normais”.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. Invenção e continuidade: a História do Brasil de João Ribeiro. I Seminário
Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro: UFF/FCRB, 2004, p.4.
1095
Araripe Jr.. “João Ribeiro – Filólogo e Historiador”. In: História do Brasil. Curso Superior. 4 edição. Rio de
Janeiro/São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1912.
nacionais. Esse interesse em entender a formação da nação era corrente entre vários intelectuais
de seu tempo.
Ainda sobre o reconhecimento de João Ribeiro pelos seus pares historiadores1096,
Freitas (2003) destaca que o seu grande trabalho como historiador não foi a pesquisa inédita
junto a fontes (como Capistrano de Abreu), mas as grandes sínteses produzidas em compêndios
escolares. A primeira década do século XX foi marcada pela contribuição desses dois
intelectuais na renovação do campo historiográfico e do ensino de história no Brasil.
Professores do Colégio Pedro II, “Capistrano e Ribeiro também tinham em comum a origem
nordestina, o gosto pela pesquisa e o estudo das coisas nacionais: João Ribeiro, especialista na
língua nacional, Capistrano na língua indígena” (GASPARELLO, 2004:3).
Neste estudo, a leitura e a análise dos escritos de João Ribeiro não se justificam
pela atualidade ou possível caráter precursor da sua interpretação do Brasil mas, considerando
o que Hayden White (1994:98) identifica como a natureza metafórica dos grandes clássicos da
historiografia, pelo tipo particular de representação do passado que resguarda certos textos da
invalidação definitiva. Neles, poderíamos reconhecer modelos do ofício do historiador muito
tempo depois que as suas explicações específicas dos “fatos” perderam a vigência e a
relevância1097.
Criado em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) dedicou-se
à escrita da história nacional, “num processo simultâneo de construção dessa história e de
afirmação do papel do Estado como criador e garantidor de nossa nacionalidade” (GOMES,
1996:15). O Instituto tinha como diretrizes “a coleta e publicação de documentos relevantes
para a História do Brasil e o incentivo, ao ensino público, de estudos de natureza histórica”
(GUIMARÃES, 1988:8-9) na medida em que surgia como centro oficial para produzir um
discurso sobre o Brasil. Assim, o pragmatismo da história (constituidora da nação e formadora
do cidadão) e o gosto pela pesquisa (cuidado com a heurística e a crítica documental) são
elementos importantes na atuação deste órgão. Conforme Iglésias,
1096
Reconhecido tanto por seus contemporâneos como por intelectuais de destaque na cultura nacional, que
estudaram e citaram João Ribeiro em suas obras: como Gilberto Freyre, Oliveira Lima, Delgado de Carvalho,
Fernando de Azevedo e outros (Gasparello, 2004).
1097
WHITE, Hayden. Historicismo, História e imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso. 2.ed. São Paulo:
Edusp, 2001, p. 135-136.
1098
João Ribeiro tomou posse no IHGB em 1915. Para saber sobre outros professores sócios do IHGB ver:
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996;
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº
1, 1988.
1099
Entre os lentes estavam: Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves de Magalhães, Araripe Jr., Capistrano de
Abreu, Sílvio Romero, José Veríssimo, Carlos de Laet, Max Fleuiss, o Barão do Rio branco, entre outros.
HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000,
p.12.
1100
“A Revista Brasileira foi o núcleo organizacional do grupo de intelectuais que, no início da estabilização
política da República – em 1898 – decidi criar a ABL” (GOMES, 1996:48).
geração de 1890, era mais difícil entrar no IHGB do que na ‘sua’ ABL”
(1996:52).
Referências bibliográficas
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Superior. 4. edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1912.
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problemas. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1976.
FREITAS, Itamar. João Ribeiro e o ofício do historiador: seus leitores, suas prescrições. XXII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA, ACONTECIMENTO E
NARRATIVA, 12, 2003, João Pessoa. Anais... João Pessoa: UFPB/ANPUH, 2003. 1CD-
ROM.
FREITAS, Itamar. Leitores e leituras da História do Brasil de João Ribeiro (1900).
Palestra proferida durante a abertura do Curso de Especialização em Ensino de História,
promovido pela Faculdade São Luiz de França, no prédio da Câmara de Vereadores do
município de Estância-SE, em 16 de junho de 2007. Disponível em
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GASPARELLO, Arlete Medeiros. Construtores de identidades: A pedagogia da nação nos
livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: IGLU, 2004.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. Invenção e continuidade: a História do Brasil de João
Ribeiro. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro:
UFF/FCRB, 2004.
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1996.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, nº 1, 1988.
HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de
Janeiro: Access, 2000.
IGLÉSIAS, Francisco. Os Historiadores do Basil: capítulos de historiografia brasileira. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; Bel Horizonte, MG: UFMG, IPEA, 2000.
LEÃO, Múcio. João Ribeiro. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962.
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A cultura ocultada. Londrina: Editora da UEL, 1999.
SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Réne (org.). Por uma história
política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol.7, n.13, 1994.
. Historicismo, História e imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso. 2.ed.
São Paulo: Edusp, 2001.
3.6 – SIMPÓSIO 6:
Coordenação:
Profª Msc. Sheyla Farias Silva (UNIT/SEED/FJAV/ Doutoranda em
História Social/UFBA)
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do templo de Nossa Senhora do
Socorro, em Tomar do Geru, inserindo aspectos da mentalidade jesuítica, como fruto da
Reforma Católica, associada à difusão do barroco. A leitura foi desenvolvida no sentido de
apresentar o barroco não só como mero estilo artístico, mas como meio de difusão ideológica
da estética e do pensamento da época: os séculos XVI e XVII. A reafirmação da fé é
construída com base na reorganização e na catequização feita através das construções das
Igrejas, das quais a de Nossa Senhora do Socorro é exemplar desse período.
O espaço colonial no Brasil esteve regido pelo sagrado, ou seja, pela Igreja. A
metrópole portuguesa deixou a cargo dos eclesiásticos as responsabilidades pela instituição de
normas que acabaram definindo a formação dos espaços urbanos. Dentre as construções
jesuíticas edificadas na Capitania de Sergipe Del Rey, foi utilizada como exemplo a Igreja de
Nossa Senhora do Socorro, fruto da atuação dos padres na antiga Aldeia do Geru. Alguns
autores divergem quanto ao ano da fixação dos inacianos na referida aldeia. Dessa forma, o
limite temporal desse estudo se restringe do ano de compra do sítio Ilha, em 1683, até o ano
da expulsão dos membros da Companhia de Jesus das colônias portuguesas em 1759.
Vale ressaltar a profunda influência dos jesuítas na arte colonial brasileira, o que
por muito tempo restringiu toda a arte desse período a ser chamada de arte jesuítica
(SANTOS, 1951, p. 10). Percebe-se que na Capitania de Sergipe Del Rey a atuação dos
padres também deixaram marcas nas localidades por onde passaram, principalmente na
arquitetura colonial. Com a leitura dos primeiros textos a atenção foi voltada para a Igreja de
Nossa Senhora do Socorro, na aldeia Kiriri, localizada no atual município de Tomar do Geru.
Principalmente pela frase, tantas vezes citada, do Padre Serafim Leite de que a igreja
“levantada pelo P. Luiz Mamiani della Rovere, era a mais bela de todas as Igrejas
missionárias fora da Baía” (LEITE, 1945, p. 326). Essa frase evidencia que essa Igreja
deveria ter algo especial para ter merecido o título de “mais bela” fora dos limites da sede da
colônia. A edificação desse templo é marcada por elementos que permearam a vida da
Capitania de Sergipe no período colonial. Nesse espaço ocorreu, assim como em toda a
colônia, o encontro dos índios com os propagadores da fé cristã, nesse caso os padres do
hábito preto.
Esse trabalho visa repensar a mentalidade da Igreja após a Reforma Católica
através de um templo religioso, buscando alicerçar o pensamento cristão da época com o
estilo de arte utilizado. Para ilustrar a difusão dos dogmas da Igreja foi adotada a Companhia
de Jesus como ícone na reformulação proposta no Concílio de Trento (1536-1563).
O elemento artístico presente na Igreja de Nossa Senhora do Socorro, assim como
na arte colonial brasileira de um modo geral, é o barroco. Dessa forma o presente trabalho
mescla a doutrina cristã ao estilo barroco buscando compreender elementos presentes nas
raízes da formação cultural brasileira. A discussão proposta não se deterá nem na figura do
índio, nem na do jesuíta, os sujeitos da História serão apresentados pelo seu feito, a Igreja.
Para isso, procurou-se perceber a incorporação da mentalidade tridentina presente no templo.
Na tentativa de estabelecer um “roteiro de viagem”, tendo como ponto de partida o objeto
localizado na Praça da Matriz, na cidade de Tomar do Geru, com o seu passado permeado
pelas figuras marcantes do período colonial brasileiro: o índio e o europeu (representado pelo
jesuíta).
Essa viagem tem por finalidade promover uma interação da História com a Vida.
Vida sim, promovendo o despertar da História da sua “necrópole” adormecida para saltar do
seu sono para o presente (FEBVRE, 1997, p.56). Na busca pela vida, tentou-se estabelecer
uma interpretação dos primórdios do espaço físico com base no acervo material edificado na
praça matriz somado à bibliografia produzida sobre o mesmo.
Na Igreja não foi encontrado o Livro de Tombo, nem referências do seu possível
paradeiro. No Arquivo Público do Estado da Bahia foram encontrados documentos referentes
à elevação da aldeia do Geru à vila, pelo corregedor Miguel Arez Lobo de Carvalho, e uma
correspondência deste ao Governo da Bahia denunciando o roubo de bens dos jesuítas após a
expulsão. Mas não há referência à construção da Igreja, nem venda dos bens da missão do
Geru.
Além dessas fontes, também existem as publicadas pela Biblioteca Nacional,
denominadas Documentos Históricos. Neles está contido o documento de compra do terreno
do Carmo pelos jesuítas, o que mais tarde seria o aldeamento do Geru. As fontes pesquisadas
para esse trabalho já foram utilizadas por outros autores que se debruçaram no estudo a
respeito da missão.
1. Signos e Símbolos
1101
Observa-se que na introdução de alguns trabalhos os autores se propuseram a fazer um estudo arqueológico,
mas não conseguiram desenvolver a idéia inicial.
1102
Convém ressaltar a existência de uma entrada lateral que dá acesso a um dos corredores.
Nesse palco central que é a nave, onde ocorre a encenação há também o púlpito
que proporciona a interação dos padres com os índios. As missas tinham uma dinâmica maior,
alternando a visão dos fieis pelo cenário que compõe a nave. O púlpito apresenta elementos
da arte chinesa, o que é comum de se encontrar tanto nas igrejas da Bahia como em Minas
Gerais, e sua função era receber o padre que faria uso da palavra para os fiéis.
Após a observação da singela fachada vamos deter o olhar na exuberância da
capela-mor e dos retábulos laterais. Visto o sol que reluz as bênçãos celestiais, abre-se na
única nave que compõe a Igreja o caminho para o palco onde é realizada toda a encenação da
catequese cristã. Os corredores laterais são utilizados para os padres se deslocarem, sem
serem notados pelos gentios, da sacristia para o coro ou para o púlpito. O partido retangular
facilitava a adequação da Igreja a um teatro, onde o palco é representado pela capela-mor, a
platéia é distribuída pela nave única e os bastidores correspondem à sacristia.
O espaço sagrado do templo é composto pelo altar-mor e altares laterais. A
harmonia dos detalhes que compõem os altares laterais é majestosa, há uma sincronia nos
elementos decorativos que transcende a funcionalidade, para promover apelo ao recinto,
mesclados aos valores simbólicos. A talha foi cravejada por uma decoração fitomórfica
1103
O I.H.S. foi popularizado pela primeira vez por São Bernardino de Siena, no começo do século XVI e,
posteriormente, adotado pelos jesuítas.
(designação aplicada à peça ou ornato com forma vegetal), com elementos de folhas, flores e
frutos distribuídos de forma simétrica. O fruto encontrado na igreja do aldeamento do Geru é
a uva, localizada principalmente no altar-mor, junto às imagens dos santos: Inácio de Loyola e
Francisco Xavier. É perceptível a incorporação de elementos do rococó, junto à decoração
fitomórfica, onde são encontradas características de rocalhas, cada objeto apresentado na talha
corresponde a um significado. De acordo com Costa:
(...) no caso da árvore, como símbolo de vida humana; das ervas, como
brevidade; das espigas, como sinal de fartura; das flores, como símbolos de
esperança; e dos frutos, representativos de realizações. Além de significados
genéricos, cada elemento ornamental possui também um conteúdo
simbólico. Assim inúmeros casos particulares de ornatos adquirirão um
interesse especial, pelo qual se interpretará o cedro como a excelência, o
cipreste como o incorruptível e o plátano como alteza. Entre as flores, os
jacintos serão marcas de sabedoria; os narcisos, de gentileza; o lírio, de
pureza. Entre as frutas, a maçã terá o significado de discórdia; o pêssego, de
intimidade; e a pêra, de perfeição. (TIRAPELI, 2001, p.64)
O fuste das colunas robustas é também todo decorado com motivo de rocaille
(decoração feita à base de motivos concheados). Essa decoração difere dos fustes encontrados
na Bahia, evidenciando a afirmativa de Lucio Costa de que a decoração desse templo é um
estilo à parte. Outra inovação é o aparecimento dos culs-de-lampe denominação técnica que
em português foi adaptada à palavra peanha, um pequeno pedestal que sustenta uma imagem.
Os culs-de-lampe ficam entre as colunas e tem a função de receber as imagens que
anteriormente eram colocadas nos ninchos. Estes objetos estão localizados tanto nos altares
laterais (dois em cada altar) como na capela-mor (também possui dois). Em todo o templo são
encontrados seis culs-de-lampe.
No alto dos altares laterais chama a atenção à figura de dois anjinhos. Ambos com
uma corneta nas mãos como que anunciando o início da missa e o contato com os céus. O
interessante é o semblante deles que muito lembra a figura de um índio. Podemos imaginar
que através da intenção dos missionários de conduzir os indígenas à fé, foi permitida certa
autonomia aos artífices para incorporar elementos dos gentios como forma de aproximação
estética. A presença da figura do indígena é também evidenciada por Lúcio Costa:
O arco cruzeiro (ou arco triunfal) é decorado com sete caras de anjo, simbolizando
o amor divino. Para o cristianismo a perfeição é representada pelo número sete, assim como
Deus criou o mundo em sete dias. Os rostinhos estão distribuídos em sincronia com os
detalhes localizados em cima deles, dois dos anjos estão ligados aos altares laterais por uma
decoração fitomórfica. O arco cruzeiro também apresenta como motivo de decoração flores
emaranhadas de espinhos. Os emaranhados ásperos lembravam a consciência da dor e do
pecado .
Depois da passagem pelo arco triunfal nos deparamos com o ápice do cenário do
palco, a capela-mor. Lúcio Costa evidencia que no final do século XVII ocorreu uma
mudança na antiga trama regular dos retábulos para dá lugar a uma ornamentação opulenta.
Há o afastamento das colunas que cedem o espaço para a inserção de imagens, os arcos dão
passagem para o dossel. Nota-se um aumento na “densidade demográfica da população
celestial” que povoa o altar e junto a isso se multiplicam os florões.
O frontal do altar central é muito parecido com o dos retábulos laterais. A
distribuição do arco é semelhante, o que difere é a decoração do centro. Enquanto nos
retábulos há uma flor centralizando as folhas, no altar mor existe um ponto vazio. Percebe-se
que os adornos apresentam também o rocaille, os ornatos fitomórficos, bem como a figura dos
atlantes. No altar central são encontrados seis atlantes, dois deles atrás do capitel.
O dossel é arrematado com uma ornamentação de madeira folheada recoberta de
tapeçaria sobre tronos, que resguarda o altar. Na verdade parece uma cortina que se abre para
apresentar a personagem principal, nesse caso a imagem de Nossa Senhora do Socorro. O
dossel é segurado, em cada lado, por uma figura que apóia seu pé na cabeça de um anjo.
Apresentam-se vestindo uma saia na cor goiaba, uma blusa amarela e na cabeça um adorno
dourado, eles lembram à postura dos soldados das legiões do Império romano. Entretanto, é
possível imaginar que o saiote seja feito de penas e apesar da postura rígida a representação se
assemelha à figura do indígena. Dessa forma, ao inserir elementos da realidade local na
decoração do templo, os padres estavam promovendo a aproximação dos símbolos presentes
na cultura do gentio mesclados aos dogmas cristãos, para dessa forma facilitar a catequese. A
imagem localizada a direita apresenta um defeito na perna direita que já estava prsente antes
da restauração da Igreja no período de 1989 a 1991.
Observa-se que atrás do dossel existem dois atlantes que seguram a ornamentação
interna. Atrás do dossel tem um arco decorado com o rosto de quatro anjos. O forro do
camarim tem a ornamentação semelhante ao forro da capela-mor, composto também com seis
folhas acantos. No camarim está localizado o trono. Trono sim, digno de uma rainha, a
soberana do templo, Nossa Senhora do Socorro. O trono tem três andares, no primeiro se
percebe uma semelhança com o adorno do culs-de-lampe. Já no segundo andar, o motivo
adotado é o fitomórfico e no último o rosto de um anjo.
O corpo de cristo se encontra num lindo sacrário de ouro, onde está esculpido o
Agnus Dei . O sacrário é um pequeno cofre colocado sobre o altar para guardar a custódia. A
sua decoração muito se assemelha ao adorno utilizados nos culs-de-lampe, com dois anjinhos
que representam o amor divino segurando uma cortina, sobre ramos de flores.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma analise mais detalhada devido a falta de fontes escritas. E os trabalhos que tinham como
objetivo de fazer um estudo de arqueologia histórica não o fizeram.
A igreja é um bem cultural inserida nos livros de Tombo Federal, no Livro
Histórico em 20 de março de 1943 com a inscrição nº 196 e no Livro Belas Artes no mesmo
dia com a inscrição 262-A. O tombamento inclui todo o seu acervo. Desde o tombamento em
1943, a Igreja só passou por uma restauração no período de 1989 a 1991, época em que foi
produzido um catálogo sobre a obra de restauração realizada no templo de devoção a Nossa
Senhora do Socorro. Entretanto, o monumento não está passando por uma vistoria e apresenta
algumas infiltrações, velas foram colocadas no lavabo, toalhas de TNT são coladas sob as
credências. A população precisa contar com um programa com a finalidade de despertar o
interesse e a responsabilidade pela manutenção do templo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TIRAPELI, Percival (org.). Arte Sacra colonial: Barroco memória viva. São Paulo: Editora
UNESP, Imprensa Oficial do Estado, 2001.
A comunicação presente visa refletir sobre alguns elementos que permeiam o universo
religioso das Rezadeiras do município de Governador Mangabeira, levando em consideração
a presença do catolicismo (re) significado, tido como popular, um misto das contribuições do
catolicismo europeu associado a contribuições das populações afro-brasileiras. Assim,
pretende-se investigar de que maneira o apego religioso pôde contribuir para pensarmos na
formação identitária das Rezadeiras.
.
INTRODUÇÃO:
1104
Pesquisadores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Gilberto Freyre, desde
o início do século XX já investigavam a formação cultural brasileira e mais tarde chegaram a
conclusão que esta descendia especialmente da influência de três povos: brancos, índios e
negros. Tais populações experimentaram um mesmo “espaço” territorial, desde o Brasil
colonial, e puderam a partir daí externalizar práticas culturais provenientes de suas diferentes
concepções de mundo.
Os portugueses logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos elementos
culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia. Contudo, na prática, o que se verificou foram outros
1104
Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”, Roger Bastide em “As religiões Africanas no Brasil” e
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala já se dispunham a historiar as raízes culturais brasileiras.
Esses fatores bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens negras
foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da cristianização,
e que foi considerado pelo senhor branco como meio de controle social, um
instrumento de submissão para o escravo. (BASTIDE, 1985, p.163).
Catolicismo Popular
O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito
menos suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa
o possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a
necessidade de intercessão de um membro religioso. Os santos são
acessíveis a todos os fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).
1105
Srª Celina Neris, charuteira aposentada e rezadeira. Apelidada de Dona Celininha.
1106
Depoimento da srª Celininha.
comungam desses dois universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das
concepções de mundo presentes entre elas. A rezadeira Neném1107 contribuiu sobre o assunto
com o depoimento:
1107
Srª Francisca Santos Oliveira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de Dona Neném.
1108
Depoimento da srª Neném.
1109
Srª Aumerinda Conceição Rodrigues, lavradora e charuteira em exercício da profissão. Apelidada na
comunidade como dona Merú.
1110
Depoimento da srª. Merú já citado.
nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural defendida por Bastide
(1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do
orixá do Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões
tradicionais africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário
da cultura ocidental, não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando
novos símbolos e ritos. Portanto, nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser
católica e ao mesmo tempo resguardar práticas dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum
problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São
Benedito. Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos
seus filhos. As súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de
angústia, tornou-se de fundamental importância para alcançar a graça:
Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher
,...e tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha
amiga ai disse: Isso não foi a toa( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá
em Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que
me valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito
qui quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São
Benedito que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda
pra fora , pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto
vida eu tiver. Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou
lá e disse: Seu Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui
mais não. O senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a
fazenda quem vai tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz,
quem quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem
quem me faça sair!1111
1111
Depoimento da srª. Neném já citado.
compreender a veneração aos santos e virgens negras ao qual Bastide faz alusão em seu livro:
As religiões Africanas no Brasil (1985).
Desse modo, nota-se que uma vida intercedida por santos protetores tende a
assegurar a estabilidade cotidiana das rezadeiras, nesse caso, os santos equivalem a
personificação das forças sagradas entre os seres humanos.
São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”1112, os santos
foram “associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo
oficial venerar a figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a
praticar a medicina caridosa, os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos
cultos afro-brasileiros, e é justamente dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela
maior parte de seus devotos: os santos meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam
doces, balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional
caruru de sete meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século
XVI, sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se
tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e
aos poucos se identificando com os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo
nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de
uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a
forma pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos
cultos afro-brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das
trocas culturais. As rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função
da presença marcante dos elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram
certo menosprezo em reconhecer as possíveis origens da benzeção, bem como se
1112
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada
em relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil,
desde a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões,
sobretudo por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico,
tendo em vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos
africanos.
demonstraram um tanto quanto taxativas ao relegar as religiões que descendem dos africanos.
Nesse sentido, a srª Celina disse que:
Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do Candomblé!
Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente tem que escolher
um caminho só!1113
Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a
frente. O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e
não essas coisas!1115
1113
Depoimento da srª. Celininha.
1114
Srª Maria Custódia Cerqueira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de dona Teka.
1115
Depoimento da srª. Teka.
filha tão amada de pai que ele já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,...1116
A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo
de seu nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o
santo era de cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e
proteção entre eles, membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos
gêmeos existiam de maneira incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de
favores. O São Cosme deveria proteger a família da srª Celininha independente das
solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos
e razões. A rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela
saúde de suas netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança
com os santos. No caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de
“abrir seus caminhos” e ter mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira
Neném:
O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete ano
eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos, morreu
também,... a vida miorou, miorou sim!1117
Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram
obtidas, assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que
logo eles puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª
Neném mencionou a srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que
dava orientações espirituais.
As rezadeiras concebiam a existência de um vínculo eterno entre elas, devotas e o
santo, não podendo haver o rompimento da aliança firmada, pois se caso viesse a acontecer,
as mesmas estariam sujeitas a possíveis cobranças.
Nessa atmosfera de devoção, a rezadeira Merú narrou uma determinada situação
em sua vida que a remeteu a identificar como possível “castigo” do santo, ao ter sido
momentaneamente ignorado:
1116
Depoimento da srª. Celininha.
1117
Depoimento da srª. Neném.
A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São
Cosme e Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo
firmado. Segundo ela, só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença,
seguida da interferência de outras pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a
curiosa situação em que um médico dá orientações à paciente para que se sirva dos serviços
de uma mandingueira no combate da doença. Tal situação nos remete a pensar que o Dr.
Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-brasileiros, inclusive reconhecendo
as limitações que a medicina oficial possui em determinadas “doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os
maus fluídos que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não
conseguia encontrar no plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou
explicações científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por
fim recorreu a uma explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam
dado nos últimos tempos acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú,
relembrou possíveis falhas em suas condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação
firmada entre ela e São Cosme e Damião: a oferta do caruru todos os anos. Assim, o
firmamento do vínculo entre os santos gêmeos e a rezadeira e o possível rompimento,
acarretou uma situação catastrófica na qual ela perdeu os movimentos do corpo.
Nesse sentido, acreditando que o Recôncavo apresenta traços das diversas
concepções culturais do mundo africano, é possível entender a situação de instabilidade que
fez parte da vida da srª Merú a partir da visão de mundo de alguns povos africanos. Na África,
acredita-se que a estabilidade da vida é regida por um equilíbrio de forças, seria a ação
constante do indivíduo com o mundo terreno que irá ser fator determinante para manter o
equilíbrio nas relações que executam. (HAMPATÈ BÂ, 1982).
1118
Depoimento da srª. Merú já citado.
Uma vez violando as forças que regem o universo através das relações de doação
e devoção, haveria a perturbação da organização do indivíduo. Nesse caso, a srª Merú quebrou
o equilíbrio existente entre ela e os santos gêmeos, o qual possuía um vínculo de oferta e
proteção, acarretando a desordem e o desequilíbrio na saúde.
No imaginário das populações afro-brasileiras, Cosme e Damião são entendidos
como santos, cuja impulsividade e vaidade rememoram as crianças, portanto os santos
meninos não gostam de serem contrariados e se caso alguém prometer algo para eles devem
cumprir o mais rápido possível, pois não admite interrupções nas ofertas. Notamos que apesar
de serem enxergados como santos católicos, São Cosme e Damião são agradados e venerados
como os Ibejís do Candomblé.
Ora, Cosme e Damião santos católicos em nada tem a ver com os Ibejís do
Candomblé que gostam de doces, balas e caruru, afinal tratou-se de médicos nascidos na
Arábia, cristãos, portanto seus agrados no mínimo se distanciariam de todos esses adorados
pelos Ibejís. Na verdade, sabe-se que tais práticas de agrado ao Cosme e Damião católico, da
mesma maneira que os orixás do Candomblé, tiveram seu surgimento a partir da
interpenetração cultural advinda do Brasil colonial. (LIMA, 2005).
Assim, os orixás africanos foram associados aos santos católicos havendo a
“correspondência” dos Ibejís ao santos Cosme e Damião. Contudo, os agrados costumeiros
ofertados aos Ibejís eram direcionados da mesma forma aos santos católicos, prática esta que
passou a ser executada pelos diversos grupos sociais e que perdura na atualidade.
Nesse contexto, há quem acredite fielmente que a forma de agradar o Cosme e
Damião seja ofertando doces e o caruru. Mas, se formos tomar como ponto de partida a
distribuição do caruru, por exemplo, de nada mantêm aproximações com a cultura européia,
muito menos é um prato típico da Arábia, onde nasceram os santos católicos. Do mesmo
modo, pensar na simbologia do caruru e os elementos que o compõe, a saber, do azeite-de-
dendê encontraremos marcas do “mundo africano”, que por hora encontra-se imbricado nos
festejos aos santos gêmeos.a
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos
preocupar em não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e
complexo, podendo abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo
participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos
defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não
devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada,
pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos
gêmeos trazem elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma
empreitada difícil de se resolver, contudo dentro desse universo é possível identificar
elementos presentes nessas duas tendências culturais. Ora a rezadeira tida como católica
recorre a uma médium – denominação mais amena, para muitas depoentes, que curandeira –
ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.
FONTES ORAIS:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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história: Revista do Programa de estudos pós-graduados em História e do departamento de
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LIMA, Vivaldo Costa Lima. Cosme e Damião: o culto aos santos gêmeos no Brasil e na
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de Mestrado. Bahia. UFBA, 2005.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org). A escrita da história:
novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Memórias e tradições: viveres de trabalhadores rurais
do município de Dom Macedo Costa Bahia (1930-1960). Dissertação de Mestrado. São
Paulo. Pontifícia Universidade Católica, 1995.
1119
Imagens De Fortaleza. Editora Museu do Ceará, 2006.
de trinta do século passado como um espaço em transformação onde os homens irão fazer uso
de seus poderes e desejos para “dar” a Sobral o titulo de a Princesinha do Norte.
Neste sentido faremos uso de uma serie de vinte fotografias do período, década de
trinta do século passado, que se encontram sob a guarda da Secretaria de cultura de Sobral,
digitalizadas em CD sob o titulo acervo arquitetônico de Sobral. As fotografias utilizadas
nesta pesquisa apresentam os espaços da cidade que eram transformados ou construídos neste
período, entre estes espaços podemos destacar o Mercado Público, Igreja da Sé, Escolas e
praças, além de tantos outros por onde a transformação e o olho do homem pudessem chegar.
As fotografias aqui utilizadas associadas a documentos e jornais da época poderão
nos apresentar uma das diversas possibilidades de reconstituição da cidade, no entanto no
desenrolar desta pesquisa pensamos ainda utilizá-las como objeto de memória, afinal se as
pensarmos como reflexo do momento acontecido e como a interpretação daquele momento
por seu produtor damos a ela um sentido atemporal e produtora de memória , afinal quando
compreendemos fotografia como representação pensamos como Pesavento1120, quando a
mesma considera que representação é trazer de volta um ausente, é reimaginar o já imaginado,
afinal o ato de lembrar é imbuído de sentimentos e memórias que são desvelados a partir de
um objeto desencadeador destas memória, nesta pesquisa este objeto serão as fotografias.
Pensando as fotografias como representação acreditamos serem elas portadoras de
conhecimentos latentes, conhecimentos estes que podem ser diversos daqueles do memento
da sua produção afinal pensar uma fotografia produzida na década de trinta e a mesma
fotografia olhada no século vinte é perceber um espaço temporal que irá ocasionar novas
interpretações diferentes daquelas do período de sua produção.
Para Koury1121, “a fotografia provoca no olhar uma síntese da memória pessoal”,
ora quando observamos uma fotografia a memória sobre o objeto representado vem a tona
desencadeando redes de significados que resignificam o ato de observar o objeto
representado.
Seguindo por este raciocínio iremos estudar a cidade de Sobral e a transformação
que sofreu procurando compreender o processo de urbanização e progresso que passou
entendendo as causas e conseqüências deste processo inclusive a constituição do imaginário
local sobre Dom José. Sabemos dos desafios de trabalhar com imagens ainda mais quando
estas trazem silêncios sobre si e sua produção, no entanto apresentaremos aqui uma das
1120
VER: PESAVENTO. Sandra Jathay. O imaginário da cidade: Visões literárias do Urbano – Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre. 2ª edição. Porto Alegre: Ed.:Universidade UFRGS,2002.
1121
KOURY. Mauro G. Pinheiro, Fotografia como objeto de memória: Produto técnico e suporte ideológico na
conformação do homem ocidental. In: Domínios da Imagem. Londrina, anoI, n.2 maio de 2008. pg.101 -106.
No meio da mata virgem dos sertões cearenses ecoava um canto forte e choroso, o
canto dos aboiadores, que partiam de suas casas sem saber o que o sertão guardava para eles,
1122
BURKE. Peter, Testemunha Ocular, Historia e Imagem. Bauru, SP; EDUSC,2004.
1123
José Tupinambá da Frota, estudou em Roma e retorna a Sobral como prelado e mais tarde bispo, no total seu
apostalado na cidade durou mais de cinqüenta anos, foi responsável pela criação de escolas, jornais, rádios,
hospitais, museus entre outros.
um misto de medo e aventura movia estes homens que partiam das suas casas rumo ao
desconhecido sujeitos ao vento frio das noites de lua e os dias quentes em meio a caatinga
cearense. É em meio a estes homens e ao berro das boiadas que eles transportavam que a
colonização do Ceará inicia-se principalmente na região norte, que foi esquecida pela coroa
até 1700, quando por lá começam a chegar os primeiros habitantes, esta povoação tardia não
será privilegio apenas da zona norte afinal a coroa só irá iniciá-la a partir da necessidade de
expansão das terras para a plantação da cana o que irá “expulsar” o gado na direção do Ceará.
Somente em 1757 a coroa portuguesa irá esforçar-se para povoar a colônia, até então o
processo de povoamento ia dando-se meio sem querer, ou seja, iam surgindo no meio dos
caminhos por onde passavam os comboios. É neste contexto que a coroa irá traçar um plano
urbanístico de desenvolvimento. O plano inicial da coroa não era tão complexo quanto o
elaborado pelo Marquês de Pombal, que para a instalação de uma Vila sempre deveria ser
preceder a elaboração de uma planta que preconizasse o traçado xadrez o mesmo utilizado
para a reconstrução de Lisboa.
Sobral iniciou seu povoamento a partir da fazenda Caiçara1124 sem adotar nem um
plano urbanístico, devido ao crescimento da Fazenda esta foi transformada em Vila no ano de
1773, quando ai irá passar a adotar o plano pombalino, no entanto a mesma irá adaptar este a
já, precária porem existente, estrutura urbana da cidade construindo assim com
individualidade um traçado próprio para o desenvolvimento. Devido a sua proximidade do
porto de Camocim e das oficinas de charque no Acaraú, irá desenvolver-se economicamente
tornando-se destaque na região, devido a este desenvolvimento econômico e cultural irá surgir
uma disputa silenciosa entre a cidade e a capital, Fortaleza, esta disputa é fortalecida pela
“independência” que Sobral mantém da capital tanto para realizar contatos com a Europa
quanto economicamente.
Este orgulho e independência irá declinar a partir do ano de 1935 quando será
construída a ponte sobre o Rio Acaraú o que irá facilitar as relações da cidade com a Capital.
“O declínio sócio econômico e político sobralense acentuou-se na segunda metade do século XX.
A partir da década de sessenta apresentou a problemática urbana características das cidades brasileiras no
período”.1125
A cidade desenvolveu-se a partir do gado e da carne de charque, com a crise
gerada em fins do século XIX, irá reverter seus investimentos para o comercio e o cultivo de
1124
Sesmaria de propriedade de Quitéria Marques de Jesus e de seu marido Antonio Rodrigues Magalhães, lá foi
erigida uma capela em homenagem e devoção a Nossa Senhora da Conçeição, onde mais tarde surgirá a cidade
de Sobral.
1125
COSTA, Antonio c. Campelo. Sobral da Origem dos Distritos. Sobral. Sobral Grafica e editora Ltda., 2008
algodão, o que proporciona o crescimento do núcleo urbano são desse período, os sobrados
que se erguiam majestosos pelo centro da cidade, comumente nas esquinas, principalmente na
Rua Nova do Rosário e Rua da Vitória. Estes tinham dois pavimentos no térreo funcionava a
venda e depósitos e na parte superior a residência. Imaginemos Sobral como uma cidade em
pleno desenvolvimento econômico no inicio do século XX. Juntemos a isso o poder e
influencia que a igreja mantinha sobre a cidade então brindemos esta imagem com o retorno
de Dom José de Roma, que agora retorna a sua cidade natal como religioso, trazendo idéias
progressistas e um plano ousado de ocupação do espaço urbano pela igreja, neste caso não
apenas no sentido religioso do termo mais também sociocultural. Neste sentido a primeira
metade do século vinte envolve a cidade em uma aura de superioridade e orgulho, os quais
serão sabiamente alimentados pela igreja e pelo imaginário popular que irá constituir-se ao
redor de Dom José, como “o segundo pai fundador” da cidade.
Enfim o declínio econômico de Sobral, assim como seu sentimento de
superioridade e destaque na região só irá realmente surgir com o fim da segunda guerra
mundial, neste momento a cidade será duplamente abalada, pois além do enfraquecimento
econômico irá perder seu grande benfeitor, Dom José.
De inicio surge uma fazenda, as margens do Rio Acaraú, a fazenda cresce e não
mais pode ser apenas uma fazenda torna-se um povoado que com fé ergue o culto a Nossa
Senhora da Conceição, inicia-se a construção da capela, e a seu redor surgem os primeiros
sinais de urbanização. Apesar do discurso de amor ao próximo os irmãos de cor não podem ir
à capela para ajoelhar e agradecer a deus por seu cotidiano e condição, então surge à criação
de uma pequena capela, afastada do frágil centro que se desenvolvia, ela surge em meio ao
suor e ao desejo de liberdade, a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretinhos, tão
humilde quanto seus fieis, é em meio a esta distancia que separa os templos de adoração que
irá surgir a primeira grande obra da cidade quiçá a mais importante, o mercado publico o
responsável pela demarcação do centro comercial da cidade, ao seu redor foi referencia para o
traçado urbano até que na década de trinta do século passado foi colocado sob terra afinal o
progresso não combina com a desordem urbana gerada pelos cavalos e carroças que
transportavam os viveres alimentício, nem tão pouco, a ausência de higienização nos seus
espaços, enfim no lugar que antes era referência para a cidade surge uma praça. A destruição
do mercado1126 não foi tão calma e bem aceita como diz a historiografia ou o imaginário local,
pois um grupo de comerciantes recusavam-se a sair daquele espaço, no entanto suas opiniões
não foram levadas em consideração pois o que estava em jogo eram os interesses dos
administradores da cidade e não as razões dos comerciantes. É perceptível a força que o
discurso utilizado pela igreja tinha, pois a memória local não considera a idéia de Dom José
ser movido por interesses da igreja, quiçá, pessoais;
A igreja como bem já colocamos aqui será o ponto de aglutinação e gerador do
desenvolvimento da cidade, afinal em cada igreja sempre haverá um largo onde irão acontecer
as quermesses ou simples aglutinação do povo. Sua presença será fortalecida pelo retorno de
Dom José a Sobral, afinal irá iniciar uma ocupação espacial da cidade através de serviços que
sempre irão levar o nome da igreja, como é o caso da instalação do Seminário Diocesano e da
Santa Casa que estavam diametralmente opostos e localizados em locais periféricos da cidade,
ou seja, cada um ao lado das vilas operárias, a logística de Dom José era forte e bem
articulada, afinal ocupar o imaginário do povo sobre a igreja era iniciar a consolidação de um
discurso que na década de trinta ainda dava seus primeiros passos. Foi em meio a estes dois
prédios que irão desenvolver-se outras obras, todas sugerindo a idéia de um espaço de
comunhão entre cidade e a igreja.
A influência religiosa sobre a cidade era intensa chegando até ser questionado o
poder de decisão do poder publico, neste sentido, eram constantes os atritos entre o Bispo e o
Magistrado, José de Sabóia, ambos disputavam a hegemonia do poder local, donos de
personalidades fortes e marcante, desejavam transformar a cidade e elevá-la ao progresso.
“Dom José gostava de ter tudo sobre seu controle, era um homem de visão,
muito bondoso e brincalhão, mais não gostava de ser contrariado, por causa
disso ele e o José de Sabóia viviam brigando! Cada um queria mandar mais
que o outro”. 1127
1126
Para saber mais sobre o mercado e o processo de destruição e ocupação pela nova praça, Coluna da Hora,
Ver: José Tupinambá da Frota, Historia de Sobral.
1127
Depoimento de José Teunes de Andrade Moura, em julho de 2008.
1128
Magistrado de Sobral, possuía grande influencia política na região.
De fato Sobral é termos urbanísticos impar quanto aos núcleos de Icó e Aracati
que seguiram o modelo pombalino, afinal ela surgiu em meio a passagem do gado, como
pouso de descanso para os viajantes cansados, uma fazenda no século XVII e no século XX
uma cidade que auto denomina-se como “A Princesinha do Norte”.
Visões da Cidade
A poetisa Dinorha Ramos1130 representa um pouco do que seria Dom José para o
povo de Sobral, pode-se perceber um certo sentido de exaltação e até adoração, o mesmo pode
ser inserido como reflexo do imaginário que naquele período já constituía-se em torno deste
personagem da cidade. “Um grande príncipe, de ti se enamorou perdidamente...”, O verso
traduz o simbolismo que pairava sobre o bispo, o de um ser superior, um príncipe que
1129
CASTRO. L. de, Pequena informação relativa à arquitetura antiga no Ceará. Ed. Imprensa universitária da
UFC, 2ª Ed. Fortaleza, 1977.
1130
Poema da autoria de Dinorha Tomaz ramos, Ave, sobral. In: Soares, Maria Norma Soares. Sobral: Historia e
Vida. Sobral: Edições UVA, 1997.
precisava ser exaltado e adorado afinal ele é a causa da transformação da cidade, apenas ele é
o responsável por esta transformação.
A cidade deve a ele devoção e adoração, afinal foram dele que a cidade recebeu o
cetro e a coroa. Segundo Soares:1131
Rica pela pecuária e pelo comercio, culta pelo intercambio com os centros
europeus e, ainda abençoada pela igreja, Sobral cresceu e tornou-se
portentosa e progressista, gerando um sentimento que não é um simples
bairrismo, identificado pelo intelectual e político Parcifal Barroso como a
sobralidade”.
Para o autor, Sobral é uma cidade abençoada, pois alem de ter uma economia forte
e vigorosa que proporciona uma situação de contato direto com a Europa, recebendo de lá
influencias de comportamento e cultura, ainda será a menina dos olhos do Bispo Dom José
que não medirá esforços para dá a Sobral o caráter de cidade moderna e desenvolvida, este
contexto proporcionará em seus cidadãos o sentimento de orgulho e amor pela cidade,
sentimentos gerados pelo imaginário que será alimentado pela igreja, de superioridade
regional.
“Pensamos o imaginário social de Sobral como Pesavento1132: “...Representação
do mundo, que se legitima pela crença e não pela autenticidade ou comprovação”. Estas são
as razões que consolidam em Sobral a idéia de uma cidade progressista e em constante
transformação, graças a abnegação e o desprendimento material de um bispo que abre mão de
qualquer interesse pessoal ou favorecimento em troca do crescimento da sua terra natal, idéia
que irá desenvolver o orgulho natural de seus habitantes, ou melhor a sobralidade.
Dom José retorna de Roma no ano de 1918, como prelado local,no entanto logo
torna-se Bispo e irá realiza uma verdadeira obra de reconstrução e aparelhamento da cidade
de serviços e prédios públicos de grande relevância para a cidade, sua influencia se estenderá
bem além destes serviços e igreja, pois o mesmo terá papel decisivo sobre as obras realizadas
pela administração pública local. Ainda em 1915 a diocese irá realizar a compra do antigo
sobrado do Senador Paula Pessoa, com o intuito deste servir de residência para Dom José, o
qual realizará uma reforma ampliando o prédio para dois andares, dando a ele o estilo
neoclássico. A reforma foi concluída em 1927, no entanto Dom José resolve doar o prédio
para a instalação de um colégio para moças, que seria dirigido pelas irmãs Santana, o
1131
Ibd.
1132
Ibd.
estabelecimento será o primeiro da região a oferecer ensino secundário para moças, desta
forma atrairá as moças da região afim de completarem seus estudos.
A fala da depoente sugere que as pessoas que estudavam lá eram todas de famílias
abastadas, as que podiam pagar pelo estudo, logo entendemos que esta era obra não
beneficiava a todos e sim a uma pequena parcela da população e não a toda a população como
sugere a historiografia local. Questionada sobre Dom José a entrevistada afirmou que “Ele era
um homem forte, gostava de contar piadas, uma vez foi visitar o Acaraú, lá eu o conheci, a
cidade toda foi enfeitada com bandeiras coloridas, era uma festa só! Ele pediu para conversar
com a gente antes da celebração e começou a contar anedotas! Era um homem decidido. Não
lembro se no colégio havia vaga para as moças de famílias pobres, sei que havia o orfanato,
mais não tenho certeza disso”
As tentativas de desenvolver a educação secundaria em Sobral, não ocorreram
apenas com o colégio para moças, desde seu retorno de Roma que o Bispo tentava instalar na
cidade um colégio para homens, que somente haverá êxito no ano de 1934, O colégio
Sobralense, que irá entrar em funcionamento ao lado do Seminário Diocesano, porem os
alunos do colégio e do seminário eram tratados de forma diversa, afinal os meninos do
seminário eram em sua grande maioria oriundos de famílias pobres que não podiam pagar
pelo estudo e hospedagem, estes eram mantidos pela obras por doações e ações das dioceses
do interior. Segundo o depoente Edson1134, a rotina de internos era diferente pois haviam os
que podiam pagar e aqueles que vinham pelo desejo de estudar, e não podiam pagar, estes
viviam da caridade e de doações.
“Durante a missa eles ficavam de um lado e nós do outro! Eles dormiam em um
prédio diferente do nosso, e também não comiam com a gente! Não sei onde assistiam aula,
mais não era nas mesmas salas que a gente!”
1133
Depoimento de Maria helena de Andrade Moura, julho de 2008.
1134
Depoimento de José Edson Magalhães, Janeiro de 2008.
11351135
Adotamos para esta pesquisa o conceito de discurso empregado por Michel Foucault, em “A ordem do
Discurso”, segundo o qual: “O discurso (...) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é
também, aquilo que é o objeto de desejo; e visto que – (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.
1136
Sobre a construção de Brasília e o processo de interiorização da modernização ver: HOLSTON, J. A cidade
modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ARRUDA, Márcia
Bomfim. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do século XX.
Dissertação (Mestrado em História) - Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2002.
1137
Sobre a vocação comercial de Feira de Santana ver: NASCIMENTO, Carla Janira Souza do. A inserção de
Feira de Santana na Região Econômica do Paraguaçu. In: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS
ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Desenvolvimento Regional: análises do Nordeste da Bahia. Salvador:
SEI, 2006. p. 167-186.
1138
Sobre o desenvolvimento, estradas e comércio na Bahia ver: PORTO Edgard. Desenvolvimento e território
na Bahia. Salvador: SEI. 2003.
1139
Sobre a redução dos desequilíbrios regionais, ver CRUZ, Rossine Cerqueira da. A inserção de Feira de
Santana (Ba.) nos processos de integração produtiva e de desconcentração nacional. Tese (Doutorado em
Economia) - Instituto de Economia. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.
contrário, levantar questionamentos sobre elas mesmas apontando falhas, indicando limites e
excessos. As representações e/ou imagens construídas sofrem alterações em decorrência do
transcurso do tempo e a depender do olhar ou da perspectiva daqueles que constroem tais
representações.
O comércio representava, em sentido amplo, a própria razão do existir de Feira de
Santana1140. Um dos motivos estava em sua localização no entroncamento das principais
estradas entre a costa e o sertão, o que fizera progredir como centro comercial líder do
interior.
O percurso realizado pela sociedade local na constituição e manutenção de uma
identidade comercial, antes de compor um processo pacífico, construiu-se como um campo de
embates que se desdobraram em diversos momentos, desde as primeiras décadas republicanas,
quando o comércio adquiriu papel central no discurso das elites como elemento articulador da
construção de um ideal de progresso e civilidade, até as últimas décadas do século XX,
quando se ensaiou definir uma vocação e uma identidade industrial para Feira de Santana1141.
Em meados do referido século, operacionalizou-se a consolidação da representação e da
identidade de cidade comercial, e este feito não se produziu sem conflitos. Ao longo da trama,
foram-se estabelecendo imagens, práticas e estratégias para possibilitar o reconhecimento da
urbe enquanto cidade moderna e comercial e, ao mesmo tempo, controlar os elementos que se
mostravam destoantes com a urbe desejada.
A modernidade tem suas ligações intrínsecas com a modernização. O espaço
físico da modernização, sua concretude acelera a modernidade, alarga os sentimentos ditos
progressistas1142. O comércio feirense era um dos veículos, senão o principal, da concretude
da modernização da urbe, expressava não apenas a sua vinculação com o capitalismo e sua
dinâmica bem como o progresso alcançado, constituindo-se em uma das representações da
cidade. O mundo da mercadoria e do valor de troca é fundamental para que a cidade assuma
1140
POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. Salvador: Itapoã, 1968. p. 306-307.
1141
Sobre o discurso das elites nas primeiras décadas republicanas, ver: OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana
Moraes. De empório a Princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937). Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. SILVA, Aldo José Morais. Natureza
sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no
interior da Bahia, 1833-1937. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2000.
1142
Sobre as ligações intrínsecas entre modernidade e modernização e o alargamento dos sentimentos
progressistas, ver: REZENDE, Antonio Paulo. Desencantos modernos: histórias da cidade do Recife na década
de XX. Recife: Fundarpe, 1997. p. 25.
seu papel de agente da modernidade, para que se produza o contraponto entre o urbano e o
rural, com suas mitificações1143.
Em Feira de Santana, ambicionava-se a consolidação das práticas urbanas, e a
cidade era então identificada pela variedade das trocas comerciais realizadas. Estas
colaboravam para a construção de uma imagem da urbe que contrastava com as
representações do mundo rural sertanejo no qual estava inserida1144. Cidade comercial por
excelência, onde negociar, comerciar e arrematar eram, sob o ponto de vista de Pedro
Jacobina - um personagem do romance de Juarez Bahia - uma espécie de vocação feirense,
Feira de Santana era considerada muito mais, era o lugar do progresso, da realização de
utopias, era a terra da promissão1145. Lugar para o qual as velhinhas de uma localidade no
interior do norte, ao abençoar as crianças desejavam-lhes que Deus as levasse1146. Local para
onde se dirigiram alagoanos, piauienses, sergipanos, pernambucanos, capixabas, rio-
grandenses-do-norte, ipiraenses, iraraenses e outros.
Feira de Santana era também uma cidade-ímã1147 e atraía por reunir aspectos
como:
1143
Sobre as mitificações e arquétipos do campo e da cidade, ver: WILLIAMS, Raymond. O Campo e a cidade:
na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
1144
Sobre as representações do sertanejo, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do
Nordeste e outras artes. Recife: FJN: Massananga; São Paulo: Cortez, 1999.
1145
Sobre Feira como a terra da promissão, ver: BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.p. 66.
1146
BOAVENTURA, Eurico Alves. A velha e a nova cidade. apud, DÓREA, Juraci. Eurico Alves e a Feira de
Santana. In: GODET-OLIVIERI, Rita (Org.). A poesia de Eurico Alves: imagens da cidade e do sertão.
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: Fundação Cultural: EGBA, 1999. p.77.
1147
De acordo a concepção de Raquel Rolnik, a cidade-ímã é como um campo magnético que atrai, reúne e
concentra os homens. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.12.
1148
MOTA, Clóvis. Memorial do Inspetor Educacional responsável pela 5ª Região da Circunscrição Escolar
sediada em Feira de Santana. Folha do Norte. Ano 48. n. 2532. 18 jan. 1958.p.2.
1149
FEIRA de Santana – Celeiro do Progresso Revista Fiscal da Bahia. n. 76/77. maio/jun.1952. Apud: Folha do
Norte, ano 42, n. 2247, p.1, 2 ago. 1952.
1150
SILVA. Hugo Navarro. Meu caro Aloísio. Folha do Norte, ano 41, n. 2166, p.4, 13 jan. 1951. p.4.
ver uma Feira que, mesmo possuindo equipamentos do moderno e do progresso, como as
estações de rádio, contraditoriamente através das sociabilidades urbanas, mostrava-se
provinciana, mais que isto, problemática.
As representações do mundo social são arquitetadas em meio aos embates entre
grupos políticos e sociais, assim, cada grupo, de acordo com os seus interesses, elabora
imagens, discursos, e impõe à sociedade a sua volta os significados que se fazem
convenientes. A configuração urbana delineada por Navarro “Em Meu Caro Aloísio” é, neste
sentido, datada. Constituía-se como uma resposta àquilo que era percebido como fora da
ordem, destoante com a urbanidade, resultante, além, de uma administração pública
considerada ineficaz e desastrosa, do desenvolvimento de hábitos considerados inapropriados.
Para ele, não havia motivos dos quais a cidade se envaidecesse; ao contrário, a urbe havia-se
tornado um problema ante os indivíduos que, com suas práticas sociais e políticas,
desenhavam outro cenário.
Para as elites da cidade, aqui compreendidas como representantes da política, da
associação comercial, dos colunistas sociais e cronistas: na Feira de Santana, identificada
como grande cidade comercial, mais que bisonha, cidade progresso, paradoxalmente bizarra,
fazia imprescindível disciplinar as condutas e os hábitos dos seus habitantes. Tornara-se
imperativo adequar os costumes e práticas dos citadinos à modernidade que se ensaiava na
urbe e que se divulgava em meio às representações construídas sobre a cidade.
Animais soltos, esgotos correndo nas ruas, refeições em feiras livres, carne bovina
transportada em carroças e comercializadas em bancas de madeira, leite vendido cru e
misturado à água, entulho e lixo depositado nas ruas1151 estavam entre os “maus hábitos” a
serem extirpados mediante as políticas normatizadoras propostas e/ou implantadas pelos
administradores da cidade. Em diferentes períodos, as reclamações e as discussões para alterar
tais costumes explicitaram, ao mesmo tempo, o incômodo causado e a insistente presença
destes nos diversos espaços da urbe.
Um reclame publicado pelo JFN, em 1951, indicava como as praças ajardinadas
1152
tinham um uso imprevisto pelos seus idealizadores . No dia-a-dia citadino, a Praça
1151
LEITE com água. Folha do Norte, ano 41, n. 2170, 10 fev.1951. Coisas da cidade p. 1. LEITE apreendido.
Folha do Norte, ano 60, n. 3160, 08 nov.1969. p. 6. MAIS leite apreendido. Folha do Norte, ano 60, n. 3161, 15
nov. 1969. p. 1
1152
ENTULHO na rua. Folha do Norte, ano 41, n. 2174, 24 fev.1951. p.4.
Bernadino Bahia, além de local de lazer ou passeio, também se tornara depósito dos restos de
construções erguidas ao seu redor. A praça que deveria exibir sinais do moderno, de ordem,
paradoxalmente tinha o seu sentido invertido pelo uso que alguns indivíduos dela faziam1153.
Aos olhos do reclamante, a fisionomia urbana ficava comprometida diante daquele velho
hábito e preocupava os que desejavam uma urbe de aparência bela e limpa. Mas o problema
não estava apenas nos entulhos jogados nas praças.
Em sessão ordinária da Câmara Municipal, realizada em 30 de maio de 1955, o Sr
Mário Porto apresentou um requerimento no qual solicitava a quem de direito, providências
no sentido de coibir os constantes despejos que saíam dos canos para as sarjetas das casas de
“mulheres de vida airosa”, situadas no antigo Beco do Cinema Santana1154. A aprovação do
mencionado requerimento ocorreu na sessão seguinte da Câmara, tendo o Sr. Jorge Watt
afirmado que a sua aprovação “[...] viria satisfazer as exigências da saúde pública e
contribuiria para o melhor asseio da cidade”1155.
Entretanto, jogar águas servidas em vias públicas, mesmo proibido pelo Código
de Posturas, em seu artigo 219 1156, não era costume exclusivo das “mulheres de vida airosa”.
O conjunto da população que não dispunha de local para a construção de fossas ou do serviço
de uma rede de esgotos, também realizava tal prática. Destarte, a ausência de uma rede de
esgotos se constituía noutro motivo de queixas relativo à falta de higiene na urbe1157.
Apelos do Executivo e da Câmara Municipal, da Associação Comercial e de
outros setores foram dirigidos aos governantes estaduais e federais para a construção de uma
rede de esgotos na cidade, desde o início dos anos 50 1158. Para a classe empresarial, não havia
justificativa para que uma cidade do porte de Feira de Santana continuasse a sofrer com os
odores fétidos e outros incômodos resultantes da falta de saneamento básico. A inexistência
da rede de esgotos não era simplesmente uma questão de saúde pública. Tornara-se uma
questão associada ao desenvolvimento e ao progresso, a consolidação da cidade comercial era
ameaçada pela ausência do sistema de esgotamento sanitário, que permitia a construção de
1153
Sobre as praças como um signo do moderno e um testemunho de civilização ver: ARRAIS, Raimundo. O
pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas: FFLCH:
USP, 2004. p.229.
1154
RESUMO da Ata da 28ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal. Folha do Norte, ano 46. n. 2410. 17 set.
1955. p.4. Ver também: CMFS. Arquivo Altamir Alves Lopes. Livro de Atas nº.03. Ata da 28ª Sessão Ordinária
da Câmara Municipal em 30 de maio de 1955. p. 176.
1155
CMFS. Arquivo Altamir Alves Lopes. Livro de Atas nº. 03. Ata da 29ª Sessão Ordinária da Câmara
Municipal em 31 de maio de 1955. p.180.
1156
PREFEITURA MUNICIPAL DE FEIRA DE SANTANA. Código de Posturas. Lei nº 1 de 29 de dezembro de 1937. e
Lei nº 364 de 18 de janeiro de 1963. Feira de Santana. 1965. (Art. 219. p. 51.)
1157
Folha do Norte, ano 60, n. 3132, 26 abr.1969. p.1
1158
COLETÂNEA de Correspondências Expedidas e Recebidas. 1945 – 1960. Telegrama ao Getúlio Vargas.
Feira de Santana. Acfs.
imagens negativas acerca da urbe. A preocupação voltava-se para o olhar daqueles que
visitavam a cidade e eram potenciais consumidores.
A falta de assepsia da cidade, entretanto, não se restringia à questão da rede de
esgoto e não era motivo de queixa apenas dos vereadores e de outros setores da elite. Também
era vivenciada pela população, que demonstrava o seu desagrado através das colunas
“Queixas e Reclamações” e “Coisas da Cidade” do JFN. Apesar dos reclamos dos moradores
quanto à sujeira das vias públicas, a colocação de detritos nas ruas persistia como um
comportamento rotineiro da população, enquanto expressão da inabilidade administrativa do
poder público municipal. Em 1953, a não realização da limpeza diária tinha como justificativa
o abandono do trabalho pelos varredores cujos salários estavam atrasados1159.
Apresentar-se de modo mais higiênico continuou como um objetivo de difícil
alcance. O hábito de depositar os detritos nas ruas persistiu e, em 1968, mediante o PDLI foi
proposta a implantação de um sistema organizado de coleta de lixo. Na justificativa da
proposta, foram colocados em relevo o tamanho e a importância da cidade que requeria um
sistema de coleta de lixo modernizado. Contudo, a falta de higiene era expressada no acúmulo
de lixo depositado nas vias públicas e, também, nos maus-cheiros que pairavam sobre a
cidade, entre eles, o das fábricas de sabão localizadas em áreas residenciais.
Devido ao crescimento espontâneo da cidade, no centro urbano encontravam-se
habitações destinadas à moradia, ao comércio e à produção de artigos. Tal situação era
comum, considerando-se que, até o final dos anos 60, não havia uma definição quanto às
áreas residenciais, comerciais e industriais. Assim, as fábricas situadas na área central da urbe
causavam inconvenientes como a emissão de gases e ruídos, além do lançamento de resíduos
nos passeios e vias públicas, etc.
Os odores fétidos, porém, não eram emanados apenas do abate do gado bovino e
do manuseamento de determinados produtos nas fábricas. Os chiqueiros, também localizados
em áreas do centro, a exemplo da Rua Visconde do Rio Branco (trecho conhecido por Rua do
Sol), desagradavam à vizinhança pelo péssimo odor1160. Além disso, os porcos incomodavam
pela facilidade com que circulavam nas ruas. Uma parcela dos moradores considerava que,
diante do progresso alcançado pela cidade, não era mais viável a permanência de tais hábitos,
tornando-se indispensável alterar o cotidiano e ordenamento da cidade.
1159
COISAS da cidade. Folha do Norte, ano 41, n. 2165, 6 jan. 1951. p. 4. WATT, Jorge. Fatos da Semana. Folha
do Norte, ano 44, n. 2319,19 dez. 1953. p. 6.
1160
CRIATÓRIO de porcos. Folha do Norte, ano 46, n. 2459, 25 ago.1956.p 4. CRIATÓRIO de Porcos. Folha
do Norte, ano 42, n. 2467, 20 out. 1956. p. 6.
1161
ANIMAIS à solta. Folha do Norte, ano 41, n. 2168, p.4. 27 jan.1951. Coisas da Cidade. p.4.
1162
Folha do Norte. ano 41. n 2170. 10 fev. 1951. p. 1.
1163
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 2 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p.78.
Travessa Leonardo Borges às desordens que retiravam o sossego daquela artéria1164. O JFN
não somente tornava pública a insatisfação das pessoas contrariadas com o barulho e o
reboliço no local, como sugeria que as reclamações fossem encaminhadas ao delegado de
polícia. Atribuía-se a esta o poder de disciplinar os espaços e controlar os comportamentos.
Buscava-se, assim, a imposição de uma ordem urbana básica ou de um “padrão básico” de
comportamento1165.
Quase seis meses após a reclamação anterior, o colunista do JFN assumia a
posição de porta-voz das famílias feirenses que alardeavam a presença das “pensões alegres”
nos locais que deveriam ser territórios exclusivos das nobres famílias da Princesa do
Sertão1166. Explicitava-se o desejo de controlar os espaços da urbe, definindo os locais para a
atuação de cada classe. Buscava-se estriar a cidade, determinar quais os sujeitos que deveriam
estar neste ou naquele local. Procurava-se evitar o convívio dos diferentes segmentos nas ruas
e bairros eliminando-se, sob o ponto de vista das elites, os incômodos e os conflitos aos quais
elas estavam sujeitas em conseqüência de tal convivência.
Atribuir à polícia competência para intervir em ambientes “duvidosos” e controlar
os comportamentos desviantes e / ou inadequados em um determinado território se constituiu
em um discurso comum aos magistrados e aos editorialistas do JFN. Eles almejavam
estabelecer um comportamento padronizado e a demarcação de territórios apropriados para o
conviver das elites. As estratégias de definição de um território não são neutras, comportam
tensões políticas, sociais e econômicas manifestadas no viver citadino por diferentes meios.
Assevera Foucault que o território é, antes de tudo, uma noção jurídico-política:
aquilo que é controlado por um certo tipo de poder1167. Neste sentido, mediante as críticas e
reclamações sobre as boites e o circular das prostitutas no perímetro comercial e arredores,
exercitava-se o poder de influenciar no ordenamento social da urbe, ou seja, na redefinição
dos territórios da cidade nas décadas de 50 e 60.
Afastar os meretrícios da área central da cidade não se constituía somente numa
atitude em defesa dos bons costumes e da moral. Tratava-se de ordenar as categorias e os
grupos sociais em suas mútuas relações e de determinar quem deveria ou não permanecer nos
territórios em que a expansão comercial ganhava terreno.
1164
DESORDENS. Folha do Norte, ano 41, n. 2166, 13 jan.1951. Coisas da Cidade p.1.
1165
Sobre a imposição de um padrão básico de comportamento no espaço urbano, ver: STORCH, Robert D. O
Policiamento do Cotidiano na Cidade Vitoriana. Cultura e Cidade. Revista Brasileira de História. São Paulo:
Anpuh, Marco Zero, v. 5. nº 8/9. set.1984/ abr.1985. p.19.
1166
PENSÕES alegres entre as famílias. Folha do Norte, ano 41. n.2191, 07 de julho de 1951. Coisas da Cidade
p.1.
1167
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1992. p.157.
1168
BAHIA. Governo Estadual. Plano de Desenvolvimento Local Integrado de Feira de Santana. Salvador:
Coplan, 1968.p. 101.
O ato de rememoração de uma pessoa não é natural e muito menos espontâneo, ele é sempre
carregado de sentidos e traz consigo uma serie de características de operações. Destaca-se,
nesse caso, o trabalho de composição da memória, onde ela é minuciosamente trabalhada pra
se criar um passado que faça sentido para a pessoa que lembra, além disso, esse fenômeno é
marcado por operações como a projeção, a transferência, e a seleção, o que faz com que a
memória não seja algo tão natural e evidente quanto possa parecer. É tendo estas
considerações em vista, que este texto propõe – se a analisar que visão de cidade e que
memória Joanita da Cunha construiu para a cidade de Alagoinhas no período compreendido
entre as décadas de 1930 e 1940. Joanita viveu na cidade de Alagoinhas até o ano de 1948,
quando se mudou com seu marido e filho para a cidade de Propriá – SE. Passados
aproximadamente 40 anos desse fato, já na cidade de Belo Horizonte – MG, ela escreve um
livro de memórias intitulado Traços de ontem, no qual ela narra suas memórias pessoais
vividas em Alagoinhas. A partir das imagens criadas pela autora em suas memórias procuro
identificar que leituras e representações ela cria para a cidade e procuro interrogar que cidade
Joanita cria para si e por quê? E que fatores a levaram a produzir esta e não aquela imagem
de cidade?
1169
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. pp. 27-29.
1170
BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu município. Alagoinhas, Typographia Popular, 1902. P. 32
1171
Idem. p. 39.
1172
BARREIRA, Americo. Op. Cit. pp. 39-40.
1173
Idem. pp. 41-42.
1174
Idem.
1175
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 27.
1176
SANTOS, Joanita. Op. Cit. p. 27.
1177
Idem. p. 28.
apresentava mais vantagens, como localização e terreno. Além disso, Joanita diz que a antiga
vila estava destinada “à estagnação e decadência”1178, porque com a facilidade de transporte
para Salvador, a nova vila tinha tudo para alcançar rapidamente o progresso e o
desenvolvimento em detrimento do antigo núcleo populacional e ainda decreta no final:
“decaiu”1179. Ou seja, para Joanita a revolta daquela população se explicava por uma espécie
de despeito e, pior que isso, estava fadada ao fracasso como ela mesma afirma com todas as
letras. No entender dela uma população não poderia lutar contra as forças do progresso, que,
no caso de Alagoinhas, se apresentava puxado pela locomotiva de um trem. Ela opõe uma
cidade destituída de canais de comunicações com outras localidades, com dificuldade de
acesso a outras cidades e que estaria condenada ao isolamento a uma cidade nova, crescente,
que se desenvolvia graças à presença do trem em sua realidade no qual sua população, “até
então condenada ao isolamento começou a viajar, a se comunicar, a viver melhor,
comportamentos que elevaram a mentalidade do povo, refletindo, sobremaneira, na vida
sociocultural do lugar”.1180
A partir daí Joanita atrelou o desenvolvimento e progresso da cidade à presença da
estrada de ferro na vida do lugar. Assim tanto o desenvolvimento das lavouras de fumo e de
laranja e a atividade comercial da cidade tornam-se devedores da ferrovia, pelo fato de que a
proximidade desta possibilitava obviamente a facilidade de transporte, tanto para o
escoamento da produção, quanto para o acesso a novos produtos1181.
Além do aspecto econômico, a autora chamou a atenção para o aspecto cultural
que foi possibilitado pela imagem do trem1182. A regularidade do transporte para centros
urbanos maiores e mais desenvolvidos, como Salvador, possibilitou o contato com uma série
de novidades e avanços na área cultural e tecnológica, inclusive o acesso ao cinema, pois, de
acordo com Joanita, muitas pessoas da cidade iam até a capital para resolver os mais diversos
negócios e aproveitava para conferir as ultimas fitas produzidas por Hollywood.
De Salvador, através do trem, os alagoinhenses mantinham contato com as últimas
novidades da moda, os últimos modelos de calça, vestidos, saias, acessórios, assim também
como das revistas femininas da época. De certo o modo o trem atuava nas mentes das pessoas
muito além da sua materialidade e da sua função concreta. Na representação produzida por
Joanita e por muitos dos seus contemporâneos, o trem simbolizava, principalmente, até as
1178
Idem. p. 29.
1179
Idem.
1180
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit.. p. 29
1181
Idem. pp. 29-30.
1182
Idem. pp. 23-24.
duas primeiras décadas do século XX, o ápice daquilo que era considerado civilizado e
progressista para cidade de Alagoinhas.
Esta narrativa sobre o nascimento da cidade, construída no texto de Joanita, não
era de modo algum, algo desconhecido pelos alagoinhenses. Havia, e ainda há, em Alagoinhas
uma repetição incessante de uma série encadeada de fatos relativos aos “primeiros tempos” de
existência do município. Era algo produzido e reproduzido através das narrativas de pais para
filhos, de uma geração para a sua sucessora, em uma “seqüência histórica de tradição
oral”1183.
Os escritos também contribuíram para esta cristalização de uma dada memória
para a cidade. Além do próprio texto de Joanita, que contribuiu para a manutenção e o reforço
de um modelo narrativo1184 sobre Alagoinhas, outros texto anteriores ao dela, inclusive
podemos situá-la como devedora destas construções, já haviam lançado as bases para uma
esquematização e uma convenção1185 na escrita da história de Alagoinhas.
Entre estes, podemos citar dois, que são mencionados por Joanita, que apresentam
uma série repetida de fórmulas e modelos na descrição dos dados relativos à cidade. O
primeiro foi Alagoinhas e seu Município1186, de Américo Barreira, publicado em 1902. O
autor era um médico cearense que foi designado para Alagoinhas, em 1897, onde seria o
responsável pelo atendimento médico daqueles vindos de Canudos em decorrência da guerra e
também pela instalação de um hospital para tratamento de variolosos. O texto foi dividido em
três partes. Primeiramente o autor descreveu aspectos físicos, populacionais, políticos e
urbanos; em seguida houve a apresentação de fatos relacionados à história da cidade,
inclusive com a apresentação de alguns documentos oficiais, juntamente com uma sessão
onde arrolava os nomes e os dados biográficos de homens considerados de destaque em
diversos setores da vida citadina, os chamados vultos municipais; finalizando, apresentou uma
coletânea com uma série de relatórios nosográficos, onde constavam descrições minuciosas
acerca das doenças e epidemias que atingiam o município naquele momento1187.
O outro texto foi Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas1188, de Salomão
Barros, publicado em 1979. Neste, seu autor se declara devedor e incentivado pelo trabalho do
Dr. Américo Barreira e se propôs a continuar e melhorar o trabalho de escrita da história do
1183
Idem. p. 29.
1184
BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, nº 19, 1997.
1185
Idem.
1186
BARREIRA, Américo. Op. Cit.
1187
ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O Poder Legislativo em Alagoinhas: 1920 a 1923. Monografia de
Especialização. UNEB, Alagoinhas, 2006. p. 15.
1188
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979.
município: “assim corrijam-se as falhas, por certo anotadas, e atualizem-se, quanto possível,
suas motivações, complementando-se os fatos já descritos”1189. Seguindo as trilhas do seu
antecessor, ele dividiu o texto diversos tópicos de descrição, a saber, aspectos administrativos,
políticos, judiciais, religiosos, associativos, históricos, econômicos e uma sessão especial para
a atualização das biografias e realizações dos “grandes homens” da terra, os “vultos” da
cidade seguidos dos seus “grandes feitos”.
Este tipo de convenção para a escrita da história da cidade segue o modelo onde
“alguém se dispõe a reunir dados sobre uma urbe e a ordená-los, dando a ver um tempo de
origens, um acontecimento fundador, (...), uma saga ocorrida nas épocas mais recuadas,
realizada pelo povo fundador guiado por sua liderança”1190, e que “nessa linha ascensional
desde o passado até o presente da cidade, constrói-se o desfile ou a evolução cronológica”1191,
dos fatos e personagens considerados marcantes e fundamentais para o entendimento de sua
história. Nesse sentido justifica-se a repetição sempre dos mesmos fatos e personagens para
escrever e expressar a historia da cidade. Estes dados apontam para a criação e reprodução de
um passado mítico, onde a chegada de um padre jesuíta em um local de tabuleiros com
abundancia de águas, toda a saga de construção da Igreja que não foi concluída, a chegada da
estrada de ferro apontando para o progresso citadino, a luta para a transferência da sede para
próximo da linha de ferro levada adiante por homens de visão, “a liderança esclarecida do
povo fundador”, são como fases interligadas na montagem do poema épico constantemente
recitado, para que o alagoinhense não se esqueça de sua origem.
Para Joanita, pensando neste esquema de narrativa de cidade, o ritmo de
Alagoinhas de alguma forma era também regido pelas partidas e chegadas dos trens na
estação localizada na Praça J. J. Seabra. Joanita afirmou que quando o trem apitava na
Estação São Francisco, localizada no entroncamento ferroviário, quem tinha negócios a tratar
e dependia do trem ficava alerta e sabia o tempo necessário para chegar àquela estação. Foi
assim na sua chegada de Salvador, quando no momento do apito, seu pai saiu de sua casa e no
momento exato estava à sua espera e era assim toda vez que ele aguardava a chegada de
alguém via transporte ferroviário 1192. Não foi por acaso que ela iniciou e encerrou o livro com
uma viagem de trem. No inicio com onze anos de idade narrou as aventuras, expectativas e
surpresas de quem havia feito a sua primeira viagem de trem à Salvador. No final, em tom de
1189
Idem. p. 4.
1190
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades invisíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, jan. – jun. de 2007. p. 12.
1191
Idem. Ibdem.
1192
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 19.
despedida, dos leitores e da cidade, ela narrou sua partida em direção ao estado de Sergipe, na
presença do esposo e de sua primeira filha, contado a idade de vinte e oito anos.
Neste meio tempo foram inúmeras as viagens à Salvador de férias em da família e
a estudo, como foram comuns as viagens também a passeio para Santa Luz no sertão baiano e
Esplanada, cidade próxima à Alagoinhas. Na cidade sertaneja ela acompanhou sua madastra
para tratamento de saúde e passou alguns dias de férias na fazenda de uma colega de escola.
Outro tempo presente no texto de Joanita era o da religiosidade. Segundo ela, “o
alagoinhense [era] um religioso. Freqüenta[va] as igrejas e compare[cia] às procissões, sendo
que as festividades mais animadas eram as trezenas de Santo Antonio - o padroeiro da
cidade...”1193. A Igreja Matriz, a Capela de Santa Terezinha e a de Nossa Senhora das
Candeias eram bastante freqüentadas pela população.
O mês de maio era dedicado à devoção à Maria, no qual as mulheres da cidade, de
todas as idades, levavam todas as noites, a partir das dezoito horas, flores para o altar-mor,
para serem colocadas aos pés da imagem da santa. Essas missas especiais eram organizadas, a
cada noite, por uma senhora da comunidade local. Desde a infância até a mais experiente
idade as mulheres alagoinhenses sentiam-se na obrigação de participar desse momento de
emoção, nas palavras de Joanita e de Maria Feijó 1194.
Inaugurando o mês das festas juninas, aconteciam os festejos de Santo Antonio no
dia treze de junho. Neste dia ocorriam missas festivas, procissão e o encerramento da trezena
que se iniciava todo dia primeiro de junho. Além destas festas oficiais organizadas pela igreja,
eram comuns as noites de rezas em casas de particulares que sempre acabavam em danças e
em chance para que as jovens moças casadoiras arranjassem um casamento1195.
As reformas e construções de igrejas costumavam movimentar um número
considerável de fiéis que lançavam mão de diversas maneiras de angariar fundos para tal
finalidade. Seja a feira-chic1196 para ajudar na reforma da Matriz ou a venda de guloseimas
para ajudar na construção da Igreja de São Francisco, Joanita fez questão de enfatizar o
quanto os habitantes da cidade se mobilizavam quando o assunto era a Igreja e a religião1197.
1193
SANTOS, Joanita da Cunha. Op, Cit. p. 39.
1194
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 36 e FEIJÓ, Maria. Op. Cit. p. 106.
1195
FEIJÓ, Maria. Op. Cit. p. 58
1196
Esse foi um evento ocorrido em Alagoinhas com o objetivo de angariar recursos para a reforma da Igreja
Matriz. Consistia em uma reunião de mulheres concentradas na Praça J. J. Seabra que ficavam à espera de alguns
“cavalheiros”. Quando estes apareciam eram “capturados” e para adquirirem sua liberdade eram obrigados a
comprarem alguns produtos colocados à venda no coreto localizado no centro da Praça. SANTOS, Joanita da
Cunha. pp. 38.
1197
Idem. pp. 37-39.
Além disso, falava que os dobres dos sinos da Matriz, de alguma forma, também
contribuíam para moldar certos comportamentos dos fieis, como o anúncio de falecimento de
moradores, pois os alagoinhenses deveriam ser treinados e estar atentos para o significado de
cada toque, pois “se o primeiro toque fosse agudo e o seguinte, grave, era uma mulher que
havia falecido. Ao contrario, era um homem.”1198. E, mais, se o morto pertencesse a uma
família de posses ainda teria direito a alguns dobres extras no Dia de Finados. Os fiéis sabiam
diferenciar os toques do Dia de Finados e de falecimento do repicar diário do chamado para as
missas realizadas nas diversas Igrejas da cidade, sem contar com o fato que os badalares
regulares às seis horas da manhã, ao meio-dia e ás seis horas da tarde marcavam e dividiam o
tempo na cidade1199, indicando o horário em que cada cidadão acordava para a realização de
sua rotina diária, marcava o tempo do intervalo das refeições e por fim o encerramento da
jornada e o momento para a reflexão e para a devoção de cada dia.
A partir da leitura das memórias de Joanita podemos indicar o modelo de cidade e
de sociedade construídos em sua narrativa. Ao reforçar a idéia de que o povo alagoinhense era
religioso, quando destaca que, “houve uma serie de festinhas para aquisição de donativos para
a reforma da Matriz”1200, ou ainda que, “esta belíssima igreja [a de São Francisco] foi
construída com a ajuda e cooperação da sociedade”1201, e que, “com o espírito de luta dos
irmãos da Ordem Terceira de São Francisco e ‘todos se dando as mãos’, foi possível construir
tão bonita e suntuosa obra sacra”1202. Ou, ainda, quando faz questão de lembrar que as
compras em sua casa eram feitas através de bilhetinhos para a farmácia, a padaria, o açougue
e etc., “da farmácia chegavam as garrafas de ‘óleo de rícino’[..], atendendo a bilhetes de que
meu pai fazia a Pedro Dória, seu amigo compadre”1203, Joanita tentou fixar como imagem de
uma cidade que era marcada pela idéia de determinado tipo de tradição – aquela da
religiosidade, da amizade mútua e da idéia de uma grande e una comunidade.
Era uma tradição inventada para marcar uma determinada posição no conjunto da
sociedade. No momento que ela exaltou dados e características de uma determinada época,
isso pode ser encarado como uma luta contra o tipo de sociedade e do tempo em que se vive
e/ou ainda certo receio diante de uma nova realidade. Nesse caso uma estratégia para lidar
com todos esses sentimentos foi o apego e a exaltação do “seu tempo”, com isso ela congelou
1198
Idem. p. 36.
1199
Idem.
1200
Idem. p. 37.
1201
Idem. p. 38.
1202
SANTOS, Joanita da Cunha. pp. 38-39.
1203
Idem. p. 59.
o passado construído para sí. Uma imagem, por vezes, estática e que atendia aos seus
interesses de valorização de determinada época, cidade e sociedade1204.
Vivendo em um tempo, em uma sociedade e em uma cidade diferente daquela
sobre a qual escreveu, Joanita reforçou o caráter tradicional da sociedade na qual nasceu,
cresceu, se formou e aprendeu a compreender o mundo à sua maneira. Em uma estrofe do
poema A Serra do Ouro ela afirmou:
A cidade de Alagoinhas
vive da tradição
daqueles pomos dourados
brilhando nos laranjais1205.
No seu texto sobre a Alagoinhas das décadas de 1930 e 1940, época em que a
cidade detinha uma das maiores produções de fumo do estado da Bahia e alcançou o posto de
maior produtora de laranja da Bahia1206, era o tempo em que os sítios e chácaras da cidade
estavam lotados de pés de laranja, onde, “as laranjeiras carregavam tanto que era preciso
colocar escoras. [...]. Nos quintais das residências, nos jardins, em qualquer lugar onde
houvesse um pedacinho de chão, surgia uma laranjeira”1207 e “a fama dos saborosos frutos
extrapolou as fronteiras da cidade. [...]. Os trens de carga saiam superlotados de engradados
de laranja. Na capital, teriam de concorrer com as afamadas e tradicionais ‘laranjas do
cabula’”1208. Para completar o seu poema ela rematou com o seguinte:
1204
BOSI, Eclea. Op. Cit. pp. 418-422.
1205
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 32
1206
Questões referentes à economia da cidade foram discutidas no primeiro capitulo desta dissertação.
1207
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p.29.
1208
Idem. p. 30.
1209
Idem. p. 32.
tempo e mostrou o quanto esse sua época era melhor do que aquela atual, do momento da
escrita1210.
Joanita manteve-se reticente quanto às mudanças e atacou a ação destrutiva do
tempo sobre recursos naturais e as manifestações culturais da cidade, os exaltou e tentou
imortalizá-los através de sua escrita com poemas, como, o dedicado às mangueiras da praça
Ruy Barbosa, que são “Testemunha da historia de Alagoinhas e sua gente/ tradição
viva.[...]”1211; O cachorro magro,
E, ainda assim, com todo esse significado e beleza ela demonstrou um sentimento
de perda, “o homem destruiu/ sumiu/ acabou”. Esse mesmo sentimento foi identificado em
relação às filarmônicas da cidade1213 em um poema homônimo, depois de exaltar as
características das duas filarmônicas da cidade, a Euterpe e a Ceciliana, ela lamenta a situação
das duas bandas:
Após uma pausa como que para um longo suspiro finaliza, “e a cidade
abandonou...”1214. A construção de uma imagem de valorização para o passado de Alagoinhas
é fruto do longo tempo percorrido entre o tempo vivido e o tempo do escrito e a ação
produzida por esse tempo na vida e na memória da autora. Sua condição no momento da
produção do texto entrou em jogo e alterou, ou mesmo pode ter motivado o processo de
rememoração e narração1215. No momento da escrita do texto Joanita morava na cidade de
Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, na década de 1980. Vivendo em uma das
1210
BOSI, Eclea. Op. Cit. p. 421.
1211
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 31.
1212
Idem. p. 33.
1213
A Sociedade Beneficente Filarmônica União Ceciliana, foi fundada em 1883 e a Sociedade Filarmônica
Euterpe Alagoinhense foi fundada em dezembro de 1893.
1214
Idem. p. 41.
1215
MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 29.
maiores cidades do Brasil, tendo que lidar com um ritmo muito mais intenso e acelerado, onde
as transformações ocorriam com uma velocidade muito maior, convivendo com uma
desagregação cada vez maior de uma série de valores insistentemente defendidos por ela em
sua escrita, distante de seus familiares e seu esposo (ela já estava viúva, no momento da
escrita). Além disso, na grande metrópole era apenas mais uma senhora que estava entrando
na terceira idade, viúva de um ex-bancário. Em Alagoinhas ela era filha de um homem
conhecido e bem relacionado na sociedade que, inclusive, chegou a ser prefeito, neta de um
dos chamados pioneiros, freqüentava os clubes e bares da elite, era amiga e se relacionava
com as moças das “melhores” famílias da cidade. Ela sentia que esse tempo, essa sociedade
não lhe pertencia mais, vide o sentimento e a valorização empregados nas lembranças do “seu
tempo”. Ou seja, nem ela nem a cidade que ela narrou não eram mais as mesmas, ambas
haviam passado por um amplo processo de transformação e suas lembranças são
condicionadas pelo presente do individuo que relembra1216.
O livro nos relata fatos de um tempo que passou e não voltaria mais. O tempo das
memórias foi reconstruído quarenta anos depois aproximadamente e mostra a reconstrução e a
re-significação de uma historia que não mais pode ser vivida, a não ser através da
rememoração, mas neste será outra época. Saudades e nostalgias marcadas pela desagregação
de uma vida social e familiar, marcada pela separação, pela perda de espaço e prestigio social.
Uma lembrança gerada para marcar um lugar na história e na cidade, objeto e principal
personagem desta rememoração.
O ato de escrever apresentou-se como um trabalho de composição1217 da memória,
nele, as reminiscências foram construídas com o intuito de reorganizar o passado (mítico,
representado pela idade de ouro da laranja, altamente valorizado) em função do presente, para
dar sentido a este e torná-lo agradável. A memória está em permanente processo de
construção, pois nossas experiências presentes e o ambiente social em que vivemos exigem de
nós a criação de um passado com o qual possamos conviver com um mínimo de satisfação1218.
1216
Idem. p. 31.
1217
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a Historia Oral e as memórias.
Ética e Historia Oral. Projeto historia nº 15, Revista do Programa de estudos Pós-Graduados em Historia e do
Departamento de Historia - PUC/SP. São Paulo: fevereiro de 1997, p. 51-84.
1218
MALUF, Marina. Op. Cit. p. 31.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O Poder Legislativo em Alagoinhas: 1920 a 1923.
Monografia de Especialização. UNEB, Alagoinhas, 2006.
ROCHA, Jeane Angélica M. Saturnino da Silva Ribeiro: um homem de seu tempo. In:
Alagoinhas em Revista. Ano I nº I. Set/Out/Nov. de 2005.p. 3.
SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987.
O presente estudo tem por objetivo promover o estudo e a construção da memória, ressaltando
para isso a importância da família Corrêa Dantas, como também o mobiliário que se encontra
sob seus cuidados, que são verdadeiras amostras do patrimônio cultural sergipano. Para tanto,
a base metodológica será calcada numa revisão bibliográfica sobre a formação do Estado e
sobre a construção do patrimônio acima citado, ainda não reconhecido como tal. Os móveis
que hoje pertencem aos atuais herdeiros do antigo Engenho São Francisco de Vassouras e
Engenho Mouco traduzem um capítulo da história da sociedade colonial do Estado de
Sergipe. Sua mostra, de considerável relevância documental, é ponte real que liga o antigo
mundo açucareiro dos engenhos a uma nova realidade social e econômica vivida na
atualidade. Refletindo, é correto afirmar que é de extrema importância o uso do documento
como ferramenta ao tratar da história de uma sociedade. Portanto, esse trabalho se conclui
buscando atingir seu objetivo primordial, que é instituir uma forma de salvaguardar a
memória histórica de um povo, através de um documentário bastante significativo, para uma
sociedade que vive as transformações do tempo moderno.
1 - INTRODUÇÃO
herdeiros da família Corrêa Dantas. O documento no qual o trabalho está sendo baseado é
composto de diversos mobiliários, utensílios de uso cotidiano e objetos pessoais originados
dos antigos proprietários dos Engenhos São Francisco de Vassouras e Mouco, situados nos
municípios de Divina Pastora e Santa Rosa de Lima respectivamente, desde o início do século
XVII.
Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo promover o estudo e a construção da
memória, ressaltando para isso a importância da família Corrêa Dantas, como também o
mobiliário que se encontra sob seus cuidados, que são verdadeiras amostras do patrimônio
cultural sergipano. Desse modo, é importante ressaltar que para a realização deste trabalho foi
realizada uma revisão bibliográfica sobre a formação do Estado e sobre a construção do
patrimônio acima citado, ainda não reconhecido como tal.
como ferramenta ao tratar da História de uma sociedade (do povo em questão), e assim criar
uma nova visão onde ele seja considerado parte integrante e fundamental da memória. Sendo
assim, não é conveniente que esteja limitado a uma pequena parcela da sociedade a qual o
patrimônio traz referências.
O tombamento e registro são instrumentos legais de preservação e proteção dos
bens patrimoniais de natureza material e imaterial, aplicados pelo poder público. Tombar ou
registrar um determinado bem significa proteger, conservar e reconhecer a sua importância
cultural para a região que o abriga ou para o Brasil, por seu valor histórico, artístico,
arqueológico, etnográfico, paisagístico e/ou bibliográfico.
O tombamento não retira a propriedade do imóvel e nem implica em seu
congelamento, permitindo transações comerciais e eventuais modificações, previamente
autorizadas e acompanhadas, além do auxílio técnico do órgão competente e sob supervisão.
Entretanto, para Camargo (2002), a preservação, a classificação ou o tombamento
de objetos móvel ou imóvel decorre do significado simbólico que se atribuí a eles. Todo e
qualquer produto material das culturas humanas é dotado de uma funcionalidade, um fim para
o qual é executado. Logo o valor que é atribuído aos objetos ou artefatos é decorrente da
importância que lhes atribui à memória coletiva. É essa memória que nos impele a desvendar
seu significado histórico-social, refazendo o passado em relação ao presente, e a inventar o
patrimônio dentro de limites possíveis, estabelecidos pelo conhecimento.
Chauí (2006) discute que o importante, no entanto, é entender que se recua ao
passado para tentar compreendê-lo, e depois poder entender o presente. Desta maneira, a
história funciona como um instrumento para viver, ao menos, mais conscientemente o
presente. E é o presente que coloca indagações ao passado.
É baseado nessa definição de Chauí que se faz importante o estudo e exposição do
acervo da família Dantas, que hoje se encontra guardado, mas não salvaguardado como seria
preciso. São peças que retratam a forma de viver e o cotidiano de uma geração de séculos
passados, gerações essas que marcam a história da formação de um estado.
Os mobiliários e demais objetos do acervo dos atuais proprietários da fazenda
Lourdes, ainda que não tombados como patrimônio histórico cultural do povo sergipano, é
parte da memória que não pode ser ignorada. É resposta para um diálogo do passado com o
presente, onde este poderá ser explicitado através daquele.
Existe nesse acervo a história de uma evolução social, econômica e cultural de
grande relevância no que se refere não somente à sociedade sergipana, mas também ao povo
brasileiro.
Desse modo, entre essas fortunas se encontra a família Corrêa Dantas, que tinha
sua atividade açucareira concentrada nos Engenhos: Vassouras e Mouco (antigas partes dos
engenhos supracitados que foram divididos aos filhos) e um vasto patrimônio cultural.
O primeiro membro da família Corrêa Dantas nascido em Sergipe foi Theotônio
Corrêa Dantas filho de Antônio Coelho Barreto (Português) e D. Quitéria Gomes de Sá. Os
pais querendo fazer uma homenagem a seus antepassados colocaram os sobrenomes desses
em seus filhos, assim cada filho ficou com um sobrenome diferente. Theotônio Corrêa Dantas
ficou com o sobrenome do avô materno de D. Quitéria (Bernardo Corrêa Dantas). A partir
desse a família criou uma tradição como senhores de engenho, sempre mantendo o
sobrenome.
Theotônio Corrêa Dantas era proprietário do Engenho Santa Bárbara, que acabou
sendo herdado por seus filhos do segundo casamento. Esse teve cinco filhos com sua primeira
esposa D. Clara Angélica de Menezes. Entre esses filhos se destaca Antônio Corrêa Dantas
(herdeiro do Engenho Tingui), que se casa com D. Maria Natividade Barreto Dantas (herdeira
dos engenhos Vassouras e Santa Rosa). Devido a esse casamento, o Engenho Vassouras entra
para a família Corrêa Dantas e também o Engenho Santa Rosa, que desmembrado, seria o
Engenho Mouco. Entre os filhos de Antônio e D. Maria destaca-se o Comendador Francisco
Corrêa Dantas herdeiro do Engenho Vassouras e Mouco (Dantas, 1980, p. 137-138).
O Comendador Francisco casa-se com D. Maria Victoria de Menezes Barreto,
essa será a família que irá morar no engenho Vassouras e Mouco. Os primeiros filhos nascem
no Engenho Mouco. Dentro desse, com a divisão de terras, ficou localizada, além da casa
grande, a Igreja do antigo Engenho Santa Rosa, onde está enterrado a maioria dos Corrêa
Dantas, menos Theotônio e suas esposas.
Entre os filhos do Comendador se destaca o Ex-presidente da província Manoel
Corrêa Dantas casado com D. Adelina Vieira de Andrade. Com a morte do Comendador e sua
esposa, o Engenho Mouco irá ficar de herança para sua filha Olívia Dantas Acioly e o
Engenho Vassouras para Manoel Corrêa Dantas.
Porém, Olívia irá falecer alguns anos depois, deixando o Engenho para seu
marido. Este, casando de novo, divide o engenho em dois: de um lado o Engenho Mouco
(com a antiga casa-grande e a Igreja), do outro lado o engenho Lourdes (totalmente novo). O
Sr. Acioly irá passar o controle do Engenho Lourdes para seus filhos com Olívia e o Engenho
Mouco para seus filhos do segundo casamento. Assim, retira o Engenho da família Corrêa
Dantas (Informação concedida pelo Sr. Waldemar Dantas).
O presidente Manoel Corrêa Dantas, herdeiro do Engenho Vassouras, é o último
morador desse, pois, com sua morte os filhos dele irão vender as terras do engenho, que era
localizado em Divina Pastora, para um primo distante. O engenho, como Usina, mudou-se
para a cidade de Capela. Nessa cidade irá funcionar até ser fechado por seus netos na década
de oitenta (Informação concedida pelo Sr. Augusto Dantas).
Portanto, em todos os anos que habitaram o Engenho Vassouras e Mouco,
construíram um Patrimônio Cultural muito importante (essas pessoas acumularam artefatos
vindos de diversos lugares da Europa, que hoje podem ser vistos como peças que retratam a
memória de um período marcante da cultura sergipana).
Do antigo fausto restam ainda móveis, louças do cotidiano, que hoje são peças
decorativas, a casa-grande do Engenho Lourdes, que sofreu considerável reforma na sua
estrutura, e a Igreja do antigo Engenho Mouco (esse último não mais pertencente aos atuais
herdeiros da família). Encontra-se ainda peças de uso pessoal, como armas e bengala, e
algumas quinquilharias encontradas soterradas no terreno da casa grande do engenho Lourdes.
Conjunto de louça de porcelana Inglesa da marca Creampetal, da cor marfim com detalhes em
vermelho e dourado. Era um conjunto com mais de cinqüenta peças, restando agora somente
dez, em ótimo estado de conservação. Esse conjunto demonstra o poder aquisitivo ao qual
desfrutava a família Corrêa Dantas. É justo se afirmar que a louça das famílias abastadas
daquela época, era símbolo da sua nobreza, utilizado nos jantares e festas.
Foto 05: Baú de madeira, ferro e couro de boi cru, acervo Família
Dantas – Fazenda Lourdes.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales.
Baú retangular de pele de boi rajado (marrom, preto e bege claro) com armação de ferro e
madeira, de três fechos (central e lateral), com tampa convexa. Outra peça que remonta a
tempos muitos antigos. Utilizado mais intensamente nos séc. XVII a XIX, em todo Brasil
Colônia e Império. O baú hoje foi substituído pelas malas de rodinha. É uma boa amostra de
poder e relação social. Hoje é utilizado como objeto de decoração. Esses objetos eram
carregados pelos escravos e serviam pra transportar peças do vestuário de homens e mulheres
da fina camada social do tempo a que o texto se refere.
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, Haroldo Leitão. Patrimônio histórico e cultural. São Paulo: Aleph, 2002, -
(Coleção ABC do turismo).
CHAUI, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.
DANTAS, Orlando Vieira. A Vida Patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
OLIVA, Terezinha Alves de; SANTOS, Lenalda Andrade. Para conhecer a história de
Sergipe. Aracaju - SE: Opção Gráfica, 1998.
Este trabalho tem como tema: Arquitetura Jesuítica em Sergipe. Ele objetiva traçar um perfil
geral da Arquitetura Jesuítica em Sergipe quanto à localização, função, material e técnicas de
construção. E, especificamente apresentar o valor das construções do Colégio Tejupeba, da
Missão de Tomar do Geru e de Japoatã, todas erigidas no século XVII. As casas e igrejas
jesuíticas de Sergipe estão levantadas em lugares altos e próximos a rios, localizações que
tinham como razões: a proteção territorial, o aproveitamento dos recursos naturais, a
facilidade de transportes e a manifestação da posição simbólica da igreja. Todas elas
testemunham uma rede de relações existentes entre religiosos, sesmeiros, índios e a
administração colonial, apresentando-se como núcleos em torno dos quais giram a vida da
aldeia e da comunidade circunvizinha. Elas retratam o processo de ocupação territorial de
Sergipe, os processos sócio-histórico e tecnológico das populações pré-existentes. Neste
sentido podemos pesá-las como Sistema Cultural, entendido como uma noção que agrega
elementos tecnológicos, sociais e ideológicos. Tais elementos devem ser interpretados de
acordo com as novas tendências, colocando-se a “ênfase no caráter único e diverso de cada
sociedade e cultura”.
HISTÓRICO
O sítio Colégio foi fundado no início do século XVII pelos padres da Companhia
de Jesus. Em 1602, o inaciano Fernão Guerreiro (1550-1617) inclui Tejupeba na lista dos
colégios, residências e missões jesuítas da Bahia. Precisamente sobre Tejupeba o documento
seiscentista diz: “ Tejupeba, residência do colégio da Bahia”.1219 Outro documento afirma as
constantes desavenças entre os jesuítas e os seus vizinhos, os fazendeiros do Vasa Barris.
1219
GUERREIRO, Fernão. Relação Anual da Cousas que fizeram os padres da Companhia de Jesus. Lisboa: Gorge
Rodrigues, 1605, v. 1 p. 142.
Uma delas alude à doação de meia légua de terras feita pelo Capitão-Mor Manoel Miranda
Barbosa, ao pernambucano Francisco da Silveira. As terras estavam localizadas à margem do
Vasa Barris e eram confrontante com as dos jesuítas. Isto provocou conflitos entre as partes,
resultando na vitória dos padres que obtiveram o ganho das terras.1220 Outros dados sobre o
Colégio Tejupeba datam de meados do século XVII até meados do século XVIII quando os
jesuítas são expulsos da região. Basicamente temos informações sobre a cultura material e as
atividades desenvolvidas pelos padres naquela região. Sobre o assunto alguns fatos devem ser
destacados.
Em 1631 é construída a residência dos padres, também chamada de Colégio, onde
neste período residiam o Pe. Sebastião Vaz, superior, e o Pe. Simão de Almeida. No local
foram edificadas: uma casa para os jesuítas, uma igreja conventual, além de algumas casas
para os escravos. A partir de então o sítio foi ocupado por diversos períodos recebendo
inúmeras denominações. A missão aparece num catálogo de 1692, com o nome de
“Residência de Sergipe no Tejupeba”. 1221 Na época era habitada pelo Pe. João Nogueira
procurador das fazendas de Sergipe pelo irmão Francisco Simões e pelo carpinteiro José
Torres de Milão. Após a expulsão dos holandeses a fazenda ficou em poder dos padres Inácio
Teixeira, Francisco Barbosa e Inácio de Carvalho. No século XIX, a fazenda pertenceu ao
coronel Domingos Dias Coelho e Melo, Barão de Itaporanga1222. Em 1943 a igreja e a casa
foram tombadas pelo IPHAN.
DESCRIÇÃO
1220
LIMA Júnior, Francisco Carvalho. Uma Página sobre a Companhia de Jesus em Sergipe: 1575 a 1759 (Crônicas dos
tempos coloniais). Aracaju Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 31, p. 175-194, 1992.
1221
A fazenda Tejupeba tornou-se a mais numerosa residência em relação a outras da Baia.
1222
LEITE., Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portúgalia, 1945, v. 5 p. 321.
1223
Plantas baixas dos pavimentos térreo e superior da casa Tejupeba, feitas por Genolice técnica em edificações e Maria
Helena de Oliveira, 2004.
1224
A casa do Colégio Tejupeba faz parte de um tipo de Arquitetura Espontânea como a taipa que é, em geral, material
precário e durável ao longo dos séculos. “A casa de então era erguida com paredes de barro adicionado a enxaiméis e
franquias de madeira, sendo a argamassa misturada, segundo as possibilidades com palha e cascalhos”. (BARDI, P. M.
História da Arte no Brasil. São Paulo: Melhores Momentos, 1976 v. 2. p.25)
1225
Adobe é um tijolo de barro secado ao sol, de grandes dimensões geralmente medindo- 20x20x40.
intervenções “recentes”. É o caso da base de uma torre de antena de rádio local instalada
próxima à entrada principal da igreja.
Quanto ao traçado da igreja de Tejupeba há uma semelhança quanto aos das
demais igrejas jesuíticas do Brasil colonial. A planta é constituída por dois pavimentos,
(térreo e superior). O pavimento térreo é formado por nave única, capela–mor, sacristia
transversal e dois corredores laterais. A nave, em sua entrada, possui duas passagens que
levam aos corredores laterais, em seguida vem a capela-mor. Esta apresenta duas portas
laterais, que dão acesso aos corredores com aberturas e semi aberturas, em pórtico,
incorporadas ao volume da igreja. Não se sabe se estas semi-aberturas ou aberturas fazem
parte do projeto arquitetônico original ou se foram intervenções posteriores. Um dos
1226
corredores, o esquerdo, dá acesso ao piso superior. (Planta 3). O pavimento superior
possui um coro logo à entrada, e na parte correspondente ao piso da sacristia há um sala.
A fachada possui três portadas, cinco janelas, duas torres, frontão e sobreposição
de elementos esculturais como: pilares, colunas e pilastras. (Foto 5) Sua lateral tem aberturas
em pórticos incorporadas ao corpo da igreja. Provavelmente esta parte foi feita
posteriormente. Cornija divide portadas e janelas do frontão e torres. Nestas últimas há a
presença de frisos circulares entrelaçados. ( Foto 6). As torres grandes com sinos tem
características do rococó com cúpulas muito decoradas, meias colunas e colunas inteiras com
janelas com frontões ondulados.1227 O frontão possui duas volutas e um óculo encimado por
uma cruz. Na nave e na capela-mor encontramos vestígios de retábulo em talha. Nele são
evidentes elementos floridos com fundo branco. (Fotos 9, 10). Quanto ao material e técnicas
construtivas, Tejupeba mostra o uso do adobe, do tijolinho e da alvenaria de pedra calcária.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
1226
Planta baixa – térreo da igreja do Colégio Tejupeba. Levantamento feito pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico,
Artístico e Nacional)- 8º Regional. Aracaju, circa 2001-2004
1227
KOCH, Wilfried. Estilos Arquitetônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 2ºed.
1228
“Em todas as casas jesuíticas há sempre escolas de ler, escrever e algarismos para os moços”. ANCHIETA.
Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões IN: FRANZEN, Beatriz, 1999.
1229
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1949, v. 7 p.249-
250
1230
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1949, v. 7 p.249-
250
1231
LEITE, Serafim. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália,
1949, v. 7 p. 41)
técnica, a personalidade inconfundível dos padres, o espírito jesuítico, vem sempre à tona - é
a marca, o Cachet que identifica, todas elas e as diferencia, a primeira vista das demais”.1232
No plano arquitetônico “mais amplo” as construções jesuíticas de tejupeba
encontram–se ladeadas por casas formando “praças ou terreiros”de formato “quadrado” ou
retangular. Tal organização tem origem de aldeamentos jesuíticos “a igreja ladeada pelas
residências comunais dos índios formando uma praça”.1233
Já as plantas de casas e igrejas jesuíticas de Sergipe constituem-se documentos
importantes para interpretar suas finalidades e usos. A análise delas detecta modelos de
plantas bem elaboradas datadas do século XVII.
A maioria das igrejas jesuíticas de Sergipe possuem capelas laterais ladeando o
altar mor. De acordo com Lúcio Costa este é um exemplo antigo de planta jesuíta.1234 Em
relação aos corredores, sabe-se que têm origem provavelmente no século XVII. Dada a
presença do corredor a nave diminui de largura. Alguns destes corredores têm passagem para
o exterior, em aberturas arqueadas. Este é o caso da igreja de Tejupeba.
As igreja jesuítica de Tejupeba tem plantas retangular. De acordo com os estudos
sobre arquitetura este modelo foi difundido por ser o que melhor se adaptava às carências e
recursos locais. Esta é uma especificidade das igrejas brasileiras com relação a outros países
europeus. 1235
A planta da residência jesuíticas de Tejupeba apresenta a seguinte característica: o
pavimento térreo desta casa possui vãos largos e compridos. Quanto ao pavimento superior é
distribuído em possíveis: salas corredor e quarto. ( Planta 1, 2 do sítio 2) De acordo com a
caracterização de tais espaços e a documentação histórica sobre o sítio, a casa, muito
provavelmente, teve funções laborativas e educacionais.
No tocante ao exterior e interior, as construções jesuíticas sergipanas manifestam
variedade de elementos estilísticos.
No que se refere à casa Tejupeba, ela apresenta alpendres com balcões corridos
nos pisos: térreo e superior. Esta característica é típica do início do século XVII.
1232
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional.
Rio de Janeiro: IPHAN, nº 26, 1997, p. 121.
1233
BARROS, Clara Emilia Monteiro de. Aldeamento de São Feidelis: o sentido de espaço na iconografia.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. p. 113.
1234
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional.
Rio de Janeiro: IPHAN, nº 26, 1997, p. 121.
1235
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional. Rio
de Janeiro: Revista do IPHAN, nº 26, 1997
O presente trabalho traz como tema a prática do assoldadamento: medida educativa adotada
com a infância desvalida na Província de Sergipe; tendo a mesma como finalidade evitar que
órfãos, ao receberem uma boa educação e aprenderem um ofício, permanecessem ou
adentrassem numa vida de vagabundagem e delinqüência. Sobre esse pretexto, todavia, o que
se pôde observar foi que tomar menores a soldo representou uma alternativa viável e mais
barata para aqueles que não desejavam ou não tinham condições de investir em mão-de-obra
escrava que se apresentou mais cara após a Lei Eusébio de Queirós, situação que se estenderia
até os últimos dias de vida do sistema servil. Diante do exposto, essa comunicação apresenta
como objetivo corroborar na compreensão dessa temática e como a mesma se configurou na
segunda metade do século XIX na cidade de Estância. Para tanto, utilizamos como fontes os
processos judiciais sobre tutela e assoldadamento datados do período em questão,
interpretados à luz de teóricos que promovem reflexões seguindo a linha da história cultural.
De tal modo, mesmo que destoasse cada vez mais do quadro histórico do momento,
homens e mulheres de profissões não definidas, continuaram a utilizar a mão-de-obra escrava,
fosse para sobrevivência econômica (alugando-os ou pondo-os ao ganho) ou para executar a
inúmera gama de serviços pessoais: dar recados, fazer compras nos mercados públicos,
cozinhar, lavar roupas e demais atividades domésticas. Segundo Silva (2002), para as famílias
ricas, uma criadagem numerosa servia como sinal de elevado status, para as famílias menos
abonadas uma ou duas criadas no máximo livrariam seus senhores e patrões de todo o
trabalho manual.1236 Como podemos observar, extinguir toda a estrutura social da família
patriarcal, juntamente com suas conseqüências político-econômicas, não seria algo que
ocorreria de uma hora para outra, afinal tratava-se de uma estrutura dominante no Brasil desde
a sua época colonial.
Dentro desse contexto, Oliveira (2005) ainda chama atenção para o fato da posse de
escravos por pessoas pobres e remediadas no decorrer do século XIX, ser algo razoavelmente
comum1238, “atuando como um importante complemento na renda ao serem alugados, como
reforço de mão-de-obra das quitandeiras, ou no trabalho doméstico1239”. O Brasil, conforme já
foi visto no capítulo anterior, estava passando por um reordenamento do trabalho escravo.
1236
SILVA, Maciel Henrique. As Múltiplas Identidades Femininas e o uso do Espaço Urbano do Recife no
Século XIX. História e Perspectivas, Uberlândia-MG, v. 25-26, 2002, p.171.
1237
MARIN, Joel Orlando Bevilaqua. Crianças do Trabalho. – Goiânia: Editora UFG, Brasília: Plano,2005,
p.81.
1238
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888). Tradução: Fernando de Castro
Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.13.
1239
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da
urbanização: São Paulo, 1850-1900. – São Paulo: Alameda, 2005, p. 104.
Não foi obra do acaso esta população infanto-juvenil nas ruas ser notada
pelos homens e mulheres da virada do Império para a República. Motivado
pelo capital acumulado por uma ascendente economia agrário-exportadora,
pelas populações de escravos libertos expulsos do campo e pelos imigrantes
vindos para o Brasil, o aumento dos contingentes humanos agravou as
diferenças sociais dentro do espaço da cidade. No andamento desse processo
de acumulação de capital aumenta a distância entre os beneficiados pelas
riquezas e aqueles que recebem a menor parte dos lucros. Na hierarquia dos
excluídos urbanos estão homens, mulheres, velhos e no extremo as crianças.
Ocupando o ‘posto’ de excluídos, estas crianças e jovens elaboram formas
de continuar existindo diante das privações impostas pelo tipo de sociedade
em que nasceram. 1240
1240
FONSECA, S. C. “Infância, disciplina e conflito com a lei”: o caso do Instituto Disciplinar na cidade de São
Paulo (1890-1927). Memória e Vida Social. Assis, v. 2. 2002, p. 138.
1241
CORDEIRO, Sandro da Silva Cordeiro; COELHO, Maria das Graças Pinto. “Descortinando o conceito de
Infância na História”: do passado à contemporaneidade. In: Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História da Educação. Uberlândia/MG,
Sociedade Brasileira de História da Educação, 2006. (Cd-rom).
Assim sendo, numa época em que a infância se consolidava como tal, e os menores
desvalidos se tornavam um problema na ótica burguesa nascente, essa passa a ver no trabalho
desenvolvido por aqueles, uma saída para essa situação. As crianças representariam mais
vantagens em relação ao trabalho desempenhado por adultos, pois, além de se submeterem
com mais facilidade às determinações e condições de vida das mais adversas, recebiam
salários menores. Ao empregarem crianças pobres, os patrões acreditavam estar praticando
benemerência social e proporcionavam como pagamento, aquilo que considerassem
necessário, o que, normalmente, era muito pouco e este valor aceito pelas famílias dos
menores que necessitavam da pequena quantia, julgando natural que suas crianças
trabalhassem.
1242
KUHLMANN JR, Moysés & FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In: FARIA FILHO, L.
M. de. A infância e sua educação. Materiais, práticas e suas representações (Portugal e Brasil). Belo
Horizonte: Autêntica, 2004, p. 27.
1243
Autores como Fernando de Azevedo, por exemplo, que afirmou que “a educação teria se arrastado, através de
todo o século XIX, inorganizada, anárquica, incessantemente desagregada”.Cf. AZEVEDO, Fernando de. “As
origens das instituições escolares”. In: A cultura brasileira. Parte III – A transmissão da cultura. 6ª Ed.
Brasília: Editora UNB. 1996, p. 556.
instrução elementar”.1244 Assim, já inícios do século XIX eram visíveis os intensos debates
em torno da reforma da instrução pública brasileira, tendo estes sido intensificados no último
quartel dessa ocasião.
Por isso que, como ocorriam com os demais indivíduos dos estratos sociais inferiores,
as crianças pertencentes a estes eram representadas como possuindo faculdades mentais e
qualidades morais diferenciadas daquelas que compunham os estratos superiores, produto de
sua pertinência social, a serem aperfeiçoadas pela educação escolar. Assim, definiu-se um
projeto de escolarização voltada para essa fração da população, estando esta fundamentada na
instrução circunscrita ao ler, escrever e contar, bem como na educação moral – condição que
passou a ser concebida como fundamental na formação de um adulto civilizado. Em Gouvêa
& Jinzenji (2006):
1244
FARIA Filho, Luciano Mendes de. “Instrução elementar no século XIX”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;
FARIA FILHO, Luciano Mendes de e VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educação no Brasil. Belo
Horizonte. Autêntica. 2000. p.144-145.
1245
COSTA, A. D. M. “Os processos-crime, a educação e a normalização da infância desvalida”. In: Anais do VI
Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História
da Educação. Uberlândia/MG, Sociedade Brasileira de História da Educação, 2006. (Cd-rom).
1246
GOUVEA, Maria Cristina Soares de; JINZENJI, Mônica Yumi. “Escolarizar para moralizar”: discursos
sobre a educabilidade da criança pobre (1820-1850). Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n.
31, 2006, p. 123.
escolares, bem como as práticas de higiene. Esperava-se assim, que os alunos veiculassem
para fora do ambiente escolar, aquilo que haviam aprendido no interior destas.
Em meio a esse contexto, o adulto era tido como modelo na formação da infância, fato
que chamou a atenção dos dirigentes para o papel da instrução escolar das camadas sociais
inferiores, em vista o prejuízo acrescido da sua inserção em meios constituídos por adultos
que, do ponto de vista dos gerenciadores, não eram dotados de qualidades morais e de
erudição que possibilitassem a formação de um indivíduo citadino. A educação escolar
firmou-se então como contraveneno aos males do meio familiar das classes populares.
Percebemos, então, que reconhecer um problema e tecer comentários sobre ele, não
significava que o mesmo viesse a se tornar um assunto de ordem pública. Numa sociedade
patriarcalista, na qual a socialização se dava por meio do trabalho e dos castigos físicos, o que
ocorreu, de fato, foi que muitas crianças viveram constrangidas nos limites circunscritos pelas
famílias, sendo privilégio para poucos menores aprender nas escolas. O Estado quase não
interferiu no processo formativo dos infantes que, em sua maioria, nasciam e se desenvolviam
no mundo do trabalho desde a mais tenra idade, fazendo por merecerem o conceito que lhes
atribuíam de adultos em miniatura. Assim, dificilmente, as teorias dos governantes tomavam
forma prática. Para Kuhlmann Jr. & Fernandes (2004), “nesse momento, é possível encontrar
representações que invertem o significado da escolarização para os alunos, ela não seria um
1247
Id. Ibidem, p.124.
afastamento do mundo dos adultos, pois a escola espelharia a sociedade”.1248 Dentro desse
contexto, encontramos a prática do assoldadamento.
Consoante aquilo que era proposto nas Ordenações Filipinas, o assoldadador deveria,
além de assumir os encargos concernentes à tutoria, responsabilizar-se pelo aprendizado de
um ofício pelo órfão, objetivo principal da prática do assoldadamento que, embora
reconhecesse a importância do menor tomado a soldo aprender a ler e a escrever, não
estabelecia o ensino primário como obrigatório, ao passo que a aprendizagem de uma
atividade laborial foi estabelecida como sendo imprescindível. Essa concepção refletia, pois, a
mentalidade preconceituosa da época que correlacionava as tarefas manuais e mecânicas aos
afazeres realizados pelos escravos e pela classe mais humilde, instituindo, assim, fortes
barreiras ao ensino técnico-profissionalizante acompanhado da instrução escolar, uma vez
1248
KUHLMANN Jr. & FERNANDES, op. cit., p. 23.
que, até mesmo o povo, acreditava que para trabalhar nas oficinas, no comércio, ou na
agricultura, não era necessário ir à escola – pensamento que colaborou para a baixa freqüência
dos alunos das camadas populares nas instituições públicas de primeiras letras e os altos
índices de evasão desses recintos.
Porquanto, dentro desses parâmetros, assoldadar menores lhes pareceu ser uma saída
mais viável e menos dispendiosa, posto que, o valor pago nas soldadas do menor, não
representava gastos tão elevados quanto o que se gastava, naquele instante, na criação de
cativos que, quando morriam ou evadiam do cativeiro, representavam prejuízo aos
proprietários. Já no caso de menores assoldadados, ao sinal de qualquer problema, bastava-
lhes suspender as soldadas e providenciar outro menor assoldadado para pôr no lugar.
Quanto a origem dos órfãos, mesmo que os documentos não informassem quais
assoldadados provinham ou não das casas de assistência aos expostos, o fato dos processos,
em sua maioria, mencionar a filiação paterna e/ou materna, leva-nos a crer que as crianças
assoldadadas emanaram em número elevado do setor menos abastado da população, algumas
numa situação de vida tão miserável que algumas mães se viram compelidas a colocar seus
filhos no sistema de soldadas, uma vez que viam nesta prática a melhor alternativa de propor
aos seus pequenos melhores condições de vida, por meio da aprendizagem de ofícios, aos
quais eram compelidas as crianças assoldadadas.
Desse modo, a educação teria atuado enquanto uma estrutura que foi utilizada pelo
aparelho estatal na tentativa de estabelecer uma linha de continuidade com a sociedade
escravista. A este ideal, as camadas populares anuíram sem que percebessem, uma vez que,
através de sofisticadas estratégias de dominação, foram levadas a assimilar a instrução
enquanto mecanismo capaz de promovê-los socialmente numa coletividade livre e envolvida
por discursos higienistas e transformadores – uma das razões pela quais encontramos
processos judiciais onde algumas mães aparecem entregando seus filhos para serem
submetidos ao assoldadamento. Entretanto, contrariamente ao que estas e outros cidadãos
daquela sociedade imaginavam, a instrução popular da forma como se propagava naquele
instante, sobremaneira, na prática de tomar menores a soldo, serviu, sobretudo, enquanto
estrutura tática de tentativa de perpetuação do sistema escravista.
Diante do exposto – tendo por base a análise dos processos judiciais referentes a soldo
de menores ocorridos na Cidade de Estância, no período de 1865 a 1895 –, concluímos que a
prática do assoldadamento configurou-se numa estratégia utilizada, principalmente pela classe
intermediária daquela configuração social, para suprir a falta de mão-de-obra, característica
daquele período, através das atividades desenvolvidas por menores órfãos e pobres,
provenientes ou não do cativeiro, sob alegação de estar munindo essas crianças da
aprendizagem de um ofício. Essa educação a que os infantes tomados a soldo tinha acesso,
porquanto, adotou parâmetros da escravidão, pois tinha como escopo real, abrandar o
processo de reordenamento do trabalho servil, ou seja, a transição do trabalho escravo para o
livre pela qual passava aquela sociedade. Assim, ao tentar cultivar a ordem herdada do
período escravocrata, a instrução designada aos assoldadados baseou-se na prática do ofício
ministrado, voltada “para” e “pelo” trabalho, de maneira a constituir indivíduos úteis à
sociedade, entendendo-se por isso, bons trabalhadores, pacientes, humildes, resignados e
submissos.
Todavia, ainda que empregada como uma alternativa viável para adquirir força de
trabalho barata e acessível, a prática de assoldadamento, fez parte de um conjunto de práticas
educativas que corroborou para a redefinição da noção de infância que, a partir daquele
instante, passava pelo crivo dos conceitos técnicos e científicos. Além disso, ajudou a
consolidar a idéia da necessidade de instruir a população livre, cogitada, naquele instante, por
parte dos dirigentes do Estado Imperial.
Destarte, concluímos afirmando que os resultados deste estudo nos leva a crer sobre
sua importância para a História da instrução da Infância em Sergipe, podendo o mesmo
elucidar ainda mais os aspectos pouco conhecidos da educação da criança no século XIX, de
modo que as reflexões levantadas incentivem outros pesquisadores a adentrar nesse campo e
estimular novas discussões na área da História da Educação. Outrossim, o ingresso ao
universo complexo e significativo da interconexão entre “Educação” e “Infância” é capaz de
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Fernando de. “As origens das instituições escolares”. In: A cultura brasileira.
Parte III – A transmissão da cultura. 6ª Ed. Brasília: Editora UNB. 1996.
CORDEIRO, Sandro da Silva Cordeiro; COELHO, Maria das Graças Pinto. “Descortinando o
conceito de Infância na História”: do passado à contemporaneidade. In: Anais do VI
Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do
ensino de História da Educação. Uberlândia/MG, Sociedade Brasileira de História da
Educação, 2006. (Cd-rom).
FARIA Filho, Luciano Mendes de. “Instrução elementar no século XIX”. In: LOPES, Eliane
Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes de e VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte. Autêntica. 2000.
GOUVEA, Maria Cristina Soares de; JINZENJI, Mônica Yumi. “Escolarizar para moralizar”:
discursos sobre a educabilidade da criança pobre (1820-1850). Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, 2006.
KUHLMANN JR, Moysés & FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In:
FARIA FILHO, L. M. de. A infância e sua educação. Materiais, práticas e suas
representações (Portugal e Brasil). Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MARIN, Joel Orlando Bevilaqua. Crianças do Trabalho. – Goiânia: Editora UFG, Brasília:
Plano,2005.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e
experiência da urbanização: São Paulo, 1850-1900. – São Paulo: Alameda, 2005.
Era para ser uma típica noite de sábado, entretanto o dia 29 de março do ano de
dois mil e oito marcou profundamente as mentes de brasileiros e brasileiras, que ao ligarem
seus televisores no dia seguinte foram assombrados com a notícia do assassinato da menina
Isabela Nardoni, de apenas cinco anos de idade. Ao retornar de um passeio familiar com seu
pai, a madrasta e seus irmãozinhos, pequena Isabella - filha de jovens pais separados da classe
média paulistana foi lançada do 9º andar pela janela do apartamento do seu pai. Desde então,
a tragédia de Isabela virou manchete nacional; o grande público, como telespectadores de
novelas, esperavam diariamente por notícias que saciassem a fome de justiça e sede por
novidades. Mas o que anunciava esse bárbaro episódio? As cenas dos próximos capítulos,
elaboradas tendo por base as investigações policiais, convergiam para responsabilizar
Alexandre Nardoni (pai) e Ana Carolina Jatobá (madrasta) como autores desse crime. E mais
uma vez, o grande público pergunta, quais seriam as razões para que aquele do qual se
esperava todas as provas de amor cometesse tal atrocidade?
1249
O uso de processos criminais permite ao historiador compreender o cotidiano de homens e mulheres pobres,
mestiços e escravos que se fazem presentes nas redes da Justiça Oitocentista, não somente como réus, mas como
vítimas e queixantes. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da Ordem: Violência, criminalidade e
administração da justiça: Minas Gerais, século 19. Bauru: EDUSC/ANPOCS, 2004, p. 21.
1250
Podemos destacar as obras de Joan Jacob Bachofen que publicou O direito materno (1861); Charles Morgan
com A sociedade antiga (1877) e Friedrich Engels com A origem da família, da propriedade privada e do Estado
(1884). Vide SAMARA, Eni de Mesquita. “A história da família no Brasil”. In: Revista Brasileira de História,
São Paulo, ANPUH/Marco Zero, Vol. 9 nº 17, setembro de 1988/fevereiro de 1989.
1251
FARIA, Sheila de Castro. “História da família e demografia histórica”. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS,
Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-
258.
1252
Entre estes estão: Philippe Áries, Jean Louis Flandrin, L. Stone, Edward Shorter. (BRUGGER: 1995).
1253
Ver Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos; Oliveira Vianna, Instituições políticas
brasileiras e Populações meridionais do Brasil.
1254
Estudos como os de Eni de Mesquita Samara, Iraci del Nero da Costa, José Flávio Motta, Kátia de Queirós
Matoso, Maria Beatriz Nizza da Silva, Mary Del Priore, Miriam Moreira Leite, Paulo Eduardo Teixeira, Sheila
de Castro Faria e Sílvia Maria Jardim Brugger, apontam para uma diversidade na organização da família
brasileira.
1255
Domínio masculino sobre a família, podendo ser manifesto no âmbito do espaço doméstico (laços
sangüíneos, escravos e agregados) e na esfera política. (VAINFAS, 2000:470).
1256
Entendemos violência como intervenção física, psíquica, sexual e moral de um indivíduo contra outro ou
mesmo um grupo, com a finalidade de ofender e destruir a vítima. (GUIMARÃES, 2006: 22 e SAFFIOTTI,
2004:8).
agressividade como moeda corrente das relações sociais e a valentia como premissa da honra
no Brasil Oitocentista.1257
A historiadora Maria Sylvia de Carvalho Franco ao pesquisar a sociedade paulista
do século XIX constatou que entre os homens e mulheres livres e pobres a violência insurgia
nas situações de convivência, nas questões cotidianas, relacionadas a trabalho, vizinhos,
parentes, família etc.
Desse modo, podemos perceber como nessa sociedade, marcada pela escravidão
dos corpos e pelo patriarcado, a violência foi largamente justificada como forma necessária e
naturalizada das interações sociais, que definiam as situações de poder e de submissão.
A partir dos dados coletados percebemos que essa nódoa social estava presente no
cotidiano dos moradores da Comarca de Estância/SE, região agro-exportadora de açúcar e
fortemente marcada pela efervescência comercial. Dentre o corpo documental iremos nos
deter a analisar os crimes cometidos entre parentes, amásios e enamorados no período
proposto, os quais foram classificados de acordo com a tipologia apresentada nos documentos
analisados, a saber: ofensas físicas, ofensas verbais, sedução e estupro, homicídios e
infanticídios.
Tipologia dos crimes Estância – Sergipe (1850-1900)
Fonte: Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (Série Penal: Estância 1850 - 1900)
1257
VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes - Minas
Gerais Século XIX. Tempo, Jan./June 2005, vol.9, no.18, p.171-195.
1258
Inquérito Policial n.º 08 cx.683 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1840.
1259
Corpo de Delito n.º 03 cx.671 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1858.
de sua amásia e desejando saciar sua volúpia, Pedro não aceitou a recusa e tratou de imputar
cacetes em Maria Correia, a qual foi acudia por vizinhas e no dia seguinte o inspector do
quarteirão compareceu para visitá-la constatando o estado deplorável no qual se encontrava
sua perna.
Ao tomar por base o artigo 201 do Código Criminal do Império 1260, o promotor
público da cidade de Estância denunciou Pedro José à Justiça por ofensas físicas, sendo o réu
condenado a pagar a quantia de 50$000 à vítima.
A violência imputada aos membros das famílias estancianas não se restringiam
apenas à ofensas físicas, em nossa pesquisa constatamos que muitas esposas, amantes e filhas
recorriam à justiça por terem sido alvo de graves injúrias daqueles que deveriam as tratar com
zelo e carinho. Vejamos o caso de D. Leonísia da Silva Costa1261, que teve sua reputação
comparada a de prostitutas.
Ao adentrar na Igreja matriz da freguesia de Arauá, tributada a Nossa Senhora da
Conceição, na manhã do dia dez dias do mês de novembro do ano de mil oitocentos e setenta,
conduzida pelo braço do pai, o pequeno negociante Antônio Francisco da Costa, a jovem
Leonísia, educada nos princípios da religião católica, certamente imaginava que ao declarar
publicamente que recebia como seu legítimo esposo, o viúvo afortunado Manuel Inácio
Pereira de Magalhães, estaria inaugurando uma nova etapa de sua vida, regada por respeito,
carinho e ostentação material, entretanto o que estava por vim seria uma vida sortida de
sevícias, injúrias, traições e humilhações.
Após a pomposa cerimônia, o casal passou a residir na cidade de Estância, local
onde o consorte desempenhava atividades agroexportadoras e mercantis. Passados alguns
anos, os jornais da cidade de Estância, bem como os da cidade de Salvador passaram a
noticiar as querelas vivenciadas pelo casal1262. A grosso modo, os jornais questionavam a
conduta moral de D. Leonísia, acusando-a de manter relações amorosas com vários homens
da cidade, inclusive com o seu compadre, o alferes Pedro Federico Ribeiro de Aboim.
A primeira nota concernente aos boatos foi divulgada no jornal de circulação
local, 1263 a qual insinua o caso extraconjugal de D. Leonísia com o comprador de escravos.
1260
Art. 201 Ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano, ou fazer qualquer outra ofensa física, com que se
causa dor ao ofendido. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brasil anotado. Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
1261
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Libelo Cível de Ação de Divórcio nº 01, Caixa 529 DI-47, 1878.
1262
Jornais: O Rabudo (1875), Eco Estanciano (1877), Diário de Sergipe (1877) e Diário da Bahia (1877).
1263
Rabudo, Estância, ano 2, nº 27 , 8 de abril de 1875.
Pergunta simples
Pergunta-se ao Sr. Domingos Cardoso de Meneses Sobrinho,
taverneiro nesta cidade, qual a razão de ter brigado com Olímpio Jardim?
Ioiô Cardoso, eu ouvi esse Jardim dizer que tinha sido por causa
do seu namoro com uma senhora casada?
Será verdade Ioiô Cardoso?! Pela bolsinha dos seus cigarros,
responda do contrário...
A preta de casa
Segundo Manoel Inácio foi a partir da circulação de tais notas anônimas que sua
vida conjugal passou experimentar conflitos, visto que ele passou a inquirir sua esposa sobre
veracidade das acusações. “Outro agravante foi a pressão de alguns membros da sociedade
estanciana, que se apresentando como um amigo-secreto e pessoa preocupada com sua honra
enviou-lhe a dita nota com um bilhete anexo, o qual afirmava que “O Rabudo não mente”.
Além desse amigo-secreto e do abelhudo declarado no “O Rabudo” – preocupados
com a honra do esposo, percebemos o envolvimento de outros agentes da sociedade
estanciana oitocentista nessa trama de foro privado. O envolvimento de outros agentes foi
motivado pelo crescimento das publicações em jornais sobre essa querela familiar.
Destarte, essa sociedade passou a acompanhar o desenrolar dessa estória através
dos jornais como O Rabudo1264 e Echo Estanciano1265, bem como pelo Diário da Bahia. Os
moradores da cidade de Estância aguardavam ansiosos por tais publicações, respondendo
semelhantemente aos telespectadores das telenovelas e leitores das revistas de entretenimento
contemporâneas. Manchetes como “O termômetro da moralidade muito tem baixado nesta
cidade” e “A pirâmide com o vértice para o chão”, além de cartas do esposo, instigavam a
curiosidade dos estancianos, que certamente não se consolavam com a leitura das notas, mas
conforme apontado nos testemunhos concedidos ao Tribunal Eclesiástico passaram a circular
com maior atenção na frente do sobrado onde residia o casal.
1264
Periódico critico, chistoso, anedótico e noticioso, e segundo alguns “O Rabudo costumava atacar a vida
íntima e honra de famílias desta cidade”.
1265
Com o lema “Órgão do comércio, da lavoura e da indústria”.
1266
Em seu depoimento o Sr. Felisberto Francisco Correia disse que ao passar em frente da casa onde o casal
morava ouvi o réu (esposo) gritar para a autora “Eu te mato diaba”; já outro depoente também disse que ouviu o
réu chamar a esposa de “puta e outros nomes injuriosos”
1267
Sedução e estupro n.º 01 cx.699 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1858.
1268
SOIHET, Rachel. “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano” IN: PRIORE, Mary Del. (Org.) História
das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 394.
1269
Idem p.395
1270
Corpo de Delito n.º 01 cx.671 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1857.
1271
Homicídio n.º 01 cx.678 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1882.
Vitória. Contudo, ao serem perguntados sobre quem poderia ser o pai da criança, apontaram o
negociante João Damasceno Pimentel, que freqüentava a residência da autora, sendo notório
que tinham relações ilícitas. Ao ser inquirido sobre o estado de gravidez de sua amásia, João
Damasceno disse desconhecer e alegou que tinha terminado há dois meses a relação.
O processo foi concluído a revelia da ré, a qual foi condenada no grau máximo do
artigo 1981272 do Código Criminal do Império por ter sido o crime acompanhado da
circunstância agravante do artigo 16§91273 do citado código.
Ao investigar a vida familiar dos residentes em Estância, percebemos que as teias
dessas relações eram deveras muito conflituosas, envolvendo amor, dissabores, lágrimas,
dramas e crimes. Nos processos-crimes observados, verificamos que agentes de diversas
camadas sociais envolveram-se em conflitos com seus parentes, sendo o crime mais freqüente
o relacionado à honra que poderia resultar em ofensas verbais, físicas ou mesmo na morte de
um dos envolvidos. Segundo a legislação da época perquirida, se os argumentos do
delinqüente fossem convincentes – defesa da honra, ele seria beneficiado com a redução da
pena, mesmo sendo uma agressão seguida de morte, este delito seria julgado como homicídio,
já os demais crimes seriam julgados como ofensas físicas. Foram também verificados no Rol
de Culpados as penas impostas aos réus, sendo constatado que havia uma tolerância em
relação aos réus que tivessem sua integridade moral agredida, visto que a justiça tendia a
considerar a justificativa da privação moral, ou seja, “lavar a honra com sangue” como
legítima.
Podemos perceber que nessa sociedade, marcada pela escravidão dos corpos e
pelo patriarcado, a violência foi largamente justificada como forma necessária e naturalizada
nas interações sociais, que definiam as situações de poder e de submissão.
REFERÊNCIAS
Fontes
1. Fontes Primárias
1272
Art. 198 Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar a sua desonra. Pena Máxima: Três anos
de prisão com trabalho. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brasil anotado. Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
1273
Art. 16§9 Ter o delinqüente procedido com fraude. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do
Brasil anotado. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
Fontes Impressas
Jornais
O Rabudo (1875)
Eco Estanciano (1877)
Diário de Sergipe (1877)
Diário da Bahia (1877)
2. Bibliografia
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F.; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-258.
GUIMARÃES, Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, segunda
metade do século XIX. São Paulo: Fapesb/Annablume, 2006.
SOIHET, Rachel. “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano” IN: PRIORE, Mary Del.
(Org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 394.
O município de Juazeiro está localizado à margem direita do Rio São Francisco e a 500 km de
Salvador-Ba. Desde 1850, apresenta intensa vocação comercial, uma vez que, era parada
obrigatória das boiadas e tropas de carga que cruzavam o Rio São Francisco. Dentro desse
contexto de desenvolvimento econômico e social, observa-se um número considerável de
inventários, testamentos, arrolamentos e partilhas amigáveis favorecendo mulheres, o que
constitui objeto de pesquisa. A presente comunicação objetiva discutir, através dos
documentos e em torno das relações de gênero, o perfil dessas mulheres herdeiras, o papel
econômico, social e político que exerceram no município a partir do recebimento do espólio,
seu nível de instrução e a influência do patriarcado e da Igreja em suas vidas.
como um todo, presente em estudos sobre Vila Rica, Salvador e Rio de Janeiro (DIAS, 1995.
p 30).
Estudos das últimas décadas favorecem a história social das mulheres, com novas
abordagens e métodos, abrindo segundo Dias, “espaço para a história microsocial do
quotidiano, diversificando os focos de atenção dos historiadores “antes restritos ao processo
de acumulação de riqueza, do poder e à história política institucional” (Idem, Ibdem, p.14)
Scott afirma que o campo da história das mulheres evoluiu, ganhando energia
própria ao ampliar o seu campo de questionamento, documentando todos os aspectos da vida
das mulheres no passado, passando do campo político para a história especializada e daí para
a análise. A inserção da mulher como sujeito da história e objeto de estudo ampliou as
perspectivas e questionamentos (CARDOSO e VAINFAS, 1997).
Para falar das mulheres de Juazeiro faz-se necessário contar um pouco da história
desse município baiano. Juazeiro está situado à margem direita do Rio São Francisco, a 500
km de Salvador, limita-se ao norte com o estado de Pernambuco, a nordeste com o município
de Curaçá, a sudeste com Jaguararí, ao sul com Campo Formoso, a sudoeste com Sento Sé e a
noroeste com Casa Nova. O município de Juazeiro está localizado na bacia hidrográfica do
São Francisco e possui, ainda, um rio perene1274, o Rio Salitre, um curso d’água de pequeno
porte, além de outros rios temporários e afluentes do Rio São Francisco. O nome do
município se deve a árvore muito comum na região, o Juá, ou Juazeiro, que significa fruto
espinhoso, cuja árvore resiste aos rigores da seca e suas folhas servem de alimento para o
gado (GARCEZ, SENA, 1992, p. 19).
Antes de ser elevada a categoria de município, Juazeiro era a Vila de N. Srª das
Grotas de Juazeiro. Era parada obrigatória das boiadas e das tropas de carga que atravessavam
a Capitania da Bahia em direção a outras terras e que cruzavam o Rio São Francisco – uma
rota natural de integração, que já era utilizado pelos índios antes mesmo da colonização
portuguesa atingir a região, por ser o aglomerado populacional mais importante da região e
atrair bandoleiros, gerando clima de intranqüilidade permanente nas fronteiras com
Pernambuco.
A ocupação do interior da Bahia ocorreu principalmente a partir da instalação das
fazendas de gado, do cultivo de algodão e alimentos, e, também resultou da procura de metais
preciosos, levando bandeirantes e sertanistas a enfrentarem os perigos, penetrarem nos sertões
desconhecidos, e atenderem aos anseios da Coroa Portuguesa de encontrar e explorar minas
1274
Rio perene - Rio que corre o ano inteiro. Tem água em época de chuva e no período de seca, pois possui
água subterrânea. Fonte: http://www.cprh.pe.gov.br/sec-glossario/ctudo-glossa.asp. Acesso em 30.05.2008.
1275
Bexiga era o nome que se dava à varíola. Transmitida pelas vias respiratórias, a bexiga tem duas formas
distintas. Na maioria dos casos, as mortes são sendo causada por sua variedade mais agressiva, a chamada
confluente, que, por conta do aspecto das infecções cutâneas que provoca, é conhecida como “pele de lixa” - a
outra forma, mais branda, é chamada benigna.Fonte:
http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=47473&edicao=9916&anterior=1. Acesso em 30.05.08.
estrangeiros Spix e Martius 1276, que registraram a existência de “um pequeno arraial com
50 casas e 200 habitantes” na segunda década do século XIX, onde:
1277
Teodoro Sampaio, que visitando a região em 1879, integrou uma comissão de
engenheiros constituída pelo Governo da Província, para estudar a navegação dos grandes rios
que desembocavam no litoral e a melhoria dos portos fluviais. Comentou que a cidade de
Juazeiro “era uma população alegre e ativa de mais ou menos 3.000 habitantes que davam a
impressão de favorável progresso, de riqueza, de atividade”, o que lhe fez mudar o conceito
que tinha do sertão:
No final do século XIX, Juazeiro era uma cidade encantadora, plantada à margem
do rio, com ponto de linha férrea que ligava o São Francisco à capital do estado. Com intensa
atividade mercantil, graças à linha férrea e fluvial, com o Vapor Saldanha Marinho, ganhou o
título de Entreposto Comercial da Região.
Freitas chama a atenção para o fato de que entre o final do século XIX e meados
do século XX, o Oeste da Bahia assim como toda a região banhada pelo Rio São Francisco e
seus afluentes constituíam um espaço único. Para ele não se podia falar do ponto de vista
regional em Oeste, em Além São Francisco, ou qualquer outro conceito. Nesta época, a
1276
A convite da Arquiduquesa Leopoldina da Áustria, primeira Imperatriz do Brasil, os dois naturalistas
alemães da Academia de Ciências da Baviera, Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius,
exploraram entre 1817 e 1820, o enorme país do Brasil, até então interdito aos não-portugueses.
1277
Teodoro Sampaio. Theodoro Fernandes Sampaio nasceu em Santo Amaro, Bahia, em 7 de janeiro de 1855.
Engenheiro formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro trabalhou no Porto de Santos, na construção da
Estrada de Ferro da Bahia. Foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia e fundador do Instituto
Histórico Geográfico de São Paulo.
unidade existente se dava através da exploração da navegação a vapor nos cursos dos rios
(FREITAS, 2ª parte, 1999, p.100).
Freitas afirma ainda que “se hoje é difícil compreender o oeste baiano como um
prolongamento da Bahia, pelas transformações econômicas, sociais e culturais, por que
1278
passou mais difícil era no século XIX”. A “Bahia” para os moradores de diferentes
regiões do interior era quase uma abstração, um local para onde se ia. Tratava-se segundo o
autor, de uma regionalidade a ser consolidada, através de relações políticas, onde
despontavam valores como subordinação e autoritarismo (FREITAS, 1ª parte, 1999, p. 64).
Para traçar o perfil das mulheres de Juazeiro no século XIX, é também necessário
conhecer a família nordestina do século XIX, suas organização e estrutura. Segundo Mattoso,
“compreender o fato familiar” e o papel que esta família representou e ainda representa, é
levantar o véu de uma explicação do que a autora chama de “realidade brasileira”, uma
realidade que para a autora possui laços indestrutíveis que foram estabelecidos, e que estão no
centro desta realidade (MATTOSO, 1988, p.16).
Para Mattoso são numerosos no Brasil, os estudos sobre a família, com
abordagens clássicas como nas obras de Gilberto Freyre, que se refere ao patriarcado como
modelo familiar de organização único, principalmente no nordeste. Contudo, para a autora,
esses estudos sofreram um “certo envelhecimento”, e faz-se necessário retomar as estruturas
familiares de forma ampla e restrita (Idem, Ibdem. p.16).
Ao analisar as estruturas familiares no século XIX, Mattoso afirma que, “a família
é sem dúvida a chave-mestra e base fundamental da organização social da província, sendo
que, cada uma com especificidades regionais. Para ela, o século XIX é ao mesmo tempo
arcaico e moderno por que:
1278
Segundo o autor, era comum moradores de cidades do interior do estado se referirem à capital, como sendo
Bahia e não Salvador.
1279
APEB: Inventário 7/3044/0/4. Essa expressão parece-nos fazer referência ao fato da mulher não poder
assumir sozinha a gestão de seus bens, precisando portanto de um homem que fosse responsável por ela.
1280
APEB: Inventário 7/3183/11; Arrolamento 6/2648/1;Testamento 7/3206/1
não era grande e lucrativo, havia uma necessidade de postergar a sua conclusão. No inventário
de Maria da Purificação, vários escrivãos nomeados pelo Juiz, alegaram problemas de saúde
para realizar visitas aos demais herdeiros que moravam fora de Juazeiro, o que retardou o
prazo de conclusão do inventário e levou Maria da Purificação a contrair vários empréstimos
em dinheiro aos sobrinhos para manter sua família. Tais recibos constam do inventário, e
neles constam a observação ao fato de Maria ser analfabeta.
O uso do conceito de gênero também foi utilizado para designar relações
sociais entre os sexos, rejeitando as justificativas biológicas utilizadas para explicar a
subordinação entre homens e mulheres, tomando por base a força muscular do homem.
Entretanto, ao utilizar o termo gênero no sentido que Scott define como “apenas em seu
caráter descritivo”, as novas pesquisas históricas se deparam com a limitação de que o
conceito de gênero não tem ainda a força de análise suficiente para interrogar e mudar os
paradigmas históricos existentes. A definição de gênero utilizada por Scott abarca o elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e como
forma primeira de significar as relações de poder, relacionando-se quatro elementos: primeiro
símbolos culturalmente disponíveis; segundo conceitos normativos expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas; terceiro são as instituições e
organizações sociais e, o quarto aspecto é a identidade subjetiva ( SCOTT, 1990).
Para Saffioti “a organização social de gênero constrói duas visões de mundo,
donde se pode concluir que a perspectiva da mulher e, portanto, seus interesses, divergem do
ponto de vista do homem, e, por conseguinte dos interesses deste”. Entendemos que homens e
mulheres podem vivenciar o mesmo fato de maneiras diferentes e é nesta perspectiva que
trabalharemos a experiência das mulheres, utilizando os conceitos de gênero e patriarcado
aqui referidos ( SAFFIOTI, S. l, p 84).
Tais questões levam-nos a crer que as exceções existiam, haja vista que as
mulheres foram beneficiadas com heranças deixadas por seus maridos, pais e parentes,
embora nem sempre ficassem na administração dos bens, seja por que não eram alfabetizadas,
seja por que era de praxe deixar essa “tarefa” a cargo do filho mais velho ou de um “tutor”
nomeado pela autoridade. Essa ascendência do homem sobre a mulher ainda que seja o filho
pode ser explicada quando Narvaz e Koller citam que o patriarcado rural se desintegrou, mas
a mentalidade permaneceu na vida e na política brasileira através do coronelismo, do
clientelismo e do protecionismo (NARVAZ e KOLLER, 2006).
Para Freitas, o interior da Bahia, especificamente Juazeiro era dominada pela
grande propriedade, onde os donos sequer sabiam precisar seu real tamanho, mas isto não
significava, contudo desinteresse. Essa terra tinha dono, respeitado na figura do “coronel”,
que costumava demarcar um conjunto de relações, que o tornavam proprietários do público,
mas também do privado. Por privado entendem-se aí as pessoas, o cotidiano dessas pessoas, a
vida econômica, social, tudo muito bem controlado. Os coronéis eram senhores, poderosos
sozinhos ou em alianças, e influenciavam e decidiam a vida dos cidadãos da Bahia e de sua
família, sempre através de regras rígidas, que invadiam seu mundo particular e contava
sempre com o apoio decisivo de muitos outros atores, como o juiz, o delegado e o padre
(FREITAS, 1ª parte, 1999, p. 61).
A população feminina durante muito tempo não conseguiu fazer mudanças
significativas em suas vidas, como garantia de acesso à educação, à saúde, o direito de
jurídico sobre a chefia de sua família, deixando-as subjugadas e excluídas das esferas de
decisão. Para Scott gênero significa o saber a respeito das diferenças sociais e esse saber não é
absoluto e sim relativo, sobre as relações entre homens e mulheres. “Seus usos e significados
nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder-de dominação
e subordinação – são construídas.” Daí que gênero é a “organização social da diferença
sexual” sem refletir ou programar diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres,
mas é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais (SCOTT, 1994, p.12-
13).
A história figura como registro das mudanças da organização social dos sexos e
como participante da produção do saber sobre a diferença sexual. Scott diz que as
representações históricas do passado ajudam a construir o gênero no presente e para ela a
história pode documentar fielmente a realidade vivida, já que os arquivos são repositórios de
fatos e categorias como homem e mulher são transparentes ( Idem, ibdem, p.12-13).
Sem a pretensão de levantar questões inéditas, pretende-se abordar o papel
desempenhado pelas mulheres na cidade de Juazeiro, na província da Bahia de 1850 a 1891,
tomando como referência 224 documentos entre Inventários, Partilhas Amigáveis e
Arrolamentos, guardados na Seção Judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia, onde
essas mulheres, após a morte de seus maridos ou pais, tornaram-se herdeiras e senhoras de seu
destino. O objetivo, portanto, é analisar os níveis de riqueza, o papel que essas mulheres
exerceram no município, a instrução feminina no século XIX e como se deu o exercício de
poder nessa sociedade, como início de uma pesquisa de maior amplitude que se encontra em
curso.
1- FONTES DOCUMENTAIS
2- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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no Arquivo Histórico Ultramarino. Revista Acervo. Rio de Janeiro, vol.10, nº 01, p-1-
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Moderna, 2006. p.229-230.
________. Filosofia da Educação. 2ª Ed. Ver. E Amp. São Paulo: Moderna, 1996. P. 168-183.
BURKE, Peter. A Escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992
________. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2005.
COSTA, Ana Alice Alcântara. As Donas do Poder. Mulher e política na Bahia: Salvador:
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DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Cotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São
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São Paulo: Marco Zero, 1989.
SPIX, Von e MARTIUS, Von. Através da Bahia. Bahia: Imprensa Oficial do Estado. 1916
1281
Boa parte da bibliografia sobre Canudos se detém a detalhar o combate e a guerra que tornou-se na ocasião
noticia em todo o país e no mundo. Hoje é possível olhar para Canudos e observar outros aspectos até então não
abordados para melhor se entender o que acontecia dentro dos limites do Belo Monte.
Conhecidos pela História como Jagunço, naquela paragem lendária poderiam viver a margem
da lei e prestar os serviços de que precisava o Bom Conselheiro. Mas não apenas estes
tomavam o caminho de Canudos.
Segundo José Calasans, Euclides da Cunha, em sua clássica obra “Os Sertões”,
costuma referir-se as estas mulheres de forma duramente estigmatizada. Diz que as
mulheres eram repugnantes (CALASANS, 2001, p.3), praticamente negando assim a
presença feminina em seu livro. As poucas referências que faz, trata de mostrar a sua feiúra e
as mazelas que carregavam sobre si. Nega ainda mais a participação destas como membros
daquele episódio que marcaria significativamente a História da Bahia e do Brasil. Devolver
a elas o “...exigindo reconhecimento do seu papel de mulher como participantes ativos (e
Quem eram essas mulheres? Porque buscavam o caminho de Canudos? Que papel
desempenhavam na estrutura social daquela comunidade? Quais as funções desempenhadas
por elas? Trabalhava na criação de animais, no plantio, apenas como mãe e mulheres dos
conselheiristas, eram mulheres dos jagunços, daí o termo jagunças. Ou que outras funções
desenvolviam? E as que viviam nos acampamentos? Eram apenas amantes? Como
sobreviviam? Quem as sustentava? E as viúvas dos militares, como viveram após a morte de
seus maridos?
As que acompanhavam os militares nos acampamentos eram tidas como prostitutas.
“Algumas mulheres, amantes de soldados, vivandeiras - bruxas, de rosto escaveirado e
envelhecido...”(CUNHA, 2000, p.467). Mas, de fato, quem eram elas? De onde viam? Por
que estavam ali? E as viúvas dos militares? Como viveram após o combate e a perda de seus
maridos? Pouco ou quase nada se refere a elas na literatura existente.
Estas definições de caráter discriminatório, nos impede de uma releitura da identidade das
mulheres do arraial.
Relatos como os publicados pelo coordenador do Histórico e Relatório do Comitê
Patriótico da Bahia, Lélis Piedade, registram que várias mulheres após a guerra voltaram para
suas famílias abastadas, e que algumas, ainda em ocasião de morte, cederam quantias em
dinheiro para ajudar outras em condição menos favorecida, o que contradiz as definições não
correspondem fatos, quando não relatam o perfil destas mulheres, igualando-as, influenciados
apenas nas publicações recorrentes da época.
fome do sertão, mas se nega a origem das mulheres. As publicações disponíveis carecem de
informações sobre o papel delas naquela comunidade e as relações que estas mantiam com
suas famílias se as tivesse, não se sabendo ainda a que relações de “poder” estavam
submetidas exposta.
Calasans afirma que o mulherio constituía a parte mais numerosa dos fanáticos que
seguiam para Canudos, chegando a cerca de dois terços dos vinte e seis mil habitantes que
compunham o arraial. Se estas mulheres eram em número tão expressivo como afirma
Calasans, nas inúmeras obras que escreveu sobre Canudos, não se compreende a omissão na
literatura e na própria História a respeito dos papéis desenvolvidos por estas mulheres.
Estes grupos eram formados em maioria por mulheres. Mas, quem eram estas
mulheres? Negras libertas; pobres miseráveis; doentes; por que buscaram a Canudos...? Não
se encontra referências que venham esclarecer sobre elas.
Encontramos informações de que também muitas mulheres acompanhavam os
militares que marchavam para canudos. Algumas acompanhando seus maridos. Outras eram
prostitutas. Que destino estas tiveram? E sabido que costuma-se omitir a importância da
mulher nos movimentos e processos históricos. Estas mulheres apesar de em grande número
não tiveram suas identidades e origens reveladas. Lélis Piedade, ao abrigar os sobreviventes
prisioneiras da saga de Canudos, declara que estas apresentam sentimentos de honra e recato,
bons costumes, hábitos de trabalho, que buscavam posições para esconder a nudez da pele
com os andrajos além de testemunha a nobreza de algumas destas mulheres que distribuía
pequenas quantias que traziam consigo, no sentido de melhorar a vida das mais indigentes.
A este respeito Wálney Oliveira em sua tese de mestrado faz as seguintes
considerações:
“Aos agregados dos militares era garantida a manutenção e sobrevivência.
Diversas mulheres – esposas, viúvas, filhas, irmãs, avós e mães, fizeram
requerimentos aos oficiais de serviço, solicitando pagamento de pensões.
Alegando não poder garantir seu sustentar, visto que os seus provedores
estavam afastados (temporária ou definitivamente) no serviço patriótico,
buscava amparo no Estado, que devia assumir o lugar do homem ausente”
(OLIVEIRA, 2002, p.136).
informações sobre as mulheres que, acompanharam o Antonio Conselheiro e que com ele se
estabeleceram em Canudos, e as outras que, de forma, diferente também fizeram parte
daquela página da nossa História naquele momento.
Canudos apresenta, portanto uma complexidade tamanha, com variantes sociais e
históricas que apontam questões ainda não estudadas, em pormenores, e que não serão
esgotadas. Analisar Canudos sob uma perspectiva de gênero retomará dados não observados
sobre estas mulheres que viviam na “Canaã Terrestre”, no Belo Monte, que por ocasião de
sua queda, sofreu toda sorte de violência.
REFERÊNCIAS
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SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” In. Educação e Realidade.
Porto Alegre. 1992.
1282
Dados do Instituto brasileiro de geografia e Estatística, de acordo com o censo 2000 e estimativas.
Disponível em <http://www.ibge.br>. Acessado em 02 de maio de 2006.
1283
Não pudemos encontrar dados específicos acerca da Vila na década de 1950, mas Pedro da Rocha Machado,
vereador representante da Vila no final da década abordada, ao relatar o processo que visava a emancipação local
em 1958 afirma que isso não foi possível pois seria necessária a existência de 10.000 moradores e a Vila contava
apenas com pouco mais de 6.000 habitantes.
[...] as meninas mais velhas ajudavam as mães a cuidar dos irmãos mais
novos que, na maioria das vezes, não eram poucos [...]; à medida que
cresciam, ajudavam as mães a alimentar os animais (suínos, caprinos e aves),
as acompanhavam às lagoas, fontes ou outros riachos para lavarem roupas,
aprendiam a cozinhar. Realizavam ainda outros trabalhos domésticos. Iam à
casa de farinha “rapar mandioca e tirar tapioca”, para fabricar juntamente
com os homens a farinha e a tapioca. Algumas aprendiam ainda a costurar,
bordar, fazer renda, fiar e tecer – os dois últimos eram mais restritos - para
fabricar seu enxoval ou para vender. (MARTINS; MARTINS, 2005, p. 14-
15).
[...] a causa dos óbitos nos permite vislumbrar o estado de saúde das
mulheres baianas. Desnutridas, fisicamente debilitadas, portadora em
quantidade considerável de doenças transmissíveis e congênitas, a gestação e
o parto sinalizavam como um grande perigo à vida de muitas mulheres, que
numa dimensão biológica reproduzia e intensificava os limites sociais da
pobreza. (FERREIRA FILHO, 1994, p.193).
Esta referência à tesoura não esterilizada é importante, visto que a causa mortis de
irmãos e filhos mais apontada dentre as entrevistadas era o “mal de sete dias” – tétano –
resultante provavelmente dessas tesouras e de outros materiais como os descritos abaixo, na
ritualística do parto. É curioso, porém, que esta doença não pôde ser detectada nos atestados
de recém-nascidos. Terá sido dada outra nomenclatura que não pudemos identificar?
Chama a atenção toda uma ritualística que acompanhava o parto descrito pelo
autor, certamente relatado por contemporâneos que lhe rememoraram o fato:
Os pedidos e ordens se seguiram: cuias com água quente, mel de fumo, rapé,
óleo de mamona, aguardente, cinzas de cigarro e cascas, raízes e sementes
diversas. O ritual não tinha sofisticação: primeiro, um bom chá de quitoco,
uma planta rasteira existente na região, que tinha o caráter de fazer aumentar
o ritmo das contrações; em seguida, ovos quentes com muita pimenta, para
aumentar as dores do parto; massagens na barriga, lubrificada com azeite
doce quente, complementavam os recursos disponíveis. No mais, muita reza.
Imediatamente após o parto, o menino mole recebia os primeiros cuidados:
mel de fumo, azeite de mamona e cinza de cigarro no umbigo. (MACHADO,
2006, p.25).
Para a mãe, que escapara da morte, cachaça quente com muito cominho. As
recomendações para o resguardo eram rigorosas: comer, durante 30 dias,
carne de capão gordo com muito pirão de farinha de mandioca; tomar
banhos completos só após um mês, e com água acompanhada de cascas de
cajueiro ou outras plantas e, para completar, ficar um bom período sem lavar
a cabeça. (MACHADO, 2006, p.25).
Chamamos atenção no texto acima para o trecho: “para a mãe, que escapara da
morte”, destacando que não se trata apenas de figura de retórica. A vida das mulheres na Vila
de Uibaí, pelo menos até a década de 1950, na fase reprodutiva, estava sempre por um fio. O
parto é a causa de morte mais recorrente dentre os atestados de óbito analisados. Maria Sofia
falece aos vinte e dois anos, dois dias após sua primeira e única filha. Guiomar falece também
aos vinte e dois e deixa dois filhos. Zulmira, aos vinte e dois, deixa cinco filhos. Jovanina,
com vinte e cinco, deixa dois filhos. Claunita, de vinte e cinco, deixa cinco crianças. Maria
José, de dezoito anos, falece quase dois meses após o nascimento de Inez, que morreu com
um mês de vida, a mãe – de acordo com o atestado – de parto – e a filha, de cólica das
crianças. Maria, de trinta e sete anos, deixa três crianças. Alvani, vinte e um anos, dois filhos.
Atanásia, quarenta e dois anos de idade e onze filhos órfãos. Cleonice, vinte e dois anos e uma
filha de quatro dias. Leondina, trinta e quatro anos e quatro filhos. Elisa, aos trinta e um, deixa
um filho. Maria, aos trinta e sete, deixa dois filhos e Germana, aos quarenta, deixa quatro.
Além de Eni, Dejanira, Carlota, Dulce e Ana, respectivamente na idade de dezenove, vinte,
vinte e quatro, trinta e trinta e três, sendo que não se depreende dos atestados se as crianças
sobreviveram ou mesmo se estas deixaram outros filhos1284.
Essas são algumas das mulheres que sofreram até o fim da vida naquilo que
muitas viam como sua missão: reproduzir. Sertanejas que lutaram até o último instante pela
sua vida e a de seus filhos, mas que não sobreviveram à falta de assistência médica e
alimentação adequada e que sequer tinham a oportunidade de escolher se queriam ou não
correr o risco de vida que significava reproduzir naquela localidade e momento histórico
específicos.
Mas o que era feito dos filhos dessas mulheres? Os dados nos indicam que não era
pequeno o número de órfãos na Vila, mas os documentos escritos não nos permitem
1284
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
vislumbrar o destino destes, porém algumas entrevistas nos dão pistas do paradeiro de
crianças que perdiam, por um ou outro motivo, o convívio com a mãe. É o caso de Dona
Petronília e os irmãos que “moravam tudo assim espalhado com os padrinho criando, que
minha mãe era doente, num pôde criar filho, só pôde arrumar, adoeceu, ela dava esse mal que
caía né? Aí os padrinho tomou conta”1285. Isso nos revela a importância das relações de
compadrio nessa sociedade onde os padrinhos muitas vezes atuavam, de fato, como
substitutos dos pais no caso da impossibilidade destes. Os avós também atuavam como
substitutos dos pais no caso da falta destes. Dona Ulda revela que “às vezes passava tempo
com minha vó quando minha mãe tinha resguardo ou alguma doença que toda vida as
mulheres sempre, minha vó levava a gente pra lá ne e a gente passava um tempo lá com
ela”1286. É importante destacar que na ausência da mãe, seja para trabalhar, por doença ou
morte, a substituição deveria ser feita sempre por outra mulher, fosse esta irmã, avó ou
madrinha, o que mostra uma relativa imobilidade nos papéis atribuídos a mulheres nesta
sociedade.
Mesmo quando sobreviviam ao parto, as mulheres tinham que conviver com o
risco constante de perder os seus filhos nos primeiros anos de vida. 25% dos falecidos na Vila
são crianças com até doze anos de idade, das quais mais de 90% morreram antes do primeiro
ano de vida. Castro (1967) afirma que “morre tanta criança no Nordeste que chega a parecer
que morre mais gente do que nasce” (CASTRO, 1967, p.22).
Uma das causas de óbito infantil apontada nos atestados de óbito com maior
freqüência é a cólica das crianças ou cólica infantil que vitimou na Vila de Uibaí, durante esse
período: José e Epaminondas de 3 meses; João, com 60 dias de vida; Roberto aos 9 meses;
Clarivaldo de 3 meses e 24 dias; Rubson, 8 dias; Inez, 1 mês; Pedro de 6 meses; Maria, 3
meses; José, 2 dias; Wilson, 5 meses; José, 16 dias e Eva de 1 mês1287.
Como em outras áreas do sertão baiano, “a paisagem está impregnada da presença
constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal promiscuidade dessa gente com a
morte, de que o enterro é um dos traços mais vivos e presentes”. (SILVA, 1982, p.62). A
febre também é apontada como causa freqüente de morte tendo vitimado Maria, aos quinze
dias de vida; Janete, de dois meses; Amélia, aos dez meses; Amália, aos trinta dias; Oziel, aos
treze meses; Domingos, aos dezoito meses e Carlos, com dois anos e cinco meses de vida1288.
1285
Depoimento de Petronília Rosa de Miranda Martins.
1286
Depoimento de Ulda Dourado Bastos.
1287
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1288
Idem.
As outras causas apontadas para a morte de crianças até o terceiro ano de vida são
a “desenteria” que mata uma criança de cinco meses cujo nome não está indicado no atestado
de óbito, doença denominada em outro caso de “diarrheia infantil”, causa do falecimento de
Eládio, com um mês de vida. Temos também o sarampo que vitimou Francisco, de oito
meses, Ariano, de quinze e Gildásio, de treze. A denominada “conseqüência da dentição” ou
“moléstia da dentição” é a causa da morte de Genário, nove meses e Odilon, de três. Algumas
crianças falecem e a causa apontada é nada mais do que “conseqüências de parto”. É o caso
de Adalgisa, dois dias e Idelvan, sete dias. A paralisia infantil mata Floraci, de três meses; a
pneumonia leva Gileno aos dois meses. Jaime falece aos cinco meses com “feridas na boca e
retenção de urina”. Francelino, quatorze dias, filho de Maria, falecida no parto, morre
simplesmente da “moléstia dos recém-nascidos”. Ocorre também a “moléstia ignorada”, como
foi o caso de Pedro, dezenove meses1289.
Percebemos, através dos dados, que era bastante frágil a saúde dos recém-
nascidos, sendo que sequer havia médicos na Vila para atestar as mortes. Nenhuma das
crianças ou mães que faleceram de parto teve o atestado de um médico para o seu
falecimento. Esses aparecem raramente, apenas em casos de pessoas que foram se tratar em
outros lugares, por terem dinheiro para pagar as despesas. Algumas denominações nos
parecem insuficientes para detectar a causa morte dos bebês, como é o caso da “moléstia dos
recém-nascidos”, que pode ser o conhecido “mal de sete dias”, ou mais especificamente,
tétano.
As crianças maiores, apesar de já terem passado pela “loteria” do parto e dos
primeiros anos de vida, ainda passam em seu cotidiano por situações que podem vir a dar
cabo de sua vida, seja por um acidente nas brincadeiras na Serra Azul ou das Laranjeiras –
Lurdes falece aos cinco anos de morte violenta “caída de cima de um talhado na grota da serra
de Laranjeira” – ou por doenças como sarampo – Maria, nove anos. Febre – Aides, onze.
Anemia – Geraldina, oito. Crupe - Terezinha, quatro. Ou até mesmo de “causa ignorada”
como foi o caso de Eli, três anos e Darci, cinco anos1290.
As jovens e mulheres adultas, há apenas cinco décadas de distância de nós,
faleciam de doenças que hoje, apesar de todos os problemas pelos quais passa a saúde pública
no Brasil, são inaceitáveis. É o caso da jovem Messias, dezessete anos, que falece de
disenteria – diarréia – ou de Juvília, vinte e cinco e Rosentina, trinta e quatro, vitimadas pela
1289
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1290
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
gripe. A segunda deixou nove filhos. Nada elimina a hipótese de que se tratem de doenças
outras nos aparelhos excretor ou respiratório, não identificadas por falta de assistência
especializada.
Doença denominada infecção, desenvolvida provavelmente na área ginecológica –
só atinge mulheres – também vitima mulheres adultas no cotidiano da Vila de Uibaí. É o caso
de Donária, 33 e Laura 29, ambas sem filhos. As doenças respiratórias são freqüentes nos
atestados de óbito. A bronquite é causa da morte de Maria, solteira, 42 anos, que deixa oito
filhos; de Adelina, 48, seis filhos e Idalita, 34, cinco filhos. A asma vitima Jovelina, 40, que
deixa onze filhos. A pneumonia atinge Efigênia, 47, cinco filhos. Eulina, 21, falece fraqueza
pulmonar. Idalina, 42, de “moléstia ignorada por falta de médico”, deixando cinco filhos. O
Câncer inespecificado leva Josefa, 39, que deixa um filho e o de mama leva Hilda, de 46, seis
filhos1291.
É curioso que doenças como sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis e
lepra – hanseníase – que acreditamos serem prováveis causas de morte na época e período
abordados, não aparecem nos atestados de óbito, o que nos leva a crer que a moral da
sociedade local levava as pessoas a “encobrir” ou manipular determinadas causas mortis.
As mulheres idosas apresentam uma diversidade de causas mortis. A causa mais
freqüente é denominada fraqueza geral. Esta denominação acompanha os atestados de
Emerenciana, 90; Virgilina, 58; Edeltrudes, 69; Maria, 83; Antonia, 90 e Febrônia, 86. A
paralisia aparece nos atestados de Cândida, 68 e Apolônia, 50. A pneumonia vitima Maria, 50
e Umbelina, 75. Duas senhoras falecem de “moléstia ignorada”: Maria Rita, 60 e Marcionília,
51. As outras causas são diversas: Ana Maria, 72, moléstia do intestino; Laurinda, 80,
coração; Emília, 72, moléstia do estômago; Messias, 69, congestão; Josefa, 82, conseqüência
de hemorragia; Delmira, 86, diarréia; Francisca, 90, disinteria; Joana 80, asma; Maria, 63,
congestão; Judite, 57, colapso; Oracina, 52, febre; Marcionília falece aos 62 de
“enfraquecimento da horta”, referência provável a aorta, artéria do coração. Não aparecem as
causas mortis de Francisca, 71; Bernardina, 73 e Virgínea, 801292.
A vida dos homens, apesar de estarem livres do risco constante de morte por
parto, no que se refere à saúde, era bastante instável e a possibilidade de ficar viúva também
era iminente para mulheres casadas. É o caso das esposas de José Francisco, 20 anos, que
morre de desastre de caminhão. Omésio, lavrador, que faleceu aos 24 anos de “amigdalites
1291
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1292
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
cancerosas”, deixando um filho. Cecílio falece aos 38 de “moléstia ignorada por falta de
médico”, deixando a esposa com onze filhos e José que aos 27 anos falece de congestão,
deixando dois filhos. Alcenou falece aos 27 de inflamação, deixando um filho. Carlota,
analfabeta, declara que o marido, Jeremias, 42, lavrador, foi assassinado deixando quatro
filhos. Isso reflete a violência constante no decorrer da história da Vila desde a sua
fundação1293.
Algumas mulheres, por motivos ignorados por nós, resolveram dar fim às próprias
vidas. São Eremita, 30 anos, que “suicidou-se voluntariamente tomando formicida tatu” e
deixou uma casa de residência, uma propriedade com uma cacimba de beber, sete tarefas de
terras mais ou menos, três vacas paridas e uma novilha de um ano. E Terolina, 60 anos, que
acabou “suicidando-se voluntariamente tomando soda”1294. Será que reflexões existenciais das
trabalhadoras as levaram por vezes a, como forma de resistência, utilizar-se do suicídio para
abster-se de determinados sofrimentos?
A quantidade de filhos de trabalhadoras, considerando as mais idosas, nos dá uma
imagem da vida que cada uma delas levava. Nos atestados de óbito, consideradas as mulheres
de mais de 50 anos – presumindo-se que já haviam parado de reproduzir – encontramos
sessenta por cento com sete filhos ou mais, havendo inclusive uma delas com dez filhos, uma
com onze e uma com treze. Dentre os entrevistados, observa-se a mesma freqüência: sessenta
por cento tem sete filhos ou mais. Uma prole de sete filhos ou mais como possibilidade maior
de vida para as trabalhadoras rurais da Vila de Uibaí, associadas a pesada carga de trabalho
que tinham que assumir em casa, na roça, no chiqueiro, na fonte, no fogão, na feira ou no
garimpo nos levam a refletir acerca das dificuldades encontradas por elas para elaborar seu
cotidiano, tendo que associar tudo isso ao risco constante de morte sua e dos seus. É a vida no
cotidiano das trabalhadoras rurais da Vila de Uibaí, ligada ao trabalho do começo ao fim.
FONTES
Fontes Orais
1293
A esse respeito ver Rocha; Machado (1988), em especial no período denominado Influença da Maniçoba e
na Guerra de Jove e Beija.
1294
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
Fontes Escritas
Fórum Jóvito Machado. Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363,
28-12-1959.
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______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. NEGRO, Antonio Luigi; SILVA,
Sérgio. (Orgs.). Campinas, SP: editora da Unicamp, 2001.
assalariadas”1295. Esta reflexão que Maria Odila aborda da sociedade paulista no século XIX,
mostra como marginalizada desse processo produtivo brasileiro, a mulher sofreu por um
longo período a ausência de condições favoráveis ao seu desempenho em atividades que lhes
rendessem um salário digno, de reconhecimento social e igualdade no mercado de trabalho.
Assim, “multiplicavam-se mulheres pobres que o sistema social era incapaz de
absorver e que apenas tangencialmente se inseriam na sociedade escravista”1296. No decorrer
dos séculos, a participação da mulher no processo produtivo é cada vez mais marcante. São
elas que respondem sozinhas em muitas localidades pelos sustentos de seus lares.
Na conjuntura social brasileira em que cresce largamente a participação feminina
no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da Margarida são também retratos dessa
realidade. A marcação cronológica do briquitar dessas mulheres é regida pelo vai-e-vem das
marés: “[...] a padronização do tempo social no porto marítimo observa os ritmos do mar; e
isso parece natural e compreensível para os pescadores ou navegantes: a compulsão é própria
da natureza”.1297. Essa noção de tempo é vivenciada pelas marisqueiras em Salinas da
Margarida, pois quando as águas apresentam um menor volume nas areias das praias e nas
áreas dos manguezais é que elas se dirigem para os locais que podem ser considerados a sua
oficina de trabalho. Lá, elas permanecem por horas a fio independente de chuva ou sol,
extraindo das areias pequenas conchas onde estão os moluscos, denominados no local de
chumbinhos os quais representam o ganha pão para muitas famílias em Salinas da Margarida,
município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu,
na Baia de Todos os Santos, a 280 Km da capital Salvador via BA-001 BR-324.1298
As marisqueiras desempenham um papel importante para o desenvolvimento
histórico-cultural local. Essa atividade envolve relações de trabalho em grupo e perpetua uma
tradição vivida por várias gerações e que é marcada por aspectos próprios, referenciando a
luta pela sobrevivência dessas mulheres e de seus familiares.
A mariscagem se apresenta como uma cultura que é fruto do desafio e peleja de
um segmento popular que tem ficado à margem de outras atividades em Salinas da Margarida.
É estimulante buscar compreender as reinvenções articuladas por essas mulheres, em sua
1295
DIAS, Maria Odila Leite Da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1995. P.15.
1296
Idem. P.111.
1297
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras.
São Paulo. 1998. P. 271.
1298
Centro de Estatísticas e Informações – CEI. Informações básicas dos municípios baianos: Recôncavo Sul.
Salvador, 1994. P. 523,535.
grande maioria negras, que se encontram agrupadas nessa tradição: de buscar nas margens de
Salinas da Margarida a sobrevivência.
Apesar deste estudo não ter como foco central a questão étnica, é importante
ressaltar que grande parcela das marisqueiras se identificava como negras. Quanto a essa
particularidade, Rose, ex-marisqueira com a idade de 34 anos, quando foi entrevistada, falou
sobre o seu trabalho. Ela trouxe em suas palavras, elementos que é possível observar o quanto
se identificava e se orgulhava do trabalho que fazia. Surgiram em sua fala, o significado do
ser marisqueira e ser negra.
Nunca, nunca [...] me senti discriminada por mariscar. Nem nunca fui contra,
e nem senti revolta de ninguém dizer nada. Sempre nós fomos criadas
valorizando aquilo que nos favorecia. Por ser chamada de marisqueira?
Somos mesmo! Suas negrinhas marisqueiras! Somos mesmo! E temos prazer
de viver mariscando. 1299
Rose e suas irmãs não admitiam discriminações por serem marisqueiras e negras.
Ouvir frases que tinham como intuito marginalizarem as pessoas de sua profissão e origem
étnica, não abatia a certeza do que eram e do trabalho que desenvolviam. Eva Alterman Blay
fez analises da mulher no mercado de trabalho paulista e esclarece que “A forma como a
mulher assume o trabalho reflete pois a maneira como ela se autodefine socialmente.”1300 Para
Blay, a mulher passa a se considerar uma profissional quando o trabalho pode vir a ter um
sentido inseparável na sua vida. É possível observar que, a criação que Rose e suas irmãs
receberam de seus pais, era imbuída de valores que sublimava o trabalho que desenvolviam.
Tanto na fala de Rose, como de outras marisqueiras, foi observado a maneira como elas se
identificavam como mulheres negras, bem como profissionais da maré.
A mariscagem é marcada por aspectos próprios e uma de suas características é ser
desenvolvida de maneira difícil e estafante. Cleide fala desse cotidiano:
1299
Rosangela Áurea Caetano. Entrevistada em15 de Fevereiro de2003.
1300
BLAY, Eva Alterman. Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Paulista. São Paulo. Ática. 1978. P.
269.
1301
Cleide França Silva. Entrevistada em 1 Maio de 2002.
Cleide tinha 22 anos de idade quando foi entrevistada. Ela é filha e neta de
marisqueiras. Começou a mariscar com a idade de 12 anos. Tem duas filhas e não mora com
nenhum dos pais das crianças. Quando começou a mariscar era apenas para ajudar na renda
familiar. Hoje, por não receber nenhuma ajuda dos pais das filhas, responde sozinha pelo
sustento familiar. Trabalha temporariamente em uma das pousadas de Salinas. Segundo ela,
esse trabalho não lhe oferece nenhum vínculo empregatício e o salário que recebe é pouco.
Assim, continua mariscando para ajudar no orçamento familiar.
Pode-se notar no depoimento a dificuldade em desenvolver este trabalho. A
quantidade sempre depende do peso que se agüenta transportar. A denominação que é dada ao
marisco chumbinho, parece fazer sentido, pois eles são pequenos, não tão pequenos quanto à
esfera do chumbo industrializado para arma de fogo, mas mesmo assim pequenos e pesados, e
quando fervidos pela segunda vez - a primeira vez é para poder tirá-los das conchas - sai um
caldo da cor de chumbo. A necessidade de fervê-los pela segunda vez é para que seja tirada
uma substância que às vezes provoca mal estar nas pessoas.
Porém, toda a dificuldade é relativamente deixada de lado quando, possivelmente
por conformidade pelo fato de não possuírem outra forma de sobrevivência, agradecem a
Deus por dar-lhes a maré e terem através dela o sustento. É o que Cleide expõe:
1302
Idem. Entrevistada em 1 de Maio de 2002.
tornaria um lugar de lazer, onde é possível brincar, tomar banho, e não apenas pegar frutos do
mar.
A simplicidade dos instrumentos necessários à pescaria é uma característica
geralmente presente na pesca artesanal. Na coleta do chumbinho é necessário o uso de
qualquer instrumento que sirva para cavar as areias da praia em uma rasa profundidade. Elas o
fazem de cócoras ou debruçadas sobre as areias, cavam e catam as pequenas conchas com
grande maestria.
A mariscagem de catar chumbinho tem como mais uma de suas características, ser
desenvolvida com a participação de membros familiares, sendo saliente a importância desse
meio de trabalho para a própria família. No cotidiano de Salinas as crianças eram educadas
durante o convívio com suas mães, e com as colegas de suas mães, elas presenciavam as
conversas dos adultos enquanto trabalhavam e brincavam. Segundo Agnes Heller, “O homem
nasce já inserido em sua cotidianidade.”1303 Nesse sentido, o tempo da convivência entre os
filhos das marisqueiras e suas mães se repetia todos os dias por longas horas. O lazer e o
trabalho infantil estavam imbricados no mesmo espaço.
1303
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo. Paz e Terra. 1992. P. 18.
Maria Izilda de Matos em seus estudos assevera que ocorre no cotidiano “formas
peculiares de resistência/luta, integração/diferenciação, permanência/transformação, onde a
mudança não esta excluída, mas sim vivenciada de diferentes formas.”1306 A história do
cotidiano esta longe de ser uma história de comodidade, do pacato, pois, é um estudo que trata
da trajetória de vidas que tem como referência central, o que é vivido no particular, em
associação com outros e com o ambiente.
Assim, no momento em que se eleva o nível da maré, as marisqueiras se dirigem
para suas casas onde outra etapa do seu trabalho é desenvolvida. Dando continuidade, elas
percorrem as matas em busca de madeira seca para fazer o fogo e escaldarem o chumbinho,
para assim poderem tirá-los das conchas, se alimentarem ou empacotá-los e vendê-los.
Junto com o trato com os mariscos essas mulheres se desdobram para
desenvolverem outras tarefas: São mães, estudantes, namoradas, esposas, ganhadeiras entre
outras atividades. Com tais funções, há a necessidade de se pluralizarem para darem
continuidade e conta de sua lida diária: “As relações sociais e o trabalho são misturados – o
dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa – e não há grande senso de conflito
entre o trabalho e “passar do dia”.”1307 E assim, as marisqueiras marcam a sua existência ao
atuar com destreza para conciliar o seu trabalho a outras ocupações associadas ao seu dia-a-
dia, criam mecanismos para se harmonizarem num relacionamento equilibrado com a
sociedade que a cerca e a natureza das marés que demarca o seu tempo de trabalho, sem
negligenciar com outras referências de tempo que confrontam com os cultivados por elas nas
marés. de utilização do espaço natural em espaço social não é percebida apenas em Salinas.
No processo
1304
HELLER. P.23.
1305
HELLER, P. 38.
1306
MATOS, Maria Izilda de Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. São Paulo. EDUSC. 2002.
P. 26.
1307
THOMPSON. P. 271,272.
1308
BRANCO, Samuel Murgel. ROCHA, Aristides Almeida Elementos de ciências do ambiente.
CETESB/ASCETESB. São Paulo. 1987. P.142,143.
O Araça! Quem era o Araçá? O Araçá era mato puro. Hoje em dia eu passei
ali na caminhada... cada casa linda! [risos] O Araçá era mato, só tinha mato.
Já botaram o nome Araçá porque só tinha araçá, araçazinho, cajueiro, essas
coisas... Agora cada casa bonita mesmo, passei lá no dia da caminhada e vi o
Araçá. Quem era o Araçá?! 1310.
Dona Sofia tinha 82 anos de idade no período em que foi entrevistada, é viúva,
teve 10 filhos e com risos no momento da entrevista, disse não saber quantos netos e bisnetos
têm. Com alegria diz que aguarda os tataranetos. Gostava muito de estudar, estudou a
primeira, segunda, terceira e a quarta série do curso primário; seu grande sonho era se tornar
professora, sonho que ela não conseguiu realizar pelo motivo de seu pai não ter tido condições
de patrocinar os seus estudos e também por ter tido sérios problemas de saúde. Este lugar que
Dona Sofia traz em suas lembranças está localizado nos arredores próximo do centro de
Salinas. Como ela observa, lá existia uma vasta flora com a presença de variadas espécies de
árvores frutíferas, que com o tempo desapareceram para dar lugar a muitas casas. “... Os
valores, tanto quanto as necessidades materiais, serão sempre um terreno de contradição, de
1309
PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio
cultural e ambiental. In; Natureza e cultura. Revista brasileira de história. Órgão ficial da Associação Nacional
de História. São Paulo, ANPUH, vol.26, nº 51, jan.-jun., 2006. P. 122,125.
1310
Sofia Lima Pinheiro. Entrevista em 13 de Fevereiro de 2003.
1311
THOMPSON, E.P. O Termo Ausente. In: A Miséria da Teoria; ou um planetário de erros, uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, 1981. P.194.
1312
WILLIAMS, Raymond. “Cidades e Campos”. In. O Campo e a Cidade na História e na Literatura, 1ª
reimpressão. São Paulo. Cia das Letras, 1990. P. 393.
1313
ROMEIRO, Ademar Ribeiro. Economia ou economia política da sustentabilidade. In: MAY, Peter H.
LUSTOSA, Maria Cecília. VINHA, Valéria da (Orgs) Economia do Meio Ambiente. Teoria e Prática. Rio de
Janeiro: Campus, 2003. P. 25.
processo civilizatório. As restrições à acumulação de capital são para que se evitem perdas
irreversíveis ambientais e sociais.
Esses princípios se associam com as medidas do processo de gestão ambiental que
Aracéli Cristina de Sousa Ferreira traz: “O estabelecimento de políticas, planejamento, um
plano de ação, alocação de recursos, determinação de responsabilidades, decisão,
coordenação, controle.”1314 Essas são algumas das formas que visam fundamentalmente o
desenvolvimento sustentável. Ferreira explica que a intensidade com que os empreendedores
capitalistas vêm agindo no meio natural é uma demonstração de que pouco se está levando em
conta a degradação dos mesmos.
Nessa perspectiva, as universidades entram nos centros das discussões e surgem
como possibilidades de criarem condições para resolverem ou amenizarem essas situações,
contudo encontram-se em uma cruzilhada, pois são centros formadores de tecnologia,
opiniões e concentram uma gama de valores humanistas ao mesmo tempo em que são
representantes do Estado.1315 Assim, como núcleo tecnológico que busca atender a um
chamado cada vez mais exigente de um mercado consumidor, os profissionais que são
formados por essas universidades, em muitos momentos devem ponderar as suas ações na
possível utilização desenfreada dos recursos ambientais, pois elas podem gerar a ignorância
do conhecimento, onde se sabe as conseqüências nocivas de suas ações e ainda assim, alguns
as praticam na cegueira egoísta do capitalismo. Em contraposição a mentalidade desse uso
descomedido, as universidades hospedam, desenvolve e propaga idéias de conscientização,
preservação e sustentabilidade. E como Moraes aponta, o desenvolvimento tecnológico
representa de um lado a salvação e do outro o perigo para a humanidade. Ao que tudo indica,
a questão ambiental é bem evidente, e deve ser bem cuidada.
Salinas da Margarida é abastecida de recursos naturais, os quais são em grande
escala provenientes do mar, o que propicia há bastante tempo um meio estável de
sobrevivência à população carente. Nesta localidade, muitas são as mulheres que assumem o
papel de desempenharem com sucesso a liderança de um tipo de mariscagem que é catar uma
espécie de molusco conhecido na região como chumbinho. Estas mulheres têm uma
participação ativa e efetiva na renda familiar, provocando um maior envolvimento na
comunidade no aspecto do desenvolvimento econômico, cultural e social.
1314
FERREIRA, Aracéli Cristina de Sousa. Contabilidade Ambiental. Uma informação para o desenvolvimento
sustentável. São Paulo. Atlas, 2003. P. 33.
1315
MORAES, Antonio Carlos Robert. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo. Hucitec. 1997. P. 60.
FONTES
Orais:
Cleide França Silva. 22 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da Margarida.
Entrevista em 01 de maio de 2002.
1316
MALDONADO, Simone C. A caminho das pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In;
DÍEGUES, Antônio Carlos (Org.) Imagem das águas: São Paulo: Hucitec. 2000. P. 60.
1317
Francisca de Jesus Santos (D.Elza). Entrevistada em 31 de Maio de 2002.
1318
Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 07 de Junho de 2003.
Escritas:
Centro de Estatísticas e Informações – CEI. Informações básicas dos municípios baianos:
Recôncavo Sul. Salvador, 1994.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAY, Eva Alterman. Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Paulista. São Paulo.
Ática. 1978.
DIAS. Maria Odila Leite Da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
MATOS, Maria Izilda de Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. São
Paulo. EDUSC. 2002.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo. Hucitec.
1997.
______ O Termo Ausente. In: A Miséria da Teoria; ou um planetário de erros, uma crítica
ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, 1981. P.194.
1319
SOIHET, Raquel. PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações
de gênero. Texto a ser publicado na revista brasileira de história.
1320
Na perspectiva positivista o sujeito histórico é o idêntico, é o mesmo, é o homem branco e ocidental.
1321
Idem, nota 2.
1322
Idem, nota 2.
Após o breve histórico proposto acima sobre a inserção das mulheres na história, a
introdução dos estudos de gênero como uma categoria de análise histórica e a importância do
feminismo nestas resoluções, propomos pensar sobre a construção simbólica e social da
masculinidade compulsória. Para Maria Izilda Matos,
1323
MATOS, Maria Izilda S. Por uma História das sensibilidades: Em Foco – A Masculinidade. História –
Questões e Debates. Ano 18, nº. 34, jan/junho 2001. Curitiba: APAH/UFPR. p. 45-63.
1324
O pensamento iluminista estava respaldado na idéia de cientificidade e se representavam enquanto ‘Verdade
das Luzes’. Pressupostos de igualdade, liberdade e fraternidade eram lemas propagados pelos seus filósofos.
Entretanto, as mulheres não poderiam de forma alguma gozar dos mesmos direitos dos homens.
1325
ALBURQUEQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de Fazer Machos: gênero e práticas culturais,
desafios para o encontro das diferenças. Texto apresentado no seminário: Gênero, Saúde e Direitos Sexuais e
Reprodutivos. Evento realizado em Fortaleza, Ceará no período de 04, 05 e 06 de maio de 2007.
1326
Idem, nota 8
ser utilizado para justificar a pseudo-inferiorização por parte das mulheres. Homens “têm” um
sexo, as mulheres “são” o sexo. Este é o pensamento enveredado pelas interpretações sexistas.
Nessas interpretações a heterossexualidade compulsória se coloca como instituição política.
Segundo Maria Milagros Rivera, “... los hombres ostentan el poder em todas lãs instituiciones
importantes de la sociedad y que lãs mujeres son privadas de accesso a ese poder”. (RIVERA,
1993: 27). A pesquisadora Maria M. Rivera prossegue argumentando quê:
conversas com pessoas etc. O trabalho com a fonte oral possibilita a escrita da história das
mais diversas experiências de mulheres sob uma ótica não androcêntrica, uma vez que “(...) o
predomínio secular da linguagem ‘masculinizada’ tem provocado reações nos discursos
feministas. A inclusão social nas várias manifestações ligadas à afirmação da mulher é uma
das virtudes proporcionadas pela história oral”. (MEIHY, 1996: 67-68).
Para Joan Scott em seu texto – El problema de la invisibilidad – a autora nos
aponta quê: “...seria difícil imaginar uma historia escrita em esta época que no incluyera uma
mención al surgimiento de las mujeres como agentes del cambio histórico y como objeto de
consideraciones políticas”. (SCOTT, 1992: 38). Nesse sentido, a inserção de mulheres na
escrita da história1329 é de importância primordial para documentar as diferenças e mesmos as
mais diversas experiências de identidades femininas ao longo da história. É o que nos propõe
Maria Odila da Silva, segundo a pesquisadora:
1329
Não só a existência de mulheres na escrita da história, mas, sobretudo mulheres preocupadas com o trabalho
das variáveis de interpretações desta história.
1330
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica
das diferenças. In. Estudos Feministas. Vol. 2, nº 2, 1994.
Desse modo, “... se suas diferenças devem ser contempladas, os aspectos que as
aproximam, as semelhanças, também devem estar presentes na análise” (BERNARDO, 2003:
174). Estes são referenciais que envolvem complexidades, diversidades e contrapontos, e
pontua as multiplicidades desses indivíduos. É no espaço do cotidiano, repletos destas
interfases, que se forjam as lutas para a conquistas de direitos sociais das mais variadas
mulheres. E o processo de luta dessas mulheres vem se desenvolvendo a partir das
desigualdades que tem suas origens nas relações sociais, nas relações históricas.
Contrapondo-se às abordagens reducionistas que busca unificar as explicações
sobre as relações entre os sexos, “aquelas da dominação, opressão, configuradas na
supremacia masculina, sem considerar a complexidade da questão ou as formas de poder
1331
exclusivamente femininos” , significa atentar para alguns importantes componentes da
esfera cultural, tais como, cotidiano, violência - física e simbólica -, representações,
experiências, diversidades, dentre outras dimensões.
A inserção feminina na esfera publica e a valorização de sua participação política
se coloca como um aspecto significativo para a história das mulheres. As relações de gênero
se constituem com relações de poder. Nelas são estabelecidas experiências diversas, ao passo
quê, “... o desafio à história normativa tem sido descrita, nos ternos de compreensão histórica
convencional e evidente, (...) uma correção da visão incompleta ou infiel, e tem buscado
legitimidade na autoridade da experiência, a experiência direta dos outros, assim como a do/a
historiador/a a que aprende a ver e a desvendar as vidas desses outros em seus textos”. 1332
Documentar as relações de gênero enquanto relações de poder é método
significativo para o registro teórico das diversas experiências e estratégias construídas pelos
indivíduos ao longo da história. Buscar um distanciamento da história ortodoxo que em
muitos escritos contemporâneos ainda pode ser observadas, se coloca como ponto importante
dentro das novas concepções epistemológicas. Nesta perspectiva:
1331
FACINA, Adriana e SOIHET, Rachel. Gênero e Memória: algumas reflexões. Revista Gênero, Niterói, v. 5,
n. 1, p. 9-19, sem. 2004.
1332
SCOOT, Joan W. Experiência. In. SILVA, Alcione Leite da. Et allii. Falas de Gênero. Ed. Mulheres, 1999.
1333
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, ed. Vozes, 1997.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CASTRO, Hebe. História Social. In. FLAMARION, Cardoso & VAINFAS, Ronaldo.
Domínios da História: ensaios e metodologias. Ed. 5º; Campos: Rio de janeiro, 1997.
COSTA, Ana Alice Alcântara. Lili Tosta e os fundamentos do feminismo baiano. In.
SILVA, Maria Dulce e NERY, Inez. (org). Cenários e personagens. Teresina: REDOR / O
povo, 1999.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2004.
MEIHY, José Carlos Sabe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: LOYOLA, 1996.
INTRODUÇÃO
A NECESSIDADE DE HISTORIAR
Le Goff (2001), ao estudar a vida de São Francisco, afirma que ele só pode ser
entendido, a partir dos valores de sua sociedade, de seu tempo. Segundo ele,
(...) se São Francisco foi moderno, é porque seu século o era. E isso não é de
diminuir nem sua originalidade nem sua importância, mas constatar, que ele
não surgiu como uma árvore mágica no meio de um deserto, mas que é
produto de um lugar e de um momento [...]. (LE GOFF, 2001, p.105).
Isso porque, os valores, as crenças e atitudes dos indivíduos, são permeados pela
cultura que o rodeia. Ele sempre será produto do seu tempo. Nobert Elias (1995), na obra
“Mozart: sociologia de um gênio”, afirma que
Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são
considerados no contexto do seu tempo [...]. O destino individual de Mozart,
sua sina como ser humano único e, portanto como artista único, foi muito
influenciado por sua situação social, pela dependência do músico de sua
época com relação à aristocracia da corte (ELIAS, 1995, p.15,18).
Nesse sentido, verifica-se que todos os biografados estão inseridos em uma rede
social, possuem uma profissão ou ocupação, manias, que revelam características, valores e
comportamentos de uma época. Isso amplia a possibilidade de interpretação do historiador e
permite o uso de aportes teóricos tanto da História, como da Sociologia e Psicologia, na
construção de uma trajetória de vida.
Moita (1995) considera que a pesquisa biográfica possui uma metodologia com
potencialidades de diálogo entre o individual e o sociocultural, uma vez que “põe em
evidência o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas
energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos” (p.113).
Assim, o método biográfico como um dos estudos recentes tem motivado grande
adesão dos pesquisadores porque,
(...) se inicia pela consideração dos dois tipos de materiais que podem ser
utilizados nessa abordagem: os materiais biográficos primários, isto é, as
narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em
geral através de entrevistas realizadas em situação face a face, e os
materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda
espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas,
documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não
tiveram por objetivo servir a fins de pesquisa (FERRAROTTI apud
BUENO, 2002, p.18).
mecanismos para a civilização dos sujeitos, com o intuito de atender aos padrões de
civilidade.
Na sociedade as mudanças ocorrem durante um longo período da história, assim
também é com a educação, isto é, as transformações ocorridas no meio educacional
acontecem no decorrer dos anos e não de maneira repentina. A educação forma os indivíduos
de acordo com os padrões de civilidade de uma determinada sociedade. É importante destacar
que se o meio social vive por um processo de civilização (mudanças ou transformações), isto
pode ocasionar mudanças significativas na educação dos sujeitos, adequando o
comportamento dos indivíduos, segundo os critérios de uma sociedade civilizada.
Os estudos realizados sobre a história de vida de professores têm revelado
trajetórias educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o
conhecimento de vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas que esclarecem situações
contemporâneas, evidenciando as vantagens e as limitações da utilização desse recurso
historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas educacionais que marcaram
determinado período histórico. São investigações que estabelecem conexões e coerências
entre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais, orientando a interpretação de
problemas educacionais contemporâneos em sua articulação com o passado.
O interesse por essa abordagem histórica vem sendo construído faz algum tempo,
tendo origem na interpretação de que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua
época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo a
história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa
articulação traria explicações sobre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais.
Outro aspecto motivador é a consciência da necessidade de explorar novas
perspectivas do passado, proporcionadas por outras fontes documentais, como
correspondências, diários, o que aponta para o aprofundamento do paradigma da história vista
de baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas freqüentemente ignoradas ou que
aparentemente não ocuparam um lugar especial na história. A história das pessoas comuns é
um campo especial de estudo que possibilita “uma síntese mais rica da compreensão histórica,
de uma fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos
mais tradicionais de história” (SHARPE,1995, p. 54).
Além dos pontos indicados, existe uma questão e talvez a mais instigante: a
grande lacuna a ser preenchida por estudos empíricos sobre a atuação dos sujeitos e agentes
da educação envolvidos no processo educativo, como a experiência dos professores primários
no desempenho de suas funções, compreendendo então o processo educativo de determinado
período e contexto a partir da história de vida de seus agentes, trazendo fatos e elementos que
revelam papéis ocupados e a renovação/continuidade das práticas sociais do seu tempo.
Investigar o passado implica em refletir uma perspectiva de entender o processo histórico de
configuração e consolidação das instituições e práticas sociais modernas, bem como entender
que as intervenções dos sujeitos que fizeram a sua história carregada de sentidos, significados
e intencionalidades que refletem explícita ou implicitamente o todo social.
As dificuldades que se colocam, ao se propor escrever a história de um
personagem, segundo Vavy Pacheco Borges (2001), em nada são diferentes dos que se
enfrenta em qualquer trabalho de pesquisa histórica. Por esse motivo, “ao escrever a história
de uma vida, nos perguntamos se essa tem um sentido; esse sentido seria (ou será) aquele que
nós, conscientemente ou não, atribuímos ao nosso personagem”.
historiador corre “o risco de construir para seu personagem ‘um percurso
orientado’, muitas vezes disfarçado atrás das idéias de ‘destino incontornável’, ‘vocação
irresistível’, etc.” (Idem, BORGES, p. 06-07).
De acordo com Le Goff (2002), toda história é narrativa porque, situando-se por
definição no tempo, na sucessividade, é obrigatoriamente associada à narrativa. Nesse
“sentido, “a biografia de uma personagem é entendia como um modo particular de fazer a
história”. O indivíduo “não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas, e
essa diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo”. No entanto, “o historiador deve
ser capaz, em função da familiaridade com as fontes e com o tempo em que vive seu
personagem, de pôr nos próprios documentos, graças a uma ‘desmontagem apropriada’,
‘efeitos do real’ com a verdade dos quais se possa chegar a conclusões.” (Idem, LE GOFF, p.
26 e 22). Dessa forma, entende-se que “toda história é uma construção e os problemas de
descobrir ‘uma’ ou ‘a verdade’ surgem até para leigos que percebem que, para um fato, cabe
mais de uma versão. (Cf. BORGES, Op. cit. p. 6).”.
Ainda, sob a perspectiva da Escola Nova no Brasil, as pesquisadoras Eliane Lopes
e Ana Maria Galvão, afirmam que o século XX traz novos debates acerca da educação
(auxiliada por ciências novas como a Psicologia e a Sociologia) (Cf. LOPES & GALVÃO,
2001. p. 23). Assim, a escola passa a ser vista sob outros olhares, outra visão. É nesse
contexto que se buscam e encontram novos objetos para se fazer outras histórias.
Assim, o método biográfico como um dos estudos recentes tem motivado grande
adesão dos pesquisadores porque,
(...) se inicia pela consideração dos dois tipos de materiais que podem ser
utilizados nessa abordagem: os materiais biográficos primários, isto é, as
narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em
geral através de entrevistas realizadas em situação face a face, e os
materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda
espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas,
documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não
tiveram por objetivo servir a fins de pesquisa (FERRAROTTI apud
BUENO, 2002, p.18).
CONCLUSÃO
REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Num passado não muito distante, entre a segunda metade do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, educadoras estrangeiras estiveram a cultivar a fina-flor da
juventude brasileira. Eram preceptoras alemãs, inglesas, francesas e suíças que cruzavam o
Atlântico, seduzidas por boas propostas de emprego.
O ofício de preceptora começou a ser delineado na segunda metade do século
XVIII, consolidando-se em princípios do século seguinte1334. Representando um ramo
específico da docência, dedicado à educação no âmbito doméstico, a preceptoria era a forma
mais individualizada de instrução. Distantes dos modelos tradicionais de escola, muitos
jovens eram instruídos em seus próprios lares, onde passavam a conviver com as preceptoras.
1334
A difusão da preceptoria, dentro e fora da Europa, foi atestada pela proliferação de escolas dedicadas à
formação de preceptoras. Segundo Ritzkat, mesmo antes da unificação alemã, o Reino da Prússia já tinha escolas
preparatórias que recebiam as moças que, posteriormente, seguiriam em jornada pedagógica pelo mundo
[RITZKAT, Marly B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES. Eliana Marta T.; FARIA FILHO, Luciano M.
de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. pp. 269-290
(Coleção Historial, 6)].
No Brasil, essa prática tornou-se comum entre as famílias abastadas do século XIX,
persistindo durante as primeiras décadas do século XX.1335
Entretanto, o que podemos observar é que a historiografia educacional brasileira
privilegiou o estudo das instituições formais de educação. A raridade de estudos sobre a
preceptoria, contudo, pode remeter a uma questão importante: apesar da constatação e
reconhecimento enquanto prática instituída, a educação realizada na esfera privada, foi alijada
dos registros oficiais, deixando poucos vestígios em arquivos públicos. Assim, estudar a
preceptoria é se debruçar sobre uma prática educativa parcamente estudada1336, além de
contribuir para os debates acerca da história da docência no Brasil1337.
A trilha que percorri até chegar ao universo das preceptoras foi, apesar de alguns
percalços, excitante. Corria o ano de 2003 e eu, ainda aluno de graduação, estudava um
manuscrito revelador da condição feminina nos oitocentos: as memórias de Aurélia Dias
Rollemberg (Dona Sinhá), mulher da elite sergipana que viveu entre 1863 e 19521338. Aquela
narrativa autobiográfica conduzia-me à antiga província de Sergipe, desvendando aspectos da
vida privada da aristocracia brasileira. 1339
1335
No Brasil, as preceptoras começam a perder terreno em meados do século XX, quando se proliferaram os
colégios fundados por congregações religiosas, nos quais o público alvo era, sobretudo, as jovens da elite. Além
disso, no século XX o mercado europeu ampliou as possibilidades de trabalho para mulheres, apresentando
alternativas além do magistério.
1336
Na historiografia educacional brasileira, as contribuições mais significativas são: RITZKAT, Marly G B. A
vida privada no Segundo Império: pelas cartas de Ina von Binzer (1881-1883). São Paulo: Atual, 1999 (Coleção
O olhar estrangeiro); RITZKAT, Marly G. B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES Eliana Marta T.;
FARIAS FILHO, Luciano M. de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. pp. 269-290 (Coleção Historial, 6); CANEN, Ana; XAVIER, Libânia Nacif. Multiculturalismo,
memória e história: reflexões a partir do olhar de uma educadora alemã no Brasil. In: MIGNOT, Ana Chrystina
V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria Tereza S. (Orgs). Refúgios do eu: educação, história e escrita
autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. pp. 63-79; VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus
mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.
1337
A esse respeito é de fundamental importância os contínuos estudos realizados pelo GEDOMGE (Grupo de
Estudos Docência, Memória e Gênero), que, sob a coordenação de professores da Faculdade de Educação de São
Paulo (FEUSP) — Denice Barbara Catani, Belmira Oliveira Bueno, Cynthia Pereira de Sousa e Maria Cecília
Cortez C. de Souza — reúne professores da rede pública do Estado de São Paulo e alunos da FEUSP. Esse
grupo, desde o início da década de 1990, tem se dedicado a discutir e propor modos de análise e intervenção no
domínio da produção em História da Educação brasileira e da pesquisa acerca da formação de professores.
Temas relacionados à memória e a história da profissão docente vêm sendo constantemente explorados em
seminários e publicações patrocinados pelo GEDOMGE, do ponto de vista de suas considerações individuais e
coletivas, que se constituem em pontos de referência para os estudos da área. Sobre a contribuição do grupo,
consultar: SOUSA, Cynthia Pereira de; CATANI, Denice Bárbara; BUENO, Belmira Oliveira; CHAMLIAN,
Helena Coharik. A atuação do grupo de estudos docência, memória e gênero GEDOMGE – FEUSP (1994-
2006). In: SOUZA, Elizeu Clementino de (Org.). Autobiografia, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino.
Porto Alegre: EDIPURS, 2006. pp. 21-30.
1338
ROLLEMBERG, Aurélia Dias. Manuscrito. Aracaju, [19—]. Acervo da família Fonseca Porto. Aracaju-SE.
1339
Entre março de 2003 e junho de 2004, produzi a monografia As memórias de Dona Sinhá, orientada pela
Profª Drª Terezinha Alves de Oliva [ALBUQUERQUE, Samuel B. de Medeiros. As Memórias de Dona Sinhá.
São Cristóvão: 2004. 135 p. TCC (Licenciatura em História) – DHI/UFS]. O estudo consistiu na análise e na
edição paleográfica da autobiografia de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952). Para tanto, revisei uma
interessante bibliografia sobre narrativas autobiográficas e edição de documentos manuscritos.
1340
Sobre os estudos de História da educação em Sergipe ler: NASCIMENTO, Jorge C. do. Historiografia
educacional sergipana: uma crítica aos estudos de História da Educação. São Cristóvão: Grupo de Estudos e
Pesquisas em História da Educação/NPGED, 2003 (Coleção Educação é História, 1).
1341
ALBUQUERQUE, Samuel B. de Medeiros. Marie Lassius, uma preceptora alemã em Sergipe (1861-1879).
Cadernos UFS: História da Educação. São Cristóvão, v. 5, n. 1, pp. 67-78, 2003.
1342
ALBUQUERQUE, Samuel B. de M. A missão de uma educadora alemã em Sergipe (1861-1879). Jornal
Cinform, Aracaju, 14 a 21 jul. 2003. Caderno de Cultura & Variedades (Pensamento Acadêmico), p. 4.
1343
ALBUQUERQUE, Samuel. Memórias de Dona Sinhá. Aracaju: Typografia, 2005.
1344
Desdobramento do meu trabalho de conclusão de curso, a publicação foi patrocinada pelos descendentes da
memorialista que, sensibilizadas com a pesquisa desenvolvida na universidade acerca da matriarca do clã,
decidiram unir esforços e viabilizar sua publicação. Também tive o apoio da UFS, responsável pela editoração
eletrônica do trabalho, e do Departamento de História (DHI/UFS), na divulgação e festa de lançamento.
1345
ALBUQUERQUE, Samuel. Educando as filhas do Barão. In: _____. Memórias de Dona Sinhá. Aracaju:
Typografia, 2005. pp. 147-159.
1346
Nesse sentido, a obra foi relançada na Universidade de São Paulo, durante o “Autobiografia 2005”,
simpósio internacional sobre questões relacionadas aos discursos autobiográficos, realizado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, entre 20 e 22 de setembro de 2005. Além disso, muitas têm sido
as apropriações do texto, transitando desde trabalhos de conclusão de curso até obras de autores como Mary Del
Priore, que, na obra História do Amor no Brasil, utiliza-se do Memórias de Dona Sinhá ao tratar das práticas
amorosas no oitocentos brasileiro (DEL PRIORE, Mary. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto,
2005).
1347
ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. A preceptora: representações em Amar, verbo intransitivo
de Mário de Andrade. São Cristóvão/SE, 2007, 94 p. Dissertação (Mestrado em Educação), Núcleo de Pós-
Graduação em Educação/Universidade Federal de Sergipe.
1348
ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. Preceptoras alemãs na Bahia e em Sergipe. Salvador, 2007,
20 p. Projeto de Pesquisa (Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História /Universidade
Federal da Bahia.
1349
Corrente historiográfica que, a partir da década de 1970, fez com que os historiadores deslocassem seus
olhares para as práticas culturais. Foi, sobretudo, a partir da década de 1990 que, guiados pela Nova História
Cultural, os estudos de História da Educação no Brasil ampliaram seu conceito de fonte, os objetos focalizados, e
os períodos recortados. A influência da Nova História Cultural sobre os historiadores da educação fez com que o
interesse se deslocasse da investigação das normas para o estudo das práticas escolares. Sobre estas questões,
consultar: LOPES, Eliane Marta Teixeira e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2001; e VIDAL, Diana Gonçalves e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da Educação
no Brasil: a constituição histórica do campo (1880-1970). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45,
pp. 37-70, 2003.
Roger Chartier1350. Para ele, ao criarem representações seus artífices descrevem a realidade
tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse, deixando entrever interesses
pessoais e de grupo. A análise das fontes tomará esse conceito como lente, percebendo ser
fundamental no ofício do historiador a identificação do “modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”.1351
Muitos são os nomes da Sociologia que podem contribuir para minha pesquisa.
Contudo, considerando o risco de incompatibilidade teórica, optarei pela utilização de
conceitos apanhados na obra do alemão Norbert Elias. Para compreender o modelo de
civilização no qual as elites brasileiras que aderiam à prática da preceptoria se espelhavam
farei uso de um conceito clássico de Elias, o de civilização. Segundo o sociólogo, a
civilização é um processo que teve início no Ocidente do século XII, caracterizando-se pelo
refinamento dos costumes. Essa modificação dos padrões de sensibilidade e comportamento é
atribuída à monopolização da violência pelo Estado e à extensão das redes de
interdependência social. O modelo civilizacional dos europeus é aspirado pelos demais países
do Ocidente1352. Dessa forma, a contratação de preceptoras pode ser interpretada como um
dos instrumentos legitimadores do processo de expansão da Europa para além de seus limites
físicos.
Na historiografia educacional luso-brasileira, sobretudo dos estudos
desenvolvidos por Rogério Fernandes, apanharei alguns conceitos que serão amplamente
empregados neste estudo, como educação doméstica, preceptoria e preceptora. 1353 A
educação doméstica constitui-se no conjunto das práticas educativas realizadas no âmbito do
espaço privado ou da “Casa”1354, que antecede e se desenvolve paralelamente à construção,
aceitação e afirmação da escola formal. Tais práticas ocorriam na casa dos aprendizes sob a
responsabilidade de seus pais que se encarregavam eles mesmos de exercê-las ou
contratavam, para esse fim, mestres, professores particulares ou preceptores. Esse conceito irá
figurar no quadro das modalidades de educação que eram aceitas e reconhecidas como
1350
Esse conceito foi (re)elaborado em diversas obras do historiador Roger Chartier, entre as quais:
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Difel,
1990; CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1998;
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
2 ed. Brasília: Editora da UNB, 1998; CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e
inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
1351
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro:
Difel, 1990. p. 16.
1352
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. vol. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
1353
FERNANDES, Rogério. Os caminhos do ABC. Sociedade portuguesa e ensino das primeiras letras. Porto:
Porto Editora, p. 126.
1354
MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, p. 27-28.
diferentes maneiras de educar crianças e jovens no Brasil de antanho: o ensino público, aquele
oferecido nas escolas mantidas pelo Estado ou por “associações subordinadas a este”; o
ensino particular, aquele oferecido em colégios particulares ou nas casas dos mestres1355;
além da educação doméstica.
Nos últimos anos, surgiram no Brasil algumas contribuições que ampliaram o
conhecimento acerca da educação doméstica. Em 1999, a professora Marly Bicalho Ritzkat,
tendo como base documental às cartas de Ina von Binzer, publicou o estudo intitulado A vida
privada no Segundo Império1356. No ano seguinte, a mesma autora publicou o texto que,
efetivamente, inaugurou o tema no âmbito acadêmico. A grande vitrine para o artigo
Preceptoras alemã no Brasil foi à obra 500 anos de educação Brasil, que reúne textos de
destacados pesquisadores da nossa historiografia educacional1357. Também em 2000, apareceu
a obra Refúgios do eu, reunindo textos de importantes estudiosos sobre escritos
autobiográficos femininos, entre eles figura o artigo de Ana Canen e Libânia Nacif Xavier no
qual empreendem uma substancial análise das cartas Ina von Binzer1358. Em 2004, veio a
público a obra da professora Maria Celi Chaves Vasconcelos, tese desenvolvida na Faculdade
de Educação da PUC-Rio 1359 e publicada pela editora Gryphus1360. Também em 2004, um
TCC foi desenvolvido no curso de graduação em pedagogia, da Faculdade de Educação da
1355
Nessa modalidade, destacam-se: 1- Colégios particulares, constituíam-se, em sua maioria, em “escolas
domésticas”, ou seja, escolas localizadas em espaços adaptados, onde por vezes, residiam seus diretores e
mestres (casas, seminários ou conventos, quando os mestres costumavam ser os próprios eclesiásticos), cujo
modelo é o que mais se aproxima da escola estatal. Os mestres eram contratados pelos diretores dos
estabelecimentos, denominados como professores e ministravam aulas a crianças e jovens de idades e famílias
diferentes, em horários que poderiam ser parciais ou integrais. As famílias atendidas pagavam pela educação
recebida. Apesar de atender às crianças e jovens coletivamente, o método utilizado até as últimas décadas de
Oitocentos aproximava-se do método individual característico das outras formas de educação doméstica, com
alunos sendo atendidos e avaliados detalhadamente, de maneira individual, pelo professor [O título colégio se
aplica indistintamente, no Brasil, a toda espécie de escola, mesmo as mais elementares. Cf. ALMEIDA, José
Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). História e legislação. 2 ed. São Paulo: EDUC, 2000,
p. 95]; 2- Mestre-escola, enquanto educadores atuavam em sua própria casa, atendendo crianças e jovens de
diversas famílias e, na maioria das vezes, de faixas etárias diferentes. Eram ensinados diversos conhecimentos e
habilidades como primeiras letras, português, latim, inglês, francês, gramática portuguesa, latina, inglesa e
francesa, caligrafia, música, canto, entre outras. Podiam ser contratadas apenas as aulas que interessassem aos
alunos. O pagamento do mestre-escola era feito pelos pais de cada criança atendida.
1356
RITZKAT, Marly G B. A vida privada no Segundo Império: pelas cartas de Ina von Binzer (1881-1883). São
Paulo: Atual, 1999 (Coleção O olhar estrangeiro).
1357
RITZKAT, Marly G. B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES Eliana Marta T.; FARIAS FILHO,
Luciano M. de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
pp. 269-290 (Coleção Historial, 6).
1358
CANEN, Ana; XAVIER, Libânia Nacif. Multiculturalismo, memória e história: reflexões a partir do olhar de
uma educadora alemã no Brasil. In: MIGNOT, Ana Chrystina V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria
Tereza S. (orgs). Refúgios do eu: educação, história e escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. pp.
63-79.
1359
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação doméstica como uma prática das
elites no Brasil de oitocentos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em Educação) – PUC-Rio.
1360
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2005, 247 p.
UERJ. Roberta Dias dos Santos buscou o elo entre as preceptoras do Brasil oitocentista e as
atuais professoras “explicadoras” (professoras de aulas de reforço escolar).1361
No que confere às fontes históricas da pesquisa, além do já mencionado texto de
memórias de Aurélia Rollemberg e do romance Amar, verbo intransitivo de Mário de
Andrade1362, uma variada documentação coligida em acervos públicos e, sobretudo, privados
da Bahia e de Sergipe será utilizada. Optarei por relacionar e referenciar essas fontes no
espaço e momento adequados – tese que será defendida até março de 2012. Contudo, posso
fazer algumas breves considerações sobre do plano de redação da tese. O primeiro capítulo
analisará as representações construídas e difundidas pela literatura e pela historiografia
educacional brasileira acerca das preceptoras alemãs. O segundo capítulo apresentará
narrativas com perfis biográficos de preceptoras que atuaram na Bahia e em Sergipe.
Finalmente, no terceiro capítulo analisarei as características mais significativas da prática da
preceptoria ao longo do período estudado, partindo do diálogo entre fontes e bibliografia.
Dessa forma, lançar um olhar retrospectivo sobre a prática da preceptoria, como
tem feito, ainda que timidamente, a historiografia educacional brasileira, ou, ainda, perceber
como as representações acerca dos seus agentes (as preceptoras) vêm sendo (re)construídas
não é uma empresa movida exclusivamente pela curiosidade, desprovida de vínculos com as
práticas educativas do presente. Nesse sentido, o professor Rogério Fernandes considera
significativo o caso dos Estados Unidos, onde os problemas das políticas públicas de
educação parecem conduzir à revalorização de modalidades de ensino que tinham perdido a
sua vigência histórica. A demanda de muitas famílias norte-americanas por modelos dotados
de eficiência pedagógica, manutenção de valores e segurança física, tem reavivado a instrução
no âmbito doméstico, o que é reforçado pela disposição atual das novas tecnologias
educacionais. Dessa forma, percebemos como a pertinência desse tema não pode ser
mensurada, exclusivamente, por seu caráter de reconstituição de uma prática educativa
perdida num passado distante.
1361
SANTOS, Roberta Dias dos. Professora ensina em casa: das preceptoras às explicadoras. 2004. 50 p. TCC
(Graduação em Pedagogia) – UERJ.
1362
ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo. Idílio. São Paulo: Antonio Tisi, 1927.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo. Idílio. São Paulo: Antonio Tisi, 1927.
_____. As Memórias de Dona Sinhá. São Cristóvão: 2004. 135 p. TCC (Licenciatura em
História) – DHI/UFS.
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). História e
legislação. 2 ed. São Paulo: EDUC, 2000.
Maria Helena C.; CUNHA, Maria Tereza S. (orgs). Refúgios do eu: educação, história e
escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. pp. 63-79.
_____. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
_____. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
XVIII. 2 ed. Brasília: Editora da UNB, 1998.
_____. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002.
DEL PRIORE, Mary. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. vol. I. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990.
LOPES, Eliane Marta Teixeira e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
RITZKAT, Marly G B. A vida privada no Segundo Império: pelas cartas de Ina von Binzer
(1881-1883). São Paulo: Atual, 1999 (Coleção O olhar estrangeiro).
RITZKAT, Marly G. B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES Eliana Marta T.; FARIAS
FILHO, Luciano M. de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. pp. 269-290 (Coleção Historial, 6).
SANTOS, Roberta Dias dos. Professora ensina em casa: das preceptoras às explicadoras.
2004. 50 p. TCC (Graduação em Pedagogia) – UERJ.
SOUSA, Cynthia Pereira de; CATANI, Denice Bárbara; BUENO, Belmira Oliveira;
CHAMLIAN, Helena Coharik. A atuação do grupo de estudos docência, memória e gênero
GEDOMGE – FEUSP (1994-2006). In: SOUZA, Elizeu Clementino de (Org.).
Autobiografia, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPURS,
2006. pp. 21-30.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação doméstica como
uma prática das elites no Brasil de oitocentos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em
Educação) – PUC-Rio.
VIDAL, Diana Gonçalves e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da Educação no
Brasil: a constituição histórica do campo (1880-1970). Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 23, n. 45, pp. 37-70, 2003.
INTRODUÇÃO
impactaram o campo da história da educação brasileira nos últimos anos. Segundo a autora
em questão, houve uma ampliação do campo de estudo, até então restrito ao sócio-político; a
desmistificação do fato histórico possibilitou a construção de um novo itinerário
metodológico: de uma história basicamente factual, para uma história de cunho interpretativo.
A sociedade atual exige, necessariamente, uma educação comprometida com
mudanças e transformações sociais. No bojo dessa sociedade encontra-se uma educação que
por ser social e historicamente construída pelo homem, requer como essência no seu
desenvolvimento uma linguagem múltipla, capaz de abarcar toda uma diversidade e,
compreendendo dessa forma, os desafios que fazem parte do tecido de formação profissional
do professor. Esta formação constitui um processo que implica em uma reflexão permanente
sobre a natureza, os objetivos e as lógicas que presidem a sua concepção de educador
enquanto sujeito que transforma e ao mesmo tempo é transformado pelas próprias
contingências da profissão.
Nesse sentido, Pimenta (2005) coloca que a educação, não só retrata e reproduz a
sociedade, mas também projeta a sociedade desejada. Por isso, vincula-se profundamente no
processo civilizatório e humano. A autora complementa seu pensamento com a seguinte
afirmação: “enquanto prática pedagógica, a educação tem, historicamente, o desafio de
responder às demandas que os contextos lhes colocam”.
Por outro lado, não podemos esquecer a escola, responsável por transmitir a
cultura considerada válida. A instituição escolar produz, ela própria, uma cultura escolar, a
qual no entender da historiadora Dominique Julia (1993, p. 34)
Para que isto aconteça de fato é preciso que vários fatores, tais como escola, professores,
propostas pedagógicas e currículos estejam adequados às necessidades de um corpo discente
visto como “...ser educável, sujeito ativo do próprio conhecimento, mas também ser social,
historicamente determinado, indivíduo concreto (síntese de múltiplas determinações), inserido
no movimento coletivo de emancipação humana” (LIBÂNEO,1994, p.128).
Essa emancipação deve refletir a postura docente, não apenas como um mero
profissional que desempenha com destreza todas as atividades que há muito foram tachadas
como “as mais adequadas”, mas como um profissional crítico, reflexiva possuidor de um
aporte científico e capaz de transformá-lo em recortes adaptados à prática didática, ou como
diria Perrenoud capaz de “fabricar artesanalmente os saberes tornando-os ensináveis,
exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de um sistema de
comunicação e trabalho.” (1997,p.25).
A partir dessa busca para propiciar uma real aprendizagem cabe ao professor
analisar o fato de que o sujeito precisa entender que aprender não é estar em contato com
acontecimentos, regras e posturas inflexíveis, e levar em consideração o que Brandão (1982,
p.140) et alii classifica de “revalorização dos fatores intra-escolares, mas já agora numa nova
perspectiva, uma perspectiva contextualizada, que busca a especificidade do pedagógico sem
ignorar a realidade sócio-econômica e política mais ampla e complexa na qual se acha
inserido”.
Por outro lado, compreender-se a cultura escolar não como produção separada da
vida cotidiana, nem da escola, nem do professor, mas ao contrário, ao nos propormos a
focalizar a investigação das práticas docentes, estamos imbuídos de uma concepção de cultura
como produção comum à experiência de todos os sujeitos (WILLIAMS.2000) inseridos nesse
complexo social, a escola, cujo domínio não se constitui em privilégio.
O fundamento ontológico dessas práticas sociais no trabalho nos permite captar o
movimento contraditório de sua constituição histórica na escola, pois objetivam o fim
teleologicamente posto pelos docentes nos diferentes momentos históricos. As práticas
escolares realizadas na particularidade da instituição escolar revelam as finalidades que os
docentes se colocam orientadas pelas alternativas que constituem na situação concreta em que
atuam.
Na tradição das práticas escolares do passado pode-se encontrar um horizonte para
o seu trabalho, referenciando-se a algo já conhecido e praticado. Nos parece que as
alternativas realizadas pelos sujeitos na escola se constituem, mediadas pela cultura escolar,
não diante dos postulados da legislação e programas em vigor, mas do desafio de formar as
futuras gerações num mundo onde o emprego é restrito a poucos, restando para maioria, o
trabalho incerto e precário além de longos períodos de “ócio”.
Nesse contexto, ao nos perguntarmos quanto às finalidades que as práticas
profissionais acontecem nos indagamos sobre a relação dos sujeitos, individual ou
coletivamente considerados, com a cultura escolar; sobre a apropriação e objetivação que
os sujeitos realizam desta cultura e que revelam a constituição contraditória da profissão.
Desenvolveu-se a temática da constituição da profissão docente, considerando a
relação contraditória entre as práticas e a cultura que as orienta e que ao mesmo tempo é
reorientada pelas práticas destes sujeitos, numa sociedade que produz e reproduz a vida no
modo capitalista, ou seja, que se realiza sob a necessidade de reprodução do capital
trabalhado. A cultura e o sujeito na sua generalidade constituem-se inseridos nas relações
sociais fetichizadas das relações de troca sob a “ameaça” constante do impedimento de sua
realização propriamente humana, ao mesmo tempo em que a essência humana no trabalho
reafirma, contraditoriamente, a possibilidade de sua realização.
Assim, compreender o docente, sua profissão e os modos como exerceu seu ofício
de educador, ora mobilizando ora produzindo saberes e práticas necessárias ao processo de
ensinar e aprender, são de extrema relevância para a consolidação dos estudos dessa área.
Sabemos que a forma como cada sociedade representa e se relaciona com o
passado está intimamente ligados a fatores sociais, político e ideológicos, da mesma forma
que os saberes docentes se constroem e reconstroem nos contextos históricos, sociais e
culturais. Tais saberes são permanentemente reelaborados pelos professores de acordo com as
contingências da prática, do contexto real e complexo do ensino ao qual estão inseridos.
Finalmente, para que a possibilidade de que tal proposta de formação se efetive,
faz-se necessário que esta, esteja ligada a necessidade de compreensão da escassez do
processo de formação inicial e a necessidade prioritária da implementação da formação
continuada. Assim, entendo que a formação docente possa contribuir para a construção de
uma educação com qualidade que vislumbre como meta final o sucesso do aluno e a
transmissão da cultura.
Segundo Kemmis (1987), citado por Garcia (1998) isto não dependerá apenas de
uma instância ou do próprio docente, mas de um todo e da necessidade de:
[...] adotar uma perspectiva dialética que reconheça que as escolas não podem
mudar sem o compromisso dos professores, que os professores não podem
mudar sem o compromisso das instituições em que trabalham, que as escolas e
os sistemas são interdependentes e interativos no processo de reforma e que a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. Les rites comme actes d’intituition. Paris: Actes de la Recherche en
Sciences Sociales, 43:58-63, jan., 1982.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
BRANDÃO, Zaia et alii. O estado da arte da pesquisa sobre evasão e repetência no ensino de 1º
grau no Brasil: 1971-1980. Rio de Janeiro: 1982, v.1, p. 140.
EZPELETA, Justa & ROCKWELL N. Pesquisa participante. São Paulo: Cortez Ed., 1986,
p. 58.
KEMMIS, S. Action Reassarch and Social Movement: A Challenge for Police Reassarch in
Educaciona Police Analysis Archives, VI, nI January 19, 1987, p. 74. (tradução livre de Ivana
Maria Lopes de Melo Ibiapina), apud GARCIA, C. Marcelo. A formação de professores:
Antônio Vicente Mendes Maciel era obcecado pela edificação e restauração de igrejas,
capelas, cruzeiros e cemitérios. No início da carreira de pregador e guia espiritual, ele
estabeleceu como meta construir cerca de vinte e cinco igrejas pelo sertão do nordeste do
Brasil. Mesmo não tendo alcançado esse ideal, algumas de suas obras ainda subsistem.
Pautado em informações adquiridas em documentos, livros e imagens fotográficas, o presente
artigo tem como objetivo analisar quatro exemplares de igrejas construídas na Bahia, na
segunda metade do século XIX, pelo Conselheiro. Duas dessas igrejas desapareceram em
virtude da guerra de Canudos: Igreja de Santo Antônio e Igreja do Bom Jesus. As demais
encontram-se intactas: Igreja do Senhor do Bonfim, situada em Chorrochó e Igreja do Bom
Jesus, localizada em Crisópolis. Por último, serão interpretadas as soluções adotadas nessas
construções religiosas populares, bem como as influências de estilos, uso de materiais,
soluções decorativas, etc., a fim de resgatar a memória do patrimônio artístico popular do
sertão de Canudos, há muito tempo esquecida.
INTRODUÇÃO
O acervo da cultura popular e da arte brasileira é um dos mais ricos das Américas.
Muito se tem discutido e estudado acerca de alguns de seus aspectos. Na década de 30, no
Brasil, houve especificamente, uma supervalorização do legado do sudeste, que via de forma
exacerbada a arte colonial mineira como a mais autêntica, e, portanto, merecedora de estudos
mais aprofundados.
Nesse ínterim de nacionalismo e patriotismo, os pesquisadores do patrimônio
brasileiro inclinaram-se para os estudos do período colonial e, desde então, ocupam-se com a
preservação, divulgação e conservação do legado barroco e rococó dos grandes espaços
urbanos do litoral, e das regiões mais abastadas.
Sendo assim, pode-se constatar que na Bahia esse pensamento pode ser
confirmado. Fala-se muito nos debates e estudos da História da Arte em “Escola Baiana de
Pintura” e “Barroco Baiano”. Já o estilo neoclássico, nestas terras, sofreu o preconceito que se
configurou nas décadas de 40, 50 e 60 do século XX, preconceito esse que engrandecia o
barroco e impossibilitava os estudiosos de maiores aprofundamentos acerca da estética
oitocentista.
A imagem da Bahia barroca tem provocado uma atmosfera de idealização,
encantamento e de misticismo em torno da cidade do Salvador e região do recôncavo.
Segundo Freire (2006, p.11), “os baianos do interior possuem uma visão mística
da cidade da Bahia em razão da sua antiguidade, topografia, patrimônio edificado, maneira de
viver, culinária, demais marcas étnicas e capacidade de emanar novidades”. Para ele, a visão
mística da Bahia foi moldada a partir do conjunto patrimonial sacro da igreja católica,
sobretudo, o do barroco deslumbrante do interior da igreja do convento franciscano tão
difundido e propagado entre essa gente.
A cultura proveniente do barroco no Brasil, especificamente na Bahia, é uma
temática bastante explorada pelos estudiosos da história da arte. Já o interior e seus sertões
padecem pela falta de um estudo mais aprofundado no que concerne à arte, arquitetura
religiosa e cultura popular.
A região de Canudos é um exemplo típico desse alheamento. Embora se conheça
bastante a região devido ao flagelo da seca e da guerra, em termos de produção artística,
muito pouco, ou quase nada se conhece.
A história de Canudos, do Conselheiro e sua gente, é um tema por demais
discutido e analisado pela historiografia local, nacional e internacional. Prosadores, poetas,
pintores, historiadores, dentre outros, tem se ocupado em retratar e propagar a memória de
Canudos, mesmo que em determinados momentos da história tenham ocorrido movimentos
contrários à essa propagação.
Temas como: religiosidade, messianismo, milenarismo, sebastianismo,
socialismo, monarquia, república etc., tem sido a tônica desse episódio, ocorrido no interior
da Bahia no final do século XIX. Já a memória do patrimônio artístico material do Sertão de
Canudos encontra-se ofuscada em meio aos vários preconceitos e esquecimentos.
Tendo em vista essas abordagens, é nesse ambiente religioso, artístico e histórico
que, pretende-se estudar o acervo da arte e arquitetura sacra do sertão de Canudos construído
pelo beato Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro e sua gente.
Pouco ou nada se disse acerca dessa arte. No livro Os Sertões (1902), escrito por
Euclides da Cunha, enviado pelo Jornal O Estado de São Paulo, percebe-se um fragmento do
capítulo cinco onde ele aborda sobre um dos templos da cidade de Canudos. Sua análise e
discurso, talvez, pelo fato de ser este, um escritor forjado na esteira do pensamento positivista
e determinista, é de incoerências e preconceitos com relação ao templo sacro erguido naquele
cenário. Também, horroriza-se com a arquitetura e o urbanismo do arraial, uma vez que
chama de “urbs monstruosa”, e “civitas sinistra do erro”.
Já as demais construções, erigidas nos confins do sertão da Bahia, pelo beato
Conselheiro, quando esporadicamente aparecem em alguns estudos, é apenas como pano de
fundo para ilustrar as andanças desse beato pelo sertão, ou o episodio brutal da guerra.
Portanto, um estudo apurado acerca das igrejas construídas pelo Antonio Vicente Mendes
Maciel, contando com estilos e influências, uso de materiais, soluções decorativas, é de vital
importância para se configurar como um capítulo novo na memória do patrimônio artístico
brasileiro.
Canudos, sua vida era feita de constantes andanças pelo sertão. Sempre seguindo pelas
estradas, e sempre se oferecendo para construir e reformar igrejas, cemitérios e açudes em
muitos lugares esquecidos e abandonados por onde passava. Entre os fiéis não faltavam
voluntários para ajudá-lo nesse mister.
No que concerne às suas construções, seu universo circunscrevia-se a lugares
longínquos do interior do nordeste, basicamente o sertão da Bahia, com algumas incursões a
Sergipe.
Dentre as localidades nas quais Conselheiro edificou e reformou igrejas podemos
destacar: Aporá, Biritinga, Canudos, Chorrochó, Crisópolis, Esplanada, Itapicuru, Nova
Soure, Olindina e Rainha dos Anjos na Bahia, e Tobias Barreto e Simão Dias em Sergipe.
De acordo com Hoornaert (1998), o beato Antônio Conselheiro andava com a
edificação de igrejas em seu pensamento, sendo que nelas enxergava possibilidades muito
mais amplas que a imensidão dos sertões que percorria. Embora tivesse o dom especial de
reunir pessoas e construir açudes, muros de cemitérios, canais de irrigação e cacimbas, o que
gostava mesmo era de construir igrejas.
Em algumas de suas prédicas, editada por Nogueira (1978), Conselheiro fala com
entusiasmo sobre a construção e edificação do templo de Salomão: “70.000 operários
carregadores de material e 80.000 a cortar pedra nos montes e 3.6000 feitores a inspecionar as
obras, e 2.000 israelitas a andar pelo Líbano, cortando cedro e faias”.
Como se pode notar, este era o sonho que alimentava e enchia de esperança a
todos: trabalhar com muita gente na construção da igreja.
Hoorneart (1998, p.16) comenta que:
resulta que a Igreja de Santo Antônio não estava pronta em 1993, como afirmam diversos
estudiosos.
Apresentando uma fachada com três portadas, esse templo, lembra a estrutura
simples de outra igrejinha do sertão: Igreja do Bom Jesus de Crisópolis edificada
anteriormente.
Nela percebe-se uma estrutura frágil e delicada. Sua planta compacta apresentava-
se direcionada para um pedestal encimado por uma cruz. Nesse pedestal lia-se a seguinte
inscrição: “A.M.M.C.”, que significava, Antônio Mendes Maciel Conselheiro.
O uso recorrente do cruzeiro na frente da igreja, muito comum no interior, era
comum nos templos da ordem franciscana.
Segundo Bazin (1983, p.151), “o culto franciscano pela paixão levou-os a colocar,
diante do frontispício, uma grande cruz que servia às procissões da via-sacra, especialmente
durante a Semana Santa”, segundo esse autor o tema da cruz, possibilitava todo um
desenvolvimento arquitetônico.
A fachada desse templo apresenta decoração em volutas graciosas que nos remete
ao décor Barroco/Rococó. No eixo do frontispício, ergue se sobre o topo da construção uma
cruz de madeira.
No lado esquerdo, elevava-se uma compacta e graciosa torre-campanário, donde
soavam as melodias do sino atraindo os fiéis para os momentos das preces. Contrapondo o
pensamento e visão equivocada de Cunha (2002, p.) que afirmava que a edificação de Santo
Antônio era frágil, pequena, de aspecto modestíssimo, podemos constatar que tais idéias não
se confirmam. Pelo contrário, erguida e talhada naqueles confins do sertão, levando em
consideração as adversidades, pode-se concluir que esse templo, configura-se como um
milagre da arquitetura dos sertanejos.
Pelos relatos e documentos encontrados, esse templo não chegou a ser concluído.
A igreja nova em cujas torres incompletas e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para
alvejar os inimigos, e que por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do
canhoneiro dos soldados. Quando caiu enfim a igreja nova, no finzinho da guerra, houve
grande manifestação de júbilo entre os soldados, Aproximava-se do desfecho da bizarra
guerra que teve por centro essa igreja.
Talhada no centro da cidade, esse templo foi vítima de muitas discussões. Muitas
pessoas que por Belo Monte passavam, diziam que a Igreja do Bom Jesus era uma construção
de grande proporção e imponência.
A escrita de um dos grandes escritores do Pré–Modernismo, quando trata desse
templo, é tomada de equívocos e preconceitos. Em sua obra Os Sertões, Cunha (2002, p. 184)
afirma que;
É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos
edifícios de que fala Busset...
Decia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema
fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços
débeis das mulheres e das crianças. Cabia a forma dúbia de santuário e de
antro, de fortaleza e de templo, irmanado no mesmo âmbito, onde ressoariam
mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos
rancores...
Delineara-a o próprio velho conselheiro. Velho arquiteto de igrejas,
requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida
para o levante , aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções,
sem regras: de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas
impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas: rasgada de ogivas
horrorosas, esburacadas de torneiras; informe e brutal, feito a testada de um
hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e a cal, a própria
desordem do espírito delirante.
A Igreja de Chorochó foi erguida, tendo em sua frente, também um cruzeiro encimado
em uma base murada. Construída em 1855 pelo Antônio Conselheiro, que fazia suas
pregações no cruzeiro.
A fachada dessa igreja lembra a de Santo Antônio de Canudos. Apresenta três
portadas e frontispício decorado com volutas em s, ladeadas por duas pequenas torres
pontiagudas. No lado esquerdo, uma parede funciona como torre-campanário. No alto das
portadas três janelas estão dispostas em simetria. O estilo da fachada lembra, contudo, o estilo
rococó.
A cidade que hoje leva o nome de Crisópolis, fundada por ele próprio, no ano de
1880, com o nome de Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seus seguidores, tem a sua
praça central, uma igreja de sua lavra. Do séqüito do Conselheiro faziam parte pelo menos
dois mestres de obras, Manuel Fustino e Manuel Feitosa. A igreja de Crisópolis obedece a um
desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa de suas paredes
internas, pendura-se um medalhão com a inscrição “só Deus é grande”, o dístico favorito do
Antônio Conselheiro.
O frontispício dessa construção apresenta uma única portada encimada por três
janelas. No alto, três torres triangulares apontadas para o céu lembram o estilo gótico. Sua
portada e janelas apresentam o arco ogiva, típico desse estilo. Também possui em sua frente
um cruzeiro encimado em uma base decorada e murada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar as igrejas do Conselheiro suscitou alguns pontos que ainda não tinham
sido notados pelos historiadores da arte. A partir do momento em que se estudou essas
construções, pode-se abarcar mais deduções a respeito do patrimônio histórico e artístico do
sertão por onde andou Conselheiro e edificou obras.
Resgatar o patrimônio do sertão de Canudos é vital para a história do nosso país,
pois aquele lugar não era um refúgio de fanáticos, malfeitores e preguiçosos, imagem que
muitos tentaram difundir. Pelo contrário, ali progredia uma cidade tranqüila e labutadora, de
habitantes que se dedicavam a todo tipo de oficio, inclusive o artesanato. Ali era o lugar e o
refúgio de muitos camponeses que eram expulsos de suas terras e perseguidos. Canudos
acreditava numa cidade ideal, numa existência feliz e próspera.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983.
2.v.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Mrtin Claret, 2002.
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006.
ORNELLAS, Maria de Lourdes Soares. Imagem do outro (e) ou imagem de si?. Salvador:
Portfolium, 2001.
PINHEIRO, José Carlos da Costa. Ano de 1896, término das obras da capela de Santo
Antônio de Belo Monte? Salvador: Portfolium, 2007.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. Canudos de volta. Veja, São Paulo, n. 6 , p. 96-97, set. 1999.
Enfocando a história local e fazendo uso, sobretudo, da metodologia da história oral como
uma fonte que possibilita ressignificar e valorizar as experiências e memórias de sujeitos
“excluídos da história”, o mutualismo praticado na Sociedade Beneficente dos Artistas
Santantonienses, fundada, em 1928, na cidade de Santo Antonio de Jesus-BA, - Recôncavo
Sul baiano - tornou-se assunto digno de ser historicizado. Intento apresentar esta Instituição
que surge da união de 73 trabalhadores “por conta própria” ao firmarem entre si um sólido
pacto de assistência mútua e defesa comum, visando se precaver das adversidades que
envolviam luta cotidiana pela sobrevivência, num período em que trabalho/emprego e
incertezas caminhavam paralelamente. A análise evidencia o cotidiano da Associação e as
ações dos sujeitos sociais que souberam criar e recriar comportamentos e atitudes, elaborar e
reelaborar símbolo que traduziam suas identidades, suas crenças, seus valores ao compor
uma Agremiação que assegurava aos participantes e familiares condições de sobrevivência,
principalmente quando, por circunstâncias independentes de sua vontade, perdiam seus
meios de subsistências.
com a palavra o Snr. Antonio Augusto dos Santos, tratou sobre o estado de
saúde do consórcio Augusto Dias e opinou que a casa devia estipular uma
importância mensal para o mesmo, submetendo a discussão, resolveu-se
nomear uma comissão para no dia seguinte ir a casa do referido Sr. afim de
explicar os direitos que lhe assiste nos estatutos, para de acordo com o
mesmo, lhe ser feito a entrega de certa quantia mensal ou semanal. 1363
1363
Livro de Atas da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Ano 1955. p. 198. Arquivo da SBAS.
trabalhadores, por conta própria, em diversas partes do mundo, a criarem entidades com
funções previdenciárias. Particularmente em relação aos trabalhadores contemporâneos
europeus, eles buscaram formas coletivas de relacionamento ao formarem sociedades para
proteger seus interesses e para proporcionar auxílio social uns aos outros em uma época em
que os direitos humanos eram desconsiderados.1364 Surgiram, assim, as sociedades
mutualistas, por predominante iniciativa de trabalhadores autônomos sob um “sistema por
meio do qual várias pessoas se associavam e iam cotizando-se para a cobertura de certos
riscos, mediante a repartição dos encargos com todo o grupo”.1365 Na visão de Foot Hardman
e Victor Leonardi, o objetivo dessas Associações era a sobrevivência, “o que se tentava fazer
organizando o socorro mútuo em caso de doenças e de acidentes ou a ajuda pecuniária nos
anos de velhice e em caso de enterro de parentes próximos, etc.”.1366
1364
Para uma discussão sobre o assunto ver HOBSBAWM, E. J. Os Trabalhadores: estudos sobre a história do
operariado. Rio de Janeiro: 1981 e Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. Rio de
Janeiro: 1987; PERROT, M. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio de
Janeiro: 1982; THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: 1987.
1365
MARTINS, S. P. Direito da seguridade Social. 16ª ed., São Paulo: 2001. p. 29.
1366
HARDMAN, F. F. e LEONARDI, V. História da Indústria e do Trabalho no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
1991. p. 100.
1367
DE LUCCA, T. R. O sonho do futuro assegurado: o mutualismo em São Paulo (1920-1934). São Paulo:
Brasília: 1990. p. 165.
1368
Estatuto da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Ano 1928. Impresso em 1932. p. 5. Arquivo
da SBAS.
1369
Jornal O Paládio. Santo Antonio de Jesus – BA, 23 de maio de 1947. p. 2. AP.
1370
Jornal O Conservador. Nazaré – BA, 19 de setembro de 1920. p. 2. Arquivo da BPEB.
carente que até então vivia a mercê da própria sorte prestando serviços hospitalares.1371
Portanto, creio que os “artistas santantonienses” inspiraram-se no modelo secular de entidades
mutuais existentes ou que existiram na Bahia e no Brasil como um todo, além das “confrarias
e irmandades que embora de origem religiosa, cumpriam um papel assistencial entre os
associados que se ajudavam mutuamente em caso de dificuldade de origem material”.1372 As
corporações de ofícios se reuniam em torno da defesa de interesses profissionais, e as
confrarias e irmandades tinham objetivos religiosos.1373
Com esse perfil, “as ‘associações mutualistas e de socorro mútuo’ foram as
primeiras formas de organização de classe e surgiram na primeira metade do século XIX”.1374
Assim, é curioso o surgimento de uma associação com propósitos mutualistas e/ou
beneficente em Santo Antonio de Jesus, na terceira década do século passado, quando as
associações com o mesmo caráter, no Brasil, começaram a fechar suas portas ou cederam
espaço para outros tipos de organizações. Nesse período surgiram as ligas operárias e os
sindicatos. Os sindicatos “além do tradicional e distintivo fundo de greve tinham uma caixa de
auxílio mútuo, posto que a mesma, era, via de regra, uma atividade secundária neste tipo de
organização, destinada fundamentalmente à luta econômica”. 1375
Na conjuntura de 1928, a previdência social em terras do Recôncavo Sul era
praticamente ausente. Na época, não era de abrangência à maioria dos trabalhadores da cidade
da Capela benefícios como aposentadoria, pensão para os familiares, férias ou descanso
semanal remunerado, indenização por doenças ou acidente de trabalho, isto para os poucos
que tinham vínculo empregatício. Para os artesãos – trabalhadores livres – restou, àqueles que
podiam, a participação na associação que tinha como objetivos fixados pelos associados a
ajuda mútua e o auxílio aos necessitados. Essas preocupações mantêm-se na memória como
justificadora da fundação da “Beneficente dos Artistas” no entendimento do associado Valdir
Manoel Moreira de Araújo. Dida, como é apelidado, é comerciário, tem 48 anos de idade e
cresceu freqüentando o espaço social da Entidade. Aos 18 anos, dela começou a fazer parte na
1371
Sobre a efervescência nas artes cênicas, recreativa e a beneficência em Santo Antonio de Jesus do início do
século XX, consultar A serviço do Brasil: a trajetória de Rômulo Almeida de autoria de SOUZA, Aristeu e
ASSIS, J. Carlos de. Rio de Janeiro, 2006. p. 35.
1372
HARDMAN, F. F. e LEONARDI, V.Op. cit., p. 100.
1373
Segundo Kátia Maria Queiroz Mattoso, “as confrarias religiosas eram associações leigas. Destacavam-se,
entre elas, as irmandades (no Brasil, reminiscências das antigas corporações portuguesas de arte e ofícios) e as
ordens terceiras ligadas às ordens religiosas tradicionais, especialmente aos franciscanos, carmelitas e
dominicanos”. Ver: MATTOSO, K. M. Q. Bahia, Século XIX: uma Província no Império. Rio de Janeiro. 1992.
p. 397.
1374
SEGATTO, J. A formação da classe operária no Brasil. Porto Alegre: 1987. p 35.
1375
CASTELLUCCI, A. A. S. Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921).
Salvador: FIEB, 2004. p. 323.
1376
Depoimento de Valdir Manoel Moreira de Araújo. 10/02/03.
1377
Depoimento de Amarílio Monteiro Orrico. 08/07/02.
Trabalho de Vargas. Depois dessa Lei, ela não me garantia nada porque
como marceneiro, eu era profissional por conta própria, sabe? Não tinha
nenhuma Lei que me protegesse. Aí, essa Associação podia me tirar de
algum apuro.1378
1378
Depoimento de Félix José do Sacramento. 18/02/03
1379
Jornal O Paládio. Santo Antonio de Jesus – BA, 14 de junho de 1925. p. 3. AP.
A Instituição era de cunho social e foi fundada com esse propósito. A disposição
estatutária meritória de abarcar sócio/sociedade, que sem dúvida a engrandecia, tornava-a
abrangente e com a ampla incumbência de assumir resolução de problemas de pessoas
carentes, extrapolando o conjunto de associados. As dificuldades financeiras e o desinteresse
da própria comunidade em buscar vinculação (isso em função de mudanças lentas, mas
significativas, no panorama da seguridade social por parte das esferas públicas e de setores
privados), afloram na memória de Seu José Elias, remetendo-o ao tempo em que precisou
fazer mudanças no Estatuto: “Como assumir responsabilidade com os problemas externo a
ela? Não dava mais”. Nesse caso os serviços prestados dirigiram-se exclusivamente àqueles
que contribuíam de maneira efetiva e pontual com o cofre da Sociedade.
1380
1° Estatuto da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Impresso no ano de 1932. Capítulo I.
Art. 3°. p. 2. Arquivo da SBAS.
1381
Idem.
1382
Depoimento de José Elias Silva Santos. 08/02/03.
… o socorro mútuo foi uma prática que surgiu por volta de 1832 na Bahia e
se manteve enquanto fenômeno social significativo até o pós – 1930,
convivendo e se desenvolvendo de modo distinto e paralelamente aos
sindicatos de resistência criados durante a Primeira República, não mantendo
nenhuma relação de anterioridade com estes sindicatos mesmo porque os
dois modelos de organizações possuíam objetivos diferentes. 1385
1383
SILVA, M. C. B. da C. e. O Montepio dos Artistas: elo dos trabalhadores em Salvador. Salvador: 1998. p.
23 e 38.
1384
Ver os anexos da obra Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921).
CASTELLUCCI, A. A. S. Op. cit., p. 323 a 329.
1385
Idem. p. 163-164.
… naquele tempo antigo, a gente não tinha Internet, mas, mesmo vindo de
navio e de carroça, as informações chegavam. O pessoal entendeu, com as
notícias que chegavam, (ne?) de que era importante haver essa união e
também pessoas daqui que iam, por algum motivo superior, à capital,
quando voltavam, voltavam com essas idéias de que lá estava existindo
Montepio, que lá estava existindo Sociedades, Associações e a partir daí
gerou todo um movimento e Santo Antonio de Jesus não ficou imune a
isso. 1388
1386
DE LUCCA, T. R. Op. cit., p. 11.
1387
José Elias Silva Santos, depoimento citado.
1388
Depoimento de José Reis Filho. 20/02/03.
1389
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, 1998. p. 28.
totalmente privado e tinha seu Estatuto regido segundo as aspirações dos fundadores. Foi o
bastante para adquirir personalidade jurídica, o depósito no Cartório de Registro da cópia do
Estatuto, da Ata de instalação e listagem nominal dos encarregados pela sua administração.
Adaptar a Agremiação Santantoniense à condição do seu tempo foi uma
alternativa encontrada pelos sócios iniciadores, visando, muito provavelmente, absorver para
o quadro trabalhador de um modo geral, desprovido de qualquer tipo de proteção, já que na
sua singularidade, além de agregar diversos ofícios, abriu espaço para pessoas sem profissão
exigida. As palavras diretas de Seu José explicam a dificuldade que seria fundar, em Santo
Antonio de Jesus, por exemplo, uma associação de artistas nos moldes de outras seculares que
floreceram desde o século XIII na Europa e se disseminaram para outros cantos do mundo e,
como também afirma Silva, foram transplantadas para o mundo hispano-lusitano, na época da
expansão européia conhecida como período dos descobrimentos.1390 A explicação de Seu José
contempla esses aspectos:
… nas cidades do interior como você não tinha uma quantidade, digamos
assim, de alfaiate, nós devíamos ter aqui, o quê? Quatro ou cinco alfaiates.
Você não tinha uma quantidade para criar uma Sociedade de alfaiates. Você
tinha pedreiro, você não tinha uma quantidade, naquele momento histórico
que desse para ter uma Sociedade de pedreiros. Esse pessoal se reuniu e
resolveu criar essa Sociedade com o princípio, (né?) primordial de promover
benefício para os seus associados. (...) mas o fator primordial, para mim,
dessa criação foi justamente esse aspecto histórico da pouca quantidade de
representantes de uma mesma classe. Então, fizeram uma micelânia,
digamos assim, né? Misturando todos os artistas de todas as diversas classes
e outros profissionais fora da arte para compor essa Sociedade que o nome já
diz, né? Sociedade beneficente que era pra amparar. O que tivesse
desempregado ela asseguraria o salário desemprego, né? Um auxílio funeral,
àquele que morresse e não tivesse como financiar o sepultamento, a família
tivesse sem condições, a Sociedade assumiria.1391
1390
SILVA, M. C. B. da C. e. Op. cit., p. 20.
1391
José Reis Filho, depoimento citado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 16ª ed., São Paulo: Atlas, 2001.
SOUZA, Aristeu; ASSIS, J. Carlos de. A serviço do Brasil: a trajetória de Rômulo Almeida.
Rio de Janeiro: A. Souza, 2006.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX. Uma província no Império. 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
SILVA, Maria Conceição Barbosa da C. e. O Montepio dos Artistas: Elo dos trabalhadores
em Salvador. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia; Fundação
Cultural; EGBA, 1998.
CHATIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa. Difel, 1998.
Nestor Duarte foi figura de relevância no cenário político e intelectual da Bahia na década de
1930. Sua produção que abrangeu as áreas do direito, da história e da literatura mostra,
especialmente nestas duas últimas dimensões, um esforço por identificar os problemas que
emperram o desenvolvimento e a construção da nação, como observamos no ensaio A ordem
Privada e a organização política nacional e no romance Gado humano. Desta forma, este
trabalho busca compreender o sentido da construção de suas representações histórico e
literária, observando o complexo social no qual o autor está inserido, a rede de interesses a
que esta produção esta vinculada e o impacto desta produção no cenário político e cultural da
Bahia nos anos 1930.
1392
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE com o projeto Representações da Condição
sertaneja no romance Gado Humano – Bahia: 1930-1937. Que conta com o financiamento do CNPq.
1393
Nestor Duarte. Gado Humano. p. 7.
retratar o real acabou por marcar a década de 1930 como o tempo do romance social,
reforçando a tradição de divisão da literatura brasileira entre o romance popular social,
vinculado a uma problemática do país e o romance psicológico, ocupado em tratar dos
dilemas da vida interior do homem, dos problemas individuais. Esta divisão pouco ajuda no
entendimento do percurso da literatura brasileira e, pode levar a alguns equívocos, como
supor que este romance social tenha uma relação de correspondência com a realidade a que se
reporta ou mesmo que o romance psicológico é produto de uma alienação, posto não tomar
como referência suas supostas raízes. A questão que se põe, a nosso ver, é de pensar esse
romance social e a relação entre literatura e sociedade na produção de 1930 do ponto de vista
de que, esta literatura, participou de uma mudança de perspectiva na apreensão da
configuração social do país naquele período, que foi justamente a emergência – ou o
aprofundamento - da consciência de que o país é atrasado, como veremos adiante.
Gado Humano é a primeira experiência literária de Nestor Duarte que a altura de
sua publicação era deputado estadual pela segunda oportunidade e integrava as fileiras de
oposição ao governo de interventoria de Juracy Magalhães. A critica quando da publicação da
obra dividiu-se em ver no romance uma obra original, primeiro pela forma, segundo pela
1394
substância ou, em vê-lo como um documentário em raros momentos transfigurado pela
ficção1395. Original certamente não o era, nem pela forma nem pela substância, uma vez que
obras buscando retratar as agruras do interior do país eram uma constante desde as últimas
décadas do século XIX, e o que se vê é ainda a presença de elementos da tradição naturalista
misturados a uma preocupação social mais aguda, que vai apontar para uma mudança
fundamental de percepção acerca do país. Sem querer aprofundar o juízo em torno do valor
estético da obra, o que se pretende sinalizar aqui é justamente que nesta se encontrar – com
anterioridade do romance em relação a produções de outra natureza do autor – temas que vão
orientar todo o seu pensamento e, que vão demonstrar sua visão da organização social
brasileira, qual seja estes temas a problemática da terra, o caráter privado do poder político no
país e a condição de massa populacional e não de povo dos brasileiros. Retornaremos a isto.
Como colocamos acima, a obra emerge dentro do chamado regionalismo de 1930,
e, neste sentido, sua condição de documentário ou denuncia deve ser entendida do ponto de
vista daquela mudança fundamental de percepção do país, que seria a tomada da consciência
de subdesenvolvimento de que fala Antonio Candido. De acordo com este autor, retomando
um argumento de Mario Vieira de Mello, até mais ou menos a década de 1930 grassava entre
1394
Carlos Chiacchio. Homens & Obras. In. A Tarde, 9 de dezembro de 1936.
1395
Adonias Filho.Ciclo baiano. In. A Literatura no Brasil. p. 269.
nós uma visão de que o Brasil era um país novo, ou seja, havia uma grandiosidade potencial
que estaria por se realizar. O que se vai observar após trinta no país é, precisamente, a noção
de que o Brasil é subdesenvolvido. Como coloca Antonio Candido, conforme a primeira
perspectiva salientava-se a pujança virtual, e, portanto, a grandeza ainda não realizada.
Conforme a segunda, destaca-se a pobreza atual, a atrofia, o que falta, não o que sobra1396.
Passamos da consciência amena do atraso para uma consciência catastrófica do atraso.
Abandonam-se as aspirações utópicas que projetavam o futuro do país a partir do seu presente
e, mergulha-se neste mesmo presente esmiuçando-o, documentando-o, denunciando-o.
Este parece ser o espírito que irá animar a produção literária dos anos trinta e,
ainda demonstrar certa anterioridade do romance nesta tomada de consciência em relação a
outras formas de problematização da realidade, como faz questão de frisar Antonio Candido.
Poderíamos observar esta anterioridade também em Nestor Duarte, como sugerimos acima.
Gado Humano seria então a obra do autor onde primeiro se verifica essa consciência de
subdesenvolvimento. É um romance onde talvez apareça mais o reformador social – como
costumava se apresentar – do que o ficcionista, mas pode também ser um documento de seu
tempo, se pensarmos que o trabalho do historiador caracteriza-se pela mudança de natureza do
material com o qual opera em sua representação do passado1397 e, que no caso da literatura,
implica observar tanto a dimensão de documento quanto de obra de arte.
O cenário no qual o romance desenrola-se é Santo Afonso, uma fazenda nos
sertões da Bahia, e conta a saga dos trabalhadores que realizam uma existência que é trágica
pela falta de sentido e pela inexpressão mesma, correndo, embora, o perigo de todos os
imprevistos sem saber o que são e para onde se orientam1398, sentencia Nestor Duarte em sua
nota introdutória. Analisando esta disposição espaço-temporal na qual transcorre a obra ou,
justamente sua pouca precisão, o critico David Salles vai sugerir que a experiência literária
em Gado Humano é menos sobre a realidade a ser reformada do que sobre a disputa entre a
cosmovisão do intelectual e os meios de ação1399. Seria acerca dos impasses entre o
estabelecimento de uma ordem pública, da fundação do povo brasileiro que esbarra na
tradição privada do poder político no país e no arcaísmo das relações no campo. Isto acabaria
1396
Antonio Candido. Literatura e Subdesenvolvimento. Argumento I. In A Educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo, Atica, 1989. p. 140-162.
1397
Como coloca Michel de Certeau “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar
em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro
trabalho”. A operação historiográfica. In. A escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1982. p. 81.
1398
Nestor Duarte. Op.cit. p. 7-8.
1399
David Salles.Gado Humano ou estréia nos anos trinta. In. O romancista Nestor Duarte. Tribuna da Bahia,
Salvador, 24 de janeiro de 1971.
por dar uma dimensão mais ampla ao romance1400. A realidade é rural, mas rural onde?1401
Pergunta-se Salles. A obra divide-se em duas partes: No eito e no ermo, onde o autor situa a
paisagem da fazenda, os tipos que compõe o enredo, os hábitos; e Invasão ou evasão? onde
narra tempos de agitação onde o sertão levanta-se contra as cidades.
Na primeira parte tem-se a impressão mesmo de um depoimento, uma narrativa
em terceira pessoa entrecortada por pouquíssimos diálogos ou situações. Santo Afonso –
localiza o narrador - era bem uma ilha. Abria-se no mato, entre divisas incertas que se
perdiam distantes. Dali a vila eram seis léguas1402. Como fará em seu ensaio A Ordem
Privada e a Organização Política Nacional, Nestor Duarte aponta para a descontinua e
problemática ocupação do solo brasileiro desde a colonização. Seguindo os passos de Sergio
Buarque de Holanda o autor vai colocar que o português, diferente do espanhol, procedeu a
uma colonização que pelo seu caráter disperso acabou por formar núcleos habitacionais
isolados, ilhas dentro do ermo como Santo Afonso. No capítulo O senhor, meu amo quando o
administrador da fazenda vai proceder ao intermédio entre os agregados e Ângelo, o bacharel
que retorna da capital para assumir a decadente herança que seu pai lhe legara, Pereira – o
administrador - não faz uma apresentação, mas sim conta o gado humano da fazenda, reforça.
Soma-se a este gado humano o poder de mando do patrão e a irregular ocupação do solo que
não propicia uma aproximação com as cidades – lugar para o autor propício para o
desenvolvimento do sentido da coisa pública – compondo o quadro de subdesenvolvimento
político e social que se encontra o país.
Nestor Duarte encara o processo de organização da sociedade brasileira enquanto
um desdobramento das características sociais e políticas do povo português. Para ele é fora de
duvida que a história do Brasil, com a interpretação conseqüente de sua organização social,
deve começar antes do descobrimento1403, observa em A Ordem Privada e a Organização
Política Nacional. Neste sentido, apontando o caráter privado da organização social e política
portuguesa e observando seu desdobramento em terras brasileiras com a colonização, o autor
vai concluir que nossa formação histórica é marcada por este privatismo e ausência do senso
da coisa pública, tanto por conta da cultura política de herança portuguesa – o que teríamos
seria uma massa populacional e não um povo no sentido político – quanto pela forma que se
1400
Godofredo Filho em seu discurso de recepção a Nestor Duarte na Academia de letra da Bahia considerou
Gado Humano menos um romance do ciclo nordestino do que “uma contribuição baiana à tomada de consciência
dos problemas da luta do homem com a terra”. In. Discurso de Posse de Nestor Duarte e Saudação de Godofredo
Filho. Revista da Academia de Letras da Bahia. Salvador, Bahia, 1966.
1401
David Salles. Idem.
1402
Nestor Duarte. Op. Cit. p.15.
1403
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. p.1.
processou a ocupação das terras durante a colonização a partir de grandes propriedades rurais
onde, para o autor, as relações que se estabeleceram nunca foram de outra ordem senão
pessoais e privadas. São estes ecos do passado colonial que o autor visualizara ainda no Brasil
do anos 1930. Santo Afonso era uma ilha cercada do ermo. Vivia-se em paz e segurança.
Ângelo não inventara nada, não criara aquelas leis. Seguias por tradição1404, complementa o
narrador.
É a força desta tradição que emperra o processo de modernização do país1405.
Como em Nestor Duarte o sentido de modernização é eminentemente político, com noções
como Estado, coletividade, público representando as formas avançadas de estruturação social,
é precisamente a ausência do Estado, o espírito individual, a falta de senso público que vão
configurar o quadro de subdesenvolvimento apresentado no transcurso do romance, e que dão
o sentido da organização social que persiste.
Estas oposições representam em outros termos ou em gradações diferentes a
oposição litoral x sertão tão aludida já em estudos sobre a formação da sociedade brasileira.
Tal antinomia vai orientar toda a segunda parte do romance Invasão ou evasão? Em tempos
de certa inquietude quando da ocasião de uma campanha eleitoral uma das personagens
sentencia: o sertão também quer falar nesta questão1406. No encontro tentava-se chegar a
termos a respeito da cooperação dos proprietários rurais no sentido de garantir uma suposta
candidatura popular. Waldir Freitas Oliveira, responsável pela reedição da obra em 1998 viu
nesta passagem uma alusão aos episódios ocorridos na Bahia entre os anos de 1919 e
19201407. Se a referência é pertinente ou não o que cabe é ver os termos desta oposição em
Nestor Duarte. Para o autor os pontos em que se ancora a sociedade brasileira são justamente
os pontos a serem superados. O projeto de nação deve incluir o sertão na medida em que este
representa os traços da organização arcaica que tanto impossibilitam o desenvolvimento do
país. Para ele a vida política do Brasil, como sua força econômica veio do interior1408, diz em
A ordem privada e a organização política nacional e prossegue, saindo de sua base para
alcançar o resto do país pelo litoral mais político e independente dela, essa ordem, com o
1404
Nestor Duarte. Gado Humano. p.31.
1405
Luiz Guilherme Piva vai sublinhar que a visão que Nestor Duarte tem do país no final dos anos trinta é a
de um país predominantemente rural, o que lhe acentuaria sua visão pessimista e o seu determinismo privado.
Cf. Luis Guilherme Piva. Nestor Duarte: Determinismo privado e Razão Pública. In. Ladrilhadores e
semeadores: A modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sergio Buarque de Holanda,
Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940). São Paulo: Departamento de Ciência Política da Universidade de
São Paulo: Ed. 34, 2000.
1406
Nestor Duarte. Gado Humano. p.121.
1407
Waldir Freitas Oliveira. Apresentação. In. Gado Humano. 2 ed. EGBA. Salvador, 1998.
1408
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. p104.
1409
Idem. 112.
1410
Nestor Duarte. Gado Humano. p.159.
1411
Luis Guilherme Piva. Op.cit. 245.
1412
Nestor Duarte. Gado Humano. p 201.
1413
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. p.120.
considerações sobre como entende a literatura. Para ele a relação da literatura com o real não
pode ser índice de depreciação do fazer literário e afirma de forma precisa que desde os
tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representação de
uma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real.1414 Tarefa parecida com a da História, se
seguem por caminhos diferentes, se encontram em um objetivo comum.
1414
Roland Barthes. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988. p.
3.7 – SIMPÓSIO 7:
HITÓRIA DOS ÍNDIOS NO NORDESTE
Coordenação:
Profª Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso (UFBA)
Prof. Msc. Francisco Cancela (Doutorando em História
Social/UFBA)
Este estudo propõe algumas questões, tais como: é possível rever a atuação de índios e
colonizadores na estruturação do espaço sergipano colonial e destacar as paisagens indígenas?
A revisão das fontes e dos estudos existentes a partir do olhar da geografia cultural nos
permite nuançar os possíveis conflitos entre índios e colonos, como apontam investigações
similares em outras partes do Brasil? A conquista do espaço geográfico sergipano e a
formação do mundo agrário significaram uma luta apenas contra a natureza, ou foi feita à
custa da desestruturação das paisagens indígenas ao seu redor? A colonização significou a
formação de um mundo agrário, para tanto foram imprescindíveis à atuação do poder
religioso e do político. De que forma a sua analise ajuda a entendermos a estruturação do
território? No Brasil alguns estudos apontam que algumas áreas foram colonizadas
aproveitando antigas ocupações indígenas, esta constatação vale para Sergipe?
1415
CORRÊA, Dora Shellard. Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil. Revista Brasileira de
História. São paulo, v. 26, nº 51, p. 63-87 – 2006. p. 64-5.
1416
CORRÊA, Dora Shellard. Obra citada. p. 65-66.
1417
CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2007. p.54.
1418
CORRÊA, Roberto Lobato. Obra citada. p. 55.
1419
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. “Os temas da geografia cultural”. IN: CORRÊA, R. L.;
ROSENDAHL, Z. (orgs.). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 27.
1420
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 27-8.
1421
FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1977;
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989; NUNES, Maria Thétis.
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
1422
SANTANA, Pedro Abelardo de. Da Bahia a Pernambuco no século 16: viagens entre os dois pólos da
colonização do Brasil. Aracaju: SESC; UFS, 2003; SANTANA, Pedro Abelardo de. Aldeamentos indígenas
Sergipe Colonial: subsídios para a investigação de Arqueologia Histórica. São Cristóvão: UFS, 2004.
(Dissertação de Mestrado).
1423
HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.110 e 114.
1424
BORDO, A. A.; SILVA, C. H. P.; NUNES, M.; BARBOSA, T.; MIRALHA, W. Diferentes Abordagens do
Conceito de Território. São Paulo, FCT/UNESP, 2004. p.1. Disponível em:
<http://www.temasemdebate.cnpm.embrapa.br/textos/051018_TERRITORIO_ESPACO_quarta.pdf>. Acesso
em 21/10/2007.
1425
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record,
2006. p. 19-22.
1426
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. “Os temas da geografia cultural”. IN: CORRÊA, R. L.;
ROSENDAHL, Z. (orgs.). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 28-29.
1427
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 30-31.
1428
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 32 e 50-52.
1429
PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995. p. 13.
1430
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989; NUNES, Maria Thétis.
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
1431
MORAES, Antonio C. R. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005. p. 63.
1432
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 63.
1433
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 64-65.
apropriação do espaço produzido. 1434 É desta forma que pretendemos compreender e explicar
a formação do espaço geográfico sergipano.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2007.
1434
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 69-70.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume,
2005.
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
Além disso, havia a preocupação de identificar onde havia ainda índios que viviam
em hordas errantes, suas línguas e solicitar ao presidente da respectiva província, missionários
que lhes vão evangelizar e socializar; também indicar se convirá fazê-los descer para as aldeias
então existentes ou estabelecê-los em separado, caso em que deve indicar o local onde se deve
assentar a nova aldeia. Dever-se-iam empregar todos os meios lícitos, brandos e suaves para
atrair os índios às aldeias, e promover casamento entre eles e eles e pessoas de outra raça.
Explicar-lhe as máximas da Igreja Católica e ensinar a doutrina cristã, sem empregar força ou
violência.
E também cuidava da infra estrutura para funcionamento das aldeias, estabelecendo
que o Diretor de Índios deveria diligenciar a edificação de igrejas e casas para a habitação dos
empregados das aldeias e dos índios e distribuir pelos diretores de aldeias e missionários os
objetos que o Governo Imperial destinar aos índios para a agricultura ou para o pessoal dos
mesmos, como mantimentos, roupas, medicamentos que deverão ser solicitados ao presidente da
Província, segundo instruções do Governo Imperial.
O Diretor deveria informar-se das produções de mais fácil cultura no lugar, adotando
aquelas de maior facilidade e a que os índios mais prontamente se acostumem; saber dos meios
de subsistência das aldeias, e providenciar que nenhuma venha a sofrer fome pela fuga dos índios
para os matos ou pelas demais fazendas e povoações. Cabia também aos Diretores Gerais
fiscalizar as rendas das aldeias, quaisquer que fossem suas fontes e exercer vigilante inspeção
sobre as produções das lavouras, pescas e extrações de drogas e outro qualquer ramo de indústria
e sobre todos os objetos destinados para o uso e consumo das aldeias. Deveria ainda aplicar os
dinheiros e outros objetos segundo as necessidades das aldeias e conforme as ordens imperiais,
dando anualmente conta circunstanciada das despesas.
Como parte do cuidado para com os índios aldeados, o diretor geral deveria solicitar,
quando necessário, ao Presidente da Província alguma força militar para proteger as aldeias e
propor à Assembléia Provincial a criação de escolas de primeiras letras nos locais onde os
missionários não bastem para este ensino. Introduzir também a vacina nas aldeias e facilitar-lhes
todos os socorros nas epidemias, corresponder-se com os missionários de cada aldeia, recebendo
esclarecimento do que for necessário para a catequese e civilização dos índios, providenciando
no que couber em suas faculdades.
O Diretor Geral ainda deveria organizar tabelas de vencimento dos empregados que
estiverem a serviço das aldeias e submetê-las para aprovação do Governo Imperial. Aprovar e
mandar por em execução provisória as tabelas organizadas pelos diretores das aldeias, dos jornais
que devem ganhar os índios que forem chamados para o serviço das mesmas ou qualquer outro
serviço público, dando conhecimento ao governo Imperial para sua final aprovação.
Por fim, o Diretor Geral deveria anualmente apresentar ao governo Imperial o
orçamento da receita e despesa das aldeias e um relatório circunstanciado do seu estado e
população, instrução, indústria, expondo como foram executadas as disposições deste
Regulamento e falando sobre o progresso ou decadência das aldeias e as causas que para isso
concorreram, bem como as providências que fosse conveniente adotar. Também exporiam os
inconvenientes encontrados na execução deste Regulamento, indicando as medidas que julgar
apropriadas para se conseguir o grande fim da catequese e civilização dos índios.
O art. 2º do Regulamento das Missões indígenas determinava que em cada uma das
Aldeias haveria um Diretor, nomeado pelo Presidente da Província sob proposta do Diretor
Geral, com suas competências específicas arroladas nos 18 §§ deste artigo.
O art. 3º determinava competir ao Tesoureiro o recebimento dos dinheiros
pertencentes à aldeia, qualquer que seja a origem, recolhendo-os numa caixa a que terá acesso o
Diretor da Aldeia, assim como receber todos os objetos que forem destinados ao serviço e uso da
aldeia. Ter a seu cargo a escrituração e contabilidade das aldeias, e ajudar o diretor de cada aldeia
na confecção de mapas estatísticos. Fazer os pagamentos e entregar os objetos sob sua guarda
segundo ordens do Diretor Geral e determinações do Diretor da Aldeia. Prestar anualmente conta
ao Diretor Geral dos Índios de todos os dinheiros e objetos que houver recebido, dos empregos
que fez e das ordens que os autorizaram. Escrever os atos que deverem ser remetidos à Justiça e
os termos de demarcações das porções de terras procedidas pelo Diretor da Aldeia dentro dos
limites das terras da aldeia. Por fim, substituiria o diretor da aldeia em seus impedimentos
imprevistos, dando parte imediata ao Diretor Geral para prover interinamente.
O art. 4º dizia que, quando o estado da Aldeia não exigisse um Tesoureiro, um
Almoxarife receberia os objetos destinados para a Aldeia e os entregaria segundo ordens do
Diretor da mesma dando anualmente conta ao Diretor Geral e o Diretor da aldeia receberia os
dinheiros que á mesma pertencerem.
O art. 5º estabelecia a existência de um Cirurgião, que deveria ter a seu cargo a botica
(farmácia) e os instrumentos cirúrgicos; cuidaria da enfermaria com um Enfermeiro que seria um
dos funcionários propostos pelo Diretor da Aldeia.
O primeiro Diretor Geral dos Índios conhecido para a província da Bahia foi,
coincidentemente, a mesma pessoa que já ocupava o cargo de Diretor Geral de Estudos: Casimiro
de Sena Madureira, mas ele menciona um antecessor no cargo de Diretor de Índios que não
conservara cópias de seus relatórios que ele pudesse consultar ao preparar o seu.
O primeiro Relatório de Casimiro Madureira, datado de 10 de janeiro de 1851, veio
publicado em anexo à Fala do Presidente da Província Francisco Gonçalves Martins de 1851. Na
ocasião ele não se encontrava em bom estado de saúde, o que chega a explicitar no ofício de
apresentação do Relatório, e logo na introdução ao mesmo refere-se ao fato de que os diretores
das diversas aldeias não apresentaram orçamentos de receita e despesa e por esta razão ele
também não o faz. Afirma que só algumas aldeias tinham rendas, provenientes das terras que os
índios, já civilizados, não ocupavam nem cultivavam: Espírito Santo de Abrantes, Santo Antonio
da Glória ou Curral dos Bois, N.Sra. dos Prazeres em Nazaré e S. Fidelis, na comarca de
Valença. Julgava ainda que os diretores das aldeias arrecadavam mal as rendas. Também as terras
das Aldeias de Pedra Branca, Itapicurú, Mirandela, Rodela e Saí estavam ocupadas por rendeiros,
sem que os diretores dessem notícia das rendas. Pensava ser conveniente que o governo Imperia l
suprimisse:
Em anexo aos Relatórios de 1851 e 1852, Casimiro de Sena Madureira descreve cada
uma das aldeias da província, de que foi feita uma tabela, anexa ao presente trabalho, para se
facilitar visualização do conjunto.
Relacionando pontos destacados pelo Diretor Geral de índios, Casimiro de Sena
Madureira, mesmo com todas as eventualidades que dificultaram sua administração e descrição
mais precisa de detalhes, notamos uma abordagem diferenciada ao relatório do seu sucessor, o
Visconde de Sergimirim, que assinou o relatório de 1872, documento anexo a Fala do
desembargador João Antonio de Araújo Freitas Henriques em 1º de Março do mesmo ano.
No seu relatório, o Visconde de Sergimirim, apesar de todo o descontentamento e
mostrando-se impotente devido às condições precárias, foi um grande crítico às condições que se
encontravam as aldeias. Destacou a importância da reestruturação das aldeias, se preocupou com
a organização de novos aldeamentos desde quando existisse uma apreensão ao modo de provê-
los, sobretudo na falta do processo civilizatório através da catequese devido a não existência de
uma verba posta nos orçamentos gerais e provinciais que contemplasse a construção de edifícios
para missionários, para escolas e moradas do professor. Interpretava as aldeias administradas
como um meio importante, um viveiro de operários agrícolas que, no futuro, se distribuiriam
pelos estabelecimentos rurais. E, se o governo não tivesse um olhar mais preocupado muitos
esforços se perderiam.
A Necessidade de Missionários
Uma questão que permeou todos os relatórios dos Diretores Gerais de índios
analisados (1851; 1852 e 1872), vista como um dos alicerces mais importantes, a necessidade de
missionários estava intimamente relacionada ao êxito administrativo das aldeias.
Os missionários foram elemento chave na mediação e descaracterização dos indígenas,
principalmente, através da religião. Impondo modos que favoreciam a permanência dos nativos nas
aldeias por meio de festas, cantos, doação de objetos, controle do idioma, batizados e casamentos
tornando-os dóceis e gentis evitando, sobretudo, possíveis levantes contrários as ordens
administrativas.
Era generalizada a preocupação com a falta de missionários nas aldeias administradas,
principalmente, após a proibição da admissão de noviços das ordens religiosas nacionais, em 1855,
para este fim. Tornando-se uma das reclamações mais constantes dos Diretores Gerais de índios ao
governo imperial, esses apelavam para que houvesse a consignação no orçamento geral e, como
solicitado pelo Visconde de Sergimirim em 1872, também no orçamento da província alguma
quantia para a côngrua de missionários e outros misteres da catequese nas diversas aldeias
pertencentes às comarcas da Bahia. Sem a atuação dos missionários, a ordem nos aldeamentos seria
complicada e quase impossível podendo resultar na extinção e/ou inviabilidade de novas aldeias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tabela das Aldeias dos indígenas da Província da Bahia em 1851, segundo informações
de Casimiro de Sena Madureira – Diretor Geral dos Índios.
palhas e 9 que tem terras, que lhe foram que o governo mande
(elevada a vila) lavouras, além de outros doados, e alguns pescam demarcar o terreno. As
que tem engenhos nas na costa). rendas que o diretor
mesmas terras. arrecada são orçadas em
158$280 rs.
Aldeia de - 115 famílias além de 204 Não carece de diretor-
Massarandupió filhos menores desses
pais de famílias (não
especifica se esse número
corresponde a índios
somente, ou se a
rendeiros também).
Aldeia de Pedra - Tem 104 famílias de Esta aldeia tem
Branca índios com 380 missionários que dirigem
indivíduos; outros índios os índios, substituindo o
Comarca de Cachoeira
particulares á titulo de
renda que não pagam,
salvos os pequenos sítios,
que poucos índios
cultivam:
Aldeia de Soure Os índios são ativos, Tem 227 índios. Não precisa de Diretor.
alguns plantavam, outros A meia légua de terra que
pescam, ou viajam por lhe foi doada merece as
salário. mesmas providencias que
a de Itapicurú
Aldeia de Poucos lavradores, quase Tem 300 índios. Tem meia légua de terra
Mirandela todos servem de em quadro
vaqueiros.
Aldeia de Tem 400 índios. Estão debaixo de um só
Pombal Diretor, mas não carecem.
Tem meia légua de terra
em quadro -
Aldeia de - Tem 32 famílias com 132 ---
Rodelas no individuos, deduzidos 15
que faleceram em 1849.
Comarca de Monte Santo
Valença de madeiras, pelo rio casadas, e 1 viúva, e 105 ocupam a quarta parte; ¾
Una. menores, ao todo 207 devem ser vendidas para
indivíduos. a Nação. As rendas são
orçadas em 58$000.
Aldeia de Empregam-se em Tem 68 índios; não A Câmara, que hoje não
Santarém lavoura de mandioca, consta quantas índias tem. tem índios por vereadores,
arroz e café. está com tudo na posse do
(Elevada a vila) arrendar as terras.
Não carece de Diretor, e
acha-se no caso da Aldeia
de Abrantes.
Aldeia de Lugar muito pobre. Tem 200 índios. Não carece de diretor. As
Comarca de
Camamu
(foi Aldeia de
indivíduos de outra raça. Rio dos Frades, por ser o
índios) terreno muito produtivo.
Seguro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
______. Fala que recitou o presidente da Província da Bahia, o dezor consº Francisco
Gonçalves Martins, na abertura da Assembléia Legislativa da mesma província, no 1º de
Março de 1852. Bahia. Tipografia Const. de Vicente Ribeiro Moreira, (Rua do Tijolo, casa nº.
10). 1852. 68 p.
______. Fala com que o dr.º João Antônio de Araújo Freitas Henriques abriu a 1º sessão
da 19º Legislatura da Assembléia Provincial da Bahia em 1º de marco de 1872. Bahia:
Tipografia do Correio da Bahia. Rua da Alfândega n.º 29. 168 p.
______. Relatório do Diretor Geral dos Estudos Casemiro de Sena Madureira sobre
instrução publica apresentado ao Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins
no ano de 1851, 15 p. (microfilmado)
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Política indigenista no século XIX. In: História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/FAPESB, 1992, p.133-154.
MADUREIRA, Casimiro de Sena. Relatório da Diretoria Geral dos Índios. Anexo à Fala do
Presidente Francisco Gonçalves Martins, 1852. 8 p + 3 mapas.
Este trabalho pretende discutir aspectos históricos e culturais relevantes das vilas de índios da
Capitania de Porto Seguro. Criadas no contexto das reformas pombalinas, as vilas de índios se
constituíram em espaços privilegiados de expropriação da mão-de-obra indígena, de
elaboração de políticas indígenas e de reelaboração de identidades, uma vez que possibilitou o
convívio interétnico mais sistemático e intenso, vivenciado através da obrigatoriedade da
presença de não-índios nas vilas, do incentivo de casamento com brancos e da
compulsoriedade do trabalho agrícola. O texto se organizada em três partes: na primeira,
busca-se analisar o contexto histórico da criação das vilas, identificando como as reformas
pombalinas chegaram a Porto Seguro; na segunda, faz-se uma reflexão sobre a natureza das
vilas de índios; na última, pretende-se apresentar conclusões iniciais, tomando determinadas
experiências indígenas como referência.
As vilas de índios foram criadas no reinado de dom José I, que teve na figura de
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o representante autêntico da
política ilustrada do despotismo esclarecido1435. Neste período, um estado de instabilidade
econômica rondava Portugal, cujas causas estavam na perda da arrecadação tributária nas
colônias, no déficit demográfico metropolitano e na crise da produção agrícola. Além disso,
no cenário político, a questão da delimitação das fronteiras entre as Américas espanholas e
1435
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo, Ática, 1982; FALCON, Francisco.
Iluminismo. São Paulo: Ática, 1984.
1436
ARRUDA, José Jobson de Andrade. O sentido da Colônia: revisitando a crise do antigo sistema colonial no
Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2.
ed., ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.
1437
FALCON, Francisco. Pombal e o Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão
técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2. ed., ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP;
Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.
1438
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil
escravista, 1786-1888. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
poderes civis e administrativos dos padres regulares e determinando que fossem governados
por principais, governadores e pela justiça secular.
1439
Diretório, que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não
mandar o contrário. In: ALMEIDA, Rita. O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do século
XVIII. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
1440
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese de Doutorado – USP, 2005, p.
246.
1441
Segundo o Diccionário da Língua Portuguesa, as Vilas eram unidades urbanas menores que as cidades, mas
que contavam com juizes, câmaras e pelourinho. SILVA, Antonio Moraes da. Diccionario da Língua
Portuguesa, composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva.
Lisboa: Officina de Simão Thadeo Ferreira, 1798.
1442
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses Indígenas: cultura e identidade nos aldeamentos
indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 169.
1443
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese de Doutorado – USP, 2005, p. 35.
transformar aqueles antigos núcleos de catequização em novas vilas. Neste contexto, os dois
únicos aldeamentos jesuíticos existentes em Porto Seguro, a aldeia São João Batista dos
Índios e a aldeia Espírito Santo dos Índios, transformaram-se em vilas, recebendo,
respectivamente, a denominação de Vila de Trancoso e Vila Verde.1444
1444
APEB - Carta de Aplicação da Provisão Real que mandou criar a Vila de Trancoso – Colonial e Provincial,
Dossiê sobre aldeamentos e missões indígenas – n. 603.
1445
Decreto por que sua majestade há por bem nomear ao Bacharel Thomé Couceiro de Abreu para hir criar a
Ouvidoria de Porto Seguro por tempo de três annos. APEB – Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço
7065, p. 9.
1446
Instruções dadas pelo Marques de Pombal a Thomé Couceiro de Abreu, quando mandou por este magistrado
criar a Ouvidoria de Porto Seguro. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador, v. 42, 1916,
p. 63.
Como resultado da ação da nova Ouvidoria foram criadas outras seis vilas de
índios em Porto Seguro: Belmonte (1764), São Mateus (1764), Prado (1764), Viçosa (1768),
Porto Alegre (1769) e Alcobaça (1772).
1447
CANCELA, Francisco. Um novo instrumento para uma velha prática: a criação da nova ouvidoria de Porto
Seguro e seu “projeto de civilização” dos índios (1763). Salvador: Universidade Católica do Salvador
(monografia de graduação), 2005.
1448
Idem.
formado por índios Pataxó, Maxacali, Malali e Krenak, que desde o final do século XVI,
mantiveram relações intermitentes com a sociedade colonial, sendo que alguns construíram
relações de aliança e realizavam algumas trocas esporádicas com os brancos e outros, por sua
vez, preferiram a busca da autonomia e se embrenharam nos matos, fugindo das constantes
bandeiras ou expedições de aprisionamento de índios para a escravização.
Com a política de criação das vilas de índios no meado do século XVIII, os índios
da Capitania de Porto Seguro passaram a interagir de modo mais constante com a sociedade
colonial e construíram diversas estratégias de adaptação e resistência àquele novo mundo.
Entre 1758 e 1820, as vilas de índios se transformaram no principal palco das experiências de
contato entre povos indígenas e europeus em Porto Seguro.
Maria Regina Celestino de Almeida, ao estudar os aldeamentos indígenas da
Capitania de Rio de Janeiro, classificou estas povoações como um “espaço de ressocialização
dos povos indígenas, espaço esse que, além de cristão e português, foi também dos índios, e
que tornou possível a recriação de suas identidades”1449. Esta perspectiva trouxe uma
mudança paradigmática na abordagem da história dos índios, pois possibilitou observar a
influência das relações de contato nas transformações culturais, abandonando o dualismo
simplista entre “índio puro” e “índio aculturado”, além de destacar o papel dos índios como
sujeitos de sua própria história. Incorporando esta visão, é possível perceber as vilas de índios
como um espaço de ressocialização dos indígenas, que possibilitou o contato intercultural
aberto, porém contraditório.
Outra proposição importante foi de Isabelle Braz Peixoto da Silva, que investigou
as vilas de índios do Ceará, durante a vigência do Diretório Pombalino, concebendo-as como
“espaço fundamental de reconfiguração social e elaboração étnica”. A partir da análise das
dinâmicas locais, observou que as vilas de índios formavam “sistemas abertos, que permitiam
relações horizontais entre estas unidades, formando um sistema integrado mais amplo”1450.
Neste sentido, é possível pensar estas vilas integradas na sociedade colonial, mantendo
1449
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metarmofoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 26.
1450
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 18.
experiência descrita em 1803. Segundo os vereadores brancos da vila, Prado possuía pouco
mais que 70 casais de índios, principalmente das etnias Pataxó e Maxacali. A Câmara se
esforçava para “extirpar” dos índios os “vícios bárbaros”, encaminhando à prisão aqueles que
1451
AHU – Projeto Resgate. Carta do Ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, dirigida ao
Rei, na qual relata o sucessivo desenvolvimento desta Capitania. Documento nº. 8787.
1452
Segundo o auto de creação da Vila do Prado, as habitações deveriam se organizar da seguinte forma: “cada
morada de casa de cada um dos moradores deve ter de frente 50 palmos, de fundo 35 e que se há de compor de
uma sala, com sua porta e duas janelas para a rua, um quarto para os pais dormirem, outro para os filhos, uma
casa de dispensa e outra para cozinha e o quintal há de ter de cumprimento 80 palmos e de largo os 50 de
fronteira das casas, os quais todas hão de ter a mesma frente, altura, portas e janelas” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29)
1453
AHU – Projeto Resgate. Ofício do Ouvidor de Porto Seguro Tomé Couceiro de Abreu (para o Ministro dos
Negócios do Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado), no qual transmite muitas e interessantes
informações, sobre as povoações, rios, população e madeiras da sua Capitania. Coleção Castro e Almeida -
Documento nº 6.508.
indígenas não conseguiram deter a prática regular de rituais indígenas. A estratégia de inserir
índios nas Câmaras como forma de legitimar suas ações políticas e jurídicas também não
surtiu muito efeito, pois os vereadores índios optavam pelo silêncio ao invés da denúncia a
Outra experiência dos índios que destacamos foi descrita por Maximiliano, no
final da década de 1810. O relato apresenta a chegada de “um bando selvagem” na Vila do
Prado, que para lá se deslocou com a finalidade de estabelecer trocas comerciais. O viajante
registrou que
Eram da tribo Patachós, da qual eu não tinha visto nenhum até então, e
haviam chegado poucos dias antes das florestas, para as plantações.
Entraram na vila completamente nus, sopesando armas, e foram
imediatamente envolvidos por um magote de gente. Traziam para vender
grandes bolas de cera, tendo nós conseguido uma porção de arcos e flexas
em troca de lenços vermelhos. (...) Queriam, sobretudo, facas e
machadinhas..1454
1454
WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar S. de Mendonça e Flávio P. de
Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, p. 214, 1989
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Fontes Manuscritas
AHU – Projeto Resgate. Ofício do Ouvidor de Porto Seguro Tomé Couceiro de Abreu (para o
Ministro dos Negócios do Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado), no qual
Fontes Impressas
FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Directório que se deve observar nas povoações
dos índios do Pará, e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa:
Oficina de Miguel Rodrigues, 1758.
INSTRUÇÕES dadas pelo Marques de Pombal a Thomé Couceiro de Abreu, quando mandou
por este magistrado criar a Ouvidoria de Porto Seguro. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia. Salvador, v. 42, 1916, p. 63-68.
SILVA, Antonio Moraes da. Diccionario da Língua Portuguesa, composto pelo padre D.
Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de
Simão Thadeo Ferreira, 1798.
VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Vol. 2. Salvador: Editora Itapuã: 1969,
p. 526.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do
século XVIII. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Revista Estudos Históricos, n. 15, p.157, 1995.
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa
na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese
de Doutorado em História Social – USP, 2005.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo, Ática, 1982.
_____. Pombal e o Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão
técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2. ed., ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo,
SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001, pp. 227-243.
PARAÍSO, Maria Hilda. Os Botocudos e sua trajetória histórica. In.: CUNHA, Manuela
(org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
Nas primeiras 40 décadas de 1500, a Baía de Todos os Santos (Kirimuré na língua dos
Tupinambás) foi o centro de complexas relações entre grupos indígenas, franceses e
portugueses. As disputas pelo controle da área, pelo corte e comércio do pau-brasil e pelo uso
da mão-de-obra indígena resultaram em conflitos, alianças, casamentos, fugas, resistências,
revoltas e na morte do Capitão Donatário da Capitania da Bahia, Francisco Pereira Coutinho,
o Rusticão. Os desdobramentos dessa disputa terminaram, juntamente com outros, na
reversão da capitania para o domínio da Coroa Portuguesa, na fundação da Cidade do
Salvador, na instituição do Governo Geral e na edição da primeira legislação indigenista para
a América Portuguesa. O que se pretende neste trabalho é analisar essa trajetória histórica à
luz da chamada “Nova História Indígena.”
Notas Bibliográficas
1455
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Federal da Bahia.
1456
FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de
conhecimento etno-histórico In CUNHA, Maria Manuela C. da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992 . p. 381-396.
de uma reação de maiores proporções e mais efetiva dos indígenas ante as imposições que
lhes eram feitas. Nesse sentido, a morte e a destituição das lideranças indígenas ou sua
cooptação acentuavam-lhes o sentimento de abandono, ausência de proteção e de perspectivas
ante a violência imposta. No entanto, algumas dessas sociedades encontraram formas de se
ajustarem a essa nova realidade e, até mesmo, de criarem regras hereditárias de sucessão para
os cargos de chefia. Criaram, à moda européia, uma casta de governantes indígenas ativa no
seu diálogo, capaz de apresentar suas exigências e reivindicar seus direitos através do uso de
mecanismos políticos próprios do mundo colonial.
Ante a plasticidade dos grupos indígenas e a necessidade de consolidar a
conquista, o Estado português passou a implantar estruturas político-administrativas que
fossem capazes de promover a passagem do estágio de pilhagem para o de exploração das
riquezas naturais e da mão-de-obra ali existentes. Esta deveria se conformar às exigências do
novo modo de produção, à implantação de relações de trabalho de cunho escravagista e à
imposição de deslocamentos compulsórios para áreas consideradas importantes na estratégia
de ocupação, exploração, defesa e expansão dos territórios.
Independente das relações de poder serem expressas através de mecanismos de
violência explícita ou da criação de alianças, suas bases estavam fincadas no projeto estatal de
programar a conquista, a colonização e a integração forçada das populações a um modelo
estabelecidos pelo Estado conquistador de acordo com seus interesses e os dos segmentos
sociais tornados parceiros e executores daqueles projetos. E isso implicava a negação do
direito à autonomia das populações nativas, gerando várias instâncias de antagonismo,
oposição e resistência, o que só fortalecia a adoção de medidas e os argumentos voltados para
garantir a dominação e o controle sobre os revoltosos. Essa realidade nos permite afirmar que,
a longo prazo, o domínio imposto por uma minoria, em nome de uma superioridade racial e
cultural, promoveu relações pautadas pela hierarquização e dominação, apesar dos
argumentos de caráter humanitário alardeados para justificar essas ações.
Para compreendermos essas relações de poder é preciso considerar o objetivo
maior dos colonos de concretizarem empreendimentos econômicos rentáveis através do livre
acesso à terra e à mão-de-obra indígena. Com isso, pretendiam garantir o rápido retorno do
capital investido e promover seu enriquecimento e ascensão social. Mas, também, considerar
que os povos indígenas eram agentes históricos ativos que estabeleceram suas relações a partir
de suas vivências e experiências, expectativas e possibilidades de solução permitidas e
pensadas pelo seu referencial e sua organização sociocultural. Porém, é fundamental destacar
que as relações coloniais eram constantemente atualizadas a partir das interações
estabelecidas entre os dois segmentos sociais, o que atribui peculiaridades aos vários
momentos e conjunturas historicamente constituídos, pois em nenhum momento, o aparente
equilíbrio social identificado no conjunto das relações teve um caráter estático. Essa dimensão
dinâmica resultou em vários modelos de interação entre colonizadores e colonizados e nos
constantes reordenamentos da organização social dos indígenas através da incorporação
seletiva de novos elementos culturais impostos pela convivência com os colonizadores.
guerras a seus inimigos tradicionais e ter acesso aos novos e desejados equipamentos
manufaturados europeus.
O entendimento das relações de casamento estabelecidas entre colonos e
indígenas também deve ser pensado como uma das manifestações dessas intenções opostas,
mas complementares. Para os silvícolas, era a consagração da aliança tradicional expressa nas
regras do cunhadismo. Para os colonos, era o uso de uma instituição social daquele povo para
obter mão-de-obra, alimentos e permissão para viver nas aldeias como um dos seus membros.
Porém, aos poucos, os Tupi passaram a perceber os antagonismos nas relações
que estabeleciam e viviam cotidianamente fazendo-os reavaliar as alianças estabelecidas com
os colonos. Para os índios, as alianças baseavam-se em suas formas tradicionais de
organização social, ou seja, deveriam estar calcadas no princípio da reciprocidade e não,
como passou a ocorrer após os primeiros anos de contacto, instrumentos que garantiam os
direitos aos colonos e os deveres a eles, dominados. A constatação dessa realidade acentuou-
se quando a dependência dos indígenas para com os colonizadores se ampliou e a autonomia
destes com relação aos produtos de subsistência fornecidos pelos Tupi tornou-se uma
realidade.
A insatisfação dos indígenas acentuou-se a partir de 1532, quando da implantação
do sistema de Capitanias Hereditárias e das novas exigências que lhes eram apresentadas: o
trabalho compulsório, a produção voltada para o mercado externo e a imposição de novos
padrões culturais voltados para sua transformação em trabalhadores adequados às novas
atividades produtivas. Esses se tornaram os grandes vetores das constantes revoltas indígenas
nas várias capitanias.1457
Considerando-se os casamentos interétnicos como resultado de uma estratégia
política, econômica e social estabelecida entre os indígenas e os colonos no conjunto das
relações constituídas ao longo dos anos de convivência, podemos analisar o caso de Caramuru
e Catarina Álvares, depois conhecida como Paraguaçu, como o exemplo de um modelo e não
uma exceção no conjunto de relações sociais.
1458
O nome Paraguaçu assim como o atribuído a seu pai, Itaparica, foram criados usando a toponímia
de acidentes geográficos da Bahia de Todos os Santos.
Do primeiro, sabe-se que sempre disse ser um naufrago. Sempre apontado como
português, há, no entanto, suspeita de que fosse um galego1459 descendente de judeus, o que
não é impossível devido dado o constante circular de portugueses e espanhóis entre os dois
países, particularmente na região de Viana do Castelo, onde teria nascido. Outro elemento que
torna a hipótese aceitável é a participação de estrangeiros nos navios portugueses durante o
período de conquista e colonização da América. Para Teodoro Sampaio, entretanto, Caramuru
era um “tripulante contratado de algum navio francês”que permanecera na baía para organizar
e viabilizar o comércio de pau-brasil com os Tupinambá. 1460 Segundo as pesquisas de Moniz
Bandeira1461 as relações da família Álvares com comerciantes bretões eram antigas, pois
vários dos seus parentes atuavam como maerantes na pesca de bacalhau, o que explicaria essa
possível contratação do Caramuru.1462
A perplexidade ante a nova arma com semelhante poder destrutivo é que lhe teria
angariado prestígio, aceitação pelo grupo indígena e o transformado em genro e cunhado
1459
TOURINHO, Pero de Campo. Carta enviada ao Rei. Porto Seguro em 28/07/1546 In ACCIOLI, I. e
AMARAL. B. Memórias históricas e políticas da Bahia. Salvador. IOF, 1919. V.1.p. 199.
1460
SAMPAIO, Teodoro. História da Fundação da Cidade do Salvador, Salavador, Tipografia Beneditina,
1949, p. 119, 158-159.
1461
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões
à independência do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 59.
1462
O nome atribuído ao naufrago teve uma tradução tradicional: Caramuru – homem do fogo, filho do trovão.
Esta foi abandonada há muitos anos em decorrência de estudos mais acurados sobre a língua tupi. Segundo os
estudiosos, há duas possibilidades de nominações, sendo ambas verossímeis. Caramuru é o nome atribuído ao
peixe conhecido como moréia e que se abriga nas pedras à beira mar, situação em que os índios encontraram
Diogo Álvares após o naufrágio. Carái-muru que significa homem naufragado.
1463
As notícias sobre a presença de Caramuru na área da Baía de Todos os Santos se iniciam em 1514 quando
um português aprisionado por espanhóis, Estevão Froes, comunica por cata o fato ao rei D. Manuel. Outra
notícia data de 1526 sendo da autoria de um membro sobrevivente da tripulação da nau São Gabriel, comandada
por D. Rodrigo de Acuna, que havia aportado na Bahia. Em 1531, quem dá informações sobre Diogo Álvares é
Pero Lopes de Souza. Quando do naufrágio da nau Madre de Diós nas imediações de Boipeba, em 1535, quem
salvou os sobreviventes de serem aprisionados pelos índios, segundo Capitão da nau Juan de Mori, foi cristão
que se apresentava como Diego Alvares. MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 55-56.
1464
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 20
Também se pode intuir que a construção da Vila Velha decorreu do exercício das
formas tradicionais de atuação dos conquistadores: a substituição das antigas choupanas
indígenas por novas casas, supostamente de modelo lusitano, e o uso do trabalho indígena na
fundação de uma vila colonial e no corte e transporte de pau-brasil no entorno da baía de
Todos os Santos. Segundo Oviedo1467, a povoação compunha-se de mais de trezentas casas
espalhadas, onde além de Caramuru, mulher, filhos, noras e genros, viviam mais de mil índios
e náufragos europeus, inclusive franceses.
Neiva (op.cit. p.186-9), analisando essa questão, chama a atenção para a presença
francesa na baía de Todos os Santos, Porto Seguro e Fernando de Noronha antes de 1503,
conforme os registros apresentados por Paulmier de Gonneville na França. Segundo este
1465
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 179.
1466
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 65.
1467
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 57
1468
NEIVA, Artur. Diogo Álvares Caramuru e os franceses. Existência do Pau-Brasil na capitania de Francisco
Pereira Coutinho (um livro em preparação) In Revista Brasileira (publicada pela Academia Brasileira de
Letras), Rio de Janeiro, número 03, ano 1.p.185-210. dezembro de 1941.
1469
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 156-157.
Artur Neiva concorda com Francisco Vicente Viana1472 que, em 1893, proclamara
estar Caramuru a serviço dos franceses e ser o seu intermediário no comércio de pau-brasil
com os Tupinambá. Para esses autores, o espanto dos portugueses ao encontrá-lo em 1531 e
dos espanhóis em 1535 indicava o desinteresse de Diogo Álvares em manter relações com os
portugueses e em retornar a seu país de origem. A Neiva não passa despercebido o apedido de
Francês atribuído a Caramuru, o que sugere que, ao invés de simples naufrago, o nosso
personagem, na verdade, teria sido deixado aqui para administrar os interesses dos
comerciantes franceses de pau-brasil no Novo Mundo.
1470
SOUZA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. São Paulo Martins Fontes, 1943.
1471
PEREIRA, Ruy. Carta que escreveu para os Padres e Irmãos da Companhia em Portugal no ano de 1561, a 6
de abril, que foi dia da Páscoa In Cartas Avulsas, Aspilcueta Navarro e outros, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São
Paulo, Edusp, 1988. p 307-320.
1472
VIANA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia, Bahia, Tipografia e Encadernação do Diário
da Bahia, 1893.
1473
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil – 1500 –1627; Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São Paulo,
Edusp, 1982. p 112-4; 143-4.
1474
VASCONCELOS, S de. Crônica da Companhia de Jesus no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977: 190-5.
e Tatuapara. A mesma atividade também seria exercida por nossa personagem em Tinharé e
Boipeba, conforme a narrativa de Navarrete acerca do ataque sofrido pela frota de Acuňa em
1526 naquele local. Foi Diogo Álvares que negociou com os indígenas daquela localidade a
liberação dos sobreviventes da esquadra espanhola (vide Neiva, op.cit.p. 193-7; 204).
Outras perguntas que surgem na análise dos dados referem-se à suposta oposição
entre Francisco Pereira Coutinho e Caramuru. A rivalidade entre os dois decorria da disputa
de mão-de-obra indígena ou o comércio com os franceses era outra razão de discórdia? Para
alguns autores, esta poderia ser a razão do conflito. Para Accioli e Amaral1477, vários outros
europeus, além de Diogo Álvares, se instalaram na área que viria a se constituir na Capitania
da Bahia no período que antecedeu sua criação. Seriam, na sua concepção, marinheiros
fugidos dos navios que navegavam para as Índias ou dos que se dedicavam ao tráfico de pau-
brasil. Esses moradores é que teriam sido os principais responsáveis pelo incitamento dos
índios contra o donatário, pois não estariam satisfeitos com as novas ordens que restringiam o
tráfico de madeira com os franceses. Essa opinião também era a de Varnhagen.1478
1475
Nos documentos encontrados nos arquivo de Saint Malo, Ille ET Villaine e nos Arquivos Federais de
Ottawa, o nome de batismo da acompanhante de Caramuru era Katherine Du Brèzil. Cartier teria estado na Baía
nos anos de 1523 e 1527, oportunidade em que teria levado o casal para a França. MONIZ BANDEIRA, Luís
Alberto, op. cit. p. 71-72.
1476
NEIVA, Artur. op. cit, p. 193.
1477
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit, 1919. V.1.p. 199-200.
1478
VARNHAGEN, F. A História geral do Brasil. Notas de Rodolfo Garcia. São Paulo,
Melhoramentos/INL/MEC. 1975
1479
JABOATÃO, Frei Antônio de Novo Orbe Seráfico Brasileiro In ACCIOLI, I. e AMARAL. B. op. cit., 1919.
V.1.p. 188.
1480
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 92 – 93..
1481
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. 1919. V.1.p. 158-160.
1482
NEIVA, Artur. op. cit, p. 199.
1483
retiraram os canhões e demais armas de defesa ali existentes. Sua decisão de retornar a
Vila do Pereira teria ocorrido após terem sido negociada a paz com os Tupinambá. Essa outra
versão aponta para a possibilidade do donatário da Bahia também estar envolvido na venda de
escravos indígenas, o que, aliás, era legalmente permitido desde que respeitados determinados
limites numéricos. Na verdade, consideramos que as diversas versões acerca da revolta, ao
invés de serem vistas como excludentes, podem ser consideradas como complementares.
No entanto, estabeleceu-se certo mal estar entre Tomé de Souza e Diogo Álvares.
As razões a serem apontadas podem ser várias. Uma delas são as constantes e severas
punições impostas pelo governador aos índios que se rebelavam ou resistiam a suas ordens.
Essas medidas não só fragilizavam a posição de Caramuru perante seus aliados como também
representavam a desconsideração da autoridade para com sugestões por ele apresentadas.
Outra razão a ser considerada era a decisão dos índios e de Álvares em manterem o comércio
regular de pau-brasil com os franceses. Este fato está referido pelo inaciano Rui Pereira,
quando de sua visita às propriedades que Caramuru mantinha em Tatuapara. Para Thales de
Azevedo1485 Diogo Álvares, na sua velhice e, após tantos anos de convivência e aliança com
os Tupinambá, era um caso típico de híbrido cultural dividido entre dois mundos e tendo que
atender a dois senhores por se sentir devedor de lealdade a ambos. Marginalizado das decisões
e impotente à destruição das sociedades, faleceu em outubro de 1557, provavelmente com
mais de 70 anos. Catarina sobreviveu ao companheiro Faleceu em 1587. Profundamente
vinculada ao cristianismo, doou a Capela de Nossa Senhora da Graça e as terras em volta e a
prataria de seu uso pessoal à Ordem de São Bento
1483
NEIVA, Artur. op. cit, p. 201.
1484
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 101.
1485
AZEVEDO, Thales, Povoamento da Cidade de Salvador, Salvador, Editora Itapuã, 1969, p 112.
Há, finalmente, que destacar o fato de Catarina Álvares, uma eficaz agente
cultural no processo de transformação do seu povo e facilitadora da implantação dos
mecanismos de dominação, ter cumprido o seu papel de fundadora de uma nova sociedade
mestiça e cristã. Essa perspectiva compõe o imaginário baiano sobre essa mulher. Alega-se
que, após várias visões de Nossa Senhora, Catarina deliberou por construir uma capela na
Vila Velha, atual Bairro da Graça, em Salvador, onde está um quadro que imortaliza suas
visões e seu túmulo e de alguns dos filhos. Segundo Moniz Bandeira, 1486 a imagem entronada
na capela foi encontrada pelos índios Tupinambá aliados de Caramuru entre os despojos da
nau Madre de Diós que naufragou em Boipeba.
1486
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 67
1487
COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a
finais de quinhentos. Lisboa : Cosmos, 1995.
1488
Gabriel Álvares fez parte da expedição punitiva enviada por Mem de Sá ao Rio São Mateus para combater
índios em revolta e comandada pelo filho do governador. Ambos faleceram nesse combate.
“O país era totalmente deserto e inculto. Não havia nem casas nem tetos
nem quaisquer acomodações de campanha. Ao contrário, havia gente arisca
e selvagem, sem nenhuma cortesia nem humanidade, muito diferente de nós
em seus costumes e instrução; sem religião, nem conhecimento algum da
honestidade ou da virtude, do justo, e do injusto, a ponto de me vir à mente a
idéia de termos caído entre animais com figura de homens. Fazia-se
necessário prover a tudo como toda diligência e tudo resolver enquanto
nossos navios aparelhavam para o regresso, de modo que, invejosos do que
havíamos trazido, não nos surpreendessem os selvagens e nos matassem.”
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1980. p. 39.
1489
Aluno do VI semestre da graduação em História (licenciarura e bacharelado) da UFCG. Bolsista do
PIBIC/CNPq.
1490
Professora da Unidade Acadêmica da Universidade Federal de Campina Grande.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
I Congresso Sergipano de História: História e Memória
1112
ANPUH/SE & IHGSE
Em alguns documentos, como o relato da viagem que fez ao Brasil o francês Jean
de Léry no século XVI, os povos indígenas foram caracterizados como bárbaros, selvagens e
indomáveis. No entanto, desde o início da colonização, os indígenas, para além de sua utilidade
como força de trabalho, apareciam como aquele substrato mínimo de povoadores necessários
para a manutenção do domínio, ante as tentativas de conquista e invasão de outras potências
européias, ou mesmo de resistência de grupos nativos de caráter mais hostis na visão do
colonizador. A percepção desta funcionalidade específica dos povos indígenas no processo
colonizador já havia sido pensada por Caio Prado Júnior, para quem é certo que os portugueses
procuraram aproveitar-se deles como elemento participante da colonização. E que os homens e
mulheres indígenas, sob o domínio da política indigenista, integraram-se, de forma submissa, à
sociedade envolvente, transformando-se de elementos perturbadores a indivíduos
colaboradores do processo de ocupação portuguesa no território paraibano. Daí o papel de
“atores coadjuvantes” designados a indivíduos de tais povos, desvalorizando suas ações e
práticas de resistência.
Sendo assim, nessa pesquisa temos por objetivo analisar os discursos oficiais e as
construções historiográficas acerca dos povos indígenas encontrados no território paraibano,
durante o processo de conquista e expansão dos limites territoriais da Capitania Real da
Paraíba fundada em agosto de 1585, a partir de procedimentos teóricos e metodológicos da
historiografia colonial brasileira e paraibana. Ao longo do nosso estudo, enunciaremos,
primeiramente, um esboço histórico sobre as discussões teóricas em torno da temática História
Indígena, presentes nos documentos e relatos oficiais, e na historiografia tradicional ligada ao
Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba; em seguida, analisaremos a contribuição dos povos
indígenas, no olhar longe do “outro” em análise, nas guerras de conquista e fundação da
Capitania Real da Paraíba, além de sua expansão territorial ao “país dos Tapuias”, como diria o
Pedro Puntoni; por fim, estudaremos as novas abordagens em torno das ações e práticas de
resistência dos indígenas apresentadas pela nova historigrafia desenvolvida nos cursos de
História de algumas universidades nordestinas, em referência ao período colonial da História
do Brasil. Para efetivação dessa pesquisa, dialogamos com Beatriz G. Dantas, José Augusto L.
Sampaio, Juciene Ricarte Apolinário, Horácio de Almeida, Maria Rosário G. de Carvalho,
Pedro Puntoni, dentre outros que compartilham de conhecimentos em torno da temática
História Indígena no Brasil Colônia.
Nesse contexto, tomemos como ponto de partida Frei Vicente do Salvador:
“Estava conquistada a Paraíba, no entender do ouvidor geral Fernão da Silva. Mas os índios
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espreitavam os seus passos e como nada entendessem de termos judiciais, nem estavam por
isso, acharam azado o momento para fazer uma surtida em cima da expedição, agravados que
se sentiam com a destruição dos seus roçados e aldeias.”1491 Nessa passagem, podemos notar
os estereótipos do religioso para com os indígenas, os quais não teriam uma idéia de justiça, da
virtude, e amedontrava todos com suas práticas de violência, e selvageria. Apenas com a
intervenção do padre superior da Companhia de Jesus, seria pacificado tais “gentios” hostis.
Ademais, o valoroso documento de época conhecido como “Sumário das
Armadas”, escrito por um padre da Companhia de Jesus, não identificado, nos fins do século
XVI, a mando do padre Christovam de Gouveia, o visitador da Companhia de Jesus no Brasil;
nos revela a forte postura indígena para as práticas sexuais: a nudez, a poligamia, o adultério,
dentre outros fatores, indignavam o caráter religioso do jesuíta. Além disso, ele descreve tais
indígenas, habitante dos sertões nordestino, como imundos, comedores de ratos, passaros,
bichos e plantas “venenosas”, além de exóticas; feiticeiros, tendo comunicações com o
demônio; “gentios” inocentes, amigo das mulheres e brandos com elas, servindo e obedecendo
aos sogros como a seus pais; invejosos, tudo que vêem nos brancos eles desejam; preguiçosos,
brutos, desonestos, folgados, comilões, todos esses aspectos descritos nos mostram os vários
estereótipos forjados no encontro de “eu”, culto e civilizado, para com o “outro”, distorcendo
as múltiplas imagens. Sendo assim:
Este ardil nos não val com os pitiguares, (9) que, sendo o maior e mais
guerreiro gentio do Brasil, que occupa do Parahyba até o Maranhão (600 leg.),
tão unidos e conformes estão uns com os outros, que, de indústrias,
assentaram, entre si, intregarem-nos a nós os seos delinquentes, para nós os-
castigarmos, sem elles brigarem nem se desavirem nunca por isso: e assim o-
dizem sempre, nas pulhas aos brancos, quando na guerra vêm á fala.1492
Para tanto, quem muita confusão criou sobre a fundação da Paraíba foi Frei
Antônio de Santa Maria Jaboatão, no seu “Orbe Seráfico”. Os escritores paraibanos parece que
escreveram com Jaboatão à vista, principalmente Maximiano Machado, o autor da “História da
Província da Paraíba”. Daí o cuidado que é preciso ter em apurar certas “verdades” que
chegaram aos nossos dias amparadas pela tradição. Maximiano, por sua vez, também levou de
arrastão escritores sérios como Coriolano de Medeiros, Celso Mariz, Manoel Tavares
Cavalcante, Alcides Bezerra, José Américo de Almeida, e outros mais:
1491
ALMEIDA, Horácio. História da Paraíba. Vol. 1. João Pessoa: EDUFPB, 1997. p. 62.
1492
Sumário das armadas. Campina Grande: FURNE/UFPB, 1983. p. 26.
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1493
ALMEIDA, Horácio de. op. cit., p. 95.
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1494
HERCKMANS, Elias. Descrição Geral da Capitania da Paraíba. João Pessoa: A União, 1982. p. 40.
Silveira aponta para duas outras vertentes: a oligárquica, de caráter conservadora; e a crítica,
capaz de articulações mais amplas.
Para tanto, o historiador Horácio de Almeida, vinculou-se desde muito jovem ao
Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, contribuindo para uma produção historiográfica na
qual colocava o indígena como sujeitos fortemente submissos, e colaboradores com o projeto
de expansão territorial adotado pela metrópole portuguesa na época colonial. Foi assim, que ele
em sua primorosa obra “História da Paraíba”, indiretamente, descreveu a importância da
colaboração dos indígenas para a conquista e fundação da Capitania Real da Paraíba.
Tentaremos nas páginas que se seguem, elaborarmos um esboço histórico das guerras e da
participação dos povos indígenas no processo, segundo os relatos oficiais e a historiografia
tradicional, de tal conquista para o Império luso, e suas investidas para o sertão dos “tapuias”,
contribuindo com a política de expansão das fronteiras adotadas pelos burocratas da metrópole,
mas também pelos jesuítas da Companhia de Jesus, sob a forma de aldeamentos catequizantes.
Sendo assim, mais uma vez atentamos para o fato de que o papel de povoador,
destinado ao indígena, desempenhava uma função estratégica na contrução do domínio
colonial. Os indígenas do litoral, eram, talvez, os únicos capazes de dar conhecimento das
terras e riquezas no sertão adentro; e contribuir para as tropas de conquista com os homens
necessários às diversas guerras contra os “indíos bravios” do sertão. Tais indígenas favoráveis
eram isolados da sociedade litorânea, e submetidos aos trabalhos pedagógicos de conversão das
almas nos aldeamentos estratégicos das missões dos padres jesuítas da Companhia de Jesus,
desde fins do século XVI. Entretanto,
Assim, tão logo os holandeses empreenderam uma viagem ao “país dos tapuias”
em busca de aliança vingadora com os indígenas do sertão paraibano; isto porque os do litoral
já eram aliados dos portugueses.
1495
PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 2002. p. 54.
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1496
ALMEIDA, Horácio de. op. cit. p. 88.
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modo siginificativo com sua efetiva conquista, aliando-se para tanto a voracidade da frente
pastoril e as compulsões culturais da ação missionária que se lhe seguiu – forçando inclusive
a sedentarização e concentração em seus redutos de grupos diversos – ao presumivelmente
baixo contigente demográfico de cada etnia ou unidade política original.”1497
Ademais, uma outra questão de fundamental importância trata-se do novo olhar
historiográfico para os estudos realizados sobre História Indígena nas universidades do
nordeste, inclusive na Paraíba. Tal produção acadêmica apresenta uma maior diversidade
devido ao leque de correntes teóricas que norteiam os trabalhos. Para tanto, a partir dos anos
1980, acontece uma grande viragem na historiografia brasileira. A nova história cultural teria
uma de suas primeiras representantes no Brasil em Laura de Mello e Souza. Ocorre uma
ressignificação da história, trazendo consigo algumas orientações inovadoras e fundamentais;
novos objetos de estudo, novas abordagens, novos sujeitos históricos, novas perspectivas. O
retorno ao político significou repensar a História Indígena valorizando as dimensões políticas e
históricas construídas pelos mais diversos grupos indígenas no processo de contato com a
sociedade circundante portuguesa. Na documentação oficial, que dota de sentido o “outro”,
como diria Michel de Certeau, foi preciso rastrear as etnias indígenas abordadas, suas
localizações, suas ações de resistência diante do projeto assimilacionista do colonizador. Essa
metodologia permite visualizar as variadas práticas políticas indígenas. Assim,
Sendo assim, a nova história paraibana vem sendo elaborada essencialmente pelos
quadros das universidades presentes no estado, mas também influênciada pelas produções
acadêmicas de outras universidades do nordeste brasileiro; a partir de trabalhos monográficos,
dissertações de mestrado, teses de doutorado e pesquisas. Alguns temas já bastante trabalhados
são revisitados sob nova abordagem, como no que se refere à História Indígena. Só a título de
1497
DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L., CARVALHO, Maria Rosário G. de. “Os Povos
Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um esboço histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneira da (org.). História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 432.
1498
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá nas fronteiras do Sertão. Políticas indígena e indigenista no
antigo norte de Goiás, atual Tocantins. Goiânia: Kelps, 2006. p. 37.
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Fontes:
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1980.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L., CARVALHO, Maria Rosário G. de. “Os
Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um esboço histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneira
da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
IV– PAINÉIS
Coordenação:
Profª . Emanuele Tourinho Almeida (UNIT)
Prof. José Roberto dos Santos (UNIT/UFRN)
Profª. Maria Fernanda dos Santos (IHGSE/FSLF)
INTRODUÇÃO:
No final do século XIX até as primeiras décadas do século XX houve uma forte
contribuição dos imigrantes no Brasil. Uma delas foram as experiências anarquistas,
principalmente entre italianos, portugueses e espanhóis, que deixaram o seu legado de
vivências sobre a liberdade na luta contra as injustiças sociais, a favor do ideal libertário
contra o estado e qualquer forma de repressão.
A pedagogia libertária foi um meio de luta pela emancipação dos operários e
sublimação das injustiças sociais, de propagação das idéias anarquistas, assim como o teatro
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que, vinculado ao caráter pedagógico de tal proposta, contribuiu para a expressão dos
operários, para a criação coletiva e solidária.
Nessa relação com a arte e a educação sociais, encontramos vivências de liberdade
e contestação das injustiças como tentativas de estender ao mundo uma pedagogia que
entendia que todos os seres humanos eram detentores de um potencial de emancipação e
merecedores de vida social e moral mais justa.
a qual foi composta por pensadores anarquistas importantes para a área educacional do
movimento como João Penteado, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho entre outros.
Em meio a esse movimento pró-educação anarquista efervescente, principalmente
nas primeiras duas décadas do século XX no Brasil, houve diversas modalidades educacionais
e propostas para a construção e implementação de uma pedagogia libertária, com ajuda dos
sindicatos, dos pais, dos militantes anarquistas e dos simpatizantes da causa.
Foram pensadas modalidades de ensino diferente para suprir a demanda
educacional da classe operária da época, na qual a grande maioria era constituída de
analfabetos. Foram criados os Centros de Estudos Sociais, para dar acesso aos estudos para os
operários anarquistas. A criação desses centros era mais simples, pois só necessitavam do
espaço físico e de assinaturas de diversas revistas e jornais e a instalação de uma biblioteca
social. A educação do trabalhador adulto se dava por intermédio dos Centros de Cultura
Social, das conferencias, das bibliotecas, dos jornais, salas de leitura e etc, era um espaço
onde os militantes tentavam também mostrar aos demais operários a importância da revolução
para se alcançar uma organização social mais igualitária e justa trazendo leituras e discussões
sobre temas libertários.
A criação desses centros era feita de forma mais versátil, pois, por ter uma
finalidade diferenciada, a mesma foi construída sem os formalismos (por mais que reduzidos)
existentes na escola anarquista destinada ao ensino elementar.
A Universidade Popular foi uma tentativa ousada ,porém, breve (com duração
apenas de março a outubro de 1904) de se tentar complementar o quadro do ensino libertário,
sua proposta era de:
A educação básica formal para as crianças foi a luta principal, pois a necessidade
de uma educação livre do dogmatismo religioso e estatal era gritante para os anarquistas.
Foram fundadas diversas escolas, porém a manutenção das mesmas eram questões difíceis de
se administrar, pois as dificuldades financeiras e a perseguição cresciam cada vez mais.
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sempre todos podiam arcar com as despesas, com consciência disso, alguns pais chegavam a
ser isentos do pagamento.
Uma pratica muito comum nas escolas libertárias era a confecção de periódicos
onde os alunos escreviam sobre diversos temas, e os quais eram usados também para a
disseminação dos ideais anarquistas, inclusive a propaganda desses ideais utilizando-se de
meio de comunicação era bastante utilizado pelos sindicatos e militantes anarquistas.
Uma das primeiras experiências de escola libertária no Brasil foi a construção da
Escola Libertária Germinal, em São Paulo, porém sofreu diversos problemas, desde os
financeiros até os de falta de qualificação técnica dos envolvidos, percebia-se essa falta de
preparo pedagógico e de embasamento teórico nos panfletos e documentos os quais
apresentavam os objetivos da escola. Em 1904 não se tem mais noticias dessa experiência.
Mais ao final da primeira década do século XX pode-se identificar novamente um
grande empenho dos militantes em busca da construção de mais uma experiência pedagógica,
dessa vez com maior organização e conteúdo teórico e ideológico, foi criado assim um
Comitê Organizador da Escola Moderna de São Paulo, o qual programou a Escola Moderna
N° 1, a qual durou de 1912 á 1919 servindo de base para as futuras atividades educacionais do
movimento em São Paulo e foi dirigida por João Penteado1499 em quase toda sua existência
(menos no ano de 1917 no qual se ausentou da cidade, dando lugar ao militante anarquista
Florentino de Carvalho) no ano de 1919 diversas escolas libertárias foram fechadas por ordem
do Diretor Geral da Instrução Publica do estado de São Paulo, Oscar Thompson , com a
justificativa de que as mesmas descumpriam o artigo 30 da lei 1.579 o qual falava sobre as
normas gerais para a concessão de funcionamento de estabelecimentos de ensino particulares,
porém ignorando os artigos 31 e 32 da mesma lei os quais definiam a aplicações de penas
mais brandas antes da proibição definitiva do funcionamento escolar.
O movimento anarquista foi fortemente perseguido e reprimido tanto por parte do
estado (fazendo uso das forças de repressão, prendendo e assassinando os militantes
anarquistas), quanto por parte da igreja e pela pressão social que eram estimuladas por essas
instituições que propagandeavam informações distorcidas sobre o referido movimento. Como
exemplo trago um escrito publicado no jornal A Gazeta do Povo no ano de 1910, retirado do
1499
João de Camargo Penteado nascido em Jaú no estado de São Paulo no ano de 1877, falecido no ano de 1965
na capital do referido estado. Associou-se ao Centro Operário na cidade de Jaú, no qual se firmou como redator
de O Operário, após se mudar para capital e estabelecer contatos com os anarquistas ajudando na luta pela
educação libertária.
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realizou um espetáculo teatral em benefício das famílias das vítimas do Czar, sobre o
fuzilamento de operários russos. O dinheiro arrecadado foi enviado para a Rússia juntamente
com donativos conseguidos pelo jornal A Terra Livre, como meio de ajudar o sustento e
solidarizar com o sofrimento dessas famílias. O Teatro Social destacou também a importância
desse caráter solidário que era oferecido pelo teatro anarquista prestando apoio aos
companheiros presos na manifestação do Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
A estética libertária era bastante diferenciada. O Teatro anarquista, inicialmente,
não tinha como preocupação principal a caracterização dos seus personagens pelo seu figurino
ou pela imagem cenográfica, visto que muitas vezes as apresentações não eram feitas
freqüentemente em teatros propriamente ditos, mas em sedes das associações operárias ou em
lugares destinados à realização de conferências. Algumas vezes, sedia-se lugar em teatros
populares para a apresentação dos grupos libertários.
As peças não eram realizadas com o intuito do lucro, como em outras propostas
teatrais, e não havia a intenção em investir em roupas ou no cenário. Então, os figurinos,
muitas vezes, eram reutilizados e pouco se distinguia a roupa do patrão e do operário como
personagens. O cenário não havia grandes caracterizações também. Ao texto e à representação
dos atores é que era dada grande relevância. O conteúdo das mensagens e a clareza na
transmissão das idéias eram de vital importância no teatro anarquista devido ao seu caráter
didático e pedagógico. Eles discordavam da arte como profissão ou meio de lucro, ou a arte
pela arte. Defendiam uma estética a favor de um ideal, como forma de contestação e ato
político social, sempre passando uma mensagem intencional.
Algumas peças possuíam caráter histórico como, por exemplo, a peça 1° de Maio,
que retratou o dia em que os trabalhadores foram protestar por condições de trabalho mais
humanas e houve duro confronto com a polícia. Há algumas peças que retratam a revolta
contra o clero e a repressão da igreja, os ideais libertários femininos, os valores familiares, a
contestação das diferenças sociais e as injustiças contra o ser humano, sempre com um caráter
de ensinar alguma proposta anarquista em suas diversas temáticas.
O teatro reunia os operários e suas famílias, tornado-se um encontro social. Nas
peças os atuantes proporcionavam, freqüentemente, o diálogo com a platéia. Uma troca onde
o espetáculo mistura-se aos sentimentos e convicções dos ouvintes e estes se fazem presentes
influenciando as manifestações teatrais. Se na pedagogia libertária a relação entre professor e
aluno é linear, onde ambos aprendem mútua e coletivamente, sem hierarquias marcadas, no
teatro são retratadas com fidelidade essas propostas atuando de forma pedagógica e
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mostrando na prática esses valores embutidos. O teatro anarquista, então, mostrou que não só
o ator é possível de criação como também a sua platéia, tornando todos os seres igualmente
produtivos. Nesse ponto, o teatro social também foi um meio de valorizar a auto-estima
desses trabalhadores que não tinham voz nem autonomia na esfera social, criando um trabalho
autêntico e digno de admiração, sem relacionar status pré-definidos entre platéia-ouvinte e
atores-atuantes, tratando platéia e atores correlacionados na criação.
O teatro libertário tratava, então, das questões coletivas, das manifestações contra
as injustiças cometidas, da divulgação dos ideais anarquistas, do tratamento solidário prestado
aos que foram presos e suas famílias, ou aos que sofreram acidentes de trabalho, aos operários
que sofreram injustiças em qualquer lugar do mundo e que estivessem ligados à mesma causa.
Além disso, os fundos recolhidos eram prestados a construir escolas para os trabalhadores e
seus filhos, para sustentar periódicos e material de divulgação.
Hoje, há alguns remanescestes dessa causa, como o Teatro do Oprimido no Rio de
Janeiro, entre outros, que não se identifica diretamente com a antiga proposta da época
relatada do teatro anarquista, até mesmo por contextos históricos, mas guarda ideais
semelhantes de luta contra a opressão humana em suas diversas formas, ajuda solidária e
transformação da realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SOUZA, Dimas Antônio. O Mito Político no Teatro Anarquista Brasileiro. Rio de Janeiro:
Achiamé, 2003.
Este trabalho está vinculado ao projeto “História regional para as séries inicias da
escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão” desenvolvido pelo Grupo de
Pesquisa em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe (GPEH/DED/UFS). O
livro didático pode assumir diversos papéis no contexto escolar, podendo ser utilizado como
instrumento auxiliar, como fonte de pesquisa, como caderno de leitura, etc. Mas, na maioria
das vezes, é visto como a única ferramenta eficaz para ser utilizada em momento de
aprendizagem, sendo assim, se constitui em ferramenta fundamental no processo de
escolarização, já que faz parte do cotidiano de docentes e discentes no processo de ensino-
aprendizagem. Partindo-se do pressuposto de que o livro didático é composto por textos que
auxiliam, ou podem auxiliar, no desenvolvimento da leitura e da escrita, a progressão
referencial, categoria da lingüística textual, possui estratégias textuais que contribuem para a
elaboração de encadeamentos de informações que possibilitarão ao leitor/ouvinte mecanismos
para a compreensão e produção de sentidos. Desta forma, este trabalho teve por objetivo
analisar como os artigos, estratégias de progressão referencial, aparecem em livros didáticos
de história para as séries iniciais. Com a análise percebeu-se que a progressão referencial – a
retomada de elementos – é realizada de maneira similar nas três primeiras séries do ensino
fundamental e que tais estratégias são utilizadas com freqüência e atuam na criação de elos
significativos entre as informações dadas e as novas inseridas.
INTRODUÇÃO
1500
Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Sergipe, bolsista Pibic/FAPITEC e membro do
Grupo de Pesquisa em Ensino de História (GPEH/DE/UFS).
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Este trabalho faz parte do projeto “História regional para as séries iniciais da
escolarização básica: o texto didático em questão”, desenvolvido acerca de um ano pelo
Grupo de pesquisa em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe
(GPEH/DED/UFS). Possui como objetivo observar como as estratégias de progressão
referencial realizadas através de artigos são utilizadas pelos produtores de livros didáticos de
história.
O livro didático é considerado por muitos docentes como um instrumento
didático-pedagógico essencial no desenvolvimento de suas atividades em sala de aula, é
considerado, na maioria das vezes, como a ferramenta base para a seleção e planejamento de
conteúdos, neste caso da disciplina de história.
Desta forma, podemos dizer que o livro didático é o principal, senão o único
material de apoio às aulas. Além da sua importância enquanto ferramenta didática, este se
encontra disponível para as instituições de ensino via financiamento público. Sendo assim,
possui relevância não só como material de apoio didático, mas também enquanto mercadoria.
O livro didático pode desempenhar várias funções além das expostas acima. A
professora Circe Bittencourt costuma afirmar que o livro didático é um objeto cultural
complexo de múltiplas facetas e que possui difícil definição, porém observa que é possível
identificá-lo pela familiaridade de uso, já que é um dos instrumentos mais usados no cotidiano
escolar.
A familiaridade com o uso do livro didático faz que seja fácil identificá-lo e
estabelecer distinções entre ele e os demais livros. Entretanto, trata-se de
objeto cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se
caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação
e consumo. Possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das
condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas
diferentes situações escolares. É um objeto de “múltiplas facetas”, e para sua
elaboração e uso existem muitas interferências. (BITTENCOURT, 2004, P.
301)
O sentido de um texto não está relacionado a uma junção de frases sucessivas que
o constituem, mas depende de aspectos lingüísticos que quando sistematizados contribuem
para a organização do texto, tanto para a coesão quanto para a coerência.
A coesão está ligada às relações que ocorrem entre elementos da superfície
textual, isto é, aspectos lingüísticos que dão ao texto uma organização e uma progressividade.
Desta forma, coesão e coerência são processos distintos, mas ao mesmo tempo são
elementos essenciais aos dois movimentos do texto, o de retrospecção e o de prospecção, que
são realizados em sua maioria por recursos coesivos que por sua vez são determinantes para a
construção dos sentidos, logo, para a construção da coerência (cf. KOCH:2004).
Compreendida a coerência como responsável pelo sentido do texto e a coesão
como sua expressão na superfície do texto, a continuidade, fator conseqüente da coesão e da
coerência, está ligada à necessária retomada de elementos no decorrer do texto. Diz respeito à
unidade do texto, visto que um dos aspectos que contribuem para que um texto seja percebido
em sua unicidade é a permanência em seu decorrer de referentes constantes e que possuem
papel central na construção de sentidos, uma vez que uma seqüência que trate de diferentes
assuntos a cada passo, certamente não será considerada como um texto (cf. COSTA VAL:
1999).
Essa retomada de referentes no texto, no que diz respeito à coerência, ela se
processa através da remissão de conceitos e idéias. Em relação à coesão ocorre através do
emprego de recursos lingüísticos como artigos, pronomes, expressões nominais, etc.
Os artigos são fatores de coesão referencial, ou seja, atuam na superfície textual
como elementos de remissão e fornecem ao leitor/ouvinte instruções de conexão entre os
diversos referentes presentes no texto e que constituem aspectos essenciais na construção dos
sentidos.
É preciso que o texto retome seus elementos conceituais e formais, porém, esse
procedimento não pode se limitar a simples repetição de fatores, pois, é por meio do processo
de remissão que os referentes presentes no texto são trabalhados, ou seja, é através desse ato
que novas informações são atribuídas aqueles que já se encontram presentes, são esses
acréscimos de conceitos, informações que fazem com que o texto progrida, a progressão é
percebida pela relação estabelecida entre a informação dada e a nova.
A partir do exposto, podemos dizer que os artigos se constituem em estratégias de
progressão referencial. A progressão referenciação ou referenciação é uma atividade
discursiva que se processa por meio da retomada de referentes textuais, ou seja, ocorre através
da construção e reconstrução de objetos-de-discurso. A partir dessa perspectiva, a
interpretação de uma expressão não consiste em identificar um termo lingüístico, um
antecedente, mas em estabelecer relações de sentido com as informações que já foram
expressas no texto.
Podemos, a partir do que foi exposto, entender como ocorre a reconstrução ou
manutenção no modelo textual, isto é, a progressão referencial.
1501
A pretensão era de realizar a análise em uma coleção completa de livros didáticos de história, mas devido a
dificuldades, não foi possível conseguir o livro referente a 4ª do ensino fundamental.
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(3) Cerca de 100 anos atrás, as famílias eram, em geral, bem mais
numerosas que as de hoje. (EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 28) [1ª]
(4) Quando os portugueses chegavam, muitos estavam maltratados, sujos
e doentes, devido à longa viagem. Inicialmente os índios os recebiam e os
alimentavam. (EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 18) [3ª]
Outro ponto a ser observado é que geralmente os artigos definidos são utilizados
de maneira anafórica, ou seja, faz remissão à informação que precede no texto, que já está
dada, porém, em muitos casos, nos livros analisados, os artigos definidos apareceram de
maneira catafórica, isto é, remete a informação subseqüente. Esse fator pode ser explicado
porque na maioria dos casos o texto possui um referente central, como, por exemplo, o índio,
o português, etc. e há a necessidade de que alguns novos objetos sejam inseridos para
complementar o sentido, porém, são objetos de caráter passageiro que geralmente são citados
para criar uma cadeia de sentidos, por isso, são elementos que não permanecem na memória
discursiva.
A partir dos dados expostos no quadro percebe-se que houve um certo equilíbrio
na utilização de anáforas e catáforas, apenas na 1ª série que existiu uma variação maior.
Com os dados apresentados nos dois quadros expostos podemos inferir que as estratégia
de referenciação, os artigos, foram utilizadas com freqüência nos textos dos livros analisados,
no caso livros destinados as séries iniciais. É importante ressaltar que os autores dos livros
analisados não expressam em sua proposta/apresentação inicial uma preocupação com o uso
ou não das estratégias de referenciação. O que se percebe é que eles escrevem baseando-se
numa linguagem mais acessível para crianças, isto é, de acordo com um vocabulário
conhecido por elas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. 20 ed. São Paulo: Contexto, 2005.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
I Congresso Sergipano de História: História e Memória
1142
ANPUH/SE & IHGSE
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e Textualidade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
A história da educação das mulheres vem nos mostrando que, inicialmente, estas
só aprendiam o entendido como “necessário” para elas, principalmente as artes domésticas,
pois o importante era cuidar do lar, dos filhos e do marido. Este pensamento permeou por
muito tempo as concepções da nossa sociedade em relação ao papel social das mulheres,
papel que veio (e ainda vem) se modificando, entre outras possibilidades, a partir das lutas
travadas pelas próprias mulheres. Logo, entendemos que:
A partir de tais objetivos, ficam claras as lutas encampadas pela UUF, como a
participação ativa no II Congresso Internacional Feminista, organizado pela Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1931, evento presidido por Bertha Lutz, também
presidente da FBPF, como já dissemos, e considerada pioneira nas lutas feministas no Brasil.
Porém, é importante sinalizar que ao lado dela outras mulheres se destacaram em prol da
emancipação feminina, como Carmen Velasco Portinho, Orminda Bastos, Mirtes de Campos,
Natércia da Silveira e Anna Amélia Queiroz de Mendonça que reivindicaram não apenas
que as mulheres tivessem acesso ao ensino superior, mas que nele permanecessem, sendo
todas membros das duas entidades.
A investigação apontou que neste Congresso foi reivindicada a construção de
Pavilhão feminino na Casa do Estudante do Brasil. Assim com o término da participação na
pesquisa como bolsista e a partir dos resultados obtidos, continuamos nossa investigação,
sobre esse Pavilhão visando elaborar uma monografia como trabalho final do curso de
graduação.
Nos anos 60, a entidade ainda conseguiu ampliar sua área de atuação, ao
receber a doação de um terreno do empresário Conrado Mutzenbecker,
amigo de Anna Amélia. Ficava na Urca [bairro do Rio de Janeiro] e abrigou
a moradia feminina, que funciona até hoje. (1996:32)
Agrônomos
Engenheiros Especializado Superior
Mecânicos
Engenheiros 282 2 42 _____
eletricistas
Engenheiros 23 1 _____ _____
Arquitetos
Químicos _____ _____ _____ _____
Industriais
Verificamos com esses dados a importância da luta das mulheres em busca de sua
inserção e permanência nos diferentes espaços sociais, em especial, no ensino superior.
Para concluir, consideramos importante apresentar um pouco mais sobre Anna
Amélia Queiroz de Mendonça, que durante muito tempo foi presidente da Casa do Estudante
do Brasil, chegando a atuar como vice-presidente da Federação Brasileira Pelo Progresso
Feminino.
desta nunca se deu por intermédio da escola, e sim por cinco preceptoras: uma brasileira, duas
inglesas e duas alemãs. Foi através dessas preceptoras que as filhas mais velhas desta família
aprenderam fluentemente francês, inglês e alemão, “estudaram música e realizaram todos os
estudos primários e secundários.” Com 15 anos ela lança seu primeiro livro de poesias –
Esperanças. Desde o início se envolveu com a criação da Casa do Estudante do Brasil, que se
destinava a apoiar alunos carentes que se mudavam para o Rio de Janeiro. (SCHUMAHER e
BRAZIL, 2000, CANEN, 2002)
Por fim, a participação na pesquisa mencionada e a monografia, em andamento,
despertaram a vontade de participar desta história, como narradoras de uma memória do
movimento feminista e sua atuação na luta pelo direito à educação das mulheres, seu acesso e
permanência no ensino superior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_________. O Fundo Federação Brasileira pelo Progresso: uma fonte múltipla para a história
da educação das mulheres. Acervo: revista do Arquivo Nacional, v. 18, n. 1-2
(jan./dez..2005). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
CANEN, Ana. Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça. In. BRITTO, Jader de
Medeiros, FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. (Orgs). Dicionário de educadores
no Brasil. 2. ed. aum. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ/ MEC-Inep-Comped, 2002, p:83-8.
HAHNER, June Edith. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no
Brasil, 1850 - 1940. Tradução de Eliane Lisboa; apresentação de Joana Maria Pedro.
Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.
MENDONÇA, Anna Amélia Queiroz de. Ana Amélia, alma de cristal. Belo Horizonte:
BDMG Cultural, 1996.
NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU – Editora
Pedagógica e Universitária; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974.
PINTO, Céli Regina Jardim.Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
PORTINHO, Carmem. Por toda a minha vida/ Carmem Portinho. Depoimento a Geraldo
Edson de Andrade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997. p.275-296.
ACERVO E FONTES
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I Congresso Sergipano de História: História e Memória
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ANPUH/SE & IHGSE
A história do ensino Superior Público em Itabaiana, cidade pólo do agreste de Sergipe reflete
o atual momento do cenário político educacional do país na ultima década. Neste contexto a
partir de 1997 tem início à implantação da experiência de Ensino Superior Público nesta
região, a partir das atividades do Projeto de Qualificação Docente – PQD, o que resultou anos
depois, na efetivação desta modalidade de ensino com inauguração e efetivação do Campus
Universitário da Universidade Federal de Sergipe em Itabaiana entre 2006 e 2007. A
expectativa de disputa relacionada a esse acontecimento cultural se converte no objetivo de
estudo desta pesquisa.
uma educação medieval latina com elementos gregos, a qual preparava os estudantes para que
no futuro freqüentassem a Universidade de Coimbra em Portugal, pois a mesma acolhia os
filhos de Portugueses que nasciam na colônia.
Essa Universidade confiada à ordem Jesuítica, no século XVI, tinha como uma
das missões unificarem a cultura do Império Português. A Universidade de Coimbra em
Portugal, foi a “primeira Universidade”, tendo como graduação Teologia, Direito Canônica,
Direito Civil, Medicina e Filosofia, durante os três primeiros séculos da nossa História mais
de 2.500 jovens nascidos no Brasil.
No Período Imperial, Assim que a família real chegou ao Brasil, Dom João VI
recebeu a solicitação dos comerciantes locais para criar uma Universidade no Brasil, os
comerciantes estavam dispostos a colaborar com uma significativa ajuda financeira. Ao em
vez de Universidade, Salvador passou a sediar os cursos de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia.
Durante o período regencial, em 1827 foi criado o curso de Direito em Olinda e São Paulo.
Apesar, das várias propostas apresentadas no período Imperial e de vinte e quatro
projetos, não foi criada uma Universidade no Brasil. Talvez devido ao alto conceito da
Universidade de Coimbra, o que dificultou a substituição da mesma. Assim, os novos cursos
superiores que se estabeleceram no país eram vistos como substitutos das Universidades.
As influências positivistas dos oficias que proclamaram a República, foi um fator
que contribuiu para atrasar a criação da Universidade no Brasil, pois estes tinham uma visão
de instituição ultrapassada para as necessidades do novo mundo. Por tanto, eram a favor de
cursos técnicos profissionalizantes.
A primeira Universidade Brasileira foi criada em 1920, data próxima das
comemorações do centenário de Independência. Esta foi fruto do decreto n° 14.343. A
Universidade no Rio de Janeiro, reunia faculdades profissionais pré existentes sem oferecer
uma alternativa diversa do sistema, ela era mais voltada ao ensino do que a pesquisa elitista,
conservando a orientação profissional dos seus cursos e a autonomia das faculdades.
Comentava-se na época, que uma das razões da implantação da mesma na capital do país,
devia-se a visita que o Rei da Bélgica, faria ao país por conta do centenário de Independência.
No entanto, o Brasil necessitava de uma instituição apropriada, ou seja, uma Universidade.
O Ensino Superior em Sergipe, acontece de forma tardia se comparado a outros
Estados brasileiros, caracterizado pela disparidade regional. Nessa perspectiva durante todo o
século XIX e meados do Século XX Sergipe, ficou na dependência das Faculdades de Direito
Ribeirópolis, Carira, Moita Bonita, Santo Amaro, Frei Paulo, Pedra Mole, Campo do Brito e
São Domingos. Sendo que a maioria dos estudantes residia em Itabaiana.
Pode-se ressaltar que o PQD I foi uma experiência importante para a expansão do
Ensino Superior público em Itabaiana, contribuindo dessa forma para a democratização do
ensino superior em Itabaiana e região. O Projeto de Qualificação Docente, 2002, da turma de
Ciências Biológicas formou 17 alunos. E a turma de Matemática formou 18 alunos.
O PQD II iniciou suas práticas pedagógicas com os mesmos objetivos das
atividades do PQD I. Segundo Relatório do PQD II, esse possibilitou a oferta de novos cursos
entre eles: Educação Física, História, Inglês, Pedagogia e Geografia, ao todo foram 200 vagas
para os professores da rede municipal e estadual que ainda não tinham formação superior. O
Projeto de Qualificação Docente, 2002, da turma de História formou 30 alunos, a turma de
Letra/Português/Inglês 23 alunos, a turma de Pedagogia 39 alunos, da turma de
Letras/Português 21alunos.
Já o PQD III iniciou suas aulas no ano de 2003. O mesmo possibilitou a oferta de
145 vagas, distribuídas entre os cursos de: Português, Inglês, Ciências Biológicas, Matemática
e Educação Física. Percebe-se a retirada de três cursos incorporados no PQD II, entre eles:
História, Pedagogia e Geografia.
É importante salientar que o PQD III integrou ao Pólo de Itabaiana novos
municípios, entre eles: Areia Branca, Japaratuba, Malhador, Pedra Mole, Pinhão, Rosário do
Catete e São Domingos, entretanto, ainda a maioria das vagas preenchidas eram por alunos de
Itabaiana.
A experiência do PQD, em suas três versões, segundo relatório da equipe do Pólo
de Itabaiana, ajudou a justificar a escolha do pólo desta cidade como uma das áreas viáveis
para implantação de um Campus da Universidade Federal de Sergipe no interior do Estado,
viabilizando o processo de expansão e democratização do ensino superior na região do
Agreste de Itabaiana, além de contribuir com o desenvolvimento educacional do Estado.
comprometimento ainda maior dos professores, a perspectiva é que a cidade seja reconhecida
em outros estados, não somente pela força comercial de varejo, como também no termo
educacional.
A Universidade contribuiu para podar a distancia para formar estudantes em nível
superior, ate pela dimensão da mesma, sabemos que ela simboliza a modernidade,quando não,
ela mesmo traz essa modernidade. Sabemos que a escolha da cidade de Itabaiana para ser sede
do campus da Universidade Federal de Sergipe tem a ver com questões política a própria
prefeita de Itabaiana e outros deputados. O funcionamento do campus representa uma grande
conquista para a cidade, agora muitas pessoas que não conhecem itabaiana passaram a
conhecer, sem contar nas expectativas em termos de mudanças sociais, econômicas,
educacionais e até mesmo culturais.
A UFS em Itabaiana, que recebeu o nome de Campus Profº Alberto Carvalho, foi
inaugurada no dia 14 de agosto de 2006, um verdadeiro presente para cidade, que no dia 28 do
mês e ano completaria 118 anos de emancipação política.
O imóvel foi doado pela Prefeita Municipal Maria Mendonça, com aprovação da
Câmara Municipal de Vereadores da cidade no ano de 2006. A sede doada está situada na
Avenida Felisbelo Machado Menezes, esquina com Rua Percílio Andrade, Bairro Sítio Porto,
onde funcionava o antigo CAIC (Centro de Assistência a Infância e Adolescente).
Inicialmente o Campus ofereceu dez cursos, Letra/Português, Geografia, Ciências
Biológicas, Química, Sistema de Informação, Administração Ciências Contábeis, Física,
Matemática e Normal Superior. Acredita-se que posteriormente outros cursos poderão ser
incorporados, isso dependerá da demanda local e da UFS. Relacionado ao corpo docente
podemos perceber que todos os professores são qualificados para o exercício de suas funções.
A maioria são doutores e os demais mestres.
Qualquer universidade traz benefício para o município, é claro que a gente
entende que no caso da UNIT tem um problema, refiro-me ao pagamento da mensalidade,
talvez dificulte um pouco para os pais de família, porém se não é a vinda da Universidade
Tiradentes UNIT para Itabaiana talvez muitos pais não tivessem seus filhos formados em casa
hoje, não teríamos uma serie de professores formados que contribuíram para melhorar a
qualidade do ensino do município. A grande vantagem da Universidade Federal de Sergipe é
porque não se paga, na verdade é um caso que se pleiteia há anos e mais anos. A chegada, da
Universidade Federal de Sergipe contribuirá para crescer muito o município porque com ela
há a condição de desenvolver e até porque isso traz renda para o município porque as cidades
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prefeituras regionais, para fazer uma mobilização social. Em Itabaiana montamos tendas para
o recolhimento de assinaturas. Conseguimos colher entre os municípios de Itabaiana e região
vinte quatro mil assinaturas, as quais foram apresentadas em Brasília, juntamente com um
relatório, que foi exitoso para essa conquista. Outra dificuldade ainda maior foi à compra do
terreno ao lado para a ampliação da UFS. Esse pertencia a dois irmãos herdeiros e rivais,
residente no Rio de Janeiro. Tive que me dirigir ao Rio com meu assessor para convencê-los a
vender o mesmo. De início os oposicionistas, o próprio deputado federal José Carlos
Machado não se manifestou a favor do projeto. Para a oposição eu estava debochando da
sociedade Itabaianense. Quando percebeu que era inevitável, o mesmo usou a tribuna para a
aprovação da vinda da UFS para Itabaiana. Até então o mesmo estava contra.
Outra versão política aponta os nomes de outras pessoas que colaboraram para
trazer o campus da UFS para Itabaiana. Entre eles, a participação do deputado federal José
Carlos Machado, o qual elaborou uma emenda para excução do projeto de expansão do ensino
superior para as demais cidades do Estado, e o deputado federal de Minas Gerais, relator da
Lei de Diretrizes Orçamentária LDO Gilmar Machado.
José Carlos Machado foi à pedra preponderante para a vinda da UFS para
Itabaiana, ele estava no lugar certo e na hora certa. Por ser filho da terra ajudou bastante para
este fato acontecer. Claro que, sem o governo federal Luiz Inácio Lula da Silva nada teria
acontecido, é importante recordar que esse pleito aconteceu há muitos anos especialmente em
1988, pelo então deputado federal José Queiroz da Costa o qual não obteve êxito. O deputado
José Carlos Machado apresentou uma jogada de mestre que foi exitosa para a implantação do
Campus da UFS na cidade. Claro que todo mundo depois do filho feito quer ser o padrinho. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso feito na cidade, disse que não houve um
padrinho, parabenizou a todos colaboradores para a execução desse projeto. Machado está
muito satisfeito com esses resultados, caso saísse da política, sairia consciente de ter trazido
para Sergipe especificamente Itabaiana sua terra natal, um dos maiores projetos de todos os
tempos.
A corrida acirrada com o grupo partidário do ex-prefeito Luciano Bispo de Lima,
e a atual governante do município Maria Vieira de Mendonça no ano de 2005 e 2006
pleiteavam-se entre si para conseguir a efetivação do ensino superior gratuito em nossa
cidade. A presente prefeita com seu grupo de deputados federais, Jackson Barreto, Heleno
Silva e Eduardo Amorim contribuíram com a mesma. Ela com seu esforço conseguio um
levante de assinaturas entre estudantes e a população e apresentou em Brasília.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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jogos, então ele tinha uma relação muito estreita com a terra. Quando surge a idéia do
Campus de Itabaiana, então essa idéia começou a florir e aí que termina com a escolha do
nome dele, que teve a professora Thetis também, mas terminou que o conselho da
Universidade, de forma unânime, isso eu preciso deixar bem registrado que eu compareci no
dia da escolha, mas tenho que fazer uma referência que o nome dele foi aclamado
unanimente, todos votaram no nome dele e infelizmente eu não consegui gravar os votos
porque teve em torno de 22 conselheiros, acho que uns 6 ou 7, fizeram questão de usar da
palavra para enaltecer a escolha do nome, realmente eu não tenho isso registrado, mas
participei, de forma que o conselho da Universidade foi unânime. Infelizmente, isso precisa
ser registrado também, aqui em Itabaiana houve alguns segmentos, que não vale a pena
citarem nomes, segmentos até expressivos que não queriam o nome, lamentavelmente isso é
verdade, eu to dizendo isso porque eu participei de todo processo, mas eu acho que fez justiça
ao nome é orgulho, que não é meu, mas sim de todo itabaianense. E fica na minha visão
perpetuando o nome de uma pessoa que desde sua origem, Itabaiana, humilde, saiu daqui
criança, foi venceu na vida e chegou aonde chegou. É reconhecido em todo lugar, em todo o
campo de atuação seja na poesia, na crítica, no cinema, nas artes de um modo geral e pra mim
como genro, eu fico muito orgulhoso em saber que foi feita a maior justiça com relação ao
nome dele no Campus da Universidade de Itabaiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FONTES ORAIS
Ângelo Greyck Oliveira dos Santos, estudante do Campus Universitário Professor Alberto
Carvalho, 22.11.2007, entrevistado pelos autores.
Kelliton Cruz Campos de Oliveira, gerente das Lojas Insinuante e estudante do Campus
Universitário Professor Alberto Carvalho, 23.11.2007, entrevistado pelos autores.
2. FONTES ESCRITAS
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ALMEIDA. Emanuele Tourinho. “Os 150 anos de Aracaju sob o olhar das Universidades”.
VII Prêmio Universitário de Monografias da UNIT. Aracaju: UNIT, 2006. Pp. 97 a 107.
CRUZ, José Vieira da. Juventude e Identidade Social: Experiências Culturais dos
Universitários em Aracaju/SE. (1960 – 1967). Aracaju: UFS, 2003 (Dissertação de Mestrado)
DANTAS, José Ibarê Costa. “O Estado autoritário e a ascensão dos empresários urbanos
(1964/82)”. IN: História de Sergipe República: (1889 – 2000). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro 2004.
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MELO. Maria Teresa Leitão de. Formação dos Professores da Educação Básica. In: Revista
Eletrônica Print By. FUNERY. Ano XX nº 88, dezembro 1999.
SANTOS, Tavares Breno. A Trajetória de Vida do Prof. Alberto Carvalho. (1932 – 2002).
UNIT 2007 (monografia).
TEIXEIRA, Anísio. Ensino Superior no Brasil: Analise e interpretação de sua evolução até
1969. Rio De Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1989.
Esse trabalho tem o intuito de realizar uma análise historiográfica de vinte manuais didáticos
regionais avaliados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2007).
Tal apreciará concepções historiográficas, partindo do exame de alguns dos principais
elementos da narrativa: sujeitos históricos, periodização e cenários. Entre os resultados
encontrados nesse estudo, constatamos que os personagens individuais apresentam uma baixa
ocorrência, sendo superados pela coletividade e as ações coletivas. Também verificamos que
a chamada periodização tradicional é a mais freqüente. O recorte escolhido ainda é aquele que
divide o tempo em Colônia, Império e República. Em relação aos cenários escolhidos, os
dados revelam uma mescla entre História nacional e regional, com o predomínio das
experiências municipal e estadual. Esse trabalho faz parte do projeto “História regional para
crianças: o texto didático em questão”, desenvolvido com alunos de iniciação científica dos
cursos de História e Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe e financiado pelo
PIBIC/UFS/CNPq, sob a orientação do Prof. Itamar Freitas (DED/UFS).
INTRODUÇÃO
No campo dos historiadores (por formação inicial) notamos diversos trabalhos que
tratam a historiografia como o estudo da produção histórica e um conjunto de obras escritas
sobre um tema histórico. Com esse sentido, a Historiografia é a realização de uma "história da
história". O termo designa o processo de redação de um texto histórico e, simultaneamente, o
produto deste processo, a saber, a narrativa histórica.
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Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Pesquisas em Ensino de
História ─ GPEH/DED/UFS. e-mail: kleberrsantos2004@hotmail.com
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I Congresso Sergipano de História: História e Memória
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têm despertado o interesse de muitos estudiosos, e essa tendência também começa a crescer
no Brasil.
Mesmo com tal mudança de perspectiva, vê-se que a grande maioria dos estudos
consideram os livros didáticos apenas como vetores ideológicos e culturais, sem serem
abordados como instrumentos pedagógicos e didáticos. Circe Bittencourt, por exemplo,
aponta que dentre os livros didáticos, os de História são os mais pesquisados no Brasil. Indica
também que grande parte das análises feitas sobre essas obras se refere ao exame dos
conteúdos numa perspectiva ideológica e aos discursos com a intenção de identificar a
manutenção de estereótipos sobre grupos étnicos. (cf. BITTENCOURT, 2004, p. 304-305).
Todas as informações acima citadas servem para completar nosso entendimento
sobre o ineditismo do trabalho que desenvolvemos e transmitimos aqui neste trabalho. Nas
antigas obras de história da historiografia, não se localizam trabalhos que considerem os
escritos didáticos, respeitando seus traços dominantes e os tratando como uma literatura
historiográfica específica.
Não existem pesquisas, nem mesmo no âmbito dos trabalhos mais recentes sobre
manuais didáticos, que contemplem uma análise historiográfica sobre as coleções de livros
didáticos de História regional, avaliadas e distribuídas pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD 2007).
Nossa pesquisa está inserida nas atividades desenvolvidas no âmbito do Grupo de
Pesquisas em Ensino de História (GPEH), dentro do Projeto “História regional para as séries
iniciais da educação básica no Brasil: o texto didático em questão”, sob a orientação do
professor Itamar Freitas, no período de agosto de 2007 a janeiro de 2008. Tal projeto tem por
objetivo analisar a escrita didática de livros de história regional no Brasil e as representações
de professores e alunos sergipanos sobre o livro didático de história, visando à produção de
uma coleção de livros didáticos de História de Sergipe para as séries iniciais.
Metodologia
A análise foi realizada sobre uma amostra de vinte títulos de uma população
formada por 27 coleções de livros didáticos. A escolha foi aleatória, sendo determinada pela
ordem de chegada dos livros, adquiridos nas editoras em São Paulo (o projeto prevê o exame
de todas as coleções). Os livros enfocam os estados do Rio Grande do Sul, São Paulo,
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Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Santa Catarina e foram produzdos pelas editoras Ática,
Base, FTD, Scipione e Brasil, como se pode observar no quadro abaixo.
Títulos Regiões
FERNANDES, Martha Maria Serrano. Contemplando a Bahia
Bahia: história. 3ª série. Curitiba: Base, 2004.
NASCIMENTO, Roseni R. C. São Paulo – interagindo com a São Paulo
história. São Paulo: Editora do Brasil
CABOCLO, Eliana. et al. Gente do Rio, Rio da Gente: Rio de Janeiro
História. São Paulo: Editora do Brasil, 2001.
NEVES, Luiz Guilherme Santos. O Espírito Santo. História do Espírito Santo
Estado do Espírito Santo para o Ensino Fundamental. Curitiba:
Base, 2004.
CORRÊA, Marlene. Ceará: história para a construção da Ceará
cidadania. São Paulo: FTD, 2004.
NASCIMENTO, Roseni R. C. et al. Goiás – interagindo com a Goiás
história. São Paulo: Editora do Brasil.
GARCIA, Leônidas Franco; MENEZES, Sônia Maria dos Goiás
Santos. História de Goiás para todos. Editora Scipione.
TUMA, Magda Madalena Peruzin. Viver e descobrir: História: Paraná
Paraná. São Paulo: FTD, 2001.
TEIXEIRA, Francisco M. P. História: Pernambuco. São Paulo: Pernambuco
Ática, 2004.
MACIEL, Laura Antunes. O Mato Grosso e sua história. Mato Grosso
Curitiba: Base, 2004.
SIEBERT, Célia. História do Estado do Rio de Janeiro. São Rio de Janeiro
Paulo: FTD, 2006.
PAIVA, Renata. História: Pará. São Paulo: Ática, 2004. Pará
SOUZA, Zélia Paes. et al. História do Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do
FTD. Sul
TEIXEIRA, Francisco M. P. História: Minas Gerais. São Minas Gerais
Paulo: Ática, 2004.
SOURIENT, Lílian. et al. Santa Catarina: Interagindo com a Santa Catarina
Resultados e Discussões
O quadro acima exibe os marcos finais e iniciais de cada período trabalhado nos
livros didáticos regionais. Esses marcos são anos e séculos importantes, ações humanas
escolhidas para delimitar e analisar a sucessão temporal, fatos históricos significantes para a
História de cada país, cidade, estado ou região.
A identificação das datas, fatos e ações humanas importantes de cada período
possibilita distinguir periodicidades, organizar os acontecimentos no presente e no passado e
relacionar as experiências locais e regionais com as nacionais e mundiais. (BRASIL, 1997, p.
36-37).
O período compreendido entre o século XVIII e XIX tem 32% de freqüência,
enquanto o que abrange o século XIV ao XVII possui 29%.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em relação aos cenários escolhidos, os dados revelam uma mescla entre História
nacional e regional, com a prevalência das experiências municipal e estadual sobre as demais.
Os resultados obtidos ainda são parciais, mesmo assim compreendemos que o
estudo aqui desenvolvido pode auxiliar a identificar algumas singularidades da história escrita
e ensinada no Brasil.
Desejamos que esse trabalho consiga ser de grande valia não apenas no universo
acadêmico, mas também seja indispensável para os professores e alunos das séries iniciais do
ensino básico do Brasil e particularmente de Sergipe, Estado ainda tão carente em pesquisas
sobre os livros didáticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasil, 2001.
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Disponível em: <www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a12v30n3.pdf> Acesso em: 15 dez. 2007.
CORRÊA, Marlene. Ceará: história para a construção da cidadania. São Paulo: FTD, 2004.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
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DIEZ, Albani Galo. Segredos da Bahia: história. São Paulo: FTD, 2001.
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história e cultura. Curitiba: Base, 2004.
GARCIA, Leônidas Franco; MENEZES, Sônia Maria dos Santos. História de Goiás para
todos. São Paulo: Editora Scipione, 2003.
MACIEL, Laura Antunes. O Mato Grosso e sua história. Curitiba: Base, 2004.
NASCIMENTO, Roseni R. C. et al. Goiás – interagindo com a história. São Paulo: Editora do
Brasil, 2004.
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Brasil, 2004.
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O negro sempre esteve em constantes lutas durante sua história para superar as
desigualdades e preconceitos contra seus costumes, sua cultura e o seu povo. A luta contra a
escravidão foi apenas um dos marcos na sua luta contra essas adversidades e na sua busca por
uma relação de equidade com as outras vertentes étnicas, será preciso muito mais do que ser
livre para se ter esse objetivo alcançado, pois as menções racistas em aferência ao negro
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1503
O livro Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 /
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005, abre espaço para discussões referentes ao negro e a escola, a lei 10/639/03 e a como a
educação é importante nesse processo de luta contra preconceitos.
1504
Idéia defendida por Gilberto Freyre no livro Casa Grande & Senzala, Vê em: : FREYRE, Gilberto. Casa
Grande e Senzala. 29. ed., Rio de Janeiro: Record. 1992.
1505
MUNANGA,Kabengele, GOMES,Nilma Lino.Para entender o negro no Brasil de
hoje:Histórias,Realidades,Problemas e Caminhos. São Paulo:Global, Ação educativa.2004. Esse texto desvela
as constantes lutas do movimento negro e a sua importância nesse processo de luta contra o preconceito racial.
descendentes,principalmente por via da educação, tento em vista que nos dois períodos pós
abolição(1889-1937,1945-1964),se notará que estas instituições desenvolveram atividades
mais voltada para alfabetização e para o ensino fundamental , além da luta contra a exclusão
desse negro a ter o acesso a escola,já no período que vai de 1978 e que se segue aos nossos
dias atuais observamos a luta em favor da tomada de medidas afirmativas como por exemplo
a adoção de cotas(tema que anda muito em pauta atualmente),além de primar por políticas
públicas educacionais que estejam em favorecimento do negro1506, tendo em vista que a
educação é um ponto que é considerado chave para o movimento nessas lutas e que é um
grande aliado nesse processo de superação de preconceitos e recuperação da auto-estima e da
imagem desse negro.
Tendo em vista toda essa situação, política, econômica, social e cultural, o meio
escolar será visto para o negro não só como um ambiente de aprendizado e conhecimento,
mas como uma via para que se possa conseguir uma ascensão social, para o movimento negro
a educação além de oferecer possibilidade desse negro enlencar-se socialmente, ela se mostra
bastante importante na luta contra o racismo e outros tantos estigmas relacionados ao negro. A
escola então seria um meio pelo qual, se poderia combater a construção de toda essa visão
preconceituosa relacionada a nossos afro-brasileiros na medida em que se tinha a inclusão do
ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos dessas instituições de
ensino, adequando tais a esse processo de combate a essas diferenças raciais, para que a partir
do estudo e aprendizagem desses conteúdos se possa ir esfacelando os antigos conceitos,
muitos deles eurocentristas e preconceituosos sobre o negro incutidos em nossa cultura, com
isso objetiva-se que se possa engendrar no futuro uma relação mais harmoniosa entre as
etnias e que se inicie um processo de inclusão social onde este afrodescente passe a ter seu
espaço e a se reconhecer dentro do cerne social, esteja em total consonância e interação com o
que acontece dentro do meio.
São por todos esses fatores que o movimento negro desenvolverá uma luta
ferrenha e pungente junto aos órgãos governamentais, para que se instucionalizar-se no ensino
temas relacionados à África e a cultura afro-brasileira nas escolas de todo o país. Os
resultados dessas lutas e dessa insistência do movimento negro só seriam alcançados em
março de 2003 quando foi sancionada a lei 10.639/03, tornando assim obrigatório o ensino da
1506
DOMINGUES, Petrônio, Movimento negro e educação: alguns subsídios históricos. In: Estudos Africanos,
História e Cultura Afro-Brasileira: Olhares sobre a Lei 10.639/03. São Cristóvão: editora UFS, 2007.
História da África e dos africanos nos currículos escolares das escolas de ensino fundamental
e médio.
No entanto, para a lei ser aplicada, requer que sejam feitas mudança, pois os
profissionais devem estar preparados e os suportes pedagógicos adequados a nova realidade,
assim os livros didáticos precisam ser readequados. No entanto, Anderson Oliva nos faz um
alerta:
1507
Diante desse contexto político, econômico, social e cultural
Anderson faz um breve comentário sobre a criação do material didático e a interpretação na sala de aula em seu
artigo: : OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na
literatura didática. P. 441-442.
1508
Ver FIORIN,José Luiz. Elementos da análise do discurso. 11.ed.- São Paulo: Contexto,2002.-(Repensando a
língua portuguesa).
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Na introdução aos estudos históricos o livro fala sobre a importância dos idosos
para a construção da história, agindo como testemunhas vivas da mesma e guardiões da
memória.
1509
Ver KI-ZERBO,J.História geral da África, Metodologia e pré - história da África.Ática/Unesco.
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reino em troca do segredo do ferro a Ogum ele aceitou e também ensinou aos humanos o
segredo da forja, e todo mês de dezembro celebram a festa de Uidê Ogum, o senhor do ferro.
Saliento o uso de palavras na lenda do vocabulário yorubano e por conta disso há
no final uma espécie de vocabulário dizendo os significados das palavras. Também há uma
atividade de interpretação de texto.
(Araribá,2006: pp.46-47)
No livro Notas Sobre o Culto aos Orixás e Vodunse, no capítulo 5 (p.151), Pierre
Verger1510 diz “Ogun entre os youruba, Gu entre os fon, é o deus dos ferreiros e de todos
aqueles que utilizam o ferro: guerreiros, caçadores, lavradores, lenhadores, pescadores,
cabeleireiros etc. É a divindade do ferro e da guerra, um deus viril e protetor. No Brasil
durante as cerimônias para os deuses africanos, Ogum é o primeiro a ser invocado, após Esu.
Na Bahia ele é assimilado a Santo Antônio e no Rio de Janeiro a São Jorge. Terça-feira á o
dia a ele consagrado.” Percebe-se então a importância da lenda contada no livro didático, já
que é a lenda de um orixá bastante cultuado no Brasil. A lenda possibilita uma aproximação
dos alunos e do professor da cultura, religião e costumes africanos que até o momento eram
inexistentes ou parcamente trabalhados em outros livros didáticos.
1510
Pierre Verger faz um apanhado sobre a história de Ogum na África e no Brasil, apresentando também uma
serie de contos e cantigas em seu livro: :VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e vodunse.
Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2ed.- São Paulo: EUSP,2000.
(Araribá,2006:p.177)
relevância demonstrando que muitas profissões datam de muitos séculos, ajudando os alunos
a valorizar a importância dessas ocupações como algo necessário para a construção daquela
sociedade.
Outro ponto positivo no capítulo é a utilização de textos auxiliares Os mesmos
permitem que os alunos saibam de informações atuais e complementares. Um desses textos
narra a história de Ísis e Osíris deuses da cultura egípcia falando de como Osíris se tornou o
Deus dos mortos e de como foi vítima da traição de seu irmão Seti. Em seguida é proposto um
exercício Localize a informação que ambientaliza o texto a realidade social daquela
civilização ajudando os alunos na interpretação de lendas como uma parte da história de um
povo. Dentro desse exercício temos uma questão que sugere:
Compare o mito de Ísis e Osíris com a lenda africana do ferro, que você leu
na seção Compreender um texto da unidade 1.
Nas duas narrativas, como os deuses agiam na relação com os
humanos?(Araribá,2006:98-99).
(Araribá,2006:98)
1511
FUNARI, Pedro Paulo. Roma, In: Grécia e Roma. -4º ed-. São Paulo: Contexto, 2006. (Repensando a
História).
mitológicos a história da África possui também essas características que devem ser exploradas
através de atividades como essa.
No entanto, no capítulo em discussão, não cita as relações comerciais com a
Núbia, nem da importância do Egito para a expansão do islamismo, servindo inclusive como
“porta de entrada”, e como o Egito se relacionava com os demais povos da África através de
intercâmbios comerciais e culturais1512.
Dando seqüência as considerações que podem ser feitas a partir da analise do livro
didático de história Projeto Araribá, podemos constatar a ausência de conteúdo, retratando
sobre a civilização Núbia na África.
Detectando essa ausência no conteúdo, é importante que se frise a importância da
Núbia dentro desse contexto histórico estudado (civilizações antigas), já que esta vai ter por
muito tempo características extremamente semelhantes aos egípcios, só passando a se
distinguir dos mesmos, a partir do momento em que o Egito se unificará politicamente e
inventará sua escrita (3200 a.C). Neste momento os egípcios passaram a ter o poder
centralizado nas mãos do faraó e a possibilidade de registrar informações úteis a seu governo
através da escrita. Já a Núbia continuaria com seu poder descentralizado e dividido entre
chefes de aldeias e o conhecimento continuaria a ser transmitido pela linguagem oral1513.
Outro ponto que deveria ser enfatizado no livro são as relações intensas
politicamente e principalmente comercialmente entre o Egito e a Núbia, já que essa que por
muito tempo uma grande fornecedora de ouro para os egípcios. Pois o solo núbio era muito
rico em metais e pedras preciosas, por isso o comercio desses produtos eram bem
movimentados, comercio esse que era feito através das rotas entre o Nilo e o Mar Vermelho.
Havia um comércio de exportação e importação de produtos. Alguns dos produtos
comercializados eram o papiro, linho, couro de boi, lentilhas, peixe seco para a Ásia e a
importação de ouro, marfim, granito e plumas da Núbia entre outras regiões que mantinham
relações comerciais com o povo egípcio.
Em suma, o livro menciona e trabalha o fato do Egito ser um reino africano, mas
não trabalha as relações do mesmo com o continente, com a Núbia, Mali dentre outros. Pois
1512
As relações entre o Egito e o Mali são notórias na historiografia africana, nas viagens a Meca são relatadas
passagens pelo Cairo onde o contato comercial era freqüente e necessários ao nível de vida das duas civilizações.
SILVA, Alberto da Costa e.Mali. In: A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. - Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, 2. ed.
1513
SILVA, Alberto da Costa e.Os Reinos Cristãos da Núbia. In: A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, 2. ed.
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se faz mister salientar que o Egito era um reino africano que estava inserido em várias
relações(econômicas, religiosas, comerciais) com os demais reinos do continente.
No capítulo referente ao Império Romano, destacamos um exercício que trata da
expansão do Império até a costa africana. Sendo que o livro reconhece a extensão do Império
até essa região então porque não tratar da influência que esse contato propiciou ou até mesmo
utilizar uma personagem que serviu como ponte para os dois continentes a afamada rainha
Cleópatra.
O Egito é mostrado com um reino mais ligado que a Mesopotâmia que a África.
Isso possibilita uma identificação da cultura ocidental como herdeira do seu legado, já que o
mesmo não faz parte de um continente classificado pelos europeus de atrasado e bárbaro1514.
Obviamente sabemos que o Egito possuía diversas relações com os povos da Mesopotâmia,
mas o que queremos enfatizar que também possuíam com os reinos africanos.
(Araribá,2006:p.90)
1514
Desde a antiguidade o continente europeu faz construções depreciativas do continente e dos seus habitantes,
onde o mal e tudo que dele derivasse estavam se relacionando com a cor negra, inclusive como sinônimo de
pecado. DEL PRIORE, Mary; Venâncio, Renato Pinto. Africanos vistos da Europa. In: Ancestrais: uma
introdução da África Atlântica. Rio de janeiro: Elsevier; 2004.3ºReimpressão. pp53-69.
1515
OLIM, Bárbara Barros de. Menezes, Hermeson Alves de. A imagem do negro no livro didático de História:
um estudo das representações gráficas. VIII Semana de História da UFS. São Cristóvão, jan 2007. Disponível
em http://www.ensinodehistoria.com.br/producao.htm.
1516
CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. 5ºed. Brasiliense. São Paulo, 1986.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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(Repensando a História).
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didático de História: um estudo das representações gráficas.VIII Semana de História da
UFS,jan 2007.Disponível em http://www.ensinodehistoria.com.br/producao.htm.
MELANI, Maria Raquel Apolinário. Projeto Araribá. 1ºed. São Paulo: Moderna, 2006.
INTRODUÇÃO
estarem sentadas em discursos eurocêntricos. Com jongo, que aqui vem sendo nosso objeto de
estudo, pretende-se analisar, através da história de suas transformações e as relações de poder
presentes nos jogos sociais dessa expressão cultural. Tais manifestações de saber/poder está
intimamente relacionada em cada momento histórico, pois o modo como a corporeidade
afrobrasileira era manifestada, tinha relações diretas com os mecanismos de segregação
etnico-racil preponderante.
O objetivo desse estudo é desmistificar discursos e visões preconceituosas que
colocam em cima da cultura do negro. Sobretudo, as danças de terreiro que tiveram origem na
tentativa de ascensão espiritual e fulga dos castigos forçados realizados pelos “donos” de seus
corpos na tera. Vale dizer ainda, que desvelar discursos é uma atividade continuada, onde os
sujeitos envolvidos na investigação-ação são levados a pensar sua corporeidade e as
emergências de suas práticas sociais.
Dessa forma, utilizaremos de pesquisas realizadas em um núcleo de estudos sobre
educação diferenciada e sexualidade na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio). Tal núcleo de estudos, é responsavel pelas ações de um programa de extensão
intitulado “Menino, Menina, Kunumy, Êre: o ensino de Ciências Naturais em diferente
grupos étnicos”. Coordenado pela Professora Dra Maria Amélia de Souza Reis, o trabalho
incorpora a pesquisa, o ensino e a extensão, visando construir um educação popular de
qualidade, que respeite e reconheça as multiplicidades étnicas brasileiras.
Nesse caminho, investigamos os saberes produzidos pelas as comunidades
tradicionais e as práticas educativas existentes nas escolas do Rio de Janeiro. Para tal,
utilizamos os instrumentos da pesquisa etnográfica e análise de dados próprios dos
instrumentos da pesquisa qualitativa com base em análise de conteúdo. Nosso campo de
investigações é o Quilombo de Santana em Quatis; as comunidades indígenas da etnia
Guarani-Mybia de Angra dos Reis e algumas escolas públicas do Rio de Janeiro parceiras das
escolas de Formação que nos serve de campo de extensão.
Assim, se construiu um projeto de iniciação científica inserido dentro deste
exposto à acima, chamado “Danças Africanas: um estudo sobre sua imposrtancia para a
educação popular”. Tal pesquisa visa investigar as expressões culturais afrobrasileiras,
analisando suas transformações e as manutenções das mesmas durante a história tendo em
vista as relações de poder que as fizeram (ou não) se modificar. Assim, através do estudo
sobre as performances culturais negras, tenho como objetivo desvelar quais desses discursos
mantêm o preconceito racial e como a escola lida com esses saberes. Através desta pesquisa
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pretende-se avaliar o papel dessas expressões culturais no cotidiano escolar, de que forma ela
contribui para a formação do sujeito nas escolas públicas e populares do Rio de Janeiro.
Metodologia
que esses alunos possuem com as danças africanas e o modo como essas danças são
percebidas dentro do cotidiano escolar.
Além disso, nosso projeto traz em sua natureza, a inter(trans)disciplinaridade e a
estratégia da educação pelos pares (peer education) por acreditar num processo de ensino-
aprendizagem para além da informação, pois valoriza a partilha dentro da comunidade e entre
grupos que se educam reciprocamente pela semelhança e pertencimento.
ao Brasil, onde instalaram uma economia baseada no plantation - um sistema agrícola que
tem por base a monocultura e o trabalho escravo. Assim os navios negreiros passaram a trazer
negros de varias partes da África para trabalharem no Brasil. No Rio de Janeiro,
especificamente, vieram negros principalmente do centro-oeste africano e da África oriental,
que compreende países do Congo, Benguela, Angola, Cabinda, Munjolla, Cabo-Verde,
Calabar e Mina.
Os negros, ao chegarem ao Brasil, foram submetidos ao trabalho escravo onde sua
cultura e seus saberes foram sendo aniquilados por uma elite européia, que viam em sua
cultura o ideal de civilização. Desta maneira, os colonizadores passaram a impor sua cultura
aos escravos, onde os últimos seriam vistos como pessoas sem alma e sem cultura e por isso
não civilizados, sendo assim, passíveis de subordinações e castigos.
Quanto a isso, Nascimento que diz que a elite não poupou esforços em apagar a
memória cultural do negro, proibindo que este último praticasse qualquer forma de expressão.
Além disso, os fizeram acreditar que sua cultura era inferior comparada a da européia,
fazendo com que houvesse uma perda de identidade e de memória cultural, pois na medida
em que se achavam inferiores, os negros passaram a não mais transmitir através da oralidade
seus saberes, seus valores e suas visões de mundo. Segundo o autor, os afrobrasileiros estão
em uma situação pior que os africanos pois
O canto, como diz Ligiéro, tem um papel importante, pois é através dela que são
passados as manifestações, os agradecimentos, as louvações aos deuses e as memórias do
passado. Assim como foi observado na performance do “Jongo da Serrinha”, Ligiéro também
coloca em sua obra que, geralmente, o jongo tem um solista, onde este é seguido pelo coro
que dança.
Durante a colonização as letras das músicas eram feitas por improviso, misturando
a língua portuguesa com os dialetos africanos, construído segundo Ligiéro, um vocabulário
próprio. Assim o jongo se tornou um instrumento de luta dos negros, pois era através das
letras que os escravos se comunicavam sem que os senhores pudessem entender o que os
mesmos diziam.
A dança é realizada em conjunto, onde os participantes – podendo ser homens e
mulheres - se concentram na roda, porém apenas um casal por vez se posiciona ao centro para
dançar e vão revezando com outros, só param quando o solista grita “machado”, podendo
terminar a dança ou começar outra música. A movimentação, segundo Ligiéro, ocorre no
sentido anti-horário, pois desta forma os jongueiros ficam mais próximos dos seus
antepassados. A ancestralidade é um ponto muito importante da cultura negra, pois os mais
velhos é que guardam todos os saberes da comunidade, sendo estes passados através da
oralidade. Sendo assim, o jongo carregou, durante muito tempo, a religiosidade e a
espiritualidade da cultura africana em sua dança.
Dessa maneira, os primeiros a irem ao centro da roda são sempre os mais velhos.
A movimentação feita entre o casal não tem um contato físico com o outro, apenas pelo toque
entre o umbigo de um com o do outro, a chamada “Umbigada”. Os que ficam na roda,
normalmente batem palmas e movimenta pernas e braços no ritmo da música.
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Com a abolição a situação do negro no país não mudou muita coisa, pois segundo
Nascimento esta liberdade dada ao negro veio com o interesse de uma elite brasileira em se
industrializar e implantar uma economia de mercado, onde os ex-escravos significariam mais
consumidores. Nesse sentido, para ele, havia lucro na derrocada do sistema escravista, o que
fez o Brasil organizar movimentos abolicionistas e imigracionista. Com isso, os fazendeiros
libertaram os negros, mas sem qualquer responsabilidade de fornecer condições necessárias
para que o mesmo pudessem ter uma vida digna, caindo em total miséria e fome, passando a
morar no interior da cidade e nos cortiços (se deslocando depois para os morros).
Sendo assim, o jongo foi levado aos morros do Rio de Janeiro, onde os negros
passaram a habitar. Porém, segundo Ligiéro, na década de 60 o jongo ficou ameaçado, pois
muitos dos antigos jongueiros foram morrendo e foi diminuindo as rodas de jongo. Além
disso, os negros não deixaram de sofrer discriminações, as escolas e a mídia continuaram a
passar uma visão eurocentrica de mundo, fazendo com que muitos negros desvalorizassem
sua própria cultura e até perdendo sua auto-identificação como negro. Isso fez com que não só
o jongo fosse ameaçado mais seus saberes, valores e crenças também.
Nesse sentido, Darcy Ribeiro nos aponta dois tipos de preconceito a do
Apartheide que apesar de separar o negro do branco, não impede que os negros conservem
sua cultura e sua identidade. No outro tipo de preconceito a qual se chamou de
assimilacionista, Darcy diz que esta “dilui a negritude numa vasta escala de degradações, que
quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é
uma ordem natural, se não sagrada” (1996), ela “dá uma imagem de maior sociabilidade,
quando, de fato, desarma para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as
condições de terrível violência a que é submetido”(1996).
Segundo Ligiero, isso fez com que Mestre Darcy do Jongo cria-se o grupo
artístico Jongo Bassan, a fim de divulgar e preservar o jongo através dos espetáculos. Além de
permitir que as crianças participassem da dança, pois esta dança era reservada apenas para os
adultos, criando junto com Vovó Maria Joana, o grupo artístico Jongo da Serrinha.
CONCLUSÃO
das vezes interiorizadas, colaborando para a formação de sujeitos com uma identidade
negativa sobre si mesmo.
Porém, a educação independente do nível em que ela se desenvolva, não deveria
reproduzir esse discurso, mas sim ser o veículo para a valorização e preservação dos saberes e
da cultura de seus educandos. Sendo fundamental a apropriação dos modos peculiares de ver e
compreender o mundo para a construção de um currículo que contemple a diversidade cultural
brasileira.
Como dialogar com uma população negra que, muitas vezes, nega a sua cor
e que no branqueamento uma espécie de solução? De que maneira lidar com
os resultados de uma pesquisa que revela que enquanto 98% da população
negam ter preconceito, 99% afirmam conhecer pessoas que tem preconceito
e, mais que isso, demonstram possuir uma relação próxima com ela?
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Atualmente, há alguns trabalhos que descrevem e analisam a vivência dos negros nas
comunidades rurais. Um dos temas abordados nesses trabalhos são os aspectos econômicos
das citadas comunidades. Com isso, esse estudo analisa as atividades econômicas dos
povoados Caenda e Malhada dos Negros, ambos localizados nas fronteiras dos municípios de
Ribeirópolis, São Miguel do Aleixo e Nossa Senhora da Aparecida. Pretendemos analisar as
características econômicas das localidades mencionadas em meados do século XX e as
mudanças ocorridas no final do mesmo século por conta da instalação da associação dos
moradores e da casa de farinha de mandioca comunitária. As informações coletadas e
analisadas até o momento permitem apontar que a base econômica de ambas as comunidades
era e permanece a agricultura, no entanto houve mudanças nos produtos cultivados, como
também na forma de produzir principalmente a farinha de mandioca. Boa parte da produção
era e continua voltada para a subsistência e para serem comercializados nas feiras próximas.
estão localizadas no sertão sergipano, e São Miguel do Aleixo no agreste, de Sergipe. Estes
dois povoados em questão constituem-se de negros na sua maior parte populacional.
Mas, porque aprofundar esse assunto? O texto tem como intenção fundamental
pontuar alguns elementos referentes as atividades econômicas das duas comunidades, e as
mudanças ocorridas no decorrer do século XX.
Para isso usaremos os dados dos 47 questionários socioeconômicos aplicados nas
visitas técnicas às comunidades, as fontes orais, ou seja, as entrevistas que foram realizadas
com alguns membros da população e também os registros fotográficos durante às visitas.
Logo, a base da nossa pesquisa é fundamentada na memória de seus moradores. E esta é uma
das fontes históricas com grande utilização nos dias atuais devido a sua importância. É sobre
esta importância que Maurice Halbwachs (1968 apud POLLAK, 1989, p. 3 e 4) afirma:
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum. 1517
Portanto, foi no cruzamento entre as várias memórias destes habitantes que foi
tecido este artigo
Na atualidade a agricultura é uma atividade econômica de fundamental
importância nas comunidades de Caenda e Malhada dos Negros, nas diversas entrevistas
realizadas os moradores relacionavam a agricultura à sobrevivência. Assim, para garantir uma
melhor qualidade de vida é necessário plantar. Há uma rotatividade de culturas, a plantação
gira em torno da mandioca, do milho, do feijão, da fava e do feijão verde. E, ainda baseado
nas entrevistas percebemos que essa prática da agricultura remonta a períodos bem anteriores.
Dentre os produtos que eles cultivam e cultivavam possui destaque a mandioca. Pois há nas
comunidades uma grande plantação de farinha, no verão, entre os meses de setembro e
dezembro, a produção de farinha é constante, visto que a plantação encontra-se pronta para a
colheita.
1517
POLLAK, Michael. Memória,Esquecimento,Silencio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, p. 3-15.
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Nós tinha nossa família, nós tinha uma casinha de farinha aí de taipa. Nós
emprestava a casa de farinha pra quem não tinha. Aí depois o outro vinha e
mais outro [...]. Nós ainda tem casa, tem forno, mas não tem que faça
farinha, aí ta abondonada [...]. no meu tempo era daquele de rodete. Rodei
muito mais meu pai e meus irmão. Difícil foi no nosso tempo, minha gente.
Botava a mandioca na ponta, o outros rodando cá. Um peso que a gente
sentia, né? Depois colocava a massa na prensa, pra agora enxugar e depois
de enxuta, peneirar na peneira e agora colocar no forno pra mexer. Hoje é, as
coisas tão bem mais fácil [...].
1518
Entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando Vasconcelos, no dia 19/05/2007.
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bem avançadas se comparadas com as técnicas manuais que estão na memória coletiva das
pessoas e que eram utilizadas por muitas famílias antes do aparecimento do maquinário
elétrico. Com isso, as farinhadas não duram dias e dias como anteriormente. Ressaltamos que
mesmo com os avanços tecnó0logicos a atividade de fazer farinha ainda é coletiva.
Sobre o uso da casa de farinha comunitária há um revezamento entre as famílias
na utilização da mesma. E nas casas de farinha privadas, além dos proprietários utilizarem
tem famílias que “alugam” o local e pagam com parte da produção.
O relato feito pela moradora da comunidade de Caenda, Dona Amélia, que nasceu
no povoado, serve para entendermos como é realizada a farinhada na casa de farinha da
comunidade:
Enquanto tiver mandioca faz farinha. Cada quem tem seu dia. Uma
comparação: hoje é eu, amanhã já é outro, e depois já é outro. eu pago o
mexedor, uma pessoa para pelejar com o forno elétrico, os meus meninos
não gostam de pelejar. Um ajuda o outro a raspar, uns aos outros. E depois
traz a farinha para casa. Uma pessoa que não tem mandioca pra fazer
farinha, a gente dar farinha pra essa pessoa. Uma comparação: eu tenho uma
vizinha que não tem farinha, aí ela me ajuda a fazer farinha e eu dou farinha
para ela.1519
são produzidos e nem vendidos na comunidade. Alguns desses artigos são: vestimentas,
calçados e materiais de limpeza para a casa. Como também é na feira que trocam informações
e saberes, vêem os amigos e conhecidos.
Por fim, sobre a feitura de farinha de mandioca, salientamos que é uma atividade
que envolve mulheres e homens, adultos e crianças. No entanto, há parte na produção que é
uma atividade masculina, trabalhar com o forno.
1521 DÉDA, José Carvalho (1898-1968). Brefáias e burundangas do folclore sergipano. 2. ed., Maceió:
Catavento, 2001, p.123.
1522
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.
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[Criava] Égua, vaca, cachorro, gato, criação de cabra, ovelha, gado, galinha,
porco, criava tudo. Esse mato era tudo nosso.
1523
Entrevista concedida às alunas do quinto período do Curso de História da Universidade Tiradentes: Aline
Priscila, Denise Maria, Sheyla Maria e Vanessa Silva, no dia 06/05/2007.
1524
A roça é um terreno de pequena lavoura ( em especial de milho, feijão, mandioca, etc.), também conhecida
como roçado.
1525
Entrevista concedida aos autores do artigo no dia 06/05/2007.
1526
Entrevista concedida aos alunos do quinto período do Curso de História da Universidade Tiradentes: Igor
Iury Jurubeba Santos e Vanessa Silva, no dia 19/05/2007.
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Entrevistas
Entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando Vasconcelos, no dia
19/05/2007.
Dona Amélia, em entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando
Vasconcelos, no dia 19/05/2007.
Referências
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.
A Escola dos Annales revolucionaram a tipologia das fontes, “criando” novas fontes
históricas e dentre elas as fontes paroquiais. Na década de 50, houve vários estudos no campo
da história demográfica e esses utilizavam os registros paróquias No entanto, no Brasil essas
fontes ainda merecem uma maior atenção. Ao iniciarmos nossos estudos sobre as vivências
dos negros em terras sergipanas, constatamos que os registros paroquiais poderiam fornecer
dados preciosos para vários temas referentes à formação da população de Sergipe. Através
dos mesmos podemos retirar dados sobre os pardos, caboclos, negros e brancos. Sendo assim,
o nosso objetivo é analisar a importância dos documentos eclesiásticos como fonte histórica,
enfatizando sua relevância no estudo do escravismo em Sergipe. Através dos dados extraídos
dos registros de batismos, por exemplo, conseguimos identificar a filiação, cor, condição
(escrava, livre ou liberta), se a criança era legítima ou ilegítima, informações sobre seus
padrinhos como condição social, quando escravo a que senhor pertence, e em alguns casos,
informações sobre sua origem. Em suma, os registros eclesiásticos são fontes preciosas para o
estudo da família escrava ou não, dos apadrinhamentos, da sociabilidade escrava e da
demografia escrava dentre outros temas referentes a escravidão e da população sergipana.
1527
Este trabalho já é uma reflexão do projeto Vivências africanas nas terras sergipanas que está sendo
financiando pelo PROBIC/UNIT.
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Este texto tem como escopo analisar a importância das fontes paróquias como
fonte histórica, e sua importância para o estudo da escravidão. Para isso, inicialmente faremos
um histórico da utilização dessas fontes pelos historiadores mundiais, em seguida dos
brasileiros.
Em 1545 o papa Paulo III convocou o concilio de Trento onde ocorreram muitos
debates, interrupções e reuniões, os bispos e o papa chegaram a um acordo sobre vários
pontos. Estes estão nas prescrições de 11 de novembro de 15631528. Dentre eles, estava a
ratificação da abordagem nos registros paroquiais, ficando estabelecido que os registros
eclesiásticos dariam uma ênfase maior às relações familiares. E os párocos brasileiros,
seguiram as instruções tridentistas, pois objetivavam marcar para sempre o parentesco do
indivíduo. Fato esse muito importante, pois, nesse período não existia documentos de
nascimento, casamento e óbito, ou seja, os registros civis. Sendo assim, os registros
paroquiais atestavam o nascer, o casar e o morrer dos indivíduos.
As mudanças provocadas pelo Concílio nos registros contribuíram
significativamente para que Pierre Goubert desenvolvesse na França de forma pioneira um
estudo demográfico baseando sua pesquisa nos registros paroquiais1529. Pois os dados
constantes nesses registros eram suficientes para realizar uma analise histórica demográfica,
identificando a taxa de natalidade, de mortalidade de uma determinada região e algumas
relações domiciliares.
A Escola das Annales formou-se em torno da revista Annales d'histoire
économique et sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch e revolucionou a tipologia
das fontes na década de 50 do século XX, ao publicar em uma de suas edições um estudo
demográfico sistematizado. Daí por diante, surgiram inúmeros trabalhos no campo da história
demográfica apoiando-se nos registros paroquiais1530.
Ainda na década de 50, surge no Institut National d’Études Démographiques, uma
metodologia específica para utilização dos registros de batizado, casamento e óbito. E
ressaltamos, que essas técnicas foram desenvolvidas por Louis Henry e Michel Fleury a qual
chamaram de método de reconstituição de famílias. E no inicio dos anos 60, o Cambridge
Group for the History of Population na Social Structure desenvolveu um método quantitativo
1528
COSTA, Iraci Del Nero da. Registros paroquiais: notas sobre os assentos de batismos, casamentos e óbitos.
Disponível no site: http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-ira/ar50.pdf
1529
Idem
1530
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
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que abrangia varias regiões, com o intuito de comparação de dados. Para Cardoso1531 e
Farias1532, o desenvolvimento dessas técnicas aliados a sistematização da pesquisa
demográfica, foram determinantes para ampliação dos estudos demográficos e sociais. Alem
disso, trouxeram a família para o centro explicativo do comportamento populacional. Dessa
forma, a unidade familiar tornou-se objeto especifico de estudo histórico. Um novo, vasto e
inexplorado campo de pesquisa historiográfica.
No Brasil as pesquisas demográficas baseado nesse método foram inauguradas
por Maria Luiza Marcilio no final da década de 60 ao publicar um estudo intitulado como La
Ville de São Paulo. Peuplement ET Population. 1750-18501533.
Pesquisas sobre a sociedade brasileira dos séculos XVIII e XIX são dificultadas
muitas vezes pela falta de documentos específicos, pela dispersão ou por serem
desconhecidos, como pode ser o caso de documentos em mãos de pessoas físicas, instituições
públicas, privadas ou eclesiásticas. Todos esses documentos são de fundamental importância
para a construção de uma historiografia renovada em conceitos e métodos de pesquisa, pouco
se inovou nas pesquisas feitas sobre o Brasil até meados da década de cinqüenta, e a mudança
ocorreu com os trabalhos utilizando registros eclesiásticos como fontes de pesquisa que datam
da segunda metade do século XX, mais precisamente da década de 60 de autores como Mary
Karasch, Renato Pinto Venâncio, Sheila de Castro Faria. Esses pesquisadores utilizaram as
fontes paroquiais aliadas com outros documentos, para retratar a realidade social de
determinados lugares, esse cruzamento de informações se faz extremamente necessário já que
através dele é possível minimizar as margens de erros da pesquisa ou até mesmos rebater
idéias tradicionalistas da historiografia brasileira.
Conforme já foi mencionado os registros citados podem nos apontar aspectos
como a evolução demográfica E há no Brasil pesquisas que também trabalham esses
elementos. Um exemplo é a pesquisa de Sheila de Castro Faria História da Família e
Demografia Histórica nesse trabalho a autora vai utilizar tais registros para perceber a idade
com que as pessoas se casavam, (re)casavam, expectativas de vida, e mortalidade. Juntamente
com as listas nominais e inventários post-mortem foi possível reconstituir grande parte da
realidade familiar sócio e economicamente. Nesse estudo ela aponta algumas modificações
1531
CARDOSO, Ciro Flamarion S; BRIGNOLI, Hector Perez. Historia demográfica. IN: Os métodos da
historia. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2002.
1532
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
1533
SCOTT, Ana Silvia Volpi. A contribuição da demografia histórica para a história da população e da família
no Brasil. Disponível no site: http://www.adeh.org/pdfs/B_1998_XVI_1_12.pdf. Acessado em: 26/09/2008.
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nas idéias mais tradicionalistas sobre as famílias patriarcais onde muitas, segundo estudos
realizados em São Paulo, foram chefiadas por mulheres1534.
Quando falamos de pioneirismo nos métodos de pesquisa no Brasil temos a frente
o nome da brasilianista Mary Karasch. Esta americana veio para o Brasil estudar a vida dos
escravos no Rio de Janeiro e se deparou com historiadores fadados à mesmice, pois os estudos
sobre os escravos no Brasil seriam impossibilitados pela falta de documentos já que estes
foram queimados pelos abolicionistas em 1890, porém seu treinamento nos Estados Unidos
permitiu que ela enxergasse diferentes possibilidades de pesquisas sobre o tema como foi o
caso de documentos de óbito, registros de irmandades, literatura de viajantes, materiais
pictóricos e registros tributários restantes, dessa forma ela conclui um extenso e valioso
trabalho de Doutorado intitulado A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-18501535.Ou
seja, a historiadora utilizou documentos paroquiais. E no campo da história dos escravos,
possivelmente foi a pioneira no uso dessa tipologia documental. Através dos registros de
óbitos ela apontou as principais doenças que vitimaram os escravos, bem como as nações dos
mesmos.
A mesma autora, Mary Karasch, em artigo recente, Centros-africanos no Brasil
Central trabalhou com as fontes eclesiásticas para identificar as nações dos africanos na
região de Goiás. Além dos registros também utilizou os censos e as listas nominais na sua
pesquisa. Neste artigo, a autora buscou a origem dos africanos da região citada e as
possibilidades e escolhas dos mesmos no momento de casamento. Através desse texto
percebe-se a importância dos registros, como também a necessidade de se buscar diversas
fontes e cruzá-las já que uma pode suprir a carência de informações da outra1536.
Com relação ao trabalho de Renato Pinto Venâncio Os escravos e a Morte: uma
sondagem nos registros paroquiais de óbitos de Minas Gerais colonial temos uma pesquisa
voltada para as atas de óbitos que registraram os sacramentos relativos à extrema
unção.Nesse trabalho é possível perceber o relacionamento da Igreja com os escravos, com a
efetuação de atos como batismo e a extrema unção a Igreja acreditava que estaria afastando as
influencias pagãs do cotidiano social no Brasil, com isso vemos a gratuidade dos sacramentos
inclusive para os escravos. Assim ficaram relativamente registrado muitas informações sobre
1534
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
1535
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Trad. Pedro Maia Soares. - São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1536
KARASH, Mary. “Centros africanos no Brasil Central, de 1780 a 1835”. In: Diáspora Negra no Brasil. (org. Linda
Heywood. Rio de Janeiro: Contexto, 2008.pp.127-164
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doenças e as causas do falecimento das pessoas da época, quando esses registros ficam
escassos o autor observou que párocos passaram a cobrar taxas aos senhores de escravos para
a realização desses sacramentos1537.
O batismo além de ser um sacramento importante para a Igreja Católica era a
oportunidade de ligações entre pessoas da sociedade já que os envolvidos desde então
deveriam respeito a esse compromisso. Através desses documentos é possível perceber não só
a atitude do escravo com a Igreja, mas também a desta para com o negro, pois houve
momentos de uma maior aceitação ou não da religião pelos recém chegados da África além de
ser um dos raros registros escritos que provem o vínculo familiar dos indivíduos.
No Brasil, não existia uma padronização quanto ao livro onde o pároco deveria
realizar o registro, por isso, é comum encontrarmos paróquias onde os registros eram
separados de acordo com o grupo étnico-social do individuo como, por exemplo, a paróquia
do Rio de Janeiro, e outra, onde esse registro era feito indistintamente como é o caso da
paróquia de Salvador. Ressaltamos que após a Lei do Ventre Livre em 1871 ficou
determinado que os batizados dos filhos das escravas deveriam ser registrados em um livro
em separado. Outro fator importante a se observar é a questão da confiabilidade dos dados,
pois a qualidade geral dos registros dependia muito do grau de cultura e interesse dos padres
encarregados de mantê-los, sendo muito variável1538.
Com os registros de batismos é possível identificar sexo, cor, legitimidade e
ilegitimidade, etnia e condição se livre, liberto, forro ou escravo, local de moradia, nome do
padrinho, sua condição social e conjugal, cor e local onde residia. Além disso, a uma
peculiaridade quanto ao valor desse registro no Brasil, pois, para os proprietários de escravos
era interessante batizar os filhos de suas escravas, pois o registro de batismo era um
documento que garantia a posso do mesmo, uma vez que nesse período não existia certidão de
nascimento emitida pelo Estado laico. Para Costa, os registros de batismo permitem
estabelecer a evolução demográfica, auxiliando a elucidar questões econômicas, sociais,
administrativas e cotidianas da sociedade brasileira1539.
1537
VENÂNCIO, Renato Pinto. Sousa, Maria José Ferro de.(et-all) O Compadre Governador: redes de
compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 273-
294 – 2006.
1538
Idem
1539
COSTA, Iraci Del Nero da. Os registros paroquiais como fonte complementar da historia econômica e
social. Disponível no site: http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-ira/ar02.pdf.
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1540
Idem
1541
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Trad. Pedro Maia Soares.- São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1542
CARDOSO, Ciro Flamarion S; BRIGNOLI, Hector Perez. Historia demográfica. IN: Os métodos da
historia. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2002.
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genealógicas e identificar gerações de uma mesma família1543. Ambos são muitos utilizados
no Brasil. Cristinany Miranda Rocha em histórias de famílias escravas adota a segunda
metodologia e rastreia várias famílias escravas pertencentes a uma mesma família, através dos
registros paroquiais e do cruzamento com outras fontes1544.
Em Sergipe a utilização dos registros paroquiais como fonte de pesquisa histórica
é recente escassa, pois há poucos trabalhos que utilizam os citados registros como fonte
histórica e principalmente como fonte para estudar a escravidão. Um dos trabalhos que estuda
a escravidão em Sergipe e utiliza esse tipo de fonte é a dissertação de mestrado de Joceneide
Cunha Santos, intitulada, Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e
mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). No mencionado trabalho
há um capítulo que versa sobre a família e a autora utiliza também as fontes paroquiais.
Segundo Joceneide Cunha, os casamentos possuíam relações familiares com uma relativa
estabilidade e o compadrio foi bastante praticado, não somente por livres como também por
escravos. Através do batismo a família era ampliada pelos laços espirituais1545.
No decorrer do texto citamos alguns trabalhos que utilizaram as fontes em
discussão. E tentamos citar alguns artigos e trabalhos que versassem sobre a escravidão.
Assim, com o intuito de lançarmos pistas das diversas possibilidades de uso das fontes
paroquiais, enfatizamos que através dos registros de batismo e casamento podemos perceber
as relações familiares dos escravos, legítimas, realizadas na igreja e ilegítimas. As estratégias
e possibilidades que as escravas e escravos possuíam na constituição dos casamentos, bem
como fazer analisar os elementos citados utilizando a categoria gênero. Inês Oliveira Cortês,
por exemplo, menciona que as africanas eram mais escolhidas para serem madrinhas que os
africanos, pois possivelmente as mães das crianças acreditavam que as africanas poderiam
substituir as mães caso fosse necessário 1546.
Segundo Mattoso, os casamentos de escravos foram tão freqüentes quanto os dos
1547
livres . Os estudos em Sergipe corroboraram com essa afirmativa, pois há registros de
vários casamentos entres escravos, como por exemplo, o caso de Malachias, escravo de
Antonio Honorato Bispo que casou na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade na Vila de
1543
Idem.
1544
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
1545
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Disponível no site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp020554.pdf acessado em: 08/09/2008.
1546
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Viver e morrer no meio dos seus”. Nações e comunidades africanas na Bahia do século
XIX. Revista USP, 28 (1995/96), p.175-93
1547
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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Lagarto em 1888 com Joana Batista do Nascimento, tendo como testemunhas Geraldo José da
Rocha, comerciante de grande porte e proprietário de vários escravos, e o bacharel Nicolau
Tolentino Álvares, também senhor de escravos e advogado1548.
Outros elementos que podem ser investigados são as estratégias e possibilidades
que os homens e mulheres escravos possuíam para construir o compadrio, quem eram os
“compadres e comadres” escolhidos. Como também percebemos as idades que as crianças
eram batizadas e os locais que realizavam esse rito. Pois através desses elementos podemos
perceber se havia distinções para batizar livres e escravos, se havia “locais” preferidos para os
escravos e seus descendentes batizarem seus filhos.
Ressaltamos que essa documentação se encontra nas secretárias paroquiais e em
muitos casos em condições não apropriadas para armazenamento. No estado de Sergipe há
várias paróquias que possuem documentação do século XIX, e por isso os documentos
informam sobre a população escrava e a liberta. Algumas das paróquias que possuem esses
documentos são: Capela, Santo Amaro, Itabaiana, Lagarto, Divina Pastora dentre outras.
Algumas apesar de terem sido criadas no século XVII ou XVIII, não existem documentos
referentes a esses períodos, a exemplo da Paróquia de Santa Luzia e a já citada Santo Amaro.
Em suma, através das pesquisas com os registros paroquiais é possível identificar
algumas práticas culturais da população escrava. Por entendermos que por meio de uma
análise criteriosa e uso de metodologias adequadas, os registros eclesiásticos contribui para
preencher diversas lacunas relativas ao cotidiano da sociedade sergipana, incluindo dos
escravos e dos seus descendentes. As fontes paroquiais são preciosas para o estudo das
relações senhor x escravo, legitimidade e ilegitimidade dos relacionamentos dos escravos, a
origem dos mesmos, ou seja, a “ nação”, condição social (escravo, liberto, livre), cor, as
epidemias, maus-tratos dentre outros. E a riqueza no uso desses documentos aumenta
sensivelmente se cruzarmos as informações desses documentos com outros, como por
exemplo, os inventários post-mortem.
A ausência de trabalhos desse tipo em períodos anteriores ocasionou uma falha na
historiografia regional em todo Brasil, falhas essas que passam agora a ser questionadas e
corrigidas com o uso das fontes paroquiais.
1548
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Disponível no site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp020554.pdf acessado em: 08/09/2008.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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econômica e social. Disponível no site: http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-
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no Brasil. (org. Linda Heywood. Rio de Janeiro: Contexto, 2008.pp.127-164
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Soares.- São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Viver e morrer no meio dos seus”. Nações e comunidades
africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, 28 (1995/96), p.175-93.
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e
mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Disponível no site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp020554.pdf acessado em: 08/09/2008.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Sousa, Maria José Ferro de.(et-all) O Compadre Governador:
redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 26, nº 52, p. 273-294 – 2006.
Na década de 60 e 70, existiam vários grupos teatrais em Sergipe, com diversos tipos de
platéias, desde o publico infantil até o mais adulto. Essa pesquisa objetiva discutir como essa
produção cultural ocorreu em Sergipe no período relacionado a ditadura militar, em particular,
nos registros relacionados a produção teatral localizado na Universidade Federal de Sergipe.
Desta forma, pretende-se entender o cenário artístico e cultural no período militar no Brasil e
a partir dos seus desdobramentos em Sergipe.
Serve o teatro para tudo. Serve para formatura e comícios, serve para congresso de
todos os tipos e assuntos, serve para reuniões religiosas e convocações cívicas, seve
para folclore e festivais de rádio, serve até, eventualmente, para espetáculos
teatrais. Só não serve para à morte, porque a morte é drama grátis, não cobra
ingressos dos que ocorrem ao velório para olhar a face do Morto.1551
1549
Graduando em História licenciatura pela Universidade Tiradentes e Museologia Bacharelado pela
Universidade Federal de Sergipe.
1550
Prof. Msc. José Vieira da Cruz (ANPUH-SE/UNIT/SEED), Doutorando em História Social/UFBA.
1551
CALVACANTI, Medeiros, Revista de Teatro, n° 344 – Março – abril de 1965.
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O Teatro surgiu no Brasil a partir do século XVI, tendo como utilidade a sua
utilização para a propagação da fé. Um dos nomes de maior destaque foi o Padre José de
Anchieta que escreveu algumas antigas composições teatrais.
O teatro é um dos meios culturais que tem a capacidade de mexer com o público e
o seu imaginário, de trazer emoções, de dá um choque com as personalidades que englobam
esse fantástico mundo de criatividade e de idealizações.
O grupo teatral que se chamava teatro universal, este será sucedido pelo teatro de
amadores em Sergipe (TAS) que foi criado em 1956. 1552
O que podemos observar é que até então o teatro sergipano não era marcado pela
presença profissionalizante para que o cenário teatral em Sergipe, deixasse de ser amado. O
1552
Ibarê Dantas. História de Sergipe República. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2004. p. 163.
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teatro naquela época lutava contra o título de amadorismo, além das faltas de patrocínios e
apoios para o mesmo.
É fato que na década de 60, existiam vários grupos teatrais em Sergipe, com
1553
diversos tipos de platéias, desde peças teatrais para crianças até o mais adultos. Alguns
grupos chamavam a atenção da platéia para assuntos como a reforma de base em suas peças
procurando trazer uma reflexão de quem assistia para uma tentativa de mobilização. É fato
que esses grupos não alcançavam todas as classes da sociedade, pois nem todos tinham
condições de ir ao teatro.
Entretanto em 64, época do golpe militar e junto com ele vieram as repressões,
que irão fazer uma perseguição cultural a todos os meios culturais que atuavam no nosso
cenário artístico.
O I Festival de Arte em São Cristóvão foi realizado nos dias 1,2 e 3 de setembro
de 1972, dando incentivo para a disseminação da cultura no Estado de Sergipe. O FASC tinha
além de uma visão de atrair público para o evento, fazer com que estes, saíssem de lá
aprendendo algo sobre uma determinada área e para isso foram abertos cursos diversos, como
história da arte, jornalismo, literatura Sergipana e entre outros, porém não foi aberto nenhum
curso sobre o teatro.
1553
MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1964. São Cristóvão:
DHI/UFS, 1998.(Monografia)
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
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dúvida está relacionado ao turismo em Sergipe, já que o festival trazia turistas de diversos
locais para Sergipe. 1554
Apesar do I FASC, não apresentar nenhum curso destinado ao teatro, houve uma
arrecadação pré-destinada para poder pagar cachet dos grupos teatrais que iriam se apresentar
no I FASC de C$ 5.000,00 Cruzeiros e a impressão de 10 mil cartazes de divulgação. Os
grupos teatrais que se apresentaram no I FASC foram o Teatro de Amadores de Alagoas, o
Teatro Universitário de Pernambuco, Grupo Teatral Aliança Francesa e a exposição do Teatro
do Orfanato Imaculada Conceição da Professora Aglaé Fontes de Alencar.1555
1554
Fundo FASC, Caixa n°: 04, ano de 1972.
1555
Fundo FASC, caixa n°5, ano de 1972.
1556
Jornal da Cidade, 01 de setembro de 1973.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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Em 1974 os interesses pelo teatro junto com a sua profissionalização vão começar
finalmente a aparecer, o ano de 1974 vai marcar o crescimento artístico no cenário
profissionalizante do teatro no FASC. O jornal da cidade em 28 de junho de 1974 já tava
sugestão para que o prédio que foi doado para a UFS, local onde funcionou a Escola Normal
fosse construído um teatrinho de arena, já que a UFS levantava interesses para a formação de
um grupo de teatro universitário e já incentivava os grupos já existentes.
No mesmo ano foi promovido pela UFS um curso de teatro que visava depois
formação para apresentação do III FASC, tendo esse curso de teatro à frente a professora
teatróloga Nilda Spencer.
Com o primeiro ciclo do curso ficou a Professora Aglaé Fontes para ministrar o
curso e no segundo ciclo contou com a palestra de Nilda Spencer. Com o final do curso
falaram Aglaé Alencar, Raimundo Araújo, o magnífico reitor e a atriz Nilda Spencer que
recebeu rosas vermelhas e confirmou sua presença para montar o espetáculo Teatral com o
grupo de Teatro Universitário (TUS) da UFS.
Aos pouquinhos o Teatro em Sergipe começou a ganhar uma nova forma, esses
novos investimentos e incentivos para a cultura fizeram com que o teatro começasse a se
mobilizar e procurar adquirir uma maior profissionalização.
Já no jornal Gazeta traz uma comparação do festival de arte de São Cristóvão com
uma quemersse, já que todos ficavam nas ruas olhando as barraquinhas e na programação do
evento não traziam nenhum artista a nível nacional, apresentando um desapontamento em
relação ao III FASC o chamando de um “FIASCO” já que teve “Pouca gente, pouco interesse,
falta de energia, público desbaratado e por fim, chuva!” 1558
1557
In:___Jornal da Cidade, 23 de agosto de 1974.
1558
Gazeta de Aracaju, em 22 de setembro de 1974.
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ditadura militar nem todas as peças eram aprovadas, tanto que na época que as peças que eram
apresentadas no FASC, eram necessário que se levasse uma cópia para a autorização da
devida censura para que as peças fossem aprovadas e por diante apresentadas, além disso,
tinham que se preocupar com o tema do festival de Arte de São Cristóvão que mudava a cada
ano. 1559
1559
Fundo do FASC, caixa n°: 05, de 1974.
1560
Fundo do FASC, caixa n°: 04, material de divulgação, de 1975.
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O grupo raízes que foi idealizado por Jorge Lins, atuou na periferia da capital e
em cidades do interior do Estado. Teve um grande sucesso primeiramente em 1975 com a tão
aclamada peça “Abelhinha Sonhadora” e em 1976 monta sua nova peça “O colono e a gruta”.
Em 1977 nasci o grupo Imbuaça, que foi influenciado pelo teatro livre da Bahia,
ele foi inspirado pela literatura de cordel, este grupo foi especializado em teatro de rua com
bastante embasamento técnico o que contribuiu bastante para o seu reconhecimento e seu
sucesso que até hoje prevalece. 1561
IV- Conclusão
Foi na década de 70 que deu inicio ao FASC e junto com ele as apresentações de
diversos grupos como os grupos de dança, grupos folclóricos, os grupos que trabalhavam com
o cinema, artistas plásticos e em especial os grupos teatrais Sergipanos.
1561
Ibarê Dantas. História de Sergipe República. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2004. P.220.
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Infelizmente essa questão de não se valorizar o que se tem de bom em “casa”, não
é de hoje, a questão é que em Sergipe já se possuía pessoas competentes para trabalhar com o
teatro, porém por estas ainda serem amadoras era preferível contratar alguém de grande nome
de fora não valorizando assim “a prata da casa” para se valorizar “o ouro de fora”.
Com o breve estudo sobre o Festival de arte em São Cristóvão, foi possível
perceber como o Teatro Sergipano se desenvolveu ao longo dessa trajetória histórica,
observando suas dificuldades e seus anseios em uma sociedade onde a valorização pela arte
ainda não era a sua principal prioridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA. Marieta de Moraes. História do Tempo Presente e História Oral. In: Topoi:
Revista de História. Rio de Janeiro, v.5, set. 2002.
FICO, Carlos. “Prezada Censura”: Cartas ao regime MILITAR. In; Topoi: Revista de
História. Rio De Janeiro: Programa de Pós Graduação em História Social da UFRJ/ 7 Letras,
set.2002, n. 5, pp. 251-283.
MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1964. São
Cristóvão: DHI/UFS, 1998.(Monografia)
PRADO, Dércio de Almeida. O teatro Brasileiro Moderno - São Paulo: Perspectiva: Editora
da Universidade de São Paulo, 1988.
SÁ, Antônio Fernandes de Araújo. 40 anos do golpe de 1964: Ditadura nunca mais! IN:
Cadernos UFS: História. V. 5, No 6, jan/dez. São Cristóvão: Editora UFS, 2004, PP. 9-18.
Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Revista Brasileira de
História, 2004. Vol 24, no 47.
Fontes:
• Material de divulgação
• Relatórios
• Ofícios
• Panfletos e Calendários.
1562
Disponível em:
<http://www.braziltour.com/site/br/tour_produtos/internas_submenu.php?id=18&fatherId=6> Acesso em: 20 de
Janeiro de 2008.
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Decreto-Lei Nº 25, de 30 de Novembro de 1937.
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imaterial, é dar destaque à identidade local, aos lugares de memória coletiva e um meio de
desenvolver um lugar economicamente.
Através do patrimônio, o turismo pode ser um agente modificador do cotidiano
dos locais de visita. Estabelecendo novos vínculos sociais, fortalecendo o sentindo de
pertencer da população e transformando a realidade do lugar.
Assim é a cidade de São Cristóvão, que tem um rico patrimônio do período
colonial em estilo barroco. Para algumas pessoas o barroco além de ser um estilo artístico que
influenciou a arquitetura, escultura, pintura, literatura e música, foi também um momento
histórico de transformações políticas e religiosas.
A arte barroca originou-se na Itália no século XVII, chegou ao Brasil através doa
colonizadores portugueses. As suas principais características são impressionar o espírito do
observador, através da busca de efeitos decorativos visuais; criar uma harmonia entre
arquitetura e escultura; destacar em suas obras grandes contrastes entre luz e sombra e fazer
uma pintura, com efeito, ilusionista. (TRIADÓ, 1991).
São Cristóvão tem uma realidade favorável para o turismo cultural, o seu acervo
de caráter predominantemente histórico, vai desde espaços e construções seculares, até grupos
folclóricos de manifestações e danças populares. Na arquitetura, destaca-se o conjunto
colonial da Praça São Francisco e o da Praça Senhor dos Passos (antigo Largo do Carmo).
Ainda existem espalhados pelo centro histórico da cidade, algumas igrejas e casarios.
Com influência das cidades ibéricas, São Cristóvão tinha no início da sua
formação como os espaços principais, o Largo da Matriz, a Câmara (poder religioso e
político) e o porto. Mesmo após a construção da Praça São Francisco, o espaço de poder ainda
era onde se encontravam a Igreja Matriz e a Casa de Câmara e Cadeia. De 1607 a 1637, a
cidade se consolidou como vila, porto, capital e pólo urbano para as fazendas de açúcar.
(GALVÃO JÚNIOR, 2008).
É no primeiro governo da Capitânia de Sergipe, em 1648, que São Cristóvão toma
ares de capital reforçando os espaços simbólicos de poder e de atividades públicas. Galvão
Júnior (2008), diz que esse momento também é marcado pela “tradicionalização dos espaços”
e da memória coletiva, através das feiras, festas, procissões, execuções, dentre outros.
A chegada a São Cristóvão das Ordens Religiosas vai definir os “elementos
formadores de sua trama urbana”. Com a edificação das igrejas conventuais, criam-se espaços
públicos sociais, diretamente ligados a estas construções, locais de convivência dos habitantes
da cidade. Em 1657, foi fundado o convento de São Francisco, antes recolhimento. No local
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que está até os dias atuais, junto com a Santa Casa de Misericórdia e o Palácio dos
Governadores. (GALVÃO JÚNIOR, 2008).
A transferência da sede para Aracaju transforma os espaços de poder da cidade,
seus ritos e atividades. São Cristóvão não é mais a cidade capital e como conseqüência vai
perdendo aos poucos o status de principal núcleo. A antiga urbe, não serve mais “aos
propósitos desenvolvimentistas e outros interesses agregados”. Restam a cidade e aos que
habitam nela, as memórias do seu passado.
Como um dos símbolos da modernização da cidade, São Cristóvão inaugura uma
ferrovia para o escoamento de produtos. Isto implicou em vários deslocamentos na estrutura e
configuração urbana, bem como, nos hábitos e costumes da população. Nesse período, a
cidade se adaptou à linha férrea.
Surgem novos padrões estéticos na arquitetura e a cidade se consolida em dois
planos: a cidade alta - tradicional e histórica, e a baixa - do comércio e da ferrovia.
Configuração que se mantêm até os dias atuais, acrescidas de rodovias, sistema de
comunicação e interesse turístico.
O site do Ministério Brasileiro de Turismo 1564 informa que,
1564
Disponível em:
<http://www.braziltour.com/site/br/cidades/materia.php?id_cidade=8840®ioes=4&estados=25> Acesso em:
27 de Fevereiro de 2008.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAZIN, G. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. (trad.) Glória Lúcia Nunes. Rio de
Janeiro: Record, 1956.
FONTES, A. D. São Cristóvão: aspectos culturais. In: Proposição de inscrição da praça São
Francisco em São Cristóvão/SE na lista do patrimônio mundial. Aracaju: Secretaria do
Estado da Infra-Estrutura, Iphan, Prefeitura Municipal de São Cristóvão, 2008. CD-ROM.
GEERTZ, C. Interpretação das culturas. (trad.) Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
SERGIPE, Museu de Arte Sacra. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 1976.
SILVA FILHO, J. T. da. Memória e Cotidiano da Praça São Francisco: Tradição, Louvor e
Festa. In: Proposição de inscrição da praça São Francisco em São Cristóvão/SE na lista
do patrimônio mundial. Aracaju: Secretaria do Estado da Infra-Estrutura, Iphan, Prefeitura
Municipal de São Cristóvão, 2008. CD-ROM.
TRIADÓ, J. R. Saber ver a arte barroca. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
“Os sentidos enganam!”1565. Esta é uma afirmação que pode ser aplicada a alguns
sentidos dados à cidade. Isto pode ser explicado pela mutabilidade do espaço e das relações
1566
do homem com o meio dentro do contexto urbano . Os espaços e as construções são
constantemente derrubados ou/e modificados com o decorrer do tempo assim como a própria
noção de cidade.
Por exemplo, a noção de cidade que se constrói ao dar uma volta pelas ruas de
uma capital dentro de automóvel está associada à idéia de um ambiente antagônico ao campo.
Composta por estruturas em concretos, tendo cada uma delas uma finalidade específica dentro
do espectro urbano – como comércio, ensino, lazer entre outras. Estas que por sua vez
acabam sendo homogeneizado apenas no conceito de cidade 1567.
Essa “materialidade urbana”1568, fria e sem vida, se desconstroí pelo simples ato
de andar pelas suas ruas e prédios. Percebendo que cada espaço do perímetro urbano possui
suas regras e formas de sociabilidades específicas. Existe a vida dentro da cidade.
Pesavento ao afirmar que a “(…) paisagem urbana é sempre uma paisagem social
fruto da ação da cultura sobre fruto da ação da cultura sobre a natureza, obra do homem a
transformar o meio ambiente.”1569 humaniza a concepção de cidade apesar de estar associando
a sua própria existência e mutabilidade a relação que homem estabelece com a natureza. A
relevância do campo social dentro do perímetro urbano é exaltada também por Gilmar
Mascarenhas quando este afirma que “Desde a remota experiência grega, a cidade é o lugar
do encontro. Não existe cidade sem espaços de uso comum”1570, destacando a importância das
subjetividades urbanas; não a partir de uma concepção egocentrista de ver os seres históricos,
mas a partir das suas “redes” sociais que se estabelece nos “espaços de uso comum” da
cidade. Ressaltando a importância dos estudos do seu cotidiano.
1565
Expressão elaborada a partir do pensamento de Descartes, o qual afirma em um dos seus textos que “Tudo o
que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos:
algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos
enganou uma vez.”
1566
Essa mutabilidade pode ser percebida a partir da necessidade do homem contemporâneo ao seu tempo
instituir o poder sobre aqueles que um dia o obtiveram. Partindo de uma noção que o poder pode ser identificado
a partir das suas formas de institucionalização e de que este não é objeto de posse de um determinado grupo ou
indivíduo específica sendo uma variável a depender de inúmeros aspectos como o espaço, o tempo e as relações
de sociabilidade.
1567
Noção comumente construída a partir do senso comum.
1568
Termo associado à noção de cidade a partir de concepções arquitetônicas.
1569
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto”. In: Narrativas da
pós-modernidade na pesquisa histórica, 2005, p. 114.
1570
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, s.p.
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Sempre a cidade foi vista como o campo de batalha entre o popular e a elite,
“donas do poder”. Deixando-se um abismo ao se referir às relações interpessoais e
intrapessoais dos sujeitos urbano, das formas de microfísica do poder e de biopoder entre os
indivíduos, e sua relação com os espaços de sociabilização dentro da cidade.
Partindo da afirmação que “(…) uma Cidade abriga todos estes tipos de espaços
construídos, em múltiplas combinações possíveis, por superposição, substituição ou
composição”1572. Pressupõe-se que por sua grande diversidade é um pecado trabalhar com a
1571
CANDIOTTO, César. Foucault e a critica do sujeito e da história. In: Revista Aulas. 2006/2007, p. 8.
1572
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto”. In: Narrativas da
pós-modernidade na pesquisa histórica, 2005, p. 115.
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cidade, partindo da sua dialética com o social, agrupar os indivíduos urbanos em uma única
concepção. Afinal o comportamento humano se modifica de acordo com o ambiente em que
se encontra o sujeito. E dentro deste, outros subespaços serão construídos. E é a partir destas
subdivisões deixa-se de encontrar os espaços, para alcançar a subjetividade humana.
Esses múltiplos espaços dentro da cidade ou subespaços urbanos devem ser vista
na mesma perspectiva que trabalha Mascarenhas.
Como já foi afirmado dentro desse âmbito maior chamado cidade, existem os
subespaços urbanos. Cada subespaço possui uma finalidade própria que deve garantir a
harmonia e a existência das formas de relações social dentro da cidade. Por exemplo, os
presídios devem – que não é a mesma coisa de poder – afastar das relações urbanas os sujeitos
que são considerados “perigosos” para a existência e os gozos das vidas individuais e
coletivas. Outro exemplo são os Mercados, que tem por finalidade o fornecimento de
mercadorias para os habitantes da cidade facilitando o encontro dos sujeitos urbanos com os
gêneros alimentícios e outros objetos que garantem a existência de vida fora do mundo rural.
Dentro dessa finalidade, rege as relações de vida e poder entre os indivíduos. Por
um objetivo uma série de cadeias de relações sociais é construída. O Mercado tem suas
relações internas principiada por um pressuposto de caráter comercial estabelecendo logo em
seguida subligações entre os freqüentadores daquele espaço como as relações entre
consumidor e feirante. Observa-se assim que a coluna vertebral que sustenta as relações
sociais ali existentes é o fato de esse subespaço fornecer subsídios para a sobrevivência dos
indivíduos dentro da cidade.
Partindo desse pressuposto, este artigo objetiva – o qual faz parte de uma pesquisa
monográfica – identificar as peculiaridades dos sujeitos históricos os quais estabeleceram
relações de poder que freqüentavam o Mercado Antônio Franco. Um estudo sobre o antigo
1573
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, p 1.
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Mercado Modelo, localizado na capital sergipana, entre o período de 1926, data da sua
inauguração sendo que o batimento de sua primeira pedra ocorreu em 1923, a 1949, ano da
inauguração do “Mercado Auxiliar”, futuramente conhecido como Mercado Thales Ferraz.
Logo em seguida, serão apontados os micros espaços de sociabilização existentes dentro e nas
proximidades do mercado, cada um com um determinada importância para a construção
histórica daquele espaço, símbolo da cultura e da tradição popular de Aracaju. Símbolo da
vida de um povo urbano.
1574
Artigo construído a partir de um trabalho de conclusão que ainda está em fase de conclusão pelos mesmos
autores. Por isto aqui neste artigo tentar-se-á evitar a realização de analises das relações ali existentes como, por
exemplo, as relações de poder a partir de uma perspectiva foucaultiana ou a relação dos sujeitos com o próprio
mercado. Estes que são os objetivos do trabalho monográfico que ainda está em faze de conclusão.
1575
Tornando-se errôneo este tipo de associação conceitual quando aplicado para as comunidades
contemporâneas
1576
Atual Avenida Rio branco que ficou e ainda é conhecida como Rua da Frente.
1577
SOBRINHO, Sebrão. Laudas da história de Aracaju. 1954, p. 400.
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justifica a construção de um mercado, pois este “(…) apresenterá a cidade melhor aspecto,
que caracterizará a índole e a civilização do povo de Sergipe”1578. Isso nos faz indagar a que
tipo de civilização o Dr. Luis Álvares se referia? Qual era esse “padrão de civilização” que o
povo deveria se remodelar?
1578
Idem. p. 401
1579
PORTO, Fernando. Nomes Antigos do Aracaju 89-90.
1580
SADRONI. Novíssimo Dicionário de Economia. 2002, p.
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Outros conceitos são de tamanha importância para esta pesquisa como o apontado
por Letícia Barbosa e Patrícia de Araújo, ampliando o significado cultural do local conhecido
como feira, mostrando neste texto sua importância educacional, pois este espaço
1581
BARBOSA, Letícia Rameh & ARAÚJO, Patrícia Cristina de Aragão. Feira, lugar de cultura e educação
popular. In: Revista “Nova Atenas” de Educação Tecnológica. p. 2
1582
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, p 2
1583
Como o trabalho ainda está em andamento, a coleta de depoimentos é um dos procedimentos que estão em
andamento. E a localização de alguns espaços foi baseada em conversas informais, já que é comum,
metodologicamente, que as primeiras aproximações entre o pesquisador e o entrevistado não ocorra de forma
oficial, ou seja, sem a presença do gravador.
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Como deu para perceber pelo perfil das entrevistadas, era comum ainda na
infância irem para o mercado crianças a fim de trabalharem para vender geralmente frutas e
produtos derivados do fubá e da tapioca, outras abasteciam seus cestos e saiam pelas ruas a
vender frutas e legumes. Até hoje é comum ver crianças trabalhando nas feiras da cidade de
Aracaju – vendendo, carregadoras. Evitando-se colocar em uma perspectiva temporal, de
forma generalizada são utilizados pelas antigas crianças trabalhadores de feiras com as de
hoje a mesma justificativa para a sua entrada logo cedo no mercado de trabalho, que é o
auxilio econômico a família desempregada.
1584
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. p. 202.
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próximos do novo Mercado”1585, como relata Porto. Mas para a realização desta obra o poder
público precisou do financiamento da iniciativa privada, esta que pode ser chamada de
Coronel Antônio Franco.
1585
PORTO, Fernando. Alguns nomes antigos do Aracaju, 2003, p. 89-90
1586
Beco entre a Avenida Rio Branco e Rua João Pessoa que liga a Rua São Cristóvão a Rua Laranjeiras,
atualmente conhecido como travessa Deusdédite Fontes.
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registrada como o caso de Luís Dias da Silva em 1926 que por entrar em falência queimou o
livro de contabilidade no intuito de causar um incêndio e ganhar o dinheiro do seguro1587. Tão
caros que não propiciaram a formação de lucro sendo este fenômeno criticado pelo Correio de
Aracaju de 20/07/1926 onde “É muito justa tal lembrança, devendo assim ser attendida pelos
ricos donos do Modelo”.
Exploração é o termo que pode ser economicamente definidora das relações bases
entre Consumidores/Mercadores/Administradores do Mercado Antônio Franco, mas
socialmente falando a fúria foi a características marcantes desse tipo de relação que se dá nos
primeiros anos de existência do Mercado. A fúria sempre traz o caos, como a volta da feira
para o local de onde foi retirada.
No entanto, nesta mesma reportagem o jornal faz um alerta aos “falsos mendigos”
que para viver na ociosidade parasitavam entre os realmente necessitados.
Com boatos e bastante imaginação, qual foi impacto da morte de João Pessoa e da
Revolução de 1930 na imaginação popular dos aracajuanos? Alguns vazios existe na
historiografia sergipana.
1587
AGPJSE, Processo Crime – Caixa 2555
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Outro grupo que lucrou sócio, econômico e sexualmente nas ruas e trapiches que
rodeavam o mercado foram às prostitutas, as quais tiveram seus principais subespaços de
sociabilização: os edifícios conhecidos como Vaticano e o Beco dos Cocos.1588
O mercado tornou-se propício para a realização de tais profissões por ser uma
região de grande aglomeração masculina. Além que segundo Vrissimtzis deste os tempos
gregos a prostituição em portos é um ato comum e constante, pois ali se apresenta “um grande
número de estrangeiros, sobretudo marinheiros e mercadores, alguns ricos (…). Era, por tanto,
1590
natural que particularmente a prostituição se desenvolvesse nesse ambiente” . Até aquele
período de grande movimentação na barra do Rio Sergipe, trazendo marinheiros e mercadores
de todo o Sergipe e outros Estados.
Outro ponto de comércio foi a “Peda”, era o local que ficava entre as Ruas Santa
Rosa e Rua Japaratuba (atual José do Prado Franco). Alguns locais de sociabilização ali se
1588
Vaticano localizado na Avenida Otoniel Dória e o Beco dos Coco que liga a Praça General Valadão a Rua
Santa Rosa.
1589
RAMINELLI, Ronald Raminellu. “História Urbana”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS,
Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. p. 196-197.
1590
VRISSIMTZIS, Nikos A. “Prostituição”. In: Amor, Sexo e Casamento na Grécia Antiga. p. 91.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
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estabeleceram como o famoso Bar Magnífico localizado no ângulo norte e que serviu como
palco da inauguração do Mercado Modelo, reunido astros da intelectualidade e da política
sergipana. Outro local importantíssimo foram duas praças que foram construídas ao redor do
mercado: A primeira ficou conhecida como Ignácio Barbosa (onde hoje é o Mercado Thalez
Ferraz) separou o Mercado Modelo da Estação Férrea. Foi cenário do comércio intenso de
animais e dos estivadores que descarregavam os navios e trens que viam lotados de frutas e
imigrantes que viam com o “sonho sergipano” de felicidade.. Como ilustra a seguinte figura
Foto ilustrativa à Praça Ignácio Barbosa (atual Mercado Antônio Fraco) em 1935
A outra praça ficou conhecida como Praça das Sete Lâmpadas, separando o
mercado do Rio Sergipe, ficou por um bom período bloqueado por causa da grande
quantidade barracas ali estabelecido, mas “seria um lume, a testemunhar o movimento dos
saveiros, chegando e saindo com suas grandes velas, os navios de passageiros (…)”1591.
IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
1591
BARRETO, Luis Antônio. p. 2
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Através da Antropologia Urbana, alguns vazios foram deixados neste texto para
aqueles corajosos amantes da História Cultural. Também, alguns temas foram sugeridos para
a “História dos Indivíduos na Cidade”. Mas sempre devemos lembra que existem indivíduos e
relações sociais nas paredes urbanas.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, Letícia Rameh & ARAÚJO, Patrícia Cristina de Aragão. Feira, lugar de
cultura e educação popular. Revista “Nova Atenas” de Educação Tecnológica. Vol. 7. n. 2,
jul/dez/2004.
BARRETO, Luís Antônio. O cotidiano do lazer nos bares, cinemas e cabarés. Disponível
em: http://www.infonet.com.br/serigysite/ler.asp?id=7&titulo=Aracaju150anos acessado em
18/02/2008 as 13h34min.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. trad.
Carlos Moiséis, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CERTEAU, Michel de. A invenão do cotidiano: 1. artes do fazer. Trad. Ephraim ferreira
Alves. 9. ed. Petróplis, Rj: Vozes, 1994.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
___________. Muito Além do espaço urbano: por uma história cultural do urbano.
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POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5,
n. 10, 1992, p. 200-212.
RAGO, Margareth. O efeito Foucault na historiografia Brasileira. Tempo Social, USP, São
Paulo, 7 (1-2): 67-82, outubro de 1995.
RAMINELLI, Ronald Raminellu. “História Urbana”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion &
VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 11.
tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. “Tese sobre o itinerário da historiografia do século 20: uma
visão numa perspectiva de longa duração.”. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre
(org). Historiografia Contemporânea em Perspectiva Crítica. Bauru, SP: EDUSC, 2007.
Fontes:
IHGS:
Correio de Aracaju – 1926 / 1927/ 1928 / 1929 / 1930 / 1940 / 1941/ 1948 / 1949
AGPJSE:
A roda foi um meio que o ser humano inventou para utilizar a força (energia) de
determinados animais irracionais em suas atividades diárias. O surgimento dela veio a facilitar
o transporte de objetos pesados, melhorando o deslocamento do ser humano e de suas
mercadorias.
Os transportes terrestres realizam-se por meio de terra firme. Eles são divididos
em: rodoviários, como por exemplo, o ônibus, o carro; os ferroviários, que são feitos através
de estradas de ferro, como por exemplo, o bonde, o trem, o metrô; e ainda os de recovagem,
transporte que se faz através do lombo de animais, como por exemplo, a carroça, neste
poderia se encaixar o bonde à tração animal, visto que estes eram puxados por muares.
Para que possamos falar sobre o desenvolvimento dos transportes coletivos feitos
por bondes na cidade de Aracaju, é necessário primeiro, falarmos sobre como esta cidade se
estruturou, por exemplo, como ela surgiu, a necessidade de seu crescimento, como isso
ocorreu, para então chegarmos ao fator deslocamento, o porquê os seus habitantes utilizavam-
se de meios de transportes para se locomoverem.
“(...) foi edificada a Igreja de São Salvador (atual Rua das Laranjeiras) com a
Rua do Barão (atual João Pessoa). Houve, então, o primeiro movimento da
cidade em direção ao oeste através da estrada para a antiga capital – São
Cristóvão – hoje com o nome de Rua São Cristóvão, no trecho situado
dentro do perímetro urbano.” (RIBEIRO, p. 44).
Viver em Aracaju, inicialmente não era fácil, no que se refere ao fator econômico,
pois saia muito caro morar na cidade planejada. O perímetro do Plano de Pirro, possuía um
terreno arenoso, o que dificultava as edificações na região. A Câmara Municipal, segundo
PORTO (1991), a partir da segunda metade do ano de 1856 passou a executar algumas
posturas regulamentando as edificações e os costumes de seus habitantes. Eram exigidas, por
exemplo, dimensões para as portas e as janelas; mandavam caiar as frentes das casas, pelo
menos duas vezes ao ano; e em determinados perímetros era proibida a cobertura de casas
com palha.
de Pirro. “Tudo que ficasse dentro “do quadro da Cidade” tinha que se condicionar,
estritamente, às “pesadas” exigências da Câmara”. (PORTO, 1991, 42).
Os bondes à tração animal eram compostos por cinco bancos, onde cada um tinha
a capacidade de comportar quatro pessoas, ou seja, a sua capacidade total era de vinte
passageiros, além de ser puxados por dois burros. Segundo Diniz, em Aracaju: Síntese de sua
Geografia Urbana (1963), existiam 16 (dezesseis) veículos e uma linha de 8 (oito)
quilômetros.
A partir do final da década de 1920 surge o Bonde elétrico, mais rápido que o
antigo, movido à atração animal, porém segundo Murilo Mellins, em Aracaju Romântica Que
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1266
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Vi e Vivi (2000), ainda era lento. Aracaju era servida por bondes elétricos vindos da
Inglaterra, eram pequenos, vagarosos, abertos em ambos os lados. Os passageiros tinham o
acesso ao transporte através de dois estribos de cada lado por toda a extensão. Na parte
interior, dez bancos de madeiras em tiras iam de um lado a outro; os encostos eram
removíveis.
Como também eram freqüentes a obstrução das ruas por onde passava o bonde,
fato que fazia com que a população daquela localidade ficasse sem o recurso do transporte, e
em muitas casos o percurso demorava até uma hora para ser feito por um bonde.
motorneiro encaixava a manivela em outro motor que ficava na parte posterior, agora frente,
seguindo seu curso normal.
A linha número três – Aribé - essa linha passava pelas ruas principais do atual bairro
Siqueira Campos. A linha número quatro - 18 do Forte - servia ás ruas que demandavam
aquele bairro. A linha número cinco – Circular - subia a Rua Itaporanga, passava pela avenida
Pedro Calazans, Praça da Bandeira, descia a Avenida Barão de Maruim, indo pela rua Arauá
até Itaporanga. Essa linha era usada por moradores do bairro Cirurgia, Caixa D’ Água, Carro
Quebrado, e levava muita gente ao cinema Guarany e aos circos armados na praça da
Bandeira.
Por Volta de 1950 o sistema de transportes por bonde elétrico entrou em decadência,
diversos foram os fatores, podemos destacar a falta de energia elétrica, que fazia muitas vezes
os passageiros esperar muito; mudanças súbitas de itinerários, como também o fator que a
cidade estava em constante crescimento e o sistema de transporte teria que evoluir com a
cidade; além do surgimento dos primeiros ônibus, mais conhecidos como marinetes, surgindo
desta maneira uma concorrência desleal, pondo fim ao sistema de transportes por bondes
elétricos.
PERÍODICOS
ANJOS, Francisco Paulo dos. Aracaju: Evolução do Uso do Solo e Sistema de Transporte
Urbano. In: Jornal da Cidade, Aracaju, 20 e 21 de mar. de 2005.
CORREIO DE ARACAJU. Jornal, Aracaju, 1906, 1907, 1909, 1917. 1925, 1927, 1929, 1932.
REFERÊNCIA BIOBIOGRÁFICA:
CAMPOS. José Aloísio de. Prestando Contas Ao Povo Aracajuano: Uma Nova Experiência
de Governo Municipal, Aracaju 06/07/1970. Acervo: Instituto de Pesquisas Tobias Barreto.
CAMPOS. José Aloísio de. Como desenvolver uma cidade. Planos de desenvolvimento
integrado. Aracaju, 03/05/1970. Acervo: Instituto de Pesquisas Tobias Barreto.
REY, Luís. Planejar e Redigir Trabalhos Científicos. São Paulo: E. Blücher. 2. ed., 2000. 318
p.
RIBEIRO, Neuza Maria Góis. Transformações do Espaço Urbano: O Caso de Aracaju. 1989.
RODRIGUES, Auro de Jesus. Metodologia Científica. São Paulo: Avercamp, 2006. 222 p.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 21.
ed., 2001. 279 p.
Este trabalho é um recorte do projeto de iniciação cientifica / PIVIC da UEPB e tem como
objetivo identificar através das narrativas das mulheres idosas da comunidade do Matias,
jogos e brincadeiras infantis de rua que caracterizam a cultura afro-brasileira. No Brasil, em
que a essência da formação é de caráter colonial escravista, verifica-se na historiografia, assim
como na memória histórica e social, um hiato entre práticas cotidianas e o patrimônio cultural,
no que diz respeito ao lazer e ao lúdico quando nos reportamos à cultura negra. Dessa maneira
faze-se necessário, no atual contexto, reelaborar a história dos jogos e brincadeiras
tradicionais, entendidas como expressão da história e manifestação da cultura de uma
determinada época. A utilização da história Oral foi escolhida como opção teórico-
metodológica porque propicia perscrutar e visualizar as experiências vividas por aqueles que
culturalmente são excluídos da história, e que ocupam um pano de fundo na história
tradicional oficial.
1592
Graduando em História pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Aluno pesquisador da iniciação
cientifica / PIVIC e membro do grupo de pesquisa História e Cultura afro-brasileira.
1593
Orientadora do projeto de iniciação cientifica/PIVIC e líder do grupo de pesquisa História e Cultura afro
brasileira.
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1270
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destaca Ianni (1978, p.52) “ele aparece ao branco e a si mesmo, como um tipo social, cuja
sociabilidade e cultura apresentam características que o diferenciam do branco, bem como os
valores que organizam suas atividades”.
Assim, nessa rede de relações sociais das quais o negro surge como diferente, na
busca da singularidade social e cultural se situa uma questão central, a forma como recriam a
cultura africana no Brasil.
Dessa forma, examinaremos a partir dos relatos das mulheres idosas, descendentes
de uma comunidade quilombola, as táticas utilizadas para manter e recriar no cotidiano social
jogos e brincadeiras infantis. Partindo do pressuposto de que as brincadeiras foram
transmitidas de geração em geração expressa os valores determinados de uma determinada
época, apresentasse no atual contexto histórico a necessidade de resgatar a história dos jogos e
brincadeiras tradicionais. Entendidas como expressão da história e manifestação da cultura, de
uma determinada época, podendo nos mostrar um estilo de vida, maneiras de pensar e,
sobretudo maneiras de brincar e interagir, configurando-se em presença viva de um passado
presentificado através das narrativas dos sujeitos sociais.
Baseado na mentalidade popular a brincadeira tradicional e infantil como forma
expressão das manifestações culturais, ao serem repassadas pela oralidade dos nossos pais e
avos se caracteriza como um patrimônio que incorporam criações anônimas das gerações que
não tiveram direito a voz.
Entendida enquanto manifestação livre e espontânea da cultura popular a
brincadeira tradicional tem a função de perpetuar a cultura infantil, desenvolver formas de
convivência social ao permite o prazer de brincar. Segundo Kishimoto (1999), a brincadeira
por pertencer a categoria das experiências transmitidas espontaneamente, a brincadeira
tradicional infantil de rua garante a presença do lúdico, levando a construir no imaginário
social momentos de fantasia e de sonho.
A historiografia oficial evoca o passado ativando recordações regidas por uma
temporalidade única, ordenando os acontecimentos de forma que as pessoas se lembrem
apenas do saber institucionalizado e submetido a um modelo que dita as normas do conhecer e
do agir.
Nesse contexto, nos acostumamos a aceitar “verdades construídas”, pela cultura
hegemônica européia, através da memória-hábito, imprimindo valores ditados pela
historiografia oficial. Desse modo, em vez de continuarmos ouvindo e repetindo o que foi
registrado oficialmente, podemos desenvolver táticas no sentido de reconstituir através da
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oralidade momentos de ludicidade e de sociabilidade, através das histórias que não puderam
ser contadas.
A tradição oral, além de fortalecer a relação entre pessoas e a comunidade, cria
uma rede de transmissão de tipos distintos de conhecimento e de modo de vida. Dessa forma,
através da oralidade, vão se conhecendo e se fazendo nos sucessivos encontros e desencontros
das diferentes histórias de vida que foram tecidas por essas vozes, o modo de vida e o
conhecimento de um momento que pode ser revivido através do ato de recontar.
Em comunidades rurais, como é o caso das comunidades quilombolas, há um
respeito ainda pela palavra falada, caracterizada com atividade comunicativa, que tem um
poder de transformar em ação, momentos de cumplicidade, contador/ouvinte com também
envolver e partilhar valores que foram e são significativos para a comunidade. Como
depositário das palavras as mulheres idosas, além da memória e do testemunho vivo garantem
no ato de contar e de relembrar os jogos e brincadeiras de sua infância, a socialização de
palavras e memórias.
Conferimos à memória um sentido de permanência e de identidade a grupos
específicos, mas também um manancial de sobrevivências vestigiais. Como reflexão sobre o
passado é também, segundo Guarinello (1994, p. 188) “uma forma de ação, uma ação
representativa e parte da atividade auto-representativa que uma sociedade, grupo ou indivíduo
reproduzem de si, para assumirem e defenderem sua identidade e para orientarem sua ação
individual ou coletiva”.
Mas a memória não é tão somente uma eterna repetição do mesmo, do idêntico a
si. Ela é também potencialmente uma ação reflexiva, uma inquisição proposta ao tempo, é
este o sentido que estamos tomando quando buscamos traçar um quadro dos jogos e
brincadeiras infantis, não buscando apenas identidades e permanências, mas principalmente as
diferenças, as mudanças, ou seja, momentos de ressignificação das brincadeiras infantis das
mulheres destas comunidades.
Este trabalho tem como propósito valorizar a cultura afro-brasileira, ao identificar
e analisar através das práticas sociais nas atividades lúdicas, os jogos tradicionais e
brincadeiras infantis competitivas que refletem a identidade cultural de um determinado grupo
étnico. No caso específico, procura reviver as brincadeiras infantis na comunidade
remanescente de quilombolas do “Matias”. A partir da vivência das mulheres idosas se faz
necessário reavivar memórias silenciadas, com o intuito de dar sentido e visibilidade à cultura
popular vivenciada por povos e comunidades tradicionais.
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Nos últimos anos, a partir da Escola dos Analles e da nova história cultural, a
História passa a reconhecer a importância das fontes orais para o processo de produção e
construção de uma historicidade popular. Sendo assim, compete neste estudo através dos
depoimentos orais das mulheres da terceira idade (década de 1930, 1940 e 1950), sistematizar
através da história da infância destes grupos sociais, os jogos e brincadeiras infantis, tentando
através da rememoração, reconstituir os momentos de ludicidade e lazer que tiveram alguma
importância ou não no cotidiano social rural em sua infância.
Um dos focos a ser privilegiado neste projeto de pesquisa, refere-se à como
produtora de cultura e de historicidade, a partir dos registros que a comunidade tem registrado
em sua memória; a história construída a partir de sua história de vida.
Neste sentido busca-se analisar os relatos que os seguimentos populares fazem
dos fatos cotidianos, dos quais se conhece apenas a versão da história oficial. Segundo
Montenegro (2003), a importância de uma pesquisa com fontes orais, tem possibilitado o
resgate de experiências e representações passadas e presentes. Portanto o caminho escolhido,
a história oral, centrada nos processos de rememoração, tomando as narrativas das mulheres,
como fonte permitem instituir um novo campo documental.
A utilização da história oral foi escolhida como opção teórico-metodológica
porque propicia perscrutar e visualizar as experiências vividas por aqueles que culturalmente
são excluídos da história, e que ocupam um pano de fundo na história tradicional oficial.
Desta forma, a escolha de uma discussão e reflexão que envolve a memória
individual e coletiva torna-se importante enquanto processo e fenômeno de reconstituição do
passado, ao inserirmos através da memória de 15 mulheres idosas de cada comunidade a
identidade cultural da etnia negra nos registros históricos.
As entrevistas também serão feitas com as lideranças (15 de cada comunidade)
comunitárias dos grupos de mulheres que freqüentam as Sociedades Amigos do Bairro
(SABs) dos bairros de Santa Rosa e Malvinas, com vistas a elaborar um quadro comparativo
entre as brincadeiras narradas através da memória de uma história de hegemonia branca e uma
história tida como inferiorizada e negativizada.
Neste sentido, as conversas do tipo informal se iniciariam com perguntas sobre a
infância e o processo de socialização das entrevistadas no grupo maior, assim como perguntas
que levem a identificação dos sujeitos sociais, tais como onde e quando nasceu, onde passou a
infância, os tipos de brincadeiras considerados mais importantes.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O´dwyer (org.). Quilombos - identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro, Editora FGV,
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Gisela Wajskop. 2º Ed. São Paulo, cortez, 1997.
CARDOSO, Ruth. (org.) Aventura Antropológica: Teoria e Pesquisa. Rio de Janeiro, Paz e
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CARVALHO, José Jorge. Prefácio. In CARVALHO, José Jorge (Org) O Quilombo do Rio
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DECCA, Edgar de. O Silêncio dos Vencidos: Memória, história e revolução. São Paulo,
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HUIZINGA, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo,
perspectiva/EDUSP, 1971
NORA, Pierre. Entre Memória e História A Problemática dos Lugares. In: Projeto
Histórico, Nº 10, São Paulo, PUC, 1993.
INTRODUÇÃO
é lá que encontramos uma produção com características do agronegócio. Outro fato relevante
é que nesta parte do território de Areia Branca apresenta-se em sua maior parte o vertissolo,
um tipo de solo argiloso, que é bem apropriado à produção de cana-de-açúcar. Deste modo, é
importante observar que o fato da presença do referido solo, mais conhecido por massapé, e
os fatores da ocupação histórica na zona da mata nordestina para esse tipo de cultura, por se
só não explicam a presença contínua da produção canavieira nessa região, mas está atrelado
ao próprio interesse de reprodução e ampliação do capital. Este (o capital) se apropria do
território em busca de lucros e geração de desigualdades sócio-espaciais.
Para entendermos os fatos que explicam a existência da monocultora de cana-de-
açúcar na parte oriental do município, temos que inseri - lá no contexto do agronegócio.
O agronegócio em Areia Branca é praticado nessas grandes propriedades. Apesar
de compreendermos que historicamente sempre foi forte a presença da cultura canavieira, e
por isso invoca-se toda a tradição, muitos latifundiários se adaptaram à modernidade, sem
precisar mudar o produto, mais sim a forma de cultivá-lo. Os latifundiários do nordeste do
Brasil mesmo sendo considerados por muitos autores como um dos grupos sociais mais
conservadores, estes buscam sempre manter seu poderio dentro da esfera econômica
utilizando-se agora do que Milton Santos chama de meio técnico-científico-informacional,
que irá permitir um novo uso do território, um local para reprodução intensiva do capital.
Sobre esse modelo de produção agropecuário Marafon (2007) relata:
mercadológico, torna-se possível obter informações sobre até quando compensa optar ou não
pelo replantio, segundo o mesmo entrevistado.
Localizado ao lado da zona da agricultura cientifica a que tratamos anteriormente,
a área de produção camponesa, fica na parte ocidental. Nela encontramos uma variedade
enorme de lavouras, tanto as de cultura permanentes (laranja e coco) como as temporárias
(milho, mandioca, feijão, tomate, amendoim). Os produtores dessa área de Areia Branca
contrapondo-se aos canavieiros, pois em geral apresentam-se distribuídos em pequenas
propriedades. A inversão de capitais nessa lavoura é menor que na agricultura científica, e ao
contrario do retorno financeiro, que a na lavoura camponesa de Areia Branca é bem maior, já
que se investiram menos capitais.
Tabela da produção agrícola de Areia Branca (2006)
A área oeste do município de Areia Branca, portanto está mais ligada à agricultura
camponesa, apresenta na sua maior parte solo mais arenosos, não tão férteis como o massapé,
mas que propicia uma rica produção hortifrutigranjeira. O solo é visto por esses camponeses
como uma dádiva de Deus, e que dele se apropria quem deseja trabalhar, a terra não precisa
ser corrigida, ela dará ao homem o que dela ele poder tirar dela. “O homem deve saber que a
terra ‘precisa ser bem tratada’, do que resulta uma forma de reciprocidade positiva”
(WOORTMAM, 2003).
As diferenças entre os solos e suas formas de utilização remontam a questão do
território, visto pelo camponês sobre uma perspectiva “etnoecológica” (WOORTMANN,
2003), enquanto que no agronegócio, se apropria do território para transformá-lo em mais um
meio de reprodução do capital. Ainda sobre a questão do solo para o agricultor familiar
WOORTMANN, em seu artigo, O saber tradicional camponês e inovações, fala de
denominações dadas por camponeses sergipanos a essa diversidade de solo:
poder aquisitivo. Em posse desses dados pode-se dizer que aonde se produz cana-de-açúcar,
há um decréscimo nas condições de vida e de trabalho, uma vez que o poder aquisitivo desses
proletários rurais é achatado, dificultando o acesso a vestuário, alimentação, saúde e higiene
pessoal.
Entretanto, se estes trabalhadores, que tem a sua mais-valia extraída pelos que
detém os meios de produção, tivessem a posse dessas terras apresentariam um padrão de vida
igual ou superior aos dos agricultores orgânicos, pois essas terras ocupadas pelo latifúndio são
de produtividade bem superior. Pois sendo este um solo mais argiloso, fica úmido logo acima
da camada superior do regolito, próxima a superfície, isso acontece mesmo em épocas secas,
pois é um solo menos impermeável e drena pouca água que recebe das chuvas para os lençóis
freáticos o que contribui ainda mais com relação a sua qualidade.
Como foi demonstrado pelos dados do IBGE, pode-se afirma que se fosse
praticada agricultura camponesa na área onde se encontra a monocultura canavieira, o
rendimento poderia ser até maior, ainda pela questão do solo argiloso ser mais fértil, que
diferentemente do usado pelos agricultores camponeses em sua maioria um solo mais arenoso,
por isso menos fértil. Isso seria uma ótima solução caso o Governo resolvessem através de
medidas de segurança alimentar desapropriar essas terras e criar um novo processo de
“colonização” destas, e transformar-las em grandes “celeiros agrícolas alimentares”, com uma
rica e desenvolvida agricultura camponês-orgânica, produzido alimentos mais saudáveis
melhorando a qualidade de vida e as condições de trabalho dos atuais “proletários rurais”,
fazendo dessas pessoas autônomas, senhora de sua própria força de trabalho. Já que é a
produção camponesa uma das quem mais produzem alimentos para a população, e além de
produzir para o auto-consumo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.
A violência esteve durante muito tempo ligada ao cotidiano das pessoas, sejam homens ou
mulheres, reproduzindo-se até os dias atuais. Os crimes eram cometidos pelos mais variados
motivos. Os delitos freqüentemente cometidos iam desde ofensas físicas, homicídios, furtos e
até os de menor índices como as ameaças, dentre outros. Baseando-se no livro de rol dos
culpados, da Comarca de Estância, do período oitocentista (1850 – 1900) armazenado no
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, juntamente com os relatórios dos presidentes da
província, tem-se por objetivo a analise e comparação dos dados coletados, ressaltando os
índices das qualificações dos crimes, gênero e perfil dos agressores, limite espacial, armas
utilizadas e o resultado das sentenças.
INTRODUÇÃO
1594
Relatório do Presidente da Província, 1864, p.4 <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1207/000006.html> acessado
em 29 de Agosto de 2008 às 15h24min.
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Quadro 1
O quadro demonstra o perfil dos criminosos, a faixa etária, sua situação com a
justiça, nacionalidade, e sexo dos mesmos, em que ao serem analisados chegamos à conclusão
que as cartas dos Presidentes da Província e o livro de rol dos culpados têm quase os mesmos
perfis de criminosos. Em sua maioria temos como infratores homens, brasileiros, com a faixa
etária de 21 a 40 anos. Nos quadros a seguir veremos dados coletados das profissões e crimes
mais cometidos:
Quadro 2
Quadro 3
O quadro mostra que o responsável pela maior parte dos crimes cometidos são
ofensas físicas.
Um caso que nos chamou atenção cujo vitima e autor do crime são mulheres é o
de Constança, escrava do Tenente Antônio José Vieira, morador da Rua do Caminho do Rio
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O assassinato mais notável d’este ano, não pela qualidade da victima, mais
pela barbaridade que foi comettido, he o que teve lugar, no dia 2 de Abril, no
sitio denominado – Cova da Onça -, Termo de Itabaiana. Foi achado n’esse
lugar o cadaver de hum infeliz de nome Manoel Francisco de Goes, tão
coberto de facadas e cacetadas que se não podião contar as feridas e
contusões.1595
A partir dos crimes, pode se conhecer um pouco dos costumes e idéias de uma
sociedade. As incompetências na administração da justiça e ate mesmo os crimes hediondos
levaram a população a duvidar da força e da previdência da mesma, sendo vista como uma
verdadeira calamidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1595
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em 29 de agosto de 2008 as 14:30.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
I Congresso Sergipano de História: História e Memória
1294
ANPUH/SE & IHGSE
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106. Monografia (Graduação em História), Universidade Tiradentes, Aracaju, 2008.
ÍNDICE REMISSIVO