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Anais eletrônicos do I Congresso Sergipano de História

- ANPUH/SE e IHGSE - 1

ANAIS ELETRÔNICOS

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


ISBN - 978-85-7822-067-9
Anais eletrônicos do I Congresso Sergipano de História
- ANPUH/SE e IHGSE - 2

ANAIS ELETRÔNICOS DO I CONGRESSO


SERGIPANO DE HISTÓRIA
(TEXTOS COMPLETOS)

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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Associação Nacional de História /Núcleo Sergipe – ANPUH/SE


Endereço:
Universidade Federal de Sergipe
Departamento de História
Edifício da Adm. Departamental II/Sala 04
Av. Marechal Rondon, s/n - Jardim Rosa Elze, São Cristóvão – Sergipe
Página da Instituição: http:// www.se.anpuh.org

Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe - IHGSE


Endereço:
Rua Itabaianinha, 41, Centro – Aracaju/SE
49000-000
Página Institucional: http://www.ihgse.org

Organização dos Anais Eletrônicos:


José Vieira da Cruz (Editor)
José Ibarê da Costa Dantas
Antonio Fernando de Araújo Sá
Aldair Smith Menezes

Revisão
José Vieira da Cruz
Aldair Smith Menezes
Joceneide Cunha dos Santos
Cristine Vitório de Souza

Diagramação:
Adeilton Smith Menezes
Cláudia dos Santos Evaristo
Faustina Andrade dos Santos Bispo

Capa:
Adeilton Smith Menezes

Arte-finalização:
Adeilton Smith Menezes

Observação: A adequação técnico-lingüística dos textos é de responsabilidade dos autores

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Congresso Sergipano de História : História e Memória


(1. : 2008 out. : São Cristóvão, SE).
C749c I Congresso Sergipano de História : História e
Memória, São Cristóvão, SE, 08 a 10 de outubro de
2008 : Anais Eletrônicos. – São Cristóvão, SE :
ANPUH/ SE ; Aracaju : IHGSE, 2008.
1299 p.

1. História. I. Título.

CDU 94

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DIRETORIA ANPUH/SE

José Vieira da Cruz – Diretor


Antônio Fernando de Araújo Sá – Vice-Diretor
Dilton Cândido Santos Maynard – Secretário
Cristina de Almeida Valença – Tesoureira
Antonio Bitencourt Júnior – 1º Suplente
Hermeson Alves de Menezes – 2º Suplente
Itamar Freitas de Oliveira – 3º Suplente
Marcos Silva – Conselheiro
Joceneide Cunha dos Santos – Conselheiro
Lourival Santana Santos – Conselheiro

DIRETORIA DO IHGSE

José Ibarê Costa Dantas – Presidente


Terezinha Alves de Oliva – Vice-Presidente
Lenalda Andrade Santos – Secretária Geral
Tereza Cristina Cerqueira da Graça – 1ª Secretária
José Rivadávio Lima – 2º Secretário
Antonio Carlos dos Santos – Orador
Saumíneo da Silva Nascimento – 1º Tesoureiro
Ancelmo de Oliveira – 2º Tesoureiro
Verônica Maria Menezes Nunes – Diretora do Museu e da Pinacoteca
Itamar Freitas de Oliveira – Diretor do Arquivo e da Biblioteca

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COMISSÃO CIENTÍFICA

Antônio Fernando de Araújo Sá


Cristiane Vitório de Souza
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso
Dênio Santos Azevedo
Dilton Cândido Santos Maynard
Emanuelle Tourinho Almeida
Francisco Cancela
Hermeson Alves de Menezes
Itamar Freitas
Joceneide Cunha dos Santos
José Roberto dos Santos
José Vieira da Cruz
Josivaldo Pires
Maria Fernanda dos Santos
Maria Hilda Baqueiro Paraíso
Sheyla Farias Silva

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COMISSÃO ORGANIZADORA DO I CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA:

Organização geral:

José Vieira da Cruz


José Ibarê Costa Dantas
Antônio Fernando de Araújo Sá

Comissão institucional ANPUH-SE/IHGSE

Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso


Dilton Cândido Santos Maynard
Itamar Freitas
Joceneide Cunha dos Santos
Maria Fernanda dos Santos
Antonio Bitencourt Júnior
Terezinha Alves de Oliva
Lenalda Andrade Santos
Tereza Cristina Cerqueira da Graça
Verônica Maria Menezes Nunes

Secretaria:

Cláudia dos Santos Evaristo


Eduardo Lopes Teles
Faustina Andrade dos Santos Bispo
Maria Fernanda dos Santos
Mariana Emanuelle Barreto

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Comissão de Divulgação

Aldair Smith Menezes


Emanuelle Tourinho Almeida
Mariana Emanuelle Barreto
Paulina Vilar Carvalho
José Vieira da Cruz

Comissão de Infra-Estrutura

Allisson Fabiano Silva Ferro


Aaron Sena Cerqueira Reis
Anne Caroline Santos Lima
Gilsimara Andrade Torres
Joana Santos de Carvalho
José Alberto Caldas Júnior
Kátia Maria da Silva Leite
Kleckstane Farias e Silva Lucena
Mariana Emanuelle Barreto
Mateus Antonio de Almeida Neto
Patrícia Abreu dos Santos
Rafael Coelho Santana
Patrícia Abreu dos Santos

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Apoio:

Universidade Federal de Sergipe - UFS


Universidade Tiradentes – UNIT
Faculdade São Luís de França - FSLF
Faculdade de Sergipe - FASE
Faculdade José Vieira - FJAV
Governo do Estado de Sergipe
Prefeitura Municipal de Aracaju
Secretaria de Cultura do Estado de Sergipe
Secretaria de Turismo do Estado de Sergipe
Museu do Homem Sergipano/UFS
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Memorial do Poder Judiciário de Sergipe
Escola do Legislativo do Estado de Sergipe
Fundação de Amparo a Pesquisa e Extensão de Sergipe - FAPESE

Patrocínio:

Indaía Brasil Águas Minerais LTDA


Empresa Senhor do Bomfim
Art’s Legais
L’ Ostéria
Decide Imobiliária – CRECI PJ-001
Federação do Comércio de Sergipe - FECOMERCIO/SE

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SUMÁRIO

I - APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 10

I - PROGRAMAÇÃO DO CONGRESSO ..................................................................... 11


III - SIMPÓSIOS TEMÁTICOS...................................................................................... 13

Simpósio 1: História da escravidão e das culturas afro-brasileiras


Coordenadores : Profª. Msc. Joceneide Cunha e Prof. Msc. Josivaldo Pires .................. 14

Simpósio 2: História Social


Coordenação: Prof. Dr. Dilton Maynard.......................................................................... 16

Simpósio 3: História Política


Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz e Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo...... 17

Simpósio 4: História da Educação


Coordenadoras: Profª. Msc. Cristina de Almeide Valença e Profª. Msc. Cristiane
Vitório de Souza............................................................................................................... 18

Simpósio 5: Ensino de História


Coordenação: Prof. Dr. Itamar Freitas e Prof. Hermeson Alves de Menezes ................ 20

Simpósio 6: História, Sujeitos e Práticas Culturais


Coordenação: Profª. Msc. Sheyla Farias Silva................................................................. 21

Simpósio 7: História dos Índios no Nordeste


Coordenação: Profª. Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso e Prof. Msc.. Francisco
Cancela............................................................................................................................. 23

IV – SESSÃO DE PAÍNEIS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA


Coordenadores: Profª. Emanuele Tourinho, Prof. José Roberto dos Santos e Profª
Maria Fernanda Santos..................................................................................................... 24

V – ÍNDICE REMISSIVO.............................................................................................. 1295

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I - APRESENTAÇÃO

O Instituto Histórico Geográfico de Sergipe (IHGSE) aproximou-se da


Associação Nacional de História – Núcleo Sergipe (ANPUH-SE), nascendo daí uma parceria
que, com a cooperação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de outras instituições,
resultou na organização do I Congresso Sergipano a ser realizado de 08 a 10 de outubro de
2008.
Os sócios do IHGSE, desde cedo, demonstraram grande interesse em aprofundar e
socializar os estudos históricos. Em 1945, quando havia um grupo de professores afeiçoados
com a ciência de Clio, houve uma tentativa de realizar um Congresso de História em Sergipe.
Mas, as dificuldades se manifestaram intransponíveis naquela ocasião à concretização do
projeto. Todavia, em 1973, Sergipe sediou o V Congresso de História do Nordeste com a
participação de professores e alunos de vários Estados.
Neste momento, em pleno século XXI, quando estão em funcionamento em
Aracaju pelo menos cinco cursos superiores de História, distanciados entre si, a necessidade
de um encontro tornou-se premente no sentido aproximar professores, pesquisadores em geral
e alunos, de estabelecer uma permuta de experiências. Como se isso não bastasse, a vinda de
profissionais de outros estados tende a enriquecer ainda mais o Congresso, tornando
certamente as discussões mais diversificadas, não apenas nos diversos mini-cursos que serão
ofertados, mas também na sessão de painéis, nos simpósios temáticos e nas palestras
proferidas por historiadores.
Dentro desses propósitos de contribuir para o maior intercâmbio entre os
profissionais de História e do crescimento intelectual, o Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe e a Associação Nacional de História – Núcleo Sergipe apostam na participação de
todos os integrantes no sentido de que o I Congresso Sergipano de História signifique um
marco de referência nos estudos de História e Memória em Sergipe e quiçá no Brasil.

Associação Nacional de História - Núcleo Sergipe/ANPUH-SE


Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE

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II – PROGRAMAÇÃO

08 de outubro de 2008 – quarta-feira

14h – Início do credenciamento


15h – Programação cultural
19h – Solenidade de abertura
19 h e 30 min. – Conferência de abertura “História Política de Sergipe (1820-1889)”
Conferencista: Prof.. Msc. José Ibarê Costa Dantas /IHGSE
Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz /ANPUH-SE/SEED/UNIT
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

09 de outubro de 2008 – quinta-feira

08h às 12h – Mini-cursos

13h às 16h - Simpósios temáticos

16h às 18h – Mesa redonda “Índios e Negros no Nordeste”


Profª Drª Maria Hilda Baqueiro Paraíso/ UFBA
Profª Msc. Beatriz Goes Dantas /UFS
Prof. Dr. Luiz Mott/UFBA
Coordenação: Prof.ª Drª Suely Amâncio Martinelli/UFS/UNIT
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

18h – Lançamento de livros

19h e 30 min. – Mesa redonda “Lugares de Memória em Sergipe”


Profª Drª Terezinha Alves de Oliva/MUHSE/UFS
Profª. Msc.Verônica Maria Meneses Nunes /UFS/IHGSE
Prof. Manoel Alves /APES/FSLF
Coordenação: Prof. Msc. Antonio Bittencourt Júnior/UNIT/ANPUH-SE
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

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10 de outubro de 2008 – sexta-feira

08h às 12h – Mini-cursos

13h às 16h – Simpósios Temáticos

16h – Mesa redonda “História e Memória do AI-5 no Nordeste”


Prof. Dr. Muniz Ferreira/UFBA
Profª Dr.ª Lucileide Cardoso /UFRB
Secretario de Estado João Augusto Gama da Silva
Coordenador: Prof. Msc. Ruy Belém de Araújo/UFS
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

19h – Apresentação do Conjunto de Música Antiga Renantique


19h e 30 min. – Conferência de encerramento: História e Memória
Conferencista: Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá/ANPUH-SE/UFS
Coordenação: Prof. Dr. Dilton Cândido Mayanard /ANPUH-SE/UFS
Local: Auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

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III – SIMPÓSIOS TEMÁTICOS


(TEXTOS COMPLETOS)

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Simpósio 1: História da escravidão e das culturas afro-brasileiras


Coordenadores : Profª. Msc. Joceneide Cunha e Prof. Msc. Josivaldo Pires .............................................. 26

A FAMÍLIA RITUALÍSTICA: RELAÇÕES DE COMPADRIO E DE SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E


MULHERES ESCRAVOS EM SANTO AMARO (1816-1850)
Joceneide Cunha.................................................................................................................................................................................... 27

A ILEGALIDADE DO TRÁFICO NEGREIRO NO MUNICÍPIO DE MACAÉ (1830-1865)”


Josane Rodrigues Boechat
Jorge Prata............................................................................................................................................................................................. 38

RIQUEZA ESCRAVA EM LAGARTO (1800-1850)


Carlos Roberto Santos Maciel .............................................................................................................................................................. 47

A INTERAÇÃO DOS QUILOMBOLAS COM A SOCIEDADE ENVOLVENTE NA REGIÃO DA COTINGUIBA (1870-


7879)
Ana Carla de Jesus................................................................................................................................................................................. 55

SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E BARGANHAS NA ZONA DA COTINGUIBA


(1870-1879)
Ana Carla de Jesus ................................................................................................................................................................................ 65

OS PRETOS DOS MATOS: A EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NA PROVÍNCIA DE SERGIPE D’EL REY (1871-
1888).
Igor Fonsêca de Oliveira ...................................................................................................................................................................... 76

HISTÓRIAS DE PEDESTRES: ATUAÇÕES, CONFLITOS E SOLIDARIEDADES ENTRE CAPTURADORES DE


ESCRAVOS FUGIDOS (SALVADOR, 1850-1857)
Kleberson da Silva Alves ..................................................................................................................................................................... 88

ESCRAVOS DA BAHIA ENVIADOS PARA A GUERRA DO PARAGUAI


Osvaldo Silva Felix Júnior ................................................................................................................................................................... 101

FUGAS, ROUBOS E SUICÍDIOS: A RESISTÊNCIA NEGRA NA ARACAJU OITOCENTISTA.


Patrícia Abreu dos Santos.................................................................................................................................................................... 112

VOZES DISSONANTES: NOTÍCIAS DA ESCRAVIDÃO E DA LIBERDADE NA IMPRENSA ABOLICIONISTA


CACHOEIRANA, 1887 – 1889
Jacó dos Santos Souza........................................................................................................................................................................... 125

“QUAL ABOLIÇÃO QUEREMOS?” : DEBATES NA IMPRENSA SERGIPANA SOBRE A ABOLIÇÃO DA


ESCRAVATURA (DÉCADA DE 1880)
Josimari Viturino Santos ...................................................................................................................................................................... 138

REESTRUTURAÇÃO SOCIAL: O OLHAR “BRANCO” SOBRE O “PRETO” NA SOCIEDADE SERGIPANA PÓS-


ABOLICIONISTA (1885-1890)
Camila Barreto Santos Avelino ............................................................................................................................................................ 148

ÁFRICAS DO MEU INTERIOR: POESIA DE ALOÍSIO RESENDE E A MEMÓRIA AFRO-BRASILEIRA NA FEIRA


DE SANT’ ANNA DA BAHIA
Josivaldo Pires de Oliveira ................................................................................................................................................................... 157

A “INGRATIDÃO” DE MARIA E O “EXEMPLO” DE JOSEFA OU OS TRAUMAS DE UMA ELITE EM DECLÍNIO


Marcelo Souza Oliveira ........................................................................................................................................................................ 168

RACISMO E RESISTÊNCIA CULTURAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA


Luiz Augusto Pinheiro Leal ................................................................................................................................................................. 182

A HISTÓRIA DE UM TERREIRO DE CANDOMBLÉ: AXÉ ILÉ OBÁ ABAÇA ODÈ BAMIRÊ


Flávia Delfino dos Santos .................................................................................................................................................................... 195

ENTRE O RACISMO E A CIDADANIA: O LUGAR DO CANDOMBLÉ NO UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO


NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940
Julio Cláudio da Silva .......................................................................................................................................................................... 207

“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO CATOLICISMO POPULAR NO

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COTIDIANO DAS REZADEIRAS.


Alaíze dos Santos Conceição ................................................................................................................................................................ 220

A ESTÉTICA NEGRA EM SALVADOR


Cassi Ladi Reis Coutinho...................................................................................................................................................................... 234

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Simpósio 2: História Social


Coordenação: Prof. Dr. Dilton Maynard.......................................................................... 246

‘SERGIPE EM TRÂNSITO”: CIRCULAÇÃO DE AUTOMÓVEIS NO INÍCIO NO SÉCULO XX.


Andreza Santos Cruz Maynard ......................................................................................................................................................... 247

CAPRICHOS E TRAPICHES: CONCEPÇÕES EM TORNO DO TRABALHO FEMININO, EVIDENCIADO A


PARTIR DE UM OLHAR SOBRE A ATIVIDADE FUMAGEIRA EM CONCEIÇÃO DO ALMEIDA-BA. 1960-1980.
Margarete Nunes Santos Gomes ........................................................................................................................................................... 256

A MULHER OPERÁRIA EM SERGIPE (1910-1932): TRABALHO E CONDIÇÕES DE VIDA


Sharlene Souza Prata .......................................................................................................................................................................... 270

VIVER EM RIO FUNDO: COTIDIANO, REPRESENTAÇÕES E MEMÓRIAS DE UMA VILA NO RECÔNCAVO


BAIANO (1930-1960)
Simone Cristina Figueiredo de Jesus................................................................................................................................................... 283

LIMA BARRETO E A DISPUTA PELA IMAGEM DE UMA CIDADE MODERNA


Carlos Alberto Machado Noronha ........................................................................................................................................................ 296

AS “LOJAS DAS ROÇAS”: SUAS MÚLTIPLAS FUNÇÕES E SIGNIFICADOS PARA O HOMEM DO CAMPO.
Josiane Thethê Andrade …………………………………………………………………………………………………………… 306

TOMÉ NUNES/BA: UMA RECONSTITUIÇÃO PELA MEMÓRIA.


Leila Maria Prates Teixeira ................................................................................................................................................................. 317

O CANGACEIRO E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA BRASILEIRO: (1950 -1970)


Caroline Lima Santos ........................................................................................................................................................................ 326

HISTÓRIA SOCIAL DO USO DA INTERNET: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL DE


JOVENS EM FASE DE ESCOLARIZAÇÃO
Vinícius Silva Santos
Antônio Vital Menezes de Souza.......................................................................................................................................................... 338

O SISTEMA ÚNICO E DESCENTRALIZADO DE SAÚDE (SUDS) EM SERGIPE ATRAVÉS DOS RECORTES DE


JORNAIS
José Dias Junior ................................................................................................................................................................................. 350

A CAPITANIA DE SERGIPE SOB O RONCO DO TRABUCO DE BENTO JOSÉ DE OLIVEIRA (1773-1806).


Wanderlei de Oliveira Menezes .......................................................................................................................................................... 362

ENTRE A LEI E A DESORDEM: A GUARDA ∗ MUNICIPAL E A URBANIZAÇÃO EM ITABUNA (1930-1947)


Philipe Murillo Santana de Carvalho ................................................................................................................................................... 371

NOS LABIRINTOS DA CRIMINALIDADE: FORMAS DE COMPREENSÃO, VIVÊNCIA E CONSTRUÇÃO DA


CRIMINALIDADE EM SALVADOR (1940-1964)
Wanderson B. de Souza ...................................................................................................................................................................... 382

VALIENTES E CAPOEIRAS: CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS EM ITABUNA NA DÉCADA DE 1950.


Gissele Raline da Cunha Fernandes Moura .......................................................................................................................................... 395

“NÃO GOSTO DE VIVER SEM 'LIBERDADE'” – OS MENDIGOS E O USOS DA AUTORIDADE CULTURAL EM


ITABUNA (BA) NA DÉCADA DE 1950
Erahsto Felício de Sousa ...................................................................................................................................................................... 407

MEMÓRIAS DO SERTÃO: MUCUNÃ E COURO CRU NA DIETA ALIMENTAR DURANTE A SECA DE 1932
Daiane Dantas Martins ......................................................................................................................................................................... 422

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Simpósio 3: História Política


Coordenação: Prof. Msc. José Vieira da Cruz e Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo...... 430

NORDESTE: ASPECTOS POLÍTICO, SOCIAL E MEMORIALÍSTICO


Maria Isabel Andrade de Almeida Santos ............................................................................................................................................ 431

REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO EM “OS DESVALIDOS”


Aldair Smith Menezes
Antônio Fernando de Araújo Sá .......................................................................................................................................................... 443

BAHIA E SERGIPE: FRONTEIRAS EM CONSTRUÇÃO (1824-1850)


Lina Maria Brandão de Aras .
Vagner Souza de Assis ........................................................................................................................................................................ 451

REPÚBLICA DE FAUSTO: O PENSAMENTO REPUBLICANO DE FAUSTO CARDOSO EM SERGIPE NOS


PRIMEIROS MOMENTOS DA REPÚBLICA BRASILEIRA
Humberto F. da Silva ........................................................................................................................................................................... 460

TRAJETÓRIA DO INTEGRALISMO NO RECÔNCAVO SUL: SUSSURROS DE TEMPOS DE TENSÕES


POLÍTICAS – 1933 A 1937
Alex de Jesus Oliveira ......................................................................................................................................................................... 471

A DIALÉTICA DA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NAS MEMÓRIAS DE IMIGRANTES CABOVERDIANOS NO RIO


DE JANEIRO (1950-1973)
Artur Monteiro Bento .......................................................................................................................................................................... 481

UM QUEBRA-CABEÇA ESQUECIDO: A PERFORMANCE DA AESI EM ARES ACADÊMICO (1971-1988)


Gislaine Santos Carvalho ..................................................................................................................................................................... 493

MEMÓRIAS DE TEMPOS SOMBRIOS: A CENSURA TEATRAL EM SERGIPE


Mayara Gabrielly Carvalho Matos ....................................................................................................................................................... 505

FRENTE DE MOBILIZAÇÃO POPULAR: MUDANÇAS POLÍTICAS E PODER LOCAL EM UNA DE 1960-1965


Soanne Cristina A. dos Santos .............................................................................................................................................................. 517

PÁS DE DEUX : ENTRE O ENSINO DO BALÉ E A SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA DE SERGIPE – SCAS
(1965 – 1969)
Mateus Antonio de Almeida Neto
José Vieira da Cruz .............................................................................................................................................................................. 528

OS DOCENTES FUNDADORES DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA BAHIA E SUAS TRAJETÓRIAS POLÍTICO-


INTELECTUAIS (1930-1945): PERSPECTIVAS ANALÍTICAS E PROPOSTAS DE PESQUISA
Vanessa Magalhães da Silva ................................................................................................................................................................ 538

MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO: UM OLHAR HISTORIOGRÁFICO


José Vieira da Cruz................................................................................................................................................................................ 551

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Simpósio 4: História da Educação


Coordenadoras: Profª. Msc. Cristina de Almeide Valença e Profª. Msc. Cristiane
Vitório de Souza............................................................................................................... 560

FILANTROPIA E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE MENORES “GETÚLIO VARGAS” (1942-1974)


Alessandra Barbosa Bispo .................................................................................................................................................................... 561

UM INTERNATO PÚBLICO: OS BENS E SERVIÇOS OFERTADOS AOS INTERNOS


Joaquim Tavares da Conceição ............................................................................................................................................................ 574

ENSINO DE BIOLOGIA NO ATHENEU SERGIPENSE DA DÉCADA DE 1970: FORMAÇÃO DOCENTE NO


INSTITUTO DE BIOLOGIA E NO CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DA UFS
Kátia de Araújo Carmo......................................................................................................................................................................... 587

MARCOS LEGAIS DA HISTÓRIA DA DIRETORIA DE EDUCAÇÃO DE ARACAJU


Luciano Rodrigues dos Santos
Jorge Carvalho do Nascimento ............................................................................................................................................................. 594

A FACULDADE CATÓLICA DE FILOSOFIA DE SERGIPE: ANTECEDENTES E ORIGENS


Nayara Alves de Oliveira ..................................................................................................................................................................... 607

ARACAJU SOB O OLHAR DAS UNIVERSIDADES


Emanuele Tourinho Almeida ............................................................................................................................................................... 617

RODRIGUES DÓREA, CARLOS SILVEIRA E HELVÉCIO DE ANDRADE: REFORMADORES DA INSTRUÇÃO


PÚBLICA SERGIPANA (1910-1913)
Cristina de Almeida Valença................................................................................................................................................................. 630

“QUEM CALA SE SENTA”: A DISCIPLINARIZAÇÃO INFANTIL ATRAVÉS DO DISCURSO MÉDICO-


PEDAGÓGICO (1917)
Paloma Porto Silva ............................................................................................................................................................................... 643

O JORNAL A DEFESA COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA


MATERIALIDADE DO IMPRESSO
Ana Luzia Santos .................................................................................................................................................................................. 655

A ESCRITA EPISTOLAR DE SÍLVIO ROMERO: O USO DAS CARTAS COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA
LEITURA
Cristiane Vitório de Souza ................................................................................................................................................................... 668

CULTURA E IMAGEM: INSTRUMENTOS DE COMPREENSÃO DOS CONCEITOS MATEMÁTICOS NO LIVRO


DIDÁTICO
Josoel Pereira da Silva .......................................................................................................................................................................... 678

A INCLUSAO DE ALUNOS SURDOS NO ENSINO REGULAR: A IMPORTÂNCIA DA SALA DE RECURSOS LUAN


FAGUNDES DOMINGOS (2003 a 2008)
Mônica de Góis Silva Barbosa ............................................................................................................................................................. 690

FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO SÉCULO XXI: ENTRE A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA E A


REPRODUÇÃO DE CLASSES
Manoel Lacerda Santos Júnior ............................................................................................................................................................ 699

CASA FORMOSA: CENTRO ILUSTRADO DE EDUCAÇÃO FEMININA (1917 – 1952)


Maria de Lourdes Porfírio Ramos Trindade dos Anjos......................................................................................................................... 709

A FORMAÇÃO DA ECONOMIA DOMÉSTICA E SUA RELAÇÃO COM A FAMÍLIA, O FEMINISMO E O GÊNERO


Ana Carla Menezes de Oliveira............................................................................................................................................................. 720

MÃE, ESPOSA E PROFESSORA: A EDUCAÇÃO FEMININA E PROFISSIONAL DE EX-DOCENTES SERGIPANAS


DO JARDIM DE INFÂNCIA JOSÉ GARCEZ VIEIRA
Ana Paula dos Santos Lima................................................................................................................................................................... 729

ASPECTOS DA EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL COLONIAL: OU PROCESSO EDUCATIVO DESIGUAL


Iêda Maria Leal Vilela .......................................................................................................................................................................... 742

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- ANPUH/SE e IHGSE - 19

HISTÓRIAS DE PROFESSOR: A EDUCAÇÃO E A PROFISSÃO DOCENTE DA MICRORREGIÃO DE


ITABAIANA
Antônio Vital Menezes de Souza ........................................................................................................................................................ 753

O PROFESSOR SEVERIANO CARDOSO E LOJA CAPITULAR COTINGUIBA


Maria Fernanda dos Santos................................................................................................................................................................... 765

O PERFIL BIOGRÁFICO DE MANOEL CLEMENTE NA PROVÍNCIA DE SERGIPE (1825-1826)


Mariângela Dias Santos........................................................................................................................................................................ 771

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- ANPUH/SE e IHGSE - 20

Simpósio 5: Ensino de História


Coordenação: Prof. Dr. Itamar Freitas e Prof. Hermeson Alves de Menezes ................ 784

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS, A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


Alix Pinheiro Seixas de Oliveira........................................................................................................................................................... 785

A EDUCAÇÃO PARA O PATRIMÔNIO E O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-SERGIPANA EM SÃO


CRISTÓVÃO-SE
Marcelo Santos .................................................................................................................................................................................... 795

DESCORTINAMENTO HSTÓRICO ATRAVÉS DA SÉTIMA ARTE


Onesino Elias Miranda Neto................................................................................................................................................................. 807

A PEQUENA HISTÓRIA DE SERGIPE: OBRA-PRIMA DA HISTÓRIA REGIONAL DE UM “INTELECTUAL


FORASTEIRO”.
Diogo Francisco Cruz Monteiro ........................................................................................................................................................... 816

ESCRITA DA HISTÓRIA NA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE JOÃO RIBEIRO


Silvia Carolina Andrade Santos ............................................................................................................................................................ 827

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- ANPUH/SE e IHGSE - 21

Simpósio 6: História, Sujeitos e Práticas Culturais


Coordenação: Profª. Msc. Sheyla Farias Silva................................................................. 834

EVOCAÇÃO AO CÉU: A IGREJA DE NOSSA SENHORA DO SOCORRO UMA EXPRESSÃO DO PENSAMENTO


JESUÍTICO NA ALDEIA DO GERU (1683-1759)
Ane Luíse Silva Mecenas .................................................................................................................................................................... 835

“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO CATOLICISMO POPULAR NO


COTIDIANO DAS REZADEIRAS.
Alaíze dos Santos Conceição................................................................................................................................................................. 848

SOBRAL: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE NA DÉCADA DE TRINTA


Luciana de Moura Ferreira .................................................................................................................................................................. 862

MODERNIDADE E COTIDIANO EM FEIRA DE SANTANA NAS DÉCADAS DE 50 E 60 DO SÉCULO XX


Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira ............................................................................................................................................. 872

NOS CAMINHOS DA LEMBRNAÇA: ALAGOINHAS NAS MEMÓRIAS DE JOANITA DA CUNHA


Carlos Nássaro Araújo da Paixão......................................................................................................................................................... 884

A FAMÍLIA CORRÊA DANTAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL DE SERGIPE


Joceli Nascimento S. Sales
Magna Cecília Sobral Silva
Solimar Guindo M. Bonjardim.............................................................................................................................................................. 896

HISTÓRIA E CULTURA CASA E IGREJA JESUÍTICA EM SERGIPE: O EXEMPLO DE TEJUPEBA


Maria Helena de Oliveira ..................................................................................................................................................................... 907

“INFÂNCIA E ASSOLDADAMENTO”: AÇÕES, SABERES E SUJEITOS.


Nelly Monteiro Santos Silva................................................................................................................................................................ 914

DE VIOLÊNCIA FAMILIAR NA ESTÂNCIA OITOCENTISTA


Sheyla Farias Silva .............................................................................................................................................................................. 926

HERDEIRAS E SENHORAS DE SEU DESTINO: MULHERES DE JUAZEIRO – 1850/1891


Mônica Sepúlveda Fonseca.................................................................................................................................................................. 939

CANUDOS: UMA GUERRA, MUITAS MULHERES.


Udineia Braga ............................................................................................................................................................................. 951

VIVER PRA PARIR, LABUTAR E NÃO MORRER: PARTO, DOENÇAS E MORTALIDADE NO COTIDIANO DE
TRABALHADORAS RURAIS DO SERTÃO BAIANO, VILA DE UIBAÍ, XIQUE-XIQUE, DÉCADA DE 1950.
Taiane Dantas Martins .......................................................................................................................................................................... 961

REVIRANDO AREIAS: O VIVER DAS MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA (1960-1990).


Rosana Costa Gomes............................................................................................................................................................................. 973

PENSANDO A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MASCULINIDADE E A INSERÇÃO DAS MULHERES NA


HISTÓRIA
Silvana Santos Bispo......................................................................................................................................................................... 986

O ESTUDO BIOGÁFICO COMO FONTE DE PESQUISA


Mariângela Dias Santos ........................................................................................................................................................................ 998

PRECEPTORAS ALEMÃS NA BAHIA E EM SERGIPE (1860-1920)


Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque ....................................................................................................................................... 1009

PROFISSÃO DOCENTE: PRÁTICA ESCOLAR E A TRANSMISSÃO CULTURAL


Carmen Regina de Carvalho Pimentel. ................................................................................................................................................ 1019

ARTE E ARQUITETURA RELIGIOSA POPULAR DO ANTÔNIO VICENTE MENDES MACIEL, O ANTÔNIO


CONSELHEIRO
Jadilson Pimentel dos Santos ............................................................................................................................................................... 1029

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A BENEFICENTE DOS “ARTISTAS” SANTANTONIENSES


Eliane Menezes ..................................................................................................................................................................................... 1041

NESTOR DUARTE: REFORMA SOCIAL E CRIAÇÃO CULTURAL NA BAHIA DA DÉCADA DE 1930


Rogério França..................................................................................................................................................................................... 1053

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Simpósio 7: História dos Índios no Nordeste


Coordenação: Profª. Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso e Prof. Msc.. Francisco
Cancela............................................................................................................................. 1060

RELIGIÃO, PODER E MUNDO AGRÁRIO NOS ALDEAMENTOS SERGIPANOS,1650-1802


1061
Pedro Abelardo de Santana ..................................................................................................................................................................

ADMINISTRAÇÃO DO DIRETOR GERAL DE ÍNDIOS DA PROVÍNCIA DA BAHIA


Antonietta d´Aguiar Nunes
1070
Aline Santos Oliveira ...........................................................................................................................................................................

VILAS DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO: UM ESPAÇO MULTICULTURAL DE TRABALHO,


RESISTÊNCIAS E REELABORAÇÃO DE IDENTIDADES.
1082
Francisco Cancela .................................................................................................................................................................................

TUPINAÊS, TUPINAMBÁS, FRANCESES E PORTUGUESES EM KIRIMURÉ: ALIANÇAS, CONFLITOS E


MORTES
1096
Maria Hilda Baqueiro Paraíso.............................................................................................................................................

OS “ATORES COADJUVANTES” DA HISTÓRIA DA CAPITANIA DA PARAÍBA: OS RELATOS E A PRODUÇÃO


HISTORIOGRÁFICA ACERCA DOS POVOS INDÍGENAS.
Jean Paul Gouveia Meira
1111
Juciene Ricarte Apolinário ...................................................................................................................................................................

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IV – SESSÃO DE PAÍNEIS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA


Coordenadores: Profª. Emanuele Tourinho, Prof. José Roberto dos Santos e Profª 1121
Maria Fernanda dos Santos..............................................................................................

HISTÓRIA DAS EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS E PEDAGÓGICAS DOS ANARQUISTAS: A EDUCAÇÃO E O


TEATRO ANARQUISTAS
Ana Luiza dos Santos Rodrigues Paulo
Luiz Renato Dias Gomes Padilha ......................................................................................................................................................... 1122

CONTINUIDADE DE SENTIDO: ARTIGOS ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE PROGRESSÃO REFERENCIAL NO


TEXTO DOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
Ana Maria Garcia Moura....................................................................................................................................................................... 1133

O ENSINO SUPERIOR PARA AS MULHERES: UMA REIVINDICAÇÃO PELO PAVILHÃO FEMININO NA CASA
DO ESTUDANTE DO BRASIL – 1931
Caren Victorino Regis
Nailda Marinho da Costa Bonato.......................................................................................................................................................... 1143

ENTRE EXPECTATIVAS E DISPUTAS: A HISTÓRIA DO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO EM ITABAIANA/SE


(1997-2007)
Antônio Teles de Lima
Gersivalda Mendonça da Mota
Janilda Freitas de Almeida .................................................................................................................................................................. 1153

LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA REGIONAL: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA


Kléber Rodrigues Santos ...................................................................................................................................................................... 1172

IMAGENS DA ÁFRICA: UMA ANÁLISE DA COLEÇÃO PROJETO ARARIBÁ


Lucas de Oliveira Carvalho
Raíssa Tainá Carvalho de Santana
Williams Santos da Silva
Joceneide Cunha ................................................................................................................................................................................... 1183

JONGO: SIMBOLO DE RESISTÊNCIA E VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA


Elizabeth Ramos da Silva
Ricardo Fernandez
Maria Amélia Gomes de Souza Reis ................................................................................................................................................... 1196

AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DAS COMUNIDADES CAENDA E MALHADA DOS NEGROS


Igor Iury Jurubeba Santos
Lucília Cardoso dos Santos
José Joaquim Santos Nascimento
Leyla Menezes Santana
Joceneide Cunha ................................................................................................................................................................................... 1207

REGISTROS PARÓQUIAIS: FONTE PRECIOSA PARA O ESTUDO DA ESCRAVIDÃO


Bruno Oliveira Santos
Raíssa Tainá Carvalho de Santana
Joceneide Cunha .................................................................................................................................................................................. 1215

AS ARTES CÊNICAS NO FASC: FRAGMENTOS DA HISTÓRIA TEATRAL EM SERGIPE.


Rochelle Figueiredo Freitas
José Vieira da Cruz............................................................................................................................................................................... 1225

CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO DO TURISMO COM O PATRIMÔNIO


ARQUITETÔNICO NA CIDADE HISTÓRICA DE SÃO CRISTÓVÃO/SE
Ivan Aragão
Denio Azevedo ..................................................................................................................................................................................... 1236

ENTRE FEIRANTES E CARREGADORES: UM ESTUDO ESPAÇO-SOCIAL DO MERCADO ANTÕNIO FRANCO


DE 1926 A 1949
Kelly Cristiana Santos Linos
Rafhael Almeida Oliveira
Sheyla Farias........................................................................................................................................................................................ 1246

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ENTRE TRILHOS E CAMINHOS: OS BONDES EM ARACAJU, NO PERIODO DE 1900 À 1950.


Luciana de Souza Santos
Maria Carla Andrade de Carvalho
Sheyla Farias Silva.............................................................................................................................................................................. 1261

MEMÓRIA, IDENTIDADE E TRADIÇÃO ORAL: JOGOS E BRINCADEIRAS INFANTIS NA COMUNIDADE DO


MATIAS.
Eraldo Eronides Maciel
Maria Lindaci Gomes de Souza............................................................................................................................................................ 1269

PRODUÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO EM AREIA BRANCA SE: APONTAMENTOS DA HISTÓRIA DO TEMPO


PRESENTE
Cláudio Ubiratan Gonçalves
Adelvan Santos Dória............................................................................................................................................................................ 1280

VIOLÊNCIA EM ESTÂNCIA NO PERÍODO OITOCENTISTA


Jessyca Cristina Reis Santos
Sheyla Farias ........................................................................................................................................................................................ 1288

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3.1– SIMPÓSIO 1:
HITÓRIA DA ESCRAVIDÃO E DAS CULTURAS
AFRO-BRASILEIRAS
Coordenação:
Profª Msc. Joceneide Cunha Santos (ANPUH-SE/UNIT/SEED)
Prof. Msc. Josivaldo Pires (Doutorando-CEAO/UFBA)

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SOLIDARIEDADE ENTRE HOMENS E MULHERES ESCRAVOS EM SANTO


AMARO (1816-1850)

Joceneide Cunha - ANPUH/SE-UNIT


joceneidecunha@infonet.com.br

A nova historiografia da escravidão, pós década de oitenta, têm se debruçado sobre vários
temas dentre esses estão as relações de compadrio que envolvia homens e mulheres escravos.
Os escravos construíam uma rede de solidariedade, muitas vezes essas redes ultrapassavam os
limites do cativeiro. E as tais relações também podem ser percebidas através das relações de
compadrio. Este trabalho tem como intuito analisar as relações de compadrio em Santo
Amaro que envolviam escravos no interstício de 1816-1850. Enfatizo que utilizei a categoria
gênero para analisar os dados. Para atingir meus objetivos, pesquisei os registros de batismo,
os mesmos como fonte histórica permitem uma quantificação e esta foi uma das metodologias
utilizadas. Ressalto que a pesquisa ainda está em andamento, no entanto, os dados coletados
permitem discutir a condição social e civil dos padrinhos e madrinhas escravas, ou livres e
libertos, os tipos de famílias escravas, as idades que as crianças eram batizadas, também
percebemos que as cerimônias de batismo eram um ato coletivo, e por fim, os locais que as
crianças eram batizadas.

Palavras-chave: escravidão, Sergipe, batizados.

Nos anos oitenta do século XX, surgiu a chamada nova historiografia da


escravidão. Entre os pesquisadores destacam-se João José Reis, Maria Odila Leite Dias,
Silvia Lara, Robert W. Slenes, Flávio Gomes, Hebe de Castro e Sidney Chalhoub. Alguns
dessa corrente tiveram como influência teórica, entre outros, Eugene Genovese e Edward P.
Thompson. Esses intelectuais buscaram ver o escravo como agente histórico e possibilitaram
a emergência de estudos sobre, mulher, família escrava, os significados da liberdade e as
estratégias para consegui-la, os africanos e suas identidades, e sinalizaram a importância das
irmandades para compreendê-las, além de outras temáticas1. Para estudar essas temáticas se

1
Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. SÃO PAULO: Companhia das Letras, 1986; DIAS, Maria Odila Leite. Quotidiano e Poder em São
Paulo no século XIX. SÃO PAULO: Brasiliense. SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e

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fez necessário uma ampliação no leque de fontes, os documentos cartorários, eclesiásticos


dentre outros que passaram a ser considerados fontes históricas e foram incorporados nas
pesquisas, além dos já utilizados anteriormente, como os relatos de viajantes2.
Dentro dessa perspectiva um dos temas que tem surgido é o estudo das relações de
compadrio que envolvia os escravos. Alguns autores têm se debruçado sobre essa temática
dentre eles temos: Stuart Schwartz e Cristiany Miranda. Schwartz possivelmente foi o
pioneiro, pois no livro Segredos Internos já menciona a temática. O mesmo autor estuda o
compadrio na Bahia e em Curitiba e pontua que a escolha dos compadres possivelmente
variou de região para região. Portanto, ele não descarta que em alguns casos foi a escolha
eram dos escravos e em outros uma imposição dos senhores. Em outro artigo, Schwartz e
Gudeman pontua que os meninos tinham mais oportunidades de possuírem padrinhos livres,
pois eles precisavam de maior proteção de pessoas livres que as meninas, por serem mais
caros. E, a Cristiany Miranda afirma que as relações ritualísticas eram escolhidas pelos
escravos, para a autora estudar o compadrio é analisar as possibilidades de escolhas dos
mesmos e as estratégias que utilizaram3.
Este trabalho tem como intuito analisar as relações de compadrio em Santo Amaro
que envolviam escravos no interstício de 1816-1850. O marco temporal foi delimitado através
de dois elementos, a documentação e bibliografia. O ano de 1816 foi delimitado por conta da
documentação, pois os primeiros registros de batismo encontrados são referentes a esse ano. E
em 1850, em virtude do término do tráfico de escravos.
Ressalto também que houve um crescimento no número de engenhos nas terras
sergipanas nesse período. Em 1756, havia 46 engenhos, no ano de 1798, 140 unidades e em

recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX. RIO DE JANEIRO: Nova Fronteira,
1999. LARA, Silvia H. Campos da Violência: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
RIO DE JANEIRO: Paz e Terra. 1988. REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos
malês (1835). 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
2
Ressalto que acerca desse tema houve, durante algum tempo, a idéia de não existirem documentos para
pesquisar sobre a escravidão, por conta das ordens de Rui Barbosa que mandou queimar boa parte do acervo.
Vide: SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século
XIX”. Estudos Econômicos 13, N ° 1, 1983, pp. 117-150.
3
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. Sobre
batismo de escravos conferir também: GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado
original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção
da Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59.; Ver em: FALCI,
Miridan Knox. Escravos do Sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. pp.96-110; FARIA,
Sheyla. Op. cit ; METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de
Santana de Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987. pp.229-243; SCHWARTZ, Stuart.
Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras. 1988;
SCHWARTZ, Stuart. “Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In:
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.

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1852, 6804. Lembrando que nesse período houve um declínio na produção mineradora, e
aumento da produção açucareira, sobretudo baiana, até aproximadamente 18225, portanto,
provavelmente o aumento da produção baiana tinha a participação do açúcar produzido nas
terras sergipanas. Meu interesse é analisar a vivência dos escravos, nesse momento de
efervescência econômica. Enfatizo que a pesquisa ainda está em andamento. Poucos são os
trabalhos em Sergipe que versam sobre a escravidão na primeira metade dos Oitocentos.
Na historiografia sergipana, provavelmente o primeiro a comentar sobre os
escravos e noticiar a existência de suas famílias foi Marcos Souza, classificado pelos
historiadores como cronista. Marcos Souza foi vigário no inicio dos Oitocentos da Freguesia
de Pé do Banco6, localizada nas terras sergipanas. Segundo o Vigário, Santo Amaro era a Vila
mais afamada e rica da capitania, possuía 2000 brancos, 1500 pretos e vários mestiços. E, os
africanos, crioulos e mulatos estariam envolvidos no trabalho da lavoura7.
Ele defende que a escravidão em Sergipe era mais branda que no Recôncavo
Baiano e utiliza três elementos para sustentar a sua idéia, a alimentação, as vestimentas e a
existência de famílias escravas. Não entrarei na discussão sobre a “docilidade” das relações
senhor e escravo em Sergipe, pois a mesma já foi alvo de contestações em alguns trabalhos8.
No entanto, o vigário nos dá indícios sobre a existência das famílias escravas no período
estudado, chegando a afirmar que era possível o casamento entre escravos de senhores
diferentes. Todavia, o vigário não comenta sobre os batizados dos escravos que
possivelmente realizou inúmeros, bem como os casamentos. Talvez fosse algo tão corriqueiro
no seu cotidiano e por isso ele não julgou ser digno de nota no seu livro. Entretanto, especulo
que se os casamentos eram permitidos entre escravos de senhores distintos, a relação de
compadrio também pode ter sido. Em uma pesquisa que realizei anteriormente percebi que os
escravos batizavam seus filhos com escravos de outros senhores9. Todavia, saliento que o
compadrio em Sergipe é pouco estudado.
As fontes utilizadas nesse primeiro momento foram os registros de batismo. Os
mesmos foram quantificados e analisados. Há na paróquia dois livros no interstício

4
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. pp.145-146.
5
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-
Ásia, 19/20. (1997) p.57.
6
Atual Siriri
7
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.
8
Vê em: MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.
9
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.

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mencionado. Esses registros permitem termos noção dos padrões de batismo, bem como ter
alguns elementos sobre a vivência dos escravos.
Nos registros de batismo possui o nome da criança batizada, os nomes dos pais e a
condição de ambos, a cor, a nacionalidade, o nome do proprietário ou dos proprietários, pois
os pais poderiam pertencer a pais diferentes. O(s) nome(s) dos padrinho e/ou madrinha e dos
seus senhores no caso dos mesmos serem escravos. Por fim, a idade da criança, o local que foi
batizado, a data e o nome do pároco. Ressalto que os registros de batismo não são
padronizados, havia alguns párocos que colocavam mais informações nos registros de batismo
como o estado civil dos padrinhos. E no caso do livro pesquisado, como houve vários párocos
batizando e provavelmente coletando as informações, nem todos coletavam as mesmas
informações, por isso há registros diferenciados no interior do mesmo livro.
Entre o meses de setembro de 1816 e maio de 1817 foram catalogados 105
batizados de índios, africanos e seus descendentes. Desses, 94 eram escravos, incluindo os
índios e 11 livres, crianças filhas de mães libertas ou livres e pais escravos.
Este artigo está divido em três partes, na primeira mencionarei sobre os locais que
os escravos e seus descendentes foram batizados, e citar alguns elementos desse ritual, na
segunda parte, pontuarei quem foram os batizados, na última parte mencionarei alguns dados
de quem eram os padrinhos e madrinhas.

1 – Os locais que se realizavam o ritual

No Brasil, o compadrio foi um ritual bastante praticado tanto por livres como por
escravos e trata-se de uma herança da cultura ibérica. Através do ritual do batismo, a família
era ampliada pelos laços espirituais.
Em Santo Amaro, as crianças, filhas de homens e mulheres escravos, ou escravos
adultos foram batizados em diversos lugares. Dentre eles as capelas de Nossa Senhora do
Rosário, De Maruim de Baixo, Nossa Senhora da Conceição, no Oratório do Capitão-mor e na
Igreja Matriz.
A “ população de cor” batizou seus filhos majoritariamente na Capela de Nossa
Senhora do Rosário, 68,57% dos batizados foram nesse local. Em 1813, há notícias da

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existência uma Irmandade do Rosário dos homens Pretos em Santo Amaro10; possivelmente a
mesma estava abrigada na referida capela. Ou seja, essa capela possivelmente era um espaço
que os africanos e seus descendentes cultuavam seus santos católicos, construíam as suas
relações ritualísticas através do batismo e do casamento. Em suma, era um espaço de
sociabilidade dos mesmos.
Além da capela já mencionada, o segundo lugar mais procurado pelos homens e
mulheres escravos batizarem seus filhos foi a Igreja Matriz de Santo Amaro, templo esse que
Marcos Souza classifica como majestoso11. Vinte e um escravos ou filhos de escravos foram
batizados na Matriz. Incluindo um escravo do pároco da Igreja, o reverendo Gonçalo Pereira
Coelho que batizou o escravinho Florêncio, filho da sua escrava Felizarda que era casada com
Antônio, também escravo12.
Três escravos foram batizados na Capela de Nossa Senhora da Conceição que
ficava em uma propriedade particular, o engenho Caieira13. Os escravos dos proprietários do
engenho, bem como os dos parentes, dos vizinhos ou agregados da propriedade deveriam
batizar seus filhos nessa capela. Pois, os escravos batizados encontrados até o momento não
pertenciam aos senhores do engenho14.
Quatro escravos foram batizados no oratório do capitão-mor, o Capitão Felipe
Luís de Faro. Ambrosio e Brígida pertenciam ao mencionado capitão, e Margarida e Romão a
Gregório Luis das Virgens. Por fim, dois escravos que foram batizados na capela de Maruim
de Baixo.
O batismo era um ato coletivo e por isso várias crianças – livres e escravas –
recebiam o sacramento numa mesma cerimônia. Escravos de um mesmo senhor e de senhores
distintos apadrinhavam os filhos no mesmo dia. A data do batizado era marcada num dia em
que todos pudessem ir à Vila: padrinhos e escravos. Em alguns casos, possivelmente os
proprietários de escravos também estavam presentes. Acredito que nos batizados ocorridos
nas propriedades havia uma probabilidade maior dos senhores estarem presentes nos
batizados dos filhos dos seus escravos.

10
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.p.57
11
SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.p.67
12
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 13v
13
A capela existe na atualidade e é tombada pelo IPHAN desde 1944. Vê em: LOUREIRO, Kátia Afonso Silva.
Arquitetura Sergipana do Açúcar. FUNCAJU/UNIT, 1999.
14
Segundo Loureiro a família que era proprietária desse engenho era A Diniz Sobral e os escravos batizados
nessa capela pertenciam a João Pereira, Francisco Xavier do Bomfim e Manoel José de Souza.

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Possivelmente alguns dias festivos foram preferidos para realizar a tal cerimônia,
por como o dia consagrado a São Benedito15. Em seis de janeiro de 1817, dia que se
comemorava São Benedito em Sergipe; quatro pessoas foram batizadas dentre elas, três
escravos gêges, Joaquim , Mathias e Bento e a menina Joaquina que era livre.

2 - Os batizados e batizadas

Os escravinhos eram batizados logo após o seu nascimento, com até três meses de
idade, 63,23% dos batizados estavam nessa categoria. Os demais batizados e batizadas eram
molecotes ou adultos. As idades dos índios batizados foram informadas nos registros, os
mesmos tinham entre 14 e 20 anos. Todavia, a dos africanos não foi mencionada, só através
do cruzamento das informações dos registros com as dos inventários post-mortem é que será
possível descobrir a idade de alguns dos africanos. Ressalto que há alguns registros sem a
referência da idade, e sem a menção de quem são os pais, assim podemos especular que
possivelmente não eram crianças.
O sacramento batismal marca a entrada no mundo cristão e o registro de batismo
era o documento que oficializava a existência das pessoas, por esses motivos era necessário
que o ritual acontecesse enquanto a criança estivesse nova. Todavia, o registro de batismo ia
além de um documento eclesiástico, ele também era um documento social, pois trazia várias
informações sobre o indivíduo, a sua família e os padrinhos. No período em estudo não havia
os registros civis. Por conta desses dados, percebemos que os senhores provavelmente se
preocupavam que seus escravos fossem convertidos à “Fé Católica”, pois assim oficializavam
a sua posse sobre a criança nascida.
Sobre a legitimidade houve um equilíbrio nas relações dos escravos e escravas.
Um pouco mais da metade das crianças batizadas eram fruto de relações legítimas 60%, e as
demais eram provenientes de relações não sancionadas pela igreja, as chamadas ilegítimas,
possivelmente algumas delas eram consensuais. A existência de casamentos entre escravos do
mesmo senhor, indicia a existência de médias e grandes posses, assim, os escravos teriam
como escolher seus cônjuges na posse do seu senhor.

15
O culto a São Benedito foi muito difundido entre os escravos, a idéia era difundir a idéia de um escravo
submisso. Vê em: PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
Colonial. Salvador, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal da Bahia.

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Dos batizados dezenove eram africanos, ou seja, 18,09 dos batizados; esses eram
de nação angola, gege e Costa da Mina. Além de serem batizados os africanos também
levavam seus filhos para serem batizados, 16,20% das crianças eram crioulas, ou seja, filhos
de africanos. Dentre os africanos os gege eram maioria, no entanto, Marcos Souza menciona a
existência dos africanos da Guiné e os Angola em Santo Amaro.
8,57% eram índios, classificados como gentios de nação. E os demais eram
descendentes de africanos; distribuídos em pardos e pretos. Os últimos tinham larga maioria
sobre os primeiros, a miscigenação não era acentuada entre os escravos. Muitos pardos foram
batizados, mas eram livres.
Os homens foram maioria entre os batizados, entre as crianças houve um
equilíbrio. No entanto, entre os adultos batizados que incluíam os africanos, índios e alguns
sem informações os homens foram majoritários.

3 - Os compadres e comadres

A larga maioria das crianças e adultos foram batizados por pessoas livres e/ou
forras. Essas pessoas livres podiam ser agregadas das propriedades que os escravos
trabalhavam, vizinhos ou parentes dos senhores. Pretendo saber mais elementos sobre essas
pessoas. No entanto, possivelmente eram pessoas próximas desses escravos. Em Lagarto
encontrei o tesoureiro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário batizando uma criança
escrava. Ou seja, ele era uma pessoa próxima dos pais da criança, já que a irmandade também
admitia escravos16.
Apenas nove escravos foram batizados por escravos, desses nove, quatro eram
africanos. Sete desses padrinhos eram parceiros17 de trabalho dos pais dos seus afilhados ou
dos próprios afilhados como o caso dos africanos. Como Delfina e Pedro que batizaram
Leandro, filho de Ana; todos eram escravos de Antônio Dias de Vidal Melo 18. Possivelmente

16
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação (Mestrado em História).
Pós-graduação em História Social – Universidade Federal da Bahia.
17
Segundo Mattos, a denominação parceiros foi utilizada pelos escravos, em algumas ocasiões. no sentido de
que eram escravos do mesmo senhor, as exceções eram os amásias(os) ou cônjuges, irmãos, pais/mães e
comadres/compadres; em outros momentos a idéia implícita é a de companheiro de sofrimento ou de jornada.
Em Lagarto, foi possível perceber as duas utilizações do termo, escravos depoentes chamaram de parceiros,
escravos que os acompanhavam no eito ou escravos do mesmo senhor e companheiros de sofrimento. Vide:
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp.130-131
18
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.9v

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algumas posses de escravos eram médias e grandes, o que possibilitava aos escravos
possibilidades de escolher um padrinho no interior da propriedade do seu senhor.
Sheyla Faria chegou a conclusão que as crianças ilegítimas e que estavam em
pequenas e médias posses foram batizadas por pessoas livres que eram pequenos proprietários
de escravos, enquanto que as crianças legítimas tiveram como padrinhos escravos que
pertenciam ao mesmo senhor do batizado, eles faziam parte de grandes posses19. Ou seja, os
escravos das grandes propriedades tinham um leque mais diversificado para escolher um
compadre entre os seus parceiros de trabalho. Na Bahia, os escravos buscavam alianças: (i)
horizontais, quando os pais escravos buscavam outros escravos para serem padrinhos,
integrando ainda mais a criança à comunidade escrava; (ii) verticais, quando os pais
entregavam os seus filhos a padrinhos livres, nesta situação os escravos buscavam ascensão
social para os seus filhos20.
Em Santo Amaro, os escravos preferiam construir alianças verticais que as
horizontais. Futuramente esperamos responder as razões dessa escolha. No entanto, ressalto
que o batismo não significava apenas a entrada para o mundo cristão, mais também era uma
possibilidade de construir laços de solidariedade. E, padrinho ou madrinha seria responsável
pelos elementos espirituais e materiais do afilhado.
A maioria das crianças e adultos batizados tiveram um casal como padrinhos
63,80%. No entanto, nem todas as crianças e adultos puderam usufruir desse privilégio,
alguns tiveram apenas um padrinho ou madrinha. Dentre esses, os homens foram preferidos
para apadrinharem as crianças e adultos, 33 crianças e adultos foram batizados apenas por
homens e quatro crianças escravas tiveram somente a madrinha. Novamente, a possibilidade
de contar com ajudas materiais fizeram que os homens fossem escolhidos e não as mulheres.
Analisando os batismos dos escravos e seus descendentes percebemos que há
alguns personagens que se repetem, ou seja, houve escravos, pessoas livres e libertas que
batizaram várias crianças e/ou adultos. Jacinto e Josefa que eram escravos e possivelmente
casados, batizaram Joaquim e Paulo e Rosa. Todos eram escravos do Capitão Manoel
Rollemberg de Andrade, os dois primeiros eram africanos e foram batizados no mesmo dia, já

19
FARIA, Sheyla de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
20
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: Compadrio e Batismo de
escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção da Liberdade: estudos sobre o
negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59. Metcalf chegou a esta conclusão pesquisando
São Paulo Setencentista, acredito que ocorreu algo muito próximo em Lagarto nos Oitocentos. Ver em:
METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de Santana de
Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987.pp.229-243

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Rosa era brasileira e foi batizada em outro dia21. Outro exemplo era Vicente José Barreto que
batizou em dias distintos; duas crianças Pascacia e Geronimo e Antônio Angola 22.
Cristiany Miranda Rocha estudando o compadrio percebeu que alguns escravos
batizaram várias crianças, posteriormente ela observou que esses escravos preferidos para
serem padrinhos conseguiram a alforria. Por conta, desse elemento ela deduziu que os
escravos preteridos para serem padrinhos eram próximos aos senhores ou exerciam uma
função de destaque; por esses motivos os demais escravos escolhiam os mesmos para
apadrinharem seus filhos23. Era uma possibilidade de aproximação com o senhor e assim
barganhar alguns dos seus interesses. Assim podemos especular que Jacinto e Josefa, já
citados, podiam exercer uma espécie de liderança na posse do ser senhor, que possivelmente
tinha inúmeros escravos, pois nos registros até o momento foram encontrados onze escravos,
seja na posição de padrinho ou de afilhado.

Algumas considerações finais

Primeiramente quero ratificar que este texto é fruto de uma pesquisa inacabada,
portanto ao término da mesma os dados poderão ser alterados. Segundo, que pretendo utilizar
outras fontes e assim fazer o cruzamento de informações.
A Capela do Rosário era um espaço dos escravos e seus descendentes, incluindo
os índios se batizarem. Talvez houvesse uma identificação dos escravos com esse espaço, já
que provavelmente no mencionado templo funcionava uma Irmandade de homens pretos.
Enfatizo que o batizado era um ritual coletivo, no mesmo dia crianças e adultos, livre e
escravos eram batizados.
Os escravos batizavam seus filhos logo após o nascimento. O batizar era algo que
interessava o senhor, pois era criado um documento que oficializava a criança como sua
propriedade, e era importante para os escravos, pois através do compadrio construíam laços de
solidariedade e/ou alianças. Os homens e mulheres escravos de Santo Amaro optaram em
construir essa rede de alianças com pessoas livres e/ou libertas; ou as possibilidades de
construção dessas redes eram escassas no cativeiro.
Em suma, através do batismo podemos conhecer um pouco a vivência dos
escravos, suas opções e estratégias cotidianas.

21
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág.13 v, e 14
22
Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2, pág. 3,7, 9v
23
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

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FONTES

FONTE PRIMÁRIA

Impressa

SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.

Manuscrita

Livro de Batismo de Santo Amaro nº 2


REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FALCI, Miridan Knox. Escravos do Sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor


Chaves, 1995. pp.96-110

GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: compadrio e


batismo de escravos na Bahia do século XVIII”. In: REIS, João. Escravidão e Invenção da
Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1988. pp.33-59.

FARIA, Sheyla de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano


colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.LOUREIRO, Kátia Afonso Silva. Arquitetura
Sergipana do Açúcar. FUNCAJU/UNIT, 1999.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste


escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp.130-131.

METCALF, Alida. “Vida familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O caso de
Santana de Parnaíba”. In: Estudos Econômicos, vol.17, n ° 2, 1987. pp.229-243.

MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.

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OLIVEIRA, Maria Inês Côrtez. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na
Bahia. Afro-Ásia, 19/20. (1997)

PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia
Colonial. Salvador, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal da Bahia.

ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da


UNICAMP, 2004.

SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens
e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
Dissertação (Mestrado em História). Pós-graduação em História Social – Universidade
Federal da Bahia.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São


Paulo: Companhia das Letras. 1988; SCHWARTZ, Stuart. “Abrindo a roda da família:
compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru,
São Paulo: EDUSC, 2001.

SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da


família escrava, Brasil sudeste, século XIX. RIO DE JANEIRO: Nova Fronteira, 1999.

SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão
no século XIX”. Estudos Econômicos 13, N ° 1, 1983, pp. 117-150.

SOUZA, Marcos Antônio. Memória sobre a capitania de Sergipe. Sergipe/Aracaju. 2005.

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A ILEGALIDADE DO TRÁFICO NEGREIRO NO MUNICÍPIO DE


MACAÉ (1830-1865)”

Josane Rodrigues Boechat – UNIVERSO


sofista@terra.com.br
Jorge Prata - UNIVERSO

A presente pesquisa propõe um estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira
metade do século XIX, no município de Macaé. A temática do tráfico ilegal é
significativamente recorrente nos estudos historiográficos, como por exemplo, a abordagem
dado por de Jaime Rodrigues no livro “O Infame Comércio” em que trata o tema do tráfico
ilegal como contrabando e pirataria no Brasil no primeiro meado do século XIX, mostrando
de forma abrangente como esta prática perpassou por todo o litoral do território brasileiro. Por
um outro lado, instiga e abrem leques para novos e aprofundamentos estudos sobre a temática.
Nessa abordagem de tráfico e contrabando de africanos negros, de suspeitas e apreensões de
navios, pelas auditorias instaladas pela Marinha Imperial Brasileira, mostra a apreensão do
navio Iate “Rolha” no porto de Macaé, pelo navio vapor da marinha “Urânia” com abordagem
e apreensão de 212 africanos negros boçais somando conjuntamente com a apreensão de uma
garoupeira “Santo Antônio Brilhante” com 4 homens africanos adultos no mesmo dia e porto.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé, a rota do
tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do comércio
negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de contrabando de
negros africanos no território do município, dos traficantes residentes na província, as
apreensões feitas na costa do município, seja por navios da polícia da marinha brasileira ou
inglesa, como e quantos navios foram apreendidos como suspeitos ou por contrabando e
pirataria.

Palavras-chave: História, escravidão, tráfico, Macaé.

A pesquisa propõe estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira


metade do século XIX, no município de Macaé. Chama a atenção para os navios que atuavam

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nessa atividade ilegal, que foram autuados no tráfico de contrabando de africanos negros
boçais vindos da África.
Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé,
a rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do
comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de
contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes residentes na
província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município, seja por navios da
polícia da marinha brasileira ou inglesa, como, quantos navios e quem dos traficantes foram
apreendidos como suspeitos por contrabando e pirataria. Os desembarques clandestinos se
processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração muitas vezes da população
litorânea.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, na região do município de Macaé. Vários foram os barcos suspeitos de tráfico,
contrabando e pirataria nas imediações da cidade de Macaé como o navio brigue escuna
Tentativa e o iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante, de tantos outros foram
apresados e removidos em depósito para a Casa de Correção da Corte para inquérito e
responder ao processo-crime de tráfico, contrabando e pirataria.
A comunicação tem por objetivo demonstrar pela analise do período do comércio
ilegal de africanos vindos através do Atlântico para o Brasil. O trabalho ainda não está
concluído estando em fase de construção, mas desvela desde já um complexo sistema legal
onde processava uma emaranhada rede. Implicava numa sociedade conivente, por um país
agro-exportador expressamente representado por uma demanda de mão-de-obra escravista. A
tudo isso, somava-se ao comércio, através do contrabando de africanos. A partir fim do tráfico
legal pelas Leis de 183124 (BETHELL, 1976, p.76) e 185025 impedindo sua negociação livre
dificultando seu trânsito, portanto implicando a um comércio ilegal.
Assim, o nascente país que despontava Brasil, mantido por uma economia
escravista dependente, já com uma permanência de quase 300 anos, passa a sofrer sanções por

24 Diogo Antonio Feijó, padre liberal, responsável pela aprovação do projeto de Barbacena, (com algumas
emendas) tornando lei em 7 de novembro de 1831. Feita em obediência a um compromisso do Brasil com a
Inglaterra a fim de extinguir o tráfico de escravos, libertava os africanos chegados ao Brasil após sua assinatura.
25 Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Eusébio de Queirós - Estabelece medidas para a repressão do
tráfico de africanos neste Império. Em 4 de setembro de 1850 foi sancionada a lei que, depois de uma sucessão
de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico de escravos no Brasil. A lei tomou o nome de seu propositor, o
então ministro da Justiça Eusébio de Queirós.

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parte das autoridades brasileiras também pela política inglesa que interpõe de modo
abrangente dificultando o comércio transatlântico.
A essa dificuldade somam-se acordos Brasil – Inglaterra regida por decretos,
artigos e leis fundamentando aos ingleses e brasileiros a levar a cabo e por fim ao comércio
transatlântico de escravos feito, a partir dos apresamentos de navios que comercializavam
com a Costa d’África, carga humana.
Deste modo, o Brasil torna grande provedor no contrabando de africanos, que são
embarcados e trazidos da Costa d’ África sendo então, desembarcados muito deles nas praias
desertas e afastadas ao longo do litoral brasileiro em cidades litorâneas implicadas na
manutenção do tráfico e ao abastecimento não só do próprio local do ocorrido desembarque
dos africanos, mas também no intercâmbio do comércio interno do país.
Com isso, os navios negreiros que faziam o tráfico com a África levando na ida
para o continente negro, produtos brasileiros como cachaça, fumo, cacau, e tantos outros
artigos, sua volta ao continente brasileiro era abastecido por um carregamento de africanos
para manutenção da escravidão.
Assim, o processo-crime do Iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante
com a apreensão por contrabando, tráfico e pirataria de africanos negros é o tema de estudo e
propõe acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira metade do século XIX, no
município de Macaé.
A rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da
economia do comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o
desembarque de contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes
residentes na província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município. Os
desembarques clandestinos se processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração
muitas vezes da população litorânea.
Tem por sua estrutura uma divisão que se apresenta por Ofícios do escrivão, na
nomeação por este mesmo receber impedimento para fazer parte do processo como também
da designação do Dr. Auditor Geral da Marinha encarregado de fazer junto a Comissão, a
Corte, o Ministério dos Negócios e da Justiça, a Marinha de Guerra Imperial26.
Sendo assim, dá-se prosseguimento ao processo a partir de ofícios por meio do
escrivão determinado e de despachos de Avisos feitos em Cartórios, tudo por ordem do Dr.
Auditor Geral. As intimações e de comparecimentos para auto de perguntas mais diligências.

26
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).

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Devidas Cartas Ofícios são outro meio de se fazer à mediação e deferência do caso em
questão. Não só de relatórios são deferidos as questões, mas no ato de remoções e de
transferências como também o ato de se fazer um relatório constando de uma lista ou rol,
perfazendo uma relação dos africanos apreendidos constando o mesmo de vários itens na
apresentação e reconhecimento, na distinção dos africanos, seja por marcas ou mesmo de sua
etnia até mesmo pela sua idade e sexo. A relação é feita constando às referências que
possibilitam o reconhecimento e o registro dos africanos apreendidos. A relação é utilizada na
transferência dos africanos quando em depósito das instituições públicas ou privadas, e no
reconhecimento dos africanos, como é anexado um resumo da lista ou rol de africanos.
A transferência em depósito tanto dos africanos quanto a tripulação é mais outro
apêndice que consta dos processos no tramite do mesmo para que este possa ser transparente,
evidente e específico para o entendimento daqueles que o venha lê-lo. A Casa de Correção
emite um ofício do montante recebido em depósito, incorporado ao processo, dirigido ao
Doutor Auditor Geral da Marinha.
As juntadas são cartas ofícios, citando avisos, relatórios ou mesmo referências
atualizando e acrescentando ao processo fatos ocorridos a que venha esclarecer ao processo-
crime. Acrescenta algum novo episódio, evento ou uma passagem, engrossando o processo–
crime.
Os ofícios de aviso são cartas referidas de uma instituição ou repartição a outra na
qualidade de esclarecer ou incorporar com fatos que serão incorporados no decurso do
processo-crime como sendo mais um fator de justificar ou então de reafirmar o ato cometido.
Além desses tópicos da estrutura do processo como item, temos o inquérito de
perguntas e diligências que são feitas à tripulação, mestres e passageiros da embarcação
apreendida e também a tripulação do navio apresador como de testemunhas sem deixar de
mencionar os próprios africanos.
A lista de objetos é mais um recurso do processo. Listando e descrevendo os itens
encontrados a bordo da embarcação apresadas, demonstra nos artigos arrolados a justificativa
da certeza da apreensão do navio.
Diligências de perguntas e respostas são argumentos ou mais, para formalizar o
crime de contrabando, tráfico e pirataria de africanos novos. São alegações, inquirindo, aos
envolvidos, aqueles que se encontravam no momento da apreensão da embarcação estando a
bordo ou não; caracteriza-se por indagações a cerca da investigação; com intenção de provar o
crime ou refutar o mesmo.

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Passa-se então, a serem feitos inquisições a testemunhas as quais podem ser a


tripulação e passageiros das embarcações apresadas e também do navio apresador na
qualidade de poder fazer um acareamento das respostas dadas por ambas as testemunhas.
Assim, se ouve tantas quantas testemunhas forem necessárias para se ter uma visibilidade
geral das respostas e poder fundamentar as questões e se chegar então a uma conclusão.
O auto de inventário judicial, arrecadação e depósito dos pertences do iate feito na
presença de um membro da tripulação e mais testemunhas na qualidade de assegurar a
veracidade do mesmo, elemento de valorizar os objetos encontrados procedendo ao inventário
e de desocupação formulando bases para delegar ao inquérito um fator positivo ou negativo
do apresamento.
Com isto, são feitos uma lista dos objetos encontrados que venham incriminar ou
reabilitar o mesmo. Constituindo de averiguação em demonstrar a criminalidade ou não nos
aspectos que venham indicar sua culpabilidade como referência às escotilhas fechadas ou com
grades, os mastros reais em outras redes enfim, peças que fazem parte do navio, possibilitam
realçar o envolvimento do mesmo no tráfico. Desse modo ficam sob judice do depositório
delegado para esse fim.
No mesmo dia em que foi feita a apreensão do iate Rolha no porto de Macaé, foi
também apresado nas imediações do litoral indo, em direção a Cabo Frio, uma garoupeira de
nome Santo Antonio Brilhante, sendo interceptada pelo mesmo vapor de guerra Urânia e
constatado a presença de quatro africanos a bordo. Portanto essa embarcação foi redirecionada
seu destino para o porto de Macaé, onde os negros africanos encontrados a bordo da
garoupeira foram incluídos, no rol com os africanos do iate Rolha.
Assim, tão logo uma relação feita dos africanos contrabandeados no iate Rolha e
na Garoupeira Santo Antonio Brilhante, distinguindo nesse documento cada qual, fazendo
uma contagem, pela sua origem como nação e marcas étnicas e constando as idades
presumíveis, o local proveniente de seu embarque ou mesmo de seu apresamento na Costa da
África, para então que se faça à denúncia pública e a remoção dos mesmos para a Casa de
Correção juntamente da tripulação, tanto o mestre, a tripulação e até mesmo o passageiro
passam por toda a segurança necessária e de recomendação a uma fortaleza em que a bordo de
um navio de guerra, pelo Doutor Auditor. Somente em último caso serão conduzidos para a
Cadeia do Arsenal. Fica a tripulação na obrigação de serem responsáveis durante o
julgamento pela sua manutenção dos africanos.
Essa relação acusa nessa listagem 95 africanos do sexo feminino entre elas 27
mulheres adultas e 78 mulheres muitos jovens estando na faixa etária de 8 a 12 anos de idade,

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constando também 117 africanos do sexo masculino dentre eles 29 homens e 96 jovens em
idades que variavam entre 10 a 15 anos. O total de indivíduos apreendidos foi de 221 entre
africanos e tripulação, todos destinados a Casa de Correção em depósito.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática
ilegal, bem como dos destinos e cotidianos dos africanos negros apreendidos na região do
município de Macaé. Destacaram-se em Macaé os traficantes: Victorio Emmanuel Paretto
(italiano), José Bernardino de Sá (português), Joaquim Ferramenta, José de Souza Velho,
Francisco Domingues de Araújo. Assim, aumentando o preço abusivamente, enriqueciam,
justificando as dificuldades encontradas para transportar os africanos, sendo um dos maiores
negócios da época.
A proibição do tráfico veio aumentar abusivamente o preço dos escravos trazidos
da África, justificada pela dificuldade para o transporte, e assim, os traficantes sediados no
litoral brasileiro, tornavam-se cada vez mais ricos, fazendo do tráfico ilegal um negócio
altamente rentável da época: O tráfico ilegal mostrava-se tão intenso que consta a entrada no
país (...) 3.000 africanos desembarcados ilegalmente em 1851, em barracões e em armazéns
no município de Macaé, informado por Charles Hamilton James, embaixador inglês. 27
Torna-se notório, o tráfico ilegal, não só em Macaé, mas, nos arredores, de Cabo
Frio, São João da Barra, Cabo de São Tomé, Ponta de Búzios, Itapemirim, Paraty,
Marambaia, Angra dos Reis; mantinham elementos de ligação, escolhendo locais de
desembarque, e estabelecem as praias desertas e de pequenos barcos para ter contato com os
navios negreiros, passam a adotar sistemas de comunicação como códigos, avisos e sinais
costeiros, para a sua própria segurança.
A terra fluminense28 foi um viveiro de escravos, tendo sido aqui introduzidos por
vários pontos de entrada, de onde seguiam a outros locais, podendo ser por via fluvial ou por
picadas feitas nas matas, os que se destinavam ao interior do Brasil chegando até Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, uma relação com o contrabando e comércio inter-regional.
O mínimo e o máximo exigido é que o julgamento aconteça num prazo de duração
de 8 meses. O processo em média: 6 meses para a abertura do processo; 37 dias para que as
comissões venha dar suas sentenças; 70 dias para que a sentença fosse executada nos casos de
navios condenados; 28 dias antes que os escravos por ventura encontrados fossem libertados
até então permaneciam à bordo.

27
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos; São João da Barra; Macaé; São Fidélis. RJ: Editora
Achhiamé. 2000. pp.78
28
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. Ed. Parceria Editorial. 2000. p. 24.

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No final do inquérito a embarcação é julgada e considerada “boa presa”, devido à


embarcação apresentar um número tal de apetrechos indicando ser um navio devidamente
aparelhado ao tráfico de africanos. É disposto um veredicto e uma sentença que muitas vezes
a venda em leilão do navio é necessária para cobrir o pagamento do tramite do julgamento
como também pelo crime de tráfico, contrabando e pirataria do qual foram acusados e
julgados formalizando a contravenção.

BIBLIOGRAFIA E FONTES PRIMÁRIAS

Fontes primárias:

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.


Microfilme
AN ─ 114  2001  AGM;
AN ─ 115  2001  AGM;

Manuscritos
Série Justiça
IJ6  468 – Africanos. 1834 – 1864.
IJ6  469 – Africanos. 1824 – 1864.
IJ6  470 – Africanos. 1840 – 1868.
IJ6  471 – Africanos livres. 1834 – 1864.
IJ6  472 – Tráfico de africanos. Navios suspeitos. 1838 – 1860.
IJ6  480 – moeda falsa e tráfico de africanos. 1836 – 1864.
IJ6  481 – Moeda Falsa. 1855.
IJ6  510 – Moeda falsa e tráfico de africanos.
IJ6  521 – Tráfico de africanos – 1853 – 1865.
IJ6  522 – Tráfico de africanos. 1841 – 1865.
IJ6  523 – Africanos livres. 1833 – 1864.
IJ6  525 – Africanos 1831 – 1864.
IJ6  15 – Tráfico de africanos.
IJ6  16 – Africanos livres.
IJ1  450 – Africanos. Carta de emancipação.

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IJ1  974 – Ministério da Marinha ao Ministro da Justiça.


IJ1 1067 – Ministério da Justiça – 1877.

Série Guerra
Códices  807  v.7  Diversos  1840;
Códices  807  v.2  Diversos  Império  1839;
Códices  807  v.15  Diversos  Portos  Brasil.
Caixas Topográficas  Escravos  2627, 1, 3; 2627, 1, 2; 2627, 2, 28;
Caixas Topográficas  Inventários  2635, 4, 23.

Referências Bibliografias:

BARROS, Aidil J.Paes & LEHFELD, Neide A de Souza. Projeto de Pesquisa. Rio de
Janeiro: Vozes, 2003.

BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã Bretanha, o Brasil e


a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: EDUSP / Expressão e Cultura,
1976).

CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. RJ: Ed. Parceria Editorial,
2000.

DIÁRIO OFICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Regional da


República da 1ª Região. COORDENADORIA PARA ERRADICAÇÃO DAS FORMAS
CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIDÃO E PARA QUESTÕES INDÍGENAS. Diário
Oficial. Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Euzébio de Queirós. Estabelece medidas
para repressão do tráfico de Africanos neste Império. Em 4 de setembro de 1850 foi
sancionada a lei que, depois de uma sucessão de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico
de escravos no Brasil. A Lei tomou o nome do seu propositor, o então ministro da Justiça
Euzébio de Queirós.

OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé, São Fidélis.
RJ: Editora Achiamé, 1998.

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PARADA, Antonio Alvarez. Tráfico de negros africanos no litoral do nosso Estado. “S.D.”

RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de


africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000.
(Coleção Várias Histórias).

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RIQUEZA ESCRAVA EM LAGARTO (1800-1850)

Carlos Roberto Santos Maciel – UNIT


carlos_boquim@yahoo.com.br

A presente pesquisa sobre a riqueza escrava em Lagarto (1800-1850), tem como propósito
analisar a participação do bem escravo na composição da riqueza dos proprietários locais.
Essa pesquisa apóia-se na análise e interpretação dos inventários post-mortem, que
possibilitam a obtenção de informações acerca da composição das fortunas locais. Dos 159
inventários catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na
composição de sua fortuna. Isto comprova que o bem escravo estava bastante difundido entre
as riquezas dos proprietários da vila. Entre os proprietários de apenas um cativo, percebemos
que na maioria das vezes esses eram mulheres. Essas eram preteridas devido sua versatilidade
e pelo fato que poderia aumentar o número de escravos. Encontramos famílias escravas em
alguns proprietários e essa tinha uma grande participação no montante-mor, houve casos em
que essas famílias representavam mais de 86% da riqueza. O bem escravo tinha maior
participação no total das riquezas de pessoas menos afortunadas, pois muitos tinham nesse seu
bem mais valioso, chegando em alguns casos a representar mais de 80%da fortuna do
proprietário. Os preços dos escravos tiveram aumento no decorrer do período.

Palavras-chaves: Riqueza escrava – Sergipe – Lagarto

É comprovado que existiu um número razoável de escravos na região do Agreste


de Lagarto29, foi computada uma população cativa composta por 732 escravos no período de
1800-1850. Sobre a economia de Lagarto, no marco temporal escolhido, uma era
caracterizada principalmente pelo cultivo de gênero alimentício e pela criação de gado,
havendo apenas cinco engenhos, esses aparecerão em maior número na segunda metade do
século XIX30. Precisamos constatar qual a importância da riqueza escrava em uma economia
de subsistência, como era a participação do bem escravo na composição das fortunas locais.
Este trabalho ainda está em fase de levantamento de dados, e não está concluído.

29
MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: População, Economia e Sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986. p. 242.
30
SANTOS, Joceneide Cunha dos. De senhores de engenho a lavradores de mandioca: um estudo sobre a
propriedade escrava (Agreste-Sertão de Lagarto 1850-1888). São Cristóvão, 2001. Monografia (Licenciatura em
História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.

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O escravo se constituía em muitos casos a maior parte da riqueza dos proprietários


da região. Para elucidar melhor a questão analisemos o gráfico 1, elaborado a partir a análise
de 58 inventários. Os principais itens que constituíam a fortuna dos moradores de Lagarto
eram: escravos, semoventes, bens de raiz e outros31.

Gráfico 1
Lagarto-Sergipe

Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE

Como podemos perceber a maior parte das fortunas dos moradores locais eram
representadas pelos escravos. O escravo era sem dúvida um relevante fator de produção e um
dos componentes de grande importância no estoque da riqueza dos proprietários de Lagarto
durante o período analisado.
A posse de escravos era muito difundida nessa região, pois dos 159 inventários
catalogados 83,02% dos proprietários tinha pelo menos um escravo na composição de sua
fortuna.
Sobre a distribuição dos proprietários de escravos, analisando o tamanho da posse
escrava, em pequena, média ou grande, observemos a tabela 1. Lembrando que os parâmetros
a pequena posse (1 a 3 cativos), a média (4 a 9 cativos) e a grande com 10 ou mais escravos.

31
Outros: produtos, roças, jóias, moveis, ferramentas, dívidas ativas.

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Tabela 1
Lagarto-Sergipe (1800-1850).
Distribuição da posse escrava por tamanho da posse

Tamanho das posses Número de escravos % dos escravos N. de inventários

Pequeno 113 15,43% 63

Médio 245 33,33% 45

Grande 374 51,09% 24

Total 732 100% 132

Fonte: Inventários 1º e 2º Ofício de Lagarto 1800-1850 AGJSE

Com fica evidente na tabela 1, apesar do número de pequenos proprietários ser


maior que o de médios e grandes proprietários, esses últimos é que detêm o maior número de
escravos. Percebe-se que o bem escravo era bastante difundido entre os moradores, como
também fica clara que existe uma grande concentração do bem nas mãos de poucos
proprietários.

De lado, nota-se relativa concentração da riqueza medida pela posse de


escravos, dado o grande número de escravos em mãos de poucos
proprietários. Do outro lado, a propriedade escrava encontrava-se
disseminada por toda a sociedade, como indicado pelo grande número de
proprietários com poucos escravos”. (MELLO, 1990, p. 107)

O escravo era um bem muito valioso e cobiçado por muitos. Muitas pessoas em
Lagarto tinham no escravo o seu maior montante: chegando em alguns casos a representa
mais de 90% da fortuna.
O escravo representava uma parcela significativa na composição das fortunas,
sejam dos pequenos proprietários, médios ou grandes. Mas o bem escravo tinha um maior
percentual na composição das fortunas principalmente nas dos pequenos proprietários, onde
em alguns casos a riqueza escrava compunha mais de 90% do montante-mor, como era o caso
Dona Anna Francisca das Virgens, cujo os dois escravos que possuía equivalia a 93,98% da
sua fortuna.

“A importância do escravo na sociedade em apreço é evidenciava pela sua


constante presença nas fortunas, já que pode ser encontrado entre os mais

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pobres, os quais depositavam suas econômicas neste que às vezes era fonte
de sustento e único ativo”. (SILVA, 2003, p. 32)

Para esclarecer melhor a participação da riqueza escrava no montante-mor dos


pequenos médios e grandes proprietários observamos a tabela 2.

Tabela 2
Lagarto-Sergipe

Participação da riqueza escrava por década nas propriedades


Período Tamanho das posses %
1810-1819 Pequena 70,68%
Média 59,84%
Grande 37,64%
1820-1829 Pequena 58,35%
Média 49,23%
Grande 14,63%
1830-1839 Pequena 53,29%
Média 71%
Grande 57,41%
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE

Analisando a tabela 2 é possível perceber que os escravos tinham maior


participação nas fortunas dos pequenos e médios proprietários, os grandes proprietários eram
mais afortunados e investiam suas fortunas na criação de animais e fazendas. Só que isto
muda a partir da década de 30 como percebemos um possível motivo para isso que há um
aumento do número de escravos na região, portanto uma maior quantidade representaria um
maior valor, e assim uma maior participação na total geral das fortunas. Além de que há um
aumento 86,13% no preço do cativo durante a década, na região em estudo32, e estes
aumentos dos preços dos escravos fizeram este bem ser mais representativos na riqueza dos
proprietários.
É possível perceber um declínio da participação dos escravos nas fortunas dos
pequenos proprietários, isto pode ser explicado pelo aumento do preço do escravo, isto
provocou uma maior dificuldade dos mais pobres adquirir cativos.

“Numa sociedade em que o trabalho braçal era visto como uma maldição
bíblica, portanto, depreciado, a mão-de-obra escrava apresentava-se como
sustentáculo da economia e disseminara-se em todos os setores. A
escravidão representava bem mais que uma instituição econômica lucrativa,

32
MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo Pinheiro dos. Arraia-
Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa em Lagarto-SE (1880-1850). Estância,
2007 Monografia (Licenciatura em História). Universidade Tiradentes. p. 56

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significava abastanças e ostentara status para os outros”. (SILVA, 2005, p.


69)

Sobre as variações dos preços dos escravos, por década segundo sexo observemos
a tabela 3.
Tabela 3
Lagarto – Sergipe

Média dos preços dos escravos em Lagarto por década segundo o sexo.
Década Média
Homem Mulher
1810-1819 98$07 108$33
1820-1829 158$59 113$71
1830-1839 260$260 232$922
Fonte: Inventários 1º e 2º ofício de Lagarto 1800-1839 AGJSE

Como podemos perceber na tabela 3, houve um aumento crescente de década a


década. Os preços dos escravos variavam principalmente em função do sexo idade, profissão,
aptidão, saúde e conjuntura econômica. “Além do sexo e da idade, por si só suficiente para
fazer variar amplamente a cotação de um cativo, eram também considerados os defeitos
físicos, estado de saúde, a etnia (quando africano) e, principalmente, as eventuais profissões.
(BACELLAR, 2000, p. 249).
Os dados da tabela 3 apontam que o escravo do sexo masculino tinha um preço
superior ao das escravas. Isto comprova a hipótese de que o sexo definiria o preço do escravo.
Na monografia33, ao analisar o período de 1800-1850, percebemos que havia uma
equivalência nos preços. Como falta analisar a década de 40 podemos afirmar que a escrava
tinha um preço mais elevado em relação ao do escravo. Uma possível explicação para, isto é,
que o medo com o término do trafico de escravos fez o preço o tráfico negreiro, esta seria a
única via de obtenção de mão-de-obra cativa a partir da reprodução natural.
O número de proprietários de apenas um escravo de apenas um escravo é de vinte
e seis inventariados, os escravos desses eram em sua maioria mulheres. Possivelmente, os
menos afortunados ao adquirirem seu primeiro cativo, optavam pela compra de uma mulher,
já que essa poderia desenvolver atividades domésticas, como também trabalhos nas
propriedades rurais, já que a base da economia local era a produção de gêneros de
abastecessem o mercado interno.

33
Idem

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Outra hipótese que justificava a compra de uma escrava, era a importantes pois,
poderiam aumentar a posse de cativos e conseqüentemente a fortuna de seu proprietário, isto
através da reprodução natural.

“Podemos supor que comprar uma escrava seria talvez, parte de uma
estratégia de ampliação ou multiplicação mais acessível da mão-de-obra
forçada, sem recorrer às parcas e difíceis poupanças familiares. Apesar dos
riscos de uma elevada mortalidade materna e infantil, e em que se pese a
necessidade de aguardar o crescimento do revento, a reprodução natural
talvez fosse, para um pequeno lavrador, um roceiro ou um artesão, uma
opção viável, que não envolvia maiores dispêndios de capital”.
(BACELLAR, 2000, p. 243)

Essa reprodução natural aumentava as fortunas de seus proprietários. A


constituição da família escrava dentro das posses, chegavam em alguns casos a ser a maior
parte da riqueza, como era o caso de José de Jesus de Passos34, cujo possuía uma escrava com
dois filhos, essa família escrava representava 68,56% da fortuna do proprietário. Outro caso é
o de Dona Anna Josefa, ela possuía uma escrava que tinha um filho, esses representavam
86,21% da fortuna dessa senhora. A partir dos exemplos acima mencionados, nos parece claro
que muitos proprietários incentivavam a reprodução natural para aumentar as suas fortunas.
Ressaltamos que possuir um escravo seria um grande auxilio para aumentar a
produção. Como também concederia ao senhor prestigio e status, por isso muitos se
esforçavam para adquirir um ou mais cativos, na tentativa de se fazer notar na sociedade da
época.

“O escravo era um bem de produção, o seu trabalho produzia riqueza. Mas,


nem sempre estavam ocupados numa atividade produtiva, ou geradora de
riqueza, muitos eram destinados a serviços domésticos, ou a outras
atividades sem rendimento pecuniário. Ter escravo qualificava a pessoa
como proprietário e lhe dava status. Poder-se-ia não ser proprietário de terra,
de casas, de embarcações de plantações, mas ao ser proprietário de uma
unidade humana, de um escravo, ter alguém servindo, dava a condição de ser
servido. Possuir escravo significava ter uma das qualidades da sociedade de
ordem daquela época: não ter necessidade de trabalhar, ou seja,
proporcionava ao senhor a condição de não trabalhar, de não manchar as
mãos com o trabalho, limpava as mãos de seu senhor. Assim, os menos
afortunados valeria todo e qualquer esforço, para comprar ou repor um
escravo morto, inválido ou fugido”. (MASCARENHAS, 1998, p. 122)

34
Inventariado: José de Jesus de Passos. Inventariante: Rosalina Maria de Jesus. Inventário post-mortem.
Cartório de 2º Ofício de Lagarto, 06/08/1850, caixa 15, doc. 15.

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O bem escravo era algo bastante difundido entre as riquezas dos moradores,
porquanto percebemos que um grande número de pessoas conseguiam adquirir escravos,
apesar da região produzir gêneros agrícolas voltado para o abastecimento do mercado interno,
e o dedicar a criação de gado, também com o mesmo fim.
Além de bastante disseminado, o bem escravo constituía na principal fortuna na
composição da riqueza dos proprietários locais. Algumas conclusões são impossibilidades
devido a pesquisa ainda estiver em andamento.

FONTES

Manuscritas
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe.
 Cartório de Lagarto 1º e 2º Ofício.
 Inventários post-mortem (1800-1850). Caixas 01 – 15 e Caixa 01.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELAR, Carlos de Almeida Prado. A escravidão miúda em Soa Paulo Colonial: IN:
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro:
Novas Fronteira, 2000. PP. 238-254.

MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo
Pinheiro dos. Arraia-Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa
em Lagarto-SE (1880-1850). Estância, 2007 Monografia (Licenciatura em História).
Universidade Tiradentes.

MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas Coloniais: Elites e Riqueza em Salvador


1760-1808. São Paulo, 1998. (tese de Doutorado em História Econômica apresentada na
USP).

MELLO, Zélia M. Cardoso de. Metamorfose da Riqueza: São Paulo, 1845-1895.


Contribuição ao estudo da passagem da economia mercantil-escravista à economia
exportadora capitalista. 2ª edição. São Paulo. Hutitec, 1990.

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MOTT, Luis R. B. Sergipe Del Rey: População, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc,
1986.

OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Economia e História em Franca século XIX: Franca:
UNESP;FMDSS: Amazonas Prod. Calçados S/A, 1997.

SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens
e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004.
Dissertação (mestrado em História). Pós-graduação em História Social – Universidade
Federal da Bahia.

______________________. De Senhores de engenho à lavradores de mandioca: um estudo


sobre a propriedade escrava (Agreste-Sertão de Lagarto 1850-1888) -. São Cristóvão, 2001.

SILVA, Sheyla Farias. Riqueza em Movimento: A Construção de Fortunas na Estância


Escravocrata (1850-1888). São Cristóvão, 2002 (Monografia de Licenciatura) DHI-UFS.

____________________. Nas teias da fortuna: homens de negócio na Estância Oitocentista


(1820-1888). Salvador, 2005. Dissertação (Mestrado em História), Pós-graduação em História
Social – Universidade Federal da Bahia.

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A INTERAÇÃO DOS QUILOMBOLAS COM A SOCIEDADE


ENVOLVENTE NA REGIÃO DA COTINGUIBA (1870-7879)

Ana Carla de Jesus – UFS


anacarladjesus@hotmail.com

A resistência escrava é um dos temas mais trabalhados e revisitados pela historiografia da


escravidão, e os quilombos e quilombolas estão inclusos nesta temática. Assim, pretendo
analisar a relação entre os quilombolas da Zona da Cotinguiba da década de 70 do século
XIX, e a comunidade envolvente. Para isso, utilizei como fonte histórica principalmente os
ofícios da segurança pública e do governo. Os quilombolas mantiveram relações estreitas com
diversos grupos sociais, integrando profundamente a sociedade escravista. Ao longo da
década de 1870, os quilombolas existentes na região da Cotinguiba estabeleceram redes de
comércio, relações de trabalho, de amizade, parentesco e proteção envolvendo escravos,
libertos, e até mesmo gente livre branca, como alguns proprietários de engenhos. Podemos
constatar que, na sua maioria, os quilombos não existiam isolados, distantes da sociedade
escravista, e notaremos também que a interação do mundo quilombola com a sociedade
envolvente modificou lenta, porém profundamente os contornos da sociedade em que viviam.

Palavras-chave: Quilombolas, Sociedade Envolvente.

O trabalho escravo impôs uma realidade social extremamente violenta. No


entanto, como afirma Sidney Chalhoub, homens e mulheres escravizados não se tornaram
passivos receptores dos valores senhoriais, ao contrário, os escravos pensavam e agiam
segundo premissas próprias35.
Esses cativos buscavam negociar espaços de autonomia com seus Senhores, no
entanto, quando essa negociação falhava abria-se espaço para fuga e possível formação de

35
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.

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quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional36.
Na Província de Sergipe, as notícias sobre quilombos remetem ao século XVII,
como bem afirma Felte Bezerra37. Contudo, é a partir do século XIX que esses quilombos
começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido ou porque
foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite a
constatação de sua existência38.
O objetivo deste texto é, portanto, analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente na região da Cotinguiba, na década de 1870,
pois parto do pressuposto que os quilombos não eram redutos de negros marginalizados e
isolados da sociedade, ao contrário, os quilombolas buscaram, sempre que possível, uma
interação com o “mundo” escravista através de uma complexa rede social de proteção, na qual
procuravam obter uma maior autonomia e controle sobre suas vidas.
Nas últimas décadas da escravidão a relação entre escravos africanos e crioulos
foi algo constante nos quilombos sergipanos, notadamente na zona da Cotinguiba. Os laços de
solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade. Antes de
serem Africanos ou Brasileiros, eram escravos tentando reinventar os significados da
liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos, seriam talvez as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e conseqüentemente o
predomínio de crioulos na terras sergipanas39.
Alguns estudiosos da escravidão, como é o caso de Kátia Mattoso; defende a idéia
de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições culturais e a
língua teriam se tornado barreiras entre esses escravos40. Contudo, como poderemos perceber,
pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam transpor as
fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
36
Ver REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
37
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
38
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
39
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139-
150.
40
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.

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O escravo José Maroim, natural da África, testifica isso ao demonstrar o


sentimento de compromisso e de interesses recíprocos que havia entre africanos e crioulos.
Ao ser preso em 1873, após passar um tempo aquilombado, José Maroim declara para as
autoridades que “(...) sendo pego pelo Proprietário do Engenho Piedade, e este o colocando
em tronco, João Mulungu, e outro (...) quebraram o tronco, e puseram em liberdade”41.
Que motivos teria o quilombola João Mulungu para tomar essa atitude em prol de
José Maroim? Além da questão solidária que unia esses escravos, na mentalidade de João
Mulungu talvez perpassasse naquele momento o desejo de não ver, através da captura de José
Maroim, a vitória do Senhor de engenho; mais que isso, a quebra daquele tronco (símbolo da
repressão e do cativeiro) e conseqüente libertação do dito escravo, tem forte valor simbólico
na medida em que demonstra que os escravos não eram sujeitos passivos dentro do regime
escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu é um exemplo do papel do
individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído, pois este tardou o quanto pode
para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:

Perguntado mais se sabe aonde tem rancho de escravos fugidos? Respondeu


que ouviu dizer ter no [...] Termo de Itabaiana e disse mais que não tem
declarado os lugares de rancho deles em atenção a João Mulungu42.

A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.

41
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
42
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.

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Como afirma Flávio dos Santos Gomes, “através de variadas e complexas


relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
construíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas”43.
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.

Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Camaratuba,


próximo a cidade de Laranjeiras existiam alguns quilombos, dirigi-me sem
parada de tempo para aquela cidade levando comigo o número de oito
praças. Lá chegando tive de demorar-me um pouco até que chegasse o guia
(...). Por aquele soube que os escravos eram em número de seis e que se
achavam em diversas casas pertencentes a alguns libertos ali residentes(...)44.

Acima temos o chefe de polícia expondo para o presidente de província a situação


com a qual se deparou no cumprimento de suas funções. A partir do exposto, é possível
verificar que a idéia de reificação dos escravos, defendida por alguns estudiosos45; ou ainda a
concepção de que “a resistência do negro através dos quilombos foi uma resistência de fora
para dentro, no contexto da sociedade escravista”46; não condiz com a realidade dos
quilombos sergipanos, nos quais seus componentes buscaram desenvolver uma relação
simbiótica com vários setores da população.
Diversas podem ter sido as razões para que esses libertos acoitassem em suas
casas os quilombolas: laços de solidariedade, religião, amizade, interesses por trocas
mercantis, ou até mesmo uma ação solidária desinteressada (razão pouco provável). Contudo,
independente da razão, a proteção dos libertos a esses quilombolas representou uma ajuda de
incalculável valor, uma vez que, impossibilitou a ação das autoridades locais, pois as casas
dos libertos eram

Muito próximas umas das outras , sendo portanto impossível atacá-las ao


mesmo tempo com tão pouca gente, sob pressão de trabalhar infruticuamente
e nada mais fazendo do que espantar (...). Semelhante procedimento deu

43
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
44
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
45
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
46
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.

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lugar a que eu não prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado
algum os praças que já se achavam tão cansados47.

O apoio dado aos quilombolas pela sociedade envolvente, contribuiu para


dificultar a tarefa do governo em exterminar os quilombos. O trecho apresentado nos serve
para retificar a idéia de que na Província de Sergipe, o que ocorria por parte dos negros
fugidos era um movimento desprovido de coesão e planejamento; concepção que nos conduz
a inferir que havia uma falta de organização dos quilombolas48.
Tal teoria choca-se com as informações expostas pela documentação utilizada, na
qual notamos, por exemplo, a organização e estratégia de defesa empregada pelos
quilombolas com o auxilio dos ex-escravos. Estratégia essa que contribuiu para ineficácia das
expedições reescravizadoras.
Na região da Cotinguiba os quilombolas eram também auxiliados pelos escravos
das senzalas, com os quais entretinham relações não somente de proteção, mas também
comercial. Essa foi mais uma aliança que perdurou durante o desenvolvimento do
quilombismo na Província de Sergipe corroborando para formação e sobrevivência deste
movimento. Pois, “a amizade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam
aos quilombolas são sérios obstáculos: dão não só guarida no caso de qualquer emergência,
mesmo dentro das senzalas”49.
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligências
policiais:

Vão de novo aparecendo em alguns pontos os escravos fugidos. O rigor do


inverno faz-los procurar as proximidades dos povoados e a proteção dos
parceiros dos engenhos, proteção que muitas vezes tem burlado as
diligencias da policia. Ultimamente na vila de Japaratuba fez-se uma
diligencia que se não fosse aquela proteção grande seria a presa. Pressentiam
o movimento de força e deixaram os ranchos com precipitação refugiaram-se
os quilombolas nas senzalas dos engenhos50.

47
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
48
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
49
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
50
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.

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Devido à constatação desse empecilho que atrapalhava a ação das expedições


punitivas, cabia aos proprietários se esforçarem de maneira que prevenissem ou acabassem
com esse “conluio”.

É de crer que os proprietários , os mais ameaçados com a nova atitude que


vão tomando os quilombolas , se esforcem para manter nos engenhos severa
vigilância em ordem e prevenir o perigoso concluio que se dá para frustrar os
planos da autoridade51.

Os escravos das senzalas serviam muitas vezes de informantes, deixando os


quilombolas cientes de qualquer força que se aproximasse em busca desses escravos fugidos;
temos aí mais uma estratégia de sobrevivência dos quilombos. Esse foi um dos motivos
apontados pelo Chefe de Policia ao Juiz Municipal de Japaratuba como causa da improdutiva
diligência que conduziu:

Hoje foi repetida a mesma diligencia com 77 praças da Guarda Nacional e os


cinco da cadeia, mas infelizmente nada se encontrou a não ser mais cinco
ranchos novos em outro lugar, tendo convicção qual que os negros são
protegidos pelos do dito engenho Coqueiro se relacionam e são avisados de
qualquer força que contra eles se dirija52.

As autoridades, freqüentemente, justificavam o fracasso das diligências devido às


relações que os escravos fugidos estabeleciam com os escravos dos engenhos. Depreende-se,
portanto, que essa complexa rede social de proteção foi vital para que os quilombolas
constituíssem ou recriassem seu modo de vida dentro da sociedade escravista vigente.
Os quilombolas conseguiam por meio de trocas comerciais, com os escravos das
fazendas, produtos que necessitavam nos quilombos. A zona da Cotinguiba foi palco de vários
intercâmbios mercantis, como publicou o Jornal de Aracaju: “a experiência tem mostrado o
grau de relação que entretêm os quilombolas com os escravos dos engenhos: acham aqueles
apoio e proteção; trocam farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos primeiros e em
caso de perigo invadem as senzalas”53.
O quilombola Romão, com certa constância, praticou trocas mercantis recebendo
de um escravo assenzalado farinha em troca de carne de ovelha.

Fora preso ontem a noite no engenho Capim-assú dentro de uma das


senzalas pertencentes ao escravo Roberto do mesmo engenho Capim-assú,

51
Idem
52
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
53
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.

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tendo ali ido buscar ração de farinha da mão do dito Roberto, a quem ele
(Romão) tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de
ovelha que ele (Romão) muitas vezes levava54.

O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”55.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante56. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos (idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.
A documentação da década de 1870 apresenta um leque variado de informações
sobre essas mulheres que se aventuravam a fazer parte dos quilombos na região da
Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35 anos.
Algumas dessas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade
ou prosseguir sua luta nos quilombos. Foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que declarou
ter “um filho que mandou depositar na porta da igreja de São Benedito em Laranjeiras”57.
A escolha desta igreja para deixar seu filho não se deu forma aleatória. A Igreja de
São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para devoção da fé dos negros e pelos

54
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
55
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
56
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
57
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.

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próprios negros58. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido, era um local em
que ela confiava.
O jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:

a prisão da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se


descobrir que tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em
casa de uma mulher moradora de Laranjeiras conhecida por Maria
Cabocla. O Sr. Dr. Chefe de policia tendo conhecimento desse fato,
recomendo que o delegado procedesse as averiguações necessárias
para saber se com efeito existe o menor em poder da dita mulher, a
fim de que sendo tenha ciência o dr. Juiz de órfão, a quem cabe
proceder a respeito da forma do reg. que baixou com o decreto de 13
de novembro de 1872, por ser o menor considerado liberto. Vê-se bem
que esses quilombolas praticam toda sorte de perversidade nos lugares
em que se encontram. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de seus
próprios filhos quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá
acontecido (...)59.

O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas60.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarou-
se casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.

58
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
59
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
60
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.

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Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”61.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”62. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”63.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”64.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.

BIBLIOGRAFIA E FONTES

Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe

Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.

61
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
62
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.
63
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
64
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.

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REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEZERRA, Felte. Etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade , 1984.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de


senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

JESUS, Ana Carla. Construindo a liberdade: Entre conflitos e alianças, quilombolas (re)
inventam sua história na região da Cotinguiba (1870-1879).2008.76p. Monografia (graduação
em história) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2008.

MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 2003.

MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombo, insurreições e guerrilhas. Rio de


Janeiro: Conquista, 1972.

NUNES, M. Thétis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo


Brasileiro,2006.

QUEIROZ,Suely R.Reis de. Escravidão negra no Brasil. São Paulo:Ática,1987.Série


princípios.

REIS, João José.; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas,procissões e famílias:a vida de homens e


mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (mestrado em
história) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004.

SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, pp.31- 43,1992.

SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.

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SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E


BARGANHAS NA ZONA DA COTINGUIBA (1870-1879)

Ana Carla de Jesus – UFS


anacarladjesus@hotmail.com

Os escravos, sempre representaram importante mão de obra para os Senhores de Engenho.


Contudo, no decorrer da segunda metade do século XIX, a percentagem de cativos decresceu
na Província de Sergipe, ocorrendo uma redução no número de escravos em idade
economicamente ativa para lavoura. A partir dessa constatação pretendo analisar o
comportamento de alguns Senhores de Engenho da Zona da Cotinguiba, na década de 1870,
diante da fuga e formação de quilombos. Para isso, utilizei como fonte histórica
principalmente os ofícios da segurança pública e do governo. Ao lado de Senhores que
buscaram reprimir a formação de núcleos de escravos fugidos, também existiram alguns
Fazendeiros que apoiavam os quilombolas, dando-lhes proteção. Buscaremos perceber,
portanto, o jogo de interesses que envolvia quilombolas e Senhores de Engenho. Poderemos
notar que o envolvimento dos fazendeiros no acoitamento de quilombolas, não se deu por uma
solidariedade desinteressada, os agentes históricos envolvidos nessa rede de socialização
tinham lógicas próprias, e entrecruzavam interesses e solidariedade.

Palavras-chave: Quilombolas, Senhores.

O trabalho escravo impôs uma realidade social extremamente violenta. No


entanto, como afirma Sidney Chalhoub, homens e mulheres escravizados não se tornaram
passivos receptores dos valores senhoriais, ao contrário, os escravos pensavam e agiam
segundo premissas próprias1.
Esses cativos buscavam negociar espaços de autonomia com seus Senhores, no
entanto, quando essa negociação falhava abria-se espaço para fuga e possível formação de
quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional2.
Na Província de Sergipe, as notícias sobre quilombos remetem ao século XVII,
como bem afirma Felte Bezerra3. Contudo, é a partir do século XIX que esses quilombos
começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido ou porque

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foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite a


constatação de sua existência4.
O objetivo deste texto é, portanto, analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente na região da Cotinguiba, na década de 1870,
pois parto do pressuposto que os quilombos não eram redutos de negros marginalizados e
isolados da sociedade, ao contrário, os quilombolas buscaram, sempre que possível, uma
interação com o “mundo” escravista através de uma complexa rede social de proteção, na
qual procuravam obter uma maior autonomia e controle sobre suas vidas.
Nas últimas décadas da escravidão a relação entre escravos africanos e crioulos
foi algo constante nos quilombos sergipanos, notadamente na zona da Cotinguiba. Os laços de
solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade. Antes de
serem Africanos ou Brasileiros, eram escravos tentando reinventar os significados da
liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos, seriam talvez as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e conseqüentemente o
predomínio de crioulos na terras sergipanas5.
Alguns estudiosos da escravidão, como é o caso de Kátia Mattoso; defende a idéia
de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições culturais e a
língua teriam se tornado barreiras entre esses escravos6. Contudo, como poderemos perceber,
pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam transpor as
fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
O escravo José Maroim, natural da África, testifica isso ao demonstrar o
sentimento de compromisso e de interesses recíprocos que havia entre africanos e crioulos.
Ao ser preso em 1873, após passar um tempo aquilombado, José Maroim declara para as
autoridades que “(...) sendo pego pelo Proprietário do Engenho Piedade, e este o colocando
em tronco, João Mulungu, e outro (...) quebraram o tronco, e puseram em liberdade”7.
Que motivos teria o quilombola João Mulungu para tomar essa atitude em prol de
José Maroim? Além da questão solidária que unia esses escravos, na mentalidade de João
Mulungu talvez perpassasse naquele momento o desejo de não ver, através da captura de José
Maroim, a vitória do Senhor de engenho; mais que isso, a quebra daquele tronco (símbolo da
repressão e do cativeiro) e conseqüente libertação do dito escravo, tem forte valor simbólico

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na medida em que demonstra que os escravos não eram sujeitos passivos dentro do regime
escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu é um exemplo do papel do
individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído, pois este tardou o quanto pode
para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:

Perguntado mais se sabe aonde tem rancho de escravos fugidos? Respondeu


que ouviu dizer ter no [...] Termo de Itabaiana e disse mais que não tem
declarado os lugares de rancho deles em atenção a João Mulungu8.

A atitude do escravo africano José Maroim foi de inestimável valia para que o
quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço de solidariedade
recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários anos na
Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles tínhamos
Izabel, Venceslau e Maurício.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre quilombolas africanos e crioulos. Havia um relacionamento entre escravos
fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
É importante insistirmos na capacidade que os quilombolas tinham de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e proprietários de engenho.
Como afirma Flávio dos Santos Gomes, “através de variadas e complexas
relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
construíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas”9.
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.

Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Camaratuba,


próximo a cidade de Laranjeiras existiam alguns quilombos, dirigi-me sem
parada de tempo para aquela cidade levando comigo o número de oito
praças. Lá chegando tive de demorar-me um pouco até que chegasse o guia
(...). Por aquele soube que os escravos eram em número de seis e que se
achavam em diversas casas pertencentes a alguns libertos ali residentes(...)10.

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Acima temos o chefe de polícia expondo para o presidente de província a situação


com a qual se deparou no cumprimento de suas funções. A partir do exposto, é possível
verificar que a idéia de reificação dos escravos, defendida por alguns estudiosos11; ou ainda a
concepção de que “a resistência do negro através dos quilombos foi uma resistência de fora
para dentro, no contexto da sociedade escravista”12 ; não condiz com a realidade dos
quilombos sergipanos, nos quais seus componentes buscaram desenvolver uma relação
simbiótica com vários setores da população.
Diversas podem ter sido as razões para que esses libertos acoitassem em suas
casas os quilombolas: laços de solidariedade, religião, amizade, interesses por trocas
mercantis, ou até mesmo uma ação solidária desinteressada (razão pouco provável). Contudo,
independente da razão, a proteção dos libertos a esses quilombolas representou uma ajuda de
incalculável valor, uma vez que, impossibilitou a ação das autoridades locais, pois as casas
dos libertos eram

muito próximas umas das outras , sendo portanto impossível atacá-las ao


mesmo tempo com tão pouca gente, sob pressão de trabalhar infruticuamente
e nada mais fazendo do que espantar (...). Semelhante procedimento deu
lugar a que eu não prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado
algum os praças que já se achavam tão cansados13.

O apoio dado aos quilombolas pela sociedade envolvente, contribuiu para


dificultar a tarefa do governo em exterminar os quilombos. O trecho apresentado nos serve
para retificar a idéia de que na Província de Sergipe, o que ocorria por parte dos negros
fugidos era um movimento desprovido de coesão e planejamento; concepção que nos conduz
a inferir que havia uma falta de organização dos quilombolas14.
Tal teoria choca-se com as informações expostas pela documentação utilizada, na
qual notamos, por exemplo, a organização e estratégia de defesa empregada pelos
quilombolas com o auxilio dos ex-escravos. Estratégia essa que contribuiu para ineficácia das
expedições reescravizadoras.
Na região da Cotinguiba os quilombolas eram também auxiliados pelos escravos
das senzalas, com os quais entretinham relações não somente de proteção, mas também
comercial. Essa foi mais uma aliança que perdurou durante o desenvolvimento do
quilombismo na Província de Sergipe corroborando para formação e sobrevivência deste
movimento. Pois, “a amizade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam

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aos quilombolas são sérios obstáculos: dão não só guarida no caso de qualquer emergência,
mesmo dentro das senzalas”15.
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligências
policiais:

vão de novo aparecendo em alguns pontos os escravos fugidos. O rigor do


inverno faz-los procurar as proximidades dos povoados e a proteção dos
parceiros dos engenhos, proteção que muitas vezes tem burlado as
diligencias da policia. Ultimamente na vila de Japaratuba fez-se uma
diligencia que se não fosse aquela proteção grande seria a presa. Pressentiam
o movimento de força e deixaram os ranchos com precipitação refugiaram-se
os quilombolas nas senzalas dos engenhos16.

Devido à constatação desse empecilho que atrapalhava a ação das expedições


punitivas, cabia aos proprietários se esforçarem de maneira que prevenissem ou acabassem
com esse “conluio”.

É de crer que os proprietários , os mais ameaçados com a nova atitude que


vão tomando os quilombolas , se esforcem para manter nos engenhos severa
vigilância em ordem e prevenir o perigoso concluio que se dá para frustrar os
planos da autoridade17.

Os escravos das senzalas serviam muitas vezes de informantes, deixando os


quilombolas cientes de qualquer força que se aproximasse em busca desses escravos fugidos;
temos aí mais uma estratégia de sobrevivência dos quilombos. Esse foi um dos motivos
apontados pelo Chefe de Policia ao Juiz Municipal de Japaratuba como causa da improdutiva
diligência que conduziu:

hoje foi repetida a mesma diligencia com 77 praças da Guarda Nacional e os


cinco da cadeia, mas infelizmente nada se encontrou a não ser mais cinco
ranchos novos em outro lugar, tendo convicção qual que os negros são
protegidos pelos do dito engenho Coqueiro se relacionam e são avisados de
qualquer força que contra eles se dirija18.

As autoridades, freqüentemente, justificavam o fracasso das diligências devido às


relações que os escravos fugidos estabeleciam com os escravos dos engenhos. Depreende-se,
portanto, que essa complexa rede social de proteção foi vital para que os quilombolas
constituíssem ou recriassem seu modo de vida dentro da sociedade escravista vigente.

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Os quilombolas conseguiam por meio de trocas comerciais, com os escravos das


fazendas, produtos que necessitavam nos quilombos. A zona da Cotinguiba foi palco de vários
intercâmbios mercantis, como publicou o Jornal de Aracaju: “a experiência tem mostrado o
grau de relação que entretêm os quilombolas com os escravos dos engenhos: acham aqueles
apoio e proteção; trocam farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos primeiros e em
caso de perigo invadem as senzalas”19.
O quilombola Romão, com certa constância, praticou trocas mercantis recebendo
de um escravo assenzalado farinha em troca de carne de ovelha.

Fora preso ontem a noite no engenho Capim-assú dentro de uma das


senzalas pertencentes ao escravo Roberto do mesmo engenho Capim-assú,
tendo ali ido buscar ração de farinha da mão do dito Roberto, a quem ele
(Romão) tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de
ovelha que ele (Romão) muitas vezes levava20.

O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José, “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
pastos dos engenhos vizinhos (...)”21.
A importância dessa aliança entre quilombolas e os escravos das senzalas não se
resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas cultural e religiosa. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante a noite. Na época de São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma mais
constante22. Essa era uma ocasião onde os quilombolas reviam parentes e amigos; era um
momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos ( idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir em fuga
com crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não
os acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foram justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de
muitos quilombolas.
Cotidiano que foi permeado também pela presença feminina, uma vez que na
região da Cotinguiba as mulheres, fossem elas escravas, livres ou forras, se fizeram presentes
nessa imensa rede de socialização.

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A documentação da década de 1870 apresenta um leque variado de informações


sobre essas mulheres que se aventuravam a fazer parte dos quilombos na região da
Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35 anos.
Algumas dessas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade
ou prosseguir sua luta nos quilombos. Foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que declarou
ter “um filho que mandou depositar na porta da igreja de São Benedito em Laranjeiras”23.
A escolha desta igreja para deixar seu filho não se deu forma aleatória. A Igreja de
São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para devoção da fé dos negros e pelos
próprios negros24. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido, era um local em
que ela confiava.
O jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:

a prisão da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se descobrir


que tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em casa de uma
mulher moradora de Laranjeiras conhecida por Maria Cabocla. O Sr. Dr.
Chefe de policia tendo conhecimento desse fato, recomendo que o delegado
procedesse as averiguações necessárias para saber se com efeito existe o
menor em poder da dita mulher, a fim de que sendo tenha ciência o dr. Juiz
de órfão, a quem cabe proceder a respeito da forma do reg. que baixou com o
decreto de 13 de novembro de 1872, por ser o menor considerado liberto.
Vê-se bem que esses quilombolas praticam toda sorte de perversidade nos
lugares em que se encontram. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de
seus próprios filhos quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá
acontecido (...)25.

O jornal não revela o porquê de essa mulher aceitar o filho da quilombola, mas a
forma como é chamada – “Maria Cabocla”- já nos dá uma pista de que ela possivelmente
tinha origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava,
a ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados. Outro dado exposto pela documentação diz
respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas26.
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência. A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças
viriam a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus companheiros.
Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do engenho Tábua, quando presa em 1873 declarou-

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se casada , mas assumiu ter mantido “relações ilícitas” com o quilombola João Mulungu.
Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de Mulungu, respondeu que
“deu-lhe a quantia de cinco mil reis”27.
A atitude do escravo João Mulungu gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência, que também era amásia do mesmo. O escravo citado tinha ainda uma
companheira, “uma preta de 13 anos”28. Temos uma teia de relação afetivas e conflituosas,
comum entre os quilombolas sergipanos.
Contudo, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias”.Maria vivia de costuras, tinha
25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos fugidos.
No dia de Natal, Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco,
João Mulungu, Maximiano e Mathias, e “com eles divertiu-se toda noite”29.
Como é perceptível, a vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas,
tinha-se espaço para o lazer, pois “ a vida concreta dos escravos era algo como um jogo de
capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam a liberdade
para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz”30.
A partir do exposto, podemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais.
Cada vez mais evidente a diversidade na formação desses grupos, torna-se
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo; bem como a percepção de que a
interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta, porém
profundamente os contornos da sociedade em que viviam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado de Sergipe

Segurança Pública (SP1), pacotilhas 298, 652, 363, 705, 176, 373, 564.

Fontes Impressas

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inventam sua história na região da Cotinguiba (1870-1879).2008.76p. Monografia (graduação
em história) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2008.

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SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José
Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.

___________________________
Notas

1
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
2
Ver REIS, João José.;GOMES,Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1996.
3
BEZERRA, Felte. As etnias sergipanas. Aracaju: J. Andrade, 1984, p.107.
4
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.32,1992.
5
MOTT, Luiz R.B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986, pp.139-
150.
6
cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 2003.
7
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
8
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 298.
9
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.95.
10
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
11
Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; para essa autora o negro cativo foi o suporte
da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão havia
transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no Brasil.
São Paulo: Ática, 1987. Série Princípios.
12
SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n.31, p.42,1992.
13
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 652.
14
ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz” : Francisco
José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997.
15
Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
16/17
Jornal de Aracaju, 10 de março de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª Ed. 1981.
18
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 363.
19
Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª Ed. 1981.
20
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 705.
21
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
22
cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
23
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 176.
24
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.60.
25
Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Brasiliense,
3 ª ed.1981.
26
SANTOS. Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, província de Sergipe (1850-1888). Salvador, 2004. Dissertação de mestrado- Universidade
Federal da Bahia, PP.95-98.
27
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
28
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 564.

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29
Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1, pacotilha 373.
30
REIS, João Jose.; SILVA. Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das letras, 1999,p.11.

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OS PRETOS DOS MATOS: A EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA


NA PROVÍNCIA DE SERGIPE D’EL REY (1871-1888).

Igor Fonsêca de Oliveira - UNEB.


igor.fons@hotmail.com

Este trabalho apresenta resultados parciais acerca de um estudo mais que amplo que venho
desenvolvendo sobre o fenômeno quilombola na província sergipana, mais precisamente
sobre a região da Cotinguiba. Neste, é demonstrado os conflitos, o desespero, as conquista e
as derrotas que diversos negros fugidos experimentaram no árduo caminho, muitas vezes sem
fim, rumo à liberdade. Toda esta conturbada realidade é demonstrada através de densa análise
crítica de fontes dispersas, onde informações a respeito de estratégias, organizações sociais,
objetivos, dentre outras questões aparecem em formas de indícios.

Palavras - chave: Escravidão. Sergipe Del Rey. Quilombos.

1. INTRODUÇÃO

Lá se iam apenas 15 dias da sua administração, quando o recém empossado


governador da província de Sergipe, Luiz Álvares, tomava ciência de um antigo problema que
há tempos era motivo de preocupações para as autoridades locais. Um longo ofício redigido
pelo chefe de polícia o ilustrava e clamava providências enérgicas acerca da emergência de
ajuntamentos de negros fugidos em “alguns pontos da província”. 65
Segundo o Dr. Joaquim Barboza, dita autoridade militar, a mau interpretação que
a escravaria estava tendo acerca da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, seria a
principal razão para o atual estado de insegurança pública e individual.

Alguns escravos mal aconselhados, e imbuídos da falsa idéia de que se


acham de todos livres do cativeiro pela Lei N° 2040 de 28 de setembro do
ano passado, e que não gozam de suas liberdades, porque os seus senhores a
isso se opõem, se tem refugiado nas matas, e reunidos em quilombos, saem
de vez em quando de seus esconderijos, e pelas povoações e pelas estradas
cometem roubos, espancam as vítimas de seus latrocínios, e já algumas

65
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 4 de março de 1872, p. 5.

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mortes tem cometido. O susto e a desolação têm assaltado o povo, que vê


em perigo a sua vida e a sua propriedade [...].66

Um noticiário pode ter influenciado decisivamente para a propagação desta “falsa


idéia”. Sob nota intitulada A Abolição da Escravatura no Brasil, um periódico local
transcreveu em suas páginas uma matéria publicada dias anteriores em um periódico
português – Jornal da Noite. Nesta, constava que o Brasil acabara de libertar os escravos: “O
governo propôs, o corpo legislativo aprovou, a nação aplaudiu e a história universal registrará
em páginas de ouro este imortal triunfo da civilização brasileira, esta gloriosa homenagem á
liberdade e ao evangelho”. 67 Entendiam eles, que a promulgação da lei de 1871 correspondia
ao fim imediato do regime escravista na sua ex-colônia além mar.
Equivocada, porém objetiva. Nesta curta notícia, está implícito todo o processo
por qual uma lei deveria passar até sua promulgação. Afinal, um projeto-lei fora proposto (o
governo propôs), a câmara legislativa em seguida teria o aprovado (o corpo legislativo
aprovou) e agora a nação comemorava tal feito.
Mas, equivoco mesmo seria o senhor chefe de polícia restringir-se apenas a “falsa
idéia”, ou seja, na sua ótica, à ingenuidade escrava para justificar uma maior incidência de
quilombos a partir de 1871. No decorrer das páginas seguintes, tomando como ponto de
partida na minha análise a fala do senhor Joaquim Barbosa, buscarei adentrar no cotidiano dos
quilombolas sergipanos, tentando identificar suas expectativas, conquistas e derrotas nas
últimas décadas do regime escravista.

2. DA LAVOURA ÀS MATAS

Sergipe D’el Rey, menor província do Império brasileiro, contava com cerca de
650 engenhos nos anos setenta do século XIX. A Cotinguiba, principal região agro-econômica
provinciana, concentrava grande parte destas unidades. Núcleos pequenos, contendo em
média 20 escravos, muitos destes braços destinados quase que exclusivamente ao trabalho na
lavoura.

66
Ibidem.
67
“Emancipação de escravos”, Jornal do Aracaju, n° 226, 23 de dezembro de 1871, p. 3.

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A agricultura da cana-de-açúcar despontava como principal fonte econômica,


sendo densamente cultivada em dez das onze comarcas que compunham a Cotinguiba.68
Técnicas rústicas, ausência de capitais financeiros e a carência de mão-de-obra são
constantemente apontadas como os grandes males enfrentados pelos agricultores sergipanos.
A maior incidência no número de fugas escravas nas últimas décadas do regime escravista
acentuaria ainda mais esta carência de braços produtivos nas lavouras da província.
Ao abandonar as senzalas, os negros tinham a convicção que iniciava uma nova
fase de suas vidas. Não menos tranqüila, não menos cruel! A sobrevivência, lá, nas matas,
muitas vezes poderia ser mais tensa que a vivência sob o julgo dos seus senhores. Cientes
desta realidade, a trama da fuga deveria ter um destino certo. Não bastava escapar das
“amarras senhoriais”, era preciso buscar um ambiente onde estes pudessem passar
despercebidos das vistas ansiosas e incumbidas de capturá-los. Os quilombos atraíram muitos
escravos por vislumbrar estas possibilidades.
Não seria irrefutável pensar que muitos quilombolas tomaram conhecimento da
existência desses núcleos ainda no cativeiro. O negro José, após ser pego furtando das roças
do seu senhor “um cesto de mandioca”, pois este tinha “precisão de farinha por ser muito
pequena a ração que recebia”, foi punido com castigos e “um ferro ao pescoço”. Tais castigos
teriam motivado-o a fugir “para as matas do engenho São José onde lhe informaram” haver
quilombos.69
A ciência da existência de quilombos em determinadas regiões não bastava para
que as fugas lograssem êxito. A aproximação e a inserção nestes núcleos provavelmente era
uma etapa muito difícil ainda a ser vencida. Abstenho-me de tecer longos comentários acerca
da desconfiança e as razões com que muitos quilombolas devem ter tidos acerca da inserção
de um novo membro em suas habitações. O ingresso de um novato em um determinado bando
deve ter sido obtido não antes de este dar uma prova de confiabilidade. Nos quilombos, os
pretos dos matos iniciavam uma nova fase de suas vidas marcada e operada pelas suas
experiências vivenciadas no cativeiro.

68
O cultivo da cana-de-açúcar impulsionaria o desenvolvimento de dez núcleos urbanos nesta região. A capital
da província, Aracaju, também estava ai localizado e desempenharia o papel de pólo decisório acerca da
comercialização e do escoamento do açúcar.
69
Sumário de Culpa do escravo José Africano. Fundo: Laranjeiras – cart. 1° ofício, cx. 291. Arquivo Judiciário
de Sergipe.

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3. PELAS MATAS

Os quilombos destacavam-se como uma grande ameaça ao regime escravista. As


autoridades civis e militares buscaram ao longo dos anos criarem diversas instituições e leis
visando inibir a união de escravos fugitivos nestes redutos.
Experiências passadas de grandes revoltas eram constantemente lembradas para
justificar a urgência com que estes núcleos deveriam ser reprimidos. Um mês após a revolta
dos escravos muçulmanos na cidade de Salvador, o presidente da província sergipana advertia
que não só de homens livres é composta a sociedade local “e que para policiar esta segunda
parte da população [a escrava]” é indispensável que o “governo tenha gente armada, e
assoldadada à sua disposição”. Segundo ele, “essa insurreição, que acaba de ter lugar na
Bahia, é prova assaz e convincente” da sua asserção.70
A tal “gente armada e assoldadada” a que se referia o presidente Manoel Ribeiro
competia aos corpos da Guarda Nacional. Esta é constantemente apontada ao logo dos
relatórios oficiais como uma instituição que “não se pode contar, porquanto só nominalmente
[...]. Mesmo na Capital [Aracaju] ela nenhum serviço presta. Sem instrução, até mesmo a
maior parte de seus oficiais, sem fardamento, sem armamento, evidencia-se que a instituição
aqui falseia completamente”.71
Recrutar homens e preparar uma diligência para combater os mocambos não era
tarefa das mais fáceis. Muitas vezes, devido à demora e a burocracia nos preparativos, as
ordens e as discussões das estratégias a serem empreendidas tinham início em um governo e o
real envio das tropas só era realizado em outro. Esta realidade pode ter sido mais acentuada na
província sergipana, pois entre os 17 anos compreendidos neste estudo passaram pela cadeira
presidencial 29 indivíduos.
Estas constantes alterações no executivo deveriam retardar consideravelmente a
tomada de providências mais enérgicas para conter esta “onda negra”. Como estas alterações
muitas vezes geravam também mudanças em níveis municipais (juízes de paz, juízes
municipais, chefes de polícia, inspetores de quarteirões, etc.), acredito que muitas diligências
nem mesmo chegaram a ser formadas para averiguar a veracidade das denúncias.
Já as diligências que rumaram às matas nem sempre logravam êxitos. Após
discutir todos os planos e estratégias uma diligência sob o comando do capitão Deocleciano

70
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa, 25 de fevereiro de 1835,
p. 6.
71
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Francisco José Cardoso Júnior, 03 de março de 1871, p. 29.

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Aurélio marcharia para dar combate a um grande grupo de criminosos que estavam alojados
as margens do rio São Francisco, justamente na encruzilhada entre as províncias de Sergipe,
Bahia e Alagoas. Diante desta realidade, couberam aos dirigentes das províncias se unirem
para combater “tal mal”. Ao total, marcharam cerca de 300 soldados para combater os
criminosos ali alojados. Na batida, apesar do grande vulto da tropa repressora, conseguiu
capturar apenas “um criminoso e um recruta”, este último, provavelmente um desertor.72
Após a batida o bando vitimara o guia Pedro, que conduzira as tropas repressoras
até o ponto que os salteadores estavam alojados. “Mataram-no barbaramente, fazendo
propalar que darão o mesmo destino a todo aquele que servir de guia as forças estacionadas
ali”.73 As autoridades recorriam muitas vezes a guias para evitar que as tropas repressoras
ficassem vagando sem rumo pelas matas fechadas.
Novas medidas teriam que ser adotadas para “reprimir a audacia dos bandidos”, e
assim “prende-los e puni-los, destruir os quilombos que se formam, para que se restitua a
tranqüilidade ao povo, e evite uma insurreição, que pode sobreviver, si, o que há, for
abafado”.74
Entre os capturados, nota-se a presença de um recruta. Como a fuga representava
uma ameaça à ordem escravocrata, e a partir deste momento eram considerados malfeitores e
bandidos, não seria incomum que pessoas livres, perseguidas pela justiça, se juntassem a esses
negros em busca de abrigo e proteção. Estas alianças forjadas em meio à escravidão eram de
suma importância para a manutenção da liberdade. Tratava-se de relações informais que
podiam ser moldadas e redefinidas a depender dos interesses daqueles imersos nesta ampla
teia.
Erguendo seus mocambos nos arredores das matas dos engenhos, os negros ali
reunidos mantinham constantes comunicações com os negros remanescentes das senzalas.
Fato este que foi bem descrito pelo Jornal do Aracaju em abril de 1872: “A experiência tem
mostrado o grau de relações que entretém os quilombolas com os escravos dos engenhos:
acham aqueles apoio e proteção: trocam estes farinhas e agasalho pela partilha nos roubo dos
primeiros e em caso de perigo invadem as senzalas”. Aos donos de escravos cabia “exercerem
assídua fiscalização na sua escravatura, cortando quanto for possível a comunicação protetora
que tanto tem embaraçado as diligências”. 75

72
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo Macedo, 04 de março de 1872, p. 7.
73
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Luiz Álvares de Azevedo, 4 de março de 1872, p. 8.
74
Idem, p. 9.
75
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 257, 3 de abril de 1872, p. 2.

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Apenas 21% das terras dos engenhos eram ocupadas com plantações, quantidade
equivalente seria ocupada com matas e cerca de 60% eram compostas por campos
(AMARAL, 2007, p. 67). Ao erguer seus mocambos nestas áreas inóspitas, os quilombolas
contariam também com forte proteção geográfica. A movimentação lenta das diligências por
dentro das florestas fechadas propiciava tempo suficiente para que os amocambados, ao
tomarem ciência das tropas que marchavam aos seus encontros, fugissem para terras distantes
ou para as senzalas dos engenhos.
Ao seguir para dar combate a um quilombo existente nos arredores do engenho
Brejo, em Laranjeiras, o tenente Jeremias Roberto de Carvalho relataria que encontrara
grandes dificuldades devido “ao mau tempo” e “a dificuldade de marchar a escolta
regularmente em uma mata extensa e intransitável”. Apesar dos esforços empregados,
evadiram-se os escravos. Conseguindo apenas a escolta apreender uma parda de nome
Francisca, fugida a mais de um ano do seu senhor Manuel Curvelo de Mendonça”.
Interrogada, Francisca relataria ter parido “um filho nos matos, e que o viera depositar em
casa de uma mulher” moradora do mesmo termo “conhecida por Maria Cabocla”.76
Tal noticiário continuaria relatando que os “quilombolas praticam toda a sorte de
perversidade nos lugares em que se acoitam. Roubam, fazem mil tropelias, privam-se de seus
filhos, quando não lhes dão a morte, como muitas vezes terá acontecido. Convém, pois,
empregar todos esforços para extinguir estes malfeitores”.77
Nota-se, diante destes relatos, qual era a visão construída pela classe senhorial
para com os negros fugidos. Esta ótica, muitas vezes destorcida e inflamada, fazia com que a
autoria de muitos crimes, mesmo sem provas, recaísse sob os calhambolas. Contudo, nem
todas as populações livres se voltaram contra estes negros. Muitos os tiveram como aliados,
sejam por serem simpáticos à suas causas ou por visarem angariar benefícios econômicos.
Em março de 1873, proprietários de engenhos de diversos municípios
(Laranjeiras, Divina Pastora, Rosário, Capela e Japaratuba), seriam acusados pelo chefe de
policia de estarem realizando um “desleixo criminoso” diante a presença de quilombolas em
suas propriedades. Estes “não só deixam que esses escravos se acoitem em suas terras, como
também não impedem que se relacionem com os que possuem nos seus engenhos, o que é de
grande proveito àqueles, que não podem ser apreendidos sem grande dificuldade”.78

76
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 376, 14 de maio de 1873, p. 2.
77
Ibidem.
78
“Captura de Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 361, 19 de março de 1873, p.2.

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As autoridades militares buscavam a todo custo romper estas ligações, buscando


identificar e punir os indivíduos envolvidos. Informações a respeito dos núcleos quilombolas
também eram de suma importância. Onde estavam arranchados? Qual o número de escravos
que ali habitavam? Quais os armamentos empregados pelos escravos fugidos? Tais respostas
eram fundamentais para que uma diligência repressora lograsse êxito.
Para obter tais respostas, as autoridades nomeavam constantemente espiões.
Muitas vezes sitiantes e até mesmo escravos se ocupavam de tal serviço, um tanto perigoso.
Na noite do dia 13 de novembro de 1873, Albano, escravo fugido do major José Ribeiro de
Souza, assassinou com tiros o senhor José Victal dos Santos e sua esposa no termo de
Riachão. O motivo que o levara a cometer tal delito era por “crer que este casal estava
incumbido de efetuar sua captura”.79
O escravo Albano prometeria ainda retirar a vida de mais quatro pessoas, todos
residentes na mesma vila. Estas estariam incumbidas de capturá-lo. Pelo menos mais um
homicídio lhe seria atribuído, cerca de 10 dias após ter assassinado o casal Victal, Albano
mataria nas imediações do rio Pianhy, na mesma vila, o senhor Manoel Pedro Ferreira. Um
destacamento seria solicitado para seguir a Riachão e efetuar sua captura.80
Albano “se fizera notável por alguns assassinatos” e por ser considerado “o
flagelo e o terror da população daquele termo”. Capturado, o negro fora levado preso para
responder juridicamente “pelos crimes cometidos”.81 Diversos quilombolas devem ter tido
seus nomes e crimes ecoados pelos municípios, causando terror e medo entre os sitiantes e os
proprietários de engenho. O escravo Albano, provavelmente fora um desses nomes.
Ameaçados e acuados as populações rurais solicitavam incessantemente as
autoridades locais providências plausíveis para que se estabelecesse de volta a segurança
individual e de propriedade. As fontes revelam que a partir do ano de 1872 várias diligências
estavam adentrando as matas e confrontando-se com os cativos fugidos. O Jornal do Aracaju
traria na primeira folha um noticiário intitulado Captura Importante. Segundo esta nota, “as
diligências promovidas pelo senhor chefe de polícia para captura dos quilombolas vão
produzindo o desejado efeito. Ultimamente foi preso no termo do Rosário o africano
Vencesláo, um dos chefes mais temíveis dos quilombolas, e quem pesam os crimes de
assassinato, roubo e outras tropelias por ele praticadas”.82

79
“Expediente do Governo do dia 26 de novembro de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 434, 3 de dezembro de 1873,
p. 1.
80
Ibidem.
81
Relatório do Presidente da Província de Sergipe Antônio dos Passos Miranda, 15 de janeiro de 1874, p. 3.
82
“Captura Importante”, Jornal do Aracaju, n° 364, 30 de março de 1873, p. 1.

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Quem já há algum tempo vinha se destacando na realização de importantes


capturas por todo o Vale da Cotinguiba era o militar João Batista da Rocha Banha. Ao longo
desta pesquisa, surpreende sua rápida ascensão hierárquica nos corpos da polícia (alferes,
tenente e capitão). Certamente esta realidade reflete a importância diante a captura de diversos
pretos dos matos.
Em relatório ao presidente da província, o chefe de polícia relatava que as
investidas contra os quilombos infelizmente não correspondem ainda aos esforços
empregados. Destacaria ainda que das diversas diligências procedidas após assumir tal cargo,
sempre pôde contar com a presença do já distinto tenente João Batista. Ao total as tropas
chegaram ainda alcançar o saldo de 8 capturas em Rosário, 4 em Divina Pastora e 2 no
município de Laranjeiras.83
O escravo Rufino, considerado um dos mais perigosos quilombolas sergipanos e
companheiro do escravo Vencesláo dantes citado, se entregaria poucos meses depois na casa
do seu senhor. Sua rendição teria como causa as constantes diligências empreendidas pelo
Tenente João Batista na região.84 A redenção do negro Rufino, vislumbra o quanto a vida em
fuga poderia ser muito mais cruel que o próprio cativeiro. Mesmo sabendo que poderia ser
punido pela fuga e pelos seus delitos cometidos, o escravo se entregara na propriedade do seu
senhor.
Outros buscavam intermediar suas rendições através do apadrinhamento. Ao
padrinho, caberia negociar com os proprietários dos escravos fugidos o retorno destes ao
cativeiro. De certo, clamava-se que fosse abolida qualquer espécie de castigo mais fervoroso
ao escravo regresso. Já outros indivíduos, acuados nas matas buscariam “proteção” nas
próprias instituições militares.
Foi o caso do escravo Deusidério, que se entregara na casa prisional de Aracaju
confessando ter assassinado sua irmã na vila de Lagarto. Quando as autoridades iniciaram as
averiguações necessárias para detectar a veracidade de tal fato, Deusidério tentou suicidar-se.
As autoridades responsáveis pelo inquérito chegaram à conclusão de que “parece, em vista
disto, simulado o assassinato de que se acusa o referido escravo, e que ele prefere, portanto,
ser punido como criminoso, a sofrer às conseqüências do cativeiro”.85

83
Relatório do chefe de polícia da província de Sergipe senhor Manoel José Espínola Júnior, 26 de outubro de
1872, p. 5. Documento anexo ao Relatório do Presidente da Província de Sergipe Cypriano Almeida Sebrão, 1 de
março de 1873.
84
“Quilombolas”, Jornal do Aracaju, n° 370, 23 de abril de 1873, p. 3.
85
“Tentativa de Suicídio”, Jornal do Aracaju, n° 403, 17 de agosto de 1873, p. 2.

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Em primeiro de fevereiro de 1874, um habitante do município de Divina Pastora,


sob o pseudônimo de O Paciente, escreveria um ofício à presidência da província e ao chefe
de policia revelando e cobrando providências acerca da falta de segurança em que se
encontravam. Seus relatos seriam publicados no jornal A Liberdade duas semanas depois,
vejamos:

Buscam todos um apoio e ninguém o encontra senão nos próprios recursos,


os quais, como é fácil compreender, não podem satisfazer e dar
tranqüilidade a população culta e muito laboriosa deste município assas,
rico pela uberdade dos seus terrenos e digno de melhor sorte.
É tal a condição anômala do município nestes últimos tempos, que parece
trazer a reprodução de outras eras em que a justiça se fazia pelo
bacamarte.O município de Divina Pastora se acha na posse do salteador
João Mulungu. E nem se presuma que há exageração neste dizer, e senão
que sejam ouvidos os habitantes deste município e em especial desta vila.
O quilombola João Mulungu acaba de estabelecer sua residência com a
terrível quadrilha no seu antigo aposento do Eng° Limeira, após a diligência
que em pessoa dirigiu o Snr. Dr. Chefe de Policia para os lados do Rosário
do Catete. Não tardou em manifestar-se pelos roubos nas fontes de lavar,
pelos furtos de cavalos e bois nos pastos dos engenhos, carneiros, perus e
mais criações nos quintais das casas desta vila, e pelas freqüentes fugidas
dos escravos que são seus seduzidos e escandalosamente ingressam a
quadrilha. O terror, o desanimo, a falta de segurança estão na consciência de
todos. 86

A denúncia segue relatando uma série de crimes que os escravos “insubordinados”


tinham causado aos proprietários da região. Ao total fora contabilizado 2 espancamentos, 2
assassinatos de escravos, vários furtos de animais (bois, cavalos, perus, galinhas, carneiros) e
1 arrombamento.Contudo, as culpas não recaiam apenas ao negro João Mulungu e seu bando.
O Paciente destacaria ainda que o grande culpado por esta insegurança era o “Juiz Municipal
Dr. Jenuino José Gomes, pela maneira porque tem relaxado o exercício do seu cargo, suas
tendências em favor dos criminosos pela impunidade dos crimes e o menosprezo com que são
tratados os deveres do seu magistério.”87
Segundo o depoimento do morador de Divina Pastora, o capitão João Batista da
Rocha lhe confessara que muitas das diligências empenhadas na captura de João Mulungu e
outros malfeitores malograriam devido ao aviso que o dito Juiz concedia aos quilombolas.
João Mulungu já vinha a algum tempo sendo procurado pelas autoridades
militares. Os escravos estariam “abandonando os carros e outros serviços de moagem para se

86
Jornal A Liberdade, n° 42, 16 de fevereiro de 1874, p. 1.
87
Ibidem.

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meterem na quadrilha” que provavelmente ele era líder.88 Em julho de 1873, o chefe de
polícia informou ao presidente o paradeiro de João Mulungu e seu bando. Estes se
encontravam “residindo na margem do rio Vasa Barris, junto ao engenho Itaperoá, do termo
de Itaporanga”.89 Tomando conhecimento do paradeiro provisório do bando, a presidência
expediu ordens para que o tenente João Batista da Rocha, que até então estava à caça de
quilombolas pelos matos do município de Rosário, fosse remanejado para “promover a
captura dos quilombolas no termo de Itaporanga”.90
Porém, Mulungu e seu bando já haviam rumado para novas matas. Em ofício, a
autoridade policial do município de Divina Pastora noticiava ao chefe de polícia sobre o novo
paradeiro do tal quilombola:

Consta-me que o regente desses malfeitores é o celebre quilombola João


Mulungu, e o seu imediato é Manoel Jurema.
Hoje chegou ao meu conhecimento, que aqueles malfeitores esta
preparando-se com muitos quilombolas para invadirem esta Vila,
prometendo vir até o quartel com seus companheiros atacarem a força, e já
tem prevenido dois quilombos com quinze escravos para esse fim; mas não
se pôde ainda capturar aquele malfeitor porque todo o movimento que se dá
na vila ele no mato é sabedor, visto ter sócios nesta vila que se prestam a
avisarem a ele. 91

Tomando conhecimento dos crimes cometidos pelos escravos na região de Divina


Pastora, o capitão João Batista escreveu em 14 de janeiro de 1876, ao chefe de polícia Vicente
de Paula se propondo a realizar a captura do negro Mulungu. Com a experiência de já ter no
seu currículo a captura de 53 calhambolas, João Batista dizia que tinha ainda “muito prazer
em prestar este pequeno serviço a minha Província e à V. Sª que tanto tem se esforçado para
moralidade dela”.92
O novo Juiz Municipal de Divina Pastora, Manoel Cardoso Vieira, mostrou logo
estar mais empenhado que seu antecessor em resgatar a segurança individual e da propriedade
da cidade sob sua jurisdição.93 Assim que soube que o negro Mulungu estava a atacar sitiantes
por aquelas terras, se dirigiu pessoalmente ao chefe de policia dispondo-se a auxiliá-lo na

88
Ibidem.
89
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
90
“Expediente do Governo do dia 16 de julho de 1873”, Jornal do Aracaju, n° 398, 30 de julho de 1873, p. 1.
91
Ofícios expedidos – AG.1.04 – APES. 13 de janeiro de 1876, doc. 05.
92
Ofícios: escravos – AG.1.04 – APES. 14 de janeiro de 1876, doc. 06.
93
Ressalto que até então não pude saber qual o verdadeiro motivo da substituição do ex-juiz municipal Jenuino
por Manoel Cardoso Vieira. Acredito que se as acusações do Paciente fossem plausíveis, resultaria daí sua
substituição.

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captura do dito quilombola. Vicente de Paula, o chefe de polícia, designou que uma diligência
sob a liderança do capitão João Batista, fosse ao encontro dos quilombolas.
Entre os dias 14 e 19 de janeiro daquele ano, João Batista acompanhado de alguns
praças bateram as matas dos engenhos da Cotinguiba sem sucesso. No caminho de retorno ao
município de Divina Pastora, a tropa nas proximidades do engenho Vassouras encontrou “um
escravo de nome Severino, do engenho Flor da Roda, termo de Laranjeira, que entregou uma
carta comunicando que se encontrava nas senzalas do engenho João Mulungu”.94
Severino ficaria incumbido de guiar a tropa até o dito engenho. Lá chegando,
constataram que o temido quilombola realmente esteve por àquelas terras, mas que no
momento tinha saído e que retornaria por volta do meio dia. No dia 20, Severino encontrando-
se com a tropa, “deu parte que João Mulungu se achava descansando com um seu
companheiro no centro de um canavial. Partiu a tropa e chegando próximo ao canavial
mandou o tenente João Batista da Rocha que seis soldados franqueassem pela esquerda, nove
pela retaguarda e três praças atacassem pela frente. Vendo a tropa, João Mulungu tentou fugir
sendo arrojado no chão com um golpe na cabeça”.95
Encerravam-se assim os quase dez anos de “vida erradia” do negro Mulungu.
Capturado, o quilombola fora trazido para a capital da província como um troféu. Segundo o
chefe de polícia, “por toda parte em que a intrépida escolta passava com o referido escravo,
era vitoriada pelo povo em massa que manifestava ainda francamente o seu agradecimento ao
Dr. Juiz Municipal de Divina Pastora, ao capitão João Batista da Rocha e ao alferes
Marcolino, os quais acompanharam aquele malfeitor até esta capital onde tem sido objeto de
curiosidade”.96
Levado a interrogatório ainda em Divina Pastora, o negro revelara que o rigor
com que o seu senhor lhe tratava desde ainda muito menino, surrando-o enquanto este já
estava acorrentado, fez com o que ele fugisse por três vezes, numa tentativa desesperadora de
arranjar outro senhor. Como não conseguira quem o comprasse, decidiu entranhar-se pelos
matos. Este negro “um pouco ladino e insinuante” no seu depoimento diria também que
preferia “ser enforcado na praça pública a voltar para a casa de seu senhor”.97
Para as forças policiais, a captura do “chefe dos escravos fugidos” representava a
vitória branca frente às sublevações negras na província. Sua captura gerou tanta euforia entre

94
Arquivo Público do Estado de Sergipe, CM3, 1876. Apud SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e
quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Aracaju, n°31, 1992, p. 38.
95
Ibidem.
96
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.
97
Ibidem.

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as autoridades policiais que Vicente de Paula, chefe de polícia, chegou a declarar ao


presidente da província que agora tinha “a satisfação de dizer a V. Exc. que considero extintos
os quilombos. O mais forte elemento de resistência, o calhambola João Mulungu, de quem
geralmente mais se receava, foi capturado [...]”.98
O entusiasmo pela captura do negro Mulungu logo teria fim. Sua captura, não
corresponderia à extinção do fenômeno quilombola nas matas da província. As vésperas da
abolição (9 de fevereiro de 1888), o chefe de policia expedia ordens de apreensão a um grupo
de quilombolas que estavam instalados nas matas do engenho Pedras, termo de Maruim.
No quilombo, a tropa acabou encontrando “um rancho feito e bem construído,
assim com uma grande cocheira, com cinco cavalos, porção de carne sol, muito milho, açúcar
e mais cereais tudo em grande quantidade, porção de couro de gado enterrado, e porções de
armas de fogo, facas, foices e machados [...]”. Pela quantidade de materiais localizados no
quilombo, suponho que estes estavam arranchados neste ponto já há algum tempo. A grande
quantidade de couro enterrado pode significar que estes negros tinham furtados alguns bois e
teriam enterrados a couraça para impedir que seus donos detectassem suas crias pela cor dos
pêlos, caso o rancho fosse descoberto.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luta negra pela liberdade foi uma constante na província de Sergipe Del Rey.
Como modelo de resistência, destacou-se o grande número de fugas do cativeiro. Contudo as
grandes preocupações das autoridades estavam centradas nas ações dos quilombolas. Dentro
de uma classificação proposta por alguns historiadores, os quilombos sergipanos seriam de
caráter predatório, detentores de uma economia parasitária. Acredito que esta classificação
oculte mais do que revele os verdadeiros significados das ações dos quilombolas. Seus crimes,
furtos e delitos não são simples atos de resistência, e sim, de sobrevivência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Sharyse Piroupo do. Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-


1888. Tese de doutorado em História, UFBA, 2007.

SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século


XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, n°31, 1992.

98
Relatório do Presidente da Província de Sergipe João Ferreira d’Araujo Pinho, 1 de março de 1876, p. 12.

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HISTÓRIAS DE PEDESTRES: ATUAÇÕES, CONFLITOS E


SOLIDARIEDADES ENTRE CAPTURADORES DE ESCRAVOS
FUGIDOS (SALVADOR, 1850-1857)

Kleberson da Silva Alves - UNEB


klebersonalves@aim.com

A história da escravidão é também a história de diversas formas de resistência do trabalhador


cativo e das estratégias de repressão. As fugas, práticas que comprometiam a ordem social e
econômica vigente, foram reprimidas por senhores e pela administração colonial e imperial.
Repressão que, para os centros urbanos, onde o Estado responsabilizou-se pela vigilância da
população “de cor”, gerou documentos que foram preservados nos arquivos. Analisaremos a
documentação produzida pela Companhia de Pedestres, responsável pela captura oficial de
escravos fugidos em Salvador, entre 1850 e 1857, além dos registros de engajamentos dos
indivíduos que atuaram na Companhia, buscando conhecer um pouco de suas histórias. Tais
documentos são registros preciosos que mesmo escritos na perspectiva da burocracia
repressiva oficial, oferecem indícios sobre os indivíduos das classes populares, os pedestres,
que seguindo a regra não deixaram seus pobres asilos repletos de documentos para
analisarmos. Histórias de conflitos e solidariedades apontam para questões importantes
relativas a atuação dos capturadores de escravos fugidos, sua proximidade social, econômica e
habitacional com aqueles que deveriam vigiar e reprimir.

Palavras-chave: Repressão; Captura de escravos; Pedestres.

A escravidão no Brasil não foi um regime homogêneo, que submetia os


escravizados às mesmas condições de sociabilidade. Diferenciou-se, por exemplo, quanto ao
campo e a cidade. Enquanto no campo, predominou os escravos da lavoura submetidos à
vigilância dos senhores e seus agentes (feitores e capitães-do-mato); nas cidades
predominaram cativos de ganho que circulavam pelas ruas a procura de quem necessitasse de
seus serviços ou comprasse suas mercadorias. Segundo Ana de Lourdes Ribeiro da Costa, os
escravos de ganho foram fundamentais “para o funcionamento de Salvador”: uma parcela da

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população livre necessitava de seus serviços para sua sobrevivência.99 Questão também válida
para a cidade do Rio de Janeiro e até outros centros urbanos do Império. Na estimativa
adotada por Cláudio Pinheiro, 90% da população residente na cidade do Rio de Janeiro, das
três primeiras décadas do século XIX, possuía ao menos um cativo, sendo estes 50% da
população da cidade. Era um elemento essencial da vida carioca, sendo empregado nos mais
diversos serviços.100
Conforme Joseli Nunes Mendonça, referindo-se a realidade dos centros urbanos,
“para que os senhores pudessem angariar sua ‘recompensa’ pecuniária, era necessário que tais
escravos [de ganho] dispusessem de uma margem considerável de autonomia para trabalhar”.
Tais indivíduos poderiam residir fora da residência senhorial e circulavam entre a população
livre das cidades. 101 Realidade também da cidade do Salvador.102 Todavia, assim como no
campo, os senhores dos centros urbanos possuíam mecanismos que buscavam garantir a
manutenção da propriedade privada (o escravo), da ordem social e econômica vigente. João
José Reis, em artigo sobre os trabalhadores negros da cidade do Salvador de meados do
século XIX, demonstra que existia uma preocupação da população branca para com tais
trabalhadores.103
Em 1857, ocorreu em Salvador a “greve negra”, um protesto dos trabalhadores de
ganho contra uma postura municipal que prévia o cadastro – obrigatório – para os
“ganhadores” e, para além, a apresentação de um fiador que “se comprometesse pelo
comportamento futuro deles”, caso esse fosse liberto. Foi uma medida, como muitas outras,
concebida para “disciplinar o negro no espaço público, tanto de trabalho como de lazer”.
Medida que demonstra os temores que a minoria “branca” conservava sobre a população “de
cor”.104 Segundo Costa, as características da escravidão na cidade do Salvador, onde
predominou a existência de escravos de ganho que necessitavam de autonomia para trabalhar,
só foi possível porque o Estado buscou assumir o controle sobre os escravos através de seu
aparato legal e policial.105

99
COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no Século XIX”.
Caderno CHR (suplemento), 1991, p. 20.
100
PINHEIRO, Cláudio. “No governos dos mundos: escravidão, contextos coloniais e administração de
populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, pp. 432-433.
101
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na justiça. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 39.
102
COSTA, “Espaços negros”, pp. 19-20 e 27-31.
103
REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.
104
REIS, “A greve negra de 1857”, pp. 8-9 e 14.
105
COSTA, “Espaços negros”, pp. 20-21.

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Vigiar e (se “necessário”) coibir os comportamentos dos trabalhadores negros na


cidade do Salvador para o período entre 1850 e 1857 era tarefa dos pedestres. Engajados
provisoriamente, os pedestres tinham a função de “a’prender criminosos, desertores, e
escravos fugidos” além de coibir e reprimir insurreições ou qualquer movimento contrário à
“ordem” pública.106 Recebiam, além de um insignificante soldo (500 réis mensais),
gratificações equivalentes a sua atuação (captura de escravos, desertores e criminosos
pronunciados de roubo). Para além, “qualquer descoberta , apreensão, captura ou achado a
que estivesse prometida alguma gratificação” tal lhe era imputada.107 Gratificações que, para
João Mauricio Wanderley, chefe de polícia da província da Bahia, seria um “incentivo ao
melhor desempenho das obrigações á que estão sujeitos os Pedestres, e contribuirá para que se
alistem pessoas mais hábeis á todos os respeitos”.108 O chefe de polícia, em 10 de fevereiro de
1851, considerava que a “falta de pessoas habilitadas” e a “mesquinha retribuição” (500 réis
mensais) que os pedestres recebiam de soldo eram elementos que justificavam o não
preenchimento das vagas na Companhia. No livro em que eram registradas as matrículas dos
pedestres consta a ocorrência de trinta e um registros realizados até o dia sete de fevereiro de
1851.109 Matrículas que não implicavam no número do contingente de pedestres já que eram
freqüentes as demissões.110 É bastante provável a veracidade das informações emitidas pelo
chefe de polícia, em 10 de fevereiro, na qual, a despeito dos trinta e um registros, a
Companhia, até aquela data, nunca tivesse sido composta pelo efetivo planejado de 20
homens. Por isso o incentivo ao engajamento e a atuação de tais profissionais através das
recompensas.
Mesmo quando não era prometida alguma gratificação, os pedestres faturavam
alguns réis extras com sua atuação. Para tanto foi constituído um cofre cujo caixa era
produzido com a metade do valor das apreensões que tivessem consignação ou promessa de
gratificação. O pedestre apreensor faturava apenas a metade.111 Recebiam, ainda, gratificações
de acordo a importância que a ocasião denotasse, e os fundos policiais permitissem, “pela

106
“Instrucções dadas pelo chefe de policia”, 09/08/1850. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente da
Provincia da Bahia, o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, n’abertura da Assemblea
Provincial da mesma Provincia no 1º de março de 1851. Bahia: Tipographia Constitucional de Vicente Ribeiro
Moreira, 1851, p. 7.
107
FUNCEB. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: FUNCEB, 1996, p. 171.
108
“Offício em que o chefe de policia emitte sua opinião sobre a creação dos Pedestres fallando do estado, e
numero delles”, 10/02/1851. In: BAHIA. Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 4.
109
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
110
Das 131 matriculas consta que 68, saíram, por algum motivo – como morte, demissão, doenças, ingresso na
polícia – da Companhia.
111
“Creação dos Pedestres: artigos additivos ao Regulamento de 21 de março de 1850”, 21/03/1850. In: BAHIA.
Falla que recitou o Presidente, 1851, p. 6.

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descoberta de uma insurreição”.112 A busca por melhores condições de existência, sem


dúvidas, foi um elemento preponderante para a atuação dos pedestres e outros capturadores de
escravos fugidos ciosos por aumentarem seus escassos provimentos.
A receita fixa mensal dos pedestres, estabelecida em aditivo ao regulamento de 21
de março de 1851, era um soldo de apenas quinhentos réis, valor duzentas vezes menor do
que um pedestre receberia caso, em 1853, capturasse João Cancio, escravo de Laurentino José
Miranda da cidade do Rio Formoso, da província de Pernambuco, cujo senhor presumia
encontrar-se em Sergipe ou na Bahia. 113 Ao que tudo indica, as gratificações provenientes de
sua atuação constituía-se como principal fonte de renda dos pedestres.
Um ato de solidariedade ocorrido quando da morte de um pedestre demonstra que
os provimentos de seus companheiros superava os quinhentos réis pagos pelos cofres
públicos. Na tarde de três de novembro de 1854, faleceu o pedestre Bernardino Cardoso,
pardo claro, natural de Valença, casado, com aproximadamente 41 anos.114 Sendo o falecido
pobre, condição comum aos capturadores de escravos fugidos, houve a necessidade de
recorrer ao auxiliou para a realização do enterro. Como costume da época, Bernardino foi
enterrado na igreja, em seu caso na de São Francisco, sendo as despesas parcialmente pagas
por seus parceiros de Companhia. Conforme carta enviada pelo cabo-pedestre, superior da
Companhia, ao chefe de polícia datada de sete de novembro, foram realizadas seis
contribuições no valor de quinhentos réis ($500), mesmo valor que os pedestres recebiam de
soldo, e uma de 1$000 (mil réis). Houve, ainda, duas contribuições posteriores (anotadas
abaixo da assinatura do cabo-pedestre) no valor de $500 ambas. As contribuições cujos
registros tivemos acesso somam cinco mil réis que, juntamente com outras contribuições, que
desconhecemos a origem, saudaram 20$000 de um total de 36$740 gastos com as despesas do
enterro.115
A comunicação entre a Companhia e o chefe de polícia era realizada através do
cabo-pedestre que, entre suas atribuições, tinha a função de organizar as partes diárias
recebidas dos pedestres rondantes e apresentá-las à autoridade policial superior. Entre as
cartas enviadas existe muita semelhança com as comunicações realizadas por subdelegados e

112
FUNCEB, Legislação da Província, pp. 171-172.
113
BPEB. O Guayacuru, ano 10, n. 389, Bahia, 27/06/1853, p. 4. Laurentino José, em anúncio publicado em
periódico baiano, oferecia 200$ de gratificação cujo valor hipoteticamente dividimos entre o pedestre apreensor
e o “cofre” para as gratificações que não possuíam promessa de pagamento.
114
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), fl. 29v.
115
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 04/11/1854 e 07/11/1854. Consta entre a
documentação, enviada ao chefe de polícia, diversos comprovantes de despesas do enterro.

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delegados: a apresentação de prisão é a tônica de muitas delas. Como em casos de prisão por
“desordem”, a exemplo da ocorrida com “as africanas Rozalina e Adriana encontrada ambas
em dezordem a ladeira da rua passos”, no dia nove de julho de 1854.116 Mas, também
apresenta conflitos e enseja sobre solidariedades entre o grupo.
Os capitães-do-mato, outro tipo de capturador de escravos fugidos, também foram
registrados por autoridades para exercer sua função,117 todavia não compunham um corpo
hierarquizado e burocraticamente organizado como os pedestres. Ademais, nada impedia que
indivíduos se aventurassem no exercício da função, como a personagem Cândido Neves, de
Machado de Assis.118 Os capitães-do-mato não possuíam uma autoridade hierárquica formal
que exigisse uma comunicação diária. Elemento que se relaciona diretamente com a produção
e preservação documental. Provavelmente, excetuando casos de expedições a exemplo de
Palmares (quando o combate aos escravos era uma questão de Estado) ou quando estes
sofriam atentados,119 tenhamos raros documentos que forneçam indícios sobre a vida dos
capitães-do-mato. Ademais, sua atuação particular e pulverizada foi um elemento que
dificultou a catalogação e preservação dos registros sobre e por eles produzidos.
Pertencer ao aparato repressivo oficial, à burocracia provincial, foi um elemento
fundamental para que a documentação produzida pelos pedestres fosse preservada nos
arquivos. Conforme E. P. Thompson, “‘os trabalhadores pobres’ não deixaram seus asilos
repletos de documentos para os historiadores examinarem”.120 Pedestres e capitães-do-mato,
ambos trabalhadores pobres, não fugiram a essa regra. Todavia, enquanto componente formal
do aparato repressivo do Estado, os pedestres produziram documentos – da burocracia
repressiva oficial – dos quais podemos apreender elementos de suas vidas.121 As partes diárias

116
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 10/07/1854.
117
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos”. In:
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.
118
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp.
61-71.
119
Casos em que capturadores de escravos sofreram atentados foram citados por: Isabel Cristina Ferreira dos
Reis (“Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos: fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia,
n. 23, 1999, pp. 36-37) e Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na
Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, pp. 99-108). Ademais, tais sujeitos sociais
quando aparecem em bibliografias é em menções curtas.
120
THOMPSON, Edward P. “Patrícios e plebeus”. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 26.
121
Conforme Manuela Carneiro da Cunha (“Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense: EDUSP, 1986, p. 134), o controle dos escravos ficava exclusivamente a cargo dos senhores (exceto
em casos de assassinatos e insurreições), todavia a partir do século XVIII, essa regra permaneceu válida no
campo. Já nos centros urbanos o Estado se colocou a serviço da “justiça particular dos senhores”.

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enviadas ao chefe de polícia objetivavam detalhar a atuação da Companhia. São documentos


da esfera pública produzidos por indivíduos das classes populares, os pedestres, que
pertenciam à burocracia provincial. Registros que não refletem a vontade dos pedestres, mas
sim do corpo administrativo da província, das classes dirigentes. Todavia podemos, por
intermédio deles, conhecer um pouco sobre os pedestres e conseqüentemente sobre outros
capturadores de escravos fugidos que não nos legaram muitas fontes.
Conforme Ivan de Andrade Vellasco, em artigo sobre as transformações no
policiamento da província de Minas Gerais para o período entre 1831 e 1850, “os pedestres
formavam uma organização a parte” das demais forças coativas do Estado. Eram recrutados
entre as camadas mais subalternas da sociedade, “homens cuja posição social só suplantava a
dos próprios escravos”. Recebiam os piores salários.122 Analisando os dados apresentados nas
matrículas dos pedestres para a cidade do Salvador, para o período entre 1850 e 1857,
constatamos que tal assertiva é válida para a cidade e período aqui estudado.123 Outros autores
sugerem a proximidade social entre capturadores e escravos. Para Renilson Rosa Bezerra, a
proximidade social de tais agentes do senhor com aqueles que deveria reprimir era
fundamental para o exercício de seu ofício. Conforme o autor, a “perícia [profissional de tais
indivíduos] definia-se por sua capacidade de conhecer os signos socioculturais do mundo dos
quilombolas e outros escravos fugidos”. Lúcio Kowarick, em estudo sobre a transição do
trabalho escravo ao livre na província de São Paulo, destacou que o trabalhador nacional foi
“essencial na manutenção do domínio, cujas raízes se assentavam a preservação do cativeiro”,
já que estes eram “os executores da violência com que a ordem senhorial conquistava e
mantinha suas propriedades e reprimia seus escravos”.124
A partir do exposto, podemos considerar que para a manutenção da propriedade
escrava, além de uma dominação cultural que tornasse a escravidão socialmente legitima, era
necessário um contingente de mão-de-obra livre pauperizado que empregasse suas forças na
tentativa de manter a ordem social e econômica vigente. Talvez, a própria concessão de
alforrias tivesse se prestado a formação deste contingente disponível as necessidades coativas
dos senhores e da burocracia repressiva oficial. Bernardo Guimarães, em conto publicado em

122
VELLASCO, Ivan de Andrade. “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas questões sobre a
vicissitude do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50). In: CARVALHO, José Murilo de (org.).
Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 249.
123
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
124
BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do mato”. Revista
Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br, acessado em 15/09/2006;
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987,
pp. 109-110.

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1871, nos indica tal possibilidade. Anselmo, personagem que atua enquanto capitão-do-mato,
é um liberto que, por características como a “lealdade” e a “coragem” – honrava a liberdade
que gozava –, é considerado apto na tentativa de destruir um quilombo. Era um liberto
considerado ideal e, para além, difusor do processo de emancipação e contenção dos
comportamentos considerados inadequados dos escravos.125
Os pedestres matriculados na cidade do Salvador eram majoritariamente “de cor”.
O engajamento de pretos (2), pardos (54), cabras (3) e crioulos (15) somam para o período
estudado um total de 74 (56,5%) do universo de 131 matrículas. Número que ainda pode ser
superior, pois em vinte e duas (16,8%) matrículas não foram apresentados este dado. Outro
aspecto que nos chama a atenção é a predominância de engajamento de indivíduos solteiros
(75,6%). Cruzando os dados relativos à cor e ao “estado civil”, notamos uma grande
incidência de engajamentos de indivíduos “de cor” e solteiros que compreendiam cinqüenta e
seis (42,74%) pedestres (ver Tabela 1).126 Tais dados indicam que os pedestres eram
arregimentados entre as camadas populares da cidade. A população de Salvador de meados do
século XIX foi estimada em 86.984 habitantes, sendo que 30% eram escravos. Pretos e
mestiços somavam 67%.127 Entres os trabalhadores de rua da cidade do Salvador, grupo que
os pedestres vigiavam e reprimiam, a maioria não eram casados. Conforme Costa, servindo-se
do censo de 1855, “91% eram solteiros e 3,5% viúvos, embora haja evidências de
concubinatos”, comportamento que acreditamos ter sido realizado também pelos capturadores
de escravos.128

Tabela 1. Relação cor e estado civil dos pedestres matriculados entre os anos de 1850 e 1857.
Fonte: APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de
Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f.
Cor
“De cor” Brancos Não apresenta Total
civi

Casados 10 7 3 20
l

125
Autores como Walter Fraga Filho (Encruzilhadas da liberdade, pp. 49, 109) e Manuela Carneiro da Cunha
(“Sobre os silêncios da lei”, pp. 123-144) argumentaram que a concessão de alforria foi tida pelos senhores como
uma forma de gerar uma mão-de-obra livre subordinada. Buscavam promover um processo “ordeiro” que
mantivesse a autoridade (ex)senhorial. Podemos acrescentar que, como sugere Bernardo Guimarães, também
apta a difundir o processo de emancipação. Ver, também: GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de
quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.
126
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), 65fls.
127
COSTA, “Espaços negros”, p. 20.
128
COSTA, “Espaços negros”, p. 31.

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Solteiros 56 26 17 99
Viúvos 1 1 0 2
Não apresenta 7 1 2 10
Total 74 35 22 131

Provavelmente, devido a um faturamento incerto, os mais jovens e solteiros foram


os que mais buscaram ingressar na Companhia de Pedestres. É, ainda, possível que alguns (se
não muitos) tivessem enfrentado dramas devido à escassez de recursos, como a personagem
machadiana Cândido Neves, que teve de concorrer com “mais de um desempregado [que]
pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou os anúncios e deitou-se à caçada”.129 A
média etária entre os pedestres foi de 29 anos, levando em consideração as 126 matrículas que
apresentaram esta informação. Entre os solteiros, que, como vimos, foram numericamente
superiores os registros, temos a menor média etária, 28 anos. Cruzando os dados relativos ao
“estado civil”, cor, e faixa etária, observamos que trinta (22,9%) matrículas indicam que os
indivíduos eram “de cor”, solteiros e possuíam entre 18 e 29 anos de idade. Foi o número
mais expressivo que retiramos deste cruzamento.130 No quadro total, 65 registros indicam que
tais agentes estavam na faixa etária mencionada (ver Tabela 2).

Tabela 2. Relação cor, estado civil e faixa etária dos pedestres matriculados. Fonte: Matrícula
de Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65f. Ver Tabela 1 para um quadro total.
Cor
“De cor” Brancos Não apresenta Total
Casados 1 2 0 3
18 a 29 anos

Solteiros 30 17 10 57
Estado

Viúvos 0 0 0 0
civil

Não apresenta 3 1 1 5
Total 34 20 11 65

Casados 4 4 3 11
30 a 39 anos

Solteiros 14 5 5 24
Estado

Viúvos 0 0 0 0
civil

Não apresenta 2 0 0 2
Total 20 9 8 37
Acima dos 40

Casados 5 1 0 6
Faixa etária

Solteiros 10 4 1 15
Estado

Viúvos 0 1 0 1
civil

Não apresenta 2 0 0 2
anos

Total 17 6 1 24

129
ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 65.
130
Seguido por 17 que indicam serem brancos, solteiros e na mesma faixa etária.

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Não apresenta
Casados 0 0 0 0
Solteiros 2 0 1 3

Estado
Viúvos 1 0 0 1

civil
Não apresenta 0 0 1 1
Total 3 0 2 5

Enfim, houve uma maior incidência de indivíduos “de cor”, jovens e solteiros na
captura oficial de escravos fugidos em Salvador para o período entre 1850 e 1857. Tal
incidência, provavelmente, foi reflexo, ao mesmo tempo, das necessidades coativas do estado
que necessitava de indivíduos culturalmente e fisicamente hábeis para o exercício da função,
bem como das condições de emprego e sobrevivência a que estava submetida a população “de
cor” da cidade do Salvador. Como destacou Kowarick, alijados do sistema produtivo, o
trabalhador não escravizado, seja livre ou liberto, foram, sobretudo, os executores da
violência senhorial.131 Ser capturador de escravo fugido era uma questão de sobrevivência,
mas pode ter representado também uma questão de prestígio social que afastava o indivíduo,
de maneira muito sutil, do mundo do cativeiro.132 Poderia representar também a possibilidade
de ingresso na polícia, força mais prestigiada e melhor remunerada que os pedestres, como foi
o caso de Estanilau de Brito Pinheiro, natural de Salvador, solteiro, pardo, engajado em oito
de abril de 1852, com trinta e três anos de idade. Em setembro do ano seguinte, Estanilau
ingressou na polícia.133
A proximidade social dos capturadores de escravos fugidos com aqueles que
deveria reprimir implicou também em casos de utilização pessoal de certos privilégios ou de
sua função. Em três de julho de 1854, o cabo-pedestre Zacarias de Castro Lima noticiava, em
sua carta diária, ao chefe de polícia, que “o pedestre Joze Perª da Rocha que rondou ontem a
tarde a fregª da Sé deo parte que deo voz de prisão […] a crioula Paulina moradora ao beco
das Campelas por insultar a elle com palavras injuriosas estando elle de ronda e o motivo foi
por que tinha elle pedido dês tustoez que ella lhe devia de Obra”.134 Esse conflito entre a
crioula Paulina e o pedestre José Pereira da Rocha indica, também, que o pedestre em questão
buscava por outras fontes de renda. Em Minas Gerais, segundo Vellasco, os pedestres eram

131
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1987, pp. 109-110.
132
Bezerra (“Entre escravos e senhores”) enfatiza justamente este aspecto. O ofício de capitão-do-mato atendia
as demandas relativas à questão de distinção social almejada pelos setores pobres e “de cor”.
133
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-
1857), fl. 25.
134
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Fundo Polícia, Correspondência recebida da Companhia
de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876), 03/07/1854.

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todos empregados em pequenos ofícios.135 Certamente, assim como outros capturadores, José
Pereira não poderia dispensar os dez tostões que lhe devia Paulina: as condições sócio-
econômicas dos pedestres não eram das melhores, o ato de solidariedade acima mencionado
demonstra isso.
O conflito entre Paulina e José demonstra que para além do aspecto cultural, os
capturadores conheciam pessoalmente os indivíduos que deveriam perseguir. Poderiam
inclusive residir em locais próximos. Essa proximidade (física, cultural e residencial) foi, de
certo modo, pensada pelos dirigentes da burocracia repressiva. Em 1857, quando foi criada a
Companhia de Polícia Urbana (e ao que tudo indica extinta a Companhia de Pedestres),136 o
chefe de polícia recomendava: “sempre que for possível, serão preferidos a servir na
Freguesia os Guardas que nellas morarem”. Os guardas urbanos tinham, assim como os
pedestres, entre suas atribuições, a função de coibir “reunião de escravos”.137 Tais reuniões
eram, sobretudo, de escravos de ganho que reunidos nos “cantos” da cidade “estabeleciam
vínculos, trocavam idéias e podiam até mesmo conspirar, na medida em que não estavam sob
o controle e vigilância direta do seu senhor”.138
Mas, a proximidade entre escravos e capturadores poderia representar perigo para
a classe proprietária ou suas finanças. O historiador e poeta inglês Robert Southey, em sua
Historia do Brazil escrita entre 1806 e 1819, e publicada no Brasil em 1862, ressaltou que os
capitães-do-mato eram “quasi tão perigosos, como os mesmos salteadores que tinhão por
dever perseguir”. Para ele os capturadores haviam inventado algumas velhacarias: “prendia
negros que não erão fugidos”, aproveitavam-se dos serviços dos capturados, e, ainda, “alguns
bargantes d’esta profissão”, enfatizou ele, “para se tornarem mais commoda a couza,
costumavão em logar de correr atraz de negros fugitivos, pagar a escravos que fugissem e
viessem ter com elles”. Segundo Southey, para previnir tais práticas “não devião os
magistrados deixar os capitães do mato residir muito tempo em qualquer villa ou arraial”,139
enfim era preciso restringir essa proximidade.

135
VELLASCO, “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão”, p. 252.
136
No ano de 1857 houve apenas dois engajamentos de pedestres: no dia três de janeiro o maranhense Zuntiliano
de Oliveira, solteiro, branco, então com 42 anos, retornava à Companhia após aproximadamente um ano e quatro
meses. E no dia 12 do mesmo mês temos o último registro de engajamento, o de Severino Rois de S. Anna,
natural de Salvados, cabra, solteiro, com 32 anos de idade. Ademais, neste mesmo ano, desaparece do Arquivo a
documentação da Companhia.
137
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais, Série Polícia, Atos de criação da Guarda Urbana, maço
2946 (1857), 25/07/1857.
138
COSTA, “Espaços negros”, p. 27.
139
SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro e anotada pelo
Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1862, pp. 522-323.

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FONTES

APEB (Arquivo Público do Estado da Bahia)

Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais:

Fundo Polícia: Matrícula de Pedestres, n. 5913 (1850-1857), 65fls; Correspondência recebida


da Companhia de Pedestres – Companhia de Polícia Urbana, maço 6298 (1853-1876).

Série Polícia: Atos de criação da Guarda Urbana, maço 2946 (1857).

BPEB (Biblioteca Pública do Estado da Bahia)


O Guayacuru, ano 10, n. 389, Bahia, 27/06/1853, p. 4.

Obras literárias

ASSIS, Machado de. “Pai contra mães” [1906]. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin
Claret, 2002, pp. 61-71.

GUIMARÃES, Bernardo. “Uma história de quilombolas”. In: Lendas e romances. São Paulo:
Livraria Martins, s.d. [1871], pp. 5-105.

BAHIA. Falla que recitou o Presidente da Provincia da Bahia, o Dezembargador


Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, n’abertura da Assemblea Provincial da mesma
Provincia no 1º de março de 1851. Bahia: Tipografia Constitucional de Vicente Ribeiro
Moreira, 1851. Com anexos.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Nielson Rosa. “Entre escravos e senhores: a ambigüidade social dos capitães do
mato”. Revista Espaço Acadêmico, n. 39, ago., 2004, http://www.espacoacademico.com.br,
acessado em 15/09/2006.

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COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’ em Salvador no
Século XIX”. Caderno CHR (suplemento), 1991, pp. 18-34.

CUNHA, Manuela Carneiro da. “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas
alforrias de escravos no Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história,
etnicidade. São Paulo: Brasiliense: EDUSP, 1986, pp. 123-144.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na


Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
FUNCEB. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: FUNCEB,
1996.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1987.

LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos
escravos”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 81-109.

MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na


justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

PINHEIRO, Cláudio. “No governos dos mundos: escravidão, contextos coloniais e


administração de populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, n. 3, 2002, pp. 425-457.

REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio e consta que já tem dous filhos:
fuga e família entre escravos na Bahia”. Afro-Ásia, n. 23, 1999, pp. 27-46.

REIS, João José. “A greve negra de 1857”. Revista USP, n. 18, jun./ago., 1993.

SOUTHEY, Robert. Historia do Brazil. Traduzida por Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro
e anotada pelo Conego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Livraria de
B. L. Garnier, 1862.

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THOMPSON, Edward P. “Patrícios e plebeus”. In: Costumes em comum: estudos sobre a


cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 25-85.

VELLASCO, Ivan de Andrade. “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas


questões sobre a vicissitude do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50). In:
CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 237-265.

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ESCRAVOS DA BAHIA ENVIADOS PARA A GUERRA DO PARAGUAI

Osvaldo Silva Felix Júnior – UNEB


felixinfa@terra.com.br

Entre 1864 e 1870 o Brasil esteve envolvido na chamada Guerra do Paraguai. O conflito
envolveu as principais Províncias do Império, mobilizando um grande efetivo de homens para
complementar os quadros do Exército Nacional e da Armada. A Província da Bahia foi uma
das mais exigidas, enviando para a guerra um efetivo superior a 18 mil homens. Entre esses
homens estavam voluntários e recrutados pegos à força. Este texto trata de um recurso
utilizado pelo Governo Provincial Baiano, sob a orientação do próprio Governo Imperial, para
complementar os efetivos dos Corpos que seguiram da Bahia, a fim de complementarem os
quadros do Exército Nacional, o envio de escravos. Segundo indicam as fontes, a idéia das
autoridades imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a
libertarem seus escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação ou mesmo
comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a guerra. Após o exame de uma variada
e diversificada gama de fontes escritas (manuscritas e impressas), oficiais e pessoais,
encontradas no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), apresento uma série inédita de
descobertas sobre o tema.

Palavras - chaves: História, Bahia, Escravidão.

Em 7 de janeiro de 1865, atendendo a apelos dos chefes militares e de


parlamentares brasileiros, para a complementação dos efetivos do Exército Nacional, que se
vira, inesperadamente, engajado na guerra com o Paraguai, D. Pedro II, assistido pelo
Ministro da Justiça, Senador Francisco José Furtado, expediu o Decreto Imperial de número
3371, criando os chamados Corpos de Voluntários da Pátria.1 Pelo Decreto o Imperador
apelava para os sentimentos do povo brasileiro a fim de, voluntariamente, cerrar fileiras em
torno do Exército Nacional, e dar a resposta às Forças Paraguaias, que atentavam contra a
soberania brasileira.

1
Pelo Decreto 3371, poderia compor esses Corpos todo cidadão entre 18 e 50 anos de idade, que aceitasse as
condições ali estabelecidas.

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A idéia do Império era de formar, nas Províncias, Batalhões constituídos de


voluntários que pudessem complementar os efetivos do Exército de Linha, que se encontrava
em inferioridade numérica em relação ao Exército Paraguaio. Em conjunto com o Decreto, o
Governo Imperial determinou a convocação obrigatória de parcela dos batalhões da Guarda
Nacional,2 estabelecendo para cada Província o número de homens que deveria ser enviado. 3

Quando da chegada da notícia do Decreto, encontrava-se como presidente da


Província da Bahia o Desembargador Luiz Antônio Barbosa de Almeida, que
recebeu do Governo Imperial a informação a respeito da criação dos Corpos
de voluntários da pátria e sobre as condições estipuladas. Foi orientado a
dirigir proclamações à população, exortando ao voluntariado, e
determinando o envio à Côrte, de toda a Força de Linha (tropas do Exército
Nacional) existente na Província. 4
Nos primeiros dias de janeiro, o Desembargador promoveu reuniões no
palácio do Governo com as principais autoridades provinciais para tratar da
execução dos serviços relativos ao alistamento de civis e a designação dos
guardas nacionais, na Capital e no interior, medidas por ele vistas como
necessárias para que a Bahia pudesse cumprir as determinações imperiais. 5

Entre essas medidas constavam: a remessa de comunicações a homens influentes


das vilas e cidades do interior, em particular do Recôncavo baiano, para que eles atuassem
junto à população de suas localidades, na missão de alistar o maior número possível de
homens; a intensificação, no jornal Diário da Bahia, de matérias que incitassem os homens
das classes populares ao alistamento para a guerra; a orientação para as câmaras de Salvador e
dos municípios do interior para o apoio no chamamento da população de seus municípios para
o alistamento para o conflito.6
De inicio, as condições estipuladas no Decreto e as medidas adotadas pelo
Governo Provincial tiveram algum êxito e conseguiram angariar certo número de voluntários,
na Capital e no interior. Entre esses voluntários estavam estudantes, moços de famílias
abastadas e oficiais da Guarda Nacional. Passado esse momento, a Bahia vivenciou um
período caracterizado por uma grande procura por parte das autoridades provinciais, civis e

2
A Guarda Nacional foi criada em 1831, ainda no período regencial. Tinha a missão de substituir as extintas
Milícias, Ordenanças e Guardas Municipais, e, em último caso, auxiliar o Exército em questões externas. Em
1850 foi reorganizada, ficando subordinada aos Juizes de Paz, Presidente de Províncias e ao Ministro da Justiça.
3
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 199.
4
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos
documentos do Governo da Província. 1ª parte. Série Administração. Maço 828.
5
DUARTE, Paulo de Queiroz. Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981.
p. 232.
6
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Presidência da Província. Avisos recebidos do Ministério da
Guerra. Originais - 1865. Maço 828; Boletim do Diário da Bahia, 04 de setembro de 1865 e Maço 3668; Arquivo
Municipal de Salvador. Atas da Câmara Municipal 1861/1869. N º. 950.

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militares, de homens que pudessem completar os efetivos dos batalhões da Guarda Nacional,
transformados em Corpos de voluntários da pátria, suprindo, assim, as crescentes
necessidades do Exército em operações.
Um dos recursos utilizados pelo Governo Provincial para complementar os
efetivos dos Corpos de voluntários da pátria foi de mobilizar escravos que pudessem ser
aproveitados nos serviços para a guerra. Segundo indicam as fontes, a idéia das autoridades
imperiais era de sensibilizar pessoas de posses e determinadas instituições a libertarem seus
escravos como um “empenho patriótico” em favor da nação. Caso não conseguissem esse
intento, a outra estratégia seria de comprar os escravos e alforriá-los, mandando-os para a
guerra.
Na Bahia, uma das instituições que se alinhou ao Governo no compromisso de
alforriar escravos e enviá-los para o conflito foi a Igreja Católica. Como exemplo, em janeiro
de 1867, a abadessa do Imperial Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, passou
carta de liberdade ao escravo de nome Lourenço, a fim de ele seguir para o conflito, e o abade
de São Bento, também em Salvador, apresentou 10 forros para servirem no Exército. Em
resposta, o Governo Imperial informou que esperava que a “solicitude paternal” do reverendo
fizesse com que muitos outros forros fossem apresentados para o mesmo fim. 7
Ao contrário da Igreja, o pensamento dos donos de escravos não estava
sincronizado com o objetivo que o Ministério da Guerra pensava alcançar, de conseguir o
maior número possível de escravos que pudessem combater ao lado das tropas imperiais e,
aproveitando a oportunidade e a falta de compromisso das autoridades provinciais baianas,
esses proprietários venderam ao Governo escravos em péssimas condições físicas.
Em abril de 1867, o Ministro da Guerra devolvia ao presidente da Província 12
escravos forros que tinham sido enviados para a Corte a fim de serem empregados nas
atividades de guerra. O Ministro informava que eles tinham sido inspecionados e julgados
incapazes para o serviço do Exército. Orientava a fim de que os escravos fossem
8
inspecionados, com rigor, antes de serem enviados. Anexo ao documento, existia uma
relação onde constavam os dados pessoais relativos a esses homens, o nome, a naturalidade e
o motivo da incapacidade. 9
O Ministério da Guerra, através de ofício “circular”, determinou aos presidentes
de Províncias que remetessem, com urgência, relação dos libertos que tendo ido para a Corte,

7
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série Militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.
8
Idem, maço 830.
9
Idem, Ibidem.

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voltaram por terem sido declarados incapazes para o serviço militar, informando a quem
pertencia, por quem foram oferecidos, ou se foram comprados por conta do Estado. 10 Era uma
forma de o Império descobrir se estava havendo realmente dolo por parte dos proprietários ou
se as autoridades provinciais não estavam dando a importância devida para a inspeção desses
homens, e com isso penalizar os responsáveis.
Por outro lado, o caráter “circular” do documento indicava que não só da Bahia
seguiram negros alforriados para a guerra e que muitos escravos voltaram para as suas
Províncias de origem por não satisfazerem as condições físicas exigidas pelo Exército.
Embora o Governo Imperial esperasse conseguir um bom número de escravos, o
Exército, aparentemente, não teve preocupação em priorizar a incorporação de alforriados às
suas fileiras; ao contrário, manteve nas suas juntas de inspeção de saúde uma postura de
resistência a essa política, só recebendo aqueles homens que realmente tinham plenas
condições físicas.
As informações apresentadas pelo presidente da Província à Assembléia
Legislativa da Bahia, em abril de 1869, mostram que, para o Governo Provincial, seguiram
para a guerra 1.647 escravos (o somatório dos escravos enviados para o Exército e para a
11
Armada), sendo 1.376 especificamente para a Armada. Ou seja, para o Exército seguiu,
apenas, 271 escravos, o que corrobora as informações encontradas nos documentos
comentados acima, de que o Exército não priorizou a incorporação de alforriados. Ao
contrário, a Armada, aparentemente não teve o mesmo posicionamento, absorvendo grande
quantidade de escravos em suas fileiras.
No relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, de 1872, consta que na
Província da Bahia foram libertados, a fim de seguirem para a guerra: por Conventos, 12
escravos; por particulares, o mesmo número; e que foram comprados e libertados pelo
Governo Provincial e enviados para o Exército 248 escravos, dando um total de 272 homens.
12
Embora não plenamente concordantes, os dados dos dois relatórios corroboram-se.
Caso interessante ocorreu com o escravo de nome Modesto, pertencente a
Joaquim Anselmo de Barros Bittencourt. O escravo, em novembro de 1867, foi condenado
por júri popular à pena de 500 açoites, e trazer um ferro preso ao pescoço por espaço de dois
anos. Porém, em fevereiro de 1868, o Jornal da Bahia noticiou que um escravo de nome
Modesto, condenado por crime, tinha seguido para a guerra, incorporado à Armada. De

10
Idem, Ibidem.
11
APEB. Biblioteca. Relatório do presidente da Província, em 11 de abril de 1869.
12
APEB. Biblioteca. Relatório do Ministério dos Negócios da Guerra, em 1872.

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imediato, o presidente da Província determinou ao juiz de direito da 3ª Vara, Pedro Caetano


da Costa, na qual correu o processo contra Modesto, que verificasse a veracidade ou não dos
fatos informados pelo jornal. 13
Após realizar uma sindicância, em que ouviu todos os envolvidos, o juiz informou
ao presidente que o escravo realmente pertencia a Joaquim Anselmo; que logo depois de
açoitado, foi vendido a Domingos Fernandes Moreno, negociante na praça de Salvador, com
armazém de “molhados” na rua Nova do Comércio, por um conto de réis; que a venda foi
efetuada sem ter-se cumprido a pena de condução de ferro ao pescoço, e que, mesmo sabendo
da pendência, o comerciante Domingos Moreno passou carta de liberdade a Modesto, com a
condição de que ele servisse na Armada, e que ele recebeu pela venda a quantia de um conto e
setecentos e cinqüenta mil réis.
Esclareceu que, assim como foi noticiado pelo jornal, o escravo seguiu para a
guerra. O juiz sugere ao presidente que traga Modesto de volta, pois, por não terem sido
cumpridas as penas legais, a transação entre Joaquim e Moreno não tinha validade. O juiz
enfatiza, ainda, que estranhava que o escravo tivesse sofrido quinhentos açoites em novembro
e fosse considerado apto pela inspeção médica da Armada em fevereiro. 14
Esse caso nos mostra outra face da incorporação de negros alforriados na Bahia,
que não consta nos relatórios oficiais do Governo: o comércio desses homens. O caso de
Modesto indica que a venda de alforriados foi muito lucrativa para comerciantes e donos de
escravos, como Anselmo Bittencourt e Domingos Moreno, que viram, nessa atividade, uma
maneira de ganhar dinheiro fácil e rápido ou de se livrarem de escravos tidos como
problemáticos.
Outro ponto que marcou a mobilização e incorporação de escravos, e que também
não foi levado em consideração nos relatórios oficiais do Governo foi o reclamo, por parte de
proprietários, de escravos que foram enviados para o Sul do império sem a devida
autorização. Pedro Alves Campos reclamou a posse de um homem de nome Dionísio, que
assentou praça voluntariamente e seguiu para a guerra com o nome de Jorge Alexandre. O
Governo solicitou que ele provasse ser realmente o proprietário do escravo e enfatizou que

13
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.
14
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série Justiça. Correspondência recebida de Juízes. Juízes Municipais da 3ª Vara. Maço 2672.

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Dionísio permaneceria como praça enquanto Pedro Campos não apresentasse as provas
exigidas. 15
Também o chefe de Polícia da Capital reclamou a posse de um escravo que se
alistou com o nome de José Bomfim, na 2ª companhia de zuavos baianos, mas que era, na
16
realidade, escravo do comendador Manuel de Lima e se chamava Agostinho. E até o padre
Juvenal Fernandes da Silveira, residente em Salvador, pediu, por meio do seu procurador, o
bacharel Joaquim Baptista Rodrigues da Silva, que mandasse dar baixa do serviço militar ao
escravo Passiano, de propriedade de sua irmã, D. Rosa Oliveira da Silveira, que foi para a
Côrte, tendo assentado praça na 1ª companhia de zuavos baianos com o nome de João
17
Francisco de Souza. Esses casos nos revelam que a estratégia de fugir e se alistar nas
Unidades do Exército, em particular nas companhias de zuavos, foi uma opção explorada
pelos escravos, que viam na ida para a guerra uma maneira de conquistar suas liberdades.
Em suas reminiscências, o memorialista Dioniso Cerqueira afirma haver entre os
voluntários uma tropa trajando uniforme estranho e diferente, com largas bombachas
vermelhas presas por polainas que chegavam à curva da perna, jaqueta azul, aberta, com
bordas de trança amarela, guarda-peito do mesmo pano, o pescoço limpo, sem colarinho nem
gravata e um “fez” na cabeça. Afirma que eram todos negros e chamavam-se – zuavos
18
baianos. Que os oficiais também eram negros. O próprio Conde D’EU, em determinado
momento da guerra faz referencia às companhias de zuavos, como sendo tropas lindas, com
militares de boa postura. 19
Parcela significativa da população baiana, provavelmente constituída em sua
maioria de libertos, contribuiu para que essas companhias tivessem seguido bem
uniformizadas. O periódico político O Liberal organizou uma subscrição, em 1865, com o
apoio da população, especificamente para angariar fundos para o fardamento de militares das
companhias de zuavos. Segundo Cyrillo Eloy Pessoa de Barros, responsável pelo jornal, tão
logo abriu a subscrição houve uma grande procura para realizar doações, que, de imediato,
chegaram à quantia de um conto e vinte e sete mil réis. 20

15
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
16
Idem, Ibidem.
17
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 1ª
parte. Série administração. Correspondência recebida do Ministério da Guerra. Originais. Maços 828.
18
CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1974.p. 104.
19
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá, um voluntário da pátria. In: Guerra do Paraguai. 130 anos Depois. (Org.)
MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 75.
20
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3668.

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Além dessa subscrição, em 7 de março de 1865, o jornal Diário da Bahia acusava


a arrecadação da quantia de seiscentos e cinqüenta e cinco mil réis, como fundos para o
fardamento dos zuavos. E o Governo arrecadou também uma quantia vultosa, fruto de
doações diretas à presidência da Província, que, em março do mesmo ano, já somava um
conto, oitocentos e vinte e quatro mil e oitenta réis.
E a preocupação de mostrar-se bem apresentado parece ter sido algo que norteou,
em particular, o pensamento dos oficiais comandantes das companhias de zuavos. Em
requerimento datado de 20 de julho de 1865, o tenente André Fernandes Palmeira,
comandante da 4ª companhia de zuavos, solicitou ao presidente da Província a indenização da
quantia de cento e setenta e seis mil réis, que ele havia gasto com o fardamento “rico”,
uniforme para apresentações sociais, anexando ao documento notas referentes aos gastos por
ele realizados. Assim procedeu também Balbino Nunes Pereira, comandante da 7ª Companhia
de zuavos, solicitando a indenização da quantia de duzentos e nove mil réis.
O então alferes Marcolino José Dias informou ao presidente da Província, em 5 de
abril de 1865, que necessitava de uma quantia para que ele pudesse mandar confeccionar o
seu fardamento, e que estava sem recursos para fazer tal despesa. Ele recorreu ao exemplo do
tenente Quirino Antonio do Espírito Santo que, segundo ele, teve o seu uniforme fornecido a
custos do Estado ou da subscrição tirada em favor dos zuavos. 21
As fontes nos revelam que, a princípio, a boa apresentação dos militares que
compuseram as companhias de zuavos foi fruto da vontade de parcela da população baiana
em vê-los bem uniformizados e do orgulho pessoal dos comandantes em apresentar-se bem.
Um jovem zuavo baiano ficou muito conhecido, chamava-se Cândido da Fonseca
Galvão, “Dom Obá II D’África”. 22 Cândido Galvão era descendente de escravos e nasceu em
Vila dos Lençóis, no sertão baiano. Era filho de africanos, brasileiro de primeira geração, por
direito de sangue, príncipe africano, provavelmente neto do poderoso Alá àfin Abiodum, o
último rei a manter unido o grande império Iorubá de Oyó, na 2ª metade do século XVIII. 23
No início do ano de 1865, Cândido Galvão se alistou como voluntário da pátria e
seguiu para a guerra na 3ª companhia de zuavos. Segundo o historiador Eduardo Silva,
Cândido Galvão participou de diversas batalhas, entre elas as de Tuiuti, em maio de 1866 e de
Isla Capará, em agosto do mesmo ano, onde teve a sua mão direita inutilizada, sendo obrigado

21
APEB. Seção de Arquivos Coloniais e Provinciais. Inventário dos documentos do Governo da Província. 2ª
parte. Série militares. Correspondências recebidas de voluntários da guerra do Paraguai. Maço 3670.
22
“Dom Obá” quer dizer “rei” em Iorubá.
23
SILVA, Eduardo. O príncipe Obá: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (Org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67.

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a retirar-se da luta prematuramente. Ainda segundo o historiador Eduardo Silva, Cândido


Galvão gozava de bom conceito entre as autoridades militares, e o seu desempenho o
credenciou a ser promovido a oficial honorário, por bravura. 24
Porém a fonte a que tive acesso no Arquivo Público da Bahia não expressa essa
realidade e coloca em “xeque” as colocações do historiador Eduardo Silva. Ao observar a
Ordem do Dia nº. 54, de 13 de janeiro de 1866, do Comandante em Chefe do Exército
Brasileiro em Operações na Província de São Pedro do Sul, averbada pelo tenente-coronel
José Antonio da Silva Lopes, Deputado do Ajudante General, constatei que Cândido Galvão
foi “demitido”, ainda como alferes, em 12 de janeiro de 1866, segundo a autoridade que
emitiu o documento, por mau comportamento “habitual” e desordeiro. 25
Fica a dúvida, como Cândido Galvão poderia estar combatendo em Tuiuti, em
maio de 1866 e em Isla Capará, em agosto do mesmo ano, já que ele tinha sido “demitido” em
26
janeiro. Fica também dúvida quanto a sua promoção a oficial por bravura, pois quando de
sua demissão, em janeiro de 1866, ele já era alferes em comissão, primeiro posto da
hierarquia dos oficiais, e quanto ao seu relacionamento com a instituição Exército.
Ainda segundo o historiador Eduardo Silva, ao retornar da guerra, ele permaneceu
algum tempo no Rio de Janeiro, onde era reverenciado pelos outros negros como príncipe, e
onde conseguiu uma eminência muito grande ao defender o direito dos negros à liberdade e a
uma vida melhor, chegando a ser convidado a freqüentar o palácio e travar uma amizade
pessoal com o Imperador.27
Uma de suas frases nos revela traços da sua personalidade: “O Brasil deve desistir
da questão da cor, pois que a questão é de valor e, quando o varão tiver valor, não se olhará à
cor”. 28 Talvez esse seu comportamento contestatório, para a época, tenha sido a razão para a
sua demissão do Exército.
A poesia intitulada O canto do zuavo baiano, de autoria de Domingos de Faria
Machado, procurou retratar, em 1865, a situação dos Zuavos. Assim, ele se expressou

24
Ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda Magalhães (org.).
Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1995. p. 67,74 e 75. Ver também o texto
de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor”.
25
APEB. Biblioteca. Ordens do Dia. Guerra do Paraguai. Marques de Souza – 50- 103.1866-1867. p. 33.
26
Idem, Ibidem.
27
Com relação a essa afirmativa ver SILVA, Eduardo. O príncipe Obá II: Um voluntário da pátria. In:
MENEZES, Eduarda Magalhães (org.). Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré,
1995. p. 69.
28
Idem, Ibidem.

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Sou soldado, na pátria aguerrida,


Muito embora nascido na paz,
Nasci livre, qual águia no ninho,
Ser escravo, outra vez não me apraz.
Ao bramir do gigante que acorda,
A princesa do monte se ergueu!
Minha terra foi lá a primeira,
Da vanguarda o soldado sou eu. 29

Analisando as estrofes da poesia, podemos verificar que Domingos Machado


enfatiza alguns pontos tidos como importantes para ele, naquele momento. O ser soldado, a
condição de liberto, a condição de pertencimento a uma pátria e a repulsa à escravidão são
aspectos que Domingos Machado faz questão de externar. Ressalta, ainda, a grandeza do
território brasileiro e o pioneirismo baiano na defesa do Império.
O ser soldado representava para o liberto a oportunidade de ascendência social e
uma colocação como cidadão na sociedade baiana, tal qual o capitão Marcolino José Dias ou
o alferes Cândido Galvão. 30 A condição de liberto significava estar “vivendo de si”, ou seja,
não ter qualquer vínculo com a ordem escravista, onde os laços de paternalismo e mando
prendiam o escravo ao senhor. 31 Não sei se, assim como Domingos Machado, os soldados das
companhias de zuavos tinham o perfeito entendimento da noção de “pátria”, ou se,
simplesmente, assimilaram o discurso criado pelas autoridades imperiais no sentido de
mobilizar as classes menos favorecidas a lutar em defesa de Império.
Um caso que talvez nos mostre a motivação que tinha parcela dos homens que
compuseram as tropas de zuavos, em particular aqueles escravos que fugiam e iam se alistar
nessas tropas, ocorreu com o escravo de nome Thomaz de Aquino. 32
Em 1869, Thomaz de Aquino foi preso, pronunciado e sentenciado a levar 200
açoites, depois ser vendido e o dinheiro ser depositado nos cofres públicos. Logo depois da
sua sentença, suplicou ao presidente da Província para mandá-lo para a guerra, pois segundo
ele, “já há muito tinha vocação para as contendas bélicas”. Solicitou ir à presença do

29
MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição
aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
30
Sobre o “ser soldado”, ver o texto de Eduardo Silva, “D. Obá II, o príncipe do povo: vida, tempo e
pensamento de um homem livre de cor”. MACHADO, Domingos de Farias apud CALMOM, Pedro. História do
Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973. p. 228.
31
Sobre a expressão “vivendo de si”, ver o texto de Hebe Maria Mattos, “Das cores do silêncio”.
32
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presidente, alegando que ao examiná-lo certamente o mandaria para o combate,


provavelmente por ter bom porte físico. Alegou que lá seria de muita utilidade, e onde estava
ficaria inutilizado, precisando o Governo de homens para defender a nação brasileira. Em
despacho, o presidente da Província respondeu, em 16 de fevereiro de 1869, que não tinha
lugar o que ele requeria. 33
O pedido de Thomaz de Aquino nos mostra que, para aquele homem, a ida para a
guerra representava a sua sobrevivência temporária e a sua liberdade. Não existiria qualquer
compromisso daquele escravo com a nação brasileira. Ao contrário, o seu único compromisso
seria consigo mesmo. É possível que, para parcela dos soldados das companhias de zuavos, a
motivação fosse a mesma.
A historiografia da guerra é “plural”, quando se trata de realizar considerações
referentes ao número de escravos enviados para combater no Paraguai. Como pontuou
Ricardo Salles:
Determinar o número de escravos que combateram na guerra e qual a contribuição
relativa em termos de manancial humano é algo bastante difícil, seja devido às peculiaridades
estatísticas da época, seja devido ao desejo de se ocultar o quanto uma sociedade escravocrata
dependeu de escravos para responder ao chamado de defesa da pátria 34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALMOM, Pedro. História do Brasil na poesia do povo. Nova edição aumentada. Rio de
Janeiro: Edições Bloch, 1973.

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai. Rio de Janeiro:


Bibliex,1974.

CHIAVENATTO, Júlio José. Os voluntários da pátria e outros mitos: Global, 1982.

______________ Genocídio americano: Guerra do Paraguai. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1985.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita Guerra: Nova história da guerra


do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

33
Idem, Ibidem.
34
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1990.

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DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Forros e brancos pobres na sociedade colonial do Brasil
1675-1835. In: História general de América Latina. Unesco. V.3. Cap. 14.

________________ Sociabilidades sem história: Votantes pobres no império, 1824-1881. In:


historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto.

DUARTE, Paulo de Queiroz. Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai. O


imperador, os chefes militares, a mobilização e o quadro militar da época. Rio de Janeiro:
Bibliex, 1981.

FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo,
SP / Salvador, Ba: Edufba, 1996.

POMER, León. Paraguai: A nossa guerra contra esse soldado. São Paulo: Global, 1997.

QUERINO, Manoel. A Bahia de o’utrora. Vultos e fatos populares. Bahia: Livraria


Econômica, 1916.

SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do


Exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

SILVA, Eduardo. O príncipe Obá: Um voluntário da pátria. In: MENEZES, Eduarda


Magalhães (org.). Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumaré,
1995.

SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na guerra do


Paraguai. Rio de Janeiro: Marrad and Adesa, 1996.

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FUGAS, ROUBOS E SUICÍDIOS: A RESISTÊNCIA NEGRA NA


ARACAJU OITOCENTISTA.
Patrícia Abreu dos Santos- UNIT140
patriciaabreuicm@hotmail.com

Através da literatura percebemos que a liberdade era um objetivo a ser alcançado pelos
escravos e escravas, para conseguir tal intuito, em algumas situações, vários métodos foram
utilizados na conquista dessa liberdade. Ainda há poucos estudos sobre a escravidão em
Aracaju, sobretudo os que trabalham com a categoria gênero. Nosso objetivo é analisar as
estratégias de resistência das escravas e dos escravos em Aracaju, no período de 1855-1888.
Queremos compreender quais eram as possibilidades de resistência para essas escravas e
escravos. Para isso, utilizaremos anúncios de escravos nos jornais, processos-crime, sumário
de culpa. E a metodologia nessa pesquisa utilizada é o método indiciário. Entretanto, as
dificuldades impostas para algumas mulheres negras e homens negros eram tamanhos que
muitas deles perdiam a esperança e por fim chegavam a cometer o ato do suicídio, e nosso
estudo também buscará este gesto que para alguns historiadores é analisado como um ato de
resistência. Portanto, essa pesquisa pretende contribuir para a compreensão da escravidão
urbana na Província sergipana, e das relações de gênero no interior da escravidão.

Palavras-chave: Resistência, Mulheres Negras, Liberdade.

Numa sociedade cujo sistema em voga era o paternalismo, os senhores valiam-se


da idéia de posse do escravo e do controle social como uma questão privada, “... o escravo,
sendo dependente moral e materialmente do senhor, não poderia ver essa relação bruscamente
rompida quando alcançada a liberdade”. (CHALHOUB, 1990: 136), entendiam que o escravo
não possuía direitos e pensamentos que pudessem possibilitá-lo de viver em liberdade .
A sociedade entendia que o poder da liberdade do escravo estava concentrado nas
mãos do senhor, sendo que o escravo entendia que o caminho para a liberdade passava pela
obediência e submissão devidos ao proprietário, ou seja, na relação senhor x escravo era
permeada por muitas facetas: negociação, obediência, submissões e resistência.
Fugas, roubos, e suicídios, fazem parte do que os historiadores classificam como
Resistência Escrava. Segundo Isabel Reis(2002), observa-se que essa ocorre de diversas

140
Graduada em Licenciatura Plena em Historia – Unit/SE.

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formas, através revoltas, fugas, suicídios, insultos, insubordinações, arruaças, manifestações e


conspirações.
Convém ressaltar que a vivência dos escravos no século XIX, havia agressões e
acusações de roubos, esses elementos mostram que os escravos viviam em um ambiente onde
eram marginalizados e os senhores entendiam que os tais não possuíam o preparo para as
obrigações de uma pessoa livre, sendo assim deveriam passar de escravos a homens livres
dependentes141.
Segundo Mary Karasch, em a vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850),
havia dois tipos de resistência, a resistência violenta e a resistência não violenta.
A resistência não violenta consistia em fazer rituais espirituais, diminuição no
ritmo do trabalho, fingir doenças, insultos, excesso de bebidas e comportamento auto-
destrutivo.
Já a resistência violenta, era constituída por campanhas de guerrilhas, atos
coletivos de agressão armada, fugas e rebeliões.
Um grande exemplo de resistência escrava, que ocorreu no Brasil foi a Revolta do
Malês, que ocorreu em 1835 na Bahia. Essa rebelião foi liderada por escravos sudaneses, que
em sua maioria eram letrados e mulçumanos. Uma rebelião que segundo Reis (2000), foi
planejada e articulada, com um objetivo especifico que era a conquista da liberdade. A
rebelião foi uma das formas de resistência mais explicita.
Em Sergipe, segundo Mott (1986), as revoltas dos escravos, também chamados de
gente de cor, possuíam o caráter de lutar contra uma elite senhorial. “... por vezes o conflito
revestiu-se mais de conotações raciais, os pardos e pretos almejando a destruição dos brancos
e de seus lacaios” (MOTT, 1986 p.189), os escravos oprimidos e insatisfeitos desejavam
inverter a posição na hierarquia do poder. Contrariando assim o dito que “há que tenha
sugerido que Sergipe foi um dos locais da colônia onde as distâncias sociais e raciais entre
senhores e escravos foram menores ( BEZERRA, 1950:156-157, Apud MOTT,1986,p.190),
“havendo um tratamento mais humano e generoso vis a vis a escravaria, inclusive no tocante a
alimentação e o vestuário” (SOUZA, 1808:17, Apud MOTT, 1986, p.190).
No entanto Mott foi um dos pioneiros em mostrar a existência de uma resistência
escrava em Sergipe, na rebelião na primeira metade do século XIX, conhecida como a revolta
dos pretos em 1809, na região do Contiguiba. Assim podemos perceber que a relação senhor x
escravo não era tão amistosa quanto antes sugerida.

141
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade - uma Historia das Ultimas Décadas da Escravidão na Corte.
São Paulo:Companhia Letras, 1990.

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O relacionamento amistoso é logo desmentido através dos anúncios de jornais e


processos crimes, que evidenciam um relacionamento pautado na violência defendida por
algumas autoridades. Através dessas fontes, pretendemos pontuar alguns elementos da relação
senhor x escravo em Aracaju.

1. Das Fugas

As fugas como descreve Isabel Reis, iam de pequenas escapadelas pra


divertimento, como para a pratica religiosa, visita a parentes, encontros amorosos ou fugas
definitivas, ou seja “a idéia de livra-se da submissão do cativeiro permeava o pensamento do
negro escravizado, a idéia de poder viver a liberdade, significa fazer o que quisesse de sua
vida e apropriar-se do fruto de seu trabalho” (REIS, 2002, p. 92). Já Mary Karash (2000) a
fuga era a forma mais comum de resistência, elas representavam alternativas de resistências
ao sistema opressor senhorial.
Kátia Mattoso(2003), avalia que a fuga era uma forma de revolta interior do
escravo não adaptado, ou seja, ele fugia do senhor e dos problemas de sua vida cotidiana e da
falta de enraizamento.
Através dos anúncios de jornais podemos observar um retrato daqueles que
fugiam, com suas características, o que possuíam, os seus vícios, jeito de andar e falar e
principalmente de onde eram e sua cor.

“Escravo Fugido
Fugiu do abaixo assignado o seu escravo Mauricio, de cor vermelho,
cabellos crespos, barbado, pés rachados e um tanto calvo no alto da cabeça.
Levou calça azul e chapeo de chile já usado. Quem o capturar e apresental o
a seu senhor no sitio Boa Vista, da Barra do Poxim, será bem recompensado.
Aracaju, 18 de dezembro de 1874”142.

Os anúncios são ricas fontes de material histórico e relatam à forma de


perspectivas do senhor, indícios sobre suas relações sociais com o escravo. Ao analisar-mos
os anúncios podemos perceber motivações, estratégias e significados para as evasões
realizados por homens e mulheres escravos.
Podemos traçar um breve perfil dos escravos fugidos de Aracaju que foram
anunciados nos jornais, como: os escravos fugidos estavam no auge da produtividade ( 18 a

142
Doc. Nº 467, Jornal do Aracaju, Aracaju. N. 545, 19 dez. 1874, p. 04 (SIMH 005-22-001-0184)

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45 anos), com exceção de dois escravos que possuíam a idade de 13 anos e outro de 70 anos.
Os escravos em sua totalidade eram brasileiros, porém nem todos nascidos em Sergipe, do
material pesquisado podemos observar que 14 homens e 4 mulheres, com a predominância
das cores parda(4), preta(3) e fula(3), apenas dois escravos possuíam especialidade: 01
sapateiro e 01 que possuía varias profissões como: Padeiro, Pedreiro, Cozinheiro. E os sinais
do corpo: 01 castigo, que nos revelam os maus-tratos sofridos pelos escravos, sobretudo
percebemos que fugir não era uma tarefa fácil, porque os escravos que assim conseguiam,
deveriam possuir características e informações que os ajudasse na fuga.
Ainda sobre os anúncios podemos ler, que as fugas eram de caráter individual,
todos eram solteiros, convém afirmar que os escravos que fugiam na idade produtiva (18 a
45), tinham as maiores condições físicas de realizarem a fuga com sucesso, já que fugir não
era uma tarefa fácil, o escravo deveria possuir alguns atributos como conhecimentos de
pessoas e lugares e resistência física143.
Ressaltamos que alguns anúncios de jornais não informavam se o escravo era de
Aracaju, podendo assim este escravo ser de outra vila e ser anunciado aqui, por seu senhor ter
casa em Aracaju como em outra localidade.
Também por viverem nas duas localidades e por conta da distância, os senhores
esperavam um tempo para anunciar a fuga do escravo nos jornais, sendo assim decorrendo de
alguns dias da fuga ao anúncio, como vemos no anúncio abaixo descriminado:

“No dia 8 do vigente fugio do engenho Marim, propriedade do abaixo


firmado, seu escravo Belmiro, cujos signaes são os seguintes: -pardo, idade
35 annos pouco mais ou menos, alto, secco, pouca barba, com principio de
um belida em um olho, e hum tanto surdo;-quem o aprehender, e entregar
ao mesmo abaixo firmado, será bem recompensado. Aracajú – 23 de
Dezembro de 1861. Cônego Eliziario Vieira Muniz Telles”144.

Os escravos buscavam uma nova forma de vida e através das fugas, e os procuram
reconstruir suas vidas longe dos seus antigos senhores, podendo ser mais fácil para aqueles
que sabiam ler e possuíam alguma aptidão para este recomeço: “...os que tinham boas
aptidões para as atividades, corteses, bonitos e espertos. Essas características os ajudariam na
reconstrução de suas vidas após as fugas” (CUNHA, 2004:151).

143
Karasch, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo
Companhia das Letras, 2000.
144
Doc. 362, Correio Sergipense, Aracaju, n. 102, 24 dez. 1861, p.64 (SIMH 007-29-004-0620)

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Podemos observar que em sua maioria os homens escravos fugiam mais que as
mulheres escravas, pois possuíam maior liberdade que as mulheres, já que se constituíam de
vendedores, negros de ganho, carregadores, marinheiros como relatado no 1º capitulo.
As negras escravas segundo Cunha (2004), por vezes eram domésticas ficavam
em casa e por este motivo estavam mais junto aos seus senhores, dificultando a sua fuga, as
mulheres que trabalhavam nos serviços do lar, tinham mais acesso ao afeto do senhor, assim
como melhores oportunidades de conseguir a carta, já que eram mais vigiadas. Embora
utilizassem outros métodos como através da negociação, via sexo e ou o uso de seus atributos
no afazeres e nas relações afetivas como meio de conseguir a liberdade. Um outro motivo
seriam os filhos, pois elas eram as responsáveis pela criação.
Sobre as possíveis motivações de fugas, a mais comum seria pelo castigo ou no
caso de mulheres, o assédio ou abuso sexual dos feitores, senhores e agregados. Anúncios de
jornais nos ajudam a exemplificar melhor esta problemática, eles acentuavam atributos com
teor erótico. Como o caso de Eufrásia, escrava, que no seu anúncio de fuga, vem descrevendo
que é corpulenta. O que segundo Amâncio Cardoso é uma situação muito apreciada pelos
escravocratas para iniciação dos filhos ou abuso próprio. Em casa ou na roça as negras
sofriam perseguições, e a essas investidas sexuais estão entre as razões das evasões femininas.

“Fugio no dia 5 do corrente a escrava de nome Eufrásia pertencente ao


abaixo assignado. Tem ella os siguintes signaes: preta, estatura regular,
corpulenta, dentes falhados, um pouco carrancuda e ainda é moça. Quem
apprehendêl-a ou der noticia certa della, será bem recompensado. Aracajú,
24 de julho de 1880. Gonçalo Vieira de Mello145

Entretanto alguns escravos, mesmo que regristas146sofriam maus - tratos e fugiam,


como o caso relatado no Jornal do Aracaju, em 19 de novembro de 1873, que conta a historia
de Manoel, mulato, com 22 anos , onde em suas características é informado que possuí
“signaes de ter sido castigado” , sendo o mesmo “ muito regrista”147.
Outro ponto importante é a questão do escravo e a Igreja, mesmo os negros que
pertenciam aos padres e vigários, resistiam à escravidão, levantando a interrogativa sobre
como eram tratados e que muitas dessas fugas surgiam porque os negros podiam não
identificar-se com a religião instituída. Como também podemos observar a conivência da
Igreja com o sistema escravocrata.

145
Doc- 567, O raio, Aracaju, n. 189, 25 jul. 1880, p. 04 ( SIMH-003-17-003-0423)
146
Escravo considerado compenetrados, bons ajudadores e não dado a preguiça.
147
Doc – 446, Jornal do Aracaju, Aracaju, n. 430, 19 de nov. 1873, p.04 (SIMH 005-21-002-0398)

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Como vemos no anuncio do dia 02 de agosto de 1856 os padres e vigários


poderiam ser senhores que maltratavam os seus escravos, como o escravo Manoel, comprado
a Anna Joaquina do Sacco, de cor fula, cara lisa e pés largos, no anuncio o seu senhor o Padre
Agostinho Rodrigues Braga, pede que quem o encontrar ou der noticias sua seria bem
recompensado.148
Também fugiam porque seus donos não cumpriam ou não permitia que eles
comprassem sua liberdade, com o uso do seu pecúlio 149, na primeira oportunidade este
escravo fugia, para pressionar o seu senhor a baixar o preço ou a aceitar o dinheiro
conseguido pelo escravo, a esta fuga era dado o nome de fuga reivindicatória. Embora
quaisquer que fossem os motivos da fuga, depois de realizada, os escravos viviam o problema
de evitar a recaptura.
Negociações entre senhores e escravos existiam para que os mesmos comprassem
sua alforria, quando o dono não permitia este ato, ou pretendia vender escravo, surgia à fuga,
ora o escravo não aceitava a mudança de senhor, pois isto implicava em possível afastamento
de sua família, como também eles perderiam as conquistas alcanças com o senhor que já o
possuía, e teria que negociar novamente com o novo senhor.
Cunha(2004) relata que na morte do seu dono, o escravo passava pelo sofrimento
de ser vendido ou destinado a outro dono, que não o trataria como o dono anterior, e a meio a
essa disputa de herdeiros os escravos fugiam para muitas vezes reivindicar a liberdade.
Os escravos fugidos mantinham uma rede de solidariedade com moradores de
engenhos e povoados, livres ou cativos, sendo muitos dos que ajudavam poderiam ser amasios
deles.
Entretanto vemos alguns casos em que as pessoas que ajudavam eram
abolicionistas, como se destaca em Sergipe em 1882, Francisco José Alves, que possuía “a
crença insofismável na liberdade de todo e qualquer ser humano independente da cor e dos
credos políticos e religioso”(SANTOS, 1997:46), com a sociedade libertadora a Cabana do
Pai Thomaz, que consistia em defender os escravos do cativeiro, com a responsabilidade de
alforriar os escravos cativos em Sergipe.
Podemos especular que os negros fugiam para vender-se a outros senhores, que
desesperadamente necessitando de trabalhadores escondiam os escravos fugidos em meio aos

148
Doc – 237, Correio de Aracaju, Aracaju, n. 40, 02 de agosto 1856, p.04 (SIMH 007.28.002.0225)
149
- Forma de juntar dinheiro, concedido ao escravo a partir de 1871, onde o escravo poderia juntar dinheiro para
comprar sua liberdade.

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seus próprios escravos. Através do anúncio de jornal do Aracaju, de 02 de agosto de 1876,


que conta a fuga de Messias, escravo cheio de habilidade que foge.

“Do abaixo assignado fugio Messias escravo, de côr parda, baixo de


estatura, muito hábil; sabe o officio de pedreiro, cosinheiro, copeiro,
entende de pintura, cabelleireiro, etc.; é musico de instrumento de
barbeiro. Pede se a quem o pegar e trouxer que garante se a paga. Sua
sahida de casa fazem 12 dias, e sabese quem procurou em Laranjeiras
o snr. Antonio de Paiva para este o comprar. Aracajú 25 de julho de
1876. Antonio Rodrigues dos Cotias.”150

Da mesma forma como possuíam associações para ajuda a escravos, o senhores de


escravos possuíam uma rede de pessoas que os ajudavam a capturar escravos fugidos ou bem
como servir de receptor do escravo fugido nas cidades que ele passasse, como vemos num
trecho do anuncio de Valério, escravo, que fugiu do seu senhor Oliveira & Penna, que possuía
ligações com José Pereira de Magalhães, em Aracaju, Capitão João Baptista de Meira, em
Laranjeiras, João Antonio da Silva Ribeiro, em Maruim, André Ramos Romero, Lagarto.151
Em meio a essa relação de associações que lutavam por seus ideais, surgem os
quilombos que foi a forma mais expressiva de movimento na luta pela liberdade, não
observamos nos registros oficiais nenhum quilombo em Aracaju, porém podemos afirmar que
os estudos dos quilombos revelam uma organização por parte dos escravos. Que segundo
Amâncio Cardoso (2002), o quilombo representava o projeto coletivo de liberdade, ligado a
uma rede de solidariedade, e criava-se um apoio a comunidade.

2. O Uso da Justiça

Mesmo com a afirmação de que o poder de libertar estava nas mãos do senhor,
alguns escravos, a partir de 1871, vêem esse desejo ser inserido no campo da possibilidade, a
partir da Guerra do Paraguai onde é dado o direito a alguns negros de possuir sua liberdade,
através de suas economias, o negro que já possuía projetos de uma nova vida, tem a
oportunidade de conquistá-los152.
Alguns escravos fugiam e/ou matavam seus senhores e feitores, pois não queriam
permanecer no estado escravizado, após o ato de crime, muitos destes iam refugiar-se nas

150
Doc. 490, Jornal do Aracaju, Aracaju, n.719, 02 agosto.1876, p.04 (SIMH-005-22-002-0374)
151
Doc- 536, Correio de Sergipe, Aracaju, n. 67 24 de agosto.1861, p.04 ( SIMH 007-29-003-0543)
152
CHALHOUB, Sidney. Diálogos Políticos em Machado de Assis. In: Visões da liberdade: uma história das
ultimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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cadeias, entregando-se a justiça, onde afirmavam que “preferiam morrer pela mão da justiça,
do que pela mão do senhor.” (CHALHOUB, 1999: 147)
O uso da justiça não se resumia a busca apenas em situações de atos criminosos
praticados pelos escravos, como também era o meio de muitos buscarem a liberdade, através
de ações, para o uso devido do pecúlio, e era o meio do escravo denunciar os maus tratos
sofridos pelos cativos por seus senhores ou por pessoas que sendo ou não próximas
efetuavam.
O motivo mais comum de ações de justiça por escravos eram os maus tratos e a
liberdade através da lista de classificação, onde podemos observar que muitos entravam por
não ter seus nomes inseridos na lista, mesmo que preenchendo os requisitos para tal.
Através dos curadores os escravos pleiteavam na justiça a liberdade, nas ações
realizadas por escravas, são percebidas alegações que ajudavam a escrava conseguir sua
liberdade, através da desvalorização do seu valor comercial, “algumas alegações,
provavelmente foram estratégias utilizadas pelos escravos para diminuir o seu valor”
(CUNHA, 2004:141).
Alguns escravos entravam na justiça por estarem livres pela metade (forros), onde
segundo Chalhoub (1999) eram escravos que possuíam o direito de serem considerados livres
após o seu dono lhe faltasse, ou como em muitos casos, o direito era dado como um ato de
gratidão do seu senhor a prestação de serviço do escravo que o fez com zelo, por muito anos.
Os escravos que viviam como forros, eram por muitas vezes considerados negros
“sobre si”, ora eles viviam sem a sujeição senhorial, e por conta dessa liberdade, muitos
entravam na justiça, informando que a afirmação antes mencionada de que o escravo é
escravo por necessitar de proteção senhorial, não valia para eles.
Os escravos possuíam a idéia de livres, pois trabalhavam fora e viviam como
queriam longe dos seus senhores, mesmo que esse trabalho fosse um trabalho ligado a função
do seu senhor. Já que muitos proprietários não possuíam renda para manter-se, alguns
alugavam os seus escravos para outros senhores e assim permitindo o deslocamento deste
escravo para outra localidade.
Conforme documentação do século XIX, encontrada no Arquivo Judiciário do
Estado de Sergipe, uma petição de Manoel, liberto pela metade, no qual o autor da ação
solicita que seja matriculada a parte dele escrava do peticionário, que pertence a Pedro
Nogueira, com o intuito de não o prejudicar na sua parte liberta153.

153
Petição de Manoel escravo pela metade cx 02.2476 ano de . Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe.

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Podemos então notar através dos processos, a orientação do negro escravo, que
via na justiça uma forma de buscar caminhos para liberdade, sem que esse houvesse a
necessidade do embate físico que percebia que “no máximo o que poderia acontecer com ele
seria receber a pena de Galés Perpétuos, o que para ele possuía o sentido de liberdade”
(Santos, 1991: 42).
Entretanto não encontramos só ações de ordem libertária, encontramos também
ações onde o réu é o escravo por tentar fugir, e no meio de sua fuga, agredir fisicamente uma
pessoa. É o caso de Romão154, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto, solteiro,
trabalhador do serviço da lavoura, onde é acusado de agredir fisicamente Antonio Felix de
Andrade, que em sua canoa no momento da cobrança de sua passagem pela viagem, recebeu
golpes de faca.
Contudo observamos nesse processo que o ato de ferir a Antonio Felix, não
passava de um meio do escravo ser julgado pela justiça e sair das mãos do seu senhor, que o
agredia e por saber que seria castigado em razão de ter aparecido na propriedade do seu
senhor um boi espancado, e isto ser atribuído a ele. Romão afirma que por já saber que seu
senhor não o venderia, usou deste artifício da agressão, para que levado a justiça, sai-se das
mãos do seu senhor e ainda nos explica que como no momento não havia alguém que pudesse
validar o seu ato, correu para prisão.
Percebemos assim que a justiça por mais que fosse castigá-lo, não seria
certamente da mesma forma que o seu senhor, deixando assim claro a formação de caráter dos
senhores de escravos, os meios de castigá-los e afirmando novamente a corrente de
pensamento negro que preferia morrer nas mãos da justiça a morrer nas mãos do seu senhor.

3. Roubos

Outro elemento a ser destacado seria o roubo, como forma de liberdade, o escravo
utilizava desse meio para com o que foi roubado, utilizar tanto para sua liberdade, como
também para sua sobrevivência fora da casa do seu senhor. Há casos em que o roubo também
servia como abastecimento dos quilombos próximos de onde o escravo vivia.
Segundo Santos (1991), a criminalidade dos cativos esteve sempre presente na
escravidão, porém vale ressaltar que atos como roubar, matar e fugir, são apenas movimentos
de tentativa de busca pela liberdade.

154
Réu: Romão, escravo de Manoel Raymundo Muniz Barreto cx. 03.2639-sumario de culpa.

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Há que surgira que os escravos que praticavam este ato, não eram da cidade e só
acontecia nas cidades cujo o aspecto social era elevado, Todavia encontramos o caso de
Miguel, escravo de propriedade de Jose Moreira de Souza Mangueira, que foi acusado de
roubar um caixão do naufrágio do “Ventura Feliz”.
Em depoimento Miguel155, utiliza estratégias para dizer que não foi um roubo, fala
que num domingo, apareceu boiando sobre o algodão um caixão que após ser recolhido por
ele e passar muito dias sem que alguém o reclamasse, ele retirou para uso próprio algumas
peças de prata, como facas e colheres. Sendo Miguel denunciado por outro escravo por nome
Fortunato, servo também do seu senhor Moreira. Perguntado a ele para tinha roubado, Miguel,
afirma a idéia que tais peças seriam roubas para o uso de sua liberdade, podendo assim vende-
las e conseguindo o dinheiro comprar sua alforria.
Como vimos na afirmativa acima realizada por Miguel, indicamos que os roubos
em sua maioria servia para o uso do próprio escravo em comprar a tão sonhada liberdade.
Por conta dos maus tratos sofridos pelos escravos, este meio de conseguir a
liberdade seria para eles um meio justo, e com tais tentativas eles nos ressaltam que esta
forma, era apenas um meio para sair do conceito de coisa, tão inserida no pensamento do
senhor de escravos.
Os negros que não conseguiam fugir e conseguir por meio legais a sua alforria,
poderiam chegar ao ato mais trágico da historia da escravidão. O Suicídio.

4. Suicídios, Infanticídios

O suicídio possuía dois aspectos a serem estudados: o suicídio na ótica do


escravista era uma doença social, que já vinha inserido no cotidiano escravo, e para os
abolicionistas o suicídio era o fruto de uma degradação das leis morais, em meio ao regime de
subserviência.
O suicídio foi uma das formas mais trágicas de conseguir a liberdade, os escravos
que por decidirem “não mais esperar a liberdade, matavam-se na expectativa de seus espíritos,
completarem a jornada de volta para casa” (Karasch, 2000:438).
As causas que motivavam os suicídios são difíceis de abordar, pois estão inseridas
dentro do imaginário do negro que viveu a experiência, todavia os métodos mais utilizados
são: os afogamentos, enforcamentos, o uso de arma de fogo ou brancas, comer terra,
forçavam-se a não comer, inanição, banzo e auto – envenamento. Sobre os suicídios, estes não

155
Réu: Miguel, escravo; Autor: Justiça Pública - Aracaju - 1º vara CRI- Cid. 01/2637, Sumário de Culpa
04/10/1858.

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recebiam o conhecimento oficial, para que pudesse ser efetuado o enterro de quem o
cometesse, conforme a tradição da época.
Segundo Goulart (1972) o afogamento foi o mais comum, entretanto os escravos
que se matavam com esse método ao eram identificados como suicidas, só sendo identificados
se houvesse testemunha. Karasch(2000) nos fala que quando o escravo já cansado de viver,
começava a buscar formas de livra-se delas, como comer terra, onde após o ato, caso o senhor
percebe-se a tentativa de suicídio, colocavam mascaras de ferro para que não comesse mais.
Uma forma muito conhecida era o banzo, que consistia em engolir a língua viver
um sentimento de nostalgia, que sem nenhum sinal visível ou até dano físico, faziam com que
os escravos parassem de respirar.
Ainda temos também o auto-envenamento, os negros possuíam a reputação de ser
envenenadores e conhecedores de plantas venenosas. E utilizavam desses métodos para o uso
próprio.
Para alguns historiadores o estupro seria uma das causas que levavam ao suicídio,
como também a separação da família. Ora a possibilidade de vê seus familiares separados e
sofrendo castigos e açoites, poderia levar a atos violentos como o infanticídio.
Como vemos no caso do escravo do Alferes Ignácio José de Matos, que na
ocasião por ter sido vendido com sua mulher também escrava, achou por bem tirar a vida do
seu filho um menino de dois anos de idade, para que ele não sofresse a dor da escravidão
sozinho, com o ato de deferi-lhe uma cacetada que quebrou-lhe os braços e mais uma parte do
corpo156.
Quanto ao desespero pela liberdade, parece ter motivado o escravo Desidério,
conforme relato do Jornal que vem a seguir:

No dia 8 do corrente, pelas 5 horas da manhã, um escravo de nome


Desiderio, que se acha recolhido à casa de prisão da Capital, tentou
suicidar-se, sendo, felizmente, obstado pelo próprio instrumento de
que serviu-se: era uma pequena faca sem ponta e sem corte de que
uzão alguns presos para a factura de trabalhos de palha de que ali se
encarregão157.

O escravo relata que tentava matar-se pra não ter que voltar para mãos do seu
senhor, podendo assim ser dado como criminoso do que voltar ao seu senhor.

156
APES- Pac.SP¹ 149.
157
JORNAL DO ARACAJÚ – Sergipe, Domingo, 17 de Agosto de 1879. Anno IV. Nº 403. pg 02.

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Portanto podemos supor que as formas de cativeiro existentes, faziam com que
para os escravos houvesse conseqüências tão desesperadas, que o ato do suicídio era visto
como um desejo de possuir a liberdade, mesmo que seja esta de forma definitiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade - uma Historia das Ultimas Décadas da


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Mestrado apresentada a UFBA, Salvador Bahia, 2004.

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José Alves Uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade,
1997.182p.

SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. Reordenamento do Trabalho: Trabalho escravo e


Trabalho Livre no Nordeste açucareiro. Sergipe 1850 – 1930. E.d.FUNCAJU, Aracaju,
2000 – pp 81-85.

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VOZES DISSONANTES: NOTÍCIAS DA ESCRAVIDÃO E DA


LIBERDADE NA IMPRENSA ABOLICIONISTA CACHOEIRANA, 1887
– 1889*
Jacó dos Santos Souza – UNEB
jacocachoeira@hotmail.com

Às vésperas da abolição surgia o jornal abolicionista O Asteróide, na cidade de Cachoeira,


interior da Bahia. Com uma linguagem incisiva e combativa aos interesses escravagistas, o
referido periódico destacou-se como importante espaço de luta pela emancipação escrava,
envolvendo-se diretamente em conflitos relacionados à abolição. Esta comunicação busca
refletir sobre resultados parciais do projeto de pesquisa de mestrado, ainda em andamento.
Busco analisar a atuação de O Asteróide no movimento abolicionista cachoeirano. Desse
modo, entendo que, dentre os inúmeros domínios nos quais os abolicionistas lutaram contra a
escravidão, a imprensa periódica desempenharia um papel estratégico. Isto porque os jornais
foram as principais vias de propaganda e denúncia dos horrores da escravidão, dos abusos
sofridos pelos escravos e a própria repressão ao movimento abolicionista. Assim, uma
reflexão sobre a atuação da referida folha abolicionista poderá evidenciar práticas cotidianas
que, por sua vez, me fornecerão diversos caminhos para se pensar como a questão escrava era
vivida, noticiada e lida naquela parte do Recôncavo baiano, nos momentos finais do
escravismo.

Palavras-chaves: Imprensa Abolicionista, Escravidão, Liberdade.

Às vésperas da abolição surgia o jornal abolicionista O Asteróide, na cidade de


Cachoeira, Bahia. Resultado de um projeto idealizado por uma equipe de jornalistas, o
periódico, logo em seu número inaugural de 23 de setembro de 1887, fez questão de tornar
evidente os princípios motivadores de sua circulação que, entre outras coisas, residia no
desejo de promover a “emancipação do ‘escravo’, e igualmente, a emancipação do povo, que
158
não poderia ainda, moralmente obtê-la!”. Essa declaração sugere que a questão
perseguida pelo periódico não se resumia apenas ao fim do cativeiro. O jornal se alinhava a

*
Este artigo inclui resultados parciais do projeto de pesquisa de mestrado, ainda em andamento.
158
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)

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uma corrente abolicionista que tinha na abolição a possibilidade de desencadear ampla


reforma na sociedade brasileira.
A mais recente folha noticiosa cachoeirana dedicou-se exclusivamente a divulgar
questões relacionadas à campanha abolicionista no Recôncavo baiano e em outras localidades.
Em seu primeiro exemplar, numa demonstração de elevado entusiasmo, a equipe jornalística
anunciava em palavras impressas um tempo de esperança para aqueles que vivam sob o jugo
do escravismo.

(...) em auxilio da luz, surge hoje no jornalismo pátrio o ‘Asteróide’, órgão


da propaganda abolicionista, procurando no choque das lutas intelectuais o
desenvolvimento de infinitas e luminosas irradiações, que projetando-se em
todas as direções, possam formar outros tantos luminosos ‘meteoros’ 159

A partir dessa apresentação, os idealizadores do periódico já pretendiam apontar


para a postura incisiva e aguerrida adotada pelo jornal. Os “luminosos meteoros” produzidos
em conseqüência do “choque” parecem sinalizar para a possível adesão da sociedade à idéia
abolicionista mediante a sua veiculação. A imagem casa, ainda, com a idéia de que a abolição
poderia se desdobrar em outras reformas, inclusive em possibilidades várias de liberdade. Mas
a abolição deveria ser precedida pelas luzes do saber e da informação. O nome do jornal já
revela a forma como os seus fundadores o entendiam, como um órgão que tinha como missão
o esclarecimento, ou melhor, levar a luz às consciências ainda mergulhadas na escravidão.
O contexto de produção e difusão de O Asteróide estava marcado por forte
agitação social. Prisões, fugas e acoitamentos eram cenas freqüentes na Cachoeira dos últimos
anos de vigência do escravismo. A condição do cativo já havia mobilizado diversos
segmentos da sociedade que, desde 1870, uniram-se na fundação da Sociedade Abolicionista
160
25 de Junho. A escravidão, traduzida em violência física e moral tanto para os cativos
quanto para os livres e libertos, passou a ser vista como insustentável por alguns cachoeiranos
que, ao longo das décadas de 1870 e 1880, envolveram-se na luta contra os setores favoráveis
ao escravismo.
O nome do abolicionista Cesário Ribeiro Mendes aparece com grande freqüência
na documentação da época. Sobre ele pesava o “crime” de agitar a população escrava e

159
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
160
De acordo com Nascimento, “comerciantes, advogados e alguns proprietários rurais uniram-se, nesse
momento, para instituírem clubes, sociedades e jornais de inspiração abolicionista e republicana e inserir-se
partidariamente na política e administração local”. Ver: NASCIMENTO, Luiz Cláudio. “Terra de
macumbeiros”: redes de sociabilidades africanas na formação do candomblé jeje-nagô em Cachoeira e São
Félix - Bahia, Salvador, Bahia: Dissertação de Mestrado, CEAO, 2007.

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promover diversos acoitamentos, o que provocava grandes insatisfações em senhores locais


que viam nele uma constante ameaça diante de suas “propriedades” humanas. 161
Em 6 de março de 1888, na sessão ordinária do Conselho da Sociedade Monte Pio
dos Artistas Cachoeiranos, foi informado pelo relator a libertação do sócio Cesário Mendes
que encontrava-se preso desde outubro de 1887 devido a uma queixa feita pelo coronel
Joaquim Ignácio de Cerqueira Bulcão, onde fora acusado de acoitar escravos na região. A
notícia da libertação foi recebida com grande alegria pelos presentes naquela audiência.

Com bastante contentamento vos anuncio que o nosso sócio Cesário Mendes
Ribeiro acha-se livre e no seio de sua família, por ter o tribunal do Júri desta
Heróica cidade [ilegível] da justiça da causa que em má hora os perseguidores
do nosso consócio, contra ele intentaram para abafar uma idéia santa e que
motivara o Sacrifício do Gólgota, o absolveu unanimemente mostrando com
esse ato toda independência e justiça. 162

Ao que parece, Cesário Mendes ficou alguns meses retidos na delegacia local. No
entanto, ele não foi o único a utilizar-se do incitamento visando a libertação do cativo.
Segundo Walter Fraga, panfletos assinados por abolicionistas de São Félix e Cachoeira
chegaram a ser distribuídos nas senzalas dos engenhos da região, incitando os escravos às
fugas, o que levava os senhores de engenho ficarem atemorizados diante da possibilidade de
perderem suas fontes geradoras de riquezas e, simultaneamente, arruinarem-se. 163
Além do incitamento, a imprensa escrita foi um espaço privilegiado na luta pela
emancipação escrava na Bahia. Os jornais foram as principais vias de propaganda e denúncia
dos abusos sofridos por abolicionistas. A esta importância deve-se associar o fato de que os
periódicos eram importantes veículos de comunicação de massa, tendo em vista que atingia
um maior número de pessoas, embora a prática da leitura fosse um privilégio de poucos na
164
sociedade oitocentista. Apesar de muitos não lerem, não ficavam totalmente alheios aos

161
Em março de 1885 diversos senhores da freguesia de Muritiba, comarca de Cachoeira, enviaram um abaixo-
assinado, com 77 assinaturas, para o Presidente da Província onde solicitavam providências quanto as ações de
Cesário Mendes e seus companheiros, acusando-os de “seduzir os escravos alheios para acoitá-los
escandalosamente para firmarem quilombos no centro das cidades e até pregarem a insurreição (...)”. (grifo no
original) APEB, Seção Colonial e Provincial – Presidência da Província, maço 2897 (1873-1887).
162
ASMPAC – Relatório do Conselho da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos de 1886 a 1887; de
1887 a 1888. (Documento no 57)
163
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 114. De acordo com Célia Maria Marinho, o “incitamento de
escravos por elementos de fora das fazendas” tornou-se cada vez mais freqüente na década de 1880 devido a
propagação da campanha abolicionista no sudeste, o que gerou um clima de “horror” nas fazendas da região.
Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século
XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 201.
164
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 55.

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assuntos veiculados nos jornais, isto porque a leitura em voz alta era prática e estilo comum
nesse período. 165
A Província da Bahia da segunda metade do século XIX não era alfabetizada.
Grande maioria da população baiana não sabia ler, podendo chegar a um total de 90% dos
indivíduos.166 Essa questão torna imperativo nosso interesse em saber o total de alfabetizados
em Cachoeira de finais do século XIX. Afinal, é fundamental saber a que público leitor se
dirigia o discurso de O Asteróide que, por sua vez, pode revelar os projetos políticos e de
futuro traçados pelo jornal. No entanto, não podemos perder de vista a possibilidade de que
muitos escravos ficaram informados do conteúdo impresso mediante a leitura em conjunto,
em voz alta ou mesmo ao ouvirem pessoas falar.
Nesse debate, não há como desprezar os objetivos políticos que norteavam toda
folha noticiosa, na medida em que atuavam como formadores de opinião. No interesse em
orientar o leitor/ouvinte para a adoção de alguns pontos de vistas específicos, os discursos
jornalísticos apresentam-se como “verdadeiros” e inquestionáveis. Segundo Meire Reis, “o
jornal é uma fonte produzida com o objetivo explícito de informar e implícito de transmitir
167
mensagens intencionais”. Desse modo, ao informar o ocorrido, a imprensa o constrói.
Portanto, ao propor um estudo da imprensa abolicionista procuro entendê-la com agente que
influencia e também é influenciada pela sociedade, que polemiza, cria conflitos. Embora
procure posicionar-se de modo imparcial, a imprensa demonstra um evidente caráter parcial
na medida em que institui normas e procura formar opiniões da sociedade.
O periódico O Asteróide era impresso na tipografia do Sr. Olympio Pereira da
Silva que também era um dos entregadores. Possuindo quatro páginas, ele tinha como
proposta duas publicações semanais. Sua circulação se daria nas terças e quintas-feiras.
Contudo, a análise dos diferentes números nos mostrou uma variação de dias para sua
veiculação. Isso pode ser atribuído ao calor da notícia, antecipando ou retardando a
publicação de determinado número ou mesmo a ausência de recursos financeiros para a
impressão haja vista que em muitos momentos do texto o leitor se depara com constantes
apelos da equipe jornalística solicitando aos assinantes o pagamento da folha noticiosa. 168
Além da possibilidade de comprar o jornal de forma avulsa, no valor de 60 réis, o
leitor poderia assinar as folhas de forma mensal ou anual. Para aqueles que optassem pela

165
REIS, Meire Lúcia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana, 1888 – 1937,
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2000. p. 8.
166
Idem, p. 7.
167
Ibidem, p. 9.
168
De acordo com Schwarcz, as assinaturas podiam representar a sobrevivência ou não de determinado jornal.
Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 16.

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assinatura mensal, o valor estava fixado em 500 réis, já os que preferiam a forma anual
deveriam dispor de 5$000 réis. Em relação aos anúncios, o valor para aqueles que pretendiam
publicá-los era diferenciado. Assinantes desembolsariam 40 réis, enquanto os demais
pagariam a quantia de 60 réis. O jornal ainda abria espaços para aqueles que desejassem
publicar artigos ou correspondências. Porém, estabelecia alguns critérios como “não
contiverem ofensas a moral pública, ao decoro familiar, o que não forem de encontro à idéia
abolicionista (...)”. 169
É interessante refletir sobre o espaço dedicado à prática da publicidade e,
portanto, venda de produtos no interior dos jornais. Pensando em periódicos do século XIX,
Lilia Schwarcz entende essa prática como determinante uma vez que a prosperidade de jornais
170
estava diretamente ligada à quantidade de anúncios editados em suas páginas. Assim, os
anúncios figuram como importante recurso financeiro para a manutenção de jornais tendo em
vista que os custos com a tipografia, tintas, papel, entregadores, entre outros, eram
relativamente onerosos.
Em O Asteróide nota-se que a seção de anúncios foi adquirindo maiores espaços à
medida que o jornal foi se consolidando. A princípio, meio que timidamente, os anúncios não
chegavam a ocupar nem uma página do periódico. No decorrer das publicações eles passaram
a preencher duas páginas e, por vezes, chegaram a ocupar espaços na terceira. Esse aumento
progressivo de anúncios pode ser um indicativo de uma maior adesão à idéia abolicionista e,
também, que o jornal era lido por muitas pessoas. Porém muitas outras indagações podem ser
feitas a partir dessa primeira constatação como: quem anunciava no periódico? O que se
anunciava? A que setor social era dirigido os diversos anúncios editados? Questões
importantes para chegarmos ao lugar social ocupado pelo jornal no movimento abolicionista.
Em relação aos aspectos comerciais, acreditamos que esse não era o fim único de
O Asteróide. É evidente que para se manter era preciso contar com ajuda de parceiros – os
assinantes, compradores avulsos. No entanto, parece evidente que a linha editorial desse
veículo atribuía maior importância em noticiar questões vitais do momento, incluindo-se mais
na idéia de órgão de propaganda, deixando para segundo plano o interesse comercial, ou seja,
o desejo em auferir lucros financeiros. Isso parece se evidenciar nas constantes dificuldades
pelas quais passava o jornal, recorrendo constantemente à compreensão dos assinantes
inadimplentes na quitação de seus débitos.

169
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)
170
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 66.

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A recepção do conteúdo impresso pela população local é um outro dado relevante


para a compreensão do modo como atuou O Asteróide. Para entendermos melhor este
pressuposto precisamos lançar um olhar atento nas diferentes seções desse veículo. A
principio, nota-se que além de propagar o movimento abolicionista a nível regional e nacional
e denunciar os “abusos” por autoridades locais, pode-se identificar variações nas
representações do negro, ora apresentado como insubmisso, quando optava pelas fugas, ora
mostrado acorrentado, vítima do cativeiro.
Estudos recentes demonstram que houve um grande apoio popular à emancipação
171
escrava no Recôncavo. De acordo com Walter Fraga esse atuou decisivamente nos rumos
tomados pela campanha abolicionista nessa localidade. No entanto, a questão que quero
perseguir é a extensão do apoio popular tão presente no discurso de O Asteróide. Em uma das
matérias o articulista explicita essa prerrogativa da seguinte forma: Surgiu o dia 23 de
setembro, e com ele o ‘Asteróide’. Acolhido pela máxima parte dos habitantes desta cidade,
ou por outra, pelo povo geralmente (...). 172 (grifo meu)
Em diversos momentos, a linguagem adotada pelo jornal circunscreve-se no
sentido de exaltar o “povo” cachoeirano. Parece evidente que, ao exaltar os atos da população
citadina, o articulista pretendia ganhar o apoio da população local, além de estimulá-lo na
participação pelo fim do escravismo. Ao direcionar o discurso para os escravocratas, o
articulista deixa evidente que o “povo” não coadunava com a idéia escravista e para tanto não
admitiria a “caçada humana” que fazia os capitães-do-mato e senhores, na Cachoeira. Ao que
parece, a lógica da narrativa subscreve-se no fato de que, enaltecendo a postura dos
cachoeiranos, impulsionava-o a participar ativamente do movimento abolicionista.
Os jornalistas ligados ao O Asteróide produziram discursos minuciosos, revelando
um acentuado caráter sensacionalista que orientava a linguagem impressa, em geral,
impregnada de emoção. Aos senhores e autoridades policiais eram dirigidos epítetos nada
lisonjeiros como “déspotas”, “irracionais”, “tiranos” entre outros. Ao adotar essa postura, o
periódico mostrava que possuía objetivos definidos ao envolver-se na campanha pela
emancipação escrava. Uma idéia que perpassa diversas matérias é a exaltação do
envolvimento popular nos conflitos ocorridos no perímetro da urbe. Com freqüência evocava-
se o sentimento patriótico dos “filhos do Paraguaçu” que, a semelhança da decisiva

171
Ver BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: uma história política, 1870-1888. Salvador CEB, 2003;
MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889).
Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002.
172
Jornal O Asteróide. 23 de set. de 1887 (nº. 1)

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participação nos conflitos pela independência da Bahia, em 1823, deveriam estar


comprometidos na causa pela abolição.
Aqui vale assinalar a força da palavra impressa. Pensar em jornais é muito mais
que entendê-lo como circulação de palavras impressas. É pensar em circulação de idéias e
valores numa sociedade marcada por interesses antagônicos, como o era a sociedade
oitocentista. Assim, nesse debate sobre a atuação de periódicos deve-se levar em consideração
a influência que exerciam sobre as pessoas. Afinal, além de narrar os acontecimentos, os
jornais devem ser entendidos como formadores de opinião. Valores impressos em papel e que
deveriam ter conotação no viver diário dos leitores/ouvintes.
Quase tudo era motivo para virar notícia em O Asteróide. Com freqüência,
denunciava-se a procura de escravos fugidos, por senhores e capitães-do-mato; os maus tratos
em que eram submetidos os cativos por seus senhores, em aparente desejo de colocar a
opinião publica contra o cativeiro. Por outro lado, noticiava-se com grande entusiasmo as
libertações que aconteciam com grande freqüência no sudeste, apresentadas com o objetivo de
forjar atitudes e comportamentos que servissem de exemplo a ser seguido; as cartas de
alforrias “concedidas” pelos senhores cachoeiranos e de cidades circunvizinhas; possíveis
intenções da destruição de tipografias. Enfim, cenas da luta cotidiana contra a escravidão.

Antecipando-Se À Lei Da Abolição: “O Único Recurso É Libertar Os Escravos E


Abraçá-Los Para Não Deixarem Quem Os Criou”. 173

Embora utilizasse uma linguagem, em certos momentos, bastante agressiva, O


Asteróide noticiava as libertações como dádiva dos senhores a cativos que, em geral, figuram
como receptores agradecidos. Sob a epígrafe “Cachoeira liberta-se”, a seção de liberdades
ganhou maiores espaços à medida que avançava os primeiros meses de 1888 e o fim da
instituição escravista parecia inevitável. Uma possível interpretação desse episódio pode ser
atribuída ao temor dos senhores de perderem suas “propriedades” humanas, seja mediante
ações do governo em aprovar leis que sinalizavam para o fim do escravismo, seja pela atuação
do movimento abolicionista que ganhava fôlego progressivamente, tornando cada vez mais
evidente a abolição da escravatura.

173
Jornal O Asteróide. 4 de nov. de 1887 (nº. 12) A expectativa de muitos senhores ao “conceder” alforrias
condicionais ou incondicionais, quase sempre, tinha como meta ganhar a eterna gratidão dos cativos, segundo
Sidney Chalhoub. No entanto, quando o ex-escravo não correspondia a essa expectativa, o proprietário poderia
revogar a alforria alegando ingratidão, amparado na lei. Ver CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 134

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O jornal O Asteróide noticiava as grandes libertações com elevado entusiasmo,


tornando-se freqüentes à proporção que chegava o mês de maio, dando mostras do avanço da
propaganda abolicionista, das ações escravas e das notícias que chegavam do Rio de Janeiro
de que o projeto de libertação já estava em curso na Câmara. Na seção de liberdades
veicularam-se ações de inúmeros senhores em concederem alforrias a seus escravos, ora com
a obrigação de prestação de serviços com data previamente estabelecida, ora de forma
incondicional.
Nota-se um predomínio das alforrias condicionais onde o senhor libertava seu
cativo com prestação de serviço por tempo previamente determinado. É o caso noticiado em
28 de dezembro de 1887, em que o tenente coronel Antonio Olympio Mascarenhas enviou à
redação do periódico uma cópia da carta de alforria, de 20 de dezembro de 1887, onde
libertava os escravos Gabriel, Anselmo, Francisco, Thomaz, João e Pedro. No entanto, os ex-
cativos ainda esperariam algum tempo para celebrar a efetiva emancipação. Isto porque, a
liberdade era seguida de uma cláusula de prestação de serviços, ou seja, eles deveriam
trabalhar na propriedade do coronel até 31 de dezembro de 1889. 174
As grandes libertações aparecem nesse momento como obrigação dos senhores
que desejassem manter os ex-escravos em obediência, gratos e submissos à sua autoridade,
acomodando-os nos seus ambientes de trabalho. Um exemplo dessa preocupação está ligado
ao bom andamento da produção agrícola. Em matéria veiculada no dia 6 de abril de 1888, dias
antes da abolição, o articulista noticiou o ato de um senhor em libertar 300 escravos e
ingênuos, contratando-os como trabalhadores livres em seguida. De acordo como autor da
nota, este era um excelente meio de promover “a paz e a segurança que deve existir nos
centros agrícolas”. 175
A idéia da gratidão do cativo ante a “benesse” do seu proprietário fica ainda mais
evidente nas palavras enfáticas do redator quando parabeniza certo capitão por conceder
liberdade aos seus escravos, com prestação de serviços por dois anos: Estes homens que
acabam de sob uma condição gozarem de sua liberdade não poderão jamais odiar ao seu
benfeitor porque além dos dias santificados trabalharão para si nas segundas e terças-feiras.
176

174
Jornal O Asteróide. 28 de dez. de 1887 (nº. 27)
175
Jornal O Asteróide. 6 de abril de 1888 (nº. 53)
176
Jornal O Asteróide. 6 de dez. de 1887 (nº. 21)

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Um outro caso que merece observação aqui aconteceu quase às vésperas da


abolição. Numa quarta-feira do mês de abril, após noticiar alforrias em massa, o redator
expressa que

(...) o coronel Themístocles ofereceu um lauto jantar a seus escravizados, no


qual houveram muitos brindes, notando-se trez dos libertos, que pronunciaram
frases de gratidão ao seu benfeitor, prometendo em nome de seus
companheiros nunca abandonar aquela casa. 177

Não obstante o envolvimento do Recôncavo no debate a respeito da questão


escrava, muitos senhores decidiram por permanecer com seus escravos até os últimos
momentos mesmo sabendo que a extinção do escravismo parecia ser inevitável num futuro
178
próximo. Entretanto, a atitude do coronel Themístocles insere-se no contexto das
libertações em massa que ocorreram com grande freqüência nos momentos finais da década
de 1880. Na tentativa de minimizar o “impacto político” que seria produzido pela lei da
abolição total da escravatura e “prender” seus escravos pelo sentimento de gratidão, muitos
senhores libertaram os seus escravos, promovendo grandes comemorações.
O mais curioso no episódio acima relatado foi o que aconteceu durante a
comemoração. Segundo o autor da nota, três libertos pediram a palavra, no auge da festa,
assegurando ao seu ex-senhor suas permanências e de seus companheiros de lida nas
propriedades do coronel. Esse fato nos conduz a duas possíveis interpretações: de um lado
está o senhor, preocupado com a manutenção de seus bens e, diante da futura abolição,
propõe-se estrategicamente libertar seus cativos; do outro, os ex-escravos que, contrariando o
pensamento de que agiam ingenuamente, optaram estrategicamente em permanecerem com o
coronel. Pode ser que pesou na decisão dos libertos o fato de estarem diante de um destino
incerto, daí melhor seria continuar no território do ex-senhor, assegurando e tentando ampliar
direitos adquiridos.
Ao que sugere as diversas matérias, ao utiliza-se de uma linguagem que visava
promover e/ou despertar o sentimentalismo dos leitores no tocante às libertações concedidas

177
Jornal O Asteróide. 18 de abril de 1888 (nº. 56)
178
Wlamyra Albuquerque notou que muitos escravocratas baianos esperavam indenizações ou mesmo preservar
relações escravistas ao negarem libertar seus cativos na iminência do maio de 1888. Ver: ALBUQUERQUE,
Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880 – 1890). Tese
de doutorado. Campinas, SP, 2004. p. 99; Ver também MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores,
polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889). Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2002. p. 15; Hebe
Mattos constatou que em São Paulo não foram poucos os senhores que se negaram a alforriar seus escravos, na
esperança de futura indenização. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 231.

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pelos senhores, a imprensa abolicionista não poupou elogios às alforrias espontâneas,


179
crescentes a partir da década de 1880. Nesse momento o ato da libertação parece assumir
um novo caráter, qual seja o de garantir a continuidade do paternalismo senhorial, atentando
180
para a lógica de “ceder um pouco para não perder tudo”. Era preferível aderir ao
abolicionismo, fato quase consumado, e manter os antigos escravos do que perdê-los por
conta das fugas. Contudo, em diversos momentos os escravocratas não lograram êxito nas
tentativas de manterem seus escravos submetidos ao paternalismo, na perspectiva dos
interesses senhoriais, após receberem suas alforrias. O “abolicionismo de última hora” dos
senhores não foi capaz de impedir que inúmeros cativos abandonassem o domínio senhorial,
provocando desconforto para muitos senhores de engenhos do Recôncavo baiano. 181
Essa postura do jornal leva-nos para uma outra questão que se refere ao tipo de
abolicionismo defendido pela equipe de O Asteróide. A crescente expectativa para a abolição
do escravismo parece ter gerado na equipe jornalística uma dualidade quanto ao meio ideal
para alcançá-la, ora adotando uma postura moderada, ora sugerindo um caráter radical. Uma
nota de 3 de abril de 1888 aponta para esse duplo posicionamento:

(...) Exercendo o nobre direito de defesa própria, eles, as vítimas da barbárie,


tem abandonado os seus algozes em busca de suas liberdades e consta-nos
que nestes 3 dias últimos já sobe a 100 o número de retirantes (...)
Muito bem, é digno de louvor aqueles que reagem, com toda a prudência e
moralidade, contra seus algozes. 182 (grifo meu)

Nas falas do articulista, a princípio, fica evidente a aprovação das fugas escravas.
Logo, essa postura pode apontar, numa primeira impressão, que o periódico assumiu um
abolicionismo de caráter radical, o que fica ratificado em outras matérias onde predomina a
idéia de incitamento escravo. Contudo, a análise atenta da nota acima transcrita leva-nos a
acreditar que ele possuía uma postura mais voltada para uma vertente moderada. Ou seja, a
proposta dos envolvidos na luta pela emancipação escrava tinha como objetivo uma mudança
que não produzisse transtornos à ordem estabelecida. Portanto, não pretendiam eles
“desorganizar” o trabalho nas fazendas. A transformação deveria ocorrer, mas sem atrapalhar,
sobretudo, os grandes centros agrícolas da região.

179
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. p. 461.
180
Idem, p. 442.
181
FRAGA FILHO, Walter. Op. cit. p. 118.
182
Jornal O Asteróide. 3 de abril de 1888 (nº. 53)

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A postura moderada do jornal fica explicita na parte final da nota. Após comentar
a retirada de alguns cativos do ambiente de trabalho, o articulista expressa ser “digno de
louvor aqueles que reagem, com toda a prudência e moralidade, contra seus algozes”. Na
ótica do jornalista, os escravos podiam até reagir à realidade do cativeiro, desde que fossem
observados alguns princípios. Mesmo apoiando as fugas da população escrava, o jornal
recomendava “prudência e moralidade”.
Diferente de jornais paulistas ligados ao grupo de caifazes que defendiam um
abolicionismo radical, fora dos tramites legais, a leitura de O Asteróide sugere que esta folha
noticiosa adotou uma postura legal na promoção da abolição do cativo. Embora em muitos
momentos os editorias, matérias e artigos fossem constantemente inflamados, o caráter
conciliador é evidente em suas páginas. Nesse sentido, recorre-se constantemente à legislação
na intenção de demonstrar que sua posição era orientada dentro dos limites impostos pela lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na década de 1880 a campanha abolicionista, que vinha caminhando lentamente


desde décadas anteriores, ganhou impulso e parte da elite letrada adotou a libertação escrava
como bandeira de luta ao mesmo tempo em que procurou mobilizar a opinião pública a favor
da causa emancipacionista. Isso promoveu maiores perspectivas de liberdade para o cativo,
uma vez que podia-se contar com maior apoio populacional. Este poderia vir tanto por meio
da legalidade – através das ações de liberdade, contando com a ajuda de advogados e juristas
simpatizantes ao abolicionismo – quanto mediante a colaboração de populares insatisfeitos
com ações de senhores e capitães do mato, em situações de fugas, por exemplo.
A imprensa abolicionista envolveu-se diretamente no debate sobre a extinção do
sistema escravista. Em Cachoeira, o jornal O Asteróide destacou-se como importante espaço
de luta pela emancipação escrava ao mesmo tempo em que teve papel fundamental no
processo de divulgação das mazelas da escravidão. No discurso do articulista, a abolição seria
uma “missão” que eles deveriam empreender. Desse modo, busco respostas e significações a
questões que me possibilitarão chegar ao lugar social ocupado pelo jornal no movimento
abolicionista. Por exemplo, procuro perseguir os projetos políticos defendidos pelo periódico;
que reformas queriam os abolicionistas empreender na sociedade brasileira com o fim da
escravidão? A que corrente abolicionista se alinhava o jornal?
Questão igualmente relevante nesse debate refere-se ao tratamento dispensado
pela imprensa à festa da abolição. É certo que nem todos festejaram. Os senhores que

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permaneceram com seus escravos até os últimos momentos certamente temeram diante de um
possível abandono em massa dos ex-escravos. No entanto, segundo noticiou O Asteróide, a
abolição foi intensamente celebrada em Cachoeira e São Félix. Durante mais de uma semana
a população desses municípios reuniu-se em clubes, ruas e praças para comemorar o fim do
sistema escravista. Acreditamos que uma análise mais especifica poderá mostrar como os
diferentes setores sociais participaram das comemorações pela abolição além de revelar
“retratos” das relações sociais no pós-abolição.
Enfim, entendemos que as matérias, anúncios e artigos veiculados n’O Asteróide
expressam imagens, embora carregadas de subjetividade, do cotidiano escravista numa
localidade com intensa predominância de escravos. Desse modo, uma reflexão sobre a
atuação da referida folha abolicionista poderá evidenciar práticas cotidianas que, por sua vez,
me fornecerão diversos caminhos para se pensar como a questão escrava era vivida, noticiada
e lida naquela parte do Recôncavo baiano, nos momentos finais do escravismo.

ARQUIVOS E FONTES

 Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)


- Jornal O Asteróide – 23 de set. de 1887 a 02 de junho de 1888 - Seção de
microfilmagem.
- Escravos - Seção Colonial e Provincial – Presidência da Província, maço 2897 (1873-
1887).

 Arquivo da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos (ASMPAC)


- Relatório do Conselho da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos de 1886 a
1887; de 1887 a 1888. (Documento no 57)
- Atas do Conselho Administrativo da Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos,
1874 a 1888.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e


cidadania negra (Bahia, 1880 – 1890). Tese de doutorado. Campinas, SP, 2004.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário
das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: uma história política, 1870–1888. Salvador,
CEB, 2003.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista - Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da


escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.

CRUZ, Heloisa de Farias. São Paulo em tinta e papel: periodismo e vida urbana – 1890-
1915. São Paulo. Educ, 2000. p. 20.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na


Bahia (1870-1910). Campinas, SP:Editora da UNICAMP, 2006.

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MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da


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MATA, Iacy Maia. “Os treze de maio”: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-
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MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no parlamento e na


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NASCIMENTO, Luiz Cláudio. “Terra de macumbeiros”: redes de sociabilidades


africanas na formação do candomblé jeje-nagô em Cachoeira e São Félix - Bahia,
Salvador, Bahia: Dis. Mest. CEAO, 2007.

REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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baiana, 1888 – 1937. Salvador, Bahia: Dis. Mest, UFBA, 2000.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em


São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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“QUAL ABOLIÇÃO QUEREMOS?” : DEBATES NA IMPRENSA


SERGIPANA SOBRE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA (DÉCADA DE
1880)

Josimari Viturino Santos - UFS


josinhaviturino@yahoo.com.br

No Brasil a abolição da escravatura foi tema central durante toda a década de 80 do século
XIX, e apesar de ser discutida com veemência por diversos setores da sociedade havia
divergências sobre a forma como essa deveria ser feita. Com isso, o lema que prevaleceu na
maioria dos discursos (salvo algumas exceções) foi o de ordem e cautela, ou seja, a abolição
não poderia acontecer de “uma hora para outra,” primeiro seria necessário preparar o país para
os “novos tempos”, pois sem isso as conseqüências seriam graves. Assim sendo, o objetivo
desse trabalho é apresentar os debates ocorridos na imprensa sergipana de cunho abolicionista
durante a década de 1880 sobre a emancipação dos escravos destacando, sobretudo, através da
analise das diversas seções dos periódicos a idéia de abolição defendida por esses. Para tanto,
foram analisadas as folhas O Libertador de Aracaju e O Horizonte de Laranjeiras onde
percebemos no decorrer da pesquisa “opiniões” divergentes sobre o tema em questão, pois
enquanto a primeira defendia uma abolição imediata a outra folha era mais cautelosa
defendendo a emancipação de forma gradual.

Palavras-chave: Debates, Abolição, Imprensa.

A escravidão no Brasil perdurou por mais de três séculos, justificada pela religião
e sancionada pelo Estado essa não foi “questionada” pelo menos de maneira mais enérgica até
o século XVIII.
Contudo, é na década de 80 do século XIX que a campanha a favor da
emancipação do escravo é intensificada com a participação de vários “setores” da sociedade e
tendo a imprensa como uma “grande aliada’ para a divulgação do “ideário abolicionista”.
Com isso, até se chegar ao 13 de maio a abolição passa a ser tema recorrente das
discussões travadas tanto pelos seus “defensores” como para os que eram contra,provocando
algumas vezes divergências entre esses grupos .

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Diante do que foi exposto, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar
como se deu os debates em periódicos abolicionistas-antiescravistas sobre o processo de
“extinção do cativeiro” na Província de Sergipe durante o período de 1882-1886.
Através da analise dos discursos contidos nas diversas seções desses periódicos
apresentaremos, sobretudo a “idéia da abolição” defendida por esses, ou melhor, “o que se
falou sobre a abolição” durante o período, para tanto utilizaremos como fontes principais os
jornais O Libertador (1882-1884) de Aracaju e O Horizonte (1885-1886) de Laranjeiras.
Consideramos essa discussão pertinente já que em maio desse ano foi
comemorado 120 anos da promulgação da lei Áurea, através da reconstrução do “imaginário”
podemos apreender um pouco das inquietações que o tema provocou na época.

1-A Imprensa Sergipana e Abolição da Escravatura

No que diz respeito á questão do elemento servil a grande parte dos periódicos
que circularam na Província de Sergipe durante o século XIX era omissa ou simplesmente
não condenava a escravidão já que na maioria das vezes esses eram propriedades de
escravocratas.
Porém, apesar de ser a minoria podemos destacar na Província de Sergipe como
propagadores das idéias antiescravistas, em Aracaju, os jornais Luz Matinal (1882)
propriedade da Sociedade União ás letras, O Descrido (1882) e O Libertador (1882-1884)
que pertenciam a Francisco José Alves.
Já em Laranjeiras, temos as folhas O Horizonte (1885-1886) propriedade do
negociante Francisco C.M.Polliciano e O Larangeirense (1887-1888) de Joaquim Anastácio
de Meneses.
O próximo item irá tratar sobre a idéia de abolição defendida pelo abolicionismo
brasileiro de modo geral para em seguida demonstrar como se deu esse debate na imprensa
sergipana abolicionista-antiescravista ao longo de 1882 a 1886 período de circulação dos
periódicos O Libertador e O Horizonte.

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2- Uma Abolição á Brasileira...

A partir da década de 1880 com a intensificação da campanha a favor da


emancipação dos escravos a abolição se torna tema principal dos debates ocorridos pelo país
tanto na tribuna como na imprensa.
Como nos diz Lilia Schwarcz (2007),

O assunto era de fato central, sendo tratado de duas maneiras, em primeiro


lugar era preciso afirmar a ordem e o controle por parte das elites brancas
diante da libertação iminente dos escravos e em segundo lugar estabelecia-
se a necessária submissão e lealdade dos cativos que começavam a ganhar
liberdade.

E ainda,

Apesar das diferenças que dividiam as próprias elites brancas, a abolição


surge como um processo de uma só mão, isto é, conduzido por brancos
“benfeitores”, cujo papel é trazer os negros para a civilização, com ordem e
muita cautela era preciso “preparar o terreno para a libertação.

Com isso, ordem e cautela passa a ser era o lema da abolição no Brasil, tanto
para aqueles que eram a favor dessa (salvo algumas exceções) como para os que eram
contra.
De maneira geral os abolicionistas brasileiros tendiam a “combinar” a luta a favor
da abolição com o respeito ás leis e sem a participação dos escravos, pelo menos é o que
sugere o famoso abolicionista Joaquim Nabuco,

A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos,
externos e internos, de todas as outras. È assim, no Parlamento e não em
fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se
há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. (O Abolicionismo, p.44 2003)

E afirma Sydney Challoub (1999) “toda a iniciativa, devia caber aos


abolicionistas, aos iluminados ou esclarecidos que sabiam exatamente o que era melhor
para os cativos, e que tinham mesmo, “o mandato da raça negra”.
Em suma, Célia Azevedo (2004) assinala como projeto abolicionista os seguintes
argumentos:

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Em primeiro lugar a escravidão não tem razão de ser porque não se enquadra
na fase atual de progresso e civilização (por isso é preciso aboli-la e de
forma imediata) e em segundo lugar é necessário garantir a ordem, sem a
qual não há progresso (abolição com ordem quer dizer com a introdução dos
elementos do progresso, ou seja, os imigrantes. E por fim sem a escravidão,
as famílias ficarão livres dos negros e os costumes até então pervertidos por
eles encontrarão o caminho ordeiro.

2.1- Já na Província de Sergipe. (1882-1886)

[..] A abolição da escravatura neste paiz só se fará depois de derramar se


muito sangue e se isso tem de acontecer daqui a seis ou oito annos,aconteça
logo porque ao menos os brazileiros que sobreviverem á catastrophe não
lamentarão mais como lamentamos hoje scenas de canibalismo.(O
Libertador,14 de Dezembro de 1882)

Essa citação é o reflexo do clima da época para muitos a abolição era algo
inevitável e o medo do conflito era crescente, porém nem todos pensavam dessa forma, pois
apesar da escravidão está dando os seus “últimos suspiros” a economia da Província ainda
era muito dependente do trabalho escravo.
Ao longo de nossa analise percebemos que essas posições divergentes eram
comuns até para aqueles que se diziam “defensores dos escravos” para O Libertador, a
abolição era algo inevitável já O Horizonte defendia uma abolição lenta e gradual.
Deste modo, nós próximos tópicos iremos apresentar as concepções de abolição
que são apresentadas nós jornais O Libertador e O Horizonte.

2.1.1- O Inevitável:

O Libertador Periódico Crítico e Litterario (Aracaju-1882-1884): Propriedade


de Francisco José Alves considerado o maior abolicionista da Província de Sergipe,
substituiu O Descrido em 19 de outubro de 1882.
Era publicado duas vezes por mês, possuía quatro páginas e não aceitava em suas
colunas anúncios sobre escravos fugidos. E tinha como objetivo defender as leis
emancipacionistas de 1830(Proibição do Tráfico de Escravos) e a de 28 de setembro de
1871(Ventre Livre).
Para O Libertador (1883) a abolição deveria ser feita o mais rápido possível,
pois, [...] Ainda mesmo que seja um mal presentemente a extincção da escravatura, como

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dizem alguns dos escravocratas, o que contestamos; Ella deve fazer-se sem perda do tempo,
porque esse mal de hoje será immemsamente compensado pelo bem de amanhã.
E para esse,

O Combustível está preparado e para fazer explosão bastará a morte de mais


alguns escravos e de alguns abolicionistas. Ao governo pertence evitar o
choque, e só o pode fazer decretando a abolição da escravatura existente por
meio de uma indeminização módica, calculada pelas idades dos escravos que
em vista das matriculas, não podem ser alteradas. (O Libertador, 8 de Junho
de 1883).

Além disso, esse periódico trabalha a abolição através da divulgação da fundação


de sociedades abolicionistas, de festas que tinham como objetivo arrecadar fundos para a
libertação de escravos ou serviam para a entrega de cartas alforrias etc.

Festa Abolicionista- No dia 1’ de janeiro o nosso amigo, acadêmico Álvaro


de Alencar e Sr.Tenente Coronel Tristão de Alencar, fundaram em
Mecejanu duas sociedades abolicionistas [..] Durante a grande festa
libertarão- se 11 escravos sem condição alguma [..] (O Libertador, 24 de
fevereiro de 1883).

As “Festas abolicionistas” são sem dúvida o destaque dessa folha, pois além de
mostrar a interação com abolicionistas de outras províncias elas ainda servem como
argumento para essa demonstrar o quanto a escravidão está com “os dias contados” e que a
abolição é algo inevitável.

2.1.2- O Gradual:

O Horizonte Órgão Imparcial (Laranjeiras-1885-1886): Propriedade de Francisco


C.M.Polliciano, negociante, possuía quatro páginas e era publicado semanalmente.
Para Terezinha Oliva (1991) O Horizonte era um órgão de divulgação de novas
idéias como aquelas sobre educação popular e sobre a implantação do trabalho livre.
Essa folha defendia uma abolição lenta e gradual, ou seja, “sem maiores danos”,
já que, “Hoje querem, a todo transe, sem medirem as conseqüências funestas de que vai ser
victima o paiz, a abolição, sem terem aplainado o terreno, preparado o povo para soffrer de
chofre esta metamorphose”. (29 de Julho de 1885)

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Nessa também encontramos notícias sobre entrega de alforrias concedidas pelos


senhores aos seus escravos bem como observamos a interação com abolicionistas de outras
províncias.
Além disso, há uma crítica veemente ao governo sobre a forma como “a
emancipação estava sendo construída”, destacando algumas vezes a inutilidade de
determinadas leis ou criticando a forma como elas estavam sendo “administradas”.
Já que para O Horizonte (1885), O melhor meio de se acabar com a escravidão
não é formular projectos absurdos e combinações legislativas engenhosas. O melhor meio de
acabal-a é cerceal-a, pol – a em estado de sitio, estabelecer com ella a concurrencia, tornal-a
inútil e depois nociva e impossível [..].
No entanto, quando falamos em abolição além de ser discutido qual o momento
mais propício para que essa aconteça outro aspecto importante é sobre como ficaria o ex-
escravo e a lavoura de maneira geral.
Quais as propostas que os abolicionistas sergipanos tinham para o pós-abolição?
Como ficaria a situação dos libertos?
Essas são as questões que iremos responder no próximo item, pois já que
apresentamos a idéia de abolição divulgadas nos periódicos ficará mais “fácil” responder a
esses questionamentos.

3-A Imprensa Abolicionista e as Propostas para a Reorganização do Trabalho

Em Sergipe as discussões acerca do processo de substituição do trabalho e porque


não dizer sobre o futuro do “ex-escravo” já que esse na maioria das vezes tem inicio com a
criação do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura em 20 de janeiro de 1860 pelo
Imperador D. Pedro II.
È também em 1860 que os debates sobre o emprego de imigrantes na lavoura
sergipana se intensificam onde é aprovado um projeto de colonização que pretendia criar
cinco colônias (duas nacionais e três estrangeiras).
Esse debate continuou pela década de 1880, podemos disser que era até freqüente
nos jornais que estão sendo analisados onde mais uma vez percebemos divergências as quais
vamos apresentar a seguir.

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3.1-Nacionais x Estrangeiros:

De inicio, gostaríamos de salientar as posturas dos periódicos com relação ao


tema, O Libertador defendia a “transição” com o emprego dos trabalhadores nacionais, isto
é, ex-escravos e/ou homens livres, para a folha O Horizonte a imigração seria a “salvação da
lavoura” da Província de Sergipe.
Entretanto, O Libertador além de defender a substituição do trabalho escravo
com a colocação dos trabalhadores nacionais e não de estrangeiros, [...] Para a lavoura das
províncias do norte progredir não precisamos de colonos estrangeiros; temos um pessoal
mais que sufficiente precisamos é de regulamento para o trabalho e divisão d’elle.
Essa folha sugere para o pós - abolição a permanência dos ex-escravos nas
fazendas desde que seja feito pelo sistema de parcerias com a divisão dos lucros ou com o
pagamento diário ou a distribuição de terras por parte do governo.
N’ O Libertador de 19 de janeiro de 1883, podemos confirmar o que foi exposto
anteriormente, [...] Dê o governo brazileiro aos nacionaes o que dá aos estrangeiros: terras
baratas e a longos prazos, que elles não irão plantar n’esses terrenos,hortaliças que nada
rendem para o estado ,e sim [ilegível] cana,café,algodão,milho,[ilegível].
Para O Horizonte a imigração seria “a melhor saída” para a resolução do
“problema da lavoura” (trabalho escravo) porque além do desenvolvimento da lavoura, traria
outros benefícios como á indústria, ”florescimento das artes”, “pureza da raça” entre outros,
ou seja, a imigração é vista como um elemento “modernizador” não só da lavoura como da
sociedade no geral.
È o que podemos constatar n’ O Horizonte de 22 de Novembro de 1885, -[...]
Precisamos muito de uma convivencia que, alem de purificar-nos, apresente-nos um
panorama de novas idéas, novas theorias, novas leis economicas e uma nova política.
Todavia, estudos comprovam que as expectativas dos “periódicos” nas foram
“atendidas”, já que nos que diz respeito á substituição do trabalho com a introdução dos
“nacionais”, segundo Lenalda Andrade (1991), algumas fontes documentais referentes ao
inicio do século XX mencionam o abandono das propriedades pela maioria dos trabalhadores
após a abolição.

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E no que se refere ao emprego dos imigrantes na lavoura de Sergipe, não passou


de “calorosas discussões”, é o que conclui Passos Subrinho (2000),

Portanto do ponto de vista do suprimento da força de trabalho, a imigração


de estrangeiros pode ser desconsiderada em Sergipe. Entretanto, do ponto
de vista das discussões que provocou, dos argumentos utilizados no ataque
e na defesa aos projetos de imigração, a mesma contribuiu para esclarecer
as dificuldades de “ordenamento do trabalho”, após a abolição da
escravidão.

Por fim, ao fazermos uma analise comparativa entre os discursos dos periódicos,
podemos concluir que enquanto O Libertador tinha como objetivo principal os interesses dos
escravos defendendo uma abolição imediata e se preocupando com o “futuro” desses com o
emprego na lavoura.
O Horizonte até se interessava pela “causa dos escravos”, porém a sua maior
preocupação estava em “defender” a lavoura pelo menos foi o que concluímos com a sua
defesa de uma abolição gradual e o emprego de imigrantes na lavoura para acima de tudo
“purificar a raça”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abolição foi acima de tudo um processo de mudança na “ordem” social, com


isso não era de se estranhar o “medo” que ficava latente nos discursos divulgados pelos
periódicos do período pró-abolição.
Pois, ao mesmo tempo em que se sabia que a abolição era algo “inevitável”, havia
o receio das conseqüências que viriam se essa fosse feita sem um projeto “sério” que
contemplasse todos os envolvidos, ou seja, os senhores e principalmente os próprios escravos.
A ordem e a cautela passam a ser o lema da abolição perdurando até assinatura da lei Áurea.
Diante disso, como era de se esperar, a abolição foi feita de uma forma lenta e
gradual como defendia o jornal O Horizonte, porém ao contrário do que esperava essa folha
pelo menos no caso da Província de Sergipe não houve o emprego de estrangeiros.
E as expectativas d’ O Libertador também não foram atendidas, pois além da
emancipação ter acontecido de forma lenta e essa folha defendia uma abolição imediata, não
houve nenhum tipo de reparo para com aqueles que eram frutos de mais de três séculos de
escravidão, ou seja, os libertos foram abandonados a própria sorte.

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Em resumo, esse foi um trabalho de “reconstituição” do imaginário de pessoas


que viveram em uma época de transição e como já havíamos no referido, acreditamos que
esse seja um momento oportuno, pois ao fazê-la 120 anos depois podemos conhecer um
pouco sobre as inquietações comuns pra época já que a “abolição” poderia acontecer a
qualquer momento.

Fontes Primárias:

Jornais:

O Libertador (1882-1884)

O Horizonte (1885-1886)

Livro:

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo (1ªed.1883). Brasília: Senado Federal Conselho


Editorial. 2003(Edições do Senado Federal, v.7).

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de .Onda Negra,Medo Branco- O Negro no imaginário


das elites Século XIX.São Paulo:Annablume,2004.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade; uma história das últimas décadas da


escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SANTOS, Josimari Viturino. ”Impressões de Cor”: Debates na Imprensa Sergipana


sobre a Abolição da escravatura (Década de 1880). São Cristovão. 2008.76f. Monografia
(Graduação em História). DHI, CECH, UFS.

_____________. Transição em Debate: Analise das Discussões Travadas na Imprensa


Sergipana Acerca da Transição do trabalho (1882-1886). Anais Eletrônicos da IV
Semana de Cultura Afro-Brasileira: Políticas Públicas e Ações Afirmativas. São Cristovão:
Universidade Federal de Sergipe, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, 2007.p.1-10.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos Males da Dádiva: sobre as ambigüidades no processo da


abolição brasileira. IN: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES. Flavio dos Santos.

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Quase Cidadão: Historias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de


Janeiro: Editora FGV, 2007.p.23-54.

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REESTRUTURAÇÃO SOCIAL: O OLHAR “BRANCO” SOBRE O


“PRETO” NA SOCIEDADE SERGIPANA PÓS-ABOLICIONISTA (1885-
1890).

Camila Barreto Santos Avelino -UNEB


camila-avelino@bol.com.br

O presente trabalho busca elucidar a reestruturação social sergipana após a abolição da


escravatura. Objetiva-se de forma panorâmica analisar as particularidades da abolição da
escravatura na sociedade sergipana e a situação dos ex-escravos no pós-abolicionismo no
período que se estende de 1885 a 1890. Neste estudo buscaremos desvendar o modo como os
ex-escravos foram ingressos na nova estrutura social amalgamada entre brancos e negros a
partir da Lei Áurea que os colocou em níveis de igualdade, por meio da análise de suas
particularidades e as posições que os libertos ocuparam nessa nova sociedade. Desse modo,
este trabalho constrói hipóteses para o que acreditamos caracterizar a reestruturação social em
Sergipe após a abolição da escravatura e seus reflexos na sociedade. Cremos que em Sergipe a
situação do ex-escravo no pós-abolicionismo não o beneficiou com a liberdade, pois para
gozar os direitos de serem livres não foi permitido ao liberto uma condição social e
econômica de igualdade, sem recursos e meios para proverem seu sustento e da sua família,
espoliado e excluído da sociedade sergipana os ex-escravos permearam os caminhos da
marginalidade social.

Palavras-chave: Pós-abolição, Sociedade, Marginalidade.

Após a promulgação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, o liberto viu-se,


abruptamente, "proprietário de si mesmo". Passou de propriedade a proprietário numa ordem
social diversa da originária, tendo que comandar seus destinos em busca de uma vida cidadã.
O novo quadro social ao qual os ex-escravos se inseriam ao tornar-se liberto, exigiam-lhes
responsabilidades diferentes e novas. A liberdade foi conferida ao ex-escravo sem qualquer
planejamento quanto ao futuro desse ser, que por toda vida viveu em cativeiro desmuniciado
dos aparatos necessários à sobrevivência em um mundo extremamente complexo em cuja
lógica competitiva não abarcava nem mesmos todos os brancos.
Creditou-se à abolição o peso de ser uma panacéia para todos os males

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engendrados por quase quatro séculos em que a diferença foi constantemente reafirmada e
chancelada pela lei dos homens e até de “Deus” onde os corpos “pretos” recebiam as marcas e
as insígnias de propriedade até então inalienável. Os negros, enquanto seres humanos,
receberam da civilização a recusa de uma participação igualitária já que eram considerados
anomalias apenas suportáveis dentro da esfera servil, como corpo simples à eminência branca.
Ao discorrer sobre a historiografia brasileira, grande parte dos historiadores,
quando se dedicaram a pesquisar a escravidão no Brasil se privaram de estudar os pequenos
acontecimentos que culminaram na abolição e a reestruturação social após a abolição da
escravatura. Ganharam ênfase, assim, o movimento abolicionista, as revoltas quilombolas e a
decadência da economia açucareira. A nova estrutura social, a marginalização do ex-escravo
e as relações sociais ficaram durante anos relegadas nesse contexto historiográfico, por serem
considerados de menor importância e de pouca contribuição para o processo histórico que se
desenrolaria a partir dali.
Diversos autores, ao escrever sobre a abolição da escravatura no Nordeste e em
Sergipe, têm retratado esta temática apenas em seu contexto econômico (SUBRINHO
2000)183. Estes estudos promoveram uma grande contribuição para o conhecimento e para a
construção historiográfica do Nordeste brasileiro, mas se faz necessário repararmos as lacunas
existentes referentes ao contexto social pós-abolicionista.
No tocante as temáticas sociais pós-abolicionistas na atualidade podemos
encontrar trabalhos pioneiros e iniciante desse contexto temático. Merecem destaque os
trabalhos de Walter Fraga Filho 184 que pesquisa o pós-abolicionismo na Bahia e os trabalhos
de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios185, dentre outros. Em Sergipe alguns estudos mais recentes,
vêm contribuindo para o crescimento do conhecimento sobre a sociedade sergipana, como os
trabalhos dos autores (SANTOS, 1997)·, (NUNES, 2006)186, (FIGUEREDO, 1977)187,
Sharyse Amaral188, dentre outros, que estudam o sistema escravista em Sergipe a partir dos
movimentos sociais reconstruindo o cenário social sergipano frente à mobilização nacional no

183
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. Reordenamento do trabalho. Trabalho escravo e trabalho livre
no Nordeste Açucareiro - Sergipe 1850/1930. Aracaju: Funcaju, 2000.
184
FRAGA FILHO, Walter . Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. 1. ed. São Paulo:
HUCITEC/EDUFBa, 1996. v. 1. 189 p.
______________. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 1. ed.
São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006. v. 1. 360 p.
185
MATTOS, H. ou CASTRO, H. M. M. ; RIOS, A. M. L. . Memórias do Cativeiro: Família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 301 p.
186
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.
187
FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O negro e a violência do branco: o negro em Sergipe. Rio de janeiro, j.
Álvaro, 1977.
188
AMARAL, S. P. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888. Universidade
Federal da Bahia, UFBA, Brasil. 2007.

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tocante ao movimento abolicionista, que se repercutiu em todo o país.


Buscando aprofundar os estudos iniciados sobre a sociedade sergipana e
objetivando elucidar a participação do elemento negro em Sergipe, destacando as suas
especificidades, resultaram os trabalhos monográficos de (CRUZ, 1997)189 e (AVELINO,
SANTIAGO e GOUVEIA, 2007)190 que discorrem sobre o processo abolicionista em Sergipe
dando ênfase ao contexto social pós-abolicionista e a inserção do negro como cidadãos livres
na sociedade republicana.
Em Sergipe, como em todo país, a abolição não atendia às reais expectativas dos
escravos, nem dos abolicionistas, pois, apesar de adquirirem a liberdade, estes não
encontraram o apoio para proverem sua subsistência, pelo contrário, eles foram objeto de
perseguição e desprezo enfaticamente denunciado pelo autor Florestan Fernandes,

O liberto viu-se convertido sumaria e abruptamente, em senhor de si mesmo,


tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não
dispusesse de meios materiais e morais para realizar esta proeza nos quadros
de uma economia competitiva. (FERNANDES, 1978, p. 189)

A realidade social excludente acabou por manchar o sonho de liberdade. Em


Sergipe, os reflexos do quadro pós-abolicionista nacional não vão ser diferentes. O Estado de
Sergipe, as vésperas da abolição ainda era sustentado por uma economia agrícola e
dependente da mão-de-obra escrava, tendo a cana de açúcar como o principal item para a
economia no período estudado, mesmo com a introdução de novas culturas na produção
agrícola sergipana, estas não conseguiram suplantar a cana de açúcar. Isso deu especificidades
ao modo como se organizaram as relações de trabalho na agricultura e, especificamente, em
relação ao ex-escravo. Como se observa,

Os ex-escravos foram lançados à própria sorte e a sua mera existência


perturbava a ordem pública deveria a qualquer custo exercer alguma
atividade útil ao lugar suplantada a resistência da sociedade em reconhecê-lo
como cidadãos. (CRUZ, 1997, p. 30)

Em sua obra “História de Sergipe República” o autor sergipano Ibarê Dantas


(2004, p. 24), ao abordar a situação social e econômica sergipana cita que “se existiam

189
ZELICE, Gabriela de Queiros da Cruz. EX-ESCRAVOS: cidadãos sem liberdade. São Cristóvão:
Universidade federal de Sergipe, 1997.
190
AVELINO, Camila B. S. SANTIAGO, Fabio Santos e GOUVEIA, Reginaldo de Sa. ANOMALIA SOCIAL
(VADIOS LADRÕES E DEFLORADORES): O Negro na Sociedade Sergipana Pós-Abolicionista (1885-
1890). 2007. Monografia. Universidade Tiradentes. Aracaju.

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grandes desafios para a sociedade sergipana, não eram menores os que se apresentavam para a
sociedade brasileira”.
Na nova estrutura social abolicionista e republicana, o Senhor de Engenho via o
trabalhador através das lentes da ideologia de explorador, não confiando nos negros enquanto
homens livres sem perceber, justamente pela deformação ideológica escravocrata, que os
negros tão pouco ou nenhuma confiança podiam ter naqueles que os exploraram
impiedosamente como escravos. Para eles, liberdade também significava, se possível, livrar-
se da fazenda. Logo, tem-se uma descrença recíproca, muito mais prejudicial ao negro, ainda
aspirante a cidadão, do que ao branco protagonista e “senhor” do sistema republicano
emergente. Esse processo leva o negro ao confinamento e, por conseguinte, ao construto de
uma nova ordem, a “ordem do diferente", muito caracterizado em nosso Estado como
“marginal”.
Marcados inexoravelmente pelo desprezo e pelo abandono, não só do Estado, mas
do conjunto da decadente sociedade tradicional de modelo europeizante, pobres, ex-escravos e
também um grande número de estrangeiros, associados aos livres nacionais marginais,
formavam um conjunto de “cultura paralela”, corporificada, diferente e subterrânea em que
pesem seus vasos comunicantes com a sociedade tradicional. Desenvolveram uma cultura
especial que servia de código idiossincrático, capaz de enganar aqueles que não conviviam
cotidianamente com a marginalidade, inclusive a polícia. Muitas vezes, este artifício servia
não só como defesa do grupo, mas também denunciava o quanto eram independentes e
autônomas estas formações.
O olhar “branco” sobre o “preto” após a abolição é um olhar pejorativo e
eminentemente racista cujos substratos racionais foram construídos pela necessidade de
legitimar a inferioridade do negro para além dos princípios hermenêuticos da lei. Uma lei que
antes dizia, categoricamente, que aquele ser era sua propriedade e agora ele é igual, mesmo de
forma quase insignificante, ou seja, era preciso reinventar a diferença, não importando se pelo
insulto, pelo deboche ou pelo desdenho.
A historiografia sergipana poucas vezes se preocupou em responder os
questionamentos suscitados referente a fase pós-abolicionista. O presente trabalho não
pretenderá responder todos os questionamentos levantados, mas sim contribuir e continuar
aprofundando o processo iniciado por outros autores. E é este o principal objetivo deste
trabalho: recriar o quadro social da sociedade sergipana, destacando a cultura negra ex-
escrava nessa província através dos agentes sociais, elucidando as relações sócias pós-
abolicionistas entre negros e brancos. Intencionar-se, com este estudo, instigar também outros

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pesquisadores a abordar o nosso passado escravista, tão injustamente pouco trabalhado em


relação a sua diversidade, e assim preencher lacunas da historiografia de Sergipe sobre a
história oficial, defendendo a afirmativa de que o processo de emancipação do negro não
culminou na abolição, começou com ele, e ainda está longe de se concretizar, estudarmos a
fase escravista em Sergipe representa um auto-conhecimento, ou seja, avaliar nossa própria
memória e identidade social, cultural e econômica.
Neste estudo, procuramos entender os impactos psicossociais conseqüentes das
mutações administrativas que mimetizavam uma civilização que não reservava espaço para a
“arraia miúda”, pois gente como os ex-escravos não estavam presente nos planos e nos
ideários republicanos construídos no Brasil no período estudado, onde esqueceram do mais
importante ao proclamar a República: o povo. Ao analisar a condição social dos ex-escravos
no final do Império e no início da República, identificando as formas desenvolvidas por esses
grupos para sobreviver em um mundo que os rejeitava, percebe-se que eles existiam em
caráter de exclusão, pois suas práticas eram incongruentes com o arquétipo de sociedade no
limiar da República. Como observa o Professor Eduardo Marques, “marginal é todo aquele
que desobedece às normas de uma sociedade pela qual termina sendo abandonado, pois não se
enquadra nas regras determinadas pelo grupo hegemônico”.191 Por anomalia social, entendem-
se as formas “extralegais” de existência devido à dificuldade de ingressar na vida produtiva e
social, assimilando formas culturais laterais extensivas à moradia, ao trabalho e ao convívio
com a lei.
A exclusão social do negro se generalizou em toda região nordestina
principalmente onde vigorou até as vésperas da abolição a produção açucareira. Liberto desse
sistema opressor, excluído dos benefícios emancipacionistas, sem terras e sem meios
econômicos os libertos buscaram formas extralegais de sobrevivência. Através de versos de
um antigo samba de roda o autor Walter Fraga em sua obra Encruzilhadas da liberdade ilustra
a repercussão dos conflitos existentes entre escravos e senhores de engenho em relação as sua
pequenas roças de subsistência que era permitido ao negro enquanto escravo semeá-la, mais
após a abolição da escravatura o quadro dessa sistema se alterou:

Quem tiver seu boi


Qui prenda no currá
Eu não planto roça, ê
Para boi roubá...

191
SILVA, Eduardo M. “E o rabo balançou o cachorro?! A crise de uma história de controle eficiente que
educou um Brasil multicultural. In : tamandare.g12.br, Profº Eduardo Marques. Acesso 10 maio de 2007.

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Quem tive seu boi


Qui prenda no mourão,
Eu não planto roça, ê
Para boi ladrão192

Ao negro, restava-lhe as ocupações residuais como demonstram pesquisas


preliminares apoiada em jornais da época, analisando com maior atenção os classificados de
empregos, concomitantemente sobre critérios exigidos para a ocupação desses postos de
trabalhos, mapeando, analisando anverso e avesso desses diálogos impregnados de racismos e
reverberando ranços e ressentimentos para com os negros, ex-escravos, pretensos iguais. Vale
ainda ressaltar que até 1890, corte temporal disposto neste referido estudo, sinteticamente é
clara a referência à cor, pois é aquilo que chancela, credencia a ocupação desses postos e,
nesses casos supracitados, as funções são as menos remuneradas e, portanto, as que exigem
menos qualificação, por assim dizer, ou seja, são funções “residuais” ou “inferiores” dentro da
hierarquia ocupacional capitalista.
Optou-se por essa abordagem pós-abolicionista no âmbito social, porque se
acredita que estão no imaginário social os signos que permitiam a sobrevivência de práticas
de segregação, que reafirmavam e delimitavam enfaticamente o campo existencial tanto da
elite quanto o dos marginais, uma disputa por espaços ou uma territorialidade que permearia a
transição do Império para a República, onde os atores representavam um espetáculo de
riquezas e misérias, de progressos e fracassos, pois, enquanto uns sonhavam com as
conquistas republicanas vindouras, outros celebravam sua desesperança e seu imobilismo.
A sociedade sergipana, no limiar de um novo modelo político, econômico e
social, portava-se anacronicamente como anomalias sistêmicas teimosamente reafirmadas.
Mesmo diante de uma incompatibilidade legal ou de um contra-senso inquestionável, foram
percebidas formas patentes e por vezes tácitas nas quais práticas coloniais coexistiam em um
sistema republicano ou em uma República à brasileira. Assim sendo, a relutância das classes
dirigentes sergipanas em ceder às mudanças das relações de produção bem como a relações
sociais e políticas e à alheação das classes subordinadas, egressas do sistema escravista,
respondem pelas raízes desse nosso mal crônico, perene nesses nossos mais de quinhentos
anos. Logo, as razões de nossa desigualdade imanente não podem ser vistas apenas como
reflexo da opressão dos dominadores, mas também da imobilidade dos dominados em resistir

192
Versos de um antigo samba de roda cantado pelos moradores da Usina Cinco Rios (antigo engenho
Maracangalha), registrado por Valdevino Neves Paiva em seu livro: Maracangalha: torrão de açúcar, talhão de
massape. Bahia: Gráfica Santa Helena, 1996, pp. 71-72.

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e exigir que se faça valer a República.


A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade
era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, prevalece o
privilégio de poucos e a marginalização de muitos, correspondendo estes fatores para o
desfavorecimento e a humilhação dos excluídos. Os resquícios da exclusão social do negro
propiciaram a formação de uma classe subalterna de cidadãos, ou seja, sem recursos e sem
meios para garantirem sua sobrevivência, muitos dos ex-escravos optaram pela promiscuidade
e pela ociosidade, daí então a origem dos cidadãos anômalos ou freqüentemente considerados
pela sociedade como marginais. Segundo o autor Fraga:

Ao reforçar o estigma de vadios e ociosos dos livres e libertos, as elites


encontraram pretexto pra repressão aos costumes e à recusa dessa gente em
colocar sua força de trabalho à disposição da grande lavoura. Amparados na
legislação que punia a vadiagem, era possível constrangê-los ao trabalho e
removê-los de seus antigos hábitos. (FRAGA, 1996, p. 174)

Assim, o liberto convivia com seus grilhões inorgânicos e intrínsecos à praxe


social, e era de maneira contumaz relembrado quanto a sua “insignificância” e seu passado
escravo era por assim dizer, reprisado diante dos seus olhos todo tempo porque a cor de sua
pele impedia-o de vislumbrar um presente e um futuro menos obscuro, logo, sua liberdade,
sua condição jurídica igual pouco importava diante de um mundo capitalista cujas roseiras
assentavam-se sobre os estercos de um escravismo duradouro que teimava em vociferar e
calar os suspiros de justiça que há séculos vinham sendo suprimidos no peito de cada homem
e mulher de “cor”. “Os ex-escravos teriam de aprender que o trabalho livre significava ‘medo
da fome’ em vez de ‘medo de chicote’; era isso que arquitetos da emancipação queriam dizer
com transição das dificuldades brutais para as racionais” (COOPER, 2005, p. 69).
Reaprender a viver, com certeza, não seria fácil e não o foi tanto que existem
amostras inequívocas do malogro de grande parte dos ex-escravos que ainda hoje vêem à
distância uma realidade mais justa e, portanto, mais humana. Estabeleceram uma República e,
concomitantemente, a isonomia, ou seja, tornaram os desiguais em iguais de uma noite para o
dia em meio a discursos eloqüentes impregnados de sentimentalidades e fechando, entretanto,
os olhos para as raízes do problema e condenando doravante os ex-cativos a uma existência
anômala.

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ÁFRICAS DO MEU INTERIOR: POESIA DE ALOÍSIO RESENDE E A


MEMÓRIA AFRO-BRASILEIRA NA FEIRA DE SANT’ ANNA DA
BAHIA

Josivaldo Pires de Oliveira – UFBA


beloliveira1@hotmail.com

O interior da Bahia, inclusive, a região denominada “sertão”, foi receptador das populações
negro-africanas na diáspora e, portanto, responsável por uma produção de saberes e práticas
de matrizes africanas a exemplo dos sambas, batuques e candomblés em suas multifacetadas
especificidades. Nas últimas décadas os estudos históricos e antropológicos têm avançado
para além da capital e recôncavo açucareiro, região sobre a qual se restringiram, por muito
tempo, os estudos sobre o negro na Bahia. Nesse sentido, outras possibilidades de fontes
foram exploradas, entre as quais as memórias cristalizadas em seus diferentes espaços. Este é
o caso da poesia do escritor feirense Aloísio Resende, na qual este ensaio objetiva identificar
as experiências culturais produzidas pelas reinvenções africanas e crioulas na região de Feira
de Santana, BA, registradas pela pena do poeta. Assim pode-se potencializar a literatura local
como fonte para a história das práticas culturais afro-brasileiras, experimentadas no interior da
Bahia.

Palavras-chave: História da Bahia, Literatura, Cultura Afro-brasileira

O interior da Bahia, inclusive a região denominada “sertão”, foi receptador das


populações negro-africanas na diáspora e, portanto, responsável por uma produção de saberes
e práticas de matrizes africanas a exemplo dos sambas, batuques e candomblés em suas
multifacetadas especificidades. Nas últimas décadas os estudos históricos e antropológicos
têm avançado para além da capital e recôncavo açucareiro, região sobre a qual se
restringiram, por muito tempo, os estudos sobre a experiência africana na Bahia. Nesse
sentido, outras possibilidades de fontes foram exploradas, entre as quais as memórias
cristalizadas em seus diferentes espaços. Este foi o caso da poesia do escritor feirense Aloísio
Resende, na qual o presente ensaio objetiva evidenciar as experiências culturais produzidas

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pelas reinvenções africanas e crioulas na região de Feira de Santana-BA. Entendendo a


literatura como espaço de memória, o aspecto que interessa aqui na produção do poeta é
aquele que mais o caracteriza como um testemunho da diáspora negra no interior baiano: o
universo afro-religioso.193
Neste ensaio me ocuparei, portanto, em pontuar algumas reflexões em torno da
experiência de Aloísio Resende, no tocante aos registros que o mesmo fez através de sua pena
testemunhando as práticas afro-religiosas e outras manifestações, que compartilhavam este
universo de representação da diáspora africana no interior baiano. Pretendo provocar, a partir
das reflexões que se seguem, uma releitura da história de Feira de Santana, incluindo a
experiência afro-diaspórica como um importante capítulo da história social de uma das
maiores cidades do Nordeste brasileiro.

1. A Escravidão Atlântica e a Experiência Negra no Interior da Bahia.

Em que medida a cultura africana formatou as culturas afro-diaspóricas e


americanas? Esta provocação, de Linda M. Heywood, tem como preocupação o quanto ainda
se desconhece a cerca da experiência africana no processo de crioulização das comunidades
americanas e, no caso aqui intentado, na constituição do que se denominou chamar de mundo
afro-brasileiro.194 Essa questão está intimamente ligada à dinâmica da escravidão atlântica e a
experiência negra no Brasil.
A abertura do Atlântico, conseqüente da navegação européia na chamada
modernidade, foi crucial e teve um significado muito mais profundo do que possamos
imaginar. Segundo John Thornton, este evento não só fomentou como reconfigurou um
conjunto de sociedades, propiciando a criação de um “Novo Mundo”.195 Essa nova
configuração envolveu a África por completo, pois em meados do século XVII os africanos
representavam a maioria dos novos colonos no mundo Atlântico contemporâneo.196

193
As poesias de Aloísio Resende que tratam do universo afro-religioso em Feira de Santana, foram publicadas
entre 1939 e 1940. Destaco que este conjunto de 13 poesias revela importantes elementos trabalhados por mim
na tese de doutorado. Não utilizo suas poesias na minha pesquisa precisamente como fontes, entretanto, elas me
oferecem instrumentos de interpretação da documentação que utilizo na tese, a saber: documentos judiciários e
notícias de jornais. A parte da tese que foi qualificada em 27 de agosto último intitula-se: “Os adeptos da
mandinga: uma história da repressão às práticas de candomblé em Feira de Santana (1900-1960)”, tendo
participado da banca os professores Dr. Jéferson Bacelar (orientador), Dr. Nicolau Parés (Pós-Afro) e Drª.
Lucilene Reginaldo (UEFS).
194
HEYWOOD, Linda M. (org). A diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 22-23.
195
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Campus, 2004, p. 54-55.
196
Idem

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O convívio dos africanos com as sociedades do Novo Mundo reelaborou


lentamente uma experiência cultural de vida com as populações americanas influenciadas por
características herdadas do além mar, sendo que nessa dinâmica de crioulização alguns
valores foram perdidos outros misturados. Herbert S. Klein afirma que “a cultura que eles [os
africanos] e os escravos nascidos nas colônias criaram derivou-se de fontes africanas,
americanas e européias, e foi parcialmente compartilhada pela elite branca que os mantinha
em cativeiro”.197
Muitos dos aspectos da cultura dos trabalhadores escravos eram comuns a outras
sociedades escravocratas nas Américas sendo grande parte desenvolvida dentro do contexto
latino americano. No Brasil assim como em outras regiões da América Latina, na experiência
da escravidão, houve o desenvolvimento, por exemplo, de poderosos movimentos de práticas
religiosas proscritas que foram intensamente influenciadas por um sincretismo das divindades
religiosas africanas. 198
Essas experiências religiosas somadas à dinâmica da vida social entre africanos e
crioulos caracterizada inclusive por uma gama diversificada de conflitos e experiências
culturais implicou na criação de um sistema religioso que proporcionasse uma melhor
possibilidade de sobrevivência e adaptação dos africanos que chegavam e que tinham que
aculturar-se ao novo mundo em que se encontravam.199 Essas questões possibilitaram o
desenvolvimento das práticas de divinação e curandeirismo, levando assim ao surgimento de
especialistas em feitiçaria. Devido à importância que esses ofícios tinham na África e à falta
de uma função assim claramente definida dentro da sociedade branca, era inevitável que a
influencia africana predominasse.
Essas questões já mereceram atenção de antropólogos e historiadores em
diferentes regiões do Brasil. Os estudos sobre as experiências afro-religiosas de norte a sul do
Brasil, têm destacado o fato de que a repressão a essas práticas se dá em sua maioria ao seu
aspecto mágico-religioso, a saber: o curandeirismo e a feitiçaria. 200
No caso da Bahia, a historiografia tem identificado experiências como estas
desde finais do século XVIII. Exemplo ilustrativo foi o caso de Sebastião de Guerra, líder

197
KLEIN, Hebert S. O tráfico de escravos no Atlântico: novas abordagens para as Américas. São Paulo:
FUNPEC, 2004, p. 176.
198
Idem.
199
Idem. Ver também MINTZ, Sidney W., e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro – americana: uma
perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas / Universidade Cândido Mendes, 2003.
200
A título de exemplo ver:

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africano de um calundu que funcionava na Rua do Pasto, em Cachoeira, em 1785.201


Sebastião já tinha um currículo de processos judiciais sobre sua prática de feitiçaria, pois o
mesmo era bastante conhecido no Recôncavo baiano como poderoso curador. Segundo Luis
Nicolau Parés, o caso do calundu de Sebastião serve como exemplo para entender como os
“curadores-adivinhos” conseguiam uma mínima infra-estrutura coletiva para conduzir suas
atividades religiosas, pois mantinha uma incipiente congregação de participantes em volta de
um culto que funcionava com certa regularidade, porquanto era sabido da comunidade local
que ali se dançava o calundu.202 Mesmo com certa infra-estrutura e notoriedade como foi o
caso do calundu de Sebastião as práticas mágico-religiosas sofriam forte repressão policial.
João José Reis identificou uma série de processos judiciais movidos contra líderes religiosos
no Recôncavo baiano durante todo o século XIX. Segundo ele, “em todos esses casos a
repressão foi efetivada ou pelo menos recomendada em função principalmente do sucesso dos
ditos feiticeiros em atrair prosélitos e clientes, e não só entre os escravos”.203
As práticas afro-religiosas reelaboradas por africanos e crioulos no Brasil, fora
experimentadas em diferentes regiões da Bahia, não apenas na capital e recôncavo açucareiro.
Outras regiões como o sertão baiano ainda é merecedor de estudos que busque evidenciar
essas experiências.
Na última década os historiadores começaram a se interessar pela experiência da
escravidão africana no sertão baiano, o que já soma um conjunto importante de estudos sobre
o negro no Alto Sertão e vale do São Francisco.204 Estes trabalhos já tem revelado algumas
pistas importantes acerca da experiência afro-religiosa e outras práticas produzidas pela
experiência da diáspora negra no sertão baiano. Entretanto, Feira de Santana, ainda não foi
contemplada por essa produção acadêmica. É nesse sentido que se revela a experiência do
poeta negro Aloísio Resende e sua produção sobre as práticas afro-religiosa na década de
1930, explicitando as áfricas do interior baiano.

201
Sobre este caso ver REIS, João José. “A magia jeje na Bahia: a invasão do calundu da Rua do Pasto de
Cachoeira” e PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.
202
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé, p. 117.
203
REIS, João José. “Nas malhas do poder escravista: a invasão do candomblé do accú”. In ______ e SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p. 41.
204
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio – um estudo de história
regional e local. Salvador: Edufba/Feira de Santana: UEFS, 1997; PIRES, Maria de Fátima Novais. O crime na
cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003; PINHO, José
Ricardo Moreno. Escravos, meeiros ou quilombolas? Escravidão e cultura política no Médio São Francisco.
Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2000; PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú:
cidade, garimpo e escravidão nas lavras diamantinas, século XIX. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA,
2000.

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2. Feira de Santana: Um Entroncamento de Experiências e Culturas

Localizada na região leste do Estado, a pouco mais de cem quilômetros da capital,


Feira de Santana tem sua história relacionada ao desenvolvimento da referida feira livre, a
qual se tornou importante entroncamento comercial para mercadores de gado provenientes do
Alto Sertão baiano e região do Piauí e Goiás que se dirigiam até o porto da Cachoeira, no
Recôncavo baiano para escoar seus produtos para o mercado da capital.205
A pacata feira livre do século XVIII se tornou ao longo do século XIX um
importante centro de comércio que mediava às relações do Alto Sertão com as regiões do
Recôncavo, por conta de uma localização geográfica estratégica. Na primeira metade do
século XX, a cidade de Feira de Santana era composta, além da sede, por comunidades negras
rurais que não dispõe ainda de estudos reveladores sobre origem e pertencimento étnico-racial
destas comunidades. 206 Alguns autores têm sugerido, em rápidas referências, a existência de
quilombos na região que constituíram muitos destes distritos, desde o século XVIII.207
Entretanto, as migrações que ocorreram na pós-abolição parecem ter sido a maior responsável
quando comparado os índices populacionais.
Relacionando os dados estatísticos de 1872 e 1940 observa-se um aumento da
população negra nessa região caracterizando assim a predominância dos descendentes de
africanos. Em um quadro demonstrativo elaborado pelo historiador Rollie Poppino intitulado
“Grupos raciais em Feira de Santana”, com referência a essas datas, encontram-se as seguintes
cifras: em 1872, a população “branca” soma 14.653 (28%), ao tempo que em 1940 atinge
apenas 10.122 (12%); a população de “negros” em 1872 soma 12.761 (25%); ao tempo que
em 1940 atinge o número de 23.553 (28%); quanto à população de “mulatos”, em 1872 soma

205
Para maiores dados sobre a localização e outros aspectos geográficos ver FREITAS, Nacelice Barbosa.
Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização (1970-1996). Dissertação de mestrado.
Salvador: UFBA, 1998; ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário de Feira de Santana. Feira de Santana:
Editora Talentos/Gráfica Santa Rita, 2006.
206
Um projeto de pesquisa que procura trabalhar a história dessas populações foi proposto pela parceria entre a
Universidade Estadual de Feira de Santana e Universidade do Estado da Bahia. O projeto intitula-se “Itinerários
da memória: comunidades negras rurais no Paraguaçu (Bahia, 1880-1940)”.
207
Ver MOREIRA, Vicente Diocleciano. Projeto memória da feira livre de Feira de Santana – primeira fase:
texto nº 4. A escravidão em Feira de Santana (primeira parte), memeo. O estudo da professora Maria Ângela
Nascimento sobre a Matinha dos Pretos, comunidade negra rural de Feira de Santana, elevada recentemente à
categoria de distrito, apresenta pistas importantes pra revelar a história de muitas comunidades de quilombo.
NASCIMENTO, Maria Ângela. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos- BA:
eliminar, reduzir ou convalidar? Tese de doutorado. São Paulo: USP, 1997.

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21.718 (42%) conseguindo alcançar em 1940 a alta cifra de 49. 593, portanto 60% da
população de Feira de Santana.208
Com base nestes dados nota-se que a população de negros e mulatos predomina
em Feira de Santana, na primeira metade do século XX. Poppino chega a afirmar que a
maioria dos habitantes que chegaram após 1872, era de origem africana, indicando assim as
209
cifras da população negra em Feira de Santana no tempo de Aloísio Resende. A
observação de Poppino sugere que entre o Recôncavo e o Sertão baiano estabeleceu-se um
circuito de mão dupla na constituição das comunidades distritais de Feira de Santana e,
portanto, das experiências culturais reelaboradas entre negros e mestiços reinventores das
práticas afro-brasileiras, constituindo assim uma memória que se é revelada através da poesia
de Aloísio Resende, como o que denomino “Áfricas do meu interior”. Com esta metáfora me
refiro tanto a perspectiva de uma produção simbólica do universo afro-brasileiro na região e
Feira de Santana, quanto a “África” produzida no subjetivo do sentimento de pertença do
poeta.

3. Aloísio Resende e a “África” do Interior Feirense

Em 26 de outubro de 1900, nasceu na cidade de Feira de Santana, Aloísio


Resende. Jornalista e boêmio, Zinho Faúla, como era apelidado, ficou conhecido dos leitores
do jornal Folha do Norte por suas poesias publicadas entre finais da década de 1920 até o ano
de 1940, pois o poeta faleceu em janeiro de 1941.210 Não viveu sempre em Feira de Santana,
fizeram parte de sua trajetória cidades como Recife, em Pernambuco, Maceió, no Estado de
Alagoas, São Luiz do Maranhão e Salvador, capital baiana, na qual, inclusive, durante a
década de 1920, trabalhou no jornal A Hora.211
No início da década de 1930 retornou a Feira de Santana e ingressou como
jornalista no Folha do Norte, importante periódico de circulação local, onde atuou até seus
últimos dias de vida.212 Aloísio foi boêmio, freqüentador das quitandas e cabarés, mas

208
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Salvador: Itapoã, 1968, p. 248. Destaco as categorias entre aspas por
serem nomeadas pelo próprio autor.
209
POPPINO, Rollie. Feira de Santana, p. 18.
210
Vale ressaltar que Aloísio Resende foi autor de conhecidas marchinhas carnavalescas, muitas das quais
publicadas no mesmo periódico. Os dados biográficos que faço referência aqui e em outras partes da tese foram
extraídos de MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com
ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000.
211
PORTO, C. M. “Notas à margem”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.)
Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 85.
212
Idem, p. 87.

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também dos terreiros de candomblés, de onde muita inspiração tirou para a composição de
suas poesias. Segundo Ana Angélica V. de Morais, “o olhar de Aloísio Resende sobre os
elementos que constituíam o suporte de base afro, na formação da cidade, se explicita em seus
versos”.213 De fato o Jornal Folha do Norte publicou nos últimos dois anos de sua vida, 1939
e 1940, um conjunto de poesias de autoria de Aloísio Resende, as quais dão visibilidade ao
universo da diáspora negra em Feira de Santana, com destaque a elementos representativos da
cultura afro-religiosa, aos saberes mágicos de cura, assim como aos sambas que ocorriam nas
festas de terreiro daquele período. Ainda segundo Ana Angélica V. de Morais, o poeta era
freqüentador do terreiro de uma mãe-de-santo conhecida por Filhinha, esta foi imortalizada
nas estrofes de Aloísio Resende:

MÃE-FILHA
Entre a opala do céu e a esmeralda da terra,
Alvejando na várzea a luz do sol que brilha,
Vê-se, frente ao levante, a casa de mãe-filha,
Que da negra macumba os mistérios encerra.214

Nota-se a admiração do poeta por mãe Filhinha, denominada aí de “Mãe-Filha”.


Não se trata de uma simples narração e sim do depoimento de alguém de dentro, um “nativo”,
como diriam os antropólogos. Em diferentes momentos dessa poesia, como em outras
composições, o poeta revela o universo de práticas afro-brasileiras como nenhum outro o fez
em Feira de Santana neste período, assim caracterizando-se como testemunho potencial da
memória afro-diaspóricas na região, rompendo assim com os silêncios da história sobre a
experiência africana em Feira de Santana. Aloísio, que já foi denominado o “poeta contra a
ordem”, era muitas vezes controverso na opinião de muitos colegas jornalistas de ofício,
contemporâneos do mesmo semanário feirense.215 Enquanto muitos se ocupavam em
denunciar as práticas de curandeirismo ao mesmo tempo em que cobravam ação mais
enérgica da polícia contra os candomblés, o poeta explicitava em sua lírica poesia publicada
nas páginas do mesmo periódico os saberes mágicos de mãe Filhinha:

De encantados sem par a prestimosa dona,


Sacerdotisa, enfim, de Nanan-burucu,

213
MORAES, A. A. V. “A africanidade na poesia de Aloísio Resende”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C.
M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios críticos e dossiê, op. cit., p. 100.
214
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, p. 54 (grifos das
organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 27/04/1940, p. 1.
215
Quanto à referida denominação Ver OLIVEIRA, C. F. R. M. “Um poeta contra a ordem”. In: MORAES, A.
A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende, op. cit.

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Que favores iguais recebe de omolu,


É a melhor curandeira, aqui, de nossa zona.216

O poeta destaca o incomparável valor da mãe-de-santo identificando inclusive o


seu prestígio com diferentes orixás, o que lhe garante o posto de melhor curandeira. Mãe
Filhinha parecia ser de fato considerada a melhor curandeira da região de Feira de Santana,
por certo período. A avaliação de Aloísio Resende, em sua poesia, é compartilhada pelas
memórias de Antônio do Lajedinho:

A “rezadeira” mais conhecida e com tradição de pitonisa [adivinhação]


infalível era a curandeira ou mãe-de-santo conhecida por mãe Filhinha.
Residia em um pequeno povoado onde era a maior autoridade.
Semanalmente dançavam o candomblé e periodicamente faziam uma festa
em louvor a Iansã, para onde convergiam todos os moradores da região.217

Lajedinho afirma o que havia dito setenta anos antes Aloísio Resende: mãe
Filhinha tinha autoridade reconhecida na região.218 É importante destacar que o narrador
(trata-se de uma crônica memorialista) estabelece como equivalente curandeira e mãe-de-
santo, destacando ainda a festa de Iansã oferecida no terreiro de mãe Filhinha, talvez fosse
esse orixá um dos principais daquele terreiro, pois se repetem as referências a ela, não
escapando inclusive da poesia de Aloísio Resende:

E pula na fogueira feita em brasa


A mulher, sobre a qual baixou Iansã.
E o fogo, aos seus pés nus, é coisa vã,
Pois a dona do raio o gesto apraza.219

O pertencimento religioso de Aloísio Resende o expunha muitas vezes entre os


seus pares letrados, criando inclusive alguns obstáculos para sua ascensão social. Lajedinho
registra em suas memórias um fato que informa aos leitores que Aloísio Resende foi
“discriminado como cidadão e como poeta por um único motivo: era umbandista”.220

216
MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio Resende: poemas com ensaios
críticos e dossiê, p. 55. (grifo das organizadoras)
217
LAJEDINHO, A. “Parteiras, rezadeiras e curandeiras”. In: A Feira no século XX – memórias. Feira de
Santana: Talentos, 2006, p. 43-44. (grifos meus).
218
Lajedinho é o pseudônimo do escritor Antônio Moreira Ferreira. Membro do Instituto Histórico e Geográfico
de Feira de Santana tem nos últimos anos publicado suas memórias, tornando-se importante testemunho dos
acontecimentos da “Feira antiga”.
219
RESENDE, A. “No Bembé”. In: MORAES, A. A. V., PORTO, C. M., ASSUNÇÃO L. C. (org.) Aloísio
Resende, op. cit, p. 60. (grifo das organizadoras). Ver também Folha do Norte, Feira de Santana, 29/06/1940, p.
1.
220
LAJEDINHO, A. “Os candomblés”. In: A Feira na década de 30 – memórias. Feira de Santana: s/n, 2004, p.
93.

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Lajedinho, na verdade, se refere ao candomblé e denuncia uma discriminação que


pode ser interpretada como preconceito racial e negação do culto afro-religioso, característico
de determinado seguimentos social e político sociedade de então, pois como lembra o
memorialista, ele “freqüentava todos os terreiros da região e suas poesias faziam apologia ao
candomblé”. Cabe lembrar que Aloísio era um homem negro e pobre que incomodava com
sua arguta inteligência e habilidade de escritor em uma sociedade de brancos e mestiços que
nem sempre tinham o domínio das letras, o que o poeta fazia muito bem. Aloísio era um
testemunho das áfricas representadas nas experiências culturais e religiosas do interior baiano.
Em outubro de 1940 um contemporâneo de Aloísio Resende, já percebendo sua
saúde debilitada, escreveu para o jornal Folha do Norte, publicando uma matéria
extremamente curiosa na qual revela os elementos da diáspora que caracterizam a postura do
poeta como descendente confesso do povo de além mar:

Meu caro senhor, admiro seus versos que dizem dos costumes dessa gente,
cujos descendentes merecem instrução e educação, porque as classes
trabalhistas no Brasil são constituídas por crioulos e mestiços, em sua
maioria. Guardam ainda seus cânticos guerreiros, hinos e saudações a Deus,
e, por um egoísmo próprio da raça, chamam seus santos Xangô, lemanjá,
Õgum, Abaluaé, etc. sem que por isso mereçam pena de morte.221

O texto acima explicita um discurso que, ao mesmo tempo em que elogia Aloísio
Resende e reconhece seu compromisso com as questões relacionadas ao universo afro-
religioso, se manifesta intolerante ao culto afro-brasileiro, evidentemente ao qual estava
vinculado o poeta. Entretanto, o trecho citado vale aqui como referência de um outro
testemunho da representação que a diáspora africana produziu em Feira de Santana, a África
simbólica que circunscrevia o universo social, político e acima de tudo cultural que viveu o
poeta negro Aloísio Resende. Era a “África” do seu interior, cantava em suas poesias, a
“África” de Feira de Santana da primeira metade do século XX.

4. A Guisa de Conclusões: Diáspora Negra e a (re)Escrita da História Feirense

A experiência africana no sertão baiano a pouco vem sendo revelada pelos estudos
históricos. A maior parte desses estudos se concentra no século XIX buscando identificar as
peculiaridades do ser “escravo” no sertão baiano e, por mais que esses autores não tenham
como objetivo as relações sociais e políticas em torno das práticas simbólicas de africanos e

221
Vicente Reis, Jornal Folha do Norte, 31/10/1940, p.1.

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crioulos revelam pistas importantes para descortinar a versão oficial da história dessas cidades
que compõem esse todo chamado sertão.
A história de Feira de Santana se enquadra perfeitamente nessa problemática, ela
ainda está refém de uma memória que estabelece a feira e o comércio de gado como único
parâmetro de compreensão das experiências vivenciadas pelos indivíduos que produziram a
história da mais importante cidade do interior baiano, e como diria Thales de Azevedo, uma
das mais importantes do nordeste brasileiro.
Os estudos em andamento já têm revelado os reclames de uma história-problema
para Feira de Santana, na qual uma história não se faz sem experiências humanas. Fala-se em
um comércio mas onde estão os mercadores? se fala em gado, qual o lugar dos vaqueiros? E
ao falar em experiências humanas não há mais como negar a eminência das populações afro-
diaspóricas na formação de Feira de Santana, portanto, a diáspora negra reclama uma reescrita
da história feirense, inclusive já sugerida pela obra de Aloísio Resende.

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A “INGRATIDÃO” DE MARIA E O “EXEMPLO” DE JOSEFA OU OS


TRAUMAS DE UMA ELITE EM DECLÍNIO

Marcelo Souza Oliveira – UNEB


historiadormarcelo@bol.com.br

Este texto tem como objetivo analisar o conto Violeta & Angélica, publicado em 1906, pela
ex-senhora de engenho Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930), no Jornal de
Notícias [Salvador-Ba]. A narrativa aborda as “desventuras” de uma família senhorial no dias
seguinte ao 13 de maio de 1888. Sob uma ótica paternalista a autora constrói dois arquétipos
nas personagens Maria e Josefa, ex-escravas da fictícia família Bastos. Enquanto a primeira
abandona sumariamente os senhores após tomar conhecimento da Lei Áurea, a segunda
repudia o comportamento “ingrato” da amiga e resolve permanecer no engenho para continuar
servindo aos ex-senhores em “agradecimento” por terem oferecido “um melhor cativeiro”.
Este conto demonstra o imaginário social de uma elite ressentida com um processo
abolicionista que não aconteceu sob o seu controle, cujas experiências foram traumáticas,
conforme se infere também nas palavras e reações dos Bastos, no decorrer da trama.
Documentos sobre a família de Anna Ribeiro, indicam que o mesmo comportamento também
foi visto em seu antigo engenho, no ano de 1888, o que reforça a idéia de que a literatura foi
utilizada como expressão das representações e dos sentidos que ela conferiu às suas próprias
experiências. Assim, utilizando o aporte conceitual e metodológico da História Cultural
intenciona-se perceber as representações e os (re)sentimentos de uma elite que viu no fim do
trabalho escravo o desfecho de sua própria decadência.

Palavras-chave: Literatura; História: pós-abolição; paternalismo; imaginário.

No rodapé do Jornal de Notícias, do dia 19 de novembro de 1906, encontram-se


as primeiras páginas de mais um conto:

Corria o ano de 1888.


Era um domingo. Na varanda de sua vivenda campestre, passeava o Sr.
Alfredo Bastos, com ar triste e preocupado, em contradição com sua
fisionomia, habitualmente calma e prazenteira.

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Era um homem de quarenta e tantos anos, cheio de corpo, abdômen um


pouco desenvolvido, fronte serena, porque ele se aproximava da velhice, a
percorrer uma estrada, larga e plana, apenas interrompida, de longe em
longe, por uma moita de espinhos, porque essas nunca deixam de existir no
percurso da vida.
[...]
É que se dera o golpe de estado, abolindo a escravidão ao Brasil, e ele temia
pelos resultados já apreciados, ver a sua propriedade cair em decadência,
pela falta de braços, e sua família querida experimentar as privações a que
não estava habituada (BITTENCOURT, 1906).

O trecho publicado pelo jornal soteropolitano é parte de Violeta & Angélica, de


autoria da escritora Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930)222. O Conto narra a
história das famílias senhoriais nos fins do século XIX. Nele as intenções da autora eram
aparentemente bem definidas: instruir e orientar as suas patrícias, expondo modelos de
comportamento.
A história se passa no Recôncavo baiano no ano de 1888 e retrata a “difícil”
situação dos Bastos, uma numerosa e destacada família de senhores de engenho que sofre o
“golpe” dado na sociedade açucareira. O “golpe”, pelo que se entende na narrativa, consistia
na decisão do governo da Princesa Isabel e de “seus ministros” na “classe dos agricultores do
Recôncavo”, quando libertou os escravos em plena colheita. No decorrer do conto, a autora
discute o 13 de maio e o 15 de novembro, construindo o segundo evento como conseqüência
do primeiro. Enquanto o governo teria sido responsável pelo golpe nos senhores de engenho,
estes teriam respondido à ação “imprevidente” da Princesa com uma “revolução”, a
Proclamação da República.
Para reforçar esta idéia, são construídos tipos sociais de senhores de engenho que
ou se comportaram “resignadamente” ou de forma “imprudente”. Assim, são descritos os
irmãos Alfredo e Alberto Bastos: enquanto o primeiro reagiu à abolição apoiado nos valores
da família e do trabalho; o segundo tem uma vida desregrada, vende o seu engenho e muda-se
para São Paulo onde perde toda a sua fortuna num investimento na cultura do café. Nesta
linha inscreve-se a literatura de Anna Ribeiro: ela constrói modelos de comportamento para os
leitores e leitoras egressos da sociedade escravista da Bahia nas primeiras décadas da

222
A autora assinava suas obras apenas como Anna Ribeiro. D. Anna assinava o sobrenome da mãe em seus
textos o que não era normal em sua época. O fato de não escrever nem o nome do marido, nem o do pai pode ter
muitas explicações, uma delas pode estar ligada ao orgulho e respeito que tinha pelo Bisavô - Major Pedro
Ribeiro – ao qual dedicou o primeiro volume do seu livro de memórias. Outra poderia ser em decorrência da
enorme consideração e respeito que tinha pela mãe – Anna da Anunciação Ribeiro – que dizia ser uma “santa”.
Assim, daqui para frente será usado o nome que ela assinava em suas obras.

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República, tomando como referencial a sua realidade e a sua vivência como senhora de
Engenho.
Anna Ribeiro pertenceu a uma das famílias mais tradicionais da Bahia. Esse grupo
familiar estava ligado a outros como os Berenguer, os Calmon, os Mariani etc. Foi no século
XIX que os Araújo Góes se instalaram nos arredores de Santana do Catu, formando o que
Kátia Mattoso chama de clã. Eram inúmeros “primos e primas”, “tios e tias”, cujo poder
social e econômico foi se instituindo na medida em que, ainda na primeira metade daquele
século, a economia açucareira ia crescendo. Assim, pode-se considerar a familiar de Anna
Ribeiro como uma representante da aristocracia rural baiana, que enriqueceu com a
exportação de cana-de-açúcar e com a exploração da mão-de-obra escrava.
A sociedade baiana do século XIX se apresentava de forma fortemente
hierarquizada. No topo da sociedade do Recôncavo se encontrava uma aristocracia rural que
aspirava à condições de nobreza nos moldes do que se verificava em Portugal. Kátia Mattoso
reitera que no Brasil uma pessoa nobre poderia ser reconhecida pela sua linhagem ou pela
colocação de seus bens e educação a serviço da pátria. Mesmo que um indivíduo não fosse
fidalgo de linhagem (filho d’algo), poderia ser “agraciado” pelo imperador de acordo com a
sua disposição em “servir” ao império (MATTOSO, 1997: 154). Nos Longos serões do
campo: infância e juventude, Anna Ribeiro faz uma elucidativa referencia a esse respeito:

[...] os Araújo Góes, do Catu, que ali ocupavam vasta área de território,
gozaram sempre da reputação de homens probos, cumpridores de seus
contratos, nunca desmentindo da espécie de aristocracia formada pela classe
muito considerada dos senhores de engenho, que era a segunda nobreza do
país, como era na França a magistratura. Tendo gozado de grandes
privilégios nos tempos coloniais, conservavam ainda bastantes garantias no
Império, como ainda vi na minha mocidade (BITTENCOURT, 1992: 01).
(Itálico meu).

A tentativa de atribuir status de nobreza ao ramo paterno de sua genealogia se


estabelece de maneira aparentemente desinteressada, mas se revela tendenciosa logo nas
primeiras linhas do discurso, afinal os Araújo Góes eram homens “probos” (retos, dignos e
incorruptíveis), “cumpridores de contratos”, pertencentes à classe muito “considerada”. O
reconhecimento do espírito distinto que, segundo Anna Ribeiro, todos atestavam, era o
primeiro de seus argumentos em busca de um auto-reconhecimento de nobreza. A família
Araújo Góes é uma das mais antigas e tradicionais da Bahia.

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Entretanto, nas últimas décadas do século XIX a economia açucareira deu sinais
de desgaste. Desde o início da década de 1870, a lavoura mergulhou numa crise financeira
que se estendeu até o final do século XIX. A queda dos preços do açúcar nos mercados
externos e a concorrência do açúcar de beterraba diminuíram o volume de exportação do
produto. Para agravar a situação, a lavoura açucareira, extremamente dependente do trabalho
escravo, vinha sofrendo as conseqüências da extinção do tráfico africano, em 1850, e das
sucessivas leis emancipacionistas das décadas de 1870 e 1880 (FRAGA FILHO, 2006: 34).
Esse processo é perceptível na própria trajetória da nossa autora:

Circunstâncias supervenientes e imperiosas exigiram sua volta a condição de


senhora de engenho. No exercício dessa missão construtora das finanças da
família, revelou-se, como sempre, superiora, inflexível quanto ao
cumprimento do dever, mas profundamente humana e generosa para todos
aqueles que dela dependiam, até para os escravos (MACHADO, 1952: 16).

Mesmo se considerando “abolicionista”, Anna Ribeiro sabia da importância que


os escravos tinham no funcionamento do engenho. A “generosidade” de Anna Ribeiro ao que
parece não conseguiu evitar que em 1879 ela hipotecasse cerca de dez cativos, juntamente
com algumas propriedades rurais pertencentes à família223. Provavelmente essa transação
deve ter sido feita para tentar amenizar as tais “circunstâncias supervenientes” a que se referiu
o seu biografo na citação acima. Anos depois a abolição dos escravos praticamente pois fim à
estas circunstâncias, visto que sem preparação para a transição de mão-de-obra os senhores de
engenho viram sua atividade econômica ir à bancarrota.
A extinção do trabalho servil foi um processo que terminou com o decreto de 13
de maio de 1888. Mesmo que a abolição tenha consistido num processo que se estendeu por
praticamente durante toda a segunda metade do século XIX, o 13 de maio de 1888
estabeleceu-se como um marco na memória social daqueles que à viveram, sobretudo dos
libertos e dos senhores. Para os senhores, Hebe Maria Matos avaliou que a abolição teve um
caráter traumático, pelo seu sentido irreversível e desarticulador de antigas relações de
subordinação e controle social (ALBUQUERQUE, 2004: 89). Na Bahia, há registros de
situações extremas de senhores que se suicidaram após o 13 de maio (FRAGA FILHO, 2006:
132). A mensagem enviada pelos telégrafos para o interior baiano causou apreensão nas elites
locais, uma vez que, a abolição não aconteceu da maneira que elas desejavam. As
reivindicações feitas por parte dos proprietários baianos referente à indenização a ser paga

223
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, Seção Judiciária, Livro 586, p. 20.

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pelo governo também não foram ouvidas. Para completar, muitos agricultores reclamaram que
a medida emancipadora foi tomada pela Coroa Brasileira sem considerar as especificidades
das províncias do norte, uma vez que era tempo de colheita quando se deu o decreto da
Princesa Isabel. O trauma com o 13 de maio e suas implicações fica patente nos discursos dos
membros de Anna Ribeiro, como atesta sua neta Anna Cabral:

Assim, continuou seguindo a sua vocação até 1888 quando veio a abolição.
Na sua família a tradição de humanidade entre os senhores e escravos era
constante.
Meus avós possuíam cera de 100 escravos, eles arruinados, pode-se dizer,
com o decreto de 13 de maio, mostravam-se inteiramente serenos e
justificavam a Princesa – pelas injustiças que haviam presenciado.
Minha avó contava que o 13 de maio fora um dia de festa no Engenho.
Danças, flores, todos manifestando gratidão aos senhores que
compartilhavam da alegria dos escravos. Depois, vieram as ingratidões,
abandono do trabalho, a paralisação do Engenho, mas ela e meu avô não
desanimaram (CABRAL, S/D).

Nos engenhos da família Araújo Góes, após os festejos do dia 13 de maio de


1888, vários negros abandonaram as senzalas e dirigiram-se a cidade de Salvador para tentar
uma nova vida na capital. Em plena época de colheita, os senhores se viram sem mão-de-obra
para procederem a moagem. Na sua já declinante situação econômica, a extinção da
escravidão forçou vários membros da família a tentar a vida na capital, como funcionários
públicos.
Tomando como referência que a escritura de um indivíduo é condicionada pelo
local de onde ela escreve, pode-se inferir que as histórias que Anna Ribeiro retrata, detém a
memória social da elite que a que ela fazia parte. Pressupõe-se que olhar que ela lança sobre a
Bahia dos fins do século XIX e que servem de pano de fundo para a construção da trama
Violeta & Angélica, é imersa no imaginário senhorial acerca do seu passado.
Um olhar sobre a obra de Anna Ribeiro, no momento da escrita e/ou de suas
publicações, revela que ela teve três fases de publicação distintas que podem fornecer indícios
das características de suas obras. Na primeira fase, ela publicou dois romances, e ainda antes
da abolição da escravatura: A filha de Jephté (1882) e O Anjo do Perdão (1885). Após
dezesseis anos, a autora publicou Helena (1901), dando início a segunda fase de sua escritura.
A partir daí a autora publica mais quatro obras: os contos Dulce e Alina (1901), Violeta &
Angélica (1906), Marieta (1908) e, finalmente, o romance Letícia (1908). A autora volta a

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publicar treze anos depois, com Abigail (1921), deixando uma obra inédita que teria o título
de Suzana.
Nancy Rita Vieira Fontes afirma que Anna Ribeiro produziu ao longo da sua
carreira no mundo das letras um projeto literário que tinha três objetivos básicos: construir um
romance para mulheres; o intuito de escrever romances que tivessem um caráter formativo; e
criar uma obra que enfatizasse aspectos da realidade baiana (FONTES, 1995: 78). Nas
histórias ficcionais da romancista focam-se situações onde as famílias senhoriais têm de se
adaptar às mudanças verificadas na sociedade baiana no período de decadência da cultura
canavieira e do processo abolicionista.
É paradoxalmente esta intensa “aparência” de realidade que revela a intenção
ficcional ou mimética em Anna Ribeiro (CÂNDIDO, 1968: 20). Assim, permanece a
reinterpretação dada por ela nas suas escrituras, procurando dar “tons reais” a uma obra
imaginada a partir de sua realidade de vida. A própria Anna Ribeiro menciona esta questão
quando afirma na dedicatória feita à sua prima Mariotti de Araújo Góes, em Letícia:
“Acharás, porém, princípios de sã moral, bons exemplos tirados de fatos, nem todos
imaginários e sim colhidos na experiência e observação”. (BITTENCOURT, 1908: III)
Antonio Cândido considera que na ficção em geral, também na de cunho trivial, o
raio de intenção dirige-se à camada imaginária, sem passar diretamente as realidades
empíricas possivelmente representadas (CÂNDIDO, 1968: 42). As questões que concernem
ao imaginário de Anna Ribeiro como suporte para composição de suas narrativas têm
relevância nodal dentro da perspectiva de um estudo que propõe a análise dos textos literários
e das visões de uma ex-senhora de engenho. O vínculo entre o autor e a sua personagem
estabelece um limite à possibilidade de criar, à imaginação de cada romancista, que não é
absoluta, nem absolutamente livre, mas depende dos limites do criador. Ou seja, o imaginário
dos indivíduos é engendrado por uma série de experiências e discursos inerentes à realidade
do autor.
Sandra Pesavento lembra que o imaginário224 deve ser percebido como um
dinamismo organizador, dinamismo este que se converte em fator de homogeneização da
representação. (PESAVENTO, 1995: 21) Longe de ser mera reprodução ou espelho da
realidade, ela é em si elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo.

224
O Imaginário é aqui tomado como um conjunto de imagens e relações de imagens que constituem o capital
pensante do homo sapiens. (PESAVENTO, 1995: 17).

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Faz parte ainda de um campo de representação225 e, como expressão do pensamento,


manifesta-se por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade.
É nesta perspectiva que o conto Violeta & Angélica pode ser lido, se a intenção
for utilizá-lo como fonte de estudo para a História. Em suas linhas estão inscritas as
representações de uma ex-senhora de engenho que insere na sua narrativa a memória social do
seu grupo social acerca dos seus próprios traumas. Sendo a autora uma senhora de engenho
que atendia aos papéis que lhe conferidos no seio da família senhorial, o seu olhar acerca da
abolição da escravatura oferece uma leitura bastante peculiar sobre este evento.
A simples falta de serviçais para trabalhar na cozinha da casa-grande se
transforma numa “cena” dramática digna de inúmeros comentários por parte dos senhores e
senhoras de engenho. A (ex)senhora de engenho Anna Ribeiro lança mão de seus atributos de
escritora para construir modelos e contra-modelos de subalternos. Assim, existe o “bom” e o
“mau” ex-cativo e ele é caracterizado de acordo com a sua subordinação incondicional ou não
ao seu ex-senhor. Essa subordinação, na ótica paternalista, deve ser uma forma de
agradecimento pelo “bom cativeiro” que tiveram sob o poder das “piedosas famílias
senhoriais”. Dessa forma, enquanto uma é o modelo idealizado pelos senhores e se mostra tão
“agradecida” a ponto de trabalhar de graça e de atender aos seus desmandos; a segunda, pelo
contrário, é demonstrada pela autora como “rebelde” e ingrata, por que “abandona” seus
senhores logo após tomar consciência da Lei Áurea. Anna Ribeiro discute as posturas
adotadas pelos “bons” e pelos “maus” ex-cativos e constrói estigmas e eufemismos que
ajudam a compor esses tipos. As “Marias” e “Josefas”, como as personagens do conto Violeta
& Angélica, fizeram parte não só da ficção de Anna Ribeiro, como também do imaginário dos
ex-senhores e senhoras de engenho no Brasil.
Silvio Humberto dos Passos Cunha menciona que o controle sobre os libertos e a
necessidade de mantê-los sob a disciplina do trabalho eram preocupações centrais das elites
dirigentes nas sociedades pós-escravistas. Entretanto, observam-se diferenças acerca dos
mecanismos adotados para controlá-los, o que, por sua vez, guarda uma relação fundamental
com o tamanho do passado escravista a ser administrado. A atmosfera dos primeiros dias de
liberdade e a reação de perplexidade e indefinição dos oligarcas e seus porta-vozes
sinalizavam, em todo momento, que a economia baiana, em particular o Recôncavo,
caminhava para a débâcle caso não fossem adotadas medidas urgentes com vistas à
reorganização do trabalho, fosse compelindo o liberto ao trabalho ou arregimentando novas

225
Aqui a noção de representação deve ser tomada a partir da concepção de Jacques Lê Goff: “é tradução mental
de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração”. (Apud PESAVENTO, Op. Cit, p. 15)

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fontes de mão-de-obra (CUNHA, 2004: 126). Com a Lei do 13 de maio no entanto, muitos
ex-cativos dirigiram-se para a cidade de Salvador, ou para outros locais abandonando o local
onde viveram o antigo cativeiro, provocando uma desestrutura nas antigas lavouras e não só
lá, mas como registra Anna Ribeiro em sua prosa, muitas ex-senhoras se ressentiram de ter
que fazer os serviços domésticos, antes atribuídos aos escravos. O Barão de Vila Viçosa
registra a situação das “pobres” senhoras nos tempos seguintes a abolição:

Quando mães de famílias qualificadas viram-se obrigadas a ir para a


cozinha, quando crianças ficarão sem amamentação, viúvas octogenárias
foram forçadas a esmolar o pão pelas portas, quando os próprios libertos
incapazes de trabalho, abandonados pelos filhos morreriam de fome e se não
contassem com a caridade de seus ex-senhores, estava eloqüentemente
demonstrado que a lei 13 de maio era um ponto final à colheita da safra.
(Barão De Vila Viçosa, 1889)

O artigo do Barão reforça aquilo que Anna Ribeiro registrou sob o viés da ex-
senhora de engenho. Demonstra também a visão dos ex-senhores sobre a sorte dos negros,
uma vez fora dos domínios dos antigos senhores. Descontando a manipulação discursiva
empregada pelo Barão para convencer os leitores do Diário da Bahia de que a abolição da
forma com que foi precedida pelo Estado brasileiro foi prejudicial para ambos os lados o que
fica claro também é o ressentimento do ex-senhor em verificar que as elites femininas dos
engenhos de açúcar não teriam mais a “Corte de subalternas” ao seu redor para realizar os
serviços domésticos.
O Barão de Vila Viçosa sintetiza em parte o discurso adotado por Anna Ribeiro na
construção das personagens Maria e Josefa. Para, além disso, verifica-se também certo
afinamento entre os discursos dos ex-senhores. Em Violeta & Angélica as senhoras são
obrigadas a trabalhar nas funções que antes eram atribuídas as escravas, assim como o Barão
se ressentia em ser obrigado a "testemunhar” este cenário. Nesse caso, vale destacar a
permanência desse discurso na memória social da classe dos ex-senhores e de como eles se
preocuparam em dar uma versão sua da história, culpando o governo e os ex-cativos pela sua
derrocada econômica e social. Para isso, as estratégias de estigmatização adotadas pela ficção
de Anna Ribeiro são eficazes em transformar ex-cativos em “ingratos” ou “exemplos”. Como
se pode perceber nos tipos sociais das ex-escravas da Família Bastos em Violeta & Angélica.
Na narrativa, a “ingratidão” dos ex-escravos era na verdade a demonstração pelos
cativos de que suas vidas já não dependiam da vontade dos senhores. O trauma senhorial

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consiste na impossibilidade da manutenção da condição básica de sua autoridade, que


consistia em mandar e ser acatado. O que na visão senhorial eram “pirraças”, “manhas” e
“ingratidões” dos negros, para estes era a simples consumação legal da sua liberdade. Mas a
ideologia paternalista tende a reverter o sentido histórico desse acontecimento a partir de sua
ótica.
Daí a “vitimização” dos senhores e a “demonização” dos escravos na literatura de
Anna Ribeiro. Tratava-se de uma estratégia para estigmatizar os fatos e os eventos em
desabono do discurso do dominador. O jogo de palavras, enunciado nas suas narrativas,
fortalece essa idéia: os “bons” senhores que sempre ajudaram os seus escravos salvando-os e
curando-os das doenças, criando-os quase como filhos, são traídos e abandonados pelos
“ingratos” homens e mulheres que vão embora sem nem ao menos dar-lhes o tempo para
serem substituídos. Nesse caso o destaque também é para as relações entre senhores e
escravos dentro do ambiente doméstico, pois ele indica uma leitura de alguém que era
especialista no ambiente privado dentro do sistema patriarcal: a senhora de engenho.
É manhã de domingo, em Violeta & Angélica e as mulheres componentes da
família Bastos suam no fogão e na arrumação da casa grande. Só não trabalham mais do que
no tempo dos escravos, pois “a fiscalização era uma tarefa fatigante para quem não costumava
castigar os cativos e queria tudo a tempo e a hora”. A vida parece perfeita não fora uma
conversa entre Alfredo e D. Flora, sua esposa, acerca da família de seu irmão:

- Rosinha mandou-me dizer que não os esperasse para o almoço; que viriam,
porém, antes do meio-dia.
- Deus permita, disse D. Flora, que passem mais distraídos.
Que vida levam aquelas criaturas! Sempre a se queixarem, sempre de mau
humor! Isto é falta de resignação com a vontade divina.
- Na verdade, minha amiga, viver-se sempre envaidecido é insuportável!
Mas, às vezes... não se é santo. Hoje, fiquei furioso quando vi aquela
endiabrada vir despedir-se sem te haver avisado com antecedência, para
procurares outra ama. (BITTENCOURT, 1906)

D. Flora reclama do mau humor do seu irmão e das suas lamúrias ante a nova vida
sem o braço escravo. Segundo ela, eles deveriam se conformar com a “vontade divina”.
Alfredo, porém, afirma entender esse sentimento, e menciona o abandono da negra Maria, que
trabalhava para ele na casa-grande antes da Lei Áurea, mas que havia partido para a Cidade da
Bahia, logo quando soube da validação da lei. A liberta Maria encaixa-se no perfil daqueles
que, como Walter Fraga Filho menciona, entendiam que a migração significava distanciar-se

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do passado da escravidão (FRAGA FILHO, 2006: 314). Alfredo Bastos conta que a negra
fora embora sem nem ao menos despedir-se, mas o verdadeiro motivo da revolta do chefe dos
Bastos se revela nas linhas seguintes:

Ela, a quem sempre trataste mais como mãe do que senhora! A quem
salvaste a vida pelos desvelos que lhe prodigalizaste, há pouco tempo,
naquela grave moléstia!
- Ora Alfredo, nunca devemos esquecer que o dia do beneficio é a véspera da
ingratidão; e quando fizermos qualquer bem, procuraremos ter sempre os
olhos de Deus, nunca esperando o agradecimento das criaturas. Tendo isso
em mira, jamais nos surpreenderá o que deu com ela, e tem se dado coma a
maioria dos escravos. Demos graças a Deus de não sofrer com isso o que
outros sofrem. (BITTENCOURT, 1906)

Como foi dito, Maria representa os libertos que depois da Lei de 13 de maio
preferiram abandonar o antigo local do cativeiro em busca de um novo lugar para levar sua
vida sem a necessidade de manter relações de dependência com os antigos senhores. Além
disso, ela traduz a imagem do negro abandonando o engenho e, na visão dos senhores,
engrossando as fileiras dos desempregados e vadios das cidades. O temor das elites baianas
está sintetizada nessa personagem. A imagem do abandono das senzalas era uma projeção de
antigos medos senhoriais, algo que se intensificou nas últimas décadas do século XIX
(FRAGA FILHO, 2006: 312-313). Após abolição essa imagem continuou presente e como
visto nos contos de Anna Ribeiro ainda duas décadas depois ela permaneceria na memória
social dos antigos senhores.
Um “favor” concedido por Dona Flora, e uma consecutiva não retribuição da
negra Maria, explica a sua ingratidão. Ou seja, na perspectiva senhorial, a dependência dos
subalternos fortalecia-se, através de uma rede de concessão de favores, que deveriam
culminar na sua “gratidão”. No desenrolar da narrativa, entra em cena outra negra chamada
Josefa que, ao contrário de Maria, reconheceria os favores dos antigos senhores, e pagaria
tanta “bondade” com trabalho condicional.

Enquanto saboreava alegremente, entrou uma mulher, de cor parda, que


abraçou D. Flora pelos joelhos, á moda das escravas.
Depois de cumprimentar do mesmo modo as meninas, pediu a benção ao Sr.
Alfredo Bastos. Todos responderam-lhe amavelmente, e a esposa do
lavrador perguntou-lhe:
- Então, Josefa, você ainda por aqui? Disseram-me que tinha ido para a
Bahia.

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- É verdade, Yayá, que desejo ir; vossemecê bem sabe que tenho lá minha
filha. Mas, diga-me uma coisa: é certo Maria ter-se ido embora?
-É verdade, Josefa.
Oh! Meu Deus, exclamou a mulata, não podia acreditar?
O lavrador tomou aquela exclamação como um fingido sinal de sentimento,
para ocultar o gosto que a ex-escrava experimentava, vendo a colega pregar
uma peça a ex-senhora; e disse com ar zombeteiro:
- Ela fez o que vocês todas fazem. Felizmente, não sentimos a menor falta:
nunca almocei tão bem!
A mulata ficou triste e atarantada, dizendo depois:
- Minha senhora, eu sabendo que Maria saíra, vinha oferecer-me para ficar
servindo , até que vossemecê achasse outra melhor. Queria assim mostrar
que não me esqueço do que fez por mim naquela ocasião: si não me tivesse
apadrinhado, talvez hoje eu não existisse!... (BITTENCOURT, 1906)

Josefa é tão “resignada” que parece ter saído dos sonhos de qualquer senhor de
engenho. Ela mal consegue acreditar que Maria fizera o “absurdo” de abandonar seus ex-
senhores. Josefa é uma escrava que pensa a partir da lógica senhorial. Extremamente “grata”,
ela se esmera em agradar os antigos senhores. É como se ela atendesse a todas as
prerrogativas da ideologia paternalista idealizada pelos senhores. Posição semelhante assume
o garoto Pancrácio, personagem de uma das crônicas de Machado de Assis. Com toda
irreverência e ironia peculiar aos escritos machadianos, Pancrácio seria mais ou menos a
projeção do escravo presente no imaginário do senhor, enquanto o senhor seria aquele
imaginado, sarcasticamente na [re]criação de Machado. A crônica, já referida anteriormente,
conta a história de um senhor que se antecipa a abolição e decreta a “liberdade” de um de seus
escravos. A partir daí, ele simula uma situação que lhe garante a posição de benfeitor da
liberdade do “pobre” Pancrácio, e esse lhe é tão grato que continua trabalhando para o ex-
senhor mesmo depois a sua “alforria”. Um trecho da crônica, em especial, é bastante
elucidativo sobre as intenções do senhor de Pancrácio:

- Tu és, livre, podes agora ir para onde queres. Aqui tens casa, amiga, já
conhecida e tens um ordenado, um ordenado que...
- Oh! meu senhor fico.
- Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce nesse mundo;
tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho;
hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha só estás mais alto quatro dedos.
Artura qué dizer nada, não, senhô...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis, mas é de grão em grão que a
galinha enche o papo. Tu vales mais que uma galinha.
Eu vaio um galo, sim senhô.
[...] és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários,
trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra para satisfação do céu
(ASSIS, 1957 62-64).

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É bem verdade que o senhor de Pancrácio machadiano foi bem mais esperto que o
Sr. Alfredo Bastos do conto de Anna Ribeiro, ao se antecipar à abolição, como o próprio
personagem afirmou “eu pertenço a uma família de profetas [...] toda essa história de lei de 13
de maio já estava prevista por mim”. Mesmo assim, a intenção era a mesma: se utilizar dos
artifícios da velha ideologia senhorial para conseguir manipular os ex-cativos e tentar
arrancar-lhes alguma expressão de “agradecimento”. No caso da Maria, ex-escrava de Alfredo
Bastos, esses recursos parecem não ter tido lá grande êxito, pois ela abandonou seus antigos
senhores, sem nem ao menos despedir-se e partiu para a Cidade da Bahia [Salvador]. Quanto
a Josefa, a escrava “agradecida” preferiu retribuir os favores “concedidos” por Alfredo e D.
Flora, sem nem ao menos intentar em combinar o salário. Nesse ponto, a ex-cativa do conto
de Anna Ribeiro aproxima-se muito do Pancrácio da crônica machadiana. Os dois estão
agradecidos pelos seus senhores, os dois prestam-lhe serviços como seres “livres”. Liberdade
essa que não lhe garantia mais que “alguns petelecos”, como os aplicados pelo senhor de
Pancrácio, no jovem garoto, por “impulso natural”. Com certeza, tanto Josefa, quanto
Pancrácio valem “mais que uma galinha”, como nos diz o narrador machadiano, pois ambos
são necessários para a manutenção dos privilégio dos seus senhores. Os dois também são
projeções do imaginário senhorial vigente no Brasil final do século XIX. Certamente, a
descrição do senhor de pancrácio resumia bem o sentimento de ex-cativos e senhores, tanto da
crônica machadiana, quando do conto de Anna Ribeiro escrito dezoito anos depois do 13 de
maio: “Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados quase divinos” (ASSIS,
1957: 64).
O “bom” Sr. Bastos zomba da negra Josefa, por não acreditar nas intenções
“sinceras” e “agradecidas” da ex-cativa. Afirmando que não estavam sentindo a menor falta e
que, aliás, como tentam mostrar também sua esposa e filhas. Se sentiam falta ou não, o fato é
que D. Flora, aceita de pronto o pedido de Josefa:

- E pode entrar hoje? [pergunta D. Flora]


Agora mesmo.
- Então, fique; hoje temos visitas: você fará o jantar.
- Vou buscar minha caixa, que não trouxe por não saber si vossemecê me
queria: em um instante estou aqui.
E sai apressada e alegremente (BITTENCOURT, 1906).

A negra afirma que só iria para a Cidade da Bahia quando os Bastos “não
precisassem mais dela”. Josefa era uma negra bondosa e agradecida, o tipo de subalterno

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almejado pela ideologia senhorial. Era tipificada a partir desse ponto de vista, a opinião dos
cativos após a sua liberdade. Segundo essa forma de ver o mundo, os dependentes sempre
seriam contemplados pela bondade senhorial e em troca deveriam ser-lhes eternamente gratos.
No entanto, a própria D. Flora expõe que Josefa era apenas uma exceção – que não se deve
esquecer: fictícia. No intuito de dar uma lição às filhas ante ao “exemplo” da negra ela afirma:
“- Vejam, minhas filhas, nem todos são ingratos. É verdade que entre cem se encontra um
agradecido; mas, por isso mesmo, fica-se agradavelmente surpreendido; quando se faz
qualquer beneficio, sem a expectativa de agradecimento” (BITTENCOURT, 1906).
Essa “lição” denuncia que a ideologia paternalista fracassara, por não levar em
conta as posições dos outros sujeitos envolvidos na questão do “elemento servil”. Na verdade,
o comportamento de Josefa não é regra, e sim exceção. Assim como os mais de 100 escravos
pertencentes ao engenho dos familiares de Anna Ribeiro, a maioria dos ex-cativos dos
engenhos dos Bastos também tinha abandonado o antigo cativeiro e partido para a Salvador.
Aqui representações sociais e literárias se confundem, mas ambas expressam a mesma coisa:
os traumas de uma elite em decadência. Sem dúvida, do ponto de vista dos antigos senhores a
abolição da escravatura ocorreu de forma traumática (FRAGA FILHO, 2006: 131). E as
narrativas literárias de Anna Ribeiro não afirmam o contrário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE. Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e


cidadania negra (Bahia, 1880-1900). Tese de Doutorado em História. Unicamp. Campinas,
2004.

ASSIS, Machado. Bons das. In: Obras completas. V. 31. Rio de Janeiro: W. M. Jakson. Inc.
1957.

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, Seção Judiciária, Livro 586, p. 20.

Barão de Vila Viçosa, Diário da Bahia, 24 de fevereiro de 1889.

BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Dulce e Alina. A Bahia. Salvador. 5-15 de
junho/1901.

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Anais eletrônicos do I Congresso Sergipano de História
- ANPUH/SE e IHGSE - 181

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RACISMO E RESISTÊNCIA CULTURAL NA AMAZÔNIA


BRASILEIRA

Luiz Augusto Pinheiro Leal - UFBA


augustoleal@ibest.com.br

Este trabalho visa apresentar os principais debates em torno da presença africana na


Amazônia, ressaltando tanto a ausência de estudos especializados até os anos 60, além da
regular legislação repressora das manifestações culturais de origem negra presentes na região.
Tem como principal argumento a evidência de que a repressão desencadeada contra as
práticas culturais negras representava não apenas um racismo físico, mas também um racismo
cultural. Em outras palavras, observaremos que o projeto de embranquecimento da população
brasileira extrapolava os limites do clareamento de pele e alcançava o controle disciplinar do
corpo. O contexto histórico de referência trata da organização dos novos estudos raciais
brasileiros, especialmente entre os anos 30 e 60, do século XX.

Palavras-chave: racismo, embranquecimento cultural, intelectualidade, Amazônia.

.
.Do ponto de vista histórico, tal recorte temático consiste em uma perspectiva
unilateral, no que diz respeito às interpretações históricas do lugar da região norte na história
do Brasil, que segue outras interpretações monotemáticas A Amazônia, como referencial
simbólico, está na ordem do dia quando a mídia nacional ou internacional apresenta questões
relativas ao futuro da humanidade, particularmente no que diz respeito à preservação do meio
ambientejá desenvolvidas para o mesmo lugar. A própria noção de racismo na Amazônia
pode causar certo espanto devido à perspectiva que predominou por muito tempo a respeito da
irrelevância demográfica negra no norte do país. Fruto da teoria economicista dos grandes
ciclos econômicos e da centralização dos saberes acadêmicos no eixo centro-sul, a desatenção
à presença africana e negra no norte ficou relegado, muitas vezes, aos levantamentos de
exotismos culturais. Contudo, esse tipo de abordagem já foi duramente criticado por
antropólogos e historiadores que se debruçaram sobre a questão. Os antropólogos Napoleão
Figueiredo e Anaíza Vergolino, em 1990, ao desenvolver análise sobre a questão afro-
religiosa amazônica, depararam com uma vasta documentação sobre a presença africana na

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região desde o período colonial. 226 Por outro lado, os historiadores Flávio Gomes e Jonas
Queiroz apresentam uma vasta documentação e bibliografia sobre a experiência negra na
Amazônia revelando os diversos aspectos da resistência negra no norte do Brasil.227
Neste artigo, abordarei, em um primeiro momento, o esforço de intelectuais que se
debruçaram sobre a questão negra no estado do Pará, de literatos e folcloristas aos primeiros
antropólogos e historiadores. Em seguida, desenvolverei uma interpretação acerca do lugar da
história e cultura negra no Brasil a partir da trajetória de duas práticas culturais: o candomblé
e a capoeira. O ponto central da análise será a interação entre intelectuais e produtores de
cultura afro-brasileira, particularmente os praticantes da capoeira e de outras tradições
culturais afro-brasileiras. O período escolhido abrange os anos de 1934 até 1953. O ano de
1934 tornou-se referência por sediar a realização do I Congresso afro-brasileiro, em Recife,
sob a coordenação de Gilberto Freire. Já o Ano de 1953 representa o ano da chegada de
Edison Carneiro em Belém e seu primeiro contato com o paraense Vicente Salles, que daria
continuidade aos estudos sobre o negro na Amazônia. O período escolhido contempla o
momento de reorganização dos símbolos nacionais, a partir da implantação das políticas do
Estado Novo, e de ampla divulgação do discurso nacionalista brasileiro.228

BEM ANTES DOS ANTROPÓLOGOS...

Em 16 de novembro de 1938, um grupo de intelectuais compareceu ao palácio do


governo paraense para reivindicar “a liberdade dos cultos africanos em Belém”. Na ocasião
foram acolhidos pelo interventor federal José Malcher que, ao receber um “memorial
solicitando o restabelecimento dos cultos afro-brasileiros, então proibidos pela polícia”, se
comprometeu a ler o documento e tomar as providências necessárias. Contudo, nada foi feito.
Somente em 1948, quando um dos intelectuais envolvidos no manifesto (Paulo Eleutério
Filho), assumiu a chefia de polícia do estado e “alguns pais de terreiro” o foram procurar
visando obter “livre garantias ao exercício dos seus cultos”, a proposta inicial do movimento
foi atendida. 229

226
VERGOLINO-HENRY, Anaíza & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A Presença Africana na Amazônia
Colonial: Uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990, p. 27-31.
227
GOMES, Flávio e QUEIROZ, Jonas Marçal. “Em outras margens: escravidão africana”. In DEL PRIORE,
Mary & GOMES, Flávio (Orgs.). Os Senhores dos rios: Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2003.
228
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1996, pp. 15-25.
229
Todos os trechos contidos entre aspas constam em SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da
escravidão. 3.ed. ver. ampl. – Belém: IAP; Programa Raízes, 2005, p. 164, nota 47.

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O memorial apresentado pelos intelectuais possuía um caráter estratégico.


Destacava tanto a ausência de perigo, por parte dos cultos, aos princípios religiosos católicos
em vigor, como sugeria a importância de sua manutenção por auxiliar nos estudos e pesquisas
que poderiam vir a serem feitos. Para os intelectuais, segundo Vicente Salles, “o caráter dos
batuques ainda era religioso, com os ritos e os fundamentos místicos de uma religião
primitiva, já em contato com uma religião superior, como o catolicismo”. E, além disso, “não
se tratava apenas da liberdade dos cultos, mas da contribuição desses terreiros. Mesmo com
seu caráter profano, aos estudos sociais brasileiros”.230 Tais posicionamentos tanto
significavam um certo nível de cuidado com a tendência religiosa dominante, possivelmente
para evitar conflitos, como também uma atenção para a possibilidade da relação destes
intelectuais com o campo de saber associado às práticas culturais afro-brasileiras.
O manifesto de 1938 foi iniciado pelo folclorista Gentil Puget e teve a adesão de
25 intelectuais. Dentre eles, destaco os nomes de Bruno de Menezes, Nunes Pereira, Dalcídio
Jurandir e do próprio Gentil Puget que, entre outros, vão desenvolver estudos e referências
relativas ao negro no Pará. No mesmo ano, mas com quatro meses de antecedência, esteve em
Belém a Missão Folclórica Paulista, liderada por Luis Saia. Na ocasião, a missão teve a
oportunidade de registrar, entre os meses de junho e julho, tanto a manifestação do boi-bumbá
quanto o ritual do babaçuê231 em plena capital paraense. 232 Devido à proximidade espaço-
temporal, é possível considerar a possibilidade de relação entre o manifesto e a presença da
Missão Folclórica. Por outro lado, no ano anterior, em janeiro de 1937, ocorrera na capital
baiana o II Congresso afro-brasileiro que reuniu pesquisadores de diferentes temáticas e os
produtores de cultura negra da cidade. Entenda-se a categoria “produtores de cultura” como
os agentes responsáveis pela criação e realização de determinada prática cultural (capoeiras,
candoblezeiros, sambistas, etc).
A repressão aos cultos ou outras práticas culturais de origem africana não tinha
sido um fenômeno de violência experimentado exclusivamente na capital paraense. Em
Salvador e Recife uma dura repressão também fora desencadeada aos cultos de origem
africana, seja em relação ao candomblé ou ao culto de Xangô, respectivamente. O objetivo
também seria o controle ou a eliminação dos elementos da cultura negra do Brasil. Em relação
ao Pará, a violência institucional praticada contra os cultos afro-brasileiros era uma espécie de

230
Idem.
231
Babaçuê ou Babassuê consiste em uma doutrina afro-religiosa Amazônica. Na Missão Folclórica foram
levantadas três versões: "Doutrina de Lamanjá (Emanjá Já Micô Oro Ireê)", "Doutrina de Dossu (La Dossu
Semenome)" e "Doutrina da Cabocla Erondina (Vem me Ajudar a Rezar)".
232
Sobre a documentação gerada pela Missão ver http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/index.html

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continuidade a um projeto anterior de disciplinamento da população pobre, de origem negra


e/ou indígena, implementado desde o século XIX. Nesse caso, os principais alvos da política
pública em vigor foram os praticantes de capoeira e os membros de bois-bumbás.233
Em Salvador, no entanto, a experiência do II Congresso possibilitou a organização
institucional dos diversos terreiros de candomblé, principalmente como forma de resistência
às intensas campanhas de repressão promovidas pela polícia baiana.234 Intelectuais e
produtores de cultura negra se articularam de modo a construir uma nova forma de resistência
à violência instituída contra os grupos populares de origem afro-brasileira.235 Em Belém, a
articulação entre intelectuais e produtores de cultura não se deu no mesmo sentido.
O interesse pela cultura negra, longe de ser alvo de atenção de antropólogos e
outros cientistas sociais, como ocorrera na Bahia, sofreu um processo de quase completo
esquecimento após a década de 40. No entanto, a ausência de atenção era relativa. Se no
“paraíso da antropologia”, como muitos se referiam a Amazônia, os cientistas sociais haviam
“esquecido” da presença negra, outros intelectuais assumiram seus deveres. Nesse sentido,
Gentil Puget, Bruno de Menezes, Nunes Pereira, entre outros, dedicaram-se ao estudo das
religiões negras no Pará. Eram folcloristas, poetas e literatos que assumiam as tarefas que na
Bahia eram feitas por antropólogos e outros cientistas sociais.
Somente na década de 1960 a pesquisa antropológica retomaria a atenção para a
presença negra na Amazônia. Desta vez através de um casal de pesquisadores americanos
preocupados em estudar os terreiros de Belém entre os anos de 1963 e 1965.236 Em seguida
surgem os trabalhos de Vicente Salles e de Anaíza Vergolino, a nova geração de estudiosos da
cultura negra no norte do Brasil. 237 Com estes autores surgia a pesquisa acadêmica interessada
na história e cultura negra do Pará.

INTELECTUALIDADE E EXPERIÊNCIA NEGRA

O referencial metodológico utilizado para compreender a ação dos intelectuais


paraenses em relação à liberdade de culto, em 1938, corresponde ao conjunto de estudos

233
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. A política da capoeiragem: a história social da capoeira e do boi-bumbá
no Pará republicano (1888-1906). Salvador: EDUFBA, 2008.
234
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.
235
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
236
LEACOCK, Seth and LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: Drums, Mediums and Trance in a Brazilian
City. Garden City/New York: The American Museum of Natural History Press, 1972.
237
SALLES (2005) e VERGOLINO-HENRY, Anaíza. & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. Presença Africana
na Amazônia: a notícia histórica. Belém, Arquivo Público do Pará, 1990.

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relativos à formação da intelectualidade brasileira. Nesse caso, três trabalhos são bastante
significativos para a interpretação da temática proposta. O primeiro trata-se da pesquisa de
Nicolau Sevcenko sobre dois letrados do Rio de Janeiro – Euclides da Cunha e Lima Barreto
– que desenvolveram seus projetos literários sob uma perspectiva de intervenção nos
diferentes projetos sociais do final do século XIX238; o segundo é o trabalho de Sérgio Miceli
acerca da trajetória e engajamento sócio-político de intelectuais na República Velha e no
período do governo de Getúlio Vargas239; e por último a pesquisa de Aldrin Moura de
Figueiredo que apresenta pistas significativas em relação a produção intelectual no Pará do
final do século XIX até os anos de 1950240. A abordagem proposta neste artigo é distinta das
que foram apresentados pelos autores citados devido à atenção especial que será dada para a
interação entre os intelectuais e a cultura negra brasileira. Além do mais, os dois primeiros
estudiosos apresentados, ao tratar da construção de suas temáticas, não acrescentam
informações sobre o movimento intelectual no Norte do Brasil, salvo em relação aos estudos
de José Veríssimo.
Na Bahia, diferentes intelectuais do começo do século XX voltaram sua atenção e
estudos para a experiência africana no país. Parte de seus trabalhos tinha uma característica
literária-memorialística, mas posteriormente os temas dos trabalhos foram substituídos por
estudos “científicos” de caráter etnográfico.241 Logo a compreensão sobre a categoria raça
passou a assumir características culturais mais do que biológicas. No Pará, os estudos iniciais
voltados para a questão racial foram desenvolvidos até o início do século XX, mas em seguida
a atenção dos principais estudiosos paraenses se voltou quase que exclusivamente para a
literatura.242 Desse modo, parece não ter se desenvolvido uma atenção especial para a questão
racial entre os letrados paraenses. Até mesmo as experiências comuns entre a Bahia e o Pará,
como a ação de capoeiras na capangagem e a repressão às práticas religiosas de origem

238
SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
239
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
240
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A Cidade dos Encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-
brasileiras na Amazônia a constituição de um campo de estudo 1870 – 1950. Dissertação de Mestrado em
História, UNICAMP: Campinas, 1996.
241
No primeiro caso podemos encontrar os trabalhos de QUERINO, Manuel Raimundo. A Bahia de outrora, 3ª.
ed. Salvador, Progresso, 1946; VIANNA, Antônio. Casos e coisas da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1984; VIANNA, Antônio. Quintal de nagô e outras crônicas. Salvador: Centro de Estudos
Baianos, 1979; no segundo, os estudos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro. Sobre eles, ver
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 6ª edição. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978;
CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005; CAMPOS, Maria José.
Arthur Ramos – luz e sombra na antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004.
242
No primeiro caso destaco os trabalhos de VERÍSSIMO, José. “Raças cruzadas do Pará” [1878]. In: Estudos
Amazônicos, s/l, 1970; e nos seguintes a atuação dos letrados que trataram diretamente do tema racial em seus
trabalhos, particularmente, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir.

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africana, na década de 1930, não tiveram a mesma repercussão nos dois estados. Na Bahia o
engajamento de intelectuais garantiu a transformação de certas práticas culturais em
verdadeiros símbolos culturais do estado. No Pará, como vimos acima, houve mobilização
intelectual em torno da defesa da liberdade de culto nos terreiros, mas o movimento não gerou
uma interação maior entre os letrados e os produtores de cultura, tal como ocorreria na
Bahia.243
A ênfase dada à literatura como a documentação principal para o desenvolvimento
deste trabalho tem uma razão própria. A capoeira e outras práticas culturais afro-brasileiras
são representadas na literatura paraense através de diferentes trabalhos que variam entre
romances, crônicas e poesias. O período de alcance deste tipo de trabalho no Pará é
abrangente, inicia-se em 1888 (com a publicação de Hortência, de Marques de Carvalho) e
segue até os dias atuais (apesar dos interesses desta pesquisa não ultrapassarem as obras da
década de 70). Em pesquisa anterior, tive a oportunidade de constatar que diversos capoeiras
aparecem como personagens de obras literárias. 244 A representação dos capoeiras nesses
trabalhos pode ser classificada em pelo menos três estilos e períodos distintos. Em um
primeiro, a capoeira estaria caracterizada racialmente como uma prática típica do indivíduo
mulato. É o estilo naturalista exercitado em Belém de 1888 através do romance Hortência, de
Marques de Carvalho 245. Em seguida, partindo das primeiras décadas do século XX, através
do estilo literário que ficou conhecido como “Literatura do proletariado”,246 personagens
capoeiras, ora reais ora fictícios, perpassam as obras de Nélio Reis, Lauro Palhano e Dalcídio
Jurandir.247 Esta fase interage com uma terceira, cuja diferenciação está tanto no período
abordado como na forma de trabalho escolhida. Nesta etapa estariam dois escritores que, ao
contrario dos anteriores, não teriam apresentado os capoeiras como personagens de romances
completos, mas como participantes de crônicas memorialísticas sobre a cultura popular. Neles
os indivíduos citados não seriam fictícios. Existiram e seus feitos são contados por Jaques

243
SALLES, Op. Cit.
244
LEAL, Op. Cit.
245
CARVALHO, Marques de. Hortência. Ed. especial, Belém, Cejup/Secult, 1997.
246
Tendência que se caracterizava pelo engajamento sócio-político dos literatos brasileiros. Na Bahia, destcam-
se as diversas obras de Jorge Amado. No Pará, além de Bruno e Dalcídio Jurandir, pode-se destacar o trabalho de
REIS, Nélio. O rio corre para o mar. 2 ed. Pref. de Josué Montello. Belém: Fundação Cultural do Pará
Tancredo Neves/SECULT, 1990. 250 p. (Lendo o Pará).
247
REIS, Nélio. Subúrbio, Rio de Janeiro: José Olympio, 1937; PALHANO, Lauro. pseud. de Inocêncio
Campos. O Gororoba - Cenas da vida proletária. 2ª ed. Rio de Janeiro, Pongetti, 1943; JURANDIR, Dalcídio.
Belém do Grão-Pará, São Paulo, Martins, 1960; e JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos, Rio de Janeiro,
Record, 1976.

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Flores e José Sampaio de Campos Ribeiro.248 Ainda caberia nessa fase a obra Batuque, do
poeta Bruno de Menezes, cuja evidência de africanidade revela múltiplas características de
ação “capoeiral” no poema “Pai João”.249
Os jornais do período revelam o engajamento dos diversos intelectuais na política
partidária do Estado. A Folha do Norte (oposicionista), A Província do Pará (independente),
O Estado do Pará (governista), O Liberal (governista) e A Vanguarda (independente) são os
principais periódicos analisados para o recorte temporal proposto. Através deles,
considerando suas polarizadas atuações políticas, é possível captar o contexto político e
cultural em que os diferentes intelectuais estiveram envolvidos frente ao tema de seus estudos
e de seus princípios ideológicos. Resta agora compreender o significado da articulação
intelectual para a formação de certa identidade nacional para o Brasil, onde o negro poderia
ter lugar.

A INVENÇÃO DE UMA IDENTIDADE PARA O BRASIL

A compreensão da formação da identidade nacional brasileira passa


necessariamente pelos debates e projetos racialistas e racistas que permearam os bastidores
intelectuais e políticos no Brasil desde a segunda metade do século XIX. Conde Gobineau,
Sílvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros, são invocados, em contextos diferentes, para
representar aqueles que viam como uma influência negativa a presença negra na constituição
da nação brasileira. A eugenia, inspirada por estes intelectuais, fundamentava medidas
políticas que visavam o embranquecimento da população brasileira no menor tempo
possível.250 Entre tais medidas se destacam as diversas campanhas a favor da imigração
européia para o país e a violenta repressão às práticas culturais de origem negra em favor de
modelos culturais europeus. Repressão evidentemente resistida dos mais variados modos, o
que garantiu a permanência e organização das diferentes manifestações de cultura negra no
Brasil.
Entre as mais diversas práticas culturais afro-brasileiras que sofreram repressão no
Brasil, destacam-se duas manifestações culturais que ao longo das últimas décadas têm
proporcionado a guarda de saberes e a proteção material de diferentes elementos da tradição

248
FLORES, Jaques. pseud. de Luiz Teixeira Gomes, Panela de Barro, 2ª edição, Belém, Secult/Pa, 1990,
RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de Outrora. Belém: Editora Universitária, 1965.
249
MENEZES, Bruno de. Batuque. Belém, Falangola, 1960.
250
SCHWARCZ, Lílian K. Moritz. “Raça como negociação – sobre teorias raciais em finais do século XIX no
Brasil.” In FONSECA, Maria Nazareth Soares (org). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.

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cultural negra no Brasil: a capoeira e o candomblé. Ambas ao logo de suas histórias têm
recebido a atenção das autoridades brasileiras visando diversos fins. Na capoeira a trajetória
variou de usos e abusos a favor ou contra seus praticantes. No candomblé, a violência contra
os praticantes caracterizou o diálogo da sociedade com este saber ancestral dos africanos no
Brasil. Em ambos os casos, os produtores de cultura negra foram os mais prejudicados.
Contudo, a interação de diversos intelectuais, brasileiros ou estrangeiros, com as
manifestações culturais negras brasileiras gerou experiências positivas tanto para a divulgação
pública destes saberes tradicionais como para a delimitação sistemática das características de
culto, rito e/ou fundamentos destas práticas culturais. 251
Em relação à capoeira, por exemplo, o ano de 1937 é um marco para a sua
emancipação. Nesse ano a sua prática sairia do rol de crimes do código penal brasileiro.252
Para muitos capoeiras a descriminalização estaria vinculada ao esforço de mestre Bimba253
em promover a capoeira como educação física ainda na década de 30. Além disso, outro fator
que teria influenciado a saída da capoeira do código penal estaria relacionado a uma
apresentação que mestre Bimba fez, também em 1937, na Bahia, para Getúlio Vargas, então
presidente do Brasil. No entanto, o que poucos capoeiras sabem é que no mesmo ano ocorreu
em Salvador o II Congresso Afro-brasileiro promovido por diversos intelectuais preocupados
com o estudo da cultura negra no Brasil. Nesse congresso, os diferentes representantes de
práticas culturais afro-brasileiras foram convidados a se pronunciar, ampliando o diálogo
entre os estudiosos e os produtores de cultura negra na Bahia.254
Por trás dos novos significados atribuídos à capoeira (esporte, luta nacional ou
folclore) estavam os diferentes interesses de capoeiristas e intelectuais que inovaram os
estudos sobre a questão negra no Brasil ao substituírem, em suas interpretações, a categoria
raça pela de cultura (Destacam-se nesse aspecto os trabalhos de Arthur Ramos, Edson

251
CARNEIRO, Édison. Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980.
252
Em oposição a sua criminalização, de 1890 até 1937, surgiu, como alternativa funcional para a capoeira, a
folclorização, a partir da década de 1950, na Bahia; a esportivização, experimentada inicialmente nos anos 1960,
com a migração de mestres baianos para São Paulo, e oficializada em 1972 por portaria do MEC. Estes, então,
seriam os principais horizontes apontados para o futuro da capoeira. Interesses que correspondiam a projetos de
intervenção externa na capoeira, mas que na maioria dos casos também foi apoiada por capoeiras que buscavam
viver de seu ofício. Cf. REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil.
Rio de Janeiro: Publisher, 1998, p. 3; e BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas, SP:
Papirus, 2000, 24-38.
253
Manoel dos Reis Machado (1899-1974), mestre Bimba, foi estivador, carvoeiro, carpinteiro e trapicheiro.
Fundou a 1ª Academia de Capoeira, denominada Clube União em Apuros, situada à Rua do Bângala, Bairro da
Mouraria, Salvador-Ba, registrada e legalizada oficialmente na Secretaria de Educação, Saúde e Assistência
Pública, em 09 de Junho de 1937, como Centro de Cultura Física Regional, marco do ingresso da Capoeira na
“resistência legalizada.” Adaptação do site http://www.fortedacapoeira.org.br/regional.php
254
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995.

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Carneiro e Gilberto Freyre). Posteriormente a capoeira também seria resgatada a partir das
obras de Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger255. Literatura, pintura e fotografia seriam,
respectivamente, os instrumentos de divulgação das principais características positivas
daquela arte-luta. Claro que esses intelectuais não estavam dando atenção exclusiva para a
capoeira, mas sim a uma boa parte das manifestações culturais afro-brasileiras. Entre elas, as
práticas religiosas de origem africana, em especial o candomblé. Os homens das ciências e
das artes citados buscavam aprofundar seus estudos e trabalhos acerca da experiência africana
no Brasil a partir das manifestações culturais negras presentes em todo o país.
Nesse sentido, a capoeira e o candomblé, entre outras tradições afro-brasileiras,
desenvolveram ainda no século XX o processo de definição de sua prática e doutrina. A partir
da Bahia, a aproximação entre intelectuais e produtores culturais ajudou a expressar, dos mais
variados modos (livros, fotos, esculturas, pinturas, etc.), os significados da cultura afro-
brasileira vivenciada pelos seus herdeiros diretos: o povo do candomblé e da capoeira. Então,
podemos considerar que as práticas culturais de origem negra no Brasil transformaram-se em
um fenômeno inusitado de representação da identidade nacional às avessas. Ou seja,
carregava em si o paradoxo de ser um saber marginalizado pelos diversos projetos nacionais e
ao mesmo tempo um instrumento incomparável de divulgação da história e cultura afro-
brasileira pelo resto do mundo. Além disso, antes mesmo de qualquer debate político ou
acadêmico sobre o assunto, a capoeira e o candomblé já eram, para seus praticantes, um meio
excepcional de resistência e sustentação da identidade negra no Brasil, particularmente no que
diz respeito à guarda e divulgação de seus saberes.
Se em relação à Bahia, o processo de construção deste fenômeno pode parecer
mais evidente, o mesmo não acontece no que diz respeito a outras regiões do Brasil.
Intelectuais e artistas que contribuíram decisivamente para a divulgação nacional e
internacional da cultura negra baiana também demonstraram interesses por experiências
negras que estavam longe dos limites baianos. É o caso de Pierre Verger, Edison Carneiro e
Jorge Amado que, em momentos diferentes de suas trajetórias, construíram interações diretas
ou indiretas com a cultura, arte ou literatura sobre o negro no Pará. No entanto, estes aspectos
de suas trajetórias pouco são explicitados nos estudos relacionados aos seus respectivos
trabalhos. Cabe então interpretar os percursos destes intelectuais com outros que na Região

255
AMADO, Jorge. Jubiabá. 58ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000 e Tenda dos milagres. 30ª edição. Rio
de Janeiro: Record, 1983; CARYBÉ. As Sete portas da Bahia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987; e
http://www.pierreverger.org/br/photos/photos_themetree.php?leThemeID=1188

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Norte deram atenção para a presença negra na Amazônia. Em particular, Dalcídio Jurandir,
Bruno de Menezes e Vicente Salles.

A VEZ DA AMAZÔNIA

Enquanto a experiência religiosa negra era estudada de modo mais intensivo na


Bahia e no Maranhão, a Amazônia era considerada como o paraíso dos antropólogos
indigenistas. Havia uma perspectiva defendida por intelectuais como Edson Carneiro, em
1953, de que as tradições religiosas da Amazônia seriam apenas um reflexo imediato do que
acontecia no Maranhão. A diferente e menos expressiva presença negra na Amazônia, se
comparada com o Nordeste, fazia com que a atenção dos pesquisadores pelo aspecto
numérico menosprezasse a importância da presença africana na Amazônia. As tradições
negras, nesse contexto, eram alvos apenas da perseguição policial, detrimento jornalístico e,
gradativamente, da arte dos literatos. Neste último aspecto encontramos os intelectuais
citados acima. Os mesmos que apresentavam o negro em suas novelas, crônicas ou
memórias, também se interessavam em desenvolver estudos paralelos sobre o chamado
“folclore amazônico”. Nestes, longe de apenas trazerem informações sobre a vida cultural
indígena, também expunham casos relativos às tradições negras na capital paraense. Exemplo
disso é a coletânea de poesias intitulada Batuque, de Bruno de Menezes; a série de romances
de Dalcídio Jurandir, em que as manifestações da cultura negra do Marajó e de Belém
aparecem com bastante regularidade; e os estudos etnográficos de Nunes Pereira, que além da
temática indígena, também deu atenção aos estudos da Casa de Mina no Maranhão visando
entender a experiência religiosa no Pará.
A fase dos estudos sobre o negro, interessando apenas os literatos e folcloristas,
veio somente a ser modificada com a intervenção inicial dos primeiros estudiosos de
formação antropológica, a partir da década de 50. Vicente Salles, que trabalhou junto com
Edson Carneiro na Campanha de Defesa do Folclore, foi um dos pioneiros na abordagem do
negro na Amazônia de um modo mais sistematizado. Sua trajetória de vida e pesquisa se
entrelaça com as diversas situações culturais e históricas relacionadas ao negro no Pará.
Vindo do interior, conheceu bem cedo o poeta e folclorista Bruno de Menezes. Participou da
“Academia do peixe frito” e foi “desafiado” por Edson Carneiro a comprovar a importância

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da presença negra na Amazônia. Sua resposta, após extensa pesquisa, foi a elaboração de um
dos clássicos da bibliografia sobre o negro na Amazônia, o livro O Negro no Pará.
Somente a partir da década de 1970, com a fundação da Universidade Federal do
Pará, é que a abordagem acadêmica formal passa a se interessar pelo tema das religiões negras
na Amazônia. Nesse caso, o trabalho se inicia através da ação de Napoleão Figueiredo, um
militar convertido em antropólogo, que coletou material diverso relativo tanto às tradições
negras quanto às indígenas. Napoleão orientará a pesquisa de uma das pioneiras no estudo
das religiões de matrizes africanas no Pará: a antropóloga Anaíza Vergolino.
Relacionar praticantes de cultura com estudiosos de cultura auxilia na
compreensão da identidade brasileira como um imbricado processo de violência, negociação e
resistência do negro no Brasil. Além disso, permite que possamos pensar na própria atividade
do pesquisador/intelectual em relação aos compromissos éticos que ele poderia ter em relação
aos sujeitos estudados. Compromisso que, em primeira instância, poderia ser o rompimento
com uma das bases mais sólidas da injustiça social: a hierarquização entre o trabalho manual e
o intelectual, ou, em outras palavras, a prática cultural (experiência) e a sua respectiva análise
acadêmica (interpretação).

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A HISTÓRIA DE UM TERREIRO DE CANDOMBLÉ: AXÉ ILÉ OBÁ


ABAÇA ODÈ BAMIRÊ

Flávia Delfino dos Santos - FSLF


flahistoriando@ibest.com

A pesquisa em destaque tem como objetivo principal narrar à trajetória do terreiro e descrever
a vida de um sacerdote, que tem como nome de batismo José Augusto dos Santos, que nasceu
em 07 de abril de 1929, e morreu no dia 24 de outubro de 2006, mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Primeiramente serão revelados os principais momentos da vida do biografado
(José Augusto dos Santos) destacando as fases como infância, juventude e adulta ao mesmo
tempo foram abordadas as dificuldades enfrentadas por José e a sua aproximação com alguns
políticos, e principalmente destacar como se deu sua iniciação para em seguida compreender
os motivos que o levou a fazer parte do Candomblé. Zé D’Obacoussou contribuiu de fato para
a expansão do Candomblé. No segundo momento esta inserida a narração da história do
terreiro de Zé D’Obacoussou em Aracaju, sendo este atualmente Axé Ilé Obá Abaça Odé
Bamirê, neste foi visualizado as mudanças de locais do terreiro abre um novo espaço no
Município de São Cristóvão no Bairro Rosa Elze, no Eduardo Gomes. A principal fonte de
pesquisa se dá através da oralidade (fonte oral) de pessoas próximas ao mesmo, com o auxilio
também de alguns documentos.

Palavras-chave:: Zé D’Obacoussou, Candomblé, Terreiro.

1. A Vida de um Babalorixá

1.1. Memória e vida

Entre os sacerdotes de grande apreço e respeito no universo do Candomblé de


Aracaju, destaca-se José Augusto dos Santos, (mais conhecido como Zé D’Obacoussou) e por
isso ele é tema do presente trabalho. O sacerdote nasceu no município de Divina Pastora, no
Povoado Bomfim (antigamente Saco de Bomfim), no dia 07 de abril de 1929. Morava na Rua
do Canto em uma casa de taipa com três compartimentos ou cômodos. 256

256
Depoimento de Acelina Santana Bento, concedido a Flávia Delfino do Santos, no município de Divina
Pastora, no Povoado Bomfim, 27.11.2007.

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José Augusto conviveu com os seus pais, sendo estes Felisberto Augusto dos
Santos e Maria Tereza de Jesus e com seus cinco irmãos. Seu pai nasceu durante a vigência da
lei do Ventre Livre. Seu Felisberto Augusto dos Santos, conhecido por “Cubéu”, segundo
Santos, era um sábio e um bom rezador. Era quem assumia as despesas com a casa, pois os
sete filhos sobreviviam da “profissão” do pai que exercia a função de boiadeiro em fazendas.
José Augusto dos Santos revelou em seu livro que eram felizes, pois tinham uma casa, cabras,
galinhas, entre outros, para ajudar no sustento da família. Um dos momentos mais
complicados para a época foi que não havia uma legislação que beneficiasse (aposentadoria)
esses trabalhadores. Infelizmente muitos se viam lançados na marginalidade e no banditismo.
257

Segundo as memórias de Zé D’Obacoussou, o seu pai o Sr. Felisberto era do santo


e era de descendência Nagô. Essa memória permite especular sobre a existência de culto
doméstico afro na República Velha em Sergipe e também possibilita estipular sobre as
estratégias no processo de constituição de identidade e legitimação do seu ofício. Afinal o seu
pai já era do santo. “... Meu pai era pessoa do santo, mais não tinha casa aberta (...) Eu sou
descendente de nagô (...)”. (José Obacossô- sacerdote). 258
Já sua mãe, Dona Maria Tereza de Jesus era freqüentadora da Igreja Católica
Apostólica Romana. Trabalhava em uma das Usinas instaladas na época no povoado Bomfim,
mais precisamente na Usina Novo Horizonte, local onde infelizmente perdeu um dos braços.
Segundo Acácia descreve, “minha avó era branca, os cabelos dela segundo meu pai (Zé
259
D’Obacoussou), não dava uma volta e ela não tinha um braço”. Ela tinha o papel
fundamental de cuidar do lar, das crianças e também tinha como ofício a função de rendeira,
meio de distração da população da época.
José Augusto dos Santos nasceu no ano de 1929, momento em que aconteceu a
queda da bolsa de valores (Estados Unidos). No Brasil a queda é refletida na diminuição do
preço do café e também na exportação deste. Em Sergipe a “classe” empresarial e as finanças
internas também foram abaladas economicamente. Nessa fase também teve início a atuação
do grupo de Lampião na parte interiorana de Sergipe, mais propriamente no sertão. 260

257
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
258
MAIA, Janaina Couvo Texeira. Umbanda em Aracaju: na encruzilhada da história e da etnografia. São
Cristóvão - SE/ 1998
259
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
260
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889- 2000). – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2004.

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José Augusto dos Santos nasceu laçado e revestido com uma pele, sendo que as
suas parteiras foram duas negras nagôs, Rosa de Quirino e Maria Cecília. Mas é importante
relatar que foi Rosa quem o aparou na gamela e deu o primeiro banho nele com uma cuia e
colocou o primeiro nome dele, José, justamente por causa da película e pelo cordão umbilical
ter sido laçado na criança. Ou seja, segundo as memórias, é possível perceber que José
conviveu com pessoas de descendência africana. 261
Dona Maria Tereza de Jesus faleceu no dia 31 de Julho de 1932 e foi enterrada no
Cemitério de São Gonçalo em Divina Pastora. José se encontrava apenas com quatro anos de
idade incompletos. Nessa fase, em Divina Pastora, observa-se que a assistência médica da
época era muito precária, pois não houve um laudo pericial da causa morte da mãe de José.
Em termos de estudo José só conseguiu freqüentar a escola pública até a quarta
série primária, pois foi expulso. Em seguida, José foi para a Escola Municipal Filenila Fontes,
onde, por intermédio de D. Finé, ele conseguiu algumas roupas como também aprendeu a
magia da leitura. Mais por motivo de sobrevivência foi trabalhar no campo.

(...) logo fui obrigado a deixar a escola para ir para o campo trabalhar”...
plantei capim, cana-de-açúcar, chamei boi e também lancei tijolo na olaria.
Quando tinha tempo pescava guanhamum de ratoeira. Quando havia caxixe
pescava de jerére nos rios. Caxixe era sobra dos caldos-de-cana que o
engenho soltava e apodrecia as águas. Os peixes ficavam como bêbados e ai
eu podia pegar muitos para comer. (SANTOS, 2000: 10)

Mesmo com todos os problemas no âmbito econômico e educacional em Sergipe


da época, Zé D’ Obacoussou conseguiu, com o seu mérito, concluiu o ensino já na fase adulta,
tanto do primeiro grau quanto do segundo, ou seja, do ensino fundamental e médio através de
um “Cursinho” por correspondência.
Com a morte da sua mãe a família fica composta pelo pai e seus seis filhos; João
Augusto dos Santos, Maria Luzia, Eunice Augusto (Nice), Maria da Glória (Pequena,
Dofona), Ernestina Augusto (Neta), Aluízio Augusto (Daí) e José Augusto dos Santos
(Cubéu) o filho caçula. Com um ano de falecimento da mãe de José seu pai e os irmãos
passam a enfrentar diversas dificuldades. Após a venda dos animais e da casa do povoado
Bomfim, eles se mudam para o município de Riachuelo, na fazenda Olinda. 262

261
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.
262
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.

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1.2 Juventude de Cubéu

Na Fazenda Olinda, em Riachuelo José começou a freqüentar sessão de mesa de


Toré. Com o afastamento de seus irmãos, o único que permaneceu ao lado do pai foi José. 263
Ele começa a dar indícios de como foi a sua inserção no meio dos cultos afros, sendo assim no
início do século XV.
Durante a sua infância, José Augusto não teve tempo para brincar, já na juventude
Cubéu (nome herdado do seu pai), sempre se dedicou a ajudar no sustento do seu pai, através
da pesca, da roça entre outros. Com o retorno de José para o Riachuelo trabalhou como
alfaiate e depois foi trabalhar em uma mercearia para o senhor Zacarias, já com treze anos de
idade, Cubéu foi trabalhar de marceneiro.
Com apenas quinze anos de idade ele vinha para a capital aracajuana. Saia a pé
do Povoado Bomfim para o Município de Riachuelo e tentava pegar o trem que de lá saía com
destino a Aracaju. E, infelizmente, quando não conseguia pegar o trem, ele vinha a pé para
Aracaju devagarzinho cortando pelo mato até chegar. Outro motivo das vindas de José a pé
para Aracaju poderia também ser o financeiro, pois ocorre a possibilidade de que ele não
tivesse o dinheiro para viajar se utilizando desse transporte (trem).
O trem era um meio de transporte bastante utilizado na época, dentre as cidades
do interior e da capital.

(...) o deslocamento era facilitado pelos trens da Leste Brasileira,


popularmente conhecidos como Maria Fumaça, que passando pela periferia
de Aracaju e em várias outras cidades sergipanas e baianas, transportavam
mercadoria e gente. (DANTAS, 2002: 97)

José Augusto, com intuito de ajudar o seu pai vinha a pé para a Cidade de Aracaju
ou na Marinete do Senhor Mizael para trabalhar na casa de Dona Feia. Logo em seguida, sua
irmã Luzia foi trabalhar com ele na mesma casa. Tanto José como Luzia faziam doces na
Casa de Dona Feia sendo que estes eram vendidos de porta em porta. Já durante os finais de
semana quinzenalmente e de trem Cubéu e Luzia levavam o que ganhavam para o pai
(Felisberto). José ia nos finais de semana fazer carrego264 no Mercado Central da época
levando em um cesto apoiado na cabeça as compras.

263
Idem.
264
Carrego é ato de carregar as compras de alguns consumidores em troca de alguns trocados as quais eram
revertidos para o seu pai.

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Percebe-se que entre a infância e a juventude José Augusto teve que encarar
diversas dificuldades como fome, a perda da mãe com sua pouca idade, o afastamento dos
irmãos e depois tentar encontrar subsídios para cuidar de seu pai e para sobreviver, sendo que
ele foi o único que não abandou o pai com a vinda para o município de Riachuelo, mais
precisamente para uma fazenda localizada em Olinda.
Vários dos seus irmãos migraram para municípios vizinhos e até para outros
estados, como Rio de Janeiro e Salvador.
Então, diante das dificuldades, Cubéu resolveu sair da zona rural para a zona
urbana. No ano de mil novecentos e quarenta e três, o pai de José, Felisberto tem uma
infecção intestinal a qual provoca o seu falecimento no mesmo ano. Após o ocorrido José,
com o objetivo de mudar de vida, sai de Riachuelo (Olinda) para tentar uma nova vida na
capital aracajuana.
Após sua mudança definitiva, Cubéu encontrou a sua primeira mãe de santo
Maria das Dores, depois ele conheceu Maria de Pelage, e posteriormente Bailó. Estas eram
mães- de- santo antigas aqui na capital de Aracaju. Maria das Dores foi que o “abrigou” em
sua pensão. Essa senhora era filha de santo de Nanã de Aracaju.265
Ainda jovem, com exatamente 18 anos de idade, Cubéu namorou uma senhora,
Dona Flora, que teve a oportunidade de conhecer na casa de Nanã. Ela morava no Bairro
América, no Alto da Bela vista e era iniciada. Mas José Augusto só esteve pouco tempo ao
lado desta senhora. Com ela teve o seu primeiro filho, chamado Emanuel, mas a senhora
vendeu a criança, segundo Santos, quando esta tinha exatamente três meses de nascida. José
ao descobrir o acontecido foi conversar com D. Flora e soube que a criança tinha sido levada
para conviver ao lado de um casal. Logo em seguida, abandonou D. Flora e depois de algum
tempo ele soube que ela estava grávida do segundo filho chamado de José Augusto. No
entanto, José falou a Dona Flora que só criaria os dois filhos. 266
José Augusto foi por um tempo evangélico, mas depois ele se deu conta de que a
parte espiritual ou mediunidade continuava prevalecendo, ou seja, mesmo sem nenhuma
preparação ou iniciação a mediunidade já era aflorada. Tentou também ser coroinha da Igreja
Católica, levando o defumador, mas também não encontrou nessa a sua religião.
Observa-se que José circulou por várias religiões. É nesse momento que amplia-se
o Toré ou Torreia em Aracaju. Nesse contexto ele começou a freqüentar o Toré, pois achava

265
SANTOS, José Augusto dos. A vida de um babalorixá: a luz D’Obacoussou brilha sobre nagô de Aracaju.
Rio de Janeiro: Portais, 2000.
266
Idem.

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bonito. Quando passou a freqüentar seus orixás boiadeiro, amazoneiro e senhores caboclos
que já se faziam presentes, desde muito cedo para ensinar remédios.
Segundo suas memórias, desde sua infância se torna perceptível a sua
mediunidade, fato que marcou sua vida. Então constata-se que era realmente um autodidata,
pois, mesmo sem possuir "formação” alguma, conseguiu aprender e ensinar aos seus “filhos”
diversos conhecimentos desde relacionados à natureza até o ato de lidar com os cultos e o
respeito para com a tradição.
Já que naquela época ele se encontrava solitário, José começa a freqüentar casas
de santo. Entre as pessoas que ele conheceu na cidade de Aracaju tem a Srª. Maria Luiza a
qual narrou que era praticamente vizinha dele no Bairro Suíssa e por gostar de freqüentar e
olhar Candomblé o conheceu. Maria Luiza revela que nesse momento José estava casado com
uma senhora com o nome de Zizinha. É exatamente nessa fase que os três (Zé D’Obacoussou,
Maria Luiza e Zizinha) saíam, com o intuito de brincar nas casas de Candomblé.

1.3 O início da vida de um Babalorixá

No nagô há uma “hierarquia” que está dividida em Louxa, Babalouxa, Ialouxa,


Patrão e Ajudante os quais, têm raiz africana. As orações, os cantos fazem parte dessa
religião. Não há a raspagem do cabelo, somente lava-se a cabeça e canta-se para o santo que o
filho de santo recebe.
No dia 3 de maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data como sua primeira
obrigação, a senhora Maria de Pelage, da nação Nagô lavou a cabeça de José no Rio Sergipe,
coroando em sua cabeça Obacoussou o rei que nunca morre (Xangô), “nasce” então Zé
D’Obacoussou.

Segundo Santos:

(...) fiz santo no dia primeiro de fevereiro de mil novecentos e quarenta e


nove, na Rua do Acre com minha mãe Bailo. Recebi adeká com minha mãe
Nanã e Bailo no mês de julho já no bairro Suíssa, em Aracajú, pois já tinha
casa de santo, o primeiro barco que recolhi foi de cinco iaôs e assim
prossegui com minha vida de Babalorixá.”(SANTOS, 2000: 18).

A partir desse momento Zé D’Obacoussou começou a trabalhar com o santo, ou


seja, fazendo consultas com os caboclos Boiadeiro, Juremeiro (raspado Erê Jureminha) e Tupi
Amazoneiro, e trabalhou também durante um tempo com o Exú Bandeira.

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Outra senhora que chegou a compartilhar parte da vida com Zé D’Obacoussou foi
a Srª. Ondina Borges ou D. Zizinha, que era viúva e foi à primeira esposa dele. Ela era natural
do município de Riachuelo, local onde Zé D’Obacoussou morou durante alguns anos, sendo
uma das fases da sua vida com o seu pai. Ao lado de Zizinha, José chegou a ter sua primeira
filha oficialmente reconhecida. Foi chamada Maria Tereza Borges dos Santos que chegou a
gerar um filho Francisco César Borges, neto de Zé D’Obacoussou.
Ao receber seu adecá, o babalorixá ou pai- de -santo, passa fazer iaô, que são os
filhos de santos; ogan, que são responsáveis pelos toques para que os virantes (filhos de santo)
recebam as entidades de acordo com o seu chamado, havendo assim uma hierarquia no
Candomblé.
Francisco, filho de Maria Tereza, morava com a sua avó mais com o falecimento
de sua avó Srª. Ondina, passou a residir na casa de seu avô (Zé D’Obacoussou) durante um
ano e meio. Os filhos que Zé D’Obacoussou teve do primeiro namoro, com a senhora D. Flora
foram Emanuel Lima e José Augusto dos Santos, a primeira filha fruto (casamento) foi Maria
Tereza, já Acácia Maria é a quarta filha e Elielson, são fruto de um novo casamento entre Zé
D’Obacoussou e a Senhora Nercília Silva quando este já se encontrava morando no Estado do
Rio de Janeiro.
Durante a década de setenta, fase em que Zé D’Obacoussou foi ao Rio de Janeiro,
ele passou por momentos complicados, pois teve em uma noite de natal uma trombose
cerebral. Depois, no próximo ano, exatamente no mês de dezembro, teve um problema na
garganta e recebeu a notícia de que não iria mais conseguir se comunicar. Mas no mês de
dezembro com os festejos para Iansã, com a finalização dos festejos, houve a cura para José.
Já na década de oitenta, Zé D’Obacoussou tem um infarto agudo no miocárdio,
com a sua melhora depois de um intenso tratamento. Após retorna para casa e faz suas
obrigações. Depois de certo tempo José tem uma infecção intestinal que teve duração de um
ano e alguns meses. Após driblar tantas vezes a “morte” por intermédio dos Orixás que o
protegia, retorna para Sergipe de forma um tanto forçada, pois José não tinha o objetivo de
retornar para Aracaju.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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1.4 Ketu e Zé D’Obacoussou

Segundo Acácia “(...) ele fundou a casa dele não é, a primeira casa de candomblé
que ele fundou foi na Suíssa, ai da Suíssa, quando ele começou a crescer e daí venho para a
Avenida Rio de janeiro número 1949, dali ele foi fazer uma filial no Rio de Janeiro onde
durou trinta, trinta e um anos, na Rua Helena, número 12 cidade Leal”.
Com a saída “definitiva” de Zé D’Obacoussou para o estado do Rio de Janeiro a
sua irmã Maria da Glória (Dofona) assumiu e ficou à frente do terreiro na Avenida Rio de
Janeiro, conhecida como Linha de Ferro. Entre os filhos de santo que foram iniciados lá tem
Manuel Antônio (Sileu Ace) que foi recebido por Dofona e foi iniciado na Avenida Rio de
Janeiro,

Eu chegando da Umbanda de São Paulo aonde fiquei nove anos, né o


problema espiritual, eu mi levaram até a casa de Zé D’Obacoussou na linha
de ferro aonde, lá eu encontrei a irmã, a falecida Dofana, né.” (Manuel
Antônio). 267

Com a sua saída para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por 31 anos, Zé
D’Obacoussou conseguiu criar e confirmar diversos adeptos, inclusive foi no Rio que ele
conseguiu se tornar mais conhecido e respeitado, com a nação Angola.
Entre as suas viagens realizadas pelo sacerdote, existiram as nacionais como para
São Paulo e as internacionais (sendo estas a África, Paraguai, Uruguai, Argentina, Estados
Unidos). Todas as viagens realizadas foram de cunho principal voltado para trabalhos e a
viagem para a África, mais especificamente para a terra de Xangô (Oió), com o objetivo de
conhecer mais fundo a origem de sua entidade maior.
Com o retorno, de Zé D’ Obacoussou abre um novo espaço religioso no Eduardo
Gomes.
É através destas viagens que o sacerdote Zé D’Obacoussou consegue “conhecer”
adquirir e aprimorar o culto religioso, pois estas viagens possuem um papel muito
significativo para alguns sacerdotes, por serem uma forma de promover transações ou até
ligações com as raízes dos Cultos, desde viagem ao Rio de Janeiro, até principalmente para a
África, tida como o berço dos cultos. Deste espaço é possível retirar não só o conhecimento,

267
Depoimento de Manuel Antônio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 08.11.2007.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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mas profundo sobre os cultos mais também trazer elementos do continente africano para o
Brasil como forma de veracidade ao culto ou até mesmo de continuidade e de valorização da
tradição africana.
Com o falecimento de sua irmã Maria da Glória (Dofona) e com grave problema de
saúde, Zé D’Obacoussou retornou para Aracaju onde acaba abrindo um novo espaço
religioso, localizado no Eduardo Gomes no município de São Cristóvão, na Rua Almir Caz de
Azevedo, número 595.
Foi no Eduardo Gomes que Zé D’Obacoussou conseguiu manter bons
relacionamentos com políticos, entre estes Leandro Maciel, que foi Senador e Deputado
federal, servindo como representante do estado de Sergipe. Essa relação é refletida e
comentada, por seus descendentes, Segundo Acácia:

Na época que meu pai morava aqui em Aracaju, ele contava pra gente que
dia de aniversário dele, Leandro Maciel mandava sempre uma banda do
corpo de bombeiros acordar ele, então ele era acordado com aquele toque
das cornetas dos bombeiros, meu pai sempre foi muito querido, muito bem
quisto.268

Percebe-se então que Zé D’Obacoussou mantinha uma relação muito boa para
com a política da época. A prova disso é que era realizado um tipo de homenagem durante os
dias de seu aniversário, sendo que essa homenagem era mantida por parte de um político de
destaque na época, ou seja, se encontrava em grande evidência no cenário político, sendo este
Leandro Maynard Maciel que por intermédio da UDN (União Democrática Nacional) foi
eleito em uma fase em que no Brasil os udenistas estavam sendo considerados como os
causadores da morte de Getúlio Vargas. Mesmo assim, o Leandrismo é considerado como
uma das fases que Sergipe teve realmente uma liderança política que sempre desenvolveu em
atividade administrativa uma política desenvolvimentista voltada para o Estado.

Exerceu relacionamento amistoso com as lideranças dos diversos grupos de


culto afro brasileiro e facilitou o acesso de homens do “povo” ao Palácio,
muitas vezes sem hora determinada nem protocolo para recebê-los.
(DANTAS, 2004: 132).

Com o seu retorno para a cidade diversos adeptos promovem uma festa, em que se
comemorou a volta do sacerdote mesmo estando gravemente debilitado, pois as doenças

268
Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedido a Flávia Delfino dos Santos, São Cristóvão,
10.10.2007.

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provocaram em alguns momentos de fragilidade. Mas o chefe religioso continuou sendo um


bom zelador e companheiro dos que chegavam ao terreiro, “a volta dele do Rio de Janeiro
para o Eduardo Gomes, quando ele veio definitivo, foi a maior festa de todos os tempos, foi
em 89 ou 90 (...).” (Manuel Antônio).

Passaram-se os anos e por motivo de saúde, e até mesmo para preservar a


minha vida meu pai Oxosse pediu que voltasse para Aracaju onde estão as
minhas raízes, meu primeiro axé, assim foi feito com a ajuda de Deus e de
todos os orixás. Foi construído outro barracão, pois precisava dar obrigação
e seguimento do axé D’Obacoussou pois tudo de ruim me acontecia.
(SANTOS, 2000: 94)

Com o seu retorno para a capital aracajuana o Babalorixá já tinha suas mãos
abençoadas pelos Orixás de Xangô, Oxosse, Oxum, Oxalá e Iansã.
Entre as viagens realizadas anualmente por Zé D’Obacoussou, estava a ida a sua
cidade natal no município de Divina Pastora para o Povoado Bomfim com o simples objetivo
de estar presente na celebração de missas anuais e rever parentes e amigos de infância.
O espaço religioso fundado e mantido por Zé D’Obacoussou durante muitos anos
recebe atualmente o nome de Axé Ilé Obá Abaça Odé Bamirê, sendo que quem assumiu o
trono foi o Babalorixá Obá Fanidê, Arvanley Augusto.
Diante dos ensinamentos deixados pelo sacerdote Zé D’Obacoussou é visível que
tanto na música ou através de seus cânticos e do seu livro o respeito e a tradição da cultura
afro permanecerá viva dentro de cada um dos seus três mil filhos de santo que reconhecem e
valorizam a vida de Zé D’Obacoussou.
Nosso personagem principal morreu em 24 de outubro do ano de 2006 no
aeroporto internacional do Rio de Janeiro o Babalorixá Odê Bamirê mais conhecido como Zé
D’Obacoussou. Essa então foi a última vez que Zé D’Obacoussou retornou para a sua cidade.
Seu corpo foi transportado até o cemitério no carro do Corpo de Bombeiros, onde teve
centenas de seguidores. Durante o cortejo e diversos poderes civis, militares, federais,
administrativos e políticos de Aracaju e de outras localidades prestaram sua homenagem.
Zé D’Obacoussou foi uma pessoa ilustre, que valorizava a beleza natural das
plantas, ervas, era um sacerdote que adorava principalmente dançar e cantar Candomblé, um
personagem da História da cultura afro de Sergipe para o mundo e para a maioria das pessoas
que o conheceram, o tinha como “rei”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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editora da Universidade de São Paulo.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças dos velhos. 3 ed. – São Paulo:
Companhia das letras, 1994.

BYRON, Tôrres de Freitas; VLADIMIR, Cardoso de Freitas. Os orixás e o Candomblé. 2ª


edição. Editora Eco.

CAMPOS, Vera Felicidade de Almeida. Mãe Stella de Oxossi: perfil de uma liderança
religiosa. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889- 2000). – Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro 2004.

DANTAS, Beatriz Góis. Vovô nagô e papai branco – usos e abusos da África no Brasil.
1988.

LODY, Raul. Candomblé: religião e resistência cultural. Ed. Ática.

LIMA, Vivaldo da Costa. A família de santo nos Candomblés jejes-nagôs da Bahia: um


estudo de relações intragrupais. – 2 ed. Salvador: Corrupio, 2003. 216p. : il.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda, integração de uma


religião numa sociedade de classes. – Petrópolis: Vozes, 1978.208 p.

SILVA, Vagner Gonçalves da (organizador). Caminhos da alma: memória afro-brasileira.


- São Paulo: Summus, 2002.

SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado atlântico: a África no Brasil e o Brasil na


África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Ed. UFRJ, 2003. 287p.

ENTREVISTAS

Depoimento de Acácia Maria S. Sampaio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, São
Cristóvão, 10.10.2007.

Depoimento de Acelina Santana Bento, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Povoado de
Divina Pastora – Bomfim, 27. 11. 2007.

Depoimento de Manuel Antônio, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju,


08.11.2007.

Depoimento de Maria Luiza, concedida a Flávia Delfino dos Santos, Aracaju, 09.11.2007.

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Depoimento de Maria de Lurde Santos; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.

Depoimento de Maria José Jesus; concedida a Flávia Delfino dos Santos; Aracaju,
28.11.2007.

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ENTRE O RACISMO E A CIDADANIA: O LUGAR DO CANDOMBLÉ


NO UNIVERSO RELIGIOSO BRASILEIRO NAS DÉCADAS DE 1930 E
1940

Julio Cláudio da Silva - UFF


julioclps@uol.com.br

Qual é o lugar do candomblé e das religiões de origem africana no universo religioso


brasileiro? O candomblé é a religião dos orixás formada na Bahia no século XIX, a partir das
tradições e costumes de grupos africanos escravizados trazidos para o Brasil. Nossa
comunicação analisa o papel dos especialistas nos estudos das religiões afro-descendentes nas
lutas pela liberdade dos cultos religiosos nos candomblés da Bahia, nas décadas de 1930 e
1940. Líderes religiosos, intelectuais e ativistas negros reivindicaram a liberdade religiosa
como parte da luta anti-racista do período. Um caso emblemático desse processo foi à
fundação do Conselho Africano da Bahia e a elaboração do Memorial a ser encaminhado ao
governador do Estado. O argumento central do Memorial é o de que já estaria provado por
Nina Rodrigues, Arthur Ramos, e os integrantes do Congresso Afro-brasileiro de 1934 e 1937
que as religiões de origem africana não atentam contra a moral e a ordem pública. Fez parte
da luta pelo respeito aos direitos civis à retirada das mãos da polícia do controle daquelas
atividades religiosas. No limiar do século XXI o governo federal brasileiro tem adotado
diversas medidas para valorizar positivamente o afro-descente e sua cultura, inclusive sua
religião. Nossa comunicação tentara identificar um dos momentos precursores a esse
processo: a organização de um amplo arco de aliança na luta anti-racista de valorização
positiva dos afrodescendentes e sua cultura no Brasil na primeira metade do século XX.

Palavras-chave: Candomblé, congresso afro-brasileiro.

O Anti-Racismo dos Estudos das Populações e Culturas de Origem Africana

Qual é o lugar do candomblé e das religiões de origem africana no universo


religioso brasileiro? O candomblé é a religião dos orixás, formada na Bahia no século XIX,
por ladinos a partir das tradições e costumes de grupos africanos escravizados trazidos para o
Brasil. Para podermos responder minimamente a essa questão é necessário percebermos as

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marcas das hierarquias sociais da sociedade escravista, metamorfoseada em hierarquias raciais


de cunho pseudocientíficas engendradas na América Colonial Portuguesa, no Brasil Império e
nas primeiras décadas da República. A percepção negativa das populações e culturas
afrodescendentes se desenvolveu no decorrer do século XIX com certos níveis de hegemonia,
no Brasil e no mundo, até o fim da década de 1940. O presente artigo analisa o papel dos
especialistas nos estudos das religiões afro-descendentes nas lutas pela liberdade dessas
religiões em geral e dos candomblés em particular, nas décadas de 1930 e 1940. A valorização
positiva das religiões de origem africana nesses estudos fez parte do posicionamento político
de alguns de seus estudiosos. Na primeira metade do século XX, líderes religiosos,
intelectuais e ativistas negros reivindicaram a liberdade religiosa, como parte da luta anti-
racista do período. Um caso emblemático desse processo foi a fundação do Conselho
Africano da Bahia e a elaboração do Memorial a ser encaminhado ao governador do Estado
da Bahia, em 1937. O argumento central do Memorial é o de que já estaria provado por Nina
Rodrigues, Arthur Ramos, e os integrantes do Congressos Afro-brasileiros de 1934 e 1937
que as religiões de origem africana não atentam contra a moral e a ordem pública. Fez parte
da luta pelo respeito aos direitos civis a retirada das mãos da polícia do controle das
atividades religiosas. Todavia a resistência às reivindicações destes setores da sociedade nos
leva a acompanhá-las até o último ano da década de 1940. No limiar do século XXI o governo
federal brasileiro tem adotado diversas medidas para valorizar positivamente o afro-descente e
sua cultura, inclusive sua religião. Contudo, novos desafios se apresentam. As religiões dos
afrodescendentes não são mais um caso de polícia, mas são percebidas e combatidas, sobre
tudo pelas igrejas pentecostais, como demoníacas.
As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas pelo debate em torno da elaboração,
redefinição do novo conceito de nação. Como parte deste processo foram ampliados e
sistematizados os estudos acadêmicos dos significados das populações e culturas de origem
africana na formação social brasileira. Ao buscar contribuir e influir nos debates acerca de
nossa formação social esses estudos constituíram-se em objeto de um campo intelectual
(BOURDIEU, 1992; 1990; 1974) de reflexão, conhecido neste período como Estudos Afro-
brasileiros. Neste campo intelectual, os estudos das religiões afrodescendentes tornaram-se
um dos seus principais objetos de estudo.
Um dos objetivos do presente artigo é analisar os significados do estabelecimento
de relação de alianças entre os especialistas nos estudos das religiões afrodescendentes, seus
lideres religiosos e o ativismo negro, no processo de valorização positiva dessas
manifestações culturais, em particular as estratégias e lutas desses grupos pela liberdade dos

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cultos das religiões afrodescendentes em geral e dos candomblés da Bahia em particular, nas
décadas de 1930 e 1940. A referida relação de alianças fez parte dos posicionamentos anti-
racistas do período, tomados em espaços de sociabilidade como o 1º Congresso
AfroBrasileiro do Recife, 1934, o 2º Congresso Afro-Brasileiro ocorrido na Bahia em 1937, é
1º Conferência do Negro Brasileiro, realizada no Rio de Janeiro em 1949, bem como a
manifesto público pela liberdade religiosa feita nas páginas do jornal Quilombo em 1950.
Tomaram parte nessas redes de relações especialista nos estudos das religiões de origem
africana como Arthur Ramos269 e os intelectuais ativistas negros como Edson Carneiro270.

Anti-Racismo E Cidadania: A Luta pela Liberdade Religiosa dos Negros na Bahia

O anti-racismo presente nos Estudos Afro-Brasileiros e na trajetória de alguns de


seus especialistas os aproximou dos intelectuais ativistas dos “movimentos negros”, nos
espaços de sociabilidade intelectual. Essa aproximação se deu em eventos como os
Congressos Afro-brasileiros de 1934(Recife) e 1937(Bahia), as Comemorações do
Cinqüentenário da Abolição da Escravidão 1938 (São Pulo) as preparações das celebrações
pelo Cinqüentenário do Fim do Tráfico Negreiro, 1ª Conferência Nacional do Negro de 1949
(Rio de Janeiro) 1º Congresso do Negro Brasileiro 1950 (Rio de Janeiro). Estes eventos foram
marcados por uma grande participação de intelectuais, gerando debates e disputas em torno
das interpretações do papel das populações e culturas de origem africana na sociedade
brasileira. Esses registros revelam o estabelecimento de alianças entre os intelectuais e
membros das “associações negras” (SILVA, 2005).
Nesta relação, coube aos intelectuais garantirem a legitimidade das ações e
reivindicações de movimentos sociais, como no Congresso de 1937 e na 1º Conferência do
Negro Brasileiro de 1949, mensurada sua importância pela participação ou expressão de apoio
de intelectuais reconhecidos. Nesses eventos os trabalhos poderiam ser apresentados
pessoalmente pelos autores ou lidos por seus representantes. Uma outra forma de vinculação
ao evento era o apoio manifesto: “quando, por uma questão de brevidade de tempo, não
pudessem enviar trabalhos”. No caso do Congresso de 1937 esse tipo de apoio teria sido dado
269
Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu no Estado de Alagoas em 1903, foi professor catedrático em
Antropologia e Etnologia na Faculdade Nacional de Filosofia e diretor do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, em Paris, onde falecerá em 1949.
270
Edison de Souza Carneiro nasceu em Salvador, Bahia, em 12 de agosto de 1912. Faleceu no Rio de Janeiro
em 1973. Diplomou-se em Direito em 1935 na Faculdade de Direito da Bahia. Foi ensaísta, jornalista e redator
dos jornais Estado da Bahia (1936-1939), O Jornal (1939) e da Associed News (1941), folclorista e etnólogo.
(COUTINHO e SOUSA, 20001. p. 1411-1412. Vol. I).

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por Rüdiger Bilden, Fernando Ortiz, Richard Pathee, Melville Herskovits (CARNEIRO e
FERRAZ, 1940. 8).
A ampla rede de solidariedade, na qual se assentara o 2º Congresso Afro-
Brasileiro, era formada também pelo apoio de instituições religiosas e laicas. Assim como em
34, os “terreiros” da Bahia teriam participado do Congresso de 37. Mas neste último ficou
registrado oferecimento de festas aos congressistas. O Axé Apo Afonjá, do Engenho Velho,
“o mais velho ‘terreiro’ do Brasil”, teria oferecido uma delas. Outras festas teriam sido dadas
pelos terreiros de Procópio, de Bernadino e do Alaketu (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. 8). O
Congresso da Bahia foi o primeiro a receber significativa atuação e apoio de organizações
definidas por Arthur Ramos como “Associações Negras Contemporâneas” (RAMOS, 1971).
Foi recorrente a reivindicação de Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz, em relação à
cientificidade do Congresso da Bahia. Contudo, vinculado aos “movimentos negros”, neste
evento se deu a fundação de uma entidade em defesa da liberdade de culto religioso, a União
das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia (CARNEIRO e FERRAZ, 1940. p. 11).
A luta pela “liberdade religiosa dos negros” na Bahia parece ter sido uma
iniciativa de Edison Carneiro. No dia 3 de agosto ele teria convocado ogãs, pais-de-santo e
gente de candomblé para fundar o Conselho Africano da Bahia. O Conselho designaria um
representante de cada candomblé para substituir a polícia no controle dos cultos. Neste dia
todos teriam assinado o memorial ao governador, solicitando a liberdade religiosa e o
reconhecimento da autoridade dos conselheiros. Nessa tomada de posição anti-racista
Carneiro contava com o prestígio de um importante aliado: Arthur Ramos, a quem escreve.
“Já fiz o memorial e vou fazer os estatutos do Conselho. Acho que conseguiremos tudo, pois
o governador271 tem uma bruta admiração por você e por Nina”.272 O argumento central do
“Memorial” é de que Nina Rodrigues, Arthur Ramos e os participantes do 1º e 2º Congresso
Afro-brasileiros já teriam provado que a prática de seitas africanas não atenta contra a moral
ou ordem pública. Todos os intelectuais ligados aos congressos “têm reclamado a liberdade
religiosa dos Negros como uma das condições essenciais para o estabelecimento da justiça
entre os homens”.273
O “Memorial” é uma evidência dos resultados possíveis da aliança entre
intelectuais e os ativistas dos movimentos sociais. Todavia é o processo de utilização do nome

271
Segundo Waldir Freitas Oliveira, o governador citado era o capitão Juracy Magalhães interventor do estado
da Bahia e eleito para o cargo em 1934. Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos de 04/01/1936 a 06/12/1938.
(FREITAS e LIMA, 1987. p.152-153).
272
Carta de Edson Carneiro a Arthur Ramos 19 de julho de 1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ
273
O documento foi publicado em RAMOS, Arthur. O Negro na Civilização Brasileira(1939). Rio de Janeiro,
Guanabara, Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971. p. 200.

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dos intelectuais participantes dos Congressos de Recife e da Bahia, particularmente o de


Arthur Ramos, na construção do argumento de autoridade cientifica que nos interessa
destacar. Essa passagem revela como as teses acadêmicas formuladas por Ramos sustentaram
as reivindicações dos atores sociais organizados em 37 e posteriormente em 49, entre as quais
a liberdade de culto religioso. Reivindicar a livre expressão de uma religião é tentar, na
prática, garantir direitos civis, logo uma atitude política, portanto rechaçar algum nível de
discriminação. Talvez isso explique a razão de especialistas nos Estudos Afro-Brasileiros,
sobretudo, nos estudos de religiões de origem africana, estabelecerem essas aproximações ou
relações de solidariedade com esses atores sociais.
Parece que os diversos modos de contato e aproximações dos especialistas nos
Estudos Afro-brasileiros ou Afro-americanos com os ativistas negros foram além dos limites
dos Congressos e dos países. A ação da rede internacional de idéias permitiu a Melville
Herskovits o acesso a uma das obras de Edison Carneiro, Religiões Negras274. Naqueles anos
o “Negro” Edison Carneiro era definido como um escritor “contemporâneo dedicado aos
problemas do Negro”, e também percebido como um “dos elementos de destaque no moderno
movimento brasileiro de reivindicação do negro”.275
Esses dados podem ser importantes para o estudo da trajetória dos atores sociais
envolvidos com o ativismo negro, pois no final dos anos quarenta Edison Carneiro também
co-organizou, ao lado de Abdias Nascimento276 e Guerreiro Ramos277, a 1º Conferência do
Negro de 1949. No último ano desta década Edison Carneiro redigiu um artigo publicado no
jornal Quilombo do Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento.
Nesse artigo Edison Carneiro denuncia a privação da liberdade religiosa e exorta os fiéis
prejudicados a uma mobilização coletiva.

274
Nas correspondências Arthur Ramos e Melville Herskovits comentam a proximidade
existente nas abordagens de Religiões Negras e O Negro Brasileiro. Sobre esta obra,
Herskovits a teria utilizado extensivamente para a elaboração do “paper” enviado ao 2º
Congresso Afro-brasileiro. Cartas de Arthur Ramos a Melville Herskovits de 01/12/1936 e de
Melville Herskovits a Arthur Ramos de 7/01/1937. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.
275
“Lista dos brasileiros de qualquer raça que influenciaram sobre a vida dos Negros”. Manuscrito de 1937, S/L.
Arquivo Arthur Ramos/FBN-RJ.
276
Abdias Nascimento nasceu em Franca, São Paulo no dia 14 de março de 1914. Diplomou-se em contabilidade
em 1929 e ciências econômicas em 1938. Foi diretor-fundador do Teatro Experimental do Negro (1944-1968) e
um dos organizadores do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro de 1950. Dicionário Histórico Biográfico
Brasileiro Pós 30. (ABREU et al. 2001. p. 4030-4031).
277
Alberto Guerreiros Ramos nasceu em Santo Amaro, na Bahia, em 13 de setembro de 1915 e faleceu em Los
Angeles, Califórnia, nos Estados unidos, em 7 de abril de 1982. Bacharel em Direito em 1943 pela Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, Assessorou Getúlio Vargas entre 1951 e 1954 e dirigiu o Departamento de Sociologia
de ISEB. bid. ABREU, Alzira A. et al. p. 4883.

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Uma iniciativa do Teatro Experimental do Negro, com o apoio do Quilombo, a 1º


Conferência do Negro Brasileiro de 1949 também buscou dar relevo ao caráter cientifico do
certame. A proposta de reunião estaria “despida de qualquer tendência político partidária”,
mas centrada em temas acadêmicos: “exclusivamente com estudos dos problemas de
antropologia e sociologia relacionados ao negro”. O objetivo da Conferência era organizar um
“Congresso dos Negros” de âmbito nacional, o qual receberia representação de todo o país
para o debate em torno “das questões básicas para o progresso da gente de cor”. Para a
Conferência seriam convidados todos os intelectuais e artistas que em alguma medida
estivessem preocupados com o desenvolvimento da temática, entre os quais: “Gilberto
Freyre278, Arthur Ramos”. Como ocorrera no Congresso de 37, o apoio de especialistas nos
estudos afro-brasileiros como Arthur Ramos e Roger Bastide, 279 além dos representantes das
Nações Unidas e dos “negros”, garantiram a legitimidade acadêmica e política para o
acontecimento.
O evento recebeu uma cobertura internacional muito valorizada, a do “The
Pittsburgh Courier”, na figura do “eminente jornalista George Schuyler”280.Segundo o
Quilombo, o escritor e jornalista George S. Schuyler representava “o mais importante órgão
da imprensa negra norte-americana”. Sua presença seria o testemunho “da importância
nacional e internacional desse evento” (Quilombo. nº.3. 1949. p.6). Mas ela também pode ter
refletido a ampliação do arco de aliança dos especialistas nos Estudos Afro-brasileiros. Foi a
um deles que Schuyler solicitou informações, sobre o evento que pensara ser o primeiro do
gênero no Brasil. Por isso o The Pittsburgh Courier o considera um episódio muito
significativo.281 Cabe sublinharmos a extensão das alianças estabelecidas pelos especialistas
do campo dos Estudos Afro-brasileiro, particularmente nos estudos das religiões de origem
africana, junto aos movimentos sociais. As relações com os movimentos sociais se
estenderam até os órgãos de imprensa negra norte-americano

278
Gilberto Freyre nasceu em 15 de março de 1900 em Pernambuco, onde faleceu em 18 de julho de 1987. Foi
Sociólogo formado na Universidade de Bayler e em Columbia, nos EUA. (COUTINHO e SOUSA, (Dir), 20001.
p. 733-734.
279
Roger Bastide nasceu em 1898 (o dicionário não informa data ou local de seu falecimento). Foi Professor da
FFCL da USP e membro do Instituto Internacional de Sociologia. Foi especialista em Sociologia e Folclore da
Religião. (Dicionário de Sociologia., 1981. p.42).
280
Idem p. 1 e 8. Sobre a cobertura jornalística de Schuyler ver também os nº. 2. p. 1; 3. p. 6-7..
George S. Schuyler nasceu na Provincia de Rhode Island, nos Estados Unidos da América, em 25 de fevereiro de
1895. Foi editor do The Pittisburgh Courrier. Descrição Biográfica de Schuyler S/D. S/L. Arquivo Arthur
Ramos/ FBN. Dª Ruth de Souza confirmou a presença de Schuyler no Brasil em 1949 e o descreveu como
“negro”. Entrevista com a atriz Ruth de Souza, feita em dia 31 de julho de 2004.
281
Carta de George S. Schuyler a Arthur Ramos 22/4/1949. Arquivo Arthur Ramos-FBN/RJ.

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Anti-Racismo e Cidadania: A Luta pela Liberdade Religiosa dos Negros nas Páginas do
Quilombo

Em janeiro de 1950 Edison Carneiro retoma o tema da liberdade dos cultos afro-
descendentes ao publicar nas páginas do jornal Quilombo o artigo “Liberdade de culto”. A
publicação deste artigo, treze anos após a publicação do memorial apresentado ao Governador
da Bahia, evidencia a longevidade destas reivindicações.282 Em outras palavras, associações
negras e seus líderes lutavam por esse direito na segunda metade da década de 1930 e
defendiam essa causa ainda no último ano da década de 1940. O artigo aponta os limites para
a prática da cidadania naqueles dias. Em diversas passagens do texto Edison Carneiro faz uma
etnografia do conflito dos religiosos com a policia (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
“Nenhuma das liberdades civis tem sido tão impunemente desrespeitada no Brasil,
como a liberdade de culto”. Apesar de sua base democrática o texto constitucional não tratava
com a clareza necessária quais eram os limites para as práticas religiosas. Por isso qualquer
policial “se acha no direito de intervir numa cerimônia religiosa para semear o terror entre os
crentes.” Segundo Carneiro esse tipo de intervenção teria se tornado uma prática cotidiana,
um “habito”, mesmo que a casa de culto possua “personalidade jurídica”, como prevê a
Constituição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
O autor refere-se ao desrespeito a um direito elementar do cidadão afro-
descendente e dos demais seguidores daqueles cultos. Segundo Carneiro está era uma
liberdade “elementar”. Contudo, sua limitação seria diretamente proporcional à escala da
hierarquização na qual eram percebidas “as religiões chamadas inferiores” por diversos
setores da sociedade e também pela polícia: “E quanto mais inferiores, mais perseguidas”, ao
contrário da Igreja Católica que não seria incomodada pelas autoridades policiais, mesmo que
seus fieis em procissão interrompam o tráfego de uma cidade como o Rio de Janeiro. As seitas
protestantes, budistas e mulçumanas também não seriam alvo da atenção policial por terem
seus cultos protegidos pelo manto da discrição (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
As evidências de experiências de discriminação praticada e patrocinada pelo
Estado através da polícia às religiões de origem africana remontam ao final do século XIX.

282
Ver também “O problema da liberdade de culto” seguida da transcrição da carta do Sr. Paulo Eleutério Filho,
ex-chefe de polícia para o Prof. Nunes Pereira. Quilombo, nª 10, jun/jul de 1950. p.4.

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‘O Sr. Dr Secretário de Polícia e Segurança Pública por oficio que dirigu ao Dr.
Primeiro Comissário Falcão recomendou-lhe que faça cessar um candomblé,
que há dias está funcionado no lugar denominado Gantóis, e contra o qual tem
havido queixas’.283

Os cultos afrodescendentes, com suas danças rituais, possessões e oferendas,


associada à possibilidade de audição, de seus cantos e instrumentos certamente lhes conferem
um certo nível de visibilidade. Pode ter contribuído para ampliar sua visibilidade o
significativo número de fiéis e templos praticantes de religiões de origem africana. Pelo
menos este é o quadro sugerido por Edison Carneiro em diversas passagens do texto. Com as
imagens que se seguem o autor nos sugere as razões pelas quais tais cultos tornaram-se presas
fáceis da pouca tolerância religiosa daqueles dias. “Já as religiões mais populares, mais do
agrado da massa, – o espiritismo e macumba, – são vítimas quase cotidianas da influência
moralizadora – depredação, as borrachadas e os bofetões – da polícia” (Quilombo, nª 5, 1950.
p.7).
Carneiro ligava a ação policial a uma campanha na imprensa quase que diária, “de
segunda a sábado”, contra os cultos afrodescendentes. Para ele as “folhas diárias numa
inconsciência criminosa dos perigos a que expõem todos os brasileiros, incitam policiais a
invadir esta ou aquela casa de culto, cobrindo de ridículo as cerimônias que ali se realizam”
(Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
A Constituição então vigente, em seu artigo 141 parágrafo 7, garantia a
inviolabilidade da liberdade de consciência e de culto. Todavia havia uma ressalva. Caberia
ao Estado intervir quando os cultos “contrariam a ordem pública ou os bons costumes”. Para
ele a falta de clareza resulta da falta de uma lei complementar que regulamente a matéria,
cabendo às instituições policiais a interpretação do que seria contrariar a ordem pública e os
bons costumes (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).
Naquele janeiro de 1950 o intelectual e ativista negro Edison Carneiro, em tom de
denúncia, deixava claro suas desconfianças a respeito da ação policial. E colocava em duvida
a legitimidade da ação policial em função de sua truculência e da sua falta de prerrogativas
para avaliar ou lidar com as alternativas religiosas que se apresentavam para a sociedade
brasileira naqueles dias.

Sabemos o que pode acontecer, em desmando e em arbitrariedade, quando


algum dos direitos do homem fica entregue aos façanhudos. Javerts
indígenas. Quanto à ordem pública e aos bons costumes, será a policia quem
pode decidir nestas questões? (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).

283
Diário de Notícias. Salvador, 6 de outubro de 1896. Apud. (Memórias das Palavras, 2006).

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Em mais uma passagem na qual relaciona a campanha pública veiculada na


imprensa como uma invocação das instituições policiais, Edison Carneiro indaga por que as
práticas religiosas poderiam ser interpretadas como contrárias à ordem e aos bons costumes, e
descrevendo o tipo de tratamento dado pelos policiais aos fiéis. Neste sentido esta é uma
passagem elucidativa, quanto à definição de truculência, apontado pelo autor (Quilombo, nª 5,
1950. p.7).
O macumbeiro que fuma o charuto do Velho Lourenço, engole brasa ou esmaga
cacos de vidro com os pés nus, não está prejudicando ‘os bons costumes’. Isso não impede
que seja espancado, metido no tintureiro, atirado no enxovia, ultrajado e vilipendiado pelos
escribas da imprensa venal. Nem o médium espírita servindo de veículo para os mortos,
conduzindo para o seio dos vivos os irmãos do espaço, está pondo em perigo ‘a ordem
pública’. Com efeito, que ‘ordem pública’, ‘bons costumes ’serão esses? Todos sabem que é a
intervenção policial nesses cultos que subverte a ordem (Quilombo, nª 5, 1950. p.7).

Liberdade de Culto” representa a continuidade da luta iniciada em 1937,


liderada pelo próprio Edison Carneiro e seus pares. Nesta batalha também se
denunciou o controle policial sobre a realização das festas previstas no
calendário religioso dos Candomblés da Bahia: “a despeito de sua fama
internacional, do respeito que merece de homens de consideração, ainda
paga um selo policial para realizar as suas festas”.

A estratégia argumentativa de Edison Carneiro consistia em demonstrar que as


limitações religiosas não recaiam somente sobre as “macumbas do Rio, os parás de Porto
Alegre, os xangôs de Maceió e do Recife, a pajelança e o catimbó, o tambor-de-mina, as
sessões espíritas”, em fim, as religiões não católicas, mormente as afrodescendentes. Segundo
Carneiro, naqueles anos a Igreja Católica Brasileira teve suas atividades religiosas suspensas
em função da ação judicial. Seu objetivo era demonstrar em que medida as religiões não
católicas estavam sujeitas a limitações de suas práticas, e como tais limitações ferem um
direito universal a cidadania.
Em Liberdade de Culto, Edison Carneiro utiliza a mesma estratégia dos
defensores da tese de que as religiões de origem africana atentam contra a moral e os bons
costumes, ao utilizar a imprensa como veículo privilegiado de ampliação e circulação de suas
idéias. Porém, o objetivo do intelectual e ativista negro, é promover o efeito contrário, uma
ação antidiscriminatória, anti-racista. A imprensa seria um meio de conscientizar e

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arregimentar seguidores das mais diversas religiões, para a luta de uma causa comum: a
liberdade de culto.
Contando com o declarado apoio de dezenas de milhares de pessoas, em cada
cidade brasileira, as religiões perseguidas necessitam de coesão entre si, precisam organizar-
se para a conquista comum – por cima das divergências e das diferenças de concepção do
mundo – de um direito que interessa a todas. Não é a polícia quem assegura o exercício dos
direitos do homem – a prática o tem demonstrado – mas a organização, a vigilância e a
combatividade dos cidadãos. Lutando organizadamente pela liberdade de culto, as pequenas
religiões conquistarão o seu lugar ao sol (Quilombo, nª 5, 1950. p.2).

Entre a Demonizaçao e a Cidadania: O Anti-Racismo na Valorização Positiva do Afro-


Descendente e sua Cultura no Limiar do Século XXI

Nas últimas décadas a sociedade brasileira tem testemunhado uma multiplicação


do número de fiéis das igrejas evangélicas, pentecostal e neo-pentecostal. Entre as igrejas não
católicas que se apresentam como alternativa religiosa, as neo-pentecostais são as que mais se
multiplicam e possuem as estratégias de evangelização mais agressiva. Apesar de não
contarem com a brecha da lei e o apoio policial, essas religiões não deixam de possuir um
aliado poderoso: a mídia eletrônica.
Através de programas e cultos televisionados, em seus canais exclusivos ou em
horários pagos, igrejas as pentecostais e neopentecostais promovem um duro combate às
igrejas católicas e às religiões de origem africana. A estratégia evangelizadora consiste na
demonização de religiões como a Umbanda, religião de origem africana que reúne elementos
religiosos do Candomblé, do catolicismo e do kardecismo. O mesmo se dá em relação aos
Candomblés, religião com forte identidade com suas matrizes africanas, subdivididas em
nações como Angola, Congo, Jeje, Nagô, Ketu e Ijexá.
Os rituais praticados nas casas ou terreiros são dirigidos por um sacerdote
denominado Babalorixá (pai-de-santo) ou por uma sacerdotisa Ialorixá (mãe de santo). Os
orixás são divindades ligadas a elementos da natureza, mas, para as igrejas pentecostais e
neopentecostais os orixás em geral são identificados com satanás e sua ação na terra, sendo o
Exu a divindade que mais sofre essa identificação. Nos candomblés os Exus são divindades
consideradas o elo de ligação, o intermediário entre o céu e a terra. Dotados de poderes como
a onipresença são os donos das encruzilhadas. Também são os orixás mais identificados com

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a essência humana, despida de idealizações, a ambivalência humana dos comportamentos e


desejos contraditórios.
Em relação aos orixás e particularmente aos exus, as igrejas neopentecostais
promovem uma verdadeira cruzada, com momentos em seus cultos para a sua expulsão, ou
dias específicos destinados ao seu descarrego ou libertação. Vários dos conflitos e
dificuldades de ordem econômica, ou ligada à saúde física ou emocional, são atribuídas às
macumbas ou aos exus.
Pelas ruas de diversos bairros do subúrbio do Rio de Janeiro e Baixada
Fluminense é possível se ler nos muros pichações que estabelecem a relação entre a
demonização das religiões de origem africana, de seus orixás e, sobretudo dos exus. “Só Jesus
expulsa demônios”, “Só Jesus expulsa o Tranca Rua” ou “Só Jesus expulsa os Exus”.
Nos últimos anos tem havido uma tentativa de intervenção profunda na
organização do ensino fundamental no Brasil. Uma delas foi a aprovação e implementação
dos PCNs no final dos anos noventa. Segundo Hebe Mattos, por ser seu objetivo a formação
do cidadão, a adoção de temas transversais, como o da “pluralidade cultural”, pode
“transformar-se em ferramentas importantes na luta contra a discriminação racial no
Brasil”(2003, p. 126-136). Mais recente foi a alteração de parte da LDB (Lei. 9.394 de 20 de
dezembro de 1996) em função de novas atribuições estabelecidas pela lei 10.639 (9 de janeiro
de 2003) cujo artigo “26-A” estabelece a inclusão, nos conteúdos programáticos das escolas
do ensino fundamental e médio do estudo da História da África e doa africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro na área social, econômica e política e pertinentes à
História do Brasil.284 A reabilitação, via legislação federal, de temas conhecidos nos anos 30 e
40 como Estudos Afro-brasileiros talvez seja um caminho para se rechaçar formas antigas e
modernas de discriminações das manifestações culturais de origem africana, entre as quais as
religiões. Talvez as inovações promovidas por esta legislação, viabilizem a criação de novos
modos de construção do conhecimento que considerem o direito à diversidade humana, que
respeite as diferentes crenças e as alternativas religiosas existentes na sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

284
Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. In Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
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COUTINHO, Afrânio e SOUSA, J.Galante de (Dir). Enciclopédia de Literatura Brasileira.


Global Editora-FBN-ABL, Rio de Janeiro-São Paulo, 20001. p. 733-734. Volume I. Sobre a
obra de Freyre ver bibliografia.

FREITAS, Valdir e LIMA, Vivaldo da Costa (Org.). Cartas de Edson Carneiro a Arthur
Ramos de 04/01/1936 a 06/12/1938. São Paulo, Ed. Corrupio, 1987. p.152-153.

RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934.

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_____________. As Culturas Negras no Novo Mundo (1937). Rio de Janeiro, Civilização


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Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971.

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Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o


Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004, p.9-28.

“Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003”. In Diretrizes Curriculares Nacionais para a


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Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. Edição fac-similar do jornal dirigido


por Abdias do Nascimento. (Rio de Janeiro, números 1 a 10 – dezembro de 1948 a julho de
1950).

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“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES DO


CATOLICISMO POPULAR NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS.

Alaíze dos Santos Conceição – UNEB


alaizesantos@yahoo.com.br

A comunicação presente visa refletir sobre alguns elementos que permeiam o universo
religioso das Rezadeiras do município de Governador Mangabeira, levando em consideração
a presença do catolicismo (re) significado, tido como popular, um misto das contribuições do
catolicismo europeu associado a contribuições das populações afro-brasileiras. Assim,
pretende-se investigar de que maneira o apego religioso pôde contribuir para pensarmos na
formação identitária das Rezadeiras.

Palavras – chave: Rezadeiras; Catolicismo popular; religiosidade.

INTRODUÇÃO:

285
Pesquisadores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Gilberto Freyre, desde o
início do século XX já investigavam a formação cultural brasileira e mais tarde chegaram a
conclusão que esta descendia especialmente da influência de três povos: brancos, índios e
negros. Tais populações experimentaram um mesmo “espaço” territorial, desde o Brasil
colonial, e puderam a partir daí externalizar práticas culturais provenientes de suas diferentes
concepções de mundo.
Os portugueses logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos elementos
culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia. Contudo, na prática, o que se verificou foram outros
acontecimentos, os portugueses se depararam com demonstrações de resistência indígena e
posteriormente resistência africana ao ignorar as diversas concepções culturais já existentes.
Os ameríndios e africanos possuíam concepções culturais que zelavam o mundo
natural e as diversas entidades sobrenaturais, o que se contrapunha ao mundo pré-moldado e
ortodoxo ao qual os lusitanos faziam parte. A importância que diversos elementos advindos
da natureza possuíam, sobretudo nas religiões tradicionais africanas, recebiam interpretações
285
Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”, Roger Bastide em “As religiões Africanas no Brasil” e
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala já se dispunham a historiar as raízes culturais brasileiras.

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depreciativas na concepção portuguesa acarretando diversos conflitos. O sociólogo francês,


pesquisador das religiões africanas, Roger Bastide assinalou com bastante precisão tal
fenômeno: “O branco não podendo compreender uma religião tão diferente da sua, julgava-a ‘
demoníaca’ já que não era cristã”. (BASTIDE, 1985, p.128).
Em meio às tentativas de sufocar as celebrações do mundo africano, os
portugueses elaboraram estratégias para manter o controle daqueles cultos, inclusive em
diversos momentos os africanos percebendo tal intencionalidade também se faziam de
“rogados” e tiravam bom proveito da situação. O processo de adoração aos santos católicos e
virgens negras e a (re) significação implantada pelos africanos, podem ser considerados como
nítido exemplo da (re) interpretação da população afro-brasileira na tentativa de manter vivo
elementos integrantes de suas práticas culturais.

Esses fatores bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens


negras foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da
cristianização, e que foi considerado pelo senhor branco como meio de
controle social, um instrumento de submissão para o escravo. (BASTIDE,
1985, p.163).

Os portugueses acreditavam que podiam controlar os passos dos africanos, e estes


– por sua vez – se utilizavam dessas brechas para preservar as diversas celebrações de seus
guias e orixás que de maneira inteligente puderam servir nas “associações” aos santos
católicos, através das trocas culturais, servindo para manter a ordem e as aparências cobradas
pelos portugueses.
O apego ao mundo natural e as divindades sobrenaturais, faziam as populações
negras não aceitarem o catolicismo da forma ortodoxa e pré-moldada que os portugueses
insistiam em representar, mas em meio a presença marcante desses diversos elementos
culturais poderia ter nascido um catolicismo mais “popular” ligado às camadas afro-
brasileiras da população. Um misto do mundo indígena, negro e português.
Em se tratando de Recôncavo sul baiano, podemos identificar à presença marcante
desse “emaranhado de crenças, saberes e práticas em que ritos originários dos índios, dos
negros se interpenetraram ao catolicismo e às tradições mágicas religiosas européias,
aumentando a riqueza e a complexidade de tais práticas” (LESSA SANTOS, 2005, p.75). Este
é o caso, por exemplo, das rezadeiras, curandeiros, raizeiros, mandigeiros, dentre outros que
ainda hoje habitam o Recôncavo e colocam em prática o exercício das benzeções, curas ou
receituários provenientes dessa longa tradição.

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É considerando justamente essa heterogeneidade cultural que se faz presente em


diversos espaços do país, que o artigo pretende se debruçar, para tanto se faz necessário levar
em consideração as diversas contribuições desses povos e pensar de que forma diversas
práticas culturais puderam contribuir na formação identitária das rezadeiras do Recôncavo sul
baiano.

CATOLICISMO POPULAR

Desde a colonização brasileira o catolicismo foi declarado religião oficial, não


admitindo, portanto, a existência, de qualquer outra prática religiosa. O catolicismo que se
implantaria no Brasil procuraria se caracterizar como o catolicismo presente no mundo
europeu, uma religião ortodoxa sem grandes flexibilidades.
Contudo, a presença dos elementos religiosos dos ameríndios, juntamente com as
concepções religiosas dos africanos, proporcionaram a formação de um outro catolicismo
paralelo aquele desenvolvido na Europa: o catolicismo popular. Entende-se por catolicismo
popular:

O conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não


dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiés. Concretamente chamamos provisoriamente ‘catolicismo popular’
as representações e práticas relativas ao culto dos santos e à transação com a
natureza e não os sacramentos e a catequese formal (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985, p.113).

As celebrações vindas do catolicismo popular admitem a intercessão de outros


indivíduos que não precisam ser necessariamente padres ou representantes da igreja e
apresenta grande aproximação com os elementos da natureza como a utilização de plantas,
banhos e chás. Tais práticas, muito tem em comum com a religiosidade indígena e afro-
brasileira.
No catolicismo popular, existe um apego muito grande aos santos, cujas
representações transcendem ao mundo material. São seres dotados de poderes sobrenaturais,
capazes de exercer influências sobre o mundo natural e espiritual (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985). O catolicismo popular possibilita a veneração de diversos santos: os canonizados
oficialmente, os santos populares e os santos locais que possuem relativa significância em
espaços limitados, haja vista o não reconhecimento da igreja.

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O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito
menos suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa
o possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a
necessidade de intercessão de um membro religioso. Os santos são
acessíveis a todos os fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).

As rezadeiras demonstraram uma grande afeição a figura dos santos, fazendo


questão de demonstrar de forma prática sua eficácia e revelaram possíveis intervenções que
determinados santos puderam fazer em suas vidas.
Elas são consideradas sujeitas históricas que estão inseridas no âmbito do
catolicismo popular e pratica diversos ensinamentos herdados desse catolicismo alternativo,
ajudando a preservá-lo. A realização de uma súplica religiosa, por exemplo, intercedida pela
figura da rezadeira, tende a possibilitar novos vínculos de propagação da fé quebrando a visão
conservadora dos pedidos serem sempre intercedidos por membros eclesiásticos, a saber, do
padre. Veja o depoimento:

Eu tô viva abaixo de Deus , com a força e a fé, eu já sofri! Já cuidei de tanta


gente... Nossa alegria é nossa oração, vai pra igreja, tudo na igreja, mas a
gente pode fazer nossas oração dentro de casa 286.

A srª Celina287 embora tenha tido uma vida muito ativa ao freqüentar a igreja
católica, mesmo assim reconheceu a importância e eficácia da reza, independente do espaço
que é executada.
Ainda hoje, a rezadeira Celina possui um altar em sua casa com diversos santos:
Cosme & Damião, Rita de Cássia, São Pedro, Santo Antônio, São José, Nossa Senhora
Aparecida, Santo Expedito etc e ela insiste em dizer que faz suas orações para todos eles e por
isso se sente muito abençoada e protegida, mesmo que não possa freqüentar a igreja como
fazia antes. Segundo ele, mais importante que está sempre presente nas celebrações da igreja,
é estar em dias com as orações.
As rezadeiras que vivenciam esta atmosfera de crença parecem não atentar para a
existência dessas duas modalidades de catolicismo, o popular e o oficial, simplesmente

286
Srª Celina Neris, charuteira aposentada e rezadeira. Apelidada de Dona Celininha.
287
Depoimento da srª Celininha.

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comungam desses dois universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das
concepções de mundo presentes entre elas. A rezadeira Neném288 contribuiu sobre o assunto
com o depoimento:

Sou católica. Credito em tudo que é passado em minha igreja eu credito.


Quando não vou lá em baixo, eu vou aqui ó (fazendo menção a igreja de
São Benedito). Tanta igreja, eu vou no Gravatá , vou no Bonsucesso. Dia de
Domingo quando não tô com as pernas cansadas vou lá fazer visita dele.
Quando to em Salvador, eu vou no Bonfim, aquele do Cristo Redentor é
perto. Aquela que tem junto da praia,... Conceição da Praia é tudo perto da
casa de meus filhos 289.

Ao mencionar tão enfaticamente sua atuação enquanto católica, a srª Neném se


demonstrou bastante orgulhosa pela escolha feita, fazendo questão de elencar os diversos
espaços religiosos que costuma freqüentar.
Contudo, nesse campo de crenças religiosas (re) significadas por negros, índios e
europeus, as rezadeiras, trazem em seu cotidiano amostras desses imbricamentos e elementos
presentes na natureza como as ervas, banhos e chás, que foram utilizados também no intuito
de levar tranqüilidade àqueles que precisavam. Pensar no encontro de culturas diferenciadas,
requer que consideremos as trocas culturais existentes no processo, ao tempo em que devemos
atentar para esses empréstimos recíprocos como possibilidade de enriquecer as práticas
culturais dos povos, muitas vezes contribuindo para o surgimento de concepções culturais
híbridas, como bem assinalou o historiador Peter Burke (2003).
Quando levado em consideração o imbricamento cultural religioso, a rezadeira
Merú290 assim que perguntada acerca de sua formação religiosa relatou:

Sou católica, tenho devoção a santo, Santo Antônio. Sete flecha, D. Oxum,
a princesa do mar, todos orixá 291.

O depoimento deixa evidente essa interpenetração cultural, pois a rezadeira se


autodenomina católica, justamente pelo caráter flexível que concebe a religião, fruto,
sobretudo da incorporação das diversas concepções culturais. A fluidez a qual a srª Merú
assinala com relação aos seus devotos “Santo Antônio”, santo reconhecido pela igreja

288
Srª Francisca Santos Oliveira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de Dona Neném.
289
Depoimento da srª Neném.
290
Srª Aumerinda Conceição Rodrigues, lavradora e charuteira em exercício da profissão. Apelidada na
comunidade como dona Merú.
291
Depoimento da srª. Merú já citado.

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católica, Sete flecha, o caboclo e Oxum, orixá das religiões tradicionais africanas ou do
Candomblé brasileiro, nos leva a acreditar que o “sincretismo é fluído e móvel, não é rígido e
nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural defendida por Bastide
(1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do
orixá do Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões
tradicionais africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário
da cultura ocidental, não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando
novos símbolos e ritos. Portanto, nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser
católica e ao mesmo tempo resguardar práticas dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum
problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São
Benedito. Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos
seus filhos. As súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de
angústia, tornou-se de fundamental importância para alcançar a graça:

Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher
,...e tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha
amiga ai disse: Isso não foi a toa( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá
em Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que
me valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito
qui quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São
Benedito que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda
pra fora , pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto
vida eu tiver. Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou
lá e disse: Seu Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui
mais não. O senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a
fazenda quem vai tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz,
quem quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem
quem me faça sair!292

A narrativa de srª Neném assinala com precisão a eficácia da intervenção dos


santos protetores, devoção esta de suma importância para o retorno do marido para casa.
Segundo ela, as súplicas associadas à fé de alcançar o pedido desejado bastaram para ser
atendida. Nesse caso, insinua que resistiu ao apelo da vizinha que queria levá-la para uma
casa de candomblé e resolver o problema na cidade de Cachoeira, cidade esta bastante

292
Depoimento da srª. Neném já citado.

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conhecida pela quantidade de terreiros existentes. O depoimento também nos possibilita


compreender a veneração aos santos e virgens negras ao qual Bastide faz alusão em seu livro:
As religiões Africanas no Brasil (1985).
Desse modo, nota-se que uma vida intercedida por santos protetores tende a
assegurar a estabilidade cotidiana das rezadeiras, nesse caso, os santos equivalem a
personificação das forças sagradas entre os seres humanos.

DEVOÇÃO AOS SANTOS GÊMEOS: SÃO COSME E DAMIÃO.

São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”293, os santos foram
“associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo oficial
venerar a figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a praticar a
medicina caridosa, os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos cultos afro-
brasileiros, e é justamente dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela maior parte
de seus devotos: os santos meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam
doces, balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional
caruru de sete meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século
XVI, sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se
tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e
aos poucos se identificando com os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo
nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de
uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a
forma pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos
cultos afro-brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das
trocas culturais. As rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função
da presença marcante dos elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram

293
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada em
relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil, desde
a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões, sobretudo
por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico, tendo em
vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos africanos.

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certo menosprezo em reconhecer as possíveis origens da benzeção, bem como se


demonstraram um tanto quanto taxativas ao relegar as religiões que descendem dos africanos.
Nesse sentido, a srª Celina disse que:

Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do
Candomblé! Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente
tem que escolher um caminho só!294

A fala deixa transparecer uma ligeira recusa da rezadeira Celininha a manter


relações de aproximações com o Candomblé, o que segundo ela desvia por completo da opção
religiosa que faz parte: o mundo católico. Ela admite relativas aproximações com os
freqüentadores dos cultos afro-brasileiros, entretanto está segura do “caminho” que escolheu.
Assim como Celininha, outras rezadeiras se demonstraram reticentes aos cultos
afro-brasileiros, sobretudo quando interrogadas se conheciam ou acreditavam na sua eficácia.
A rezadeira Teka295 demonstrou opinião parecida com a da srª Celininha acerca dos cultos
afro-brasileiros:

Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a frente.
O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e não essas
coisas!296

Nota-se a repulsa da srª Teka ao falar do Candomblé, entretanto não devemos


esquecer que essa visão preconceituosa acerca dos cultos afro-brasileiros foi historicamente
construída como mais uma estratégia do mundo europeu em sempre associar a cultura negra a
atributos pejorativos. Prova desse processo é justamente o repúdio que determinadas pessoas
atribuem ao Candomblé sem ao menos visualizar alguns elementos básicos que o compõe.
Trata-se de estereótipos erguidos e que sobrevivem até hoje.
Ora, apesar de algumas rezadeiras possuírem concepções conservadoras acerca dos
cultos afro-brasileiros, todas elas demonstraram grande afinidade ao São Cosme e Damião e
os festejos existentes nas celebrações dos santos gêmeos. É justamente esta “harmonia” e
devoção que passaremos a analisar. São Cosme e Damião são tão presentes na vida das

294
Depoimento da srª. Celininha.
295
Srª Maria Custódia Cerqueira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de dona Teka.
296
Depoimento da srª. Teka.

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rezadeiras que careceram de atenção especial, os santos gêmeos conseguiram adentrar nesses
espaços da cultura popular com relativa facilidade:

O São Cosme era de meu pai, mas eu era uma filha tão amada de pai que ele
já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,...297

A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo
de seu nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o
santo era de cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e
proteção entre eles, membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos
gêmeos existiam de maneira incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de
favores. O São Cosme deveria proteger a família da srª Celininha independente das
solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos
e razões. A rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela
saúde de suas netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança
com os santos. No caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de
“abrir seus caminhos” e ter mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira
Neném:

O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete
ano eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos,
morreu também,... a vida miorou, miorou sim!298

Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram
obtidas, assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que
logo eles puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª
Neném mencionou a srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que
dava orientações espirituais.

297
Depoimento da srª. Celininha.
298
Depoimento da srª. Neném.

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As rezadeiras concebiam a existência de um vínculo eterno entre elas, devotas e o


santo, não podendo haver o rompimento da aliança firmada, pois se caso viesse a acontecer,
as mesmas estariam sujeitas a possíveis cobranças.
Nessa atmosfera de devoção, a rezadeira Merú narrou uma determinada situação
em sua vida que a remeteu a identificar como possível “castigo” do santo, ao ter sido
momentaneamente ignorado:

Eu adoeci, ai o médico Dr. Valdi mandou buscar uma moça em Conceição


de Feira que não sarava a doença de jeito nenhum. Fiquei cega e alejada, ai
a doença não sarava de jeito nenhum, o braço não saia, ficou alejado! Ai
vortou , ai ele mandou buscar essa, essa mandigueira quando ela chegou
passou os banhos. Com esses banhos fiquei boa, ai acorde, ai pronto acordê!
Disso pra cá, eu não queria cuidar peguei sofrendo muito, cuido! Agora só
deixo quando morrer! E digo a minhas irmã se tiver qualquer... vá pro
médico não dá jeito porque tem muito médico de espiritismo que já avisa
logo: procure uma folhinha pra tomar um banho porque sua doença não é
aqui. Pois é peguei a dá o caruru com 17 ano, quando parei adoeci!299

A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São
Cosme e Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo
firmado. Segundo ela, só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença,
seguida da interferência de outras pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a
curiosa situação em que um médico dá orientações à paciente para que se sirva dos serviços
de uma mandingueira no combate da doença. Tal situação nos remete a pensar que o Dr.
Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-brasileiros, inclusive reconhecendo
as limitações que a medicina oficial possui em determinadas “doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os maus
fluídos que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não conseguia
encontrar no plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou
explicações científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por
fim recorreu a uma explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam
dado nos últimos tempos acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú,
relembrou possíveis falhas em suas condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação
firmada entre ela e São Cosme e Damião: a oferta do caruru todos os anos. Assim, o

299
Depoimento da srª. Merú já citado.

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firmamento do vínculo entre os santos gêmeos e a rezadeira e o possível rompimento,


acarretou uma situação catastrófica na qual ela perdeu os movimentos do corpo.
Nesse sentido, acreditando que o Recôncavo apresenta traços das diversas
concepções culturais do mundo africano, é possível entender a situação de instabilidade que
fez parte da vida da srª Merú a partir da visão de mundo de alguns povos africanos. Na África,
acredita-se que a estabilidade da vida é regida por um equilíbrio de forças, seria a ação
constante do indivíduo com o mundo terreno que irá ser fator determinante para manter o
equilíbrio nas relações que executam. (HAMPATÈ BÂ, 1982).
Uma vez violando as forças que regem o universo através das relações de doação e
devoção, haveria a perturbação da organização do indivíduo. Nesse caso, a srª Merú quebrou
o equilíbrio existente entre ela e os santos gêmeos, o qual possuía um vínculo de oferta e
proteção, acarretando a desordem e o desequilíbrio na saúde.
No imaginário das populações afro-brasileiras, Cosme e Damião são entendidos
como santos, cuja impulsividade e vaidade rememoram as crianças, portanto os santos
meninos não gostam de serem contrariados e se caso alguém prometer algo para eles devem
cumprir o mais rápido possível, pois não admite interrupções nas ofertas. Notamos que apesar
de serem enxergados como santos católicos, São Cosme e Damião são agradados e venerados
como os Ibejís do Candomblé.
Ora, Cosme e Damião santos católicos em nada tem a ver com os Ibejís do
Candomblé que gostam de doces, balas e caruru, afinal tratou-se de médicos nascidos na
Arábia, cristãos, portanto seus agrados no mínimo se distanciariam de todos esses adorados
pelos Ibejís. Na verdade, sabe-se que tais práticas de agrado ao Cosme e Damião católico, da
mesma maneira que os orixás do Candomblé, tiveram seu surgimento a partir da
interpenetração cultural advinda do Brasil colonial. (LIMA, 2005).
Assim, os orixás africanos foram associados aos santos católicos havendo a
“correspondência” dos Ibejís ao santos Cosme e Damião. Contudo, os agrados costumeiros
ofertados aos Ibejís eram direcionados da mesma forma aos santos católicos, prática esta que
passou a ser executada pelos diversos grupos sociais e que perdura na atualidade.
Nesse contexto, há quem acredite fielmente que a forma de agradar o Cosme e
Damião seja ofertando doces e o caruru. Mas, se formos tomar como ponto de partida a
distribuição do caruru, por exemplo, de nada mantêm aproximações com a cultura européia,
muito menos é um prato típico da Arábia, onde nasceram os santos católicos. Do mesmo
modo, pensar na simbologia do caruru e os elementos que o compõe, a saber, do azeite-de-

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dendê encontraremos marcas do “mundo africano”, que por hora encontra-se imbricado nos
festejos aos santos gêmeos.a
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos
preocupar em não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e
complexo, podendo abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo
participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos
defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não
devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada,
pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos
gêmeos trazem elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma
empreitada difícil de se resolver, contudo dentro desse universo é possível identificar
elementos presentes nessas duas tendências culturais. Ora a rezadeira tida como católica
recorre a uma médium – denominação mais amena, para muitas depoentes, que curandeira –
ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.

FONTES ORAIS:

Aumerinda Conceição Rodrigues. Apelido D. Merú. 59 anos de idade. Lavradora e charuteira


em exercício da profissão. Rezadeira, nascida no Município de Governador Mangabeira,
atualmente reside nesse mesmo município. Data de nascimento: 20/07/1946. Entrevista em
11/07/2007.

Celina de Jesus Neris. Apelido D. Celininha. 84 anos de idade. Charuteira aposentada.


Rezadeira, nascida na cidade de Bonfim de Feira de Santana. Atualmente reside no Município
de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 15/05/1923. Entrevista em 06/12/2006 e
10/07/2007.

Francisca Santos Oliveira. Apelido D. Neném. 73 anos de idade. Lavradora aposentada.


Rezadeira, nascida em Laranjeiras, zona rural do Município de Governador Mangabeira.

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Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 08/02/1934.


Entrevista em 26/04/2007 e 14/07/2007.

Maria Custódia Cerqueira da Silva. Apelido D. Teka. 73 anos de idade. Lavradora


aposentada. Rezadeira, nascida em Queimadas, zona rural do Município de Governador
Mangabeira. Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento:
24/07/1934.Entrevista em 29/04/2007.

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Companhia das Letras, 1998.

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A ESTÉTICA NEGRA EM SALVADOR

Cassi Ladi Reis Coutinho – UNEB


cassiladi@yahoo.com.br

O objetivo deste artigo é investigar o processo de emergência e institucionalização300 de uma


estética301 negra em Salvador, enfocando em especial a moda e penteados associados ao
cabelo. Para entender a relação entre o processo de afirmação étnica negra – em particular –
no que tange a estética – e o mercado (indústria de cosméticos, mídia, etc.). Além das
mudanças que possam ter ocorridos no cotidiano dos sujeitos históricos envolvidos, através da
busca por uma estética própria aceita pela sociedade. Para tal é necessário compreender o
impacto dos movimentos negros mundiais, em especial o movimento negro norte-americano,
na década de 1970, assim como a primeira participação do bloco Ilê Aiyê, no carnaval de
Salvador, em 1975, na formação de uma “consciência estética negra” em Salvador. Analisar a
forma como a estética negra vem tomando espaço no mercado comercial brasileiro e como
contribui para o fortalecimento de uma auto-afirmação dos afro-descendentes. E investigar em
que medida essa estética pode ser considerado um processo de afirmação sociocultural dos
negros ou não e um produto do consumo absorvido pela indústria do comportamento, pela
massificação dos meios de comunicação.

Palavras-chave: comportamento, estética, auto-estima, identidade negra.

Beleza Negra302: Cabelo Duro X Cabelo Crespo

No Brasil, temos assistido, ao longo dos anos, o crescimento de uma estética


negra com uma valorização positiva de aspectos fenótipos “naturais”. Podemos verificar uma
maior aceitação ou menor rejeição pela sociedade em geral de um modelo de pentear/adornar
os cabelos que diferem do baseado no “padrão europeu”.

300
Emprego este termo no sentido de um ato de estabelecimento, criação, instauração.
301
Entende-se por estética negra, conceitos e juízos de beleza baseados nas características dos negros
302
Termo que define a valorização das características físicas dos negros como belo, contrapondo-se ao padrão de
beleza da sociedade brasileira, que baseia nas características o “ariano”.

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Nos Estados Unidos surgiram movimentos que lutaram pelos direitos dos negros
com variadas estratégias, entre outras de modificação do padrão de beleza, baseado numa
estética branca. Por exemplo, na década de 1960: “A Fuller Products Company fatura mais de
10 milhões de dólares com o lançamento de cremes para branquear a pele e alisar o cabelo. A
303
propaganda promete com isso, o fim da discriminação” . Empresas como esta continuam
faturando com a falsa propaganda de modificação dos fenótipos dos negros.
Na África, as mulheres consomem produtos para branquear a pele. O sucesso
destes produtos é devido à insatisfação da maioria da população negra com as suas
características físicas, gestando uma “necessidade” de mudar e de assumir um padrão de
beleza branca muito grande. Em contraponto com esta situação surgiu o movimento Black
Power304, na década de 1960, caracterizado pelo uso dos cabelos sem intervenção química ou
física para “alisar”, o que foi definido como “natural”, por jovens negros, juntamente com este
movimento surgiu o slogan “Black is beautiful” defendendo a afirmação de que “ser negro é
lindo”.

Foi nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, os dois centros irradiadores
da influência norte-americana, que apareceu o corte black power – cabelo
redondo e cheio, in natura. Por conseguinte, com a crescente valorização da
busca da “consciência racial”, procurou-se uma “naturalização” dos cortes,
traçados e penteados afro, com repúdio do alisamento – “além de decadente
[o alisamento], é prejudicial porque impede o crescimento do cabelo”.
A imagem do cabelo natural passou a ser reverenciada como aquela que se
contrapõe ao cabelo liso que estaria em consonância com uma nova
mentalidade do “ser negro”.305
O Brasil do final dos anos 60 vivia a ditadura militar, com censura, prisões,
exílio e tudo mais por isso, o que chegou à população afro-brasileira do
movimento norte americano foi só a estética Black Power os cabelos, a soul
music, as roupas, boinas e a ginga tornaram-se moda. Artistas com Tim
Maia, Tony Tornado e Trio Ternura reproduziam o que James Brown, a
banda Paliamment, os Jackson Five e tantos outros faziam palcos
americanos, fortalecendo a auto estima dos negros. Gravações mais
explicitas foram feitas por Wilson Simonal, com Tributo a Martin Luther
King e por Elis Regina com Black is Beautiful.306
Quando na década de 70 os movimentos da contracultura instauraram a
onda do ‘black is beautiful’ (preto é bonito), o negro finalmente pôde ter
orgulho de suas características físicas. Os cabelos alisados deram lugar aos
crespos naturais e o corte black-power virou moda. Os traços faciais

303
Oswald Faustino. A década que mudou tudo. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 26, Ano 3, out.
1998, PP. 50 – 52. p. 51
304
Expressão que significa poder negro criada por Stokely Carmichael. Este movimento surgiu, no final dos anos
60 em oposição a direção reformista do movimento pelos direitos civis – no sul dos EUA e em outras partes da
América do norte.
305
Jocélio Teles dos Santos. O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza étnicos. In: Estudos
afro-asiáticos. nº. 38; Rio de janeiro: dez/2000. p.55
306
Oswaldo Faustino. Black Power. Revista Raça. São Paulo, Editora Símbolo, nº. 8, Ano 2, abr. 1997, pp. 102 –
107. p. 106

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passaram a ser destacados em maquiagens coloridas e os tecidos étnicos


ganharam as ruas.
O fato de valorizar a beleza dava ao negro um poder de reivindicar
espaço.307

Na década de 1970, segundo Márcio J. de Macedo, outro movimento que


modificou a imagem do negro como “feio” foi o rastafarianismo, que repercutiu na figura de
Bob Marley e da explosão do reggae music.308 O “rastaman” , como é conhecido o adepto da
religião, sustenta seus dreadlocks e tem sua “filosofia de vida baseada na mistura de
elementos da tradição judaico-cristã com a história da África, especificamente a Etiópia” .309
Eles consideram o imperador da Etiópia, Ras Tafari Makonen (este é o título de Haile Selassié
I), a forma humana de Deus (Jah).

Iniciado em 1930, o Movimento Rastafári tem como teoria a volta do povo


negro para a sua terra de origem, ou seja, a África. O imperador etíope
Hailé Selassié I, morto 1974, é considerado pelos membros da seita rastafári
um deus, também chamado de Jah..310

Segundo Macedo, através destes penteados os negros mostravam sua insatisfação


acerca de como eram tratados ao longo dos anos.

As tranças dreadlocks foram tomadas pelo ativismo negro de várias partes


do mundo como uma forma de afirmação da identidade negra e de
posicionamento político, algo que já havia acontecido com o corte “afro” ou
black power na década anterior. Além desse aspecto político, esses fatos
demonstravam que era possível criar um estilo negro próprio, desde que
começássemos a valorizar o nosso corpo de forma sincera e livre de
estereótipos. 311

307
Manuela Barros. “Beleza Negra” A Tarde. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro. Salvador, 20
nov. 2003, p 5.
308
Gênero musical desenvolvido na Jamaica em 1960
309
“A palavra dread teve origem na Jamaica e significa ameaça ou perigo. (...) Atualmente, a palavra dread é
usada para definir um estilo de cabelo. (...) Dreadlock são cabelos que se enrolam naturalmente e não voltam a
sua forma original, a não ser que sejam cortados.” ISSO é dread, sim! Visual da Raça, São Paulo, Editora
Símbolo, nº. 8, Ano 1, 1997, pp. 36 – 38. p. 37
310
Idem, op. cit. p. 36
311
Márcio José Macedo. “Quero uma nega de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br,
23/09/2004. Acesso em: 21/11/2005. p. 1

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Esta discussão remete ao cabelo o papel de símbolo de resistência de uma cultura


imposta, que ao invés de assumir a suas características estimula a sua modificação. Vovô,
presidente do Ilê Aiyê, defende, na matéria do “A Tarde”, que a consciência cultural começa
nos cabelos. O seu cabelo rastafari é tido, por ele, como um sinal de luta pela resistência. 312
Em fevereiro de 1975 saiu, pela primeira vez no carnaval de Salvador, o bloco Ilê
Aiyê, em plena ditadura militar. O Ilê trazia em suas músicas a temática da afirmação do
negro, valorizando o cabelo, as vestimentas, a magia do candomblé, a cultura e tradições. A
saída do Ilê representou para uma parcela do povo negro uma expressão da busca pela auto-
afirmação. A professora Arani Santana, uma das diretoras do bloco, define:

Foi o Ilê Aiyê que fez este trabalho, em seguida os outros blocos também.
Que ajudou a população negra a botar a cara pra fora, se assumir, assumir a
sua estética, assumir a sua fala, a conquistar espaços cada vez mais, foi com
a canção, com a letra da música que deu essa força pra gente caminhar.313

Assim como Risério:

Aliás, foi o pessoal do Ilê Aiyê, que se responsabilizou pela popularização –


através do carnaval – do uso de trancinhas em Salvador. Nos tempos em
que o lance era a soul music e as discotecas, o penteado mais comum, em
meio à juventude negromestiça, era o chamado “cabelo black power”, tipo
“afro”.314

Um dos objetivos do Ilê era justamente o de dar visibilidade ao negro que assumia
um papel secundário no carnaval e dentro da sociedade. A Noite da Beleza Negra foi um dos
projetos do Ilê Aiyê que teve grande repercussão na discussão sobre a auto-afirmação e na
valorização de uma beleza negra.

A concepção de beleza proposta pelo Ilê contrapõe-se aos critérios de


beleza vigentes em diversos concursos de beleza, ao padrão vinculado pela
mídia e principalmente as imagens das mulatas que desfilam nos carros
alegóricos das escolas de samba. A beleza proposta pelo Ilê esconde
exatamente o que todos vêm expostos, os corpos das mulheres negras. 315

312
“Marca registrada que dá trabalho” In: A Tarde. Salvador-Ba: 30/04/2000, A Tarde – Local, p.7.
313
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
314
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.42
315
Deusa do Ébano: concurso a Noite da Beleza Negra. Realização Ângela Figueiredo. Salvador, 2003. Filme-
Documentário.

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Nesse evento, que ainda acontece, é escolhida a negra mais bonita do Ilê Aiyê, a
Deusa do Ébano, aquela que irá reinar durante um ano, participando das atividades do bloco.
Os pré-requisitos analisados para a escolha da rainha são os penteados, dança, vestimentas.
Além disso, a candidata deve ter consciência da sua negritude e ter participação na sua
sociedade.
A primeira saída do Ilê teve grande repercussão negativa nos meios de
comunicação, como pode ser observado nesta matéria do jornal “A Tarde”, que permite
evidenciar o preconceito diante dos blocos afros.

Bloco Racista, Nota Destoante.


Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: "Mundo Negro",
"Black Power", "Negro para Você", etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de
"Bloco do Racismo", proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além
da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana, revelando
uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma
infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do "Ilê Aiyê" -
todos de cor - chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que
os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição existente no país
contra o racismo é de esperar que os integrantes do "Ilê" voltem de outra
maneira no próximo ano, e usem de outra forma a natural liberação do
instinto característica do Carnaval.Não temos felizmente problema racial.
Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina
entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está claro, um
dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam
de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças.
Mas, isto no Brasil, eles não conseguem. E sempre que põem o rabo de fora
denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito difícil que
aconteça diferentemente com estes mocinhos do "Ilê Aiyê”.316

Dessa matéria à leitura que realizamos, ilumina um discurso sustentado pela elite
branca da existência de uma democracia racial, e também a discriminação que sofriam os
blocos de negros, assim assumidos, enquanto reivindicatórios, que se “atreviam” a sair no
carnaval. Fica evidente que quando levantadas discussões sobre a questão racial em Salvador,
estas eram massacradas com a afirmação que nesta cidade não existiam problemas raciais,
pois aqui era o “paraíso racial”, onde todas as “cores” viviam harmoniosamente. O protesto
cabia àqueles que estavam insatisfeitos com a sociedade. Insatisfação que era tida como
desnecessária pelas elites baianas.

316
“Bloco racista nota destoante” In: A Tarde. Salvador-Ba: 12/02/1975, p.3.

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Fazendo uma análise de como a beleza negra começa a tomar espaço na sociedade
baiana, acredita-se que seja interessante fazê-lo através de um fator que gera bastante
discussão entre os negros(as) da sociedade: o cabelo. “O elemento em cima do negro, da
estética negra, um dos elementos que mais incomoda tanto ao branco quanto ao próprio negro
é é é a história do cabelo”.317Isto porque este é um ponto importante na vida do negro,
principalmente da mulher, o que não significa dizer que o homem não se preocupe com isto,
porém este fator não faz com que este se sinta tão diminuído por não ter uma das suas
características físicas aceitas pela sociedade. Porém, se formos analisar a concepção defendida
por alguns homens, como Ronaldinho o fenômeno do futebol, que andou afirmando que não
era negro e verificarmos que ele mantém a sua cabeça raspada o tempo todo. Podemos até
chegar a conclusão de que este é um artifício utilizado pelo homem para fugir de uma das
características físicas marcantes que o negro possui.
Hildegardes Viana defende: “O cabelo duro, para o homem de cor, não pesava
tanto, a ponto de se transformar em problema. Bastava cortar o cabelo bem rente ao casco”.318
Porém no mesmo capítulo chama a atenção para relação entre os homens de cabeça raspada e
a marginalidade, como afirma:

Só os mandiguerotes, ladrões, desordeiros, malandréus ou que nome


tivessem, cultivavam uma basta gaforinha, sem complexos de espécie
alguma. O verdadeiro matagal de fios duros emaranhados servia para
acomodar a navalha traiçoeira, surgida em momentos críticos, ou algum
cilindro pequeno com pó venoso destinado a sortilégios. Por isto, a primeira
providência da polícia, quando fisgava o marginal, era tirar os botões da sua
calça para evitar fuga. Em seguida raspar a cabeça para ver o que é que
havia.
Cabeça pelada era cabeça de ladrão.319

Para a mulher era diferente, o cabelo representava um símbolo de beleza que


compunha a sua estética. A partir deste ponto, existe uma série de discussões relacionadas
com o cabelo do negro e a principal dela é o significado que foi criado sobre este. "Cabelo de
bombril, esponja, piaçava, pucumã, cabelo ruim", as mulheres de cabelos crespos crescem
ouvindo frases como essas repetidas vezes na maioria dos ambientes que freqüenta. O cabelo
foi, e continua sendo, um símbolo que demarcava a sua origem “racial”. Para as mulheres

317
Arani Santana, Pedagoga, 51 anos. Entrevista realizada em Salvador, Itapuã, 2003. Depoimento citado.
318
Hildegardes Vianna. A Bahia já foi assim: crônicas de costumes. 2ª ed. Rio de Janeiro: GRD, 1979. p.138
319
Ibidem

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lidar com o cabelo sempre foi extremamente complicado e existia uma insatisfação desta com
seu cabelo independente da forma que ele se apresente. A folclorista baiana Hildegardes
Vianna enumerou apelidos pejorativos, comuns e correntes na sociedade baiana para
classificar o cabelo dos negros, dentre eles: “(...) cabeça seca, cabeça fria, cabeleira xoxô,
cabelo de romper fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo,
cabeleira teimosa, pão de leite, etc”.320 Afrânio Peixoto defendeu em Breviário da Bahia que
o feio da raça não era sua cor, mas sim o seu cabelo. Peixoto afirmou que torços e panos eram
utilizados para esconder a cabeleira dura, conceito que difere do defendido e aceito pelos
africanos, que utilizam seus torços e panos para rituais ou para compor as cabeças das
mulheres, ou homens, como é o caso da religião muçulmana. Raul Lody pertinentemente
adverte que:

Para muitos povos a cabeça é tida como lugar da inteligência, do destino e


da personalidade. Sendo assim, não é de se estranhar que o hábito de cobri-
la ou ornamentá-la de alguma forma e para determinadas circunstâncias
esteja presente em quase todas as sociedades.
Adornar ou cobrir a cabeça pode significar muitas coisas, de acordo com os
costumes de cada região. Entre os mulçumanos, por exemplo, já foi sinal de
desrespeito ficar com a cabeça descoberta na presença de visitas, ao passo
que as antigas cortes européias desrespeitoso era não cobri-la na presença
de superiores.
Em vários países da África, os turbantes são indumentárias comuns.
Oriundos do universo masculino, eles fazem parte do vestuário árabe e
africano há séculos, tendo como principal função proteger a cabeça do sol
forte.321

O cabelo sempre teve um significado para o africano e seus penteados


demonstravam o resgate da memória, cultura e religião. Segundo Raul Lody, o cabelo é um
indício marcante da procedência étnica e é através dele que o negro hoje assume sua estética
na sociedade. Nilma Lino Gomes relata no seu livro Sem perder a raiz os diversos
significados que o cabelo crespo possuía nas comunidades africanas e as resignificações que
este cabelo vem tomando dentro da sociedade atual. Discorre também sobre as diferenças
dadas as artes e adornos corporais nas diversas etnias e o significado simbólico dos penteados.

320
Ibidem
321
Ivonne Ferreira e Carla Nascimento. A Magia dos turbantes. Visual da Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº.
12, Ano 2, 1998, pp. 22 - 25.

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Tradicionalmente, os penteados dessas africanas cumpriam função


simbólica importante ao classificar as mulheres em diferentes idades, de
acordo com ciclo biológico. Eram, portanto, uma forma de identificação.
(...)
Muitos integrantes dessas sociedades, incluindo os wolof, mende, mandigo e
iorubas, foram escravizados e trazidos para o Novo Mundo. Nessas culturas
o cabelo era parte integrante de um complexo sistema de linguagem. Desde
o surgimento da civilização africana, o estilo do cabelo tem sido usado para
indicar o estado civil, a origem geográfica, a idade, a religião, a identidade
étnica, a riqueza e a posição social das pessoas. Em algumas culturas,
sobrenome de uma pessoa podia ser descoberto simplesmente pelo exame
do cabelo, uma pessoa podia ser descoberto simplesmente pelo exame do
cabelo, uma vez que cada clã tinha o seu próprio e único estilo.
O significado social do cabelo era uma riqueza para o africano. Dessa
forma, os aspectos estéticos assumiam lugar de importância na vida cultural
das diferentes etnias. 322

Até por volta de 1990, na Bahia, era difícil se encontrar mulheres que
desenvolvessem penteados afros, como afirma Risério,“(...) os penteados afro. Eles se
encontram, atualmente, no estágio de arte corporal, ainda não diluída em salões de beleza. E
são tão poucas as cabeleireiras afro, aqui, que acho até que conheço todas elas, de Ura a
Dete”323. Era difícil encontrar salões que tratassem do cabelo afro. Era mais fácil encontrar
mulheres especializadas em passar ferro, “fritar” os cabelos. O uso do cabelo afro estava
muito relacionado com momentos festivos, especificamente com o carnaval, como define
Risério:

Os primeiros crioulos que encararam a de sair à rua, normalmente, becando


batas coloridas, levando búzios ou contas trançadas no cabelo, vestindo
calças leves e folgadas... ouviam invariavelmente a mesma provocação:
qual é, velho, tá pensando que ainda é carnaval?.324

A museóloga Rita Maia, doutouranda em comunicação e estudiosa em beleza, arte


e estética negras define:

Antes o negro não expunha seus traços, pois a características de sua raça
não eram consideradas bonitas”, comenta. Era comum, segundo a
muséologa, as negras tentarem disfarçar seus traços (como nariz e lábios
grossos), cabelo e cor da pele, na tentativa de atingir o padrão branco.

322
Nilma Lino Gomes. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. p.351
323
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. p.102
324
Idem, Op. cit. p.100

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Um exemplo dado por Rita Maia é o da cantora americana Josephine Baker,


famosa nos anos 20. ‘Ela costumava passar suco de limão na pele para
clareá-la e usava muita maquiagem, sempre para amenizar os traços’, conta.
Rita Maia ainda lembra do costume de se alisarem os cabelos, que era
praticamente uma regra para todas as artistas negras do início do século. 325

Na entrevista que Negra Jhô concede no livro de Raul Lody, ela deixa claro que
cinco anos atrás era difícil uma mulher negra assumir tranças nos seus cabelos, pois era mais
fácil ela alisar (fritar) ou escová-lo. As pessoas que a procuravam eram turistas que tinham
curiosidade e vontade de fazer nos cabelos tranças, amarrar torços, fazer penteados diversos.
326
Negra Jhô é trançadeira do Pelourinho, reconhecida nacional e internacionalmente pelo seu
trabalho com trançados, penteados afro e torços. Em entrevista concedida ao Correio da
Bahia, diz que nasceu com a carapinha sarará e que não crescia, o que fazia com que grande
parte de sua família zombasse dela, chamando-a de John (João), o que gerou o apelido que
usa até hoje. No início do seu trabalho como cabeleireira de penteados afro, botou a cadeira
em pleno largo do Pelourinho para fazer o cabelo dos fregueses, pois o salão só viria mais
tarde. Hoje, ela ocupa o lugar de uma das melhores cabeleireiras de penteados afro com
reconhecimento nacional. Chegou a ser titulada como Baiana Símbolo no carnaval de 2003,
quando o tema foi “Carnaval das Baianas”.327
O sentimento de inferiorização e busca de aproximação de outra imagem esta
muito forte no cotidiano de meninas no período escolar e é discutido por Nilma Lino Gomes,
no artigo em que a mesma aborda que é por meio da educação que a cultura é introjetada,
sendo a escola um dos espaços que interferem na construção da identidade.328 Diante disto,
encontramos na matéria A cor da infância o relato de observações de um professor:

Vi uma menina chorar histericamente ao ouvir, em tom de conciliação, a


afirmação de que ela era mesmo preta, e não branca. Tinha uma menina que
adorava colocar um pano na cabeça, prendê-lo embaixo das orelhas e fazer
aquele movimento característico de quem está jogando os cabelos para trás.
Com isso ela tinha a ilusão de um cabelo em movimento acariciando os seus
ombros, movimentos impossíveis de serem reproduzidos por seu cabelo duro
brincadeira compensatória que atravessa gerações, visto que uma professora

325
“Beleza Negra” A Tarde. Apud. Manuela Barros. Edição especial: Consciência Negra 20 de Novembro.
Salvador, 20 nov. 2003, p 5.
326
Raul Giovanni Lody. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Nacional, 2004.
p. 119 e 123
327
Regina Bochicchio. “Baiano – símbolo”. Correio da Bahia. Salvador-Ba, 26 dez. 2002. Perfil. p.11
328
Nilma Lino Gomes. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e
o cabelo crespo. In Educação e Pesquisa. São Paulo, v.29, n.1, p.167-182, jan./jun. 2003.

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me contou que também fazia isso em sua infância, na companhia de outras


meninas (negras).329

Aqui se percebe o quanto os fenótipos eram usados como forma de inferiorizar e


desvalorizar os negros(as). Tudo isto porque não era conveniente valorizar “o outro”, o
diferente.

A beleza, a despeito de sua relatividade, é um instrumento de comparação;


um valor fundamental em qualquer cultura. (...) Por isso, desde tempos
remotos, sabe-se que toda dominação de uma raça ou etnia deve trazer, no
meio de seu aparato repressivo, um processo de aviltamento do subjugado
que passe, necessariamente, pela depreciação estética.
Foi da utilidade prática dessa constatação que surgiu, a partir do período dos
grandes descobrimentos, a necessidade de o mundo branco europeu afirmar
ostensivamente a ‘feiúra’ física do negro. Tomado peça fundamental de uma
economia alicerçada no comércio e tráfico de escravos, foi vetada ao negro a
possibilidade de ser considerado belo. Enquanto, por um lado, os
eclesiásticos afirmavam que preto não tinha alma, impedindo-o de alcançar
essa coisa altamente questionável chamada ‘beleza interior’, por outro, a
sociedade laica européia completava o trabalho, desmerecendo a cor da pele
e os traços físicos dos escravos, bem como suas manifestações culturais e
suas artes.
(...) Era o ‘belo’ europeu dominando a ‘fera’ africana.330

Essa discussão emprestou ao cabelo crespo o papel de símbolo de resistência de


uma cultura imposta que favoreceu a tentativa de modificação de suas características. Bell
Hooks faz uma discussão sobre a luta de homens e mulheres contra esteriotipos racistas, que
tem como objetivo combater a imagem pejorativa.331
Acredito que os movimentos gerados ao longo destes anos, estão contribuindo
para a formação de uma discussão sobre uma estética negra, que além de resgatar a cultura
dos negros, cria modificações que contribuem para a sua aceitação na sociedade como tal e
não mais como um indivíduo que se utiliza do padrão europeu para ganhar espaço. Além
disto, verifica-se diante deste crescimento o aproveitamento do mercado para lucrar através da
formação de produtos específicos. Isto não significa dizer que não sejam necessários os
negros buscarem uma identificação com os produtos através da imagem que os definem como
sendo para afro-descendentes, mas sim que este mercado vem se utilizando dessa necessidade
para juntamente com o fetiche, manipular a população negra à compra destes produtos.

329
Marcos Frenette. A cor da infância. Revista Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº. 38, Ano 4, out. 1999, pp.
88 - 92. p. 90
330
Marcos Frenette. A cor da infância. Revista Raça, São Paulo, Editora Símbolo, nº. 38, Ano 4, out. 1999, pp.
88 - 92. p.88
331
Bells Hooks. Black looks: race and representantion. Boston: South End, 1992.

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Diante disto, verificamos que hoje está na moda ser negro, e se assumir como tal,
principalmente com um mercado que disposto a oferecer uma gama de produtos para esses
consumidores. A questão é que a moda passa. E fica a questão: as pessoas que se relacionam
com essa moda conseguiram construir uma consciência do que é ser negro no Brasil?

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3.2 – SIMPÓSIO 2:
HITÓRIA SOCIAL

Coordenação:
Prof. Dr. Dilton Maynard (ANPUH-SE/UFS)

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“SERGIPE EM TRÂNSITO”: CIRCULAÇÃO DE AUTOMÓVEIS NO


INÍCIO DO SÉCULO XX

Andreza Santos Cruz Maynard - FSLF


andreza_scruz@hotmail.com

Esta pesquisa investiga a normatização do trânsito de automóveis em Sergipe nas primeiras


décadas republicanas. A partir de anúncios publicitários, notícias de jornais e algumas
normas, foi possível encontrar informações sobre as expectativas e os problemas que os
sergipanos enfrentaram no preparo das vias para a circulação veículos automotores. Os
pedestres e veículos a tração animal da capital e do interior precisaram se adaptar ao barulho e
velocidade dos automotores. Os signos da modernidade transformavam cada vez mais o
cotidiano das cidades, imprimindo-lhes um novo ritmo.

Palavras-chave: Sergipe, República, Modernidade.

Ó maravilha dos sentidos!


Planava sobre a novidade
(Tudo ao olhar, nada aos ouvidos)
Um silêncio de eternidade.
Charles Baudelaire

Entre o fim do século XIX e o início do XX o mundo experimentou uma série de


transformações. O desenvolvimento da eletricidade e dos derivados do petróleo, além do
aperfeiçoamento na produção e conservação de alimentos, controle de moléstias e
prolongamento da vida trouxeram mudanças significativas para os habitantes da Europa e,
mais tarde, para todo o mundo. A partir daí o mercado capitalista sofreu um impulso que
possibilitou a consolidação da unidade global.
Era a modernidade que se irradiava a partir da Revolução Científico Tecnológica do
fim do século XIX. Nicolau Sevcenko lembra que nesse período surgem “os veículos
automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, telefone”, e ainda, “a iluminação
elétrica, e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão,

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a televisão, os arranha-céus, e seus elevadores, as escadas rolantes”332 e tantas outras


novidades.
Para a divulgação dessas inovações foram organizadas as exposições universais,
“verdadeiros palácios de sonhos da industrialização e do progresso”333, que atraíam curiosos e
investidores. De acordo com Walter Benjamin as exposições universais eram “centro de
peregrinação ao fetiche mercadoria”334. Na medida do possível, todos procuravam
acompanhar as transformações que eram apresentadas nessas ocasiões.
Edgar de Decca chama atenção para o êxtase produzido pela exposição dos produtos
industriais. Isso era resultado, em parte, da diversidade que se podia vislumbrar, pois “na
mesma exposição tanto se poderia admirar a nova máquina de costura Singer como o mais
moderno canhão da fábrica alemã Krupp”335. Uma das “maravilhas modernas” de maior
destaque, o automóvel, apareceu na década de 1880. E não tardou para que o veículo tomasse
as ruas do lado de cá do Atlântico.
Os veículos causavam frisson àqueles que o observavam pela primeira vez. Os
moradores do sertão alagoano que viram na década de 1910 os carros com “olhos de fogo” de
Delmiro Gouveia que o digam. Dilton Maynard336 estudou as produções da memória em torno
do coronel dos coronéis e ressalta que

Delmiro era dono de carros, objetos rarefeitos nos dias em que viveu nas
Alagoas. Os impactos da circulação dos seus veículos, cruzando as estradas
do sertão, principalmente à noite, surgem noutras quadras “Minha mãe o
que é aquilo/Que vem assombrando a gente?/- É o carro de Delmiro/Com [o]
um fogo aceso na frente”337.

Sem dúvida alguma o sertão habitado por Delmiro Gouveia era uma exceção. De
maneira geral as novidades apareciam primeiro nas grandes cidades. A introdução dos
veículos automotores e dos bondes elétricos imprimiram um novo ritmo às ruas. Isso gerou a
necessidade instituir os direitos e deveres de veículos e pedestres para evitar acidentes.

332
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
vol. 3, p. 9.
333
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.: FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 161.
334
BENJAMIM, Walter. Paris, Capital do século XX. In: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Coleção
grandes cientistas sociais; 50), p. 35.
335
DECCA, Edgard de. O colonialismo como a glória do império. In.:FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA,
Jorge, ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, p. 162
336
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O senhor da Pedra: produções e usos das memórias sobre Delmiro
Gouveia (1940 - 1980). Recife, 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Pernambuco.
337
Idem, p. 208.

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Levando isto em consideração, este trabalho investiga a normatização do trânsito de


automóveis em Sergipe nas décadas de 1910 e 1920.
Assim como outras capitais, Aracaju crescia e mudava de maneira particular no início
do século XX. Os cinemas começaram a funcionar em 1909, o bonde a tração animal servia à
população desde 1901, o primeiro automóvel surgiu em 1913. Outros serviços foram
disponibilizados como os de água encanada em 1908, luz elétrica em 1913 e esgotos em 1914.
Contudo, as transformações trazidas pela modernidade ganharam destaque durante os anos
vinte338.
Apesar da historiadora sergipana Maria Thétis Nunes afirmar que o primeiro
automóvel surge em 1913 no estado, um ano antes os códigos de posturas já traziam um
tópico específico para tratar do assunto. Entre as obrigações estavam a idade mínima de 18
anos para guiar, o registro dos veículos, particulares ou de aluguel, na Municipalidade339, a
proibição de subir nos passeios, de abandonar o veículo em qualquer lugar, e de parar em
pontes, pontilhões e bueiros. De acordo com as normas vigentes em Aracaju na década de
1910 ninguém poderia “ser condutor de veículo, seja carro ou carroça pública, ou particular,
sem ter feito a devida matrícula e adquirido a placa mencionada no regulamento n.10 para a
arrecadação das rendas do Município”340.
Até a década de 1920 não existiam revendedoras de automóveis em Sergipe. Os
veículos eram comprados fora e trazidos para o estado. Os jornais da época trazem anúncios
para a venda de veículos usados. Quando o proprietário J. Esteves Filho desejou se desfazer
do bem, anunciou num periódico que estava vendendo “quase por metade do seu verdadeiro
valor, um automóvel Studbaker de 7 assentos, de 45 cavalos, 6 cilindros, magnetos Bosh de
alta tensão, partida automática, cor azul-marinho e jogo de capas novo” 341. Os interessados
poderiam encontrá-lo no Cine Rio Branco.
No momento de vender os carros, os proprietários destacavam as qualidades do
veículo e tentavam facilitar a comunicação com os possíveis compradores. O jornal Diário da
Manhã publica a oferta, em dezembro de 1925, de um automóvel “Lanz”, uma marca famosa,
de acordo com o anuncio. O carro era usado “porém em perfeito estado de funcionamento,

338
. Cf. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Universidade Federal de Sergipe, 1984. p. 216
339
Normalmente essa matrícula poderia ser feita em qualquer época do ano e renovada nos meses de Janeiro e
Fevereiro. Cf. Códigos de Postura.
340
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1912, Seção 3ª, capítulo II , art. 96, p.
26..
341
MAGNÍFICO! Diário da Manhã, Aracaju, 11 nov. 1924, p. 2.

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completo com todos acessórios de força de 36 a 45 H.P. efetivos. A tratar com o proprietário
n. cidade de Itabaiana ou com R. Wynne Queiroz nesta capital. 9 – 30”.342
No entanto os automóveis ainda precisam conviver durante um bom tempo com os
veículos a tração animal que circulavam pela capital sergipana e, principalmente, nas cidades
do interior. Assim não é incomum aparecer anúncios de venda dos “Carros de praça”. Em
1924 José Freire Barreto estava vendendo “uma Charrete, tipo francês, com sete assentos,
com ou sem animal, e devidamente arreada”343.
A disputa pelos espaços nas ruas aumentava. Os pedestres precisavam competir com
carroças, bicicletas e bondes. Mas o veículo mais perigoso parecia ser mesmo o automóvel.
Daí porque a necessidade de regulamentar o comportamento dos veículos e, principalmente
dos condutores, pelas ruas das cidades. O código de posturas de Aracaju de 1926 determinava
no segundo capítulo como deveria ocorrer o trânsito de veículos. Conforme o regulamento:

Art. 106º – Ninguém poderá conduzir veículo, seja automóvel, caminhão,


carro ou carroça pública ou particular sem matrícula e sem possuir a placa
mencionada em regulamento. Aos infratores será aplicada a multa de 20$000
ou prisão por 4 dias.
Art. 107º - Verificada a infração, proceder-se-á à apreensão do veículo que
ficará no Depósito Municipal até o pagamento da multa e do imposto
respectivo.
# Único – É vedada a direção de todo e qualquer veículo aos menores de 18
anos. Em caso de infração, será aplicada, multa de 30$000 ou prisão por 6
dias à pessoa responsável pelo menor 344 .

Qualquer agente da municipalidade ou mesmo da polícia estava autorizado a abordar


os condutores de veículos que se portassem de maneira irregular nas ruas. A desobediência às
normas, com a conseqüente perturbação da ordem pública ou mesmo o ocasionamento de
acidentes deveriam ser punidos com multas ou prisões. Mas não era apenas na capital que os
automóveis precisavam de freios. Algumas cidades do interior também formularam um
roteiro que deveria ser seguido pelos condutores de veículos automotores. Eis algumas das
indicações que não poderiam ser deixadas de lado:

Art. 44. Na zona urbana os automóveis não poderão desenvolver velocidade


superior à equivalente a 10 quilômetros por hora.
# 1º Nos cruzamentos e curvas das ruas bem como nos becos e travessas, a
velocidade será reduzida ao mínimo.

342
LOCOMOVEL LANZ. Diário da Manhã. Aracaju, 1 dez. 1925, p. 2.
343
CARRO DE PRAÇA. Diário da Manhã. Aracaju, 11 nov. 1924, p. 3.
344
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, p. 24.

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# 2º Quando, por qualquer motivo, houver aglomeração nas ruas, a


velocidade dos automóveis e outros veículos será igualmente reduzida ao
mínimo.
# 3º As infrações das disposições deste artigo serão punidas com multa de
10$000.
# 4º . Todo veículo em marcha deverá tomar a direita sempre que o outro
vier em sentido contrário e, quando seguindo a mesma direção pretender
tomar a direita, deverá fazê-lo passando pela esquerda do que vai na frente.
Os infratores incorrerão na multa de 10$000.
Art. 45. Nenhum veículo poderá passar por cima das calçadas e passeios
públicos, salvo em caso de força maior, para evitar acidente, sob pena de
incorrer na multa de 10$000.
Art. 46. Nenhum veículo poderá conservar abertas as suas válvulas nas ruas
e praças para escapamento de vapor ou gás de modo a incomodar o público,
sob pena de incorrer na multa de 10$000 o condutor.
Art. 47. Todos os automóveis que transitarem à noite, deverão ser providos
de faróis iluminando a placa com o número de ordem, sob pena de 10$000
de multa.
Art. 48. Todo automóvel deve ser provido de uma buzina para avisar aos
transeuntes a sua aproximação.
Art. 49. É obrigatório o toque da buzina dos automóveis nas curvas,
cruzamentos de ruas e passagens nos becos e travessas345.

Usualmente os códigos de posturas das cidades obrigavam os proprietários de veículos


a realizarem a matrícula municipal, e isso já implicava no pagamento de um imposto. Além
disso, era preciso que o condutor estivesse habilitado e que o veículo dispusesse de itens
básicos de segurança, como os freios, faróis e buzina. Na década de 1920 aparecem
orientações sobre a velocidade máxima e mínima a serem desenvolvidas em locais e situações
específicas. Dessa maneira não bastava ter a posse do veículo para sair com ele às ruas. Era
preciso saber guiá-lo e conhecer as normas para as situações em que elas fossem aplicadas.
Entretanto, o trânsito em Sergipe não se limitava aos veículos automotores. Por isso
mesmo os códigos de posturas determinavam também sobre os animais que serviriam como
meios de transporte e tração para alguns veículos. O ritmo dos animais também precisava ser
controlado. E para evitar acidentes “todos os veículos de tração animal serão conduzidos
dentro da cidade a passo de trote curto sob pena de 5$000 de multa”346. Em Aracaju era
expressamente proibido

a) Correr a cavalo pelas ruas, avenidas, e praças da cidade.


b) Andar a cavalo, guiar ou demorar animais sobre passeios e em jardins.
c) Atar animais as portadas, postes de iluminação ou de bondes, de linhas
telegráficas ou telefônicas347.

345
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, p. 9 – 10.
346
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ANNÁPOLIS. Annápolis, 1927, capítulo III, art. 43, p. 9.
347
CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE ARACAJU. Aracaju, 1926, art. 103º p. 23.

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Os animais que eram encontrados soltos pelas ruas poderiam ser apreendidos. E caso o
dono não pagasse a multa estipulada, o bicho era vendido publicamente. Isso não estava
limitado apenas aos cavalos ou mulas. Qualquer bovino ou caprino que fosse encontrado
largado pelas cidades apresentando risco ao trânsito era imediatamente retido por funcionários
da prefeitura, policiais, ou mesmo cidadãos comuns. E, se por um lado havia preocupação
quanto à velocidade dos automóveis e dos animais, por outro, a lentidão e desconforto dos
bondes puxados por burros eram motivo de vergonha para muitos moradores de Aracaju.
A eletricidade fora introduzida no estado em 1913, mas era usufruída por poucos. Em
comparação com outras capitais, Aracaju demorou a se desfazer dos candeeiros e lampiões.
Nicolau Sevcenko descreve as impressões de Oswald de Andrade, ainda criança, sobre a
mágica dos bondes movimentados sem impulso externo em São Paulo desde 1900348.
Entretanto, nos anos vinte, Aracaju ainda contava com bondes puxados por burros.
Voluntariosos, os animais precisavam ser chicoteados durante os trajetos. Isso ocorria porque
“subitamente os burros empacavam, deitavam-se nos trilhos, faziam greve pacífica e não
havia chicote que o arredasse dali”. Os passageiros eram obrigados a descer e assistir a luta do
condutor “para ‘convencer’ os animais de sua obrigação”349.
Finalmente, em 1924, a Empresa Tração Elétrica de Aracaju cumpriu a promessa de
melhorar os bondes. Estes “já deixaram o passo de cágado para correrem nas linhas, e sem o
barulho, pelo fato de lhes haverem sido aplicadas novas rodas”350. Nem todas as substituições
haviam sido feitas, mas esperava-se que isso acontecesse em breve. Além disto, os pedestres
esperavam que os novos bondes, prestassem melhores serviços. Os condutores deveriam zelar
pela apresentação pessoal e a lotação do meio de transporte deveria ser respeitada, deixando
assim de causar inconvenientes para os pedestres que precisassem utilizar o serviço, uma vez
que

Não se pode admitir por gosto que numa capital já modernizada como
Aracaju haja calhambeques desarticulados e escandalosos acudindo pelo
título pomposo de bondes.
Estamos de pleno acordo com a providência tomada quanto ao
chicoteamento dos animais, porquanto se eles não puxam certos carrões de
assalto, não é por preguiça, mas por impossibilidade.
Uma coisa que os senhores da E.T.E.A. devem fazer quanto antes: vestir os
condutores e caixeiros, que andam semi-nus e sujos.

348
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 546.
349
CABRAL, Mário. 3 ed. Roteiro de Aracaju. Aracaju: Banese, 2002. p. 113.
350
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.

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Não devem também permitir que os bondes, com a lotação completa, ainda
leve passageiros de pé na plataforma. Estando cheios, os bondes só devem
parar para descida351.

Os bondes puxados por dois burros tinham cinco bancos, e a lotação máxima de vinte
passageiros. Isto explica porque andavam sempre lotados e não ofereciam conforto. O balanço
do bonde provocava até mal estar. Certo dia o mestre de padaria 2 de Julho José dos Santos
almoçou à tarde e subiu no bonde que passava às 15h. Quando estava em frente a padaria
União na rua de Laranjeiras, centro da cidade, não suportou “o jogo do veículo, caiu sem
sentidos no calçamento acometido por um forte ataque de congestão cerebral. Resultou da
queda sofrer um enorme talho na cabeça. Socorrido por um soldado do 28 e guardas civis”352.
Levado à farmácia Central, recebeu os primeiros curativos e foi removido para a Assistência.
A indisposição do padeiro José dos santos até poderia ter tido outra causa como um ataque
epitético. No entanto, o jornal aproveitou o fato para atribuir o “ataque de congestão cerebral”
ao inconveniente de ter bondes puxados por burros nas linhas do centro da cidade. Um
incidente como esse remetia ao atraso em que Aracaju estava em comparação a outras
capitais. Enquanto os jornais das grandes cidades reclamavam da velocidade dos bondes, em
Aracaju se noticiava o quanto o transporte maltratava os usuários.
No Rio de Janeiro, por exemplo, havia disputas entre pedestres e veículos. Para
atravessar uma rua era preciso estar atento ao movimento dos automóveis e dos bondes. Em
muitas de suas crônicas Machado de Assis comentava “o subido número de atropelamentos,
sobretudo de pessoas mais idosas, não adaptadas ainda ao novo ritmo de deslocamento dos
veículos elétricos”353. E se os bondes não conferiam grandes emoções aos usuários em
Aracaju, os automóveis se encarregavam de trazer os tão sonhados problemas das grandes
metrópoles para as ruas da capital sergipana. No dia 27 de julho de 1924 um garoto foi
atropelado por um automóvel. O Correio de Aracaju fez questão de noticiar o fato na primeira
página

Ontem às 18 horas na rua da Frente, esquina de Maroim, o automóvel n.11


guiado pelo chofer Oyntho Correia na ocasião em que desviava do bonde da
Fundição que nesta hora vinha rumo ao Bairro Industrial, atropelou um
menor de nome Cícero, morador à rua do Lagarto, que viajando, clandestino
no veículo da Viação, quis fugir ao buzinar do auto sendo, porém, pegado
por uma das rodas, atirando-o no calçamento. Socorrido por passageiros do

351
OS BONDES. Correio de Aracaju. Aracaju, 20 jul.1924, p. 4.
352
CAIU DO BONDE ATACADO DE CONGESTÃO. Correio de Aracaju. Aracaju, 28 jul. 1924, p.1.
353
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord. geral). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 549.

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bonde, verificaram não ter o menor sofrido coisa alguma, salvando deste
modo a responsabilidade do chofer354.

Assim, pode-se perceber apesar das transformações que pareciam devorar o mundo,
Aracaju demorou a exibir as benesses e os problemas de uma capital moderna. Apesar de
querer regulamentar o trânsito de pedestres e veículos para evitar acidentes, as cidades
contavam ainda com um grande número de veículos a tração animal, ou mesmo eqüinos e
muares que eram usados como meio de transporte.
Os automóveis não tinham preços acessíveis. E para dificultar ainda mais o acesso aos
carros, Sergipe passava por uma das maiores crises de carestia nos anos vinte. Assim como a
eletricidade ou o telefone, o automóvel chegou a Sergipe, mas nem todos puderam desfrutar
da novidade.
E enquanto os códigos de postura limitavam a velocidade máxima a 10 km por hora,
os usuários do bonde a tração animal reclamavam da vagareza do transporte. Esses indícios
levam a crer que os sergipanos desejavam desfrutar dos mesmos benefícios, e em alguns casos
até dos mesmos problemas, encarados pelos moradores de cidades como São Paulo ou Rio de
Janeiro. Assim, o que contava era a possibilidade de identificar traços da modernidade nas
cidades sergipanas, e, principalmente, na capital.
As tão almejadas novidades ganharam espaço, mas precisaram conviver com costumes
e tradições. Não se pode falar em mudanças bruscas, ou assimilação imediata das inovações.
A regulamentação do trânsito em Sergipe entre as décadas de 1910 e 1920 apresenta algumas
das contradições em torno da modernidade. Nesse sentido cabe a definição de Willi Bolle de
que “a modernidade é a expressão artística e intelectual de um projeto histórico chamado
‘modernização’ – contraditório, inacabado e mal resolvido”355.

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BAUDELAIRE. Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1996. p.11

354
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1924, p.1.
355
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin. 2 ed.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 24

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MAYNARD, Andreza Santos Cruz. A caserna em polvorosa: a revolta de 1924 em


Sergipe. Recife, 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Pernambuco.

MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O senhor da Pedra: produções e usos das memórias
sobre Delmiro Gouveia (1940 - 1980). Recife, 2008. Tese (Doutorado em História) –
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NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Aracaju: Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe. Universidade Federal de
Sergipe, 1984.

SEVCENKO, Nicolau. 2 ed. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
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CAPRICHOS E TRAPICHES: CONCEPÇÕES EM TORNO DO


TRABALHO FEMININO, EVIDENCIADO A PARTIR DE UM OLHAR
SOBRE A ATIVIDADE FUMAGEIRA EM CONCEIÇÃO DO ALMEIDA-
BA. 1960-1980.

Margarete Nunes Santos Gomes – UNEB


maguenunes@hotmail.com

No Recôncavo Baiano, especificamente em Conceição do Almeida-Ba, entre as décadas de


1960 a 1980, muitas mulheres firmaram suas histórias vinculadas à atividade fumageira nos
armazéns e no cultivo agrícola do fumo. Partindo das condições desse trabalho, do cotidiano e
das memórias, buscou-se analisar os múltiplos aspectos dessa vivência. Para traçar o perfil
das mulheres trabalhadoras da atividade fumageira, dedicou-se uma maior atenção às
memórias e as relações formadas no trabalho, na família, os laços de solidariedade, além das
estratégias de resistência e as relações de poder travadas neste âmbito. Se referindo ao
contexto dos papéis que essas mulheres desempenharam, há uma especial atenção às histórias
de vida das trabalhadoras, vinculadas à história oral numa dimensão comparativa de suas
histórias, visando entender como essas mulheres trilharam esse cotidiano. A intenção é revelar
a diversidade de experiências que se ocultaram na vivência dessas trabalhadoras, as quais
atingiram diretamente a formação de suas identidades, buscando assim, entender as condições
históricas de vida e de trabalho do seguimento social ao qual pertenciam.

Palavras-chave: Mulheres, fumo, trabalho, memórias.

História e Trabalho

O trabalho e seus significados

A vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de submeter o


ponto de vista da dominação, procurando mostrar a presença, a ação das
mulheres na plenitude de seus papéis, e mesmo a coerência de sua “cultura”
e a existência dos seus poderes. Caminho que é preciso reencontrar. Uma
história outra. Uma outra história. 356

356
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: Operários, mulheres e prisioneiros. Tradução Denise
Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Pp.169-170.

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Historicamente as mulheres sempre necessitaram lutar para fazerem valer os seus


direitos, no entanto a participação da mulher ainda é vista de forma secundária, há grandes
desigualdades nas condições de trabalho entre homens e mulheres, principalmente no que se
refere à valorização profissional. ”Economicamente, homens e mulheres constituem como
duas castas, em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários
mais altos e melhores possibilidades de êxito.” 357 Este fato é percebido também nos armazéns
de fumo onde algumas entrevistadas afirmam “os homens sempre ganhava mais do que nós e
358
sempre era eles que mandava.” . “Em geral, na divisão do trabalho, as mulheres ficavam
com as tarefas menos especializadas e mal remuneradas, os cargos de direção e de concepção
como os de mestre, contra mestre e assistente, cabiam aos homens.” 359
Nos armazéns de fumo a presença feminina era subordinada ao mestre e ao
administrador. Nos depoimentos não há especificada nenhuma forma de comando direto
feminino, com exceção de algumas esposas dos donos de armazém que na ausência deste,
assumia o cargo de supervisão. Estas eram chamadas de trapicheiras e algumas secretárias que
faziam os trabalhos burocráticos e os pagamentos, mas a maior parte do trabalho de comando
tinha sempre a presença masculina no poder.
O trabalho é uma atividade do ser humano que visa transformar o meio em que se
vive segundo as suas necessidades. A palavra trabalho vem do latim tripalium que significa
instrumento utilizado para manter animais como bois e cavalos presos, sendo possível ferrá-
los. Vulgarmente significa servidão do homem a natureza, esforço para sobrevivência,
reveste-se de múltiplos significados, observa-se na língua portuguesa a que a palavra trabalho
“é a aplicação das forças físicas e das faculdades mentais na execução de alguma obra”360 .
As mulheres das camadas sociais mais pobres nunca foram alheias ao trabalho,
em todas as épocas sempre trabalharam, contribuíram sensivelmente para a manutenção do
lar, o problema é que este trabalho não era conhecido muito menos valorizado.
Historicamente o trabalho passou por diversas definições. Os filósofos gregos e
romanos consideravam que o trabalho manual era atividade destinada aos escravos, às
utilizações das mãos eram consideradas faltas de criatividade, desprezando-o. Os filósofos da

357
BEAUVOIR. Simone de. O Segundo Sexo: Tradução: Sérgio Milliet. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1949. P.14
358
Mª Nilza de Jesus (D. Nita), 70 anos. , Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida, Ba.
Entrevistada em 02/12/2005 Duração: 80 minutos.
359
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.584.
360
XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Ediouro, 2000. P.917.

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Idade Média viam o trabalho como uma forma de suprir as necessidades humanas, cabendo,
no entanto esta função aos pobres que não tinham como se sustentar, aos ignorantes. O
trabalho intelectual é separado do trabalho manual, algo que se perpetua até os dias atuais.
As trabalhadoras pobres eram vistas na sociedade como pessoas ignorantes, “sem
cultura”. O trabalho braçal, historicamente, sempre foi associado à escravidão, a incapacidade
de desenvolver habilidades intelectuais. Esta idéia explicita os privilégios sociais nos quais os
dominantes justificam seu poder formando uma gama de valores contraditórios, modernos e
arcaicos.
As vivências e experiências dos agentes sociais se estabelecem através das
relações muitas vezes difundida pelos interesses da classe dominante, que fazem questão de
preservar seus valores, criando uma totalidade cultural, desvalorizando os movimentos sociais
e as lutas dos grupos pobres, é o que nos afirma E. P. Thompson, ao escrever contra “o peso
das ortoxias dominantes, em que apenas os vitoriosos são lembrados”361. O cotidiano do
trabalho forma e estabelece um lugar onde o tempo se transforma, na qual a oposição entre a
classe dominante e a classe dominada se opõe numa relação de mudança ou de continuidade.
Com o crescimento das cidades, a expansão da economia capitalista estimulou a
criação de um novo modelo econômico e de produção com o surgimento das fábricas, a
mercantilização de matérias-primas e de mão-de-obra, exigiu a adaptação de homens e
mulheres a um novo ritmo de trabalho passando ao compasso da alta produtividade.
A mão-de-obra passou a ser assalariada, houve diversos movimentos
reivindicatórios e de reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, ocorreram lutas por
melhores condições de trabalho e por salários mais justos e por uma verdadeira justiça social.
No Brasil a partir de 1930, ocorreu a expansão dos direitos trabalhistas, com a
criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio através do decreto lei de 19.433 que
institui a Carteira Profissional e disciplinou a duração da jornada de trabalho. Neste período
também surgiram os Sindicatos Únicos, que contribuíram para a regularização das
convenções do trabalho, estendendo o direito á férias, direito à estabilidade no trabalho, a
licença maternidade, entre outros.
Em 1º de maio de 1940 o Decreto-Lei nº. 2162 instituiu o primeiro salário mínimo
que deveria suprir as necessidades básicas do trabalhador. Sobre este fato há uma crítica
constante no que tange as relações econômicas do trabalho, na qual, a maior parte dos

361
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. 12-13.

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trabalhadores nunca é remunerada dignamente, quem produz a riqueza é quem menos a


possui.
A história das mulheres no contexto produtivo possui ainda uma luta maior:
Primeiro como trabalhadora e segundo como “mulher”, negra e pobre. Nos primórdios da
história as mulheres “apenas” trabalhavam na agricultura, nas oficinas artesanais e nas tarefas
domésticas, enquanto os homens saíam para caçar e garantir a subsistência da família, estas
possuíam tarefas especificas, assim como os homens, porém vivenciava uma sociedade mais
igualitária.
Quando se estabeleceu a sociedade paternalista, foi necessário legitimar o poder
masculino, excluindo a mulher de várias funções, estipulando que cabia às mulheres o espaço
privado do lar, a criação dos filhos, sendo estas afastadas dos espaços públicos.
A maioria das mulheres trabalhadoras exercia as chamadas ocupações femininas:
costurar, cozinhar, cuidar das crianças e ser prendada. Os únicos trabalhos abertos às
mulheres que não se resumiam ao próprio lar era o magistério (educação infantil) enfermagem
e serviços domésticos (empregada doméstica), sendo estes feitos para melhoria da renda
familiar. Porém estavam quase sempre às margens do processo de desenvolvimento social.
O trabalho propiciou uma forma de emancipação das mulheres, apesar de toda
desigualdade estabelecida entre os sexos. Mas foi através do trabalho assalariado que estas
repensaram sua condição de mulher, redefinindo seus papéis neste cotidiano. Fato este que
pode ser comprovado na maioria das falas de diversas entrevistadas, aspecto este significativo
por Dona Margarida (ex-trabalhadora de armazém de fumo), que diz respeito às dificuldades
vivenciadas ao decidir trabalhar fora do lar, principalmente em relação ao marido que
comenta da incapacidade de aprender.

Meu marido não queria que eu trabalhasse, dizia que eu não sabia fazer nada,
mas fui trabalhar e aprendi com as companheiras, comecei a ganhar meu
dinheirinho e até o que é meu, comprar coisa pra dentro de casa e pra meus
filhos, trabalhar é uma honra.362

No entanto há mulheres que afirmaram o inverso, que os seus maridos não as


impediam de trabalhar. “Meu marido nunca me empatou de trabalhar, nunca se importou, a

362
Maria Margarida Nunes, 74 anos aposentada, Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do
Almeida, Ba. Entrevistada em 16/12/2005 Duração: 60 minutos

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gente era pobre um ajudava o outro.”363. “A memória é um processo individual, que ocorre
em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou
sobrepostas”364. Discorre Portelli.
O companheirismo e a ajuda mútua também faziam parte do cotidiano das
famílias, o sofrimento e as dificuldades eram também compartilhados e muitos homens já
tratavam as mulheres de forma mais condizentes, não se sabe se por sentimento de igualdade
ou uma forma de dividir despesas.
O trabalho não significava apenas o recebimento do salário. Era uma conquista,
supria as necessidades materiais, mas ofereceu as essas trabalhadoras uma ascensão social e
econômica. As mulheres passaram a se sentir ‘sujeito do seu próprio destino’. O trabalho
proporcionou a estas mulheres certo domínio. Sobreviver às custas do marido era algo que
deveria ser superado, neste sentido trabalhar tinha um significado de orgulho e de ter a própria
dignidade, e um sentimento de realização.
A elevação da participação econômica das mulheres, mesmo que em ocupações de
postos de trabalhos de “menor qualificação” é responsável pela mudança de vida destas
mulheres. “Meu marido não queria que eu trabalhasse, aí eu perguntei a ele, se ele tinha
condição de me dá uma casa. A gente morava de favor no fundo das casas dos outros, aí eu fui
trabalhar, fui ganhar o ‘meu’ dinheiro.” 365 desabafa Dona Clemilda.

Para a mulher ter um emprego significa embora isto nem sempre se eleve em
nível de consciência muito mais do que receber um salário. Ter um emprego
significa participar de uma vida comum, ser capaz de construí-la. Sentir-se
menos insegura na vida.366

Trabalhar significava uma auto-afirmação de liberdade, de independência, ter sua


própria casa, possibilitar uma vida melhor para os filhos e para si mesma, o que permitiu a
estas mulheres o sentimento de se ser útil, produtiva, tendo condições de prover o seu

363
Crispiniana Santos Maia, 77 anos, ex-trabalhadora dos armazéns de fumo – residente em
Conceição do Almeida – Ba. Entrevistada em 14/12/05. Duração: 60 minutos.
364
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética e história
oral. Ética e História Oral. Projeto História no. 15 Revistas do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História-PUC/SP. São Paulo: Educ, abril de 1997, p.16.
365
Clemilda do Amor Divino, 65 anos, aposentada. Conceição do Almeida Ba. Entrevistada em 14/12/2006.
Duração: 70 minutos
366
SAFFIOTI, Helleieth Iara Bongiovani. A Mulher na Sociedade de Classe. Mito e Realidade. São Paulo.
Quatro Artes. 1969. P. 63

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sustento, vencendo o medo, a dominação masculina, a discriminação que historicamente se


perpetuou. O trabalho proporcionou uma forma de superação, de “independência”.
A compra da casa própria representava um esforço extraordinário para estas
mulheres. A posse de uma casa ganhava um significado maior, como símbolo de vitória, por
mais simples que a casa seja ela forma uma rede de ralações e sentidos que se entrelaçam, há
um sentimento na propriedade de ‘ter seu próprio canto’ remete a idéia de ter ‘seu lugar no
mundo’, um lugar que envolve a idéia de proteção, de intimidade. A casa é um abrigo de
significados, de repouso e de história. “Meu sonho era trabalhar para ter uma casa, ter onde
botar a cabeça sem pagar aluguel.”367. A casa não é só um lugar de repouso, é um pouso, é o
“meu lugar” é a idéia de pertencimento.
No entanto, ao se introduzirem no mercado de trabalho estas mulheres
acumularam funções, eram mães, esposas, dona-de-casa e trabalhadoras dos armazéns. Esta
situação impôs um novo ritmo ao cotidiano destas mulheres. “Sair para trabalhar fora é
vivenciado como algo ambíguo, pois se é também uma ampliação da sociabilidade, não deixa
de ser experimentado como uma perda em comparação com a situação vivenciada em casa,”
368
fato este abordado na obra de Marilena Chauí, o trabalho feminino fora do lar transformou
as relações familiares.
Mudaram-se as relações produtivas, mas as mulheres continuaram presas ao lar, às
funções domésticas. No modelo patriarcal de família, cabe ao homem, marido ou pai a
posição, de chefe da família, sendo responsável pelo seu sustento, sendo considerado uma
autoridade. A mulher, esposa e mãe é responsável pelas atividades domésticas além da
educação dos filhos, sendo subordinada ao homem. Este modelo de convivência se sustenta
mesmo depois que a mulher foi inserida no mercado de trabalho, o fato de “trabalhar fora”,
não dispensa as mulheres de suas atividades domésticas.
Alguns estudos feitos no início do século XX, afirmavam que a saída da mulher
para o trabalho fora do âmbito familiar, poderia causar sérios problemas à formação familiar,
sendo a mulher figura importante na formação dos “filhos da pátria”, sendo provedora ou
culpada da formação do caráter dos jovens, essas mulheres eram denominadas” mães cívicas”
(aquela que prepara moralmente e intelectualmente o futuro cidadãos para servir à pátria,
engrandecendo a nação).

367
Mª Nilza de Jesus (Dona Nita), 70 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 02/12/2005. Duração 80 minutos
368
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense. P.148

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Para muitos médicos e higienistas o trabalho fora do lar levaria à


desagregação da família. De que modo às mulheres que passavam a trabalhar
durante o dia, ou mesmo parcialmente, poderiam se preocupar com o
marido, cuidar da casa e educar os filhos? O que seria de nossas crianças,
futuros cidadãos da pátria, abandonados nos anos mais importantes de
formação do seu caráter?
Tais observações levavam, portanto, à delimitação de rígidos códigos de
moralidade para mulheres de toda classe social. 369

Este moralismo dominante foi vivenciado com maior força sobre as mulheres de
décadas anteriores ao período deste estudo, no qual, o fato de terem uma profissão, estas eram
estigmatizadas e “associadas à imagem da perdição moral, de degradação e de prostituição”.
Porém, historicamente a participação social das mulheres foi sendo modificada. Ao longo dos
tempos passaram a ter uma participação mais direta nos espaços sociais, políticos e culturais,
“as relações entre homens e mulheres deveriam ser, portanto, radicalmente transformadas em
todos os espaços de sociabilidade (...) A condição feminina, o trabalho da mulher fora do lar,
o casamento, a família e a educação seriam pensados e praticados de uma outra maneira.”370.
Há em muitas mulheres um conflito entre os diversos papéis a que foram
tradicionalmente atribuídas, não é fácil conviver com estas mudanças e diferenças, pois fazem
parte de um conjunto de valores que foram internalizados na sua formação enquanto
mulheres, padrões e regras arbritarias estabelecidas historicamente. “Mulheres tem sido
levadas nos últimos anos, assim a buscar um novo entendimento do seu papel.” 371
Mesmo com estas mudanças no ritmo de trabalho das mulheres, suas
responsabilidades não diminuíram. Passaram a vivenciar um enorme desgaste físico e
emocional, na medida em que assumiam efetivamente esta realidade, trabalhar durante o dia
no armazém e a noite em casa, cuidar de todos os afazeres domésticos, não ter folga nem nos
finais de semana. “No domingo ia lavar roupa na fonte, trançar os cabelos das meninas,
372
arrumar tudo pra segunda-feira, não tinha tempo pra nada,” reforça a idéia do trabalho
contínuo Dona Laura de Jesus, 66 anos, ex-trabalhadora de armazém de fumo. Discurso que é
repetido pelas trabalhadoras dos armazéns, o que sinaliza a fala de Dona Raimunda.

369
RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001. P.582.
370
Idem. 14. P.579
371
ROCHA COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: A mulher brasileira nas relações
familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P.62
372
Laura Pereira de Jesus, 66 anos. Ex-trabalhadora dos armazéns de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 20/08/06. Duração 40 minutos.

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O trabalho era todo dia, começava no armazém e continuava em casa. No


domingo a gente ia arrumar a casa, cuidar dos meninos, adiantar as coisas...
A vida era difícil eu cozinhava de carvão, puxava água na cisterna, antes de
ir trabalhar. Deus é quem sabe do meu sofrimento e da minha luta. Se
trabalho matasse eu já tinha morrido! 373

Percebe-se que a rotina de trabalho destas mulheres não tinha fim, quando não
estavam nos armazéns, trabalhavam nos lares, as responsabilidades domésticas lhes
pertenciam, ficando os homens eximidos destes deveres. As mulheres trabalhavam nos
armazéns e ainda tinha o dever de cuidar dos filhos e da casa, cozinhando, limpando,
‘cuidando bem do marido’, um trabalho sem fim. Os homens geralmente trabalhavam e
chegavam a casa para descansar, quando realizavam algum trabalho era visto como uma
“mera ajuda” e não uma obrigação a ser compartilhada, já com as mulheres ocorria o inverso.
Esta situação tem suas raízes nos aspectos culturais que naturalizam e
transformam deveres às diferenças biológicas em fatos sociais, construindo com isso uma
desigualdade social que afeta principalmente as mulheres, consolidando comportamentos no
seu cotidiano, se estipulado os “trabalhos próprios de mulheres”, que são afirmados e
reafirmados pela educação formal ou não formal.
O direito ao lazer e ao descanso é algo quase imperceptível nas falas destas
mulheres. O lazer é um direito assegurado a todo trabalhador e trabalhadora como uma forma
de repor energias, quando trabalhando ininterruptamente poderá desenvolver uma estafa física
e mental. “O corpo está às vezes esgotado, à saída da fábrica, mas o pensamento está sempre
esgotado, mais ainda do que o corpo.”374
A dupla jornada de trabalho impõe limitação de tempo, e legitima uma forma de
exploração que inclui a falta de lazer, do direito ao descanso sendo explicita a exploração
duplamente da mulher.

De fato, parte importante do processo de desqualificação a que é submetido


o trabalho feminino emana da invisibilidade. A começar pelo trabalho
realizado por mulheres no âmbito doméstico enquanto mães e donas de casa.
Mesmo envolvendo uma diversidade de tarefas essenciais para a
sobrevivência da família e para a reprodução da força de trabalho, mesmo
implicando numa longa jornada de trabalho diária, essas atividades só são
consideradas trabalho quando remuneradas... 375

373
Raimunda Ribeiro Cunha, 73 anos Ex-trabalhadora do armazém de fumo. Conceição do Almeida Ba.
Entrevistada em 03 /12/06 Duração: 50 minutos
374
WEIL, S. A condição operária e outros estudos sobre opressão. Seleção e organização de Ecléia Bosi. Rio
de Janeiro: Paz e Terra. P.61
375
SARDENBERG. Cecília Maria Bacellar (Org.) A face feminina do complexo metal-mecânico: mulheres
metalúrgicas no Norte/Nordeste. Salvador: UFBA/FFCH/NEIM; REDOR: São Paulo; CNM/CUT, 2004.p.32.

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Enquanto trabalhadoras estas mulheres vivenciaram uma exploração muitas vezes


ofuscada por uma violência invisível. Esta invisibilidade repousa no sentimento de satisfação
que aos se confrontar com estas experiências vividas lhe ofusca os pontos negativos desta
convivência. Heller afirma que “Sentir-se Satisfeito numa sociedade insatisfeita... a exaltação
ao trabalho é tão forte que, para muitos, o ócio e o lazer vem sempre acompanhados de um
sentimento de culpa”.376

Realisticamente, as mulheres que se tornam assalariadas consideram “sair de


casa para trabalhar fora” uma carga, (A dupla jornada de trabalho, o longo
tempo gasto no percurso, a preocupação com os filhos deixados em casa) e
uma servidão, pois acrescenta-se à submissão ao pai ou ao marido
(Submissão reconhecida) a subordinação a feitores, contra-mestre, fiscais,
gerentes e patrões ( subordinação indesejada) 377

Marilena Chauí aborda que foi neste processo histórico que estas mulheres foram
se libertando das diversas instâncias de poder que ocorriam entre pai, marido e patrão, mesmo
se sujeitando as leis de dominação de mestres e fiscais, construíram estratégias de resistência
e superação, desmistificando o imaginário criado em torno destas mulheres que eram vistas
como figuras vitimizadas, passivas, coitadas, sem expressão.
Sobre as dificuldades do trabalho há uma observação bastante pertinente no
depoimento da Dona Nair Bispo dos Santos.

O trabalho era cansativo, forçado, sofria muito mesmo, trabalhando de


manhã até à tardinha, chegava em casa era aquele bucado de filho. Eu tive
dez filhos, tinha que trabalhar, e os filhos maiores eram que cuidava dos
menores. Tinha dia que não dava tempo nem pra comer. Ficava tudo na mão
de Deus, era Deus que cuidava deles pra gente, a vida era tão difícil. Mais
hoje eu me sinto bem e por ter passado por isto me ensinou a me valorizar.
Hoje me sinto uma vitoriosa. 378

Nesta fala verificam-se significativas lembranças que marcaram o período de


trabalho vivenciado pelas trabalhadoras dos armazéns de fumo. Sinalizando as dificuldades

376
HELLER, Agnes. Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 1982. P.162
377
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. P. 148.
378
Nair Bispo dos Santos, 70 anos. Ex-trabalhadora de armazéns de fumo, residente em Conceição de Almeida.
Entrevistada em 23-01-06. Duração: 90 minutos

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em relação à dupla jornada de trabalho, a preocupação na criação dos filhos, o tempo escasso
até para as necessidades básicas como à alimentação.
O processo de dominação é visivelmente observado no início do diálogo quando a
entrevistada fala do sofrimento, do cansaço, a experiência vivida que denuncia como as
condições de trabalho eram precárias, mas a necessidade de sobrevivência era maior, quando
direciona a idéia de um trabalho “forçado” quase escravo, sem uma remuneração justa. As
palavras deixam marcas na forte expressão e de emoção ao falar dos filhos, buscando uma
evocação religiosa e de fé, como uma força maior que estariam com eles no momento de sua
ausência. “A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do
trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, (...) dos seus sentimentos”. 379
Esta narrativa entrelaça diversas lembranças e várias dimensões da memória que
estão presas a recordações que são pedaços de um cotidiano, na qual se estabeleceram
relações concretas, com o trabalho, com os filhos e com as crenças.
O relato de Dona Nair marca o cotidiano que não pode ser visto particularmente,
mas uma realidade comum a muitas mulheres. No seu depoimento a sua expressão, seus
gestos, mostrava marcas de um cotidiano difícil, sofrido, mas também visto como um esforço
recompensado quando afirma “ser vitoriosa”, apesar de toda difícil experiência vivenciada.
Sobre este tema há um artigo de Edinélia Mª Oliveira Souza que considera relevante á
explicação detalhadas dos gestos e das expressões, na qual é possível entende o cotidiano que
compõe a memória:

Fala e corpos são elementos indissociáveis das narrativas de memória dos


trabalhadores (...) Por vezes, a valorização das experiências vividas é
reforçada por gestos e sinais da corporalidade que se integram ao discurso
emitido surgindo dimensões de linguagem que compõem uma cultura, uma
maneira de viver e de ser. 380

Ao historiador os gestos, os silêncios, o brilho no olhar, as pausas, dizem muito,


expressam idéias que muitas vezes não foram explicitadas nas falas, devendo estar atento a
estes detalhes.

379
PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001. P. 07
380
Projeto História, São Paulo (18), maio 1995. Cruzando Memórias e espaços de culturas. Dom Macedo
Costa-Bahia (1930-1960). Por: Edinélia Mª Souza. P. 372-373

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As representações destas vivências apontam para um passado entrelaçado de


significados, que traz o corpo como lugar da experiência. Denuncia um cotidiano tenso e
contraditório, que se manifesta de várias maneiras, quando em alguns momentos as
trabalhadoras aceitavam as regras impostas, num processo de “conformismo” que pode
significar uma tática de permanência no trabalho e até de sobrevivência, já que o desemprego
era uma situação pior. “Em outros momentos conseguiram criar brechas de resistências,
provocando embates diretos:” Quando eu tinha minha razão ninguém tirava, eu sou da paz
mais não venha me fazer de besta não!”381 Com forte entonação pronuncia Dona Mundinha.
Havia o poder moderador, das relações, daquelas que lutavam mesmo que
silenciosamente, as mulheres não são desprovidas de poder, pois ele também existe até na
capacidade de resistir, de se libertar mesmo que lentamente, com os “caprichos” da vida. A
fragilidade ganha força e coragem, as queixas e dificuldades são superadas com a auto-
valorização, com o sentimento de ter vencido mesmo diante das adversidades. “Reivindicar a
importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as definições de
histórias e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões
acuradas sobre o que aconteceu ou teve importância no passado”. 382

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Tradução: Sérgio Milliet. Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira. 1949.

BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: Lembranças dos Velhos. 3ª Ed. – São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico: Tradução: Fernando Tomaz- 3ª ed.- Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2000.

BRUCHINI, Cristina. O trabalho da mulher no Brasil: tendências recentes. In Anais do III


Encontro de Estudos do trabalho. São Paulo: ABET. Vol.1, 1994.

381
Raimunda Ribeiro Cunha (Dona Mundinha), 73 anos Ex-trabalhadora do armazém de fumo. Conceição do
Almeida Ba. Entrevistada em 03 /12/06 Duração: 50 minutos
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Entrevistadas:

Clemilda do Amor Divino


Eunice Coelho Epifânio
Francisca do Carmo de Jesus

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Laura Pereira de Jesus


Luzia Lima Caldas
Maria Nilza de Jesus
Maria Margarida Nunes Santos
Nair Bispo dos Santos
Raimunda Ribeiro Cunha

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A MULHER OPERÁRIA EM SERGIPE (1910-1932): TRABALHO E CONDIÇÕES


DE VIDA

Sharlene Souza Prata - UFS


leneprata@yahoo.com.br

Esse trabalho tem por intuito analisar o processo de inserção das mulheres nas primeiras
fábricas têxteis em Sergipe entre 1910-1932 demonstrando que o pensamento de que a
libertação feminina viria após a sua admissão no mercado de trabalho mostra-se insuficiente
para entendermos as raízes da opressão da mulher. Não obstante ao fato de que as mulheres
adentraram no âmbito do trabalho produtivo (esfera pública), elas ainda tinham sob sua
responsabilidade todas as tarefas do trabalho reprodutivo (esfera privada). Ou seja, o papel
desigual que a mulher assumiu no espaço público tem origem na esfera privada, haja vista as
condições desiguais de trabalho e a situação de vida que estavam inseridas a qual
explanaremos.

Palavras - chaves: Mulher, trabalho.

1. INTRODUÇÂO

O presente artigo pretende abordar como se deu o processo de ocupação feminina


nas duas primeiras formações sociais capitalistas de Aracaju, tentando apreender as relações
de produção e a conseqüente condição de vida das mulheres.
Para tanto, faz-se necessário identificarmos aqui que o subjugamento da mulher é
fruto de um processo histórico gerado através da divisão sexual do trabalho o que nos faz
perceber porque mesmo com a inserção da mulher no mundo do trabalho, continuou sendo
relegada a ela uma posição inferior.
Tentaremos não incorrer no erro destacado por Hobsbawn que a muito vem sendo
cometido pelos pesquisadores da História do operariado de “dentro do movimento” ou

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mesmo “de fora” dele (nas universidades) que é a tendência de confundir “classe operária”
com “movimento operário” ou até mesmo com organizações, ideologias e partidos
específicos383.
Partindo dessa premissa pretendemos resgatar aqui o ofício e a difícil vida das
primeiras operárias em Sergipe, sendo estas sindicalizadas ou não, nas fábricas: Sergipe
Industrial, fundada no ano de 1882, a Fábrica Confiança criada no ano de 1891 (ambas de
Aracaju).
A escolha dessas fábricas e o recorte temporal feito tem haver com os altos
índices de produtividade alcançados no período entre 1910-1930 e noticiado nos jornais da
época, conquistados certamente por causa do número de operários e da super-exploração dos
que nelas trabalhavam.
No que diz respeito à metodologia e a utilização das fontes confrontaremos neste
algumas fontes primárias e orais, tais como: relatórios de presidentes da Província do
referido período, jornais operários (levantamento da Imprensa operária feito pela Profª.
Maria das Graças); entrevistas com duas operárias da fábrica Sergipe Industrial cujos nomes
eram Maria Antônia de Oliveira e Alice Sousa Barros, realizadas no ano de 1990 pelo
Professor Dr. Antônio Lindvado Souza. Além dessas entrevistas, iremos nos valer dos relatos
feitos por Maria Ligia Pina sobre algumas operárias em seu livro: “A mulher na História”.
Ainda reconhecemos neste a importância da literatura como forma de nos trazer algumas
discussões acerca dos fatos da época, por isso usaremos o romance realista de Amando
Fontes, “Os Corumbas”.
Objetivamos por meio deste, contribuirmos para os estudos sobre História Social
do trabalho e aumentarmos a discussão acerca da divisão social e sexual do trabalho
revelando as diferenças existentes dentro da própria classe operária, ao mesmo tempo em que
buscamos fazer através desse estudo uma denuncia as condições de exploração que sofriam
as primeiras operárias, mostrando que o resultado de séculos de opressão, ainda se fazem
presentes nas relações de trabalho atuais. Sendo assim, entendemos a classe operária:

Não como... uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como
algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstradas nas
relações humanas)...a classe acontece quando alguns homens, como
resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra os outros homens

383
HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho. Rio de janeiro: Paz e terra, 2000

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cujos interesses diferem ( e geralmente se opõem) dos seus. A experiência


de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em
que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente.” (THOMPSON
1978: p.9,10).

A abordagem que será travada tentará fugir do paradoxo que só revela a história
da mulher implícita a do homem não precisando mencioná-la, ou, ao contrário, de forma
fragmentada não percebendo que a História desta, faz parte de um todo.

2. SOBRE A HISTORICIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DE PRODUÇÃO: A


ORIGEM DA OPRESSÃO FEMININA

Para compreendermos a situação precária a qual as primeiras operárias estavam


inseridas é importante trazer à baila a constatação de Engels no que diz respeito ao fato de
que a família é um fenômeno social que possuí uma História. A Família monogâmica -
384
patriarcal era apenas uma delas. Tal argumento torna-se relevante à medida que
demonstra a transitoriedade das relações sociais, ou seja, a História de submissão feminina é
uma condição que pode ser superada.
Com base na concepção materialista da História que demonstra a origem da
sociedade patriarcal e das desigualdades entre os sexos, faremos uso de duas categorias: a do
Trabalho produtivo e a do trabalho reprodutivo:

“De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na História é, em


última instância, a produção e a reprodução da vida imediata... a produção
dos meios de existência, de produtos alimentícios, roupa, habitação e
instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do
homem mesmo, a continuação da espécie.” (Engels, 1977:2).

Deste modo, para comprovação de tal argumento, o autor supracitado divulga a


tendência que nas sociedades primitivas não se podia contar com outra linhagem senão a
feminina. Essa situação primitiva das mães como os únicos genitores certos de seus filhos,
lhes assegurou (...) a posição social mais elevada que tiveram. Um exemplo disso era que a

384
Friedrich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. José Silveira Paes; Apresentação Antonio
Roberto Bertelli.-São Paulo: Global, 1984.

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mulher poderia relacionar-se com quem quisesse e da mesma forma os homens porque não
havia necessidade de comprovar a paternidade, as crianças eram criadas pelos clãs e estes
tratavam todas as mulheres do clã de “mães” (gens materna). Se morresse um proprietário de
rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs e aos filhos destes
últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos seus próprios filhos, eram
deserdados. 385
Com o surgimento da propriedade privada e a divisão do trabalho entre os sexos o
homem acabou acumulando mais riquezas que a mulher, fazendo com que ele adquirisse
assim uma posição mais importante na família e consequentemente nascendo nele a idéia de
utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de sucessão
tradicional. Para tanto era necessário romper a linhagem materna e estabelecer agora uma
linhagem paterna e foi assim que foi estabelecido o Patriarcado.
Destarte, com a reversão do direito materno o homem passou a governar também
na casa, fazendo com que a mulher se tornasse sua escrava, um simples instrumento de
reprodução. Tal divisão sexual do trabalho se manteve a longo do processo histórico e foi a
apropriado pelo modo de produção capitalista para hierarquização do modo de produção e
reprodução do capital e o arraigamento da exploração da mais-valia feminina.
É por isso que durante muito tempo, com base em tal visão, vários pensadores e
movimentos feministas consideravam que o processo de emancipação feminina passaria
necessariamente pela sua inserção no mundo do trabalho produtivo.
No entanto, ao contrário do que se pensava de forma limitada, quando Engels
afirmava que na família o homem é o burguês e a mulher o proletário, ele fazia mais que uma
simples analogia. Ele apontava para o fato de que a exploração da mulher não se esgotaria
com a sua inserção nas relações de produção, mas que tem um condicionamento básico no
seu papel dentro da família. 386

3. AS CONDIÇÕES DE TRABALHO E DE VIDA DA OPERÁRIA

Com o advento da Revolução Industrial houve a inclusão da mulher no mundo do


trabalho, mas isso não ocorreu de modo a livrá-la do trabalho reprodutivo. A despeito da
crença que se tinha a mulher ainda se encontrava majoritariamente na esfera privada, pois

385
IDEM, ibdem
386
ALVES, Branca Moreira. Ideologia IN: Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Ed.Vozes, RJ,
1980, p. 25-63.

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não havia condições de conciliação das duas esferas. Comumente as mulheres ficavam
trabalhando na fábrica até se casarem, depois retornavam aos seus lares, a não ser que seus
maridos não tivessem condições de provê seu sustento.
Podemos perceber também que as tarefas domésticas continuaram sendo
incumbências da mulher e foi dessa forma que se estabeleceu a família operária patriarcal:
marido provedor e esposa provedora complementar e dona-de-casa ratificando a injusta
divisão sexual, pois as mulheres acabavam sofrendo uma dupla jornada de trabalho.
Nos dias de “folga” a mulher acabava trabalhando ainda mais em seus lares, não
lhe restando tempo algum, seja para o lazer ou para organização política. Vejamos o relato de
D. Antonia (ex-operária da Sergipe Industrial):

“ (Quando voltava para casa) Trabalhava no meu trabalho doméstico dentro


de casa, trabalhava com minha mãe, minhas irmãs, Nosso Senhor levou
minha mãe e minhas irmãs. Quando estava casada não trabalhei, (só) depois
de viúva trabalhei. Quando me casei já trabalhava na fábrica. Depois que
me casei, saí de fábrica.”

Desde o início da industrialização brasileira, a mulher e a criança já se faziam


presentes em um bom número, não obstante, a sua inserção de forma mais numerosa também
confirmasse a divisão sexual do trabalho, conforme nos mostra HARDMAN e LEONARDI
(1991: p.40) “O trabalho feminino tinha um peso significativo na composição da força de
trabalho da época, embora se concentrasse em sua quase totalidade nos setores têxtil, de
vestuário e tocador”.
Tudo isso demonstra que o processo de feminização do operariado se deu em
tarefas tidas como “função da mulher”, aquelas que representavam à extensão das atividades
domésticas e em função disso, já que atividade doméstica não era considerada trabalho, no
espaço público elas vão ser consideradas inferior, recebendo, portanto, as piores
remunerações. As operárias, inclusive, eram maiorias nesses setores. Em Sergipe a estatística
era ainda um pouco maior que a média nacional
“O pessoal constante nos diversos trabalhos, compõe-se de 220 mulheres de 16 a
40 anos, 110 meninas entre 8 e 15 anos de idade, 75 homens de 16 a 60 e 25 meninos entre 8
e 15 anos de idade”. 387

387
Mensagem a Assembléia Legislativa do presidente do Estado Mons. Olímpio Campos em 07 de setembro de 1900.

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“Quanto ao número de operários: mulheres adultas 657, mulheres menores 31,


homens adultos 156 e homens menores 16”.388
Havia uma prioridade no emprego de mão-de-obra de mulheres e crianças por
causa de seus salários rebaixados. Em razão disso, os setores têxteis eram os que
apresentavam as piores remunerações. Em Sergipe o número de mulheres nas fábricas
têxteis eram superiores a média nacional explicando dessa forma porque o estipêndio dos
operários sergipanos era inferior ao resto do país (Sergipe possuía 54% de mulheres nas
fábricas, sendo que a média nacional era de 30%). 389
O Capitalismo usava, então, essa divisão sexual do trabalho para rebaixar valor
do trabalho masculino em decorrência do ingresso da força de trabalho feminina, incorporada
à classe trabalhadora e percebendo salários ainda mais reduzidos. A própria necessidade de
exploração do capital acabou gerando outras contradições. Logo, negamos aqui a dicotomia
entre classe e gênero, afirmando a necessidade de relacioná-los.
No tocante a questão que envolve a estrutura da fábrica, cabe ressaltar que os
operários e operárias estavam expostos a condições deploráveis, já que as fábricas
normalmente eram ambientes muito quentes quase sem ventilação, os deixando vulneráveis a
problemas de saúde, tendo em vista que eles trabalhavam até 12 h por dia suados e com a
poeira que saía do algodão grudando em seus corpos.
Associado a tudo isso, estava à questão da ausência de bebedouros e banheiros
dentro das fábricas, e se os tinham, eram controlados por mestres e contra-mestres. O
trabalhador ou trabalhadora que precisasse utilizar esses locais teria que informar tudo que
iria fazer para que obtivesse o consentimento. Sendo assim seriam dados alguns poucos
minutos sobre a ameaça de ser trazido de volta à força. Tal regra desrespeitava até as
condições físicas da mulher, pois era indiferente ao fato de existirem mulheres grávidas. . O
jornal a “Voz do operário” de junho de 1921 denuncia um fato ocorrido na Sergipe Industrial
onde uma operária foi demitida pelo simples fato de fazer uma necessidade fisiológica em
“local não apropriado” visto que o “próprio” estava ocupado.
O desrespeito às condições físicas da mulher também iam além, pois elas eram
submetidas ao ritmo desenfreado das máquinas manuseando várias ao mesmo tempo e

388
Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1919 ao instalar-se a 3ª sessão ordinária pelo Cel. Dr. José Joaquim
Pereira Lobo, presidente do Estado.
389
SUBRINHO, Josué Modesto dos Passos. A indústria têxtil em Sergipe: Gênese, crescimento e limites de uma
indústria periférica IN: Economia regional e outros ensaios, org. Nilton Pedro. São Cristóvão: UFS, 2001.

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somente em casos raros o patrão dispensava uma operária de tal obrigação, até porque em
muitas fábricas ganhava-se por produção o que acabava estimulando a competição, sem falar
que isso se fazia necessário para garantir a sua sobrevivência.
Esse rígido controle imposto pelos capitalistas era uma tentativa de disciplinar os
operários, por isso a exigência no cumprimento de uma série de horários, para almoçar, para
chegar à fábrica etc. e quem chegasse um pouco atrasado não poderia entrar na fábrica.

“Quem não desse produção não ganhava nada”.390


(Sobre possíveis atrasos)

“Não tinha esse negócio de explicar o motivo de demorar, porque morava


longe e não pode vim logo, perdia o horário e voltava para casa”. 391

O ritmo frenético e o peso das máquinas contribuíam para que ocorressem


acidentes que normalmente resultava em óbito ou causava danos físicos gravíssimos. Quando
não ocorria de ocorrer uma lesão física momentânea, com o passar dos anos, o trabalho
repetitivo da fábrica acabava afetando a saúde das operárias. Essa conjuntura não implicava
necessariamente que a fábrica providenciasse algum tipo de assistência ou indenização.

Irinéia e seu acidente. Vítima de um acidente de trabalho na fábrica têxtil


Confiança, essa pobre camarada que é menor e orphã, ainda não recebeu a
sua indenização legal. O acidente verificou-se aos 07 de novembro de
1931. 392
Se quebrasse um fio com ela trabalhando a lançadeira voava, quem tivesse
na frente era olho, era cabeça, era perna. Era como uma canoinha, sabe, era
mais pesada com uma madeira especial, e a lançadeira de ferro bem
afiadinha de forma que qualquer coisinha que ela encontrasse na frente...
era preciso que estivesse bem atenta, quando soltasse o fio parasse a
alavanca, porque se não parasse ela ia soltar. Era muito perigoso, até para a
gente mesmo quando ele soltasse podia voltar e bater num braço, no ombro,
na barriga e feria... ela vinha com todo açoito. 393
A senhora não pode trabalhar porque esse trabalho da fábrica não dá mais
para a senhora. 394

Não obstante a todos esses fatores que prejudicavam a integridade física dos
operários estavam às condições de moradia bastante desumanas a que eram submetidos,

390
Entrevista realizada com a ex-operária Alice Souza Barros (1990).
391
IDEM
392
Voz do Operário. Aracaju, n, 28 de fevereiro de 1932, BPED,Sergipe, extraído de ROMÃO, Frederico.
393
Depoimento de Dona joaninha, ex-operária da Sergipe Industrial, extraído de ROMÃO, Frederico. Na trama da
História: o movimento operário em Sergipe, 2000.
394
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990), sobre a doença que a proibiu de trabalhar.

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somente a minoria tinha condições de se estabelecer nos bairros próximos das fábricas, a
maioria do operariado precisava ir para locais distantes mais condizentes com a sua realidade
financeira. Como as residências não se situavam perto das fábricas, para se chegar a ela no
horário estabelecido era necessário acordar ainda pela madrugada e andar quilômetros,
apontando para a ocorrência de que não sobrava tempo algum para as operárias, pois
retornavam a noite para fazer algumas atividades domésticas e descansar (muito pouco) para
o outro dia de trabalho.
Numa entrevista realizada com uma operária de nome Maria Antonia de Oliveira
que trabalhou em média trinta anos na Fábrica Sergipe Industrial, podemos constatar a
precariedade das condições de moradia:

Morava em casa de palha. Essa casa daqui caiu. Era de vara. Naquele tempo
tinha aqueles invernos fortes, a chuva vinha e derrubava tudo. (Dentro da
casa) Cada qual tinha seus banquinhos para se sentar. Quando o inverno era
muito forte entrava água até os quintais. Eu, por exemplo, e todas as
operárias para dormir tinham que colocar os chinelos em cima... senão a
água tomava conta. 395

A alimentação dessas operárias era bastante deficiente quanto aos nutrientes


necessários ao bem-estar físico, sendo que a maioria delas se alimentava de farinha e carne
seca. Em detrimento de todos esses fatores, as operárias costumavam ter uma saúde bastante
debilitada, resultando não raras vezes em morte, ou desmaios no trabalho. Quando não
ocorriam de morrerem de fome elas se tornavam alvos fáceis de epidemias, como foi o
episódio em que a gripe espanhola assolou as fábricas, resultando em várias mortes, visto
como a Fábrica Confiança apresentou 382 casos da doença e a Sergipe Industrial, 763.

que, no dia corrente, na fábrica Confiança, tinha sofrido um syncope


de fome a operária de nome Saphira... e de facto elle apurou ser
verdade a informação, pois a operária Saphira há dias vinha
sustentando-se em pirão de café, por que o que ganha atualmente os
que ali mourejam não dá para comprar mantimentos.396

395
Entrevista realizada com a ex-operária Maria Antonia Oliveira (1990)
396
Voz do operário. Aracaju, maio de 1921.PDPH,UFS,SE, levantamento da Imprensa operária.

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Entretanto a expressão mais peculiar da opressão contra as operárias nas fábricas


consistia no assédio por parte de mestres e contramestres. Tal fato era extremamente comum
em todas as fábricas: quando as operárias não cediam às cantadas dos patrões eram
deverasmente punida, provavelmente demitidas. A ficção de Amando Fontes demonstra esse
abuso de forma bastante elucidativa:

Foi Misael, o contramestre da minha seção... safado! Uma vez me deu uma
palmada nas cadeiras. Mas eu desgracei logo com ele. Gritei-lhe: atrevido,
moleque!... Hoje só porque eu cheguei um pouquinho mais tarde - ainda
não tinha fechado o ponto – o infame disse que eu não entrava mais nesse
quarto. E veio logo com enxerimentos: Se eu quisesse esperar por ele de
noite,... Nem deixei que ele acabasse... xinguei tudo e vim m’embora... com
toda certeza o miserável vai dar parte de mim... Não houve explicações...
que tivessem força para manter o seu emprego (dela) na Sergipana
(fábrica). (FONTES 1933:25, 28-29)

Mas não foi só na literatura que essas práticas sórdidas se fizeram presentes.
Ocorrera aqui o caso da operária Pureza Farias, que trabalhava na fábrica Sergipe Industrial e
era associada ao Centro Operário Sergipano. Ela foi reclamar ao centro operário contra as
investidas e o tratamento agressivo do contramestre Odilon Torres, que também era
associado ao COS. Por isso os associados como forma de fazer justiça e apresentando-se
como “defensores da moral das mulheres trabalhadoras” acabaram se unindo para agredir
Odilon. A ação acabou tendo uma repercussão horrível para o Centro Operário Sergipano,
fazendo com que o presidente do Estado interviesse e boicotasse o centro.
Como demonstração mais nítida desse triste episódio, expressaremos uma outra
denúncia feita pelo jornal operário: O contramestre da fábrica Confiança tentou seduzir,
ameaçar e agredir a tecelã daquela fábrica, Maria Silva. A operária fora reclamar ao gerente
Sr. João Silveira e este não tomou providência alguma.
Vale ressaltar que toda essa trajetória de exploração que envolve a classe operária
e em especial a mulher em sua formação perdurou por muitos anos. Apesar da anunciação de
vários avanços no sentido de conquistas de direitos, como por exemplo: a licença
maternidade, construção de creches, salas de amamentação próximas à fábrica dentre outros
decretos acordados entre os industriais e o presidente estadual, esses avanços não foram
colocadas em voga devido à intransigência de alguns patrões.

5. CONCLUSÕES

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Conforme a pesquisa apresentada, identificamos que a inclusão da mulher no


mundo do trabalho não representou a sua emancipação, ou a libertação de uma cultura de
submissão secular, uma vez que se acentuaram as condições de exploração e de
desigualdades no trabalho, com efeito, dos baixos salários, o assédio sexual que sofriam dos
patrões, a dupla jornada de trabalho, a desvalorização do seu trabalho, o desrespeito dos
industriais diante das suas condições físicas, a cadência apressada das máquinas dentre
outras.
A divisão do trabalho entre as esferas produtivas e reprodutivas destinando a
mulher ao trabalho reprodutivo, acabou contribuindo para a precarização e a super-
exploração do seu trabalho no sistema capitalista, porquanto a mulher mesmo adentrando na
esfera pública, continuou responsável pelo trabalho doméstico. Vale ressaltar que o trabalho
desenvolvido na esfera reprodutiva, é também uma forma evidente de trabalho.
Surge então um paradoxo: se por um lado, o ingresso do trabalho feminino no
espaço produtivo foi uma conquista da mulher, por outro lado, permitiu que o capitalismo
ampliasse a exploração do trabalho feminino.
Mesmo com toda opressão sofrida, não podemos deixar de reconhecer que a
inclusão da mulher no mercado de trabalho é essencial para suavizar a dominação patriarcal
na esfera privada. Não obstante, é insuficiente para emancipá-la. Esta só vai se dá, quando
houver uma mudança da estrutura hierárquica familiar e uma distribuição mais justa do
trabalho doméstico, livrando a mulher da dupla jornada de trabalho.

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07 de setembro de 1900.

-Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1919 ao instalar-se a 3ª sessão ordinária pelo


Cel. Dr. José Joaquim Pereira Lobo, presidente do Estado.
-Mensagem apresentada em 07 de setembro de 1921 ao instalar-se a 2ª sessão ordinária da
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oficial,1921.

Jornais: Levantamento da Imprensa operária (PDPH)

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-Voz do operário (1920-1930)

-O Operário (1915-1916)

Orais (entrevistas):

-Alice Souza Barros (1990)


-Maria Antonia de Oliveira (1990)

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VIVER EM RIO FUNDO: COTIDIANO, REPRESENTAÇÕES E


MEMÓRIAS DE UMA VILA NO RECÔNCAVO BAIANO (1930-1960)

Simone Cristina Figueiredo de Jesus – UNEB


monecrist@yahoo.com.br

Rio Fundo, uma vila emancipada em 1962 como o nome de Muniz Ferreira, possuía um
comércio ativo e uma feira livre movimentada em sua praça principal, além de uma estação da
Estrada de Ferro de Nazaré, a Train-Road. Contudo, em um intervalo de treze anos, a vila foi
arrasada por três enchentes do rio Jaguaripe que corta a cidade. Essas enchentes foram a “gota
d’água” que faltava ao processo de estagnação e posterior decadência do comércio e da feira
livre da vila. As casas comerciais foram derrubadas pelo Jaguaripe e os moradores já não
tinham mais condições de reconstruí-las, pois também a Train-Road, principal responsável
pela exportação dos produtos da vila, entrara em decadência. Esta pesquisa, em andamento,
pretende analisar a vida cotidiana em Rio Fundo, seu processo de decadência e como as
transformações ocorridas afetaram o modo de viver dos munizferreirenses e contribuíram para
a construção de uma memória de exaltação da referida vila e ao mesmo tempo de desprezo
pela cidade atual, a qual consideram “atrasada”. É intenção compreender por que as
dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são “esquecidas” pelos munizferreirenses
que viveram tal período e somente a “fartura” do comércio e da feira livre é lembrada,
construindo representações de uma Rio Fundo digna de orgulho e saudade.

Palavras-chave: Cotidiano, Representações, Memórias.

O povoado de Rio Fundo397 já era conhecido no século XVIII, pois foi citado
como trecho de estradas administrativas da Freguesia de Jaguaripe em documento datado de
1796 até 1799.398 Então, pode-se afirmar que Rio Fundo surgiu em torno de uma estrada

397
Rio Fundo foi o nome do povoado até este ser elevado à categoria de vila em 30 de novembro de 1938 já com
a denominação de Muniz Ferreira, em homenagem ao filho da terra Dr. Manoel Muniz Ferreira, médico e
provedor nos anos 1919/1920 da Santa Casa de Misericórdia de Nazaré. No entanto, até hoje, alguns moradores
se referem à cidade como Rio Fundo. Por isso, este trabalho adotará esta denominação para a vila, em
consonância com a memória de seus habitantes e só se referirá a Muniz Ferreira após a emancipação política da
cidade.
398
Maço Freguesia de Jaguaripe. Arquivo Público da Bahia.

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vicinal, a qual passava por dentro da fazenda de Antonio Francisco Tinta, o Barão de
Taitinga. Embora não fosse a única fazenda existente naquela região, a Fazenda Paracoara
destacava-se dentre as demais por, além de ser propriedade de um Barão do Império, era
grande produtora de cana-de-açúcar, mandioca, café e fumo na região. Além disso, o trecho
da estrada administrativa passava por dentro de suas terras e, quando da chegada da tão
esperada ferrovia nazarena, a Train-Road, recebeu seus trilhos a poucos metros de sua sede, e
ainda foi presenteada com uma estação. O trem trazia consigo um adjetivo de progresso para
aquela época e, por isso, o povoado de Rio Fundo foi crescendo também embarcado no
transporte do desenvolvimento.
O pequeno povoado possuía, já na década de 1930, muitos comerciantes que
estabeleceram suas casas comerciais seguindo o curso do rio Jaguaripe que corta a localidade,
na qual, nesta época, já existia uma praça principal, local de compra e venda de mercadorias
na tão relembrada feira livre.
Rio Fundo pertencia à cidade de Nazaré, à qual estava atrelada econômica e
politicamente. Os diversos comerciantes eram cadastrados no governo municipal de Nazaré.
A ele pagavam os impostos, mas dele não recebia os serviços dos quais necessitavam. Embora
este comércio abastecesse os povoados e fazendas circunvizinhas, além de exportar produtos
para outras localidades do estado da Bahia pela estação ferroviária existente na vila, os
recursos municipais não eram aplicados ali para garantir melhorias. Por causa disso, vários
comerciantes começaram a protestar contra a cobrança de impostos pela prefeitura de Nazaré.
O Sr. Pedro Antonio, proprietário de um prédio à Rua Siqueira Campos em Rio
Fundo, a 29 de abril de 1939, vem solicitar ao então prefeito de Nazaré, “a exclusão do
mesmo do imposto predial urbano visto como a referida rua não tem calçamento nem
iluminação e assim preceitua estar isento de referido imposto”399 . Este foi apenas um dos
inúmeros proprietários que solicitaram ao prefeito de Nazaré a exclusão de seus nomes do
imposto predial urbano, todos pelos mesmos motivos, em ruas diferentes. Contudo, todos
estes pedidos foram negados e nenhuma melhoria foi feita na vila em decorrência disto.
Quanto à feira livre localizada na praça central, hoje Praça Barão de Taitinga, os
feirantes para ela acorriam não só da própria localidade, mas das fazendas circunvizinhas e
dos povoados próximos para venderem seus produtos e também comprarem aqueles dos quais
necessitavam. Embora houvesse um projeto para a construção de um mercado municipal por
parte do governo de Nazaré (projeto que ficou apenas no papel), não havia estabelecimento

399
Livro de Expediente Geral, Governo do Município, 1938-1940, p. 81. Arquivo Público de Nazaré.

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público destinado ao trabalho dos feirantes. No entanto, tudo seguia a uma lógica própria
destes trabalhadores que, em sua prática diária, demarcavam os locais para a venda de acordo
com o tipo de produto: verduras, frutas e hortaliças, por exemplo, eram expostas em esteiras
em frente à Igreja Católica.
Os vendedores que vinham de outras localidades não tinham como trazer barracas,
posto que as mesmas precisavam ser removidas da praça após a feira. Esta ocorria aos
sábados até o entardecer, pois os feirantes e fregueses precisavam voltar para as suas casas,
muitas em regiões afastadas, e era necessária a luz do sol para clarear o caminho, já que não
havia eletricidade, nem automóveis com seus faróis. As pessoas se deslocavam a pé ou,
quando muito, montados nos lombos dos seus animais.
Os feirantes que moravam em Rio Fundo poderiam se considerar “privilegiados”,
pois tinham suas barracas para protegê-los e a seus produtos do sol e da chuva. Em seu
cotidiano, acordavam cedo para armar suas barracas, cada um já tinha o seu local estabelecido
que conquistara no seu viver diário de trabalho na feira livre. Suas barracas, cobertas de lonas,
eram, após as horas de labor, retiradas da praça e transportadas para as residências onde
ficavam guardadas até o próximo sábado de feira.
Além desses feirantes, existiam os ambulantes que vendiam suas mercadorias
andando pelas ruas e, principalmente, na estação ferroviária para os passageiros que ali
chegavam ou paravam, que estavam apenas de passagem. A Train-Road, cujo trem
movimentava ainda mais o comércio e a feira, visto que ele trazia mercadorias para Rio
Fundo e levava para outras localidades os produtos dali, trazia pessoas que se tornavam
fregueses desses vendedores ambulantes que trabalhavam nas imediações da estação,
principalmente, à hora da parada do trem, para venderem seus produtos, tais como camarões
torrados e água.
Homens, mulheres e crianças, passageiros do tão famoso trem, estendiam suas
mãos para esses vendedores ambulantes, comprando seus produtos, contribuindo para a
manutenção de um comércio típico de locais movimentados. Essa atividade perdurou até o
fechamento da estação ferroviária com a desativação da Estrada de Ferro de Nazaré. É certo
que, quando a Train-Road entrou em decadência, essa atividade também começou a declinar.
A década de 1930 e até final de 1940 passaram para Rio Fundo como anos de
fartura e abundância. Novas casas comerciais surgiam, as exportações via Train-Road e via
porto de Nazaré continuavam. Mas, a partir de 1945, “aparecem nitidamente os sintomas que
marcavam a sua (Train-Road) decadência.” (CARLETTO, 1979, p.79). Segundo Carletto,
um dos fatores responsáveis pela crise ferroviária que se manifestava claramente no Brasil

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após 1945, era a concorrência do transporte rodoviário que começou a absorver grande parte
dos transportes, diminuindo as toneladas transportadas pelas Estradas de Ferro, reduzindo, por
conseguinte a sua renda bruta (p.204). Toda esta crise no setor ferroviário em âmbito nacional
chegou à tão pequena e próspera vila de Rio Fundo. O seu principal meio exportador, a
locomotiva, começa a entrar em decadência em virtude da preferência crescente pelo
transporte rodoviário que, ao poucos, passou a realizar o trabalho característico das vias
férreas: “o carregamento de grandes massas a grandes distâncias.” (CARLETTO, 1979,
p.206).
Além de tudo isso, como já foi dito anteriormente, Rio Fundo estava atrelada
econômica e politicamente à Nazaré. Portanto, juntando-se aos fatores nacionais, existiam os
fatores locais que desencadeavam a decadência da sede e, por conseguinte, da vila. Entre estes
fatores locais, o mais importante foi a redução da produção agrícola da região. A diminuição
das safras, ao lado da concorrência rodoviária. (CARLETTO, 1979, p. 207)
Desta forma, a partir do final da década de 1940, Rio Fundo começa a declinar
economicamente. As exportações diminuem e cessam a abertura de novos estabelecimentos
comerciais. No entanto, os comerciantes e feirantes continuam sua vida cotidiana, enfrentando
as transformações históricas que estavam ocorrendo em sua vila. Contudo, a crise teria um
agravante, a enchente do rio Jaguaripe no ano de 1947. Esta foi a primeira das três grandes
enchentes que transformaram Rio Fundo, desde a sua economia até a vida cotidiana dos
habitantes, permanecendo na memória de quem as vivenciou.
Carletto aponta a enchente de 1947 também como um fator de agravamento da
crise da Train-Road. Esta cheia atingiu “ toda a zona servida pela ferrovia, abrindo aterros,
(...) deslocando a linha, (...) desorganizando tudo, enquanto, de parceria, chuvas copiosas
desabaram, destruindo culturas impedindo o rápido escoamento das águas.” (p. 214). Além
de todo este estrago feito à ferrovia, principal elo do comércio de Rio Fundo às zonas
receptoras de seus produtos, as águas do Jaguaripe inundaram a vila deixando muitos estragos
para os comerciantes e moradores.
Cinco anos se passaram em meio às mudanças que estavam ocorrendo, mas a vila
continuava com a sua “rotina”: sua feira livre na praça e seu comércio. Até que, em novembro
de 1952, uma nova e mais impetuosa cheia do rio Jaguaripe inundou repentinamente a vila,
levando em suas águas grande parte das casas comerciais, as quais se estabeleciam à margem
do rio. Levou também muitas residências, deixando para trás um rastro de destruição e dor.
Esta cheia de 1952 é a mais lembrada pelos moradores da então cidade de Muniz
Ferreira. Ela faz parte do imaginário de quem a vivenciou e, para estes, foi o grande fator que

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contribuiu para a decadência do comércio e feira da vila. O Sr Valdomiro escreve sobre ela
em seu livro de memórias:

Em 1952, é que tivemos a maior cheia dos dois rios. (...)Dentro da vila de
Muniz Ferreira, as ruas mais baixas estavam sendo invadidas (...). Ao meio
dia já havia derrubado todas as casas da Rua Nova Nazaré, as da
comunidade do Pedrão e chegado à cumeeira das casas de palha da Rua da
Linha e do Sapo, e chegado a lateral da estação ferroviária. (...) Na Rua
Nova Nazaré, a altura da água chegou a seis metros aproximadamente do seu
nível normal. O maior estrago foi o do empresário Olavo de Souza Barreto,
por haver perdido a sua bela casa residencial localizada no início da Rua
Nova Nazaré, a destilaria, depósito, três casas geminadas anexo, toda a
matéria-prima e produto estocados, localizados junto a ponte do riacho Rio
Fundo. 400

Esta enchente também atingiu a sede, Nazaré, danificando as Oficinas da Estrada


de Ferro, destruindo pontes, casas residenciais e comerciais, causando enormes e graves
prejuízos. Nazaré não tinha mais recursos suficientes para reconstruir a cidade e tampouco
Rio Fundo, visto que a enchente de 1952 afetou ainda mais o seu comércio já em declínio. A
sede do município precisava também de verbas extras para ajudar as vítimas da enchente.
Parece que essa verba não chegou à Nazaré e sem verba extra para os nazarenos, a sede foi
diminuindo o orçamento para Rio Fundo. Os seus moradores não tinham mais condições
financeiras de reerguer a vila como outrora ela fora. Sem recursos extras, alguns comerciantes
levantaram novas casas comerciais, mais modestas. Mas nem todos conseguiram se reerguer.
Aos poucos, a vida cotidiana foi tomando seu curso “normal” e a feira novamente se
estabeleceu, contudo não foram todos os feirantes que voltaram para lá, pois a vila já não era
mais a mesma. Desta forma, muitos feirantes preferiram vender seus produtos na feira de
Santo Antonio de Jesus, na medida em que esta cidade está em pleno desenvolvimento e já se
anunciava como centro comercial da região.
Porém, em 1960, uma nova cheia do rio Jaguaripe tornaria ainda mais difícil a
situação de Rio Fundo. As águas atingiram o mesmo nível que as da enchente de 1952 e,
conseqüentemente, os prejuízos não foram pequenos. E como da outra vez, causaram estragos
em Nazaré e danos materiais à ferrovia. Essa enchente de 1960 foi, praticamente, a “gota
d’água” que faltava ao processo de decadência do comércio de Rio Fundo. Como em 1952, as

400
Manuscrito do livro de memórias do Sr. Valdomiro Figueiredo, morador da cidade de Muniz Ferreira.

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águas levaram as casas residenciais e comerciais que estavam instaladas na praça e ruas que
margeavam o Jaguaripe. Os comerciantes que viveram a enchente de 1952 novamente tiveram
seu patrimônio destruído pelo rio e agora estavam em situação pior, pois não tinham de onde
tirar recursos para se reerguerem. Sem a ajuda extra de Nazaré, também arrasada pelas cheias,
os comerciantes e feirantes amargaram a nova tragédia que se abateu sobre a vila e, aos
poucos, foram tentando reconstruir dos destroços as suas casas. Mas o comércio nunca mais
se ergueu como antes.
Mais do que as marcas materiais deixadas pelas águas do Jaguaripe na vila, esses
episódios deixaram marcas na memória de seus habitantes que começaram a construir a
imagem de que ali, onde eles moravam, nada mais “vai para frente”. Talvez a partir daí, uma
representação de Rio Fundo começou a ser elaborada pelos seus moradores, até porque,
passando por essas inúmeras dificuldades, a vila foi emancipada com o nome de Muniz
Ferreira a 30 de julho de 1962. Começou um novo tempo, de cidade, imbuída em problemas
econômicos e sociais. Assim, “cristalizou-se” na memória dos agora munizferreirenses a
representação de Rio Fundo enquanto vila próspera, lugar bom para viver, digno de orgulho e
saudade, pois se deparavam com uma recente cidade na qual faltava a “fartura” do comércio e
da feira livre. Os munizferreirenses tiveram que construir novos modos de vida em uma
cidade que “depende” economicamente da vizinha Santo Antonio de Jesus.
Não obstante, Rio Fundo, embora com um comércio ativo e feira livre (atualmente
inexistente), era um lugar de ruas sem calçamento, com iluminação deficiente, sem hospital
ou qualquer médico. Fora as ruas do centro, as ruas periféricas eram constituídas de casas de
taipa e a água para consumo, carregada em baldes, era de riachos e do rio, pois o sistema de
abastecimento de água só veio a ser implantado em 1973. Ou seja, a “fartura” não era para
todos.
Por que, então, as dificuldades e precariedades da vida em Rio Fundo são
“esquecidas” pelos munizferreirenses que viveram tal período e somente a “fartura” do
comércio e da feira livre é lembrada? Por que os munizferreirenses construíram
representações de Rio Fundo como lugar digno de orgulho e saudade?
Tendo em vista que a história não é fechada em si, mas passível de várias
interpretações, não há como reconstruir o passado como ele foi de fato. Assim, segundo
Darnton (1998), a história não está presa a um passado estático no tempo. É mediante o
contato com o passado, algo que só se consegue através das fontes, que o historiador altera o
sentido do que possa vir a ser conhecido. O historiador, portanto, não deve ser categórico em
suas conclusões, pois, de acordo com a reflexão de Darnton (1998, p.37), o que vemos hoje no

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material que nos chega às mãos enquanto fonte histórica de determinado fato, pode não ser a
mesma visão que os contemporâneos deste fato possuíam a seu respeito. Uma mesma fonte
pode ser utilizada por historiadores diferentes e estes darem-lhe interpretações diversas, ora
divergentes, porque cada um a olhará de uma maneira (GINZBURG, 1991, p.204).
Assim, como perceber as representações elaboradas pelos munizferreirenses a
respeito da vila de Rio Fundo? Como compreender porque somente as “coisas boas” dessa
vila são recordadas pela imensa maioria de seus moradores? No entanto, a recordação
somente de coisas boas não assegura que somente elas foram registradas na memória.
Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar informações e
remete-nos, num primeiro momento, a um conjunto de funções psíquicas que capacitam os
indivíduos atualizar impressões ou informações passadas ou que se julguem passadas. A
memória, para Le Goff, é mais ainda: é o objeto e a própria matéria-prima da história. A
memória é a matéria-prima e a história é a interpretação dessa matéria prima. (LE GOFF,
2003). Como elaboração a partir de variados estímulos, a memória é sempre vista em diversos
estudos enquanto uma construção feita no presente a partir de vivências/experiências
ocorridas no passado.
Para Maurice Halbwachs (2006) a memória aparentemente mais particular que se
conheça remete a um grupo. O indivíduo traz em si a lembrança, mas ele está sempre
interagindo com a sociedade, seus grupos e suas instituições. É no contexto destas relações
que os indivíduos constroem as lembranças, sendo que a rememoração individual se faz na
contextura das memórias dos diferentes grupos com os quais estes indivíduos se relacionam.
Assim, Halbwachs diz que existem dois conceitos de memória: a individual e a coletiva e,
fazendo uma análise dos aspectos que envolvem esses dois tipos de memória, afirma que são
indissociáveis e que o individual está estritamente ligado ao coletivo.
A perspectiva de Halbwachs é a de que a formação dessa memória comum se dá
mais por afinidades afetivas, por trajetórias comuns. Esses aspectos são apresentados pela
História Oral na medida em que privilegia grupos sociais minoritários, excluídos,
marginalizados, e se utiliza das suas narrativas para propor “outra história”, outra visão, ou
visões, de determinada realidade.
Poderíamos dizer, de maneira geral, que a memória constituída por grupos
formados a partir desses conceitos e procedimentos operacionais específicos seja uma
memória “não-oficial”. Não somente porque se preocupa com os excluídos, mas,
principalmente, por se interessar por questões desprezadas pelo conhecimento formal como,
por exemplo, os silêncios, as mentiras, as múltiplas versões, as hipérboles da lembrança, os

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segredos. No entanto, a memória constituída pela História Oral deve estar preocupada não em
reforçar os vínculos comuns, as fronteiras sociais, mas permitir que as contradições e
subjetividades das pessoas, que virtualmente compõem a razão inicial do projeto de pesquisa.
Dessa maneira, poder-se-ia verificar os confrontos entre a memória individual e a memória
coletiva, na medida em que a constituição da memória está, segundo Halbwachs (2006),
relacionada com o convívio entre pessoas que vivenciaram algo em comum e com o presente
que irá estimular a lembrança.
Para Ecléia Bosi é necessário que o pesquisador sofra de maneira irreversível o
destino dos sujeitos observados, criando “um vínculo de amizade e confiança com os
recordadores” (1998, p. 37). A partir de uma postura de entrega, expressa prática e
teoricamente pelos sujeitos envolvidos (pesquisador e recordadores), formam uma
“comunidade de destino”, criando as condições para que “se alcance a compreensão plena de
uma dada condição humana” (1998, p. 38). Esta pesquisa seguiu o ponto de vista que Ecléa
Bosi deixou claro em seu trabalho:

A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e


lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história
oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para
perpetuar-se na história de sua vida. Recolhi aquela “evocação em
disciplina” que chamei memória-trabalho. (BOSI, 1998, p.37)

Desta forma, a fartura da feira livre e do comércio da vila de Rio Fundo foi o tema
que primeiro se apresentou na fala dos entrevistados. Todos relembraram esse período com
muito orgulho como se esses anos “áureos” do comércio na praça compensassem o tempo
presente em que não há feira na cidade de Muniz Ferreira:

Tinha feira, tinha feira no meio da rua, açougue, era meio mundo de gente,
era dois só? Só dois matano boi? Teu avô João Figueiredo, o pai de Galo
Moreira matava boi, Cravinho, Augusto Preto, o pai de finada Lina, era
Alencar, tudo era, num dia de sábado matava esse boi tudo e vendia tudo.
Era meio mundo de gente porque tinha feira. Era feira... esses pessoal da
roça vinha tudo pra feira aí. Era feirona! Feirona mesmo! A feira era o dia
todo. 401

É interessante observar que as lembranças acerca da feira em Rio Fundo estão


recheadas de sentimentos de um certo descontentamento com a inexistência de feira

401
Entrevista com Maria Antônia Campos, ex-trabalhadora rural, aposentada, moradora da cidade de Muniz
Ferreira.

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atualmente no município. Os açougues são bastante enfatizados como símbolos da abundância


e fartura de Rio Fundo. Dona Maria Antonia, ao me falar da feira, parecia que eu não saberia
compreender e visualizar o que ela me relatava; enfatizava a palavra “feirona”, aumentando o
tom da voz, numa clara demonstração de querer me “convencer” da veracidade de suas
palavras, como se fosse difícil de acreditar que na cidade de Muniz Ferreira era possível ter
uma feira das proporções da que ela me descrevia. E continua sua narração fazendo
comparações entre o passado e o presente, entrelaçando os tempos nos fios de suas
lembranças e, novamente, refere-se à falta que faz a fartura de “antigamente”:

Pessoal daí das roça tudo vinha fazer feira aqui. Eu vendia farinha, vendia
farinha, vendia batata. Era! Era feirona! Agora que não, que quando dá dez
hora acabou a carne, não tem mais nem carne. Naquele tempo não tinha
supermercado não. Só era feira, os negócio era no meio da feira e na rua.402

Segundo Halbwachs, rememorar é um ato que acontece no presente e é provocado


pelo presente: do passado retornam a nós os acontecimentos que correspondem às nossas
preocupações atuais. É do presente que se parte. É o que acontece com a rememoração de
Dona Antonia. Os fatos, acontecimentos, personagens, sensações depositados na memória se
reorganizam não só na presença de algo que se acrescenta a eles, mas também segundo uma
pergunta presente que se faz à memória. A memória é, assim, seletiva.
Dona Nicilda também guarda em sua memória imagens da antiga feira de Rio
Fundo:

O comércio não era como hoje. Agora, tinha até feira no meio da rua! (...)
Tinha açougue no meio da rua, era bem divertido. Tinha barraca... meu pai
mesmo tinha barraca no meio da rua de carne de sol, feijão, ele vendia feijão,
milho, requeijão, amendoim, farinha... toda semana tinha farinha... era assim
no meio da rua sem cobertura sem nada. Verdura era mesmo no passeio, na
igreja, ali na Comac. Era as verduras ali, eles forravam e colocavam as
verduras tudo ali, qualquer coisa, fruta, galinha... ali, todo mundo passava
ali. A gente escolhia as coisas ali pra comprar, fruta, verdura... verdura tudo
fresca, era tudo verdura de roça, não é como hoje tudo verdura encaixotada,
verdura melhor que a de hoje porque não tinha agrotóxico; era verdura boa
mesmo, tomate bom, quiabo, tudo fresquinho, bom... Tinha de tudo na feira
para quem quisesse comprar.403

402
Idem.
403
Entrevista com Nicilda Campos Santos da Silva, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.

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Nesta entrevista, sobressai-se um sentimento de certa nostalgia. Dona Nicilda afirma


com um ar de admiração de suas próprias recordações que “tinha até feira na rua”. Afirma
isto numa determinada entonação de voz de quem ainda se surpreende com as transformações
ocorridas na cidade, dentre elas a ausência de feira livre atualmente. É de se notar que os
açougues recordados por Dona Antonia também figuraram na entrevista de Dona Nicilda e de
todos os outros habitantes com os quais tive a oportunidade de compartilhar suas
experiências. Talvez isto se deva ao fato de que, atualmente, vários munizferreirenses terem
de se deslocar para Santo Antonio de Jesus ou Nazaré a fim de comprar carne, pois como
salientou Dona Antonia, “quando dá dez hora acabou a carne, não tem mais nem carne.”
Os pequenos produtores rurais traziam seus produtos para vender na feira da vila.
Alguns transportavam suas cargas no trem para outras localidades. Porém, um aspecto
interessante é que os entrevistados recordaram não as exportações, mas o trabalho das pessoas
que vendiam seus produtos na Estação Ferroviária para os que estavam à espera da máquina
de ferro e para aquelas que desembarcavam rapidamente na estação para um ligeiro
“lanchinho”. A entrevista com Dona Maria Conceição é esclarecedora a este respeito:

Essas pessoas que traziam da roça as coisas vendiam pr’aqui, pra feira.
Também no tempo do trem eles vendiam na hora que chegava o trem, aí
saíam: “Olha o não sei que lá!” Aí saíam assim, como o povo vende assim,
como tem em Bom Despacho aqueles meninos que saem vendendo assim.
Florzinha vendia água, Camarão vendia camarão, Marinalva, todo mundo. 404

Desta forma, o trem é relembrado como um dos principais meios de sobrevivência


para os moradores de Rio Fundo. Percebe-se nesta fala que o trabalho dos vendedores
ambulantes estava atrelado ao tempo do trem. O que nos mostra que a crise da ferrovia
interferiu significativamente neste setor do comércio. Pode-se perceber como o trabalho de
vender “na hora que o trem chegava” era essencial na vida de quem o realizava. O significado
de tal trabalho era tanto que chegava a conferir identidade a quem o exercia, como o caso de
José Antonio de Jesus que deixara de ser José Antonio de Jesus para ser simplesmente
Camarão.
Em Halbwachs está presente a ligação entre memória e construção da identidade,
em especial pelo sentimento de continuidade e de coerência conferidos pela memória à

404
Entrevista com Maria Conceição Santos, professora aposentada, moradora de Muniz Ferreira.

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identidade, mesmo que as lembranças sejam continuamente reconstruídas. A contínua


reconstrução da memória vai corresponder à reconstrução do sentimento de identidade.
Esse sentimento de identidade é percebido nas entrevistas, na medida em que os
entrevistados têm um sentimento de pertencimento a Rio Fundo, motivo de orgulho, e não
apresenta este mesmo sentimento em relação à cidade de Muniz Ferreira, na qual vivem
atualmente, devido às transformações sofridas nas relações sociais e nos lugares vividos.
Sendo o rememorar estimulado também pelos lugares, testemunhos atuais de fatos e
acontecimentos passados, de personagens e de relações sociais, aos lugares se atribuem
significados sociais, pois os grupos aos quais pertencemos e os lugares aos quais nos
vinculamos têm neles uma memória inscrita da qual participamos. Os lugares são importante
referência na memória dos indivíduos, de onde se segue que as mudanças empreendidas
nesses lugares acarretam mudanças importantes na vida e na memória dos grupos.
A feira livre na praça continua a figurar nas recordações daqueles que tiveram a
oportunidade de conhecê-la e dela participar, assim como as diversas casas comerciais são
relembradas enquanto marco de uma época de abundância e fartura, de “tempo bom”405 em
que o trabalho de “vender”, tanto na feira quanto “na hora em que o trem chegava”, fazia
parte da vida cotidiana dos habitantes de Rio Fundo. Destarte, as memórias do trabalho diário
nesta Muniz Ferreira do tempo da máquina de ferro brotam como água de uma fonte nas
narrativas dos entrevistados.
Não obstante, a memória é seletiva e se certas lembranças não reaparecem é
porque estavam enquadradas em um sistema de noções que não se encontram mais no
presente. Por isso, o passado é reconstruído pela memória: ele é sempre uma reconstrução, por
mais detalhes que contenha. E é uma reconstrução feita no presente.
E nestas reconstruções feitas pelos entrevistados desta pesquisa percebemos o
entrelaçamento entre a memória coletiva e a memória individual. E esta memória coletiva
tem, assim, uma importante função para os entrevistados: contribuir para o sentimento de
pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha memórias. Ela garante o
sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória compartilhada não só no
campo histórico, do real, mas, sobretudo, no campo do simbólico. A memória se modifica e
se rearticula conforme posição que o indivíduo ocupa e as relações que ele estabelece nos
diferentes grupos dos quais participa. Memória individual e coletiva se alimentam e têm
pontos de contato com a memória histórica e, tal como ela, são socialmente negociadas.

405
Expressão muito utilizada por Antonia Campos Santos.

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Guardam informações relevantes para os sujeitos e têm, por função primordial, garantir a
coesão do grupo e o sentimento de pertinência entre seus membros.
Assim, analisando as memórias dos entrevistados sobre o viver em Rio Fundo,
podemos perceber que essa memória foi reelaborada e que ela é seletiva, construindo
representações desta vila mediante o olhar das próprias pessoas que vivenciaram tal período.
Isto é muito relevante para a história, pois “aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu
(...) pode ser tão fundamental quanto aquilo que de fato aconteceu”. (THOMPSON, 2002,
p.184). É um olhar sobre o viver em Rio Fundo sob a perspectiva da memória dos
entrevistados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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In: História. v. 14., São Paulo: Editora Unesp, 1995.

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ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

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nacional de viação férrea. Salvador, Dissertação de Mestrado, UFBA, 1979.

DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo:


Companhia das Letras, 1998.

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_______________. “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”. In:


BETHENCOURT, Francisco & CURTO, Diogo Ramada (org) Memória e Sociedade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

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Mestrado, UFBA, 1970.

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2002.

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VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de


Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996

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LIMA BARRETO E A DISPUTA PELA IMAGEM DE UMA CIDADE


MODERNA

Carlos Alberto Machado Noronha – FAPESB/UEFS


calhis2@yahoo.com.br

Esta comunicação tem como tema a análise de lutas de representação travadas em torno da
imagem de nação moderna para o Brasil através da perspectiva do literato Lima Barreto
acerca das transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A
partir da análise dos romances, contos, crônicas e correspondências desse autor, objetivamos
discutir a sua percepção da apropriação pelas elites cariocas das representações de
modernidade forjadas na Europa e a forma como expressa a relação das camadas populares
com aquele espaço urbano modernizado. Diante disso, concluimos que as imagens textuais
produzidas por Lima Barreto salientam os diferentes usos do espaço urbano carioca, discutem
as contradições da modernização imposta pelas elites e sugerem alternativas a esta.

Palavras-chave: Lima Barreto, Modernidade, Representação.

Afonso Henriques de Lima Barreto foi um escritor que viveu entre 1881 a 1922 na
cidade do Rio de Janeiro, produzindo seus textos entre os anos de 1902 a 1922. Mulato, de
origem pobre, conseguiu com muita dificuldade concluir seus primeiros estudos com certa
desenvoltura. No nível superior, deparou-se com problemas relacionados às condições de
sobrevivência de sua família e outros decorrentes de suas relações na Escola Politécnica do
Rio de Janeiro.
Diante disso, não concluiu o curso de Engenharia e teve que trabalhar como
amanuense na Secretaria de Guerra para garantir o seu sustento e de sua família. Contudo,
isso não o impediu de se dedicar também a sua grande paixão: a literatura. 406
A sua trajetória nesta atividade, marcada por discriminações e dificuldades
financeiras, foi sendo traçada a partir da leitura de autores internacionalmente reconhecidos
como Balzac e Dostoiévski e dos contatos com outros intelectuais brasileiros, através dos

406
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1975

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quais estabeleceu relações de amizade e\ou colaborou na publicação de periódicos. Além


407
disso, apresentava uma sensível e indignada observação do cotidiano a sua volta. Isso o
levou a desenvolver uma escrita diferenciada em relação aos demais literatos de sua época, a
qual se revelava extremamente preocupada com as transformações pelas quais passava a
cidade do Rio de Janeiro.
Na conferência proferida em Rio Preto (Estado de São Paulo) por ocasião de sua
estada em Mirassol em 1921 e publicada, originalmente, no mesmo ano na Revista Sousa
Cruz no Rio, Lima expõe claramente sua perspectiva utilitarista de Literatura. Ancorado em
autores como Taine, Tolstoi, Brunetière, Dostoievski, afirma:

[...] a Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os


nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as
qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros.
Ela tende a obrigar a todos nós a nos tolerarmos e nos compreendermos; e,
por aí, nós nos chegaremos a amar mais perfeitamente na superfície do
planeta que rola pelos espaços sem fim. [...]
Atualmente, [...], não devemos deixar de pregar, seja como for, o ideal de
fraternidade, e de justiça entre os homens e um sincero entendimento entre
eles.
E o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande
ideal de poucos a todos para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão
quase divina. 408

Essa concepção de literatura se contrapunha à predominante naquele momento


que estava preocupada com questões gramaticais e estilísticas. Além disso, exigia do escritor
visão crítica da realidade social, ou seja, uma produção literária militante.
Desse modo, Lima Barreto utilizou uma linguagem simples, despojada e com
grande capacidade de síntese, o que revela sua apropriação do “fenômeno cultural que dividia
409
com a ciência a hegemonia das convicções” no início do século XX: o jornalismo. Com
essa linguagem, ele escreveu romances, contos e atuou na imprensa com artigos e crônicas,
voltando-se para questões relacionadas ao uso do espaço urbano, discriminação racial,
construção da identidade nacional e papel do literato na sociedade.

407
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. BARRETO, Lima.
Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomos I e II)
408
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67-68.
409
SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República das Bruzundangas”. In: SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. p. 198.

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Essas questões estavam, por sua vez, relacionadas ao projeto do regime


republicano em transformar o Brasil num país moderno. As condições para que esse projeto
fosse levado à frente se apresentaram logo após o saneamento das finanças do país ocorrido
no governo de Campos Salles (1898-1902). O seu sucessor, Rodrigues Alves, pôde, então,
promover as mudanças destacadas no seu Manifesto à Nação divulgado em 15 de novembro
de 1902. 410
Nessa declaração, o saneamento da capital federal foi considerado a prioridade
para a transformação do país numa auspiciosa economia capitalista. Desse modo, a cidade do
Rio de Janeiro passou por um intenso processo de modernização cujos principais
melhoramentos foram as remodelações de seu porto (isso facilitaria o comércio do café e
imigração de mão-obra necessária ao desenvolvimento econômico) e do seu centro, este a
partir da construção de uma avenida central, que possibilitaria a transformação da cidade
colonial numa metrópole parecida com Paris.
Com o auxílio do engenheiro Pereira Passos, designado por Rodrigues Alves para
a prefeitura da capital, são iniciadas várias obras: a destruição de casarões e outras edificações
antigas do centro da cidade411; a construção de grandes avenidas, novo porto e edifícios
monumentais; o alargamento, alinhamento e pavimentação de ruas e a expansão do serviço de
bondes. Essas mudanças provocam o deslocamento das camadas pobres e trabalhadoras para
os subúrbios e encostas dos morros e são acompanhadas de medidas higienizadoras que
proibiam a criação de animais e a circulação de vendedores ambulantes e mendigos no centro
da cidade. 412
Diante disso, percebemos que essa modernização objetivava a destruição de
vestígios do passado colonial da cidade, esconder seus sinais de pobreza, satisfazer os
interesses financeiros de suas elites e construir uma imagem de nação moderna para o Brasil.
Como Lima Barreto via na literatura a função de reforçar a solidariedade entre os
homens, explicando-lhes seus defeitos e zombando dos motivos fúteis que os separavam, essa
remodelação da cidade do Rio de Janeiro se apresentou como um terreno profícuo para o
desenvolvimento dos objetivos de sua escrita. Isso se deve ao fato de que ela promoveu uma

410
BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: FERREIRA,
Jorge & DELGADO, Lucílio. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da
república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 233–286.
411
O Bota-abaixo, como ficou conhecida esse momento inicial da reforma urbana no Rio, iniciou-se em 1903.
412
PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e
Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.

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maior segregação social, refletindo na organização do espaço urbano a ordem pretendida pelo
regime republicano.
A partir das suas personagens e das suas opiniões expressas em crônicas, artigos
de jornais e anotações íntimas, Lima Barreto constrói imagens textuais que nos fazem
percorrer esse Rio modernizado. A partir delas, tece uma discussão sobre a constituição da tão
proclamada chegada da civilização no Brasil que era defendida por boa parte dos literatos de
sua época bem como pelas elites política e econômica do país.
O grande veículo que possibilitava o diálogo entre a produção fortemente
contestadora de Lima Barreto e dos demais literatos era a imprensa. A imprensa foi
responsável pela publicação de muitas obras literárias e meio de sobrevivência para autores
que lhe prestavam serviços com a produção de reportagens, críticas literárias, crônicas e
contos. Além disso, nesse início de século XX, teve papel importante na divulgação de novos
hábitos de consumo, novas práticas de diversão bem como veículo de apoio ou oposição
política.413
E é justamente em seu trabalho na imprensa que encontramos Lima Barreto em
março de 1921, em uma crônica publicada na revista Careta. Nesta crônica, intitulada
414
“Leitura de Jornais” , Barreto tece comentários sobre o embelezamento da cidade a partir
de notícias veiculadas por dois jornais da época, afirmando, logo de início, que esse
embelezamento ia além das “questões de higiene e de assistência que elas também
reclamam”.
A fim de comprovar sua afirmação de que, depois da proclamação da República,
passamos a obedecer à regra seguida “no mundo inteiro” de erguer monumentos, porém “com
o caráter cenográfico, que nos é próprio”, Lima Barreto destaca a notícia do O Jornal que
lamentava que o governo não tivesse realizado a construção de um “stadium” no Leblon
(bairro da zona sul do Rio e um dos locais de residência das famílias abastadas). Depois,
discute outra publicada no jornal O Dia que relatava a condição deplorável de habitações
populares no Rio e a solução encontrada pelo governo de Buenos Aires (exemplo de cidade
moderna, civilizada na América Latina naquele momento) que ofereceu casas com ótimas
condições para seus moradores.
Com boa dose de ironia, Barreto denuncia o descaso do governo pelos menos
favorecidos, o caráter elitista e autoritário da modernização da cidade, evocando os

413
Ver BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005. MARTINS, Ana
Luiza & LUCA, Tânia Regina de.Imprensa e Cidade. São Paulo: UNESP, 2006.
414
BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 103 – 106.

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acontecimentos da Revolta da Vacina de 1904 e, com isso, fornecendo ao leitor uma versão
diferente em relação à divulgada pelo poder estatal no início do século para justificar a
vacinação obrigatória415. Além disso, deixa explícita a tensão presente na sociedade carioca
quanto aos “melhoramentos” na cidade.
A preocupação com o caráter cenográfico da modernização da cidade que aparece
nessa crônica “Leitura de Jornais” é algo presente no autor desde o início da reforma do
prefeito Pereira Passos. Em suas anotações pessoais de janeiro de 1905416, Lima Barreto
registra a sua passagem, no dia 26 de janeiro, pelo centro da cidade e identifica algumas
modificações nas ruas.
Ele reconhece que as modificações tornarão o ambiente belo, porém acredita “que
o Rio, o meu tolerante, bom e relaxado, belo e sujo, esquisito e harmônico, [...] vai perder, se
não lhe vier em troca um grande surto industrial e comercial; com suas ruas largas e sem ele,
será uma aldeia pretensiosa de galante e distinta, [...]”.
A perspectiva apresentada pela imprensa através da manchete “As festas da
417
República” do jornal A Tribuna (16/11/1905) e da crônica assinada por Bilac intitulada
“Inauguração da Avenida”418 e publicada na Gazeta de Notícias (19/11/1905), ambas
referentes à inauguração da Avenida Central ocorrida no dia 15/11/1905, é bem otimista
quanto à modernização da cidade, se comparada com a impressão de Lima Barreto meses
antes, acima demonstrada, na qual imperava a dúvida.
O jornal A Tribuna aponta a inauguração da “monumental Avenida” como algo
que bem caracteriza o aniversário da República e “a aurora luminosa de um futuro grandioso”,
lamentando apenas que o entusiasmo popular não pôde corresponder às expectativas devido à
forte chuva que caiu no dia da inauguração.
Já Bilac narra, em sua crônica, a admiração do povo pela avenida e explica que,
se até aquele momento não houve aclamações, isso devia ao choque que aquele ambiente
moderno provocara, salientado que esperava uma “revolução moral e intelectual” da
população “em virtude da reforma material da cidade”.
Lima Barreto, no entanto, aprofunda mais a sua visão crítica com o passar dos
anos e procura discutir os referenciais que eram tomados como representativos de uma nação

415
Essa evocação também está presente em BARRETO, Lima. Recordação do Escrivão Isaias Caminha.
Erichim: EDELBRA, s/d. Para maiores detalhes e esclarecimentos, ver GRUNER, Clovis. De uma revolta a
outra: memória, história e ressentimento em Lima Barreto. Revista Artcultura, Uberlândia. V. 8, N. 13, p. 85-95,
jul.-Dez.. 2006.
416
BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasileinse. 1961. p.91–92.
417
A Tribuna, 16.11.1905. Disponível em: http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em: 08 ago. 2008.
418
BILAC, Olavo. Vossa insolência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 260-267.

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moderna. O diálogo presente no capítulo XII do romance Recordações do Escrivão Isaías


Caminha de 1909 é um dos momentos em que Barreto realiza esse tipo de discussão.
Como aparece no texto do romance, em plena redação do jornal O Globo
(referência ao grande jornal da época Correio da Manhã do advogado Edmundo Bittencourt),
estabelece-se uma discussão entre os jornalistas a respeito da “lei dos sapatos obrigatórios”.
Floc, um dos jornalistas, defende-a: “[...] a cousa é necessária... Causa má impressão ver essa
gente descalça... Isso só nos países atrasados! Eu nunca vi isso na Europa...”419. Gregoróvich,
outro jornalista, contra-argumenta de forma contundente:

- Ora, deixa-te disso, Floc! Observou Gregoróvich que entrava. No norte, é


justo, o clima, o gelo, mas no sul, em Nápoles, na Grécia, vê-se muito...
- Isso não é Europa
- Engraçado! Com que liberdade modificas a geografia... E em Londres?
- Que tem Londres?
- Que tem! Não há cidade do mundo em que a multidão seja mais andrajosa,
mais repugnante...
- Andam de casaco e sapatos! Gritou triunfantemente Floc.
- Que casaco! Que sapatos! Naturalmente que hão de procurar coberturas
para o frio, mas onde vão buscá-las? Ao lixo é um disparate! Se queres uma
multidão catita, arranja meios de serem todos remediados. Vocês querem
fazer disto uma Paris em que se chegue sem gastar a importância da
passagem ao mesmo tempo ganhando dinheiro, e esquecer de que o deserto
cerca a cidade, não há lavoura, não há trabalho enfim... 420

Esse diálogo evidencia a percepção de Lima Barreto da apropriação das elites


brasileiras (simbolizada pelo discurso de Floc) de fragmentos da realidade européia – uma
verdadeira seleção realizada daquela realidade – a fim de utilizá-la como referencial para a
construção da imagem de país moderno para o Brasil.
Outro momento no qual Barreto reflete sobre essas questões é no artigo “O nosso
421
ianquismo”, publicado originalmente na Revista Contemporânea (22/03/1919) . Nesse
artigo, ele tece comentários acerca da imitação da arquitetura norte-americana na cidade do
Rio de Janeiro. Para tanto, analisa o artigo de Breno Ferraz do Amaral que apresenta “um
estudo algo apaixonado, entre os Estados Unidos e o Brasil”.
Nesses comentários, Lima Barreto explicita que, se seguirem com as construções
no estilo norte-americano, a cidade do Rio de Janeiro perderá suas características, igualando-
se a qualquer outra cidade e enfeando-se, pois aquele estilo de construção era apropriado à

419
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Erichim: EDELBRA, s/d. p. 181.
420
Id., Idid., loc.cit.
421
BARRETO, Lima. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e discussões dispersas. Rio de
Janeiro: Graphia Editorial, 1993. p. 378-382.

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topografia da cidade de Nova York e não à do Rio. Nas linhas seguintes, considera “o fundo
do espírito americano” como sendo “a brutalidade, o monstruoso, o arquigigantesco” e
inspirador de um sentimento de “esmagamento e de opressão”, apontando que a “fascinação
do modelo estrangeiro [...] entra sempre em algum grau na formação de qualquer sociedade,
mas, para ser útil e progressiva, não deve substituir inteiramente o modelo próprio e
ancestral”. 422
Lima Barreto, com essas considerações, demonstra sua capacidade de
contextualização e como determinada forma de se apropriar de modelos de civilização pode
acarretar a descaracterização da capital federal, apresentado uma postura que sugere diálogo
entre idéias vindas do estrangeiro e nossas “raízes culturais”. Como o próprio autor afirma
nesse artigo “O nosso ianquismo”, “[...] o mundo não é sempre o mesmo [...]; e os homens,
portanto, não o podem ser e devem variar com ele”.
Outra postura tomada por Lima Barreto no sentido de evitar a descaracterização
de sua cidade foi destacar outros espaços do Rio de Janeiro que foram “ofuscados” com a
modernização do seu centro. Para isso, ele promove caminhadas pela cidade através de seus
personagens como, por exemplo, no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)
com os personagens Augusto Machado e Gonzaga de Sá.
Num dos momentos dessa obra, encontramos aqueles dois personagens
caminhando pelo subúrbio de Engenho da Penha, localizado à margem de um canal que
separa a Ilha do Governador da terra firme. Após percorrer determinado trecho, eles
desembocavam diante do mar e Augusto questiona Gonzaga acerca de um sobrado em ruínas
que avistou num ilhote no meio do canal423.
Diante daquela paisagem, Gonzaga explica que “as comunicações com o interior
se faziam pelo fundo da baía” através de faluas que passavam por aquele local, sustentando a
venda que havia no andar térreo daquele sobrado em ruínas. Nas linhas seguintes, Gonzaga,
aproveitando-se de outra observação de Augusto, inicia uma exposição sobre a formação da
cidade do Rio de Janeiro, selecionando dois elementos espaciais da cidade com o intuito de
mostrar a complexidade da paisagem urbana e a maneira como Augusto (ou os leitores)
deveria orientar seu olhar para compreendê-la. Vejamos o primeiro:

Vamos às casas e aos bairros. Um observador perspicaz não precisa ler, ao


alto, entre os ornatos de estoque, para saber quando uma delas foi edificada.

422
Id., Ibid., p. 379
423
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 61

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Esse casarão que contemplamos a custo na Rua da Alfândega ou General


Câmara, é dos primeiros anos da nossa vida independente.
Vêde-lhe a segurança ostensiva, como quer parecer mais seguro que uma
catedral gótica; a força demasiada das paredes, a espessura das portas...
quem a fez, saía das lutas da Independência, do Primeiro Reinado e vinha
seguro de possuir uma terra sua para viver a vida eterna da descendência. 424

E ao segundo:

O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos morros da Saúde alguma


coisa de aringa africana; e a melancolia dos cais dos Mineiros é saudade das
ricas faluas, jejadas de mercadorias, que não lhe chegam mais de Inhomirim
e da Estrela.425

Por esse diálogo, percebemos a proposta de Lima Barreto de “educar” os leitores


para a observação das várias cidades com suas diversas temporalidades existentes na cidade
do Rio de Janeiro, contrapondo-se ao imaginário dominante que buscava imprimir a
identidade nacional, naquele momento, a partir do cenário modernizado do centro da cidade,
ao mesmo tempo em que minimizava a participação de outros segmentos sociais na sua
constituição.
Apesar disso, Lima Barreto, ao encontrar-se distante do Rio de Janeiro e de seus
problemas que tanto o atormentavam, parece que vislumbrava aquele aspecto monumental
tomado pela cidade após a reforma urbana de uma forma positiva. Em carta ao seu grande
426
amigo Noronha Santos (24/09/1910) , Barreto relata sua passagem por Juiz de Fora em
companhia do teatro ambulante de seu tio e, ao se referir a essa cidade, afirma que “sem ser
feia, não é bonita, e falta-lhe completamente aspectos, monumentos e edifícios [...], poucas
lojas de confecções e fantasias e ainda não vi, na rua, uma senhora de chapéu.[...]”.
Talvez fosse o cenário cosmopolita do centro do Rio que ele buscavasse quando
pousou seu olhar sobre uma outra paisagem urbana ou apenas estranhasse que aquele cenário,
após tanta divulgação e defesa, ainda não tivesse chegado até aquela cidade mineira. Contudo,
o ambiente urbano para Lima Barreto era um local onde havia “sempre uma ebulição de
idéias, de sentimentos – cousa muito favorável ao desenvolvimento humano [...]; a cidade”
era “evolução”. 427
Diante dessas considerações, percebemos que Lima Barreto não era contrário à
modernização da cidade em si, mas a forma como esta foi realizada, provocando o aumento

424
Id., Ibid., p. 67.
425
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 67
426
BARRETO, Lima. Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomo I). p. 90-91
427
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 105

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das desigualdades sociais e o apagamento dos registros de sua história. Esse autor procurava
representar em seus textos uma cidade com uma grande diversidade sócio-cultural, a qual não
deveria ser negada, pois isso acarretaria uma perda de referencial muito drástica e a
constituição de um verdadeiro “cemitério de vivos”.
Quando Lima Barreto pensava na sua cidade, não lhe vinha à mente “o palacete”,
“o patrão ou criado”, “o teatro ou o cemitério”, “o capitalista ou o mendigo” e sim “a soma do
trabalho, de riqueza, de miséria, de dores, de crimes de quase quatro séculos contados”. 428 A
cidade que ele almejava era contrária à concepção burguesa de cidade marcada pelo
fracionamento de seu espaço e por um presentismo avassalador que negligenciava as
diferenças culturais e temporais.
A cidade almejada por Lima deveria apresentar sua diversidade cultural como
bandeira a ser defendida e permitir um contato maior entre seus habitantes a fim de promover
a compreensão e solidariedade entre eles. Ao que parece, esse foi o principal argumento
apresentado por Lima Barreto na disputa pela constituição da imagem de país moderno para o
Brasil nos princípios do século XX, a servir de reflexão para os dias atuais, em que nossas
cidades estão se transformando em verdadeiros barris de pólvora prontos para explodir a
qualquer momento.

Referências Bibliográficas:

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olímpio, 1975.

BARRETO, Lima. Diário Íntimo: memórias. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961.

_______________. Correspondência. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961 (tomos I e II).

_______________. Impressões de Leitura. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961.

_______________. Feiras e Mafuás. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961.

_______________. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Erichim: EDELBRA, s/d.

428
BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961. p. 96

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_______________. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e discussões


dispersas. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

_______________. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2 ed.São Paulo: Brasileinse.


1961.

_______________. Numa e a Ninfa. 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1961.

BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In:
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucílio. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo
excludente: da proclamação da república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 233–286.

BILAC, Olavo. Vossa insolência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BROCCA, Brito. A vida literária no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005.

GRUNER, Clovis. De uma revolta a outra: memória, história e ressentimento em Lima


Barreto. Revista Artcultura, Uberlândia. V. 8, N. 13, p. 85-95, jul.-Dez.. 2006

MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: UNESP,
2006.
PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos
(Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.

SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República das Bruzundangas”. In: SEVCENKO,


Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 198.

Site consultado:
http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em: 08 ago. 2008.

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AS “LOJAS DAS ROÇAS”: SUAS MÚLTIPLAS FUNÇÕES E


SIGNIFICADOS PARA O HOMEM DO CAMPO.

Josiane Thethê Andrade – UNEB


jothethe@hotmail.com

As relações econômicas, sociais e culturais estabelecidas entre a população local e os


indivíduos que freqüentavam as vendas, estabelecimentos comerciais, do povoado do
Tabuleiro, localizado no município de Mutuípe, Bahia, são o principal objeto de estudo desta
pesquisa. Entre os anos de 1960 e 1985 as vendas exerceram uma grande influência sobre a
vida cotidiana dos indivíduos que conviviam nestas espacialidades, sobrepondo suas funções
essencialmente comerciais para assumir múltiplos papéis. Com destaque para função
sociabilizadora, um verdadeiro “observatório popular” como as definiu o historiador Sidney
Chaulhoub. Contudo, as vendas e conseqüentemente o próprio povoado sofreram ao longo do
tempo uma série de mudanças que acabaram resultando na decadência das mesmas. Dentre
elas, o aumento da migração, a desativação da estrada de Ferro de Nazaré, a abertura de
estradas ligando o povoado à sede do município, entre outras. Para realização da pesquisa
foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores locais, pessoas ditas comuns, cujas
memórias expressas através da oralidade abriram perspectivas variadas não só para reconstruir
uma história do povoado e de suas vendas como também para refletir sobre o processo de
ressignificação da memória, em diferentes situações e temporalidades.

Palavras-chave: História, História Oral, Comércio.

O Tabuleiro como povoado rural, localizado num ambiente marcado pela vida
campestre não foge a sua dinâmica cotidiana. As práticas sociais do lugar estavam,
diretamente, associadas ao trabalho na roça, a lida com os animais, a convivência com a
natureza, aos costumes e tradições do campo, expressas nas relações de solidariedade entre os
moradores, nas festas, nas rezas, nos conflitos, nas relações de trabalho e exploração presentes
nas práticas e vivências da população local.

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Todavia é preciso destacar o papel sociabilizador de suas vendas, pois esta


pequena localidade rural sempre esteve estreitamente ligada às essas “lojas das roças” como
as definiu Guimarães Rosa. Espaços de circulação de pessoas, abertos da manhã à noite, todos
os dias da semana, sem fechar para o almoço significavam para os seus freqüentadores um
momento de lazer e diversão. Lá contavam os “causos”, bebiam cachaça e discutiam os mais
diversos temas “possíveis do universo cultural das roças” (SANTANA, 1998, p.82-83) e fora
delas. As notícias que ouviam no rádio ou viam na televisão, posteriormente, como
acontecimentos políticos nacionais e regionais, esportivos, sociais etc. Contavam piadas,
faziam adivinhações, falavam sobre a vida pessoal e alheia, criando “significados, valores e
práticas” (SANTANA, 1998, p.82.) para suas vidas. Situações traduzidas por Sra. Aurineide
Thethê, 43 anos, mais de vinte e cinco anos dedicados ao trabalho na venda da seguinte
forma:

Aí, de tarde, como não tinha a violência que tem hoje, de tarde o povo vinha
tudo pra porta da venda, que chovesse ou que fizesse sol. A boca da noite a
venda era cheia de gente, uns vinha comprar, outros fazer a feira. Trabalhava
o dia inteiro, aí quando era de noite, às vezes, tinha alguma coisa pra vender
ou farinha ou cacau, trazia pra vender, outros vinha fazia a feira, outros
vinha comprar alguma coisa que tava faltando em casa, outros vinha mesmo
beber, tomar uma cachacinha e contar piada. Outros vinha bestando mesmo,
pra vê o povo, pra ver todo mundo que tava e conversar a boca da noite. E,
às vezes, de dia, quando chegava assim... Antigamente vinha os
cavaiadeiros429 pra aqui. Na época de 60, 70 e 80 ainda vinha cavaiadeiros
aqui. Ai o povo passava aqui, chegava por aqui pra vender animal,
barganhar, trocava, fazia barganha, um animal pelo outro, por burro, por
cavalo, por boi. Outra ora vendia por dinheiro, fazia esse tipo de negócio,
barganha. E, ai de noite os meninos mais novo ia jogar sinuca, outros vinha
jogar.430

As lembranças da Sra. Aurineide Thethê trazem à tona outros dois aspectos


inerentes ao cotidiano das vendas. Primeiro, sua função social, pois como ponto de encontro
privilegiado, muitos se dirigiam para lá especificamente para fechar um contrato como de
meação, por exemplo, recrutar trabalhadores para capinar um terreno, podar uma roça de
cacau, consertar uma cerca, ou procurar o trabalho de um pedreiro. Outros iam permutar
animais e objetos, tratar da compra e venda de terras, ou até mesmo deixar um recado. As
vendas acabavam se tornando um ponto de referência de qualquer vilarejo, não só do
Tabuleiro.

429
Negociantes de gado bovino, eqüino e asinino.
430
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.

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Outro ponto seria a presença do jogo nas vendas, fosse do bicho ou de cartas, a
maior parte delas oferecia esse tipo de divertimento, mesmo proibido o jogo de azar em
algumas épocas. No decreto lei no. 9 215 de 30 de abril de 1946, o presidente Eurico Gaspar
Dutra proibiu a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional
reafirmando a lei de Contraversões Penais de 1941, que já proibia os jogos de azar431. O fato é
que estas leis nunca foram plenamente respeitadas, os jogos de bicho e de cartas eram
constantes no Brasil. Vários depoentes narraram episódios envolvendo as tentativas da policia
de coibir o jogo, quase sempre sem sucesso, já que muitos fugiam às batidas policiais ou
jogavam escondido para evitar possíveis multas e prisões:

O povo jogava por dentro da vagem, cendendo vela, cendendo vela,


enfrentando o diabo, mas jogava. No Tabuleiro a gente jogava por baixo das
bananeira, mas jogava! Enquanto tiver um baralho não tem jeito, a fábrica
não fecha.432

Os jogos a dinheiro nas vendas podiam resultar em certos casos em brigas. Havia
jogadores que não suportavam perder, surgiam acusações de trapaças ou estas aconteciam
por existir antecedentes que levassem ao ajuste violento da rixa433. O Sr. Pedro Andrade,
como bom narrador, trazendo em suas falas sempre um ensinamento moral434, no trecho de
seu depoimento transcrito abaixo, expõe suas impressões a respeito das brigas nas vendas:

Botava bebida, cachaça, era jogo, coisas que não prestava. Mas nunca
registrou uma briga, pois quando começava uma briga, uma confusão, eu
falava:
- Isso aqui nem começa nem termina. Aqui não começa briga nem termina,
porque quem tiver sua rixa é onde começou, não é na minha casa, por isso
aqui é um ponto de prosa não de briga435.

A historiadora Maria Izilda de Carvalho Matos nos seus estudos sobre alcoolismo
e masculinidade na sociedade paulista na segunda metade do século XX. Aponta para as
associações que se faziam entre alcoolismo, jogo, fumo, vagabundagem, boemia e violência,
constituindo hábitos incompatíveis com as idéias higienistas da época, fugindo ao ideal de
sociedade moderna almejado para o Brasil na época. Para os homens do campo o discurso
431
Dados retirados do site oficial do Senado Federal: http://www.senado.gov.br. Consulta feita em Julho de
2003.
432
Manoel Amado da Silva depoimento citado.
433
A ação violenta de muitos sujeitos nos jogos que ocorreram em bares ou em outros locais públicos,
geralmente tinha antecedentes de conflitos anteriores como aponta: CHALHOUB. Op. Cit. p. 214.
434
Walter Benjamin, destaca que bons narradores sempre trazem um ensinamento moral em suas narrações.Ver:
BENJAMIN, Walter. O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia, técnica, arte e
política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200.
435
Pedro Andrade de Souza depoimento citado.

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médico da época afirmava que o vício do álcool se “sobrepunha às verminoses e degenerava


o caráter do trabalhador rural, gerando nele preguiça, indolência e improdução” (MATOS,
2001,34). Daí a imagem de que estas práticas ‘são coisas que não prestavam’ como afirmou o
Sr. Pedro, reproduzindo velhos discursos que sempre atrelaram o consumo de álcool e a
prática de jogos à violência e vícios degenerativos. Todavia, estas representações parecem não
afastar os freqüentadores das vendas.
“Ponto de prosa”, assim definiu o Sr. Pedro Andrade às vendas, mostrando outro
aspecto inerente a elas. A imagem que as vendas passam de um espaço de sociabilidade e
diversão, que foi apreendida também pelo olhar do fotógrafo anônimo desta fotografia (figura
3) tirada na venda do senhor José Gonçalves, (no centro da fotografia tocando violão) no
início dos anos 80. Ela retrata a visita do então prefeito de Mutuípe, na época, Pedro Alves (a
sétima pessoa da direita para a esquerda) onde foi recebido por alguns moradores com uma
cantoria”, prática freqüente nas vendas do povoado.

Figura 3 – A fotografia da venda do Sr. José Gonçalves.


Fonte: autor desconhecido

Na foto tirada em primeiro plano, o fotografo usou uma distância capaz de


capturar a imagem daqueles que tocavam, assim como o ambiente da venda. No entanto, a
ação do tempo estragou algumas partes da fotografia, sobretudo as que mostravam detalhes do
balcão e das prateleiras da venda. Além do que, foi preciso retirar as bordas danificadas da
fotografia para possibilitar salvar o máximo possível da parte legível, o centro; mesmo assim,

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a manipulação comprometeu o sentido da foto, já que ocultou elementos importantes da


imagem. De qualquer forma, ela conservou como “um fragmento do real” (MIGUEL, 1993,
p.126) um momento no qual a venda congregava moradores e fregueses no povoado do
Tabuleiro, reafirmando sua função sociabilizadora, proporcionando além de trocas
econômicas divertimentos para a população local.
A venda também poderia exercer outras funções. Muitas delas funcionavam
também como armazéns, por absorverem boa parte da produção agrícola da região. Além de
muitos vendeiros terem apontado para o fato deles mesmos exercerem as funções de
açougueiros. Como observa se no depoimento do ex-vendeiro José Gonçalves:

Eu matava o porco ali mesmo, comprava o porco, matava e vendia o


toucinho ali. Outra hora fritava, fazia banha pra vender aqui na rua e... Eu
vim primeiro do que Zé Bailão, aí eu vendia o toucinho, vendia a carne, a
carne vendia despostada, tirava o toucinho e vendia a carne. Tinha os freguês
de comprar nas mãos da gente. 436

Mas como o vendeiro é um “comerciante, numa situação de pequeno capitalista,


vive entre os que lhe devem dinheiro e aqueles a quem ele deve. É um equilíbrio precário,
sempre à beira da derrocada” (BRAUDEL, 1998, p.57), obrigando-o a cobrar as dívidas,
uma tarefa difícil, dado os costumes que envolviam as relações entre ele e seus fregueses.
Muitos comerciantes ficavam constrangidos em cobrar, outros temiam que os fregueses
ficassem ofendidos e abandonassem seus estabelecimentos comerciais, até mesmo sem pagar
a conta, como deixou claro os vendeiros, se referindo as cobranças como “uma tarefa muito
difícil”, “tinha gente que queria até bater na gente,” “eu tinha vergonha de cobrar”. Situações
expressas nos depoimentos e que é perceptível no trecho abaixo:

Cobrava, uns dava pra valente, queria até bater na gente, mas a gente ia
atravessando. Teve um dia que aquele Paulo Correia, me, [...] escorou na
porta da venda porque eu fui cobrar uma conta, ele escorou com uma
espingarda veia, que se eu saísse fora tinha ele me atirado.437

Os vendeiros se sentiam constrangidos muitas vezes em cobrar as dívidas, já que


poderiam estar ferindo com a tradição. O que ajuda a entender a reação violenta do cliente na
última fala do senhor José Gonçalves, ao se sentir ofendido com a cobrança. Isto lembra as
relações comerciais permeadas por antigos costumes na Inglaterra do século XVIII, definida

436
José Gonçalves depoimento citado.
437
Idem

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por E. P. Thompson (1998, p.13-25) como “economia moral da plebe” ao se referir às


rebeliões ou ações violentas dos camponeses, na defesa de suas tradições contra as influências
externas em relação aos novos controles impostos pelos “governos patrícios” e pelas
transformações do mundo industrial moderno.
A venda como um espaço público é praticado por todos, homens, mulheres,
crianças, moços e velhos. E, como não poderia ser diferente, as relações entre os indivíduos é
orientada por uma série de limites que a conveniência de viver em sociedade lhes impõe. No
caso das mulheres, o fato das vendas serem um espaço público e de predominância masculina
não as impediam de freqüentá-lo, e como observa a historiadora Michelle Perrot, (1992,
p.167) “a fronteira entre o masculino e privado é variável, sinuosa...”. Nem todo espaço
público é político e masculino, e por outro lado nem todo privado é feminino.
Nos trechos dos depoimentos abaixo se percebe como as mulheres do lugar
praticavam o espaço das vendas de maneiras diferenciadas, trazendo consigo uma forte
ligação entre a necessidade de consumo, as relações afetivas e morais que mantinham com
elas:

A freqüência das mulheres na venda era comum sim. Elas iam, assim,
quando ia fazer a feira, que um dos marido adoecia, que não podia ir a feira.
Aí elas iam na venda fazer a feira. Aquelas que não tinham marido, que elas
tomavam conta da suas próprias vida e elas mesma era quem ia fazer a feira,
vender os produtos da roça. Vendiam cacau, vendia farinha. Às vezes
adoecia alguém e elas precisava ir para a cidade, ai passava na venda,
comprava o que precisava. Se precisava de algum dinheiro prá depois pagar,
elas ia tomava o dinheiro... Mas as mulher não participava, assim, tanto da
venda não, quem ia mais pra venda era os homens. As mulher ia, mais, só ia
assim, quando tinha grandes precisão. Que os homens ia por precisão e,
também ia assim nos dias de domingo de tarde pra conversar, pro bate-papo,
ia passeando, mas as mulheres não ia passear ia por necessidade, por
precisão mesmo. 438

-A senhora tinha vergonha de freqüentar as vendas?


-Às vezes na dos outro, mas na casa de Zé Gajilo eu não tinha vergonha, na
casa de Jovená não tinha vergonha, na casa de Arthur não tinha vergonha. Eu
chegava bebia, fumava, prosava, pilheriava, tirava meus caminho e ia
embora... Lá era tudo conhecido, era mesmo de ser meus irmão. Ochê! Ia ter
vergonha de que?!439

No primeiro depoimento nota-se que a Sra. Aurineide vivencia a venda como um


lugar de trocas comerciais para as mulheres, onde elas não devem demorar mais do que o
tempo necessário para fazer as compras e pagá-las. O lazer nestas lojas rurais seria uma

438
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.
439
Laura de Jesus Andrade depoimento citado.

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exclusividade masculina. Já no depoimento da Sra. Laura ir às vendas era um momento de


fazer compras e de lazer também, no qual ela conversava com os freqüentadores e donos das
vendas sem a preocupação de ser uma mulher num espaço majoritariamente masculino.
Porém, ela justifica sua desinibição ao fato de estar entre amigos. A Sra. Laura trata as vendas
como “casa”, refere-se aos vendeiros como irmãos, demonstrando que mantinha uma relação
próxima não só com os moradores do lugar como com os donos das vendas. Era mais que
uma simples freguesa, assim ela se considerava.
Os laços de familiaridade que marcavam as relações entre os vendeiros e
fregueses caracterizam um costume proporcionado por práticas anteriores de convívio naquele
espaço. Ou seja, os freqüentadores das vendas em sua interação com lugar criaram práticas
que identificaram o espaço da venda como um ambiente propício as relações de solidariedade
entre os indivíduos que o freqüentam. Segundo Michel de Certeau (1994, p.202) “o espaço é
um lugar praticado” e são estas práticas cotidianas que dão a um lugar destinado as relações
comerciais o calor da convivência humana.
O vendeiro conhece os gostos de cada um, chama os fregueses pelo primeiro
nome ou por apelidos, conhece as suas famílias e as crianças do lugar. A ele se recorre num
momento de emergência, quando é necessário um remédio para dor de cabeça ou febre a
qualquer hora do dia ou da noite. Na iminência de um problema de saúde ou financeiro
apelava-se a um empréstimo de urgência como apontou Sra. Aurineide. O vendeiro também é
o confidente, àquele a quem se pede um conselho ou um favor. Muitos o chamavam num
canto para pedir dinheiro emprestado ou comprar algo fiado para evitar constrangimentos.
Algumas mulheres pediam para serem atendidas nos fundos da venda quando queriam
comprar uma “meota”440 de cachaça ou algum artigo de higiene pessoal, por exemplo, já que
não se sentiam à vontade para compartilhar o mesmo ambiente dos homens.
No último depoimento, Sra. Aurineide observa que as mulheres geralmente
“faziam a feira” quando os maridos estavam impossibilitados ou aquelas que eram “donas de
sua própria vida” o faziam. No caso do Tabuleiro e muito provavelmente de outras
localidades rurais do Recôncavo Sul da Bahia o costume de fazer a feira semanal da família,
geralmente nos dias de sábado, era uma atividade basicamente masculina. Os homens
acordavam cedo e se dirigiam para o povoado, lá iam primeiramente ao açougue ou a uma das
vendas e compravam as carnes para garanti-las frescas e de boa qualidade. Depois nas vendas
compravam os gêneros alimentícios de que necessitavam, aproveitando o momento para dar

440
O termo meota é usado pelos freqüentadores da venda para designar uma garrafa reaproveitada que serve para
conter cachaça comprada a granel.

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“um dedo de prosa” e tomar uma branquinha. Muitos se empolgavam e acabavam demorando,
para preocupação das mulheres que os esperavam com a feira.
Contudo, havia aquelas mulheres casadas cujos maridos não as impediam ou
talvez não se deixassem impor o limite de ir às vendas fazer as compras. Mas, a grande
presença masculina pode ser justificada por preceitos morais arraigados numa cultura
tradicional, tecida num passado paternalista da sociedade brasileira, no qual os papéis
femininos e masculinos deveriam ser pré-definidos (embora isto não signifique que todos os
assumissem). O homem exercia a função de chefe de família - provedor - trabalhador, já as
mulheres as funções de mãe - donas do lar. E mesmo com o passar do tempo, e as novas
configurações que as relações sociais entre os gêneros masculino e feminino foram
assumindo, como a crescente introdução da mulher no mercado de trabalho e maior
participação na esfera pública. Permanecia, ainda que com características diversas, o
predomínio masculino no gerenciamento da família entre os moradores do Tabuleiro.
O homem, provedor, ia às vendas cuidar daquilo que era necessário ao sustento
material básico da família e as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos e dos
afazeres domésticos. Talvez, por isso elas não tivessem tempo de ir às vendas, sem contar
com a imagem da venda de um lugar que não deveria ser freqüentado, sobretudo, à noite “por
mulheres de respeito”. Visto que lá também era um lugar de jogos de azar, bebidas e
comportamentos masculinos impróprios que “moças de família” não deveriam presenciar para
não desvirtuá-las do caminho da moral e dos bons costumes, como lhes ensinavam seus pais.
A maior presença masculina nas vendas também pode ser atribuída ao próprio
ritmo de vida do homem do campo, que tem maior flexibilidade em relação aos seus horários
de trabalho, como destacou Thompson (1998). Podendo até mesmo escolher os dias e
horários, caso a terra seja de sua propriedade ou variando conforme a época de produção e
colheita. Ao contrário dos trabalhadores urbanos que têm horários pré-definidos e muitas
vezes trabalham aos dias de sábado, ficando impossibilitados de freqüentarem as feiras ou
mercados para fazem as compras, o que acaba se tornando uma tarefa feminina. Todavia, é
preciso ressaltar que esta observação não se estende a todos os grupos de trabalhadores
urbanos e muitos encontram formas alternativas de fazerem suas compras semanais, como
escolhendo outros dias da semana para fazê-lo ou em horários alternativos.
As mulheres do campo, é preciso ressaltar, também tinham uma relação
econômica com as vendas que superava o simples consumo de mercadorias. Muitas vendiam
nas vendas os frutos do trabalho nas ricinhas para suprir suas necessidades pessoais e de seus
filhos sem ter que recorrer ao marido. A historiadora Sylvia Maria dos Reis Maia (1985, p.92-

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94) na sua tese de doutorado sobre as estratégias de vida e cotidiano dos trabalhadores rurais
do município de Sapeaçu-Ba, define as rocinhas como subdivisões da propriedade familiar
que são distribuídos entre os membros da própria família de maneira informal.
Nela o menino ou a menina aprenderia a ter responsabilidade e passava a ganhar
algum dinheiro. Em média com oito anos de idade a criança recebia a rocinha, que no
momento de cultivar e preparar o terreno sempre recebia uma ajuda dos adultos (MAIA,
1985). Para às esposas, elas representavam uma fonte independente de renda, que lhes davam
certa autonomia financeira em relação aos maridos, e até mesmo ajudava-os nas despesas do
lar. A maior parte do dinheiro era gasto com roupas, sapatos, material escolar para os filhos
que estudavam etc. No trecho da entrevista abaixo a Sra. Aurineide deixa clara a importância
das rocinhas:

Tinha pais que o filho e a mulher trabalhava todo mundo junto com ele. E o
que a família precisasse ele dava o dinheiro pra comprar o que precisassem.
Mas tinha pai também que era os dono da terra e que dava um pedaçinho da
terra pra mulher plantar. Pra ela ter uma rocinha, pra ela ter, assim, o
dinheirinho dela. Pra ela comprar as coisas que ela precisava: calcinha, sutiã,
perfume, xampu, creme pra pele... Essas coisa. E também dava pros filho,
também, que era uma maneira... Muitos pensava assim, que dá aos filhos
pros filhos aprender a trabalhar pra também ter seu dinheirinho, quando
fosse numa festa, comprar os perfumes deles... [os produtos] vendia nas
venda ou nos armazéns. 441

Outro aspecto interessante era o fato do dinheiro ganho com as rocinhas ser
gerenciado pelas próprias mulheres e crianças. Havia mulheres que mantinham contas
separadas dos maridos nas vendas para que elas pudessem gerenciar seus ganhos da forma
que achassem mais adequada. Para os homens, supõe-se, era uma forma de lhes livrar de
algumas despesas extras. Muitos consideravam gastos com vestuário, produtos de beleza, etc.
desnecessários e deixavam ao encargo das mulheres o cuidado com estes detalhes da
economia doméstica.
Além do mais, isto demonstra que as mulheres do campo não ficavam confinadas
ao espaço privado do lar, esperando que os maridos ou pais lhes provessem seu sustento. O
trabalho delas na roça era fundamental para manter economicamente a família. Nos núcleos
familiares mais pobres não havia recursos financeiros suficientes para contratar empregados
para cultivar a terra, era preciso que toda a família trabalhasse junto para garantir seu sustento.
E, mesmo que o homem administrasse o dinheiro ganho no trabalho familiar, a mulher tinha

441
Aurineide Thethê Andrade depoimento citado.

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formas alternativas de sobrevivência e conseguia manter sua identidade sem ter que se anular
por viver numa sociedade em determinados aspectos conservadora e que ainda sustenta certos
preceitos sexistas na diferenciação entre homens e mulheres.
Já para as crianças esses espaços de sociabilização descortinavam-se como um
mundo de encanto e diversão. Doces, bombons expostos em frasqueiras giratórias aguçavam
tanto o paladar quanto a vontade de ir às vendas se deliciar com essas gostosuras. Ou mesmo,
quando seus pais iam às vendas entre seus pedidos estavam guloseimas que elas esperavam
ansiosamente. Para os meninos havia as sinucas, os jogos de baralho e dominó, a venda
acabava se tornando um espaço onde o garoto de certa forma desenvolvia padrões de
comportamento e conduta masculinos.
Desta forma, essas “lojas das roças” assumiam múltiplas funções e significados
para os homens, mulheres e crianças do campo. E, são estas pessoas comuns que ao darem
voz a suas experiências, deixando emergir as memórias de um tempo passado que sobrevive
no presente, possibilitaram a reconstrução de uma memória social criada e forjada na vida
campestre, no trabalho árduo na roça, nos conflitos, nas festas, nas vendas, nas conversas e
experiências compartilhadas, permeadas de sociabilidade. O que possibilitou escrever
aspectos históricos não só de um lugar, como de pessoas que imprimiram neste espaço sua
própria história.

Fontes Orais:

3. Aurineide Thethê Andrade, 47 anos de idade, trabalhava na venda Santa Ana. Reside
na sede do município. Entrevistas em 30/07/2003, 20 minutos 14/04/2007, 8 minutos.
4. José Gonçalves de Oliveira, 84 anos de idade, exerceu a função de vendeiro desde a
segunda metade da década de 40 permanecendo até os anos 80 no povoado do
Tabuleiro. Reside na sede do município de Mutuípe. Entrevista em 19/01/2003, 30
minutos.
5. 3. Laura de Jesus Andrade (1944-2006), conhecida como Caboclinha, faleceu poucos meses
após a entrevista. Trabalhadora rural residia na sede do município. Entrevista 24/10/2006, 30
minutos.
6. 4. Manoel Amado da Silva, 72 anos de idade na ocasião da entrevista, exerceu a função de
vendeiro no Tabuleiro nas décadas de 40, 50 e 60. Reside na sede do município de Mutuípe.
Entrevista em 16/07/2003, 15 minutos.

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7. 5. Pedro Andrade de Souza, 72 anos de idade, pequeno proprietário rural, exerceu a atividade
de vendeiro tanto no Tabuleiro, quanto em outros povoados e cidades. Reside no povoado do
Tabuleiro, município de Mutuípe. Entrevista em 06/07/2003, 45 minutos.

Referências Bibliográficas:

BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII: Os


jogos das trocas. São Paulo: Martins Fontes, v. 2, 1998.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis- RJ: Vozes, v.1,
1994.

CHALHOUB Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MAIA, Sylvia Maria dos Reis. Dependency and survival of Sapeaçu small farmers – Bahia,
Brazil, 1985.(Tese de doutorado). Boston University.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

MIGUEL, Maria Lúcia Cerutti. A fotografia como documento: Uma investigação à leitura. In:
Revista Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2. Jan-dez. 1993.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 2. ed. Rio de


Janeiro, Paz e Terra, 1992, pp. 167-231.

SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e Ventura camponesa: Trabalho, cotidiano e


migrações. Bahia, 1950 – 1960. São Paulo: Annablume, 1998.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São


Paulo: Cia das Letras, 1998.

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TOMÉ NUNES/BA: UMA RECONSTITUIÇÃO PELA MEMÓRIA.

Leila Maria Prates Teixeira - UNEB


lmprates@hotmail.com

O presente texto trata de aspectos históricos, sociais e culturais da comunidade negra de Tomé
Nunes/BA. A fonte oral é uma das principais metodologias aplicadas à pesquisa para
conhecer o surgimento desta comunidade e a construção de sobrevivência deste povo ao longo
do tempo. A partir destas entrevistas inicia-se uma busca a materiais impressos para que possa
haver um confrontamento entre as fontes. Estas fontes são analisadas sob a perspectiva
teórico-metodológica da história social. No que concerne às questões culturais e à lógica do
auto-reconhecimento como comunidade quilombola, consideram-se as suas influências
externas (agentes da pastoral) para a análise de depoimentos dos moradores dessa antiga
comunidade do Médio São Francisco.

Palavras-chave: Memória, História Social, Comunidade Quilombola.

Introdução

No Município de Malhada/BA, localizado na Microrregião do Médio São


Francisco à margem direita deste rio, localiza-se a Comunidade de Tomé Nunes, reconhecida
como remanescente de quilombo.442 Segundo descrevem os moradores443, esta comunidade
foi formada há mais de cem anos. Esses relatos resultam de transmissão geracional de
memórias, mas, até então, morador algum soube dizer precisamente a data da formação do
povoado.

Hoje em dia, o morador mais velho da comunidade, o Sr. João Pereira dos Santos,
de 94 anos, passa horas contando histórias (verdadeiros causos) de Tomé Nunes, para quem
estiver interessado em ouvir. De acordo com sua filha dona Maria, de 70 anos de idade, e
alguns netos, não é todos os dias em que ele “está para conversa”. Eles afirmam que há dias
em que ele não se lembra de quase nada, há outros em que a lembrança flui.

442
Em julho de 2004 os moradores locais se reuniram e fizeram um ofício solicitando da Fundação Palmares o
reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo. A certidão de quilombola foi recebida em
dezembro do mesmo ano.
443
Estes moradores são: Joanita Dias de Brito, Raimundo Nonato Nery, Sônia, João Pereira dos Santos, Benedita
Pinto de Jesus, dentre outros. Depoimentos prestados entre os meses de abril e maio, do ano de 2008.

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Provavelmente nos dias em que o Sr. João está interessado em conversar, o fato
presente que ele vive naquele momento o chama a lembrar do passado conforme Bérgson
afirma em sua obra Matéria e Memória (2003), mas é importante salientar que lembrar não é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado, porque por mais nítida que nos pareça à lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então
e porque nossa percepção alterou-se e com ela, nossas idéias, nosso juízos de realidade e
valor444.

Conforme o depoimento do Sr. João, a comunidade se originou de uma fazenda de


um único dono que se chamava Tomé Nunes, e foi em sua homenagem que a localidade
recebeu a denominação que se estende até o presente:

Tomé Nunes era o dono desse lugar aqui, pruque essa família de gente não
morava aqui não, morava pra baixo de onde hoje é Guanambi (...). Ali era
no terreiro dele, veio uma enchente (...). Com aquilo ele ficou enjoado e
resorveu vender e agora meu avô soube, veio pra comprar e comprou445.

Este relato da formação da comunidade de Tomé Nunes vem sendo passada de pai
para filho há anos. O Sr. João diz que ouviu esta história de seu avô e que depois foram
confirmadas por seus pais. Portanto a História da comunidade hoje está ligada também ao que
Halbwachs446 chama de memória coletiva, visto que ele não presenciou estes acontecimentos,
estas informações lhe foram anexadas àquele espaço antigo que ele viveu através da memória
dos mais velhos.

Dona Benedita Pinto de Jesus447 confirma esta formação da comunidade, mas ela
apresenta maiores detalhes, ao dizer que a família que veio para esta região estava, segundo
ouviu contar, fugindo de conflitos com fazendeiros na região onde habitavam, sendo esta
localizada nas proximidades do que hoje é reconhecida como Quilombo da Parateca e que a
compra destas terras não teria sido tão simples como relatado pelo Sr. João. Assim, seu relato
aponta que:

444
Veja-se Ecléa Bosi, Memória e Sociedade: lembranças de velhos, 2007, p 53-68
445
A transcrição da entrevista está feita conforme dita pelo depoente.
446
Maurice Halbwachs. A memória Coletiva, 1990.
447
Antiga moradora da comunidade que foi entrevistada pelo Padre José Evangelista de Souza. Esta entrevista
pode ser encontrada no livro: Mucambo do Rio das Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. Distrito Federal:
Documentário, Arte e Movimento, 1994. (Mimeografado) de autorias do Padre Evangelista de Souza e João
Carlos Deschamps de Almeida.

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[...] Os pretos para não matar, nem morrer, foram obrigados a mudar do
lugar. (...) Vieram então cinco irmãos: três homens, duas mulheres. Quando
vieram ver o terreno do Tomé Nunes: João, Clara e Reginaldo; pai, filha e
genro. O João morreu afogado, na volta. Sofreu um passamento, dentro do
barco, caiu n´água. Quando ouvimos a pancada, ele já tinha afundado. Só
ficou o chapéu. Os cinco irmãos: Joaquim, José Mendes, Paulo Mendes,
Isabel Dias e Teodora Dias da Conceição. Teve notícias de que esse homem
estava vendendo este lugar; vieram e compraram. 448

Ambos os depoimentos dizem que não houve dificuldades com a compra da terra,
mas o relato de dona Benedita é mais rico em detalhes quando a mesma expõe a dificuldade
que os compradores tiveram quando vieram visitar a terra a ser comprada, certamente
dificuldades estas encontradas devido à precariedade de transportes e o alto volume de água
do Rio São Francisco, isto há mais de cem anos atrás.

Certamente, os fatos lembrados por dona Benedita e omitidos pelo Sr. João não
são considerados tão importantes para ele ou para a pessoa que o contou, “[...] a memória só
retém o especial: nunca o total” (PORTELLA, 1958, p. 186). Considerando essa afirmativa,
recriar um acontecimento passado pode representar uma experiência purificadora ou, até
mesmo, bastante traumatizante, visto que diversas vezes alguns acontecimentos remetem o
indivíduo ou grupo a situações, locais ou sentimentos desagradáveis, e assim, ao invés de
abrir aquela ferida ele prefere-se omitir ou pouco aprofundar determinados fatos, o que
possibilita a constituição de duas ou mais versões do mesmo episódio.

O trabalho de rememoração é um ato de intervenção na desordem das imagens


guardadas. E é também uma tentativa de organizar um tempo sentido e vivido do passado, e
finalmente reencontrado através de uma vontade de lembrar. A elaboração da narrativa sobre
a formação da comunidade, tanto feita pelo Sr. João como por dona Benedita, é realizada de
uma maneira não linear, sem pontos fixos de tempo e espaço, compostas por fragmentos de
memória, e isto fica presente na análise do trecho anteriormente citado, em que dona Benedita
inicia contando o fato da compra, sendo interrompido pelo falecimento de um dos possíveis
compradores, seguido pelo retorno à narrativa inicial. O que caracteriza o ato de comunicar o
lembrado sem organizar previamente e temporalmente as idéias, permitindo encaminhar a
finalização do relato, e possibilitando retornar quando desejado.

448
Relato de Dona Benedita ao Padre Evangelista. A transcrição está feita como no livro: Mucambo do Rio das
Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. 1994.

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A memória como alicerce do reconhecimento

A comunidade de Tomé Nunes, atualmente é reconhecida como remanescente de


quilombo pela Fundação Cultural Palmares449. No entanto, ainda aguarda a demarcação e
escrituração da terra.

Durante o processo de auto-reconhecimento da comunidade foram de suma


importância para a aquisição da certidão de quilombolas, a memória dos mais velhos e o
manifestar de suas culturas, supostamente, trazidas desde muito tempo atrás. Ações essas
fundamentadas na afirmativa de que “a história oral pode certamente ser um meio de
transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história” (THOMPSON, 2002, p. 22),
visto que o depoimento de alguém que vivenciou pode reforçar ou modificar aquilo que já se
sabe.

Para alguns moradores de Tomé Nunes, foi justamente a memória dos mais velhos
e a prática de culturas dos antepassados que ajudaram para que a comunidade se mobilizasse e
solicitasse o reconhecimento. Esse processo de conscientização é apresentado em
depoimentos, como o seguinte:

Eu lembro assim, nessa época chegou o padre lá de Carinhanha, era o Padre


Vanderley, ele já faleceu, e ele chegou falando que aqui na comunidade
tinha esse negócio pra reconhecer, porque a assinatura era tudo igual, a
assinatura. Chegou o ponto de todos saí nas casas perguntando o nome, o
sobrenome e foi aí que eles descobriu que nós era uma raça só e foi através
da cultura que nós era quilombola (...) vários tipos de cultura como o
reisado, o boi-girá450, dança de roda, muitas coisas, muitas culturas, até hoje
ainda tem aquele negócio do pilão e tudo isso foi que o povo usava naquele
tempo e a gente continuou sustentando, faz de conta que eles plantaram,
cresceu e aí veio os fruto, que no caso tamo sendo nós e eles a raíz, esse
povo antigo que muitos já morreram. 451

449
A Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei
Federal nº 7.668, de 22.08.88. Sua finalidade esta definida no artigo 1º, da Lei que a instituiu, que diz:
"promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na
formação da sociedade brasileira".
450
Segundo D. Maria, uma das pioneiras das danças na comunidade, o boi girá é uma cantiga de roda cantada
pelos antigos. De acordo com ela hoje em dia ela quase não é mais cantada pelas crianças do lugar.
451
Entrevista feita com a ex-presidenta da Associação dos Moradores de Tomé Nunes, dona Sônia de 30 anos de
idade. A transcrição está feita de acordo a fala da mesma.

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É importante salientar que para o recebimento da certidão de reconhecimento da


comunidade não é necessária muita burocracia, ou um profundo estudo memorialístico,
porque de acordo com a Instrução Normativa nº. 16 de 24 de março de 2004, art. 3º452.

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos


étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida.

Portanto, a comunidade negra que se auto declarar remanescente recebe a certidão


da Fundação Palmares. Mas, no momento da demarcação da terra, que deverá ser feita pelo
INCRA453, em definitivo, o uso da memória será de fundamental importância, porque será a
partir das lembranças das localizações das casas, das oficinas de farinha, dos pastos, dos
pilões, das áreas designadas para culturas agrícolas e práticas folclóricas desenvolvidas pelos
antigos, que predominam até hoje ou que apresentam vestígios, que a população poderá
reivindicar que sua terra seja demarcada corretamente, com o objetivo que seja reduzido as
injustiças e também as disputas ocorridas nas regiões entre quilombolas e fazendeiros,
pretensos proprietários.

Este último fato, das lutas pela terra, pode ser presenciado em trabalhos de
diversos pesquisadores que estudam a região do Médio São Francisco454, como por exemplo,
na dissertação defendida por DUTRA (2007. p. 21) onde ele diz que.

A década de 1980 marcou profundamente a região do Vale do São


Francisco: trabalhadores rurais envolveram-se em vários conflitos contra
ricos fazendeiros que queriam se apossar das terras habitadas por antigos
moradores para a implantação de projetos agropecuários em terras povoadas
ancestralmente. Essas localidades se transformaram em alvos de disputas
entre antigos moradores e ricos fazendeiros. No processo de legalização
dessas áreas estudos, laudos e outros documentos foram sendo elaborados e
usados como argumentos em torno das questões em disputa.

452
Aprovada pela Resolução/CD nº 6/2004 – D.O.U nº 78, de 26.04.2004, seção 1, p-64.
453
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma autarquia federal criada pelo Decreto
n. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional
de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Está implantado em todo o território nacional por
meio de 30 Superintendências Regionais.
454
A Região do Médio São Francisco compreende os territórios de Pirapora (MG) até Remanso (BA), incluindo
as sub-bacias dos afluentes Pilão Arcado a oeste, e do Jacaré a leste e, além dessas, as sub-bacias dos rios
Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente, Grande, Verde Grande e Paramirim, situando-se nos estados de Minas
Gerais e Bahia.
Disponível em: <http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/recus/medio-sao-francisco>. Acesso
em: 10/07/2008.

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Assim sendo, a reconstrução da memória, a valorização e a preservação da


identidade das populações tradicionais é algo fundamental no processo de construção da
história de um povo. “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1990, p 477). No
caso das comunidades negras, esta busca da construção de uma identidade coletiva tornou-se
mais intensa nos últimos anos, evidenciando o crescente interesse pela auto-afirmação e pela
reconstituição das origens enquanto comunidades remanescentes de quilombos. Seguindo esta
idéia MATTOS (2006, p. 106) nos diz que

A aprovação do artigo sobre os direitos territoriais das comunidades dos


quilombos culminou, assim, em todo um processo de revisão histórica e
mobilização política, que conjugava a afirmação de uma identidade negra
no Brasil à difusão de uma memória da luta dos escravos contra a
escravidão.

Muitos historiadores hoje já reconheceram que a memória fornece importantes


elementos para a composição da identidade, entendendo esta como mais uma conseqüência
das lembranças455. Dentro deste contexto, as experiências vivenciadas, os valores, a forma de
pensar própria das populações tradicionais deve ser valorizada, a fim de que as raízes
identitárias destas comunidades não se percam. Assim, podemos afirmar que a cultura, as
formas de vida, os costumes, transmitidos com o passar do tempo destas comunidades têm
fundamental importância para a formação da identidade. Mesmo que um grupo tenha que
passar por diversas configurações, em diferentes momentos da história, deve haver sempre o
cuidado de não deixar que se percam os traços originais de sua identidade.

As manifestações culturais como afirmação da identidade quilombola

Segundo dona Sônia, ex-presidenta da associação dos moradores, os vários tipos


de cultura ajudaram para a descoberta da identidade quilombola. Dentre as culturas citadas
está a comemoração da festa dos Santos Reis, que de acordo com dona Sônia e outros
moradores de Tomé Nunes, dona Maria456 foi a pioneira desta comemoração no povoado,
iniciando a “folia do Reis”457 segundo depoimento a seguir

455
Alistair Thomson. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. 2005, p.69.
456
Dona Maria é filha do Sr. João Pereira dos Santos e hoje está com 70 anos de idade.
457
Folia é como é chamado pela própria moradora, quando esta se refere à Festa de Santo Reis.

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Ó no meu tempo eu era menina, nós saía pra brincar assim isso aqui era
tudo limpo, tudo, tudo, tudo, tudo. Aí nós ia cantar roda, nós ia pular boi
girá, nós ia, nós inventava Reis, não tinha tempo marcado, não tinha dia
marcado da semana, qualquer dia pra nós era dia, só queria ficar assim nas
casa batendo caixa, agora ó a caixa: um prato que nós batia, tum, tum, nesse
prato. Aí nós era na base de 8 ou 9, aí nós começava brincar e falava: ‘bora
cantar Reis?’ ‘bora!’ Aí nós saía com esse prato tan, tan, tan, cantando tudo
errado, toada de Reis nós num tinha, nem nada e nós na roda mesmo nós
fingia que era Reis.458

Dona Maria conta também que sua mãe e seu pai não gostavam que ela ficasse de
porta em porta cantando “Reis”, mas que depois sua família acabou aceitando, visto que nada
mais podia fazer para mudar a situação.

Finada Antônia, ela morava bem ali assim nesse pezão de Juazeiro que era
pequenininho ficava de junto da casa dela. Aí finada Antônia chamou nós e
falou: “Oia ocês tem boa vontade eu vou ajudar ocês. Cantar Reis num é
assim não, eu vou ensinar” Eu tinha 7 anos459.

A mesma dona Maria também confirma que, com o passar dos anos, até a sua mãe
passou a cantar Reis com ela e a lhe ensinar as novas toadas e que hoje em dia todo 1º de
janeiro eles iniciam a jornada festiva de porta em porta. E mais, a mesma senhora ainda
afirma que as pessoas que lhe acompanham na atualidade são praticamente novatas e novatos,
tendo aprendido a “folia” com ela, visto que praticamente todos os de sua geração, que
cantavam com ela antigamente, já faleceram.

A dança de Reis da comunidade de Tomé Nunes hoje já é conhecida


nacionalmente, isso devido a equipe da TV Brasil ter filmado a festa e exibido por diversas
vezes em sua programação. Além disso, os membros da comunidade sempre recebem
convites para se apresentar nas festas regionais, como na sede dos municípios de Malhada e
cidades circunvizinhas. É sabido também que este interesse “externo” pelas manifestações
culturais de Tomé Nunes passou a fortalecer-se após o reconhecimento oficial do povoado
como quilombolas

Retomando a análise da memória como objeto de estudo, nas entrevistas feitas


com moradores de Tomé Nunes é possível perceber a importância que o espaço tem para o
processo de rememoração, e isso ficou claro nos relatos de D Maria, expostos acima. Situação
esta apresentada por MALUF (1995) ao comenta que o espaço deve ser sempre
problematizado pelo historiador, visto que ele continuamente é lembrado pelo entrevistado.
458
Entrevista feita com Dona Maria no dia 18 de abril de 2008.
459
Idem.

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Idéia reforçada por BOSI (2007) ao disponibilizar um importante segmento explicando a


necessidade que o entrevistado tem de comparar os espaços para a memória se refazer,
reconhecido pela autora que “[...] a história que ouvimos, refere-se do início ao fim, a velhos
lugares, inseparáveis dos eventos neles ocorridos”. (BOSI, 2007, p. 447)

Considerações Preliminares

A população de Tomé Nunes aguarda ansiosamente a vinda dos técnicos do


INCRA para que a demarcação das terras aconteça. Segundo dona Joanita460 em março deste
ano houve um encontro das mulheres líderes negras, em Salvador, e que ficou acertado que
este ano ainda Tomé Nunes teria sua terra definida. Mas sabe-se da demora do INCRA para
cumprir com as suas obrigações. Este órgão alega, em geral, escassez de funcionários.
Decerto por algum sentimento de impotência, moradores locais revelam relativo consenso de
que não lhes restam outra alternativa senão aguardar.

Quanto as questões referentes à memória é possível perceber certa conformidade


entre os relatos obtidos a partir das entrevistas, tanto dos mais velhos quanto dos mais jovens
moradores, apenas modificando-se o grau de riqueza na opção do detalhamento dos
acontecimentos, como também ao tratarem das manifestações culturais.

A partir das visitas realizadas à comunidade e das entrevistas coletadas com alguns
de seus moradores, é possível caracterizar um discurso uníssono e uma união entre eles.
Representado e demonstrado pelo interesse na resolução dos impasses para a demarcação das
terras e pelo reconhecimento cultural, desde os mais antigos moradores até os mais jovens.

Referências

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.

DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso:


comunidades negras do Rio das Rãs e da Brasileira – BA (1982-2004). São Paulo: PUC,
2007.

460
Moradora e agente de saúde municipal que atende as famílias da comunidade de Tomé Nunes

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- ANPUH/SE e IHGSE - 325

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O CANGACEIRO E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA


BRASILEIRO: (1950 -1970)

Caroline Lima Santos - UNEB


carolinea.lima@yahoo.com.br

A proposta do artigo é discutir as possibilidades da relação cinema e história, pensando o


filme como documento. O trabalho foi resultado do projeto de pesquisa sobre as
representações sociais do cangaço, fenômeno social ocorrido entre os fins do século XIX e
1940 no sertão nordestino, embutidos nas obras cinematográficas de Lima Barreto “O
Cangaceiro” de 1953 e na de Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de 1964.
Numa perspectiva histórica avaliaremos essas obras, o contexto em que foram produzidas e as
formas de representações dadas ao cangaço por estes cineastas.

Palavras-chave: Cangaço, Representações, Cinema, História.

Introdução:

Considerando que desde 1895, com os primeiros passos dados pelo cinema e das
primeiras filmagens feitas por Louis e Auguste Lumiére461, verificou-se uma aproximação
cada vez maior do cinema e história, entretanto o filme enquanto documento foi inserido na
produção historiográfica apenas em meados do século XX. Tendo em vista que a sétima arte
ganhou certo valor mercadológico e de entretenimento, percebeu-se também que este poderia
refletir aspectos de uma sociedade, transformações políticas econômicas e, até mesmo,
ideológicas e filosóficas.
A apreciação do cinema como difusor das representações sociais, possibilitará a
compreensão da infra-estrutura deste meio de comunicação e através das quais ele atendia às
ideologias de um determinado contexto, nesse caso as concepções de mundo de uma classe
dirigente, a qual se propõe difundir-se por toda a sociedade,462 revelando um imaginário
urbano e seus vínculos a determinados grupos sociais.

461
Cf. NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA,
2000. nª 03.
462
Conceito de ideologia usado por Antonio Gramsci. Cf.: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico;
tradução de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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Nesse sentido nosso objeto de estudo são as representações sociais463 do cangaço


reproduzidos no cinema brasileiro, entre as décadas de 1950 a 1970. A proposta seria abordar
como uma sociedade urbana, posterior ao cangaço, o enxergou e as representações atribuídas
a ele a partir do imaginário urbano,464 tendo como fontes principais às películas “O
Cangaceiro” (1953) e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964). Essa filmografia somada às
outras fontes documentais, pretende apontar as formas de representações imputadas ao
cangaço nesse período.
Temos como objetivo compreender as representações sociais atribuídas aos
cangaceiros do Nordeste brasileiro, num contexto de desenvolvimento do universo cultural do
país, precisamente nas décadas de 1950 a 1970. Diante disso, possivelmente, teremos como
resultado a identificação de possíveis estereótipos dado ao Cangaço nesses filmes, observando
o contexto que o tema -Cangaço- foi inserido pelos cineastas da Vera Cruz e do Cinema
Novo, analisando as faces desse fenômeno social através do olhar cinematográfico.
No cinema o cangaço foi reproduzido, em sua maioria, a partir do conceito de
banditismo social. Nesse sentido a pesquisa se propõe observar as obras cinematográficas
sobre o esse tema, a partir do que se entende por banditismo social a partir de autores como
Hobsbawm465 apud Dória466. Segundo os autores o movimento banditismo social oscila entre
um fenômeno, o universal e forma de reação popular a um determinado sistema político e
econômico:

O banditismo social em geral, membro de uma sociedade rural, e por razões


várias, encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado e pelos grandes
proprietários. Apesar disso, continua a fazer parte da sociedade camponesa
de que é originário e é considerado como herói por sua gente, seja ele um
‘justiceiro’, um ‘vingador’, ou alguém que ‘rouba aos ricos’467.

Entretanto o conceito de cangaço usado para pensarmos este e suas representações


nas películas não pauta-se apenas na perspectiva do banditismo social. Estudaremos aqui um
fenômeno social, que ocorreu nos fins do século XIX a 1940, segundo a socióloga Maria

463
[...] tem como objeto principal identificar a forma como em diferentes lugares e momentos uma realidade
social é construída, pensada, dada a ler. Conceito de representações sociais usada na pesquisa é a definida por
Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações. Trad. Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
464
Ilusório, fantástico; fazer idéia sobre algo que não conhece. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Pp. 1077. No caso do urbano como a sociedade da cidade e de cotidiano urbano imagina, fantasiam o mundo
rural e como pode representá-lo.
465
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. São Paulo: Forence, 1972.
466
DÓRIA, Carlos Alberto. O cangaço. 2ª, São Paulo: Brasiliense, 1981.
467
Idem. Ibdem.

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468
Isaura P. de Queiroz, homens que viviam fortemente armados na região da caatinga do
sertão nordestino.
Nesse sentido iremos observar como essas relações e as ações do cangaço foram
cinematografas, analisando os possíveis estereótipos e as representações de sertão que nos
foram apresentados. Estudos como esses nos a compreensão da relação cinema e história e de
como um grupo intelectual urbano se apropriou de temas pertencentes ao mundo rural para
reproduzi-los cinematograficamente.

Um Cinema Nacional com enfoque no regional

A década de 1950 foi um período marcado por um conturbado jogo de interesses


políticos, reflexo de anteriores golpes e contragolpes e pela morte de Vargas.469 Esse
momento histórico para o Brasil, foi sinônimo de modernização e industrialização. Com o fim
da Segunda Guerra Mundial, em 1945, alterou-se significativamente o cenário internacional,
com a divisão do mundo em dois blocos político-militares liderados pelas duas superpotências
emergentes: Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS).
No Brasil, essas transformações foram se consolidando ao longo da década de
1950, e alteraram o consumo e o comportamento de parte da população que habitava os
grandes centros urbanos. A paisagem urbana também se modernizava, com a construção de
edifícios e casas de formas mais livres, mais funcionais e menos adornadas, acompanhadas
por uma decoração de interiores mais despojada, segundo os princípios da arquitetura e do
mobiliário moderno.
Através da propaganda veiculada pela imprensa escrita, é possível avaliar a
mudança nos hábitos de uma sociedade em processo de modernização: produtos fabricados
com materiais plásticos e/ou fibras sintéticas tornavam-se mais práticos e mais acessíveis.
Consolidava-se a chamada sociedade urbano-industrial, sustentada por uma política
desenvolvimentista que se aprofundaria ao longo da década, e com ela um novo estilo de vida,
difundido pelas revistas, pelo cinema, sobretudo norte-americano, e pela televisão introduzida
no país em 1950.
Essa bipolaridade mundial também representou uma disputa ideológica entre
Soviéticos e Norte-americanos, no qual o cinema transpareceu o melhor veiculo de

468
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15.
469
CARONE, Edgard. A Quarta República (1945 – 1964). São Paulo: DIFEL, 1980, pp. 03 – 33. (corpo e alma
do Brasil)

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comunicação. Entre 1950 e 1970 houve grande inserção do cinema norte-americano no Brasil,
tornado-se um modelo a ser copiado, tanto na estética quanto o modelo de vida, moda,
político e de modernização, fazer cinema significava industrialização e desenvolvimento para
o país e um bom negocio para os investidores.
Nesse contexto pós-guerra o país seguia a tendência da “boa vida americana”,
inspirada no cinema hollywoodiano470, não tardando o cinema paulistano apareceu no cenário
cinematográfico nacional e algumas companhias de peso foram fundadas no Estado. A
Companhia Vera Cruz, a Maristela e a Multifilmes surgem num momento em que o cinema
brasileiro estava voltado para as chanchadas cariocas, o que conferiu ao cinema paulista um
tom de renascimento.
Nesse período foram criadas outras instituições culturais, como o Museu de Arte
Moderna, o Teatro Brasileiro de Comédia e depois fundaram a Cia. Cinematográfica Vera
Cruz em 4 de Novembro de 1949. Nos vinte primeiros anos do cinema falado, a produção
paulista foi quase inexistente, enquanto que a carioca se consolidou e prosperou as famosas
chanchadas da Atlântida.
Iniciou-se o processo de grandes produções cinematográficas no Brasil, a primeira
delas da Vera Cruz “O Cangaceiro” de Lima Barreto abriu as portas para um novo estilo de
filmes brasileiros, o estilo Nordestern.471 Essas produções demonstraram que também
tínhamos o nosso bang bang, filmes que seguiram a tendência dessa modalidade, a do
vaqueiro norte americano, defensor da lei e da ordem. Segundo Tolentino472 esta foi à forma
que retrataram o cangaço no filme de Lima Barreto (1953).
O nosso Nordestern inseriu o Brasil nas produções cinematográficas do bang
bang, além de aventura, romance e ação os filmes sobre o cangaço trouxeram, certamente,
tipos e estereótipos, ou seja, o sertanejo que tendia a ser um bandido social era mestiço e
selvagem, o brasileiro original. Nosso “vaqueiro” estereotipado atendendo aos interesses de
uma burguesia paulista e propagava um modelo de cinema que refletia hegemonicamente os
interesses dos EUA.
Avaliando os filmes do ciclo do cangaço como “O Cangaceiro” teremos diversas
interpretações sobre esse sujeito histórico, considerando que a transformação de personagens

470
Hollywood centro industrial cinematográfico Norte Americano.
471
Criação do pesquisador potiguar-carioca Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923 – 2000), tal neologismo fora
utilizado para identificar filmes com a temática rural e principalmente sobre o Cangaço feitos no Brasil. A
película O Cangaceiro (1953), certamente, atende a esse estilo.
472
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira . O Rural no cinema brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Editora da UNESP,
2001.

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como Lampião e Corisco em heróis ou bandidos no imaginário urbano e rural, possivelmente,


corresponde à coragem destes no enfrentamento com a polícia.
O filme narra a história de um bando de cangaceiros que semeia o terror pelo
sertão nordestino. Em seu comando está o temido Capitão Galdino Ferreira (Milton Ribeiro) e
sua companheira Maria Clódia (Vanja Orico). Eis uma nítida referência ao famoso casal de
cangaceiros Virgulino Ferreira e Maria Bonita. O filme mostra o conflito entre dois
cangaceiros por conta de uma professora raptada a quem um deles pretende libertar por amor,
tornou-se um clássico. 473
Cineastas como Barreto levaram os personagens do sertão nordestino ate o
imaginário urbano, o nosso bang bang ganhou o mundo e o Brasil produziu inúmeros filmes
do estilo nordestern, contudo isso foi contraposto na Obra de Glauber Rocha em 1963 com o
seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
A película de Glauber Rocha, e o seu Cinema Novo, nos trazem uma linguagem
cinematográfica diferente e complexa. Aqui o cangaço foi apresentado como dois caminhos, o
do bem e o do mal, no qual o cangaço, possivelmente, apareceu como uma opção àquela
realidade e uma reação. Os personagens centrais do filme trabalham com o Messianismo e
com o cangaço numa perspectiva de banditismo social, os sertanejos que optaram pelo
cangaço e pelo messianismo serão perseguidos pela igreja e pelos latifundiários, já que ambos
ameaçaram a hegemonia474 dos coronéis e da igreja no sertão nordestino.
O argumento de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é uma síntese de fatos e
personagens históricos concretos como: o cangaço e o mandonismo local dos coronéis no
Nordeste; perpassando o beatismo ou misticismo de base milenarista; a literatura de Cordel; e
personagens que representaram Lampião e Corisco, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa,
Antônio Conselheiro e Antônio das Mortes (jagunço ou assassino de encomenda de Vitória da
Conquista).
O Cinema novista de Rocha e a tendência nordestern de Barreto inseriu um
mundo regional no cinema brasileiro, temáticas rurais invadiram as telas brasileiras levando
personagens como Lampião, Corisco e Antonio das Mortes ao imaginário popular. Diante
desses personagens que falam de um mundo arcaico e abandonado pelo Estado, caracterizado
pela seca e miséria podemos identificar algumas representações sociais atribuídas ao cangaço
no cinema brasileiro, analisando as produções da Vera Cruz e do Cinema Novo. Além disso,

473
Fonte: Diário do Grande ABC (www.dgabc.com.br)
474
Relativo à hegemonia; para maiores informações: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histórico; tradução
de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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observamos características do bang bang americanizado, do sertanejo como sumo da


brasilidade, uma raça mestiça menos evoluída. Esses filmes, certamente, representam o
cangaceiro como um produto autêntico brasileiro, o qual trás como possibilidade, a discussão
de temas como a identidade nacional fundamentada no regionalismo.

As duas faces do Cangaço

O Cangaço representou nosso bang bang em Cannes e uma nova estética de


nordeste no Cinema Novo, contudo alguns autores (as) da área de História e Comunicação
contribuíram nesse debate, a exemplo da professora Célia Tolentino. Segundo a autora
Tolentino475 a obra do cineasta Lima Barreto em sua essência dialoga de forma maniqueísta
através de uma luta entre o bem e o mal. Valores como o progresso, as leis, a ordem são vistos
como algo bom e civilizado, enquanto a violência é caracterizada como a desordem -
considerada característica do mundo rural, que deve ser superada.
Já o autor Ismael Xavier faz a seguinte proposição sobre a película:

Letra branca em tela preta, a legenda situa no passado, e definitivamente no


passado, o universo de Teodoro e Galdino, personagens principais da
aventura. Antes de tudo, o cangaceiro é definido como personagem arcaico e
a estória já se anuncia como evocação de algo distante do qual estamos
irremediavelmente separados. Para se introduzir, o filme prefere à fórmula
‘era uma vez...’, mais confessadamente comprometida com a fantasia, a
fórmula do ‘quando havia’, onde o cuidado de confessar a ‘imprecisão’ da
época sela a preocupação em acentuar que um dado de realidade inspira o
filme. Produto da invenção, ele busca autenticar-se através dessa referência,
assumindo-se enquanto retrato de um tipo real humano, o cangaceiro, tal
como sugere o título. (...) O filme instala-se no nível do verossímil e não no
da veracidade histórica.476

Possivelmente Barreto não tinha compromisso com a história do Cangaço, o


objetivo do cineasta seria contar a história desse movimento com o intuito desta aguçar nosso
imaginário e enxergar nesses homens e mulheres bandidos/as ou heróis/ heroínas. Contudo,
devemos observar as formas de construção da obra e quem a construiu para compreendermos
as representações sociais atribuídas aos cangaceiros do Nordeste brasileiro, num contexto de
desenvolvimento do universo cultural brasileiro, precisamente na década de 1950.

475
TOLENTINO, 2001.
476
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Editora Brasiliense. 1983.

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Além dessas exposições sobre a obra de Barreto (1953), outro fator preponderante
foi a película de Rocha (1963), este explica sua criação da seguinte forma: “o que quis fazer
foi uma fábula com uma lição de moral. Dentro da fábula, tudo é permitido, porque aquilo
está dentro do Nordeste. A cultura do Nordeste é aquilo, enrolado”.477
A película de Glauber Rocha, que pertenceu ao movimento do Cinema Novo478,
contrapõe o filme de Barreto (1953), nele o cangaço foi representado como alternativa para o
sertanejo. De acordo com o cineasta o homem rural do sertão não tinha direito e a justiça
funcionava apenas a favor dos coronéis. Cada personagem do filme trás um tipo de
representação e neles se reflete a visão de uma sociedade sob um mundo tido como selvagem,
bárbaro e miserável. Esse ponto de vista também tinha um cunho ideológico segundo Silva
Jr.,

Além de ser um movimento artístico/cultural, o Cinema Novo era a


expressão de militância de um grupo de intelectuais interessados em atuar
politicamente. Nesse sentido, a câmera torna-se um instrumento que serve
para perscrutar a realidade social e para propor soluções e que, em última
instância, tinha como meta estimular um processo revolucionário. 479

Analisando o artigo do autor Silva Jr. entendemos que, ao contrário do cinema


produzido pela Vera Cruz, a película “Deus e o Diabo na Terra do Sol” trouxe uma discussão
mais politizada, reflexo da conjuntura sócio – política da década de 1960/70. O filme
representaria no ciclo do cangaço um diferencial, pois evidenciaria os problemas do sertão, a
seca e o banditismo social como uma contraposição à República Oligárquica da época
contemporânea ao Cangaço, demonstrando traços militantes dos produtores e cineastas
pertencentes ao Movimento do Cinema Novo.
Tendo em vista que as relações entre a historiografia e o cinema sejam recentes,
alcançando seu espaço na discussão historiográfica efetivamente a partir do movimento dos
Annales, o uso da imagem e do audiovisual tornou-se uma das principais referências de
conhecimento histórico no mundo contemporâneo. De acordo com Nova480, desde o
surgimento do cinema, em 1895, ele está ligado à história da humanidade, porém, por falta de

477
LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: Ed. Universitária/ FUNAPE/UFPb, 1982, p. 39.
478
Movimento de jovens frustrados com a falência das grandes companhias cinematográficas paulistas
resolveram lutar por um cinema com mais realidade, mais conteúdo e menor custo. Na primeira fase desse
movimento, trabalharam com temas voltados ao nordeste e os problemas que a região abrigava.
479
SILVA Jr. Humberto Alves. Glauber Rocha: arte, cultura e política. In: O olho da História, Revista n° 09.
Bahia, dezembro de 2006.
480
NOVA, Cristiane. “O cinema e o conhecimento da História”. In: O olho da História, Salvador: UFBA, 2000.
nª 03.

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embasamento teórico, não foi devidamente explorado.

Contudo para entendermos as formas que foram reproduzidas o cangaço, torna-se


importante atentarmos para as possibilidades do filme como documento histórico, e a relação
cinema – história. Nessa perspectiva consideramos inicialmente o que foi a criação da Vera
Cruz para a década de 1950/60.
Segundo Leite as obras reproduzidas e exibidas pela Vera Cruz, não respondia
apenas a intensidade de atividades culturais na cidade de São Paulo, a empresa tinha como
meta satisfazer a elite paulistana que a dirigia, o cinema brasileiro não poderia mais
cinematografar um país mulato, festivo e atrasado, essa estética não correspondia as
aspirações dessa elite, estaria na hora de inovar. A Vera Cruz de acordo com o autor seria um
contraponto as produções cinematográficas da época.
Essas análises colocadas pelos autores e autoras citados (as) nos mostram o
cinema tanto como instrumento de ideologias, tanto como documento, e o cangaço tanto como
reação ao sistema excludente, como uma criação das classes dominantes para alimentar a
mentalidade regionalista conservadora. Borges481 nos faz refletir sobre o uso do cinema como
documento, porém nos adverte que, para isso ser possível, o (a) historiador (a) deve ter
domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica.
Diante disso observemos uma pesquisa recente, da historiadora francesa da arte,
Élise Jasmim482, faz uma avaliação do cangaço e de seus líderes Lampião e Corisco tendo
como fontes a literatura de Cordel e o Cinema Novo, que os transformaram em heróis.
Jasmim percebe na imagem uma arma utilizada pelos bandidos sociais. Segundo a autora,
Lampião com os registros fotográficos e filmados mostra coesão do grupo e lança ao mundo,
principalmente aos seus perseguidores, imagens de dignidade e uma postura de desafio.
Neste parâmetro de ‘clandestinidade exibida’483 dos cangaceiros, podemos
observar uma espécie de gênese da manipulação da imagem, por parte dos grupos –
considerados criminosos. Da mesma forma que eles usavam este meio de comunicação para
desafiar seus adversários - e mostrar que a vida levada por eles e elas tinha um sentido na qual
o cangaço seria uma alternativa - as fotos das cabeças cortadas dos cangaceiros, na ótica desta
iconografia, representavam uma resposta violenta às provocações de Lampião.

481
BORGES, Eduardo José Santos. Vida e Obra do Ciclo baiano de Cinema (1959-1965). Dissertação de
mestrado em História UFBA. Pp. 11.
482
JASMIM, Elise; Le nordeste du brésil, une région malade du cangaço -Lampião: entrave a un projet de nation
unie et civilisée; Francês; Português; Editora Universitária UFPE; Recife.BRASIL; 1; 28.
483
Idem ibdem.

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Acompanhando os raciocínios de Jasmim e de Nova484 todo o filme é um


documento. Logo, as imagens feitas nos filmes “O Cangaceiro” e “Deus e o Diabo na Terra
do Sol” podem explanar um mesmo tema, porém evidencia representações sociais diferentes,
possivelmente, as que correspondiam ao do seu tempo. Temos então a fotografia e o cinema
como instrumento de intermediação entre o cangaço e seus inimigos, de acordo com Jasmim
tal mecanismo nos faz ver uma singularidade em Lampião, pois cuidava da sua aparência e a
do grupo, fazendo encenação em torno de sua pessoa e atividade. Neste sentido, sua análise
através da imagem e do cinema, numa perspectiva histórica, é possível.

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Artigos e Dissertações:

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VI, nª 39, 2006, p. 86-89.
ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz. Cabra macho Sim Senhor. In: Revista Nossa História.
Março, 2005, p. 50-58.
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Dissertação de mestrado apresentado ao programa de pós-graduação em História Social da
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Filmografia:

O Cangaceiro
Longa-metragem / Sonoro / Ficção; Ano: 1953; Cidade: São Paulo- SP/ BR; Gênero: Drama;
Companhia(s) produtora(s): Companhia Cinematográfica Vera Cruz S.A.;

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Financiamento/Patrocínio: Banespa - Banco do Estado de São Paulo S.A.;Gerente de


produção: Silva, Cid Leite da; Companhia(s) distribuidora(s): Columbia Pictures; Roteirista:
Barreto, Lima; Direção: Barreto, Lima.

Deus e o Diabo na Terra do Sol


Ficção, longa-metragem, 35mm, preto e branco. Rio de Janeiro, 1964, 3.400 metros,125
minutos; Companhia produtora: Copacabana Filmes; Distribuição: Copacabana Filmes;
Lançamento: 10 de julho de 1964, Rio de Janeiro (Caruso, Bruni-Flamengo e Ópera);
Produtor: Luiz Augusto Mendes; Produtores associados: Jarbas Barbosa, Glauber Rocha;
Diretor de produção: Agnaldo Azevedo; Diretor: Glauber Rocha; Assistentes de direção:
Paulo Gil Soares, Walter Lima.Jr.; Argumentista: Glauber Rocha; Roteiristas: Glauber Rocha,
Walter Lima Jr.; Diálogos: Glauber Rocha, Paulo Gil Soares.

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HISTÓRIA SOCIAL DO USO DA INTERNET: REFLEXÕES SOBRE A


FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL DE JOVENS EM FASE DE
ESCOLARIZAÇÃO

Vinícius Silva Santos


Universidade do Estado da Bahia
vinnymil@yahoo.com.br
Antônio Vital Menezes de Souza
Universidade Federal de Sergipe
a.vmsouza@yahoo.com.br

O uso da internet como dispositivo sociotécnico capaz de imprimir nas novas gerações,
maneiras diferenciadas de convivência, relacionamento, pertencimento social e aprendizagem
cultural vem constituindo novos espaços de debates sobre a história social das mídias
contemporâneas. O surgimento de uma nova cultura juvenil baseada nas interações sociais,
mediadas pelas infovias, tem gerado inquietações a respeito do registro historiográfico na
investigação em ciências sociais a respeito de elementos do cotidiano. Esta pesquisa tem
como objetivo identificar os processos de apropriação e uso da Internet como dispositivo de
formação cultural, utilizados por jovens sergipanos com idade entre 12 e 22 anos, em fase de
escolarização, de modo a documentar e analisar interesses comuns, concepções, conceitos e
idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet como dispositivo de formação
sociocultural. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas
da pesquisa. Briggs e Burke (2006), Mcluhan (1999), Castells (2002), Costa (2002), Cardoso
(2007), Lèvy (1998; 1999), De Certeau (1996), são os principais referências utilizadas. Por
fim, essa pesquisa explora a produção da história social da mídia no estado de Sergipe.

Palavras-chave: História Social da Mídia, Internet, Cultura Juvenil

INTRODUÇÃO

A invenção da internet tornou-se um grande marco na construção cultural da vida


humana. O surgimento da rede mundial de computadores é visto como um fenômeno
importante para compreender as mudanças ocorridas na formação sócio-cultural dos atores

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sociais na contemporaneidade. Desde então, as interações sociais cotidianas vêm despertando


o interesse de cientistas sociais, educadores e filósofos de modo a tornar urgente a produção
de pesquisas cada vez mais direcionadas aos aspectos menores da vida social.
Nessa perspectiva, a produção de análises microssociológicas das interações
partilhadas entre diferentes atores sociais permite a aproximação progressiva de pesquisadores
às novas formas de sociabilidade, agora, demarcadas por uma esfera tipicamente virtual. A
troca simbólica e os diferentes feixes de sentidos de agrupamentos sociais dão à formação
antropológica uma adjetivação específica: formação antropológica midiática. Tais processos
se instauram como resultado de um acabamento sociotécnico vivido no cotidiano das pessoas
que influencia a explosão de formas de ser, habitar, conviver, e, sobretudo, formas de
relacionamentos sociais na cena pública das instituições. Porquanto, faz-se necessário situar
as origens da construção desse aparato tecnológico, através da discussão sobre o uso social da
internet, avaliado por muitos pesquisadores como o grande acontecimento ocorrido nos
últimos cinqüenta anos do século XX (BURKE, 2006).
O uso da internet como dispositivo sociotécnico capaz de imprimir nas novas
gerações, maneiras diferenciadas de convivência, relacionamento, pertencimento social e
aprendizagem cultural, vem constituindo novos espaços de debates sobre a história social das
mídias. Nesse cenário, o surgimento de uma nova cultura juvenil, baseada nas interações
sociais mediadas pelas infovias, tem gerado inquietações a respeito do registro historiográfico
na investigação em ciências sociais a respeito de elementos do cotidiano.
Este artigo tem como objetivo apresentar elementos conceituais e metodológicos,
relacionados a uma pesquisa em fase de desenvolvimento, intitulada História Social do Uso
da Internet na Microrregião de Itabaiana que tem como objetivo identificar os processos de
apropriação e uso da Internet como dispositivo de formação cultural, utilizados por jovens
sergipanos com idade entre 12 e 22 anos, de modo a documentar e analisar interesses comuns,
concepções, conceitos e idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet como
dispositivo de formação sociocultural. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada
às abordagens qualitativas da pesquisa, que será mais bem descrita posteriormente.

Uso Social da Internet e Cultura Midiática

A internet foi desenvolvida entre 1968 e 1969 pela ARPA – Administração dos
Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Durante a
Guerra Fria através dos militares surge a primeira rede de transmissão de dados entre

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computadores, denominada de ARPANET - Advanced Research Projects Agency. Criada pela


ARPA, a ARPANET permitia a circulação de informações de forma segura. Nesse contexto, a
criação da internet teve sua origem através do desenvolvimento da fisica nos espaços da
produção científco-acadêmica e, sobretudo, pela necessidade do governo americano em
assegurar políticas de defesa e segurança de informações durante o período de guerra. Assim
sendo, a internet surge como rede limitada de compartilhamento de informações entre o
governo e as universidades visando a segurança nacional. Entretanto, encontramos nessa
relação o aparecimento de sistemas cada vez mais complexos que permitiam o
compartilhamento de informações entre pesquisadores de universidades. Cabe destacar que o
envio de informações codificadas, denominado mais tarde de transferencias de pacotes, já
fazia parte da construção do projeto de internet antes mesmo da sua utilização pelas
universidades.
Todavia, o crescimento exponencial da internet fora das universidades dependia
do reconhecimento de sua importancia comercial e valor social que previa mudanças no
campo da comunicação. Burke (2006) destaca que o crescimento acelerado da rede mundial
de computadores acaba por mascarar alguns acontencimentos que são importantes para
compreender a construção histórica desse aparato tecnológico. Segundo Burke (idem: p. 303)
um dos principais acontecimentos ocorreu no ano de 1996 quando se reuniram o presidente
dos Estados Unidos, na época Bill Clinton e o vice-presidente Al Gore, além de outras
autoridades, para inaugurar a ligação de telefones fixos das salas de aula da Califórnia, através
da internet. Na oportunidade o presidente da Estados Unidos denominou a internet como o
quadro negro do futuro. Com efeito, somente na década de 90, mais precisamente entre 1993
e 1994, a internet deixa de ser um aparato utilizado para pesquisas nas universidades e passa a
ser utilizada por usuários de diferentes matizes sociais. Esse modelo de comunição é tido
como marco inicial para o maior fenômeno midático do século. É a partir de uma maior
divulgação pública que a rede coletiva ganhou adesão de usuários, empresas e intelectuais,
chamada desde então de Word Wide Web.
Esse modelo de troca de informações fez surgir novas formas de interação entre o
homem e a máquina(CASTELLS, 2002). Emerge, a partir dessa tendência, a necessidade de
pensar um cotidiano demarcado pela cultura tecnológica, mediante a qual a relação homem-
máquina deve ser pautada no movimento de criação e transformação, extrapolando, assim, o
caráter meramente técnico atribuído à internet. Costa (2003) estabelece algumas análises
sobre essa nova forma de interação social. Trata-se da apresentação de mudanças ocorridas no
campo da comunicação, na qual o ambiente virtual e o processo de interatividade, ocorridos

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através da internet, devem ser seriamente analisados. De pronto, ao se tratar dessa nova
cultura digital, faz-se necessário observar as mudanças de comportamento humano,
caracterizadas pela interação com os meios tecnológicos, ou em outras palavras, aquilo que
podemos denominar de tecnocultura.
A tecnocultura pode ser definida como fenômeno mediador entre o homem e o
mundo social. Essa mediação dá-se através dos artefatos sociotécnicos de forte expressão
cultural que altera características fundamentais das interações sociais humanas em relação
ao tempo, ao espaço e, conseqüentemente, afeta a produção da subjetividade e a percepção
da experiência cultural vivida em tais espaços (COSTA 2003).
Essa nova cultura tecnológica é denominada por Lévy (2000) de cibercultura e
tem como pressuposto uma mudança do modo de vida humano, caracterizada, sobretudo, pela
influência da cultura digital. É importante destacar que o termo cibercultura é relacionado ao
conceito de ciberespaço. Em A inteligência coletiva (1998), Lèvy define o ciberespaço como
espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores, onde transitam
informações provenientes de fontes digitais, ou seja, um ambiente virtual de
compartilhamento de informações entre pessoas interconectadas.
Costa (2003) faz uma abordagem historiográfica dos elementos da tecnocultura e
sua influência na vida cotidiana das pessoas. Este autor discute as mudanças ocorridas no
campo da comunicação e a crescente interação de diferentes indivíduos em ambientes virtuais,
destacando o processo de interatividade ocorrido através da internet, quer seja na inserção
e/ou participação de usuários em comunidades virtuais, na portabilidade de telefonia móvel
digital, no consumo de programação de TV digital e, inclusive, nos vários formatos WEB dos
veículos de comunicação de massa (WebTv, Webjornalismo, Webrádio etc). Assim sendo, a
cultura digital é eminentemente resultado de uma sociedade em acelerado desenvolvimento
tecnológico. Nesse caso, a tecnologia ganha lugar de destaque em discursos relacionados à
educação, à sociabilidade e à formação cultural de sujeitos sociais.
Nesse sentido, Lima Jr (2006) chama atenção para o emprego do termo tecnologia
como processo humano, ratificando a desmistificação de um ideal mecânico, tecnicista,
instrumental do desenvolvimento tecnológico. Então, faz-se necessário entender os processos
de constituição do desenvolvimento humano através das transformações exercidas pelo
homem na sua relação com as tecnologias. Segundo o autor “trata-se de uma relação onde o
ser humano transforma a realidade da qual participa e, ao mesmo tempo transforma a si
mesmo” (LIMA JR. 2005, p.15). Para nós, é imprescindível destacar a articulação entre o

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conceito de tecnologia e de interação social mediada pelos aparatos sociotécnicos da internet


na qual a perspectiva intercultural das micropráticas reconhece o caráter complexo presente
nas relações estabelecidas entre os sujeitos.
Desde a primeira metade do século XXI, o surgimento da internet fez surgir
possibilidades do ator social estabelecer modos de convivência e relacionamentos sociais cada
vez mais variados em sentido e intensidade. Chamamos de modos de convivência o conjunto
de performances desenvolvidas pelos atores sociais para constituir, fundar e desenvolver suas
relações com membros de diferentes nichos sociais485. Nesse caso, os relacionamentos sociais
vão delineando redes de interatuações nas quais a intersubjetividade se torna elemento central
que tipifica, delineia e institui a existência de modos de convivência variados em sentido e
intensidade. A produção de sentido torna-se, então, uma produção intensiva, que se exprime
como elemento de forte tensão, dentro do qual os significados atribuídos às redes de
relacionamento social, vão constituindo um estilo próprio em cada usuário, quanto aos
processos de inserção, trânsito, absenteísmo 486 e abandono do grupo social originário487.
Por conseguinte, o pertencimento social negociado na sociabilidade dos atores
através do uso da internet ultrapassa os limites geográficos do nativismo (língua, berço,
cultura e experiência de grupo originário). São nas atividades cotidianas de interação,
mediadas pelas vias da rede mundial de computadores, que os atores sociais vão produzindo
novas lógicas de sentido quanto ao que costumeiramente se denomina familiar. Trata-se de
trazer à tona o defrontamento do ator social com as questões do insólito. O estranho acaba
seduzindo o familiar e nele se engendrando como política de sentido, operacionalizando
flutuações de processos de identificação, reconhecimento e pertença. A noção de nativismo
amplia-se através das experiências de significação dos atores sociais. Em detrimento ao
aspecto estrutural, a linguagem se torna evidente, através das trocas simbólicas efetuadas nos
espaços da interação midiática, particularmente na internet. Para nós, a linguagem é
constituída pelos atores sociais no cotidiano de suas experiências práticas, mas é por eles
também constituída. Em outras palavras, a natividade resulta na travessia dos atores sociais
dentro do universo da produção da linguagem que é instituída por eles e neles se manifesta
como experiência instituinte.

485
O que corresponde à idéia de agrupamento, lugares sociais demarcados pela legitimação de culturas
específicas.
486
A idéia segundo a qual os atores sociais se ausentam das redes de relacionamento social, mas não as
abandonam definitivamente.
487
Essa idéia é válida, também, para as questões das redes sociais de relacionamento oriundas da Internet.

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Então, a aprendizagem cultural torna-se importante prática social a ser mais bem
investigada pelas ciências humanas. Não é verdade que a aprendizagem cultural resulte
apenas da influência de fatos sociais, externos, coercitivos e generalizáveis, ao critério
funcionalista. A exterioridade das práticas sociais delineia não apenas os aspectos
supracitados, mas, também, o uso, a inserção e a apropriação direta de atores sociais sobre os
objetos sociotécnicos de determinada cultura, numa dinâmica mais ativa, na qual a
reflexividade dos atores sociais se manifesta, exprimindo a natureza complexa das
interatuações negociadas entre os mesmos. A aprendizagem cultural, então, resulta de um
intrincado processo de interação com objetos, símbolos, comportamentos, crenças e sentidos
de diferentes atores sociais em circunstâncias sociais historicamente vividas através da
experiência(STEPHENS, 1993). Trata-se de um processo de vivência não superficial onde os
elementos da cultura são partilhados, utilizados e manipulados mediante as trocas sociais,
sendo que, nesse processo, não apenas se multiplicam os sentidos partilhados, como também,
muitos deles são abandonados, ressignificados e/ou articulados uns aos outros a tal ponto que
se apresentam como novos, inéditos, singulares. Para nós, o olhar das ciências humanas deve
se voltar para essa natureza multiforme, inédita, construtiva e constituinte das interações
vividas no tempo presente.
O surgimento de uma nova cultura juvenil tem gerado inquietações a respeito do
registro historiográfico de elementos do cotidiano. Na cultura digital, interações sociais
cotidianas são exercitadas de modo intenso por jovens através da utilização, exploração e
desenvolvimento de instrumentos tecnológicos de informação e de comunicação cada vez
mais sofisticados. No cenário social, encontra-se um crescimento vertiginoso de acesso às
tecnologias da informação e da comunicação por parte de populações juvenis. Em pouco
tempo, ocorreram fenômenos como as Lans Houses, centros de entretenimento, espaços de
interação digital (bancos, empresas, televisão, rádio) que se propagam com uma velocidade
impressionante (CARSOSO, 2007).
O uso e a exploração de variados instrumentos sociotécnicos tornam públicos
interpretações de cenários que exigem novos conceitos, novas maneiras de interpretar,
analisar e conceber as realidades sociais. A perspectiva construcionista, firmando a
importância de se voltar mais aos processos de produção da realidade social do que aos
produtos de tal fenômeno, imprime ao legado das ciências humanas, uma enorme
contribuição: a vida social é produzida e reinventada cotidianamente. A estática social sofre
influências das ações, crenças, comportamentos e sentidos atribuídos pelos atores sociais
sobre seu cotidiano (DE CERTAU, 1996). Sobremaneira, o processo de apropriação de

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artefatos sociais ligados às tecnologias da informação e da comunicação caracteriza o tempo


presente.
Segundo o Ibope/NetRatings o número de usuários da internet, no Brasil, chega a
41,5 milhões de internautas ou 59 milhões segundo o DataFolha. Ambos os institutos
consideram apenas os internautas maiores de 16 anos. Nas áreas urbanas, 44% da população e
97% das empresas brasileiras estão conectadas à internet . Os internautas residenciais ativos
chegam a 23,7 milhões de pessoas que acessam regularmente a Internet de casa,
correspondendo a um aumento de 28% de julho de 2007 a julho de 2008. Segundo a Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD do IBGE) que apresenta indicadores referentes
às características gerais da população, migração, educação, trabalho, famílias, domicílios e
rendimento, 20% das residências brasileiras têm acesso à internet. Nesse sentido, vale
destacar que o ritmo de crescimento da internet brasileira é intenso. A entrada da classe C
para o clube dos internautas deve continuar a manter esse mesmo compasso forte de aumento
no número de usuários residenciais.
Outro dado curioso é o tempo de navegação divulgado pelo CETIC488. Desde que
esta métrica foi criada, o Brasil sempre obteve excelentes marcas, estando constantemente na
liderança mundial. Em julho de 2008, o Brasil quebrou seu próprio recorde, com 24 horas e
54 minutos de tempo de navegação por pessoa. O Brasil está à frente de países como
Alemanha (21h06m), EUA (20h50m), França (20h17m) e Japão (19h21m). Nota-se que no
documento Retratos da Leitura (2008), divulgado pelo instituto pró-livro o tempo dedicado
por semana à leitura tendo a internet como suporte preferido chega a 2 horas e 24 minutos
perfazendo um percentual de 28,9 milhões de usuários. Observe-se:

488
O Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação é responsável pela
produção de indicadores e estatísticas sobre a disponibilidade e uso da Internet no Brasil, divulgando análises e
informações periódicas sobre o desenvolvimento da rede no país.

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Portanto, o uso da internet em escala crescente pelas novas gerações imprime


novos rumos à interpretação científica do fenômeno da sociabilidade e das interações sociais
na cultura digital. Podemos destacar três motivos que respaldam essa assertiva. O primeiro
deles concentra-se na necessidade de análise do uso da internet como fenômeno de escala
mundial (ou planetária). O segundo motivo evoca o desenvolvimento das novas gerações
através de fenômenos sociais difusos, constituídos de natureza multiforme, não cíclica e
previsível. O terceiro e último motivo constitui-se em matéria de interesse aberta aos
historiadores, economistas, educadores, cientistas sociais, filósofos etc., na
iminência/emergência de um tratamento interdisciplinar.

Horizontes Heurísticos e Metodológicos da Pesquisa

Nessa pesquisa o problema central a ser investigado são os processos de


apropriação e uso da Internet como dispositivo de formação sociocultural. Nesse sentido,
interessa-nos as concepções, conceitos e idéias partilhadas por um grupo de jovens (30
usuários com idade entre 12 a 22 anos) oriundos da classe trabalhadora, em fase de
escolarização, dentro do Estado de Sergipe, a respeito do uso da internet como dispositivo de
formação sociocultural. Questionamo-nos, portanto:

Quais são os processos de apropriação do grupo de adolescentes oriundos da


classe trabalhadora, em fase de escolarização, dentro do Estado de Sergipe, a
respeito do uso da internet como dispositivo de formação sociocultural?
Quais são seus interesses comuns? Quais concepções, crenças e idéias
partilhadas por tais atores sociais?

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Esta pesquisa tem como objetivo identificar os processos de apropriação e uso da


Internet como dispositivo de formação cultural, utilizados por jovens sergipanos com idade
entre 12 e 22 anos, em fase de escolarização, de modo a documentar e analisar interesses
comuns, concepções, conceitos e idéias partilhadas pelo grupo a respeito do uso da internet
como dispositivo de formação sociocultural.
Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas
da pesquisa e ao método etnográfico. O paradigma que norteia essa pesquisa é o
interpretativo. O paradigma interpretativo tem por base a fenomenologia e a hermenêutica.
Diferentemente da corrente paradigmática do positivismo, a construção nascida no seio da
fenomenologia, torna-se um avanço para a compreensão das atividades humanas e sociais.
Uma das manifestações dessa mudança ocorre graças ao espírito inquiridor de Husserl (1858-
1938). A partir de Husserl a ciência da realidade vai ser batizada pela ciência dos fenômenos,
inspirando que "toda consciência é consciência de alguma coisa". Nesse contexto, a produção
do conhecimento e, conseqüentemente, a formulação e o desenvolvimento do método, dá-se a
partir da relação do sujeito com seu objeto, mediante uma interação notável. Assim o é que
Merleau Ponty (1945) acentua que não são as qualidades sensíveis que revelam as coisas, mas
o sentido que as habita na produção do olhar humano sobre o mundo.
A importância da fenomenologia e da hermenêutica como bases de sustentação
dessa pesquisa se justifica por três motivos fundamentais: (1) pela preocupação mais com o
processo que com produtos e pelo respeito à singularidade e subjetividade dos sujeitos nela
envolvidos; (2) por situar o pesquisador diante de fenômenos complexos, próprios aos
sujeitos, carregados de uma produção de linguagem ressignificadas por redes ininterruptas de
produção de sentidos; (3) por levar em conta as situações, as reações e as circunstâncias
particulares e interpessoais, nas quais se dá a experiência. Espósito (1997: 23) esclarece que o
foco não é o indivíduo, mas a própria rede de significação gerada a partir de suas
interatuações.
A natureza dessa pesquisa é qualitativa. A natureza qualitativa em pesquisa tem
incentivado uma produção intensa de estudos que privilegiam mais o processo de construção
do objeto de estudo do que seus resultados ou produtos finais. Chamamos esse tipo de
pesquisa de qualitativa para diferenciá-la da perspectiva quantitativa (de inspiração estatística
e lógico-matemática). A pesquisa quantitativa estabelece correlação e comparação de fatos
durante o processo de investigação, voltando-se à analogia e a estandardização (ou tabulação)
de fenômenos como elementos generalizáveis.

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Optamos, assim, pela escolha do método etnográfico no caminhar dessa pesquisa.


Por desejar imprimir às situações observadas e participadas, uma política de sentido que seja
radicalmente crítica, durante os processos de descritibilidade dos fenômenos e de suas
manifestações constitutivas, defendemos a possibilidade concreta do exercício dessa forma de
se abordar construí e representar o conhecimento e sua produção.
Essa pesquisa será realizada na microrregião de Itabaiana, Estado de Sergipe,
através das ações do SEMINALIS – Grupo de Pesquisa em Tecnologias Intelectuais, Mídias e
Educação Contemporânea da Universidade Federal de Sergipe no Campus Universitário Prof.
Alberto Carvalho. A escolha geográfica foi mobilizada por motivos centrais que em seu
conjunto delimitam a relevância e a pertinência das intenções de pesquisa aqui expostas. O
principal motivo instaura-se pela possibilidade de compreensão das diferentes realidades
geográficas, onde são produzidos e exercitados discursos diversos sobre usos da internet,
como dispositivo sociotécnico de formação cultural. Segundo Andy Hargreaves, o conceito de
geografia social da formação extrapola questões técnico-práticas e lhes insere uma perspectiva
político-social. Este autor vem discutindo as formas de controle que se instalam sobre o
estudo da formação cultural, situando explicitamente o espaço físico onde ela ocorre. Desse
modo, tal perspectiva assume três componentes que caracterizam o espaço sociogeográfico,
para sua análise: a marginalização social, a desinstitucionalização e a encapsulação simbólica
e, para nós, os elementos instituintes de novas realidades, quais sejam: a apropriação de
artefatos sociotécnicos, a inclusão sociodigital e as práticas de interações sociais que
culminam em novos cenários de sociabilidade.
Esse estudo está sendo realizado considerando três etapas distribuídas em
momentos básicos e interdependentes: (1) as produções e análise teóricas ou recensão de
literatura problematizada; (2) as entrevistas semidirigidas (individuais ou grupais) e (3)
registro de memorial escrito, caracterizando-se por momentos previamente organizados entre
o pesquisador e os sujeitos participantes da pesquisa.
O trabalho de campo se especifica pela observação e interação entre pessoas in
situ (Junker, 1960). Isto implica em delimitar onde essas pessoas estão descrevendo os
produtos de sua atividade e o conjunto das significações sociais atribuídas às construções de
sentidos que as dinamizam, sem perder de vista as trocas cotidianas vivenciadas nas
instituições humanas. Esse trabalho de campo é em realidade um trabalho com as
informações.
As informações, para Junker (1960:68) "são dados, sistematicamente traduzidos e
de acesso às raízes do conhecimento nas ciências sociais". A justificativa para se inserir na

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pesquisa a utilização de instrumentos no processo de coleta de informações se dá pela


necessidade do pesquisador de garantir o acesso aos elementos básicos que lhe permitem
exercitar a compreensão sobre o fenômeno de interesse social e científico. Sem os recursos
instrumentais e necessários a esse proceder, torna-se impossível ao pesquisador tornar
estranho, o habitual. Os principais instrumentos a serem utilizados são: a observação
participante ativa, o jornal de bordo, a entrevista intensiva (livre e semidirigida), o grupo
nominal ou focal e, principalmente, o relato (auto) biográfico, condensada no registro escrito
de um memorial. Por fim, essa pesquisa pretende explorar elementos ordinários que tragam à
tona novos significados para a devida documentação de momentos ímpares na produção da
história social da mídia no estado de Sergipe, em particular o uso da internet como dispositivo
de formação sociocultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O SISTEMA ÚNICO E DESCENTRALIZADO DE SAÚDE (SUDS) EM


SERGIPE ATRAVÉS DOS RECORTES DE JORNAIS

José Dias Junior – FSLF


diasjuniorse@yahoo.com.br

O Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS) foi criado no ano de 1987 antecedendo o
Sistema Único de Saúde (SUS) este por sua vez está completando vinte anos e foi instituído
legalmente na constituição de 1988. O SUS é fruto de reivindicações anteriores desaguadas na
VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de 1986 aglutinando entidades e pessoas com
objetivos e formas de manifestações articuladas no cenário social, econômico e político.
Destarte, o propósito desta comunicação é analisar através das notícias do Jornal da Cidade do
ano de 1987, a forma como se deu a implantação do (SUDS) em Sergipe identificando a
dinâmica utilizada e os atores que fizeram parte deste momento. A escolha do jornal da
Cidade se deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste
ano analisado.

Palavras - chave: Saúde, Sergipe, História.

O propósito deste artigo é analisar o processo de implantação do Sistema Único


Descentralizado de Saúde (SUDS) em Sergipe através das notícias do Jornal da Cidade do ano
de 1987. Isto é, qual foi a dinâmica e quem foram os atores que fizeram parte deste momento.
O SUDS antecede o Sistema Único de Saúde (SUS), este por sua vez está completando vinte
anos e foi instituído legalmente pelo o artigo 198 da constituição de 1988. O SUS é fruto de
reivindicações anteriores referendadas na VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de
1986, fórum composto por diversas entidades e pessoas com objetivos e formas de
manifestações articuladas no cenário social, econômico e político da década de 1980.
Nas ultimas décadas os Jornais vem se tornando objeto de pesquisa histórica como
forma de entender a política, o social, o econômico, o cultural, etc. O Jornal da Cidade em
1987 tinha 15 anos de existência e pertencia a família dos Francos, uma das mais políticas,
influentes e oligárquicas de Sergipe. A escolha do Jornal como principal fonte de pesquisa se

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deu devido à ênfase que o tablóide deu ao processo de implantação do SUDS neste ano
analisado e também pelo que diz a Maria Helena Capelato e Maria Ligia Prado:

“A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a


imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses
e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que
a tomam como mero veículo de informações, transmissor imparcial e neutro
dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se
insere.” (CAPELATO E PRADO, pg. 19, 1980).

Na década de 1960 o autoritarismo, o clientelismo e outras práticas sócio-políticas


de caráter tradicional que “indiferenciam o que é público do que é privado”, configuram um
obstáculo a constituição de uma sociedade moderna e democrática levando à permanência da
exclusão social e política dos segmentos populares. Setores estes que têm suas demandas
atendidas pela cooptação clientelista e assistencialista favorecendo grupos da elite e
particularistas em detrimento dos princípios do cidadão e da democracia. Entretanto o
alvorecer de novos atores sociais nos fins da década de 1970, marca o inicio de mudanças
significativas na construção da esfera pública brasileira, e em especial no campo saúde.
Dentre os atores e movimentos que contribuíram com a transformação da realidade nas duas
últimas décadas se destacou o da Reforma Sanitária fruto das reivindicações dos profissionais
de saúde articulados com o movimento popular e partidos políticos de oposição ao regime
militar. Este movimento sanitarista resistiu e disputou a conquista de direitos civis e sociais de
forma que vão ganhando força no processo político institucional, transformando “as carências
em práticas reivindicatórias” com êxito (COSTA, pg. 04, 2002).
Nos anos de 1980 com o “... surgimento de um rico tecido social emergente a
partir da aglutinação do novo sindicalismo e dos movimentos reivindicatórios urbanos, da
construção de uma frente partidária da oposição, e da organização de movimentos setoriais
capazes de formular projetos de reorganização institucional, como o Movimento Sanitário”
(Fleury, pg. 4, 2006) delinea-se o SUS inicialmente chamado de SUDS (Programa de
Desenvolvimento dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde) através do Decreto
nº 94.657 de 20 de julho de 1987. O SUDS unificaria os institutos já existentes em um só e
iria transferir recursos aos Estados e Municípios que se propusessem a criar conselhos
municipais ou estaduais de saúde reafirmando, mais uma vez, o princípio da participação.
Contudo, o SUDS começa a sofrer forte resistência no cenário nacional em
decorrência de fatores diversos: o fracasso do Governo Sarney em virtude do plano cruzado

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que não dera certo; a oposição dos diretores do Instituto Nacional de Assistência Médica e
previdência Social (INAMPS) que não queriam ter seu poder dirimido com o novo sistema;
oposição do segmento dos médicos empresários e de setores da política como é o caso do
Partido da Frente Liberal (PFL), etc. Assim sendo a implementação do SUDS foi
inviabilizada e com a confecção da Constituição brasileira em 05 de outubro de 1988 a qual
representa uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro é que se
estabelece um novo modelo de política instituindo e desenhando o SUS como sistema de
saúde pública do Brasil. (COSTA, pg. 03, 2002).
Em Sergipe o Prefeito de Aracaju era Jackson Barreto de Lima do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que ganhou a eleição no ano de 1985 com 66%
dos votos. O eleito contou com o apoio do Governador João Alves Filho do Partido da Frente
Liberal (PFL) derrotando o candidato Marcelo Déda filiado ao Partido dos Trabalhadores
(PT) que obteve 15,43% dos votos e Gilton Garcia do Partido do Desenvolvimento Social
(PDS) candidato da família Franco que ficou em terceiro lugar com 11,77%. Barreto
substituiu José Carlos Teixeira que tinha administrado de maio a dezembro de 1985, ou seja,
sete meses, pois, Teixeira entrou na Prefeitura Municipal fruto de um acordo entre o PFL e o
PMDB substituindo o interventor Heráclito Rollemberg que há anos administrava a cidade
(DANTAS, pg. 38, 2002).
No ano seguinte, 1986, Antônio Carlos Valadares filiado ao recém criado PFL foi
eleito Governador do Estado obtendo 48,24% dos votos com o apoio do recém saído
Governador João Alves Filho (PFL). Valadares derrotou José Carlos Teixeira (PMDB) que
era o candidato da família Franco e obteve 39,60% dos votos depois de um racha na sua
agremiação partidária na qual o prefeito de Aracaju, que era do mesmo partido de Teixeira,
foi apoiar Valadares (DANTAS, pg. 52, 2002).
Dentro desse contexto o SUDS chega oficialmente ao Estado com a vinda do
Ministro da Saúde Roberto Santos e do Ministro da Previdência e Assistência Social Rafael
de Almeida a Aracaju para assinatura do convênio de implantação do novo sistema de gestão
da saúde entre as três esferas do poder: Federal, Estadual e Municipal. (Jornal da cidade, 07
de agosto de 1987. Local. Pg. 3). Esse convênio institui o sistema de descentralização de
recursos da saúde, participação social e a unificação do Instituo Nacional de Assistência
Médica e Previdência Social (INAMPS), Instituto de Administração Financeira da
Previdência e Assistência Social (IAPAS), Serviço Especial de Saúde Pública (SESP),
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), Secretaria Municipal de Saúde
(SMS) e Secretaria Estadual de Saúde (SES) onde esta ultima passava a coordenar todo o

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processo.
O Prefeito da capital também assina o convênio para a implantação em definitivo
do Sistema Único e Descentralizado de Saúde do município de Aracaju. Com esta medida as
unidades de saúde que pertenciam ao Estado e funcionam na capital sergipana, passam a partir
de agora para a administração da prefeitura de Aracaju. (Jornal da cidade, 08 de agosto de
1987.)
Novas perspectivas surgem devido a implantação do SUDS, pois, com o convênio
as secretarias municipais de saúde passam a desempenhar a função antes exercida pelo
INAMPS e secretarias de Estado. Assim, a capital sergipana passaria a gerir sua própria
política de saúde, recebendo um volume maior de recursos financeiros e físicos aumentando o
seu potencial de atuação e a sua responsabilidade (Jornal da Cidade 20/08/1987, local).
No ano de 1987 a expectativa da chegada do SUDS era grande. A sociedade civil
aguardava o sistema, os funcionários do Inamps fizeram seminários e reuniões para debater e
entender o SUDS e a Reforma Sanitária. O Secretario de Saúde do município de Aracaju,
Gilmário Macedo, implantou os distritos sanitários, capacitou os profissionais de saúde e
criou os conselhos comunitários. O convênio entre a Prefeitura e o Ministério da Saúde e o
Ministério da Previdência Social chegou prometendo mudanças conforme mostra o jornal:

“ O Sistema Único Descentralizado de Saúde, resultado de recente convênio


assinado pelo governo de Sergipe e os Ministério da Saúde e da
Previdência social , deverá entrar , plenamente em atividade, nos próximos
cinco meses. Embora a maioria dos interessados desconheça, plenamente sua
finalidade tem-se como certa a melhoria do sistema de atendimento médico,
odontológico e hospitalar, à comunidade. Modernização e ampliação dos
laboratórios de saúde pública, saneamento básico e isonomia salarial, são
algumas das profundas mudanças que serão adotadas pelo referido sistema.”
(Jornal da cidade , 01/09/1987 sociedade, pg.6)

Essas expectativas foram demonstradas pelo Secretário Municipal de Saúde


Macedo o qual acredita que a unificação dos serviços médicos trará benefícios à população,
pois será feito um amplo trabalho de reforma, ampliação e reequipamento das unidades de
saúde do município, que passarão a terem melhores condições de atendimento. Além disso, o
convênio prevê a contratação de novos profissionais, por concurso público, a depender das
necessidades que o sistema apresentar. (Jornal da cidade, 14 de agosto de 1987. Política, Pg.
2). Já o Secretário de Estado Maia também vê perspectiva na implantação do SUDS, pois,

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para ele com a instalação do Sistema o atendimento será mais facilitado (Jornal da cidade, 10
de setembro de 1987.).
As lideranças sergipanas que tinham afinidade com o tema da saúde pública
parecem que estavam bastante articuladas com a discussão realizada na esfera nacional sobre
democracia, participação, reforma, saúde, etc, é o caso de Maia:

“O que me interessa mais de perto é a reforma sanitária ... há mais de 15


anos vem amadurecendo a idéia dessa reforma, que se fortificou ainda mais
na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada no Rio de Janeiro em
1986... a Reforma Sanitária consiste em um sistema unificado de saúde em
que o Estado vai gerir as ações de saúde, assegurando acesso universal
igualitário e gratuito das ações de serviços de saúde” (Jornal da Cidade
22 de julho de 1987 política, pg. 2)

Macedo segue os mesmos princípios democráticos para Aracaju sobre a reforma


sanitária e diz:

“Com referência à reforma sanitária de Aracaju, Gilmário Macedo


disse que as perspectivas são bastante promissoras desde quando a
idéia é descentralizar o sistema de Saúde do município procurando
oferecer condições adequadas de saúde à comunidade. A partir da
adoção de medidas dessa natureza nos teremos condições de adotar
medidas serias, sempre em consonância com a opinião do povo.”
(Jornal da Cidade, 20/11/1987, política).

Para coordenar a implantação e implementação do SUDS foi instalado o Conselho


Estadual de Saúde. Medida esta que estava de acordo com as propostas discutidas no cenário
nacional, pois o êxito do sistema estaria na descentralização e no controle social tendo o
conselho como um dos mecanismos mais importantes do sistema, conforme opinião do
Secretário Estadual de Saúde veiculada no Jornal da Cidade de 10 de setembro de 1987:
No decorrer da implantação do SUDS ocorreu uma reforma administrativa no
Governo do Estado, na qual o então Secretário Lauro Maia trocou de pasta, assumindo na
saúde Edney Freire Caetano. Com a efetivação da mudança, o novo secretário é visto pela
mídia sergipana como um gestor bastante qualificado para os desafios que estavam postos
para a saúde pública naquele momento já que ele teve marcante atuação quando presidiu a
Fundação Hospitalar (Jornal da Cidade 30 de setembro1987. sociedade pg. 06).

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O Conselho era presidido pelo secretário de Saúde, Edney Freire Caetano que
realizou um estudo preliminar dividido por grupos temáticos durante três meses como forma
de entender melhor a implantação do SUDS.
A chegada do sistema era esperada como solução das ações pontuais. É o que
afirma o novo Secretário de Estado da Saúde Caetano. Pois ele acreditava que com a
execução da Reforma Sanitária instrumentalizada pelo SUDS haveria melhorias no modelo
assistencial, proporcionando grandes benefícios à comunidade, acabando com as dificuldades
de acesso ao tratamento de saúde que a população enfrentava (Jornal da Cidade, 13 e 14 de
dezembro de 1987).
Como vimos nos discursos das autoridades gestoras do novo sistema, a
implantação do SUDS seria o inicio de uma nova era para a saúde no Brasil. Isto nos parece
uma visão idílica frente aos problemas que o país sofria como ingerência, miséria, falta de
habitação, falta de saneamento, etc, merecendo de nosso lado uma análise mais atenciosa.
Assim, ao tentar entender o significado desses discursos temos que perceber qual o contexto
em que eles estão inseridos, o que está nas suas entrelinhas ou como diria Foucault “O novo
não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Foucault, pg. 26, 1996) até por
que continua ele: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(Foucault, pg. 10, 1996).
Os atores aqui destacados estão a todo tempo relatando a importância do SUDS, a
sua eficácia, sua intenção social, seus benefícios, etc. Eles estão em sintonia com o que num
dado momento diz Campos: “Há certo consenso entre estudiosos de que o Sistema Único de
Saúde tem representado uma política favorável à construção da justiça social e do bem-estar
entre os brasileiros” (Campos, pg. 2, 2007).
Ao analisar a implantação do SUDS, com o seu mecanismo de unificação dos
sistemas que já existiam e a descentralização das ações, percebemos nos discursos dos
gestores e da opinião do próprio diário que foi criado uma expectativa de o SUDS ser a
grande solução para todos os problemas da saúde publica sergipana. Por exemplo, os
questionamentos sobre a saúde que se indagavam aos gestores, de imediato eles respondiam
que tudo seria resolvido com a implantação do SUDS. Seja a falta de profissionais na rede de
saúde, a falta de medicamentos nos hospitais, as dificuldades de acesso aos serviços ou a
melhoria das instalações e condições de atendimento aos usuários, etc.
A opinião do jornal deixa claro que com a assinatura do convênio iria melhorar
significativamente o perfil da saúde publica no Estado. Fato este curioso já que o Jornal

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pertencia a uma das famílias mais influentes politicamente de Sergipe e que saíram derrotadas
nas urnas para prefeito da capital e para Governador. Qual o interesse do tablóide em defender
e acreditar no SUDS? Será que algum acordo já estava em tela para as próximas eleições? O
diário tinha real independência ao ponto de não manipular nem intervir nas noticias?
É inegável a importância e os avanços do SUS que teve como precursor o SUDS.
Entretanto, apesar do diário pesquisado não demonstrar com clareza a diferença entre o
planejado e o que realmente foi realizado, fica evidente que em um país de dimensões
continentais e graves problemas sociais, conforme citamos, essas dificuldades no campo da
saúde não estariam resolvidas com a inicialização de um novo sistema de tamanha
complexidade. A conjuntura desfavorável da implantação distancia significativamente a
expectativa do garantido na norma do concretizado, ou seja, entre a visão altamente resolutiva
que os atores davam ao SUDS e o que no real pode ser feito. Isso nos leva a concordar com a
indagação que Campos faz:

“Como teria sido possível a constituição de uma política pública de saúde de


caráter universal, fortemente assentada em organizações estatais, e que vem
articulando uma ampla rede de atenção à saúde, em um contexto histórico
desfavorável?” (CAMPOS, pg. 2, 2007).

Frente os problemas de implantação do sistema que acabamos de mencionar o que


os atores nos seus discursos queriam proporcionar? Isso nos leva a indagar se eles, no caso
dos gestores, se utilizavam desses discursos para fugirem das cobranças que a população e os
trabalhadores faziam por melhores condições de serviços e trabalho respectivamente? Um dos
exemplos que nos induz a fazer essas reflexões é a própria previsão de implantação do
sistema, adiada para o ano subseqüente, mostrando as dificuldades de se implantar um sistema
de saúde complexo que tinha na sua proposta a alteração do papel dos entes federados
envolvidos e a forte relação interministerial que o sistema abarca.
Outro ator atuante neste período foi o Sindicato dos Médicos de Sergipe presidido
pelo patologista e líder sindical Nestor Piva que tinha Antônio Samarone como vice
Presidente da categoria. A categoria médica observava a implantação do SUDS com
perspectiva, mas também com receio de que o novo sistema de saúde não tivesse o êxito
esperado e prejudicasse a sociedade. É o que declara o presidente quando convocado pela
Assembléia Legislativa para falar sobre a Reforma Sanitária e sobre o SUDS através de

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requerimento do deputado do PT e médico Marcelo Ribeiro:

“ Se houver, alguma distorção na implantação da reforma sanitária em nosso


Estado a sociedade é quem vai pagar caro ... Está sendo implantado no país a
reforma sanitária em convênio com os ministérios da Previdência, Saúde,
Educação e secretarias de Saúde dos Estados ... esses órgãos estão sendo
responsáveis pela implantação do SUDS, que vai permitir um
redimensionamento à implantação da reforma sanitária, cuja filosofia básica
é a participação da comunidade na definição dos programas de saúde e a
fiscalização da sua implantação” (Jornal da Cidade 13 de novembro de 1987.
Política. Pg. 2)

A preocupação que Nestor Piva leva a Assembléia e pede a ajuda dos deputados
era com o desvio de foco que a implantação poderia tomar ao ponto de inviabilizar a reforma
sanitária ao não descentralizar e não ter a participação social como fiscalizadora do sistema.
(jornal da cidade, pg 02, 13/11/1987). Assim sendo, ficamos a pensar o que o presidente do
sindicato dos médicos quer dizer ao afirmar que se a Reforma Sanitária não for efetivamente
colocada em prática quem pagaria era a sociedade. Será que havia algum tipo de ameaça para
o sistema não ser implantado? Será que as forças políticas que foram contra a implementação
do sistema trabalharam para não ser uma experiência exitosa. Será que a participação e o
controle social no sistema incomodavam os demais atores? Enfim essa fala do Nestor Piva
nos leva a perceber que possivelmente existiam pressões em torno da chegada do SUDS em
Sergipe.
Com essas mudanças no sistema de saúde, as gratificações pagas aos servidores da
rede sofrem alterações e gera reação da categoria que se reúnem em assembléia para discutir o
assunto, apesar do Secretário da Saúde Edney Freire ter anunciado que concederia
gratificações de Cr$ 11 mil, (jornal da cidade 14 de outubro de 1987, local. Pg. 3). Porém, no
dia 18 de novembro de 1987 o Jornal da Cidade noticia que as gratificações ainda não tinham
sido pagas o que gerou protesto dos funcionários (jornal da Cidade 18 de novembro de 1987,
).
No dia 21 de novembro de 1987 a Prefeitura Municipal de Aracaju paga as duas
parcelas de gratificações referentes a setembro e outubro aumentando a insatisfação dos
servidores estaduais da saúde gerando tensão e a convocação de mais uma assembléia geral,
ganhando a primeira página do Jornal da Cidade: “Profissionais da área de Saúde ameaçam
greve” (Jornal da Cidade, 24 de novembro de 1987, capa).

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No dia 25 do mesmo mês o inevitável acontece “Servidores da Saúde decretam


greve: Servidores da área da Saúde decidiram ontem em assembléia geral decretar greve a
partir de hoje em protesto aos atrasos no pagamento da gratificação do Sistema Único
Descentralizado de Saúde.” (Jornal da Cidade 25 novembro de1987, local. Pg. 3)
No dia 27, apesar de atrasado, o Governo paga as gratificações honrando o
compromisso e efetuando o pagamento das três parcelas de gratificação do Sistema Único e
Descentralizado de Saúde (Jornal da Cidade, 27de novembro de1987, política. Pg. 2). A greve
acabou acontecendo pelo atraso do pagamento da gratificação. Segundo Caetano a demora
foi por causa da necessidade de executar um processo de cruzamento de folhas de pagamentos
da Prefeitura e do Estado, como forma de evitar que uma pessoa recebesse duas gratificações.
Para ele existe um grupo querendo tumultuar o ambiente entre os funcionários, prejudicando-
os apenas com o objetivo de conseguir promoção pessoal, pois Caetano já tinha acertado a
data de pagamento das gratificações (Jornal da Cidade, 26 de novembro de 1987). O sindicato
dos médicos por sua vez acusa a Secretaria de Estado da Saúde e Bem Estar Social de
desorganização já que os recursos tinha chegado em Sergipe fazia muito tempo e que o não
pagamento das gratificações era uma manobra do Estado para prorrogar a execução das
demais parcelas.
Esse episódio do pagamento das gratificações que culminou numa greve
relâmpago nos mostra que existiam muitas dúvidas e disputas em torno da discussão do
SUDS. Seja na Assembléia Legislativa, na Câmara Municipal, na sociedade, no Inamps e
entre os demais profissionais de saúde havia falta de informação sobre a eficácia do sistema
que estava chegando. A suspeita reinava quanto ao pagamento das gratificações, mesmo com
recurso em caixa, se temia que o gestor tomasse outra atitude administrativa que não o
pagamento das gratificações mostrando assim a não solidificação do sistema a ponto dos
funcionários ficarem na incerteza. Talvez seja por isso que Nestor Piva temesse a falta de
êxito do sistema sobrando para a população o ônus e, assim sendo, defendesse a participação
social como forma de controlar as ações do Estado.
Nesse primeiro ano da implantação do SUDS, que é o objeto da nossa pesquisa,
tendo como fonte o Jornal da Cidade do ano de 1987 identificamos alguns atores que atuaram
na construção do SUDS, entre eles, os gestores do Governo do Estado e do Município de
Aracaju, os sindicalistas principalmente os do sindicato dos médicos, os servidores da saúde,
porém não constatamos a presença da sociedade civil organizada nesse período. Esses atores
relatavam a sua visão de como estava sendo implantado o sistema e qual a concepção de
SUDS e de Reforma Sanitária e quais os benefícios e dificuldades que estavam ocorrendo.

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Durante o período estudado não conseguimos identificar nas matérias publicadas


do Jornal possíveis resistências à implantação do SUDS, apesar do Governador Antônio
Carlos Valadares e o Secretário de Estado da Saúde Lauro Maia serem do PFL partido o qual
não tinha muita simpatia pelo sistema de saúde em tela, conforme assinalamos. O próprio
tablóide mesmo os seus proprietários sendo oposição aos Governos que estavam implantando
o sistema deu uma ênfase significativa ao SUDS. O sindicato dos médicos quando destacado
nas noticias de jornal se apresentam sendo favoráveis a implantação do SUDS parecendo não
haver muita resistência, porém identificamos os receios dos servidores quanto a mudança no
pagamento das gratificações do SUDS chegando inclusive a ameaças e execução de greve.
A criação do Conselho Estadual de Saúde foi um dos fatos mais importante
ocorridos nessa época, pois era a construção de um instrumento que vinha a inserir a
sociedade na Reforma Sanitária, no SUDS e consequentemente no Estado.
O ano de 1987 termina e o SUDS não foi efetivamente implantado sendo
prorrogado para o ano posterior, o ano em que seria promulgada a Constituição Brasileira.
Isso nos mostra as dificuldades de se colocar um sistema desta proporção em prática tendo
que unificar alguns órgãos já existentes e descentralizar as ações. Destarte ao historiar o
avanço da construção de um processo durante esse curto período percebemos a importância
dos atores históricos na implantação do sistema e dinâmica que acontece no desenrolar dos
fatos.

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KHOURY, Yara Maria. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4 ed. São Paulo:
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CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Ligia.O Bravo Matutino: imprensa e ideologia
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Local.

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Piva pede fiscalização para reforma. Jornal da Cidade. 13 de novembro de 1987. Política. Pg.

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2.

Prefeitura firma convênio para implantar Sistema Único de Saúde. Jornal da Cidade. 08 de
agosto de 1987. Local. Pg. 7.

Profissionais de área de Saúde ameaçam greve. Jornal da Cidade.24 de novembro de 1987.


Capa. Pg 1.

Reforma Sanitária será implanta em Aracaju. Jornal da Cidade. 23 de julho de 1987. Local.
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Toma posse hoje novo Secretário de Saúde.Jornal da Cidade. 24 de setembro de 1987.


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Saúde dá gratificação de Cz$ 11 mil. Jornal da Cidade. 14 de outubro de 1987. Local. Pg. 3.

Secretário de Saúde presta esclarecimento a câmara. Jornal da Cidade. 26 de novembro de


1987. Política. Pg. 2.

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Secretário destaca unificação dos serviços de saúde. Jornal da Cidade. 14 de agosto de 1987.
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Secretário. Jornal da Cidade. Aracaju, 02 de setembro 1987. Sociedade, notas e comentários,


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Servidores da Saúde decretam greve. Jornal da Cidade. 25 de novembro de 1987. Local. Pg.
3.

Servidores da Saúde ameaçam greve no Estado. Jornal da Cidade. 26 de novembro de 1987.


Local. Pg.3.

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A CAPITANIA DE SERGIPE SOB O RONCO DO TRABUCO DE


BENTO JOSÉ DE OLIVEIRA (1773-1806).

Wanderlei de Oliveira Menezes – UFS


wanderleidamarcela@hotmail.com

Este breve trabalho constituísse, sobretudo, de relatos acerca da trajetória de vida do famoso
sargento-mor Bento José de Oliveira, obtidos, principalmente, em fontes de época e na
historiografia sergipana. Esse personagem tornou-se célebre pela quantidade de crimes que
cometeu ou mandou praticar entre 1773 e 1806. Apesar de ser um simples soldado, chegou a
controlar e/ou inquietar às altas autoridades de Sergipe, Bahia e Pernambuco. Em 1806
encerrou sua famosa carreira criminosa ao ser enviado a Portugal, onde foi preso e faleceu
numa masmorra, ao que tudo indica. Ao estudar esse personagem pouco conhecido, talvez o
maior criminoso das plagas sergipanas, procuramos identificar indícios sobre violência, poder
e cotidiano durante as últimas décadas do período colonial na capitania de Sergipe.

PALAVRAS-CHAVE: História Social, História de Sergipe Colonial, Violência.

O crescimento do gênero biográfico na historiografia contemporânea é notável.


Nunca os historiadores se lançaram de forma tão intensa no desnudamento de personagens
importantes ou de indivíduos esquecidos do passado recente ou longínquo. Acreditamos que o
crescimento do gênero biográfico na historiografia contemporânea está relacionado com a
crise do paradigma estruturalista que orientou uma porção significativa da historiografia a
partir dos anos 60. De acordo com este paradigma, a história deveria dissolver os indivíduos
nas estruturas (LEVI, 1992). Em contrapartida, os historiadores atuais “quiseram restaurar o
papel dos indivíduos na construção dos laços sociais” (CHARTIER, 1994, p.102). A
aproximação desse gênero com a historiografia é atualmente apoiada por importantes
tendências como a micro-história e a psico-história. Metodologicamente, essa mudança
implica o recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da micro-
história. Academicamente, é importante salientar a aproximação da História com a
Antropologia, na qual o resgate das histórias de vida é de longa data, e com a Literatura,
preocupada com as técnicas narrativas de construção dos personagens e de enredo. A

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tendência biográfica preconizada pela micro-historia é marcada, sobretudo, pelo interesse no


resgate de trajetórias singulares e de suas relações com o contexto e coletividade.
A escolha dos personagens biografados é outro ponto que chama a atenção: não
apenas os “grandes homens” da política, mas também as pessoas comuns e personagens
significativos dentre de um dado contexto social, porém pouco conhecido pela historiografia.
Neste sentido, Carlo Ginzburg ressalta a importância de se estender o conceito histórico de
indivíduo para as classes mais baixas: “alguns estudos biográficos mostraram que um
indivíduo medíocre, destituído de interesse por si mesmo – e justamente por isso
representativo – pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social
inteiro num determinado período histórico” 489.
Partindo destas considerações, busco, na presente comunicação, estudar a
trajetória de vida de um célebre criminoso do final do período colonial em Sergipe. Esse
personagem sergipano cometeu uma série de crimes e, apesar de ser um simples sargento-
mor, chegou a inquietar os governos e as populações de regiões da Bahia, Sergipe e
Pernambuco. Para tanto, dividimos nossa exposição em três partes. Na primeira, examino
como a historiografia sergipana tratou sobre o personagem em estudo; em seguida, usamos às
fontes de época para desvendar indícios de fatos de sua vida; finalmente, destacamos os
crimes cometidos por ele e seus protegidos e as ações que o levou à prisão e esquecimento.
Escolhemos Bento José pelo fato desse personagem ter suas peripécias bem documentadas
nos arquivos de Sergipe, Bahia e Portugal, talvez seja ele o personagem sergipano dos
setecentos mais bem documentado.
É importante salientar que os fatos narrados em seguida, por mais hilários que
pareçam, foram obtidos por meio de criteriosa pesquisa histórica, amparada majoritariamente
em fontes de época. Assim, procuramos desvendar a partir da trajetória de vida de um famoso
sargento-mor da segunda metade do século XVIII indícios sobre as vicissitudes da vida social
e a relação violência e poder no final do período colonial na capitania de Sergipe.
O passado colonial sergipano, apesar dos consideráveis e clássicos estudos de
Felisbelo Freire, Carvalho Lima Júnior e Maria Thétis Nunes, ainda não foi devidamente
estudado. Assim Bento José de Oliveira ainda não recebeu um estudo mais pormenorizado
sobre os significados de suas ações, apesar da grande quantidade de documentos sobre suas
peripécias na Bahia e em Portugal. O nome de Bento José aparece nas páginas da História de
Laranjeiras do padre Filadelfo Jônatas de Oliveira, na História de Sergipe (1575-1930) de J.

489
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.27.

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Pires Wynne e na biografia de Antonio Muniz de Souza de Armindo Guaraná de forma


bastante sumária. A clássica História de Sergipe de Felisbelo Freire pouco nos informa sobre
Bento José490. Grande contribuição à história de Bento José de Oliveira foi dada por Maria
Thétis Nunes. Além de destacar as ações de Bento José dentro de seu contexto sócio-político,
Thétis Nunes aliada a outros pesquisadores trouxeram digitalizadas importantes documentos
manuscritos da capitania de Sergipe Del Rei, um deles é a volumosa representação dos
vereadores da vila de Santo Amaro das Brotas contra Bento José e outros, datada de 1805.
Consta nesse documento uma série de fontes coligidas sobre Bento José da década de 80 do
século XVIII até 1808.
Contudo, o mais amplo estudo sobre a segunda metade do século XVIII em
Sergipe é a tese de mestrado de Afonso Ferreira Junior que cita o famoso sargento-mor. Esse
autor pesquisou importantes documentos sobre Bento José no Arquivo Público do Estado
Bahia (APEB). Recentemente, Clóvis Bomfim, ao escrever sua História de Santo Amaro
destinou um capítulo para Bento José e outros criminosos contemporâneos baseado nos
documentos conseguidos em Portugal. O único trabalho mais extenso e fundamentado em
fontes de época sobre o personagem estudado, mesmo sem fazer referência a fontes, é o do
historiador itabaianense Francisco Antonio de Carvalho Lima Júnior. Esse importante
historiador de nosso passado publicou no Correio de Aracaju em 1920 nove artigos sobre a
biografia de Bento José numa linguagem cativante, clara e bastante eloqüente. Em Capitães-
mores de Sergipe, manuscritos publicados em 1985, Lima Júnior esboçou algumas páginas
sobre Bento José.
Nos trabalhos supracitados Bento José de Oliveira é apresentado como
perturbador da ordem, símbolo de autoritarismo e da desordem. Sua imagem é demonizada, o
que exige um reexame dos fatos, a partir de seus traços biográficos, pois Toda a nossa
historiografia, exceto Carvalho Lima Júnior, deixou notas desconexas da vida de nosso
personagem além de só reproduziram as informações contidas nos documentos.
No ano da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1748, na cidade de São
Cristóvão de Sergipe Del Rei, nascia do ventre de Ana Maria de Jesus, Bento José de
Oliveira, branco, filho de Manoel Sandes Ribeiro, senhor de engenho e de terras na região do
Vasa Barris. Por motivos desconhecidos a família se transferiu para a próspera vila de Santo

490
Felisbelo Freire (1891, p.200) comete grave erro ao além de incorrer num gravíssimo erro de considerá-lo
sucessor do capitão-mor José Gomes da Cruz em 1776, quando Bento José nunca foi capitão-mor de Sergipe
nem de parte alguma.

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Amaro das Brotas, na região do Vazabarris. O pequenino tinha por irmão o futuro tenente-
coronel Francisco Teles de Oliveira491.
A primeira menção de sua existência que conseguimos colher data de 6 de março
de 1773. Nessa data Bento José sofreu processo na Vila de Santo Amaro sob a acusação de
deflorar a menor Isabel Teles, filha do capitão Pedro Muniz Teles. Para fugir das garras da
justiça decidiu fugir para a Bahia. No dia 24 do mesmo mês sentou praça, voluntariamente,
como soldado na Companhia do Antonio Lobo Portugal. Tal era a proteção das altas
autoridades por sua distinta condição social que logo foi promovido ao posto de sargento-mor
de ordenanças da Bahia. Dois anos depois (1775) volta a Sergipe. O irmão Francisco Teles de
Oliveira era, nessa época, nomeado pelo Governador da Bahia Manoel da Cunha Menezes,
para capturar recrutas. Bento foi chamado para a missão e os dois provocam badernas e
desvio de 60 mil cruzados492.
O capitão-mor José Gomes da cruz denuncia o golpe dos irmãos Oliveira ao
governador da Bahia que mandou prender Bento José, em 11 de dezembro de 1775. A ordem
de prisão mais parece um castigo dado a uma criança travessa: “Ordeno a Vmc., (que) o
chame com toda a civillidade a sua presença, e lhe intime que eu mando que elle Sargento-
Mór se recolha logo a hum dos engenhos de seu pai, do qual não sahirá, sem ordem minha”. É
bem provável que tal ordem não tenha sido respeitada, mas mesmo assim a “prisão” foi
suspensa em 9 de março do ano seguinte493.
Solto, Bento resolveu requerer durante os meses seguintes de sua “prisão” cinco
licenças consecutivas. Ameaçou ao Capitão-mor que se não concedesse mais licenças tiraria
de qualquer forma. José Gomes da Cruz resolveu comunicar o ocorrido ao Superior. O vice
rei, então, ordena que o abusado soldado comparecesse a sua presença. Bento foi forçado a
trazer a família e os bens e ficar longe de Sergipe. A ordem foi cumprida e o insolente
sargento-mor viveu os anos posteriores a 1776 em uma das vilas do sul da Bahia servindo a
Theodoro Gonçalves. Em 1776 deve ter casado com Josefa Maria de São José494. Não custou

491
Quando foi preso em Portugal, em 1808, alegou ter 59 anos e ser filho de Manoel Sandes Ribeiro (AHU,
Caixa 08, doc.09). Os livros de notas de São Cristóvão atestam a existência dos genitores de Bento que em 1738
faziam escritura de um sítio de terra no Vasa Barris ( APJES, CX.01, LV.02-FLS.149-155 e CX.02, LV.01-
FLS.264-266 ).
492
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 29 de agosto de 1920. p.2. Não conseguimos detectar os documentos
transcritos por Lima Júnior, talvez nem existam mais, visto que a pesquisa desse historiador foi realizada nos
últimos anos do século XIX e inicio do século seguinte.
493
idem.
494
Em 30/01/1776 era passada no cartório de São Cristóvão escritura de mandado feita entre Francisco Marques
da Silva, como administrador de sua filha Josefa Maria de São José, a João Lopez Chaves para contrato de
casamento. (APJES, LIVROS DE NOTAS. CX.02, LV. 01-FLS. 264-266);

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para retornar a terra natal. Nos primeiros anos da década de 80 do século XVIII retornava
Bento José à vila de Santo Amaro sedento por vingança495.
Prontamente, buscou restabelecer seus antigos domínios. Nesse intuito, montou
um quartel-general no engenho Pati. Ciganos, criminosos de morte, ladrões, soldados,
prisioneiros eram seus funcionários. Baltazar Vieira de Melo, Tenente Coronel de Cavalaria
de Sergipe, faz representação ao Governador da Bahia, D. Rodrigo José de Menezes, em 26
de janeiro de 1786. Pedia para que o desobediente soldado fosse retirado da guarnição de
Sergipe. Reforçou com outra representação contra Bento José o Tenente Felipe Luis de Faro.
Prudente, D. Rodrigo, Governador da Bahia, quis ouvir o que tinha a dizer em sua defesa o
acusado. Bento exibiu em sua defesa com uma série de documentos oficiais que abonavam
sua conduta. Os documentos eram forjados por pessoas bem conceituadas. Diante de tais
provas e atestações, Bento não sofreu penalidade alguma. Esse acontecimento mudou o
comportamento do sargento-mor que se tornou mais violento.
A partir de 1786, Bento redobrou a prepotência e perversidade. Seus adversários
ou supostos adversários sofreram. O sargento-mor mandar assassinar na cidade de São
Cristovão a Antonio Teles e espanca com cacetadas a Manoel José Buena por dar queixa dele
ao Marques de Valença, governador da Bahia, por ter Bento roubado-lhe uma mulata. Em
Santo Amaro manda matar ao advogado Julião de Campos Pereira, por servir numa causa
contra o seu cunhado, Manoel Vital de Araujo, e surrar, a chibatadas, a viúva, a parda Ana
Roza. Apesar de a vítima ter dado queixa em Salvador, o crime ficou impune. Por desavenças
familiares, mandou tirar a vida a Manoel Alves, marido de sua sobrinha. O crime foi
executado por um escravo de sua irmã, que ganhou carta de alforria pelo serviço prestado496.
Junto a Jacinta e Antonio Pereira da Silva mandou assassinar ao tenente Francisco
de Faro Leitão. O irmão da vítima, capitão-mor de ordenanças Felipe Luis de Faro Leitão,
sabendo da proteção que contava Bento José em Sergipe, resolveu denunciá-lo na Bahia.
Outro crime impune. Na vila de Itabaiana, ordenou, sem motivo aparente e autoridade para
isso, a prisão efetuada pelos suas capangas, um homem do povo que em seguida foi
misteriosamente assassinado. Mandou matar ao cabra João Pereira e ao cabo Antonio Felix.
Em Laranjeiras, próximo a localidade de Comandaroba, mandou matar a uma mestiça,
escrava de José Alves Quaresma, por ela ter dado queixa na Bahia ao Governador D.
Francisco da Cunha Menezes por ele ter vendido duas filhas menores (uma a Francisco Alves

495
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Bento José de Oliveira (famoso sargento-mor do século XVIII).
CORREIO DE SERGIPE, Aracaju, 31de agosto de 1920. p.2.
496
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;

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Barroso e outra a Manoel Rodrigues de Figueiredo). Ainda em Laranjeiras mandou assassinar


o advogado Manoel Joaquim com dois de seus protegidos por ordem do pardo Francisco497.
Ainda mais: mandou assassinar a um seu guarda costa, assassino de profissão,
dentro da casa de José Gomes, por andar comentando as mortes encomendadas. Não queria
que maculassem seu nome. Ousadia maior cometeu na vizinha Capitania de Pernambuco,
quando em fins da década de 80, enviou uma escolta de seis criminosos, roubar cavalos. O
ataque se deu na vila de Penedo, todavia o coronel de milícias da localidade, Antonio Luiz
Dantas de Barros Leite, defendeu a localidade do assalto. Deu-se lugar a uma grande conflito
entre os homens de Bento e as autoridades penedenses. Do lado dos sicários de Bento três
foram as baixas. Do outro lado o sobrinho do coronel perdeu a vida e alguns habitantes saíram
gravemente feridos e com seqüelas por toda a vida498.
Com o falecimento do coronel José Caetano da Silva Loureiro, senhor do engenho
Ilha, Bento se apossou do escravo Gregório do falecido. Apesar do filho do finado, Manoel
Cardoso, erigi-lo de herança. Revoltado com a atitude de Bento, Manoel Cardoso resolve
fazer justiça com a s aproprias mãos. Invadiu as senzalas de Bento durante sua ausência e quis
arrancar a força o escravo em questão. Os capangas de Bento ofereceram resistência e o
escravo acabou sendo assassinado499.
Inconformado com o revés no caso do escravo Gregório e da malograda
expedição a Penedo, novamente mandou escolta, chefiada por Antonio Pereira da Silva e
Gonçalo Ferreira, para aprisionar mulatos livre da região e vendê-lo em Sergipe como
escravos. A pedido de algumas amigas (amantes ?) mandou outra escolta a Inhambupe, na
Bahia, tomar a força uns escravos de Euzebio Luis para presenteá-las. Ainda na Bahia, agora
em Geremoabo, mandou os “bons” de sua escolta subtrair os bens de Clemente José, que
andava denunciando seus excessos500.
Acabou o século XVIII e Bento era mais poderoso que os governadores da Bahia,
o ouvidor e o capitão-mor de Sergipe. Já era um homem de cinqüenta anos, porém com um
vigor para o crime maior que quando tinha trinta anos.
Em 1805 mandou a Gonçalo Lucas e Manoel Sotero e outros criminosos a casa de
José Vicente de Carvalho furtar quatro escravos pertencentes a uma testamenteira do seu tio e
deu-os a outra parte litigiosa sem nenhuma formalidade judicial. Sofreu na pele a crueldade
dos protegidos de Bento o moço português Antonio dos Santos Travassos. Nos primeiros

497
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Sergipe, inv. 481, caixa 08, doc. 09;
498
Idem.
499
Idem.
500
Idem.

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meses de 1806, mandou surrá-lo em sua própria residência por José Alves Quaresma com
espada, cacete e chicote. Por ter barganhado um cavalo de seu sobrinho501.
O governo Baiano mostrava-se indiferentes a sorte das vitimas das atrocidades do
sargento-mor. Intimado a comparecer em Salvador para responder pelos seus crimes, Bento,
ao que tudo indica, de modo matreiro consegue um atestado do cirurgião Manoel Rodrigues.
Alegou motivos de saúde para empreender tão longa viagem. O estratagema deu certo502.
Bastante ousado era Bento que para confirmar o título de autoridade suprema
mandou construir em sua propriedade um cárcere onde cobrava dos prisioneiros uma pataca
(320 réis) pela estada em seu cárcere privado; tirava mulheres, inclusive as “bem nascidas” de
seus esposos ou pais e dava-as a quem bem entendia, exigia dívidas não contraídas e perdoava
dívidas reclamadas sem ganho de causa para a parte lesada. Era o supremo Juiz da Capitania.
Furtou com ostentação a Santa Casa de Misericórdia – foi nomeado pelo ouvidor provedor e
procurador da dita instituição. Com o cargo de Provedor de ausentes, roubou legalmente os
bens de muitos desvalidos. Aos corruptos ouvidores e juízes corrompeu e os tornou servis a
seus desejos. Engenhoso na prática criminosa e bem protegido pelas autoridades eram as
receitas do sucesso de Bento José503.
Em 1805, Bento se apossou de 6 mil cruzados dos bens dos ausentes e mais 80
mil réis de dois infelizes naufragados de duas embarcações perdidas na barra do rio
Cotinguiba. Contudo maior ousadia cometeu ao receptar a arroba e meia de carne do capitão-
mor Mesquita Pimentel. O meirinho, temendo as conseqüências, levou as belas postas de
carne que deveria alimentar ao capitão-mor e família, primeiro a casa de Bento que se
apropriou da melhor parte e deixou ao dito capitão-mor apenas meia arroba de pescoço e
costela. Mesquita Pimentel mandou prendê-lo, ordem que nenhum dos oficiais de justiça quis
ousar pôr em prática. Revoltado, Mesquita Pimentel envia suas queixas ao Governador da
Bahia. Na denúncia mencionou os diversos crimes em que Bento era acusado504.
Nos primeiros anos do século XIX formou-se um grupo forte de oposição às
arbitrariedades de Bento José. Fazia parte Antonio Muniz de Souza, autor de Viagens e
observações de um brasileiro, o ouvidor interino Henrique Luis de Araujo Maciel e a Câmara
de Santo Amaro das Brotas. O mais poderoso adversário era Henrique Luis de Araujo Maciel.

501
Idem.
502
APEB. Secção de Arquivo Colonial e Provincial. Maços 190, 192, 196. Nessas pacotilhas há outros delitos
em que Bento e seus protegidos são acusados de outras atrocidades.
503
Idem.
504
Idem.

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Bento tentou eliminá-lo. Enviou, em 1805, 13 bandidos para matar o ouvidor interino que
morava em Santo Amaro. Por sorte, o ouvidor escapou do sinistro plano505.
Cansados de reclamarem ao governo baiano, os camaristas de Santo Amaro e
outras vítimas resolveram denunciar os abusos ao príncipe-regente D. João VI. A
representação mandada pela Câmara. Dom João VI ordena em 24 de maio de 1806 a captura
de Bento. Em 28 de abril o conde de Ponte, governador da Bahia, manda capturar sem êxito o
criminoso.
A execução da ordem régia deu-se pela ação traiçoeira do capitão-mor Felipe Luis
de Faro Menezes e do juiz de ordinários José de Barros Pimentel. O sargento-mor acabou
sendo surpreendido no engenho de seu pai em 22 de novembro de 1806 e remetido à cadeia de
Santo Amaro, vigiado e guardado com toda segurança e cuidado. José Leandro de Almeida,
amigo de Bento e juiz ordinário de Santo Amaro, tentou ainda tirá-lo da cadeia.
No mês seguinte foi remetido à Bahia em diligencia comandada por João
Fernandes Chaves com oito soldados na lancha Triunfo. A 26 de dezembro, o Conde de Ponte
informa ao Príncipe Regente da prisão do famoso criminoso. A 24 de abril, o visconde de
Anadia, por ordem do mesmo príncipe, ordenou que o réu fosse remetido em navio seguro a
terrível prisão do castelo de Lisboa. Bento acabou sendo mantido preso numa masmorra fria o
que debilitou sua saúde. Tentou, em vão, ser liberto para se tratar da enfermidade. É bem
provável que o famoso sargento-mor tenha falecido em alguma prisão lisboeta506.
A fígura de Bento José de Oliveira nos possibilita enxergar os conflitos e cisões
da elite sergipana setecentista, a vida difícil dos homens livres bem como o clima de violência
e insegurança das últimas décadas do século XVIII e início do século XIX atestadas pelas
fontes de época. Bento José, de certa forma, mostra-nos as vicissitudes da ordem social e
política de uma época. Pelo uso da força e de crimes, Bento José foi, indubitavelmente, o
homem mais poderoso da capitania de Sergipe, mesmo sem ser o mais rico.

Fontes e referências bibliográficas

 Arquivo Público do Poder Judiciário de Sergipe:

Livro de notas do cartório do 1º Oficio de São Cristóvão (1738-1788), Livros 1e 2.

505
Idem.
506
Idem

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 Arquivo Público do Estado da Bahia

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Dissertação de mestrado (História econômica) – Instituto de Economia, Universidade
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ENTRE A LEI E A DESORDEM: A GUARDA ∗MUNICIPAL E A


URBANIZAÇÃO EM ITABUNA (1930-1947)

Philipe Murillo Santana de Carvalho - UNEB


philipesantana@yahoo.com.br

O objetivo principal deste trabalho é investigar a Guarda Municipal de Itabuna e as


experiências dos membros de sua corporação durante o período em que a cidade passou pela
reformulação urbana de sua área central. A Guarda Municipal foi uma das instituições criadas
pelo poder público municipal com vistas a fiscalizar as atividades profissionais, a higiene dos
imóveis residenciais e comerciais, a segurança pública, e os hábitos urbanos da população
itabunense. A partir desses elementos, a prefeitura municipal considerava a instituição
fundamental na busca pela “harmonia” entre os cidadãos e a ordem estabelecida pelo poder
local. No entanto, ao contrário do que esperavam os segmentos hegemônicos, os guardas não
tiveram vida fácil na aplicação da lei entre as classes populares, resultando em diversos
conflitos na cidade. Por outro lado, os soldados que deveriam zelar pelo estabelecimento dos
“bons costumes”, não demoraram a ser vítimas do seu próprio veneno, passando a ser
coagidos pela prática de hábitos como bebedeiras, jogos e envolvimento com prostitutas.
Utilizando-se do Jornal Oficial do Município de Itabuna, dos periódicos locais A Época e O
Intransigente como fontes de pesquisa, pretendemos discutir como esses sujeitos criaram
estratégias para negociar seus interesses diante das contradições da padronização de hábitos e
de costumes pelos poderes instituídos.

Palavras-chave: Guarda Municipal, Urbanização, Itabuna.

Em 16 de junho de 1933, durante o período de lançamento das Décimas Urbanas,


a guarda municipal de Itabuna resolveu anunciar no Jornal Oficial de Itabuna uma medida de
organização do trânsito no centro da cidade. Como Inspetor da Guarda Municipal, João
Ribeiro de Moraes alertava aos munícipes que

De ordem do Sr. Dr. Prefeito deste município, fica expressamente proibido


depositar carroças e outros veículos, a noite, nas ruas desta cidade,

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marcando-se o prazo de 3 dias a contar desta, para retirada de todos sob


pena de apreensão e multa ao proprietário, de acordo com o Código de
Posturas em vigor. 507

Tratava-se de mais um alerta emitido pelos poderes públicos, por meio de um dos
seus instrumentos de controle – a Guarda Municipal. No entanto, este breve aviso publicado
discretamente na imprensa oficial é um sinal dos propósitos e dos meios utilizados para tentar
criar um padrão de comportamento e de organização na cidade no ano de 1933. A Guarda
Municipal foi inaugurada para se tornar um dos principais elementos dentro do sistema de
fiscalização implantado em Itabuna. A principal referência desta polícia de costumes seria o
Código de Posturas publicado e apresentado aos habitantes no mesmo ano de 1933. São esses
dois elementos que constituíram parte da política urbana adotada para os itabunenses que
poderá nos oferecer a medida com que os trabalhadores se relacionavam com as ações da
ordem estabelecida dominante.
Em 2 de abril de 1933, em inauguração solene que reunia as tradicionais figuras
políticas da cidade por volta das 10 horas da manhã, além da presença de estudantes e de
associações do município, foi apresentada a Guarda Municipal de Itabuna. Acerca dos
motivos que levaram a criação desta instituição, Alpoim justificava a intenção em dotar a
cidade com medidas de segurança que ratificariam o estado de paz da sociedade itabunense.

O Sr. Dr. Claudionor Alpoim, Prefeito Municipal, disse dos motivos que o
levaram criação daquela Guarda, em que todos terão de ver mais um fator
de segurança, ordem e engrandecimento do município.
Esclareceu que esse melhoramento foi organizado, sem maiores ônus para
os cofres públicos e que da ação da profícua da Guarda é de se esperar
grandes resultados, não só no que concerne a ordem pública e respeito à
moral, como na observância das posturas municipais e, finalmente, também
na arrecadação das rendas.508

A Guarda Municipal parecia ser uma instituição há muito desejada pelo poder
político. Encaixando-se como um dos melhoramentos urbanos realizados pela administração
pública, as atribuições dos soldados passavam de uma maneira geral em manter a segurança e
a ordem com vistas ao desenvolvimento da cidade. Do ponto de vista filosófico, reforçava-se
a crença positivista de que somente com o estabelecimento da “ordem” será possível alcançar
o crescimento local. Outra função da nova segurança municipal seria a de preservar a
moralidade no seio da sociedade itabunense, atuando de forma a policiar os costumes de
origem popular. Está claro que essas condições de ordem e os aspectos morais impostos para

507
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 16 de junho de 1933, Ano II,nº 112, p.6.
508
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de abril de 1933, Ano II, n.º 102, p.16.

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a sociedade eram criados pelos segmentos hegemônicos e dispostos aos trabalhadores, ainda
que de forma pouco democrática. O instrumento que sintetizaria todos os itens citados acima
deveria ser o Código de Posturas de Itabuna, o que daria o peso da medida para julgar o
comportamento e as ações dos habitantes.
A estrutura da Guarda Municipal de Itabuna foi montada a partir de hum inspetor
geral, responsável maior pelas atuações dos guardas na cidade; quatro guardas de primeira
classe; e vinte guardas de segunda classe, que foram nomeados através de concurso pela
prefeitura. Sua sede, situada à Rua 23 de novembro, era considerada pequena, mas suficiente
para atender a demanda local, como informava o órgão noticioso do governo. Em nota
reproduzida do jornal ilheense Diário da Tarde, o Jornal Oficial comparava a nova instituição
às das capitais do país, que tinha por objetivo “zelar pelo respeito às leis municipais e auxiliar
a ação da polícia na manutenção da ordem, impedindo a prática de atos que possam ferir o
progresso e a segurança.”509 Isso sugere que, em última instância, aqueles que ferissem “o
progresso e a segurança”, isto é, não concordassem com a política urbana adotada pelas
municipalidades e apresentasse maior resistência, haveria sempre o recurso da contenção mais
efetiva da Guarda Municipal.
As condições para se tornar um guarda municipal eram bastante rígidas.
Consultando o Regimento Interno desta instituição, observa-se que no item relacionado aos
Deveres e Direitos dos membros da corporação é chamada atenção para que os pretendentes
às vagas devessem “primar pela sua disciplina irrepreensível, extrema dedicação ao serviço, a
urbanidade, zelo e solicitude.”510 Para ser mais específico, uma das premissas defendidas no
regimento dizia respeito à proibição da entrada dos soldados em “cabarets” e casa de jogos (a
menos que estivessem a serviço), da prática de agiotagem ou venda de rifas entre os membros
da corporação, ou ser remunerado pelos serviços prestados pela guarda municipal.
Se as recomendações a serem seguidas pelos soldados já eram rígidas, não seria
diferente com relação às competências a serem desenvolvidas pelos membros da corporação
nas ruas da cidade. O regimento deixava claro o que e quem deveria ser detido e
encaminhando à autoridade municipal:

a) Todo aquele que for encontrado praticando algum crime, ou em fuga,


perseguido pelo clamor público, podendo para este fim sair do seu posto;
c)Todo aquele que, mesmo da corporação, for encontrado promovendo
desordem ou em estado de embriaguez;
509
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106, p.10.
510
APMIJD. Regimento da Guarda Municipal de Itabuna. Ato 178 de 30 de Dezembro de 1932. Typografia.
Itabuna: D’A Época, 1933.

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d) Todo aquele que ocasionar desastre em via pública;


e) Os transgressores do Código de Posturas que se insubordinarem contra a
sua autoridade;
h) As pessoas que, vestidas de modo ofensivo à moral e aos bons costumes,
transitarem pelas ruas e praças;
i) Os vadios, turbulentos, ébrios;
j) Os que forem encontrados a danificar árvores, jardins, edifícios e obras
públicas ou particulares;511

Diante do exposto acima, a Guarda Municipal aparecia no cenário local para


ajudar a polícia militar a manter a ordem e a segurança de Itabuna, coibindo as práticas que
eram consideradas ofensivas aos novos padrões estipulados pelos setores dominantes para a
cidade. Entre as décadas de 1930 e 1940, a Guarda Municipal foi um dos principais
instrumentos de coerção dos costumes e dos comportamentos da municipalidade na busca por
uma cidade “harmônica” desejada pela administração local. No entanto, a atuação dos guardas
revelava a forma como os trabalhadores pobres urbanos se relacionavam com a experiência de
padronização dos valores e da moral pública instituída pelos setores dominantes.
Partindo da lei como elemento de toque para se classificar o que é moral ou
imoral, acho importante refletir em cima do que George Duby adverte ao historiador que lhe
dá com esse tipo de relação. Segundo Duby, o instrumento jurídico ou moral criado pelos
homens constitui um elemento de uma construção ideológica edificada para justificar certas
ações repressoras e para, numa certa medida, mascará-la, sugerindo que a existência de toda
regra é precedida pela sua transgressão, sendo exatamente nesse intervalo que o historiador
pode buscar a tensão que envolve os diversos setores da sociedade.512
Seguindo as advertências anotadas por Duby, sugiro que tanto o Regimento
Interno da Guarda Municipal como o Código de Posturas Municipais criados para o município
de Itabuna buscavam controlar comportamentos e costumes que já eram presentes dentro da
comunidade local, mas que passaram a ser questionadas pelos poderes municipais em favor da
padronização de condutas criadas sob a justificativa de assegurar a “ordem” e alcançar o
“progresso” moral diante do discurso de urbanização. Em janeiro de 1942, em um discurso
pronunciado para os membros da corporação, o comandante geral João Moraes acentuava as
dificuldades enfrentadas pelo que chamava de “espíritos malignos”. Dizia que

511
Idem, Ibidem.
512
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. Trad. Jônata Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. O autor trata dessa questão ao estudar os códigos eclesiásticos que
permearam as relações entre homens e mulheres durante a Idade Média, especialmente acerca do amor cortês
que fundamentava o matrimônio na sociedade medieval. pp.12-13

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Não deixa de surgir das trevas, meia dúzia de espíritos maléficos, tentando
implantar entre nós a desunião; mas, felizmente, sempre tem sido cortadas as
suas covardes investidas, pois eles não resistem a luz que clareia o cérebro
dos bem intencionados, assim como a ave agorenta não resiste a luz do dia!513

As queixas de Moraes não eram involuntárias. Pesquisando nos relatório da


Guarda Municipal, freqüentemente publicados no Jornal Oficial, encontramos várias multas e
punições aplicadas em membros da corporação por transgredir o regimento da instituição.
Este foi o caso de Inocêncio Ferreira Almeida que teve seus vencimentos cortados em três
dias pelo Inspetor João Moraes por ter infringido o parágrafo 25 do artigo 45, que versa sobre
o levantamento de falsas acusações. Em relatório do mês de maio, podemos encontrar duas
multas ao guarda Nelvy Amado, sendo ambas relacionadas ao provocamento de discussões
em via pública, que teve seus vencimentos cortados em quatro dias.514 Em 20 de julho de
1933, o guarda de segunda classe Adail Argentino de Alburqueque foi multado em dois dias
de trabalho por ter se ausentado do posto de serviço, tendo sido encontrado na Pensão “Racho
Fundo”. No mesmo relatório, foi suspenso por dez dias da corporação, Antonio Pinheiro
Dantas, por ter se portado de modo inconveniente na Inspetoria por ocasião do pagamento dos
vencimentos.515
Em outra oportunidade, os guardas Adelino Oliveira de Melo e Dado Sinval Lago
levaram uma pesada punição de cinco e oito dias, respectivamente, por ter sido flagrado em
Cabarets, contrariando um dos requisitos da corporação municipal. No mesmo relatório,
encontramos a expulsão do soldado n.º 14, Joaquim José de Souza, do posto de guarda efetivo
em face do seu vício à embriaguez. 516 Essas ultimas punições relacionadas à presença em
bordéis e à embriaguez possui uma diferença das outras anteriores. Quando da publicação, as
primeiras apresentavam o motivo da punição por extenso e o artigo infligido, talvez por se
tratar de causas menos constrangedoras à corporação. Já as últimas, por se tratarem de
comportamentos que eram combatidos com maior força pela guarda municipal, não tiveram as
circunstâncias que levaram a punição escrita por extenso, sendo apresentada apenas o
parágrafo do Regimento Interno da Guarda Municipal que indicava o motivo do castigo. Essa
podia ser uma forma de camuflar perante a população a ocorrência de comportamentos que
eram perseguidos por essa corporação.
Os exemplos citados acima mostram a dinâmica das relações sociais que
envolviam os interesses do poder público e o comportamento da classe trabalhadora. Mostram

513
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 6 de janeiro de 1942, Ano VIII, n. 553. p.2.
514
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 1 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6.
515
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 5 de agosto de 1935, Ano V, n.º229.
516
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231

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que antes de se tornarem a polícia de costumes e hábitos de Itabuna, seus membros se


relacionavam com os subalternos. Ao mesmo tempo em que tentariam evitar a ocorrência de
hábitos considerados estranhos e inoportunos pela administração pública, os guardas
municipais necessitaram também afrontar contra seus próprios costumes no interior da
corporação. Isso de alguma forma, já apresenta os antagonismos de interesses que estavam em
jogo na cidade entre as décadas de 1940 e 1930, traduzidos, neste caso, pela tensão existente
entre os preceitos da Guarda Municipal e os hábitos populares de seus membros. A
historiadora Claúdia Mauch destaca que os agentes da segurança deveriam ter em mente a
responsabilidade da sua “missão civilizadora”, sendo cobrados uma postura exemplar de
moralidade e escrupulosa nos seus deveres cívicos e privados.517 No entanto, em algumas
oportunidades, essa expectativa da historiadora era contrariada na experiência dos soldados da
força de Itabuna, apontando que nem sempre a força repressiva se impõe diante das tradições
das pessoas comuns.
Em outras ocasiões, os soldados da força municipal também davam
demonstrações da negação dos requisitos de civilidade defendidos pelo regimento da
instituição. Em julho de 1933, o guarda n.º 17, Edmundo Jorge dos Santos, foi multado em
dois dias de vencimento por ter infringido o artigo 45 ao usar de violência contra um menor
em presença desta inspetoria. Da mesma forma, o guarda de segunda classe Antonio Ramos
de Souza, por tem usado de força excessiva na punição ao menor Antônio dos Santos Lima
que se encontrava dirigindo uma tropa de animais pelas vias urbanas do perímetro central.
Atitudes como essas terminaram por delimitar as ações empreendidas pela guarda mediante o
518
uso da violência na aplicação da “civilidade” em Itabuna. Os abusos empreendidos pelos
membros da corporação chegavam a incomodar alguns setores do comércio local. Em 17 de
maio de 1933, Benigno Valverde Martins, administrador do Elite Cinema, enviou ofício para
que o prefeito tomasse medidas no sentido de repreender o comandante João Moraes em face
dos excessos cometidos por soldados da Guarda. Naquela oportunidade, o gerente do cinema
pediu que, “para melhor regularidade do serviço e coibir abusos por parte dos guardas, para o
policiamento interno deste estabelecimento [...] foi terminantemente proibida a entrada
gratuita de guardas no Elite Cinema.”519

517
MAUCH, Claúdia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 1992. Partindo de uma visão foucaultiana da
ação policial em Porto Alegre do século XIX, a autora busca compreender o olhar vigilante dos policiais através
das condutas e dos comportamentos impostos à estes trabalhadores.
518
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 24 de junho de 1933, Ano II, n.º 114. p.8; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 8 de julho de 1933, Ano II, n.º 116. p.4.
519
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 27 de maio de 1933, Ano II, n.º 114. p.8

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Se internamente a Guarda Municipal já enfrentava a tensão existente entre seus


membros de corporação, já podemos imaginar os conflitos que deveriam aparecer entre os
guardas, enquanto representante dos interesses das municipalidades, no seu relacionamento
com os grupos populares. Um pouco desse clima de disputa é possível de ser sentida em
advertência feita pelo secretário interino de obras públicas, José Muniz Nascimento, publicada
no dia 23 de janeiro de 1938, que tinha o seguinte teor:

Ainda, no intuito de evitar aborrecimentos entre a Fiscalização e o Povo,


chamamos a atenção para as exigências da lei e sobretudo do Código de
Posturas, tendo em vista os avisos de 23 e 28 de dezembro de 1937,
assinado pelo inspetor da Guarda Municipal João Moraes. Esta prefeitura
não quer indispor-se com os seus munícipes, porém não pode tolerar o
relaxamento das leis. 520

Com o objetivo de alertar os munícipes para existência de regras e de normas que


regiam a cidade de Itabuna, o secretário José Muniz de Nascimento deixava escapar as
difíceis relações entre os poderes instituídos e os trabalhadores. Não era incomum os alertas
aos problemas que preocupavam as autoridades municipais a partir do Jornal Oficial e,
quando fosse necessário, do Jornal A Época. Os avisos da fiscalização municipal, que estava
sob responsabilidade da citada guarda, transitavam entre a proibição de andar de bicicletas em
praças da rua até apreensão de animais, principalmente cachorros, que estivessem à solta na
cidade. No entanto, nessa situação de contradição que envolve a Guarda Municipal e os
habitantes de Itabuna, o peso de medida para a resolução dos casos conflituosos era o Código
de Posturas. Como se pode observar na citação acima, a prefeitura não parecia inclinada a
“relaxar as leis” nos casos de contenda com a população.
Se numa parte do cenário de Itabuna a guarda municipal não parecia relaxar diante
das infrações dos munícipes, na outra os trabalhadores também não se demonstravam
conformados e satisfeitos com as novas regras do jogo urbano local. Não há dúvidas quanto
ao fato de que a Guarda e as Posturas municipais se encaixavam na tentativa de criar uma
nova organização jurídica de saneamento das disputas sociais existentes na cidade planejado
pelos setores dominantes. Mas sua aparência de neutralidade e de imparcialidade era
descortinada pelos conflitos registrados nos relatórios da atuação dos soldados nas ruas e
praças de Itabuna. Em 1936, por exemplo, Olegário Alves dos Santos e Francisco Ribeiro da
Silva, ambos carregadores, eram acusados por Manoel Fernandes de Araújo ter desobedecido
às ordens de recolher seus instrumentos de trabalho da calçado e, posteriormente, desacatado

520
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 231.

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à autoridade pública municipal em via urbana. Em junho de 1938, a guarda municipal


catalogou um número acima da média de desordens e desacatos dos munícipes aos seus
membros. Ao todos foram cinco casos, dentre os quais, o mais representativo das tensões
urbanas foi o de Paulo Fagundes de Oliveira, que além de usar medidas de alumínios
adulteradas na Feira Pública, ainda promoveu desordens e desacato contra o guarda José
Messias Vianna. No mesmo relatório, o guarda Manoel Fernandes de Araújo voltava a
registrar um caso de desacato contra um carregador.521
A experiência de conflito entre a Guarda Municipal e os trabalhadores (incluindo
também os membros da corporação) sugere as diferenças de interesses existentes no campo da
cidade em transformação. Chalhoub sugere que esses choques aconteciam por conta da
consciência dos trabalhadores em relação prática das instituições de segurança. Para ele, havia
uma desconfiança dos grupos populares em relação à polícia e a lei na aplicação da ordem
social. Assim, o autor carioca defende que “esses exemplos microscópicos de insubmissão em
relação à autoridade constituída parecem se inserir numa tradição já relativamente longa de
protesto popular entre os homens livres pobres da cidade”.522 Em posição semelhante,
Thompson sugere que as leis surgem como uma severa medida dos interesses do governo,
cujo interesse responde aos anseios de seus próprios defensores políticos. As normas jurídicas
surgiam por uma nova maneira de controle e de disciplina de classe sintonizado com as
transformações sociais e econômicas do mundo moderno.523
A contribuição destes autores que pensaram realidades tão distintas de Itabuna
serve para que se possa refletir sobre o sentido desses micros demonstrações de rebeldia. Os
enfrentamentos entre a Guarda Municipal e os Trabalhadores são reflexos de que os
habitantes não se submeteram as imposições do poder público. Talvez aqueles que
desacatavam as autoridades públicas locais não enxergassem na prática dos poderes
instituídos uma forma de mediar seus problemas sociais, mas sim, obstáculos aos seus
interesses e aos modos de vida da classe trabalhadora. Assim, partindo desse entendimento, as
estratégias e as táticas elaboradas pelas pessoas pobres e livres de Itabuna fossem no sentido
de burlar essas determinações da ordem estabelecida, procurando caminhos alternativos para
que pudessem preservar suas tradições e seus costumes em comum. No entanto, quase
521
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 17 de outubro de 1936, Ano VI, n.º 290;
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 2 de julho de 1938, Ano VII, n.º 375. p.6.
522
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. p.296.
523
THOMPSON, E.P. Senhores e Caçadores: a origem da lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987. O autor defende que a criação da lei Negra atendeu as necessidades de adequar o código jurídico
britânico ao controle e disciplina estipulados pela classe dominante e que a Lei Negra reverteu a essência da
punição do delito contra o homem para o delito contra a propriedade. p.281 e 282.

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sempre, essas medidas eram entendidas pelas autoridades como condutas desviantes que
deveriam ser punidas e eliminadas numa cidade que buscava um padrão de urbanidade.
Quanto mais esses comportamentos fossem freqüentes, mais forte e intensa seriam
as medidas do poder público. Não é por acaso que diante do elevado número de desordens e
de desacato registrados pelos membros da corporação, João Moraes, comandante da força
pública, publicasse no Jornal Oficial uma série de leis que deveriam ser obedecidas em 1938.
entre vários pontos relativos hábitos, higiene e segurança, destaco aquela que se referia a
importância da moral e da obediências aos princípios de urbanidade de Itabuna, em que dizia:
“Tudo que não é verdadeira moral é imoralidade [...] É expressamente proibido a quem quer
que seja proferir palavras ou atos obscenos ofensivos à moral ou bons costumes, em qualquer
parte. [...] Governar sem a contribuição espontânea do povo não é fácil.”524
Em 1942, o mesmo João Moraes aparecia ainda mais ufanista quanto ao papel da
Guarda Municipal. Talvez influenciado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o
comandante oferecia ares patrióticos à função cumprida por seus subordinados. Dizia que os
soldados da guarda deveriam ajudar no policiamento da cidade, ajudando ao delegado local,
devendo agir com serenidade e prudência. Mas não se esquecia de dizer que sua instituição
não toleraria qualquer movimento subversivo em defesa do “povo, e se parte desse povo,
confundir patriotismo com anarquia devemos voluntariamente [...] repelir o inimigo exterior e
manter a ordem interior.” 525
Ao lado da polícia, a Guarda Municipal atuava fortemente na repressão ao jogo do
bicho. Entre abril e maio de 1938, ocorreram diversas apreensões de materiais relacionados a
jogatina. Isso porque o Interventor do Estado Landulfo Alves e o secretário da prefeitura
Nathan Coutinho trocaram telegramas acerca da importância de se combater os jogos ilícitos.
Negando a existência de tal transgressão em Itabuna, a prefeitura prometia se manter vigilante
aos jogadores, afirmando que “Município Itabuna onde jamais entrou malfadado vício confia
esclarecido governo V. Exc.ª manter sua tradição hipotecando inteiro apoio todas as medidas
visem o saneamento de nosso Estado.”526 Firmando esse propósito, possivelmente o executivo
tenha pressionado a Guarda a reforçar sua atuação contra a jogatina. Somente no mês de maio,
foram cinco apreensões. Destaca-se a diligência efetuada Argemiro de Oliveira, que
encontrou sob posse de Adelino Soares da Silva vários talões de jogo do bicho e a quantia de
48$000 (quarenta e oito mil réis) decorrente de seus clientes. Além de oferecer ajuda para a

524
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379.
525
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 19 de agosto de 1942, Ano XI, s;nº, s/p.
(documento deteriorado)
526
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 23 de abril de 1938, Ano VII, n.º 365. p.6.

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Polícia Militar, a guarda municipal também participava efetivamente da fiscalização no


município.527
Eram os soldados da Guarda Municipal os responsáveis pela fiscalização das
obras nas vias urbanas e da distribuição e manutenção das licenças de trabalhos concedidas à
ambulantes de Itabuna. Também atuava junto com a Higiene Pública no controle dos preços,
dos pesos e das medidas nas feiras livres. Em 27 de julho de 1936, Antonio Cordeiro de
Miranda havia determinado ao comandante Moraes que fosse realizada a prisão de cinco
vendedores de leite com sob acusação de falsificação do referido líquido. No dia seguinte, os
soldados apresentavam junto ao delegado de polícia a captura dos ambulantes. Em 27 de
janeiro de 1940, João Ramos Morinho apreendeu sob a ordem da diretoria de higiene nove
quilos de peixe por estarem adulterados de Uziel Neves.528
Como se pode observar, não era fácil construir uma vigilância para Itabuna. A
ação da Guarda Municipal não era garantia de que os trabalhadores se submeteriam
facilmente às regras do poder público. A própria criação de uma força local já indicava que as
instituições de repressão estaduais não conseguiam suprir a necessidade de ordem ensejada
pelos segmentos dominantes da cidade. O código de posturas de Itabuna era a principal base
jurídica que os soldados utilizavam para mediar as relações com os munícipes. No último
capítulo será observado com mais profundidade que as Posturas eram um conjunto de leis
urbanas destinadas a padronizar o comportamento e os costumes existentes na cidade. Apesar
de duas versões do ano de 1908 e 1924, foi o Código de Posturas de 1933 que melhor
delineou os interesses da classe dominante no sentido de criar um novo paradigma de hábitos,
baseados nos ideais de ordem, higiene e progresso.
Apesar de todo esse poder construído pela administração pública para a cidade de
Itabuna, mesmo com a ação dos departamentos de Higiene e da Guarda Municipal, os sujeitos
urbanos e pobres pareciam não se sentirem seguros das intenções dos setores políticos
hegemônicos. Na tentativa de engendrar uma sociedade “ordenada” e “civilizada”, as
municipalidades não conseguiram esconder os objetivos de coibir práticas populares e de
controlar a ação dos habitantes dos trabalhadores. Os alvos das diligências dos instrumentos
políticos era eliminar qualquer atividade que desequilibrassem a ordem estabelecida. Com
isso, construíram o jogo de tensão que colocava no mesmo cenário, mas em pólos opostos, o
poder público e poder popular dos trabalhadores. Dois poderes e uma cidade. Dessas

527
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367. p.6.
528
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 15 de agosto de 1936, Ano VI, n.º 281; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano IX, n.º 455. p.10.

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descontinuidades históricas evidentes no agir, nos discursos das autoridades municipais e nas
vontades rebeldes, como afirma Certeau, foram se erguendo a sociedade itabunense.529
Apareceram assim os sujeitos históricos “de baixo” para reafirmar suas posições e negar a
força “preponderante” dos coronéis, e descobrir as diferenças e as desigualdades sociais.

529
Apud CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. TRad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 161. Para Chartier, Certeau produz uma noção de
história onde a coerência pode ser encontrada nos “desvios”, que na verdade não são desvios, mas sim, formas
elucidar a relação mantida entre o discurso hegemônico e o corpo social que o sustenta e o questiona ao mesmo
tempo.

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NOS LABIRINTOS DA CRIMINALIDADE: FORMAS DE


COMPREENSÃO, VIVÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE CRIMINALIDADE
EM SALVADOR (1940-1964).

Wanderson B. de Souza – UNEB


wbs2003@bol.com.br

A temática das “formas de compreensão, vivência e construção da criminalidade em Salvador


de 1940-1964, pelos criminosos pertencentes às camadas subalternizadas”, se insere em um
contexto histórico, no qual aspectos da violência eram apresentados com freqüência em nossa
sociedade, seja através das políticas públicas de segurança, seja pelos conflitos entre os
indivíduos em particular. Nosso objetivo é analisar o modo como a criminalidade foi
construída, vivida e pensada na capital baiana, entre os anos de 1940 e 1964, e as formas
como o referido problema social se apresentou no universo social dos indivíduos considerados
criminosos. Temos por hipótese que, de certa forma, a criminalidade acabou transformando e
redefinido as relações sociais antes estabelecidas na Salvador Republicana do citado período.
Isso nos remete a pensar como esses conflitos e tensões ocorridas foram capazes de
influenciar nas práticas cotidianas da época. Assim, a temática proposta indaga sobre o grau
de complexidade daquela sociedade, uma vez que a criminalidade pode nos colocar diante de
conflitos e disputas entre sujeitos dos mais variados níveis sociais que, motivados por uma
diversidade de questões, optam por solucionar seus problemas pela via do conflito.

Palavras-chave: Criminalidade, Cotidiano, Violência.

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As transformações ocorridas no campo da pesquisa historiográfica apontam para


uma crescente pluralidade temática e de abordagem, tendo possibilitado ao historiador
melhores condições para o entendimento sobre as sociedades. Entendemos que o estudo sobre
a criminalidade pode ser concebido enquanto possibilidade de compreender o universo
cotidiano dos sujeitos ligados direto ou indiretamente com práticas criminosas na sociedade.
Nessa pesquisa, tomamos como ponto de partida as relações conflituosas estabelecidas no

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âmbito daquilo que identificamos como “criminalidade”, 530 no intuito de, acompanhando as
trajetórias de vida de sujeitos criminosos ou criminalizados, identificar as relações
estabelecidas entre os mesmos e os demais segmentos da cidade de Salvador.
O contato com as fontes nos possibilita afirmar que, entre 1940 e 1964, havia uma
forte incidência de ações consideradas como criminosas, tendo a imprensa, em alguns
momentos, alertado para os altos índices de violência na cidade. Se tomarmos este veículo de
comunicação como ferramenta de representação dos anseios e angústias dos grupos
hegemônicos, podemos, a partir de seu discurso, ter uma idéia de como esses grupos estavam
pensando os problemas oriundos da criminalidade.
Preocupado em analisar o momento da perspectiva das mudanças e permanências
na cidade de Salvador, buscaremos mostrá-las a partir da dinâmica da criminalidade, visando
captar, entre os sujeitos dos mais variados segmentos sociais, as táticas531 cotidianas532 de
sobrevivência face à violência presente nas relações familiares, de trabalho e de lazer. Temos
por hipótese que, de certa forma, a criminalidade acabou transformando e redefinido as
relações sociais antes estabelecidas na Salvador Republicana de 1940-1964. Isso nos remete a
pensar como esses conflitos e tensões ocorridas na cidade foram capazes de influenciar nas
práticas cotidianas da época.

II – APRESENTANDO O LABIRINTO

Esse trabalho visa investigar o cotidiano do universo da criminalidade ocorrida em


Salvador entre as décadas de 1940 e 1964, especialmente as práticas criminosas desenvolvidas

530
Criminalidade e crime serão aqui trabalhados de acordo com a definição de Boris Fausto, em sua obra Crime
e Cotidiano, na qual o mesmo entende as duas expressões como tendo significados específicos. Para ele,
“’criminalidade’ se refere ao fenômeno social na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de
padrões através de constatações de regularidades, cortes; ‘crime’ diz respeito ao fenômeno na sua singularidade,
cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas
percepções.” (FAUSTO, 2001, p. 19).
531
Utilizo-me aqui da definição de Michel de Certeau, que o denomina tática, “... um calculo que não pode
contar com um próprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática
só tem por lugar o do outro (...) Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas
expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias (...) Tem constantemente que jogar os
acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, os fracos deve tirar partido de forças que lhe são
estranhas.” (CERTEAU, 1994, pp. 46-7).
532
Sobre a idéia de cotidiano, optamos por trabalhar com os argumentos de Maria Odila Leite da Silva Dias, que
assevera ser este, “sempre legado ao terreno das rotinas obscuras, o quotidiano tem se revelado na história social
como área de improvisação de papeis informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se
multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o político no campo da história social
do dia-a-dia... (DIAS, 1995:14-5)”. Processo que tem como implicação, a reconstrução da organização de
sobrevivência dos grupos historicamente marginalizados do poder.

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por sujeitos pertencentes às camadas subalternas. Os indivíduos aos quais buscamos estudar
serão aqueles que de certa forma ocuparam espaços marginalizados da sociedade
soteropolitana, tanto nos espaços físicos, como pelas posições sociais de pouco prestigio na
mesma.
Concentrar-nos-emos naqueles sujeitos cujo exercício da cidadania, de certa
forma, foi-lhe extirpado pelas elites dominantes locais. Trata-se de pessoas de pouca ou
nenhuma escolaridade, trabalhadores das mais variadas profissões, desempregados, de baixo
poder econômico e em sua maioria, negro. Cabe ressaltar que ao longo dos séculos de história
brasileira, as camadas subalternas têm sido comumente estigmatizadas de diversas maneiras
pelas elites dominantes, as quais impuseram uma imagem às populações negras e pobres,
sempre associada à violência.
A partir de diversas formas de segregação impostas a esses grupos, construiu-se
um discurso da busca pela segurança, cujo objetivo foi assegurar às camadas dominantes o
controle sobre os mesmos, que eram vistos como uma ameaça à sociedade. Para alguns
autores, aqueles que seriam considerados “vitimas” desse violento processo de exclusão que
historicamente se constituiu, tornaram-se os principais alvos do novo projeto de repressão,
formulado na sociedade (CANCELLI, 1994; FRAGA FILHO, 1996;).
No contexto da década de 1940, foram realizadas várias obras na cidade buscando
o “bem estar social” para os habitantes, um período de grandes construções.533 O processo de
urbanização e, a tentativa de industrialização realizada durante a década de 1950 em Salvador,
incluso em um projeto de modernização da cidade, foi capaz de modificar os pensamentos e
hábitos de seus moradores.534 A partir desse processo aumenta-se o perímetro urbano da
mesma, surgindo novos bairros e avenidas, ampliando-se a população local.535 Com isso
passam a surgir graves problemas sociais, resultado desse processo de modernização vivido
pela capital baiana, para os quais as autoridades reservavam pouca atenção.536 Começam
surgir habitações irregulares, em espaços sem saneamento básico, iluminação elétrica, entre
outros serviços necessários para o bem estar dessa população.
A insuficiência do mercado de trabalho na Bahia de 1940, teria contribuído para
ampliação do êxodo de pessoas de alguns municípios para a capital do Estado na busca por
melhores chances profissionais. Segundo Ferreira Filho (2003), neste período o mercado de

533
Precisamos de terra para construir nossas casas. . Jornal da Bahia, Salvador, 28 set. 1958, p. 6
534
GOMES, Pimentel. A industrialização da Bahia. Jornal da Bahia, Salvador, 28 out. 1958, p. 2; GOMES,
Pimentel. Salvador, cidade culta e dinâmica. Jornal da Bahia, Salvador, 01 out. 1958, p. 2
535
Enquanto novas construções se fazem e a cidade se amplia. A Tarde, Salvador, 22 de mar. 1941, p. 2
536
Ao povo não se engana. Jornal da Bahia, Salvador, 24 set. 1958, p. 2; Salvador, cidade imunda: das 250
toneladas de lixo apenas 120 são coletadas. . Jornal da Bahia, Salvador, 11 ago. 1958, p. 5

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trabalho era extremamente restrito, o qual contava com o fraco poder de consumo, fruto do
baixo poder aquisitivo da população. Isso teria contribuído para o surgimento de novas
alternativas de sobrevivência na cidade, coincidindo com os índices assustadores de vadiagem
e violência urbana.
A tentativa de modernização da cidade de Salvador é pensada por Fonseca (2002),
enquanto um projeto amplo de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais e políticas. Para
ele, nas primeiras décadas do século XX, o bojo da luz das reformas urbanas vivenciadas pela
cidade, buscou-se reformulações comportamentais, melhor dizendo, normatizações
comportamentais. Desta forma, para se conseguir reformar a cidade foi necessário “...
incorporar modernas práticas de lazer, escolarizar as mulheres, repensar a família, redefinir as
formas de sociabilidade no espaço publico...” (FONSECA, 2002, p.25).
Desde os primeiros anos desse período, o crescimento da criminalidade já era
noticiado pela imprensa baiana que via os problemas de ordem estrutural como elementos que
facilitavam a ação dos criminosos. A falta de policiamento nas ruas da cidade era
constantemente questionada por essa imprensa. Segundo a mesma, a onda de criminalidade
vivida em Salvador não se restringia apenas aos “bairros populares”, incluía também os
centros da cidade, cujas políticas de prevenção exercida pelos policiais tornavam-se uma
prática de pouco efeito.537
As fontes evidenciam uma cidade com altos índices de violência, cuja falta de
segurança, quase sempre denunciada pela imprensa baiana, refletia os descasos das
autoridades frente aos problemas enfrentados por essa sociedade. Nesta última existiam certas
modalidades de crimes mais comuns, os quais refletiam o universo social no qual o criminoso
se inseria. Esse sujeito aparecia envolvido em disputas pessoais que, em alguns casos,
resultavam em morte. Além disso, é possível perceber como o processo de exclusão e
violência, contra alguns grupos sociais, era bastante evidente nas décadas de 1940-1964. Isso
remete à questão de que, historicamente, as políticas adotadas no combate à criminalidade,
pelas autoridades policiais, têm sido resumidas às medidas repressivas.
A violência sempre esteve presente na sociedade brasileira envolvendo sujeitos
das mais diversas esferas sociais, porém, a repressão institucionalizada quase sempre foi
direcionada contra grupos marginalizados por essa sociedade. O Estado se utilizou da
prerrogativa de estar buscando a manutenção da “ordem social”, submetendo toda sociedade
civil organizada ao seu jugo, sob vigilância policial, sendo que certas camadas foram mais

537
A repressão é enérgica mais os infratores não desistem. A Tarde, Salvador, 21 de fev de 1951, p. 8

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perseguidas por essa vigilância, as quais formadas, em sua maioria, por pessoas negras, de
baixa renda e de pouca escolaridade. As representações policiais, quase sempre,
reivindicavam o monopólio do uso da violência no combate à criminalidade, tendo o poder de
definir quais os grupos seriam criminalizados e, por sua vez, perseguidos (CANCELLI, 1994;
FRAGA FILHO, 1996;).
Cancelli (1994), ao estudar a violência durante a “Era Vargas”, vai afirmar que o
Estado, obcecado pelas transformações, apropria-se do uso da violência como instrumento
transformador, outorgando o monopólio da mesma, na tentativa de impor seu poder na
sociedade. Sobre isso, a autora argumenta: “... ao conjunto de instituições o Estado reserva
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer a forma
específica de poder que é a ‘governamentalidade’ e, cujo alvo é a população...” (CANCELLI,
1994, p. 22-3). A justificativa para sobreposição do Estado à Lei e às garantias dos direitos
dos cidadãos era que o uso da violência ─ entenda-se aquela direcionada aos sujeitos
considerados criminosos ─ seria defendida pelos poderes públicos como necessária para
preservação da “ordem” e do bem estar da população.
A temática das “formas de compreensão, vivência e construção da
criminalidade538 em Salvador de 1940-1964, pelos criminosos pertencentes às camadas
subalternizadas”, se insere em um contexto histórico, no qual aspectos da violência são
apresentados com freqüência em nossa sociedade, seja através das políticas públicas de
segurança, seja pelos conflitos entre os indivíduos em particular.

III – DIÁLOGO BIBLIOGRÁFICO

Nas últimas décadas, a História Social tem realizado um grande esforço no sentido
de tentar compreender as relações historicamente estabelecidas entre as diferentes camadas
sociais, sobretudo a historiografia que estuda as práticas cotidianas dos sujeitos pertencentes
aos seguimentos ditos subalternos. Neste contexto, para a apreensão dos comportamentos
violentos das camadas sociais que constituía a população soteropolitana, buscamos situá-los

538
Para realização de um estudo sobre a criminalidade é necessário que delimitemos quais os tipos de crimes que
pretendemos pesquisar, pois pensar este problema social é remeter-se a uma série de atos contrários às Leis,
tornando-se algo muito generalizante para uma pesquisa. Diante dessa questão, buscamos delimitar nossas
atenções em estudar, especificamente, duas modalidades de crimes: as formas de Homicídios: Simples,
Qualificado, Culposo e as formas de Lesões Corporais: de Natureza Grave, Seguida de Morte, Culposa, ambas as
modalidades presentes no Código Penal de 1940, na Parte Especial, Título I, Dos Crimes Contra a Pessoa,
especificamente Capítulos I e II, que dispõe de crimes Contra a Vida e das Lesões Corporais, respectivamente.

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em um espaço e tempo transcorrido. Focá-los em uma dimensão histórica constitui-se uma


tarefa necessária para uma possível compreensão da sociedade, na qual a nossa tentativa é
compreender as relações criminosas em sua multiplicidade de formas e configurações
históricas.
Diante dos muitos desafios que a temática escolhida nos impõe, trazemos os
argumentos de Chartier (1990, p. 17), defendendo que a representação do mundo social é
sempre determinada pelos interesses dos grupos que as forjam. Nosso desafio é identificar
como os discursos oficiais apresentavam os criminosos à sociedade, buscando evidenciar
outras possibilidades de entendimento sobre experiências de vida desses indivíduos. Tais
histórias serão trazidas dos autos de processos crimes e das páginas dos jornais e, dessa
perspectiva, pretendemos comparar as representações da criminalidade construídas pelos
indivíduos diretamente envolvidos em crimes com aquelas construídas pelas autoridades e
pela imprensa.
Ao defender que os inquéritos micro-históricos, em muitos casos, têm os temas do
privado, do vivido e do pessoal, como objeto de análise, Ginzburg (1991) traz elementos que
nos ajudam a compreender, em nosso caso particular, a importância dos processos criminais,
os quais nos apresentam os indivíduos enquanto criminosos, autores, vítimas e/ou
testemunhas de um crime. O autor também chama atenção para o risco que corremos em
determinados estudos, quando não atentamos para a complexidade existente nas relações que
ligam os sujeitos a uma determinada sociedade.
No artigo “Textos, Impressão, Leituras”, Chartier (2001), ao discutir uma história
de distintas práticas de leituras, mostra como um texto pode ser entendido de formas tão
diferentes pelos leitores. Ele explica que a experiência mostra que ler não significa estar
submisso aos mecanismos textuais, e sim, uma prática criativa, capaz de inventar significados
e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores, produtores dos textos. O
referido autor destaca que “o historiador deve buscar um meio de determinar os paradigmas
de leituras predominantes em uma comunidade de leitores, num dado período e lugar” (pp.
226-7). Partindo dessa perspectiva de análise, buscamos dialogar com o citado trabalho na
tentativa de entender as formas de compreensão que os habitantes de Salvador tiveram, sobre
o universo da criminalidade.
Acreditamos que os argumentos desenvolvidos na última obra citada são
significativos para esta pesquisa, na medida em que contribui para entender como foram
possíveis distintas formas de leituras dos habitantes com relação ao presente estudo Na
verdade, nosso desafio é entender e mostrar não só as diferentes formas de compreensão,

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vivência e construção da criminalidade dos sujeitos pertencentes às camadas subalternas,


pretendemos mostrar também como essas diferentes formas de leituras se articulavam e se
integravam num mesma espaço e tempo.
Sabemos que as percepções do mundo social não são discursos neutros. Pelo
contrário, estes últimos indicam a existência de concorrências e competições entre os
indivíduos de uma determinada sociedade, resultando na tentativa de imposição de uma dada
concepção de mundo social de um grupo frente outro (CHARTIER, 2002). O trabalho de
Schwarcz (1987), Retrato em Branco e Negro, constitui uma significativa sugestão para se
pensar essa questão a partir da produção discursiva da imprensa, pois, para a autora, os jornais
podem ser lidos e interpretados de diversas maneiras e é preciso estar atento para o fato de
que, neles são apresentados vários relatos que trazem inúmeras “pistas” e “sinais”, os quais
possibilitam diversas interpretações sobre um mesmo fato.
Segundo ela, “através de uma série de recurso de pontuação, grifos e expressões,
o texto encaminha ironicamente a reflexão contra a aparente verdade que começa a
enunciar” (SCHWARCZ, 1987, p. 13). Com base nesse processo, buscamos captar aspectos
particulares das supostas mudanças e permanências históricas expressas nos discursos da
imprensa soteropolitana do período recortado por nós, bem como compreender o papel
desempenhado pela imprensa baiana no processo de noticiar o problema da criminalidade
local.
O contato com a documentação produzida pela imprensa baiana da época nos
possibilitará identificar como as ações consideradas criminosas eram entendidas pela
população de uma forma em geral. Essa produção discursiva será pensada, em parte, como
um reflexo do pensamento das elites baianas no tocante ao fenômeno da criminalidade. Neste
caso, os jornais serão compreendidos aqui, “primeiramente, enquanto ‘produto social’, isto é,
como resultado de um ofício exercido e socialmente reconhecido, constituindo-se como um
objeto de expectativas, posições e representações específicas” (SCHWARCZ, 1987, p. 15). É
importante destacar também o papel deste veículo de comunicação no que diz respeito aos
embates da sociedade, quando o mesmo agia como produtor e/ou reprodutor desses embates
(MOREL, 2003).
Em sua obra, Crime e Cotidiano, Fausto (2001) estuda a criminalidade na cidade
de São Paulo, entre os anos de 1880 e 1924, abordando esta temática como um fenômeno
social produzido a partir de várias determinações. Para ele, o crime não é fruto do acaso.
Neste trabalho, os homicídios são tomados como caminho que possibilita o autor identificar
valores vigentes naquela sociedade. Em seus argumentos, os instrumentos utilizados na

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prática dos crimes indicam padrões culturais, com os quais o autor acredita refletir o estágio
tecnológico da sociedade na qual o sujeito está inserido.
Para Fausto (2001), a violência pode ser empregada com o objetivo de alcançar
determinados objetos materiais, ou pode ainda ser utilizada para resolução de conflitos
pessoais nos quais os sujeitos acabam se envolvendo. Com base nesse pressuposto tentarei
identificar os motivos mais comuns para as ações criminosas, visando entender de que forma
essas ações foram capazes de deixar suas marcas em alguns espaços da cidade de Salvador.
Em seu trabalho, Sodré (1992) analisa a relação dos indivíduos com o território
ocupado, asseverando que o território está muito ligado à questão da identidade daquele que o
ocupa, pois o mesmo refere-se à demarcação de um espaço na diferença com os outros
sujeitos. Segundo este autor, é no território que as pessoas traçam limites, especificam o lugar
e criam as características de suas ações. Com base nesses argumentos, as práticas criminosas
ocorridas na cidade de Salvador podem ser pensadas enquanto demarcação espacial, por parte
dos sujeitos criminosos, na sociedade ao qual os mesmos estão inseridos, bem como uma
forma encontrada para afirmação de um suposto poder frente aos outros.
A idéia de pertencimento a um mesmo território não impedia que houvesse
conflitos entre as pessoas que nele habitavam, pois, num mesmo espaço urbano se encontrava
presente um conjunto de famílias, cujas experiências de vida eram muito distintas umas das
outras, mas que em certo sentido se respeitavam, firmando uma espécie de “contrato social”.
Para Certeau (1996), esse compromisso só é considerado quando as pessoas renunciam “à
anarquia das pulsões individuais” o que, segundo o ele, contribui para o relacionamento
coletivo da convivência cotidiana, embora algumas vezes esse compromisso pareça não ser
considerado.
Em sua obra, Trabalho Lar e Botequim, Chalhoub (1996) desenvolve argumentos
no sentido de conclui que os conflitos entre os trabalhadores, estudados por ele, surgem da
dinâmica dos grupos como ajuste das tensões no interior das relações sócio-culturais dos
micro-grupos, para os quais o crime é apresentado como representação ou leitura de mundo.
A partir dessa leitura, o autor mostra o crime como uma possibilidade de solucionar as tensões
e conflitos existentes entre eles.
A incorporação da violência enquanto um modelo de conduta socialmente válido,
evidenciado por Chalhoub (1996), constitui-se através de normas próprias que regulam os
conflitos entre os trabalhadores livres do Rio de Janeiro. Segundo o autor, algumas dessas
tensões entre esses micro-grupos eram solucionadas sem a intervenção do Estado, evitada
sempre que possível como forma de resistência à nova ordem social. Recorremos a este

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trabalho na tentativa de entender a ligação entre as ações criminosas de determinados sujeitos


com o contexto social no qual o mesmo se insere.
Chalhoub (1996) traz sugestões que nos possibilitam entender esse universo de
conflitos como reflexo de uma forma de vida, cuja dinâmica cotidiana contribui para o ajuste
das tensões estabelecidas no interior das relações sócio-culturais dos micro-grupos. Desta
forma, buscaremos dialogar com seu trabalho, especificamente com suas metodologias de
análise, referente aos estudos dos comportamentos criminosos dos sujeitos pertencentes às
camadas subalternas. Os argumentos apresentados no referido trabalho nos ajudarão a
perceber a criminalidade enquanto representação das condições destes sujeitos.
A criminalidade pode ser pensada de duas perspectivas de interpretação: às vezes,
permeada nas relações de convivência, aparecendo como algo institucionalizado, sendo
muitas vezes gerada a partir de questões sem antecedentes históricos; outras vezes, como um
prolongamento das tensões já existentes (FRANCO, 1997; CHALHOUB, 1996).
Pretendemos saber em que medida foi possível haver em uma mesma sociedade,
distintos modo de compreensão, vivência e construção da criminalidade na cidade do
Salvador, de 1940 a 1964, na tentativa de mostrar como o referido problema social se
apresentou no universo cotidiano desses indivíduos. Nesta mesma perspectiva, indagamos
como as medidas adotadas no combate a esses comportamentos criminosos, eram
compreendidas pela população soteropolitana, e de que forma esta reagia frente a essas
questões.
Diante dessa realidade conflituosa, interessa-nos pensar como um crime causado
por questões aparentemente pessoais, entre duas ou mais pessoas, pode ser entendido como
um problema da sociedade. Nossa intenção é identificar se existe relação entre o público e o
privado, no intuito de perceber como essas instâncias, próprias das relações estabelecidas nos
meios urbanos, influenciam-se mutuamente, pensado isso a partir das ações criminosas.
Pretendemos saber de que forma, as relações estabelecidas no cotidiano eram capazes de
influenciar nas práticas criminosas e vice-versa.
É possível pensar as práticas criminosas ocorridas nesse contexto, como o
resultado das relações sociais construídas ao longo de um processo histórico específico,
integradas às transformações ocorridas no período, ou até mesmo como reação de
determinadas camadas da população soteropolitana às diversas mudanças ocorridas na
sociedade. Diante das diversas transformações, tentaremos identificar quais as principais
mudanças ocorridas no âmbito da criminalidade e seus possíveis desdobramentos nas relações
cotidianas de convívio entre os sujeitos das camadas subalternas.

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IV – LABIRINTO DOCUMENTAL

Uma das formas de se perceber como essa criminalidade se manifestou no


cotidiano dos segmentos subalternizados é analisando os discursos veiculados nos periódicos
da época, através dos quais nos é possível identificar o papel desempenhado pela imprensa
baiana539 no processo de mediação dos conflitos e tensões dos sujeitos subalternos. Nessas
fontes, buscamos identificar informações sobre os crimes, tais como: envolvidos, local de
ocorrência, conteúdo, motivo e aspectos do cotidiano dos conflitantes.
Além dos impressos, utilizaremos processos criminais que vão nos ajudar a
conhecer melhor os indivíduos envolvidos em conflitos, pois é possível encontrar neles
informações que indicam as motivações e as conseqüências das práticas de crimes, além de
mostrar as justificativas, e os argumentos da defesa e da acusação em torno dos motivos que
ensejaram tais atos. Os detalhes e informações contidas em cada episódio possibilita percorrer
a trajetória dos criminosos, com as quais visamos entender como se processava a intervenção
destes nas relações de conflitos e tensões. Nessa perspectiva, esperamos desvendar possíveis
regularidades que podem, em parte, revelar valores e normas que vigoravam entres os
conflitantes, assim como a dinâmica social na qual estavam inseridos.
Entendemos que as categorias de análise criminalidade e crime não se excluem,
mas impõem procedimentos metodológicos específicos. No primeiro plano, abordaremos os
comportamentos criminosos e sua ligação com a trama social; em segundo plano estaremos
atentos para as particularidades do crime em si, enquanto objeto de análise, neste, seguiremos
a sugestão de Ginzburg (1991) que defende o nome do individuo como um fio condutor para
os estudos dos “estratos subalternos da sociedade”, permitindo ao investigador encontrá-lo
em contextos sociais diversos. Essa investigação micronominal, permite ao historiador, se
deslocar, com êxito, pelo “labirinto documental”, possibilitando-lhe identificar o tecido social
no qual o individuo estava inserido.
Para entendermos como se processaram as ações implementadas pelos poderes
públicos na tentativa de controle da criminalidade em Salvador, recorreremos às publicações

539
Os periódicos que estão sendo utilizadas nesta pesquisa são: A Tarde, Correio da Bahia, Diário Oficial,
Diário da Bahia, Diário de Notícias, Jornal da Bahia.

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dos periódicos baianos, em especial do Diário Oficial do Estado da Bahia, no qual podemos
encontrar ações e atos promovidos pelo governo estadual.
Por fim, recorreremos às obras de memorialistas que escreveram sobre a cidade no
período em que a pesquisa está contextualizada, por entender que estes trabalhos nos
possibilitarão captar vestígios da história da cidade. Assim como as demais fontes aqui
pretendidas, os livros de memórias com suas subjetividades serão entendidos como reflexo do
pensamento de determinados grupos da sociedade baiana, cujas formas de compreensão sobre
a cidade, como as diversas informações sobre a mesma serão significativas para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Os inúmeros vestígios contidos nas fontes mencionadas, embora dispersas em
algumas instituições responsáveis em garantir sua preservação,540 visam dar conta da
problemática aqui elaborada. A diversidade dessas fontes contemplará os objetivos almejados
nessa pesquisa, pois esses vestígios contêm muitas informações sobre as trajetórias cotidianas
dos mais variados sujeitos históricos que este trabalho pretende estudar, tanto o criminoso em
sua particularidade, como sua relação com a sociedade.
As fontes que tratam da temática são produzidas por profissionais que se
apropriam do discurso jurídico-policial, refletindo assim, a linha de pensamento desses
setores. Destacamos, porém, que toda documentação possui suas peculiaridades discursivas e,
devido a sua complexidade, os discursos contidos nessas fontes, não podem ser simplesmente
reproduzidos, indiscriminadamente. Para além disso, é preciso submetê-los a uma análise
crítica, fundamentada num conjunto de referências bibliográficas que versem sobre a
temática, tendo como objetivo, entendê-las no contexto em que foram produzidas.

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540
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Geográfico e Histórico da Bahia – IGHBa.

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VALIENTES E CAPOEIRAS: CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS EM


ITABUNA NA DÉCADA DE 1950.

Gissele Raline da Cunha Fernandes Moura - UESC


gissele_raline@yahoo.com.br

O presente trabalho deverá ser apresentado no Simpósio 2: História Social no I Congresso


Sergipano de História. E tem como proposta, a discussão da relação entre os ditos “valientes”
e os capoeiras, na cidade de Itabuna na década de 1950. Esses valentões, ou valientes como
eram denominados pelos periódicos locais da época, assim como os capoeiras, faziam parte e
um grupo social associados a um contexto de violência, e a um processo de disputa de espaços
atrelado ao uso da força. Os indivíduos pertencentes a esse grupo eram também trabalhadores
que tinham suas ocupações nos variados setores da sociedade (desde ambulantes à policiais),
em uma cidade em processo de “modernização” . È nesse emaranhado de relações complexas,
que procuro construir as trajetórias dessas vidas que se encontravam, e que ainda vigoram em
nossos dias.

Palavras-chave: Valientes, Capoeiras, Itabuna.

Em vinte e sete de abril de um mil e novecentos e cinqüenta e quatro o Voz de


Itabuna noticiava:
Pelas reclamações que temos recebido ultimamente, as imediações da
estação da estrada de ferro, tem sido palco de algum tempo para cá, de fatos
abomináveis (...) De ordinário após armarem barulho e sobressaltarem as
famílias, os ‘valientes’ deixam o local sem maiores preocupações, pois as
contendas que travam se realizam sem precalços, uma vez que raramente
aparecem policiais para repararem os acontecimentos541.

A notícia acima é mais um dos vários reclames encontrados acerca dos valientes.
Encontrar tal personagem assim referido: “valientes”, provoca indagações a respeito desta
categorização. Quem seriam os “valientes”? Por que indivíduos eram assim designados nos

541
Arquivo Público Municipal de Itabuna – José Dantas (APMIJD). Voz de Itabuna, 27/04/1954.

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idos dos anos 1950. Quais os elementos que estavam implícitos ao discurso enunciado no
jornal? Quais eram os lugares que freqüentavam?
Os valientes eram sujeitos históricos que permeavam as matérias dos jornais da
década de 1950 como indivíduos de má conduta e promotores de desordens que, quando não
estavam nas páginas policiais, estavam nas crônicas sendo alvo de duras críticas e acusações.
Segundo o Voz de Itabuna, nessa década a violência era algo muito presente no
cotidiano da cidade, sendo alvo de indignação e denúncia expressada nos artigos desse jornal
e por vezes associada aos problemas de ordem estrutural, “... a partir das 18 horas as ruas dos
subúrbios transformam-se em zonas perigosas, onde só os bêbados e os meliantes têm
passagem franca”542 e, “saindo-se do centro, onde nunca falta iluminação, entra-se no restante
da zona urbana onde o silêncio e a treva fazem denotar ameaças de bombardeiro...” 543.
A respeito da matéria que se refere aos subúrbios enquanto zonas perigosas a
partir das dezoito horas, havendo espaço apenas para os “meliantes”544 – essa designação,
meliante chama atenção, posto que é um dos termos da linguagem policial recorrente na
documentação onde é atribuído à pessoas de má conduta, que está em desacordo com a ordem
estabelecida, principalmente àqueles oriundos das camadas sociais mais pobres - que segundo
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa malandro, vagabundo. Isso ocorria
porque esses lugares tinham a iluminação precária o que facilitaria a ação desses indivíduos.
Notícias como estas precisam ser problematizadas.
O Voz de Itabuna, no decorrer dos anos de 1950, pertencia à oposição em relação
aos partidos que estiveram no comando da máquina administrativa . Logo é possível perceber
uma crítica à administração local, que perpassou muito por questões ligadas ao
beneficiamento de determinadas áreas da cidade em detrimento de outras. Centro e o subúrbio
eram pauta cotidiana das páginas desse periódico. E segundo essas notícias havia um
privilegiamento do centro da cidade. Talvez, seja porque o discurso modernizador tenha
chegado à Itabuna, ou pelo menos a seus jornais. Já que a vontade de modernização pela qual
a cidade estava passando naquele momento, respaldava as reivindicações encontradas
naquelas páginas.
Voltando à notícia, fica mais fácil de compreender o teor e o tom, dessa matéria,
quando leva-se em consideração que o Voz de Itabuna, além de ser um jornal da oposição,

542
Voz de Itabuna, 25/05/1951.
543
Ibidem, 07/10/1950.
544
Etimologicamente encontramos a seguinte origem: cast. maleante (1609) 'burlador', de malear, este der. de
malo 'mau'; ver mal(e)-; f.hist. 1858 miliànte, 1877 meliànte .Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=meliante&stype=k. Acessado em junho de 2007.

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como já referido acima, tinha como proprietário Aziz Maron, deputado federal pelo Partido
Trabalhista do Brasil (PTB), que cedia um espaço privilegiado em seu jornal para as
campanhas eleitorais de Getúlio Vargas. Este, por sua vez, estava empenhado no processo de
industrialização do Brasil, que fazia parte de um projeto maior, o de contemplação do
discurso modernizador iniciado nos primeiros anos do século XX, que posteriormente foi
muito criticado pela historiografia545.
Em meio a esse contexto, Itabuna aparecia nas páginas dos jornais destacando os
problemas com a violência, de forma, inclusive sangrenta. Retomando o início dos anos de
1950, encontra-se um alerta sobre o comércio de armas em Itabuna, que estava acontecendo
sob os auspícios da polícia, os “elementos de farda”.

Está merecendo a atenção do sr. Chefe de polícia (...), vendem-se revolvers,


punhais e ‘peixeiras’ às escancaradas, parecendo que aqui se ai transformar
num num pavoroso ‘far-west’ (...). Consta até que elementos de farda são
grandes negociantes de armas. E com tanta arma perigosa, todo mundo
armado, não é e admirar que matem em praça pública.”546

Marcos Luiz Bretas, em seu livro Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da


autoridade policial no Rio de Janeiro (1907-1930), que discute o cotidiano dos policiais na
cidade do Rio de Janeiro no inicio do século XX, identificou naquele contexto, que os
recrutados para compor o quadro do efetivo policial, principalmente os servidores destacados
para a patrulha nas ruas, eram em sua maioria, pertencentes a uma classe social pobre e
possuíam escolaridade mínima, ou nenhuma. Os recrutamentos eram realizados de forma
voluntária, porém os que não se inscrevessem para o destacamento da polícia tinham grandes
chances de servirem ao exército de forma compulsória, onde as condições de trabalho e os
baixos salários eram uma realidade ainda pior que a da polícia. Logo, o que às vezes parecia
um ato voluntário, transformava-se em uma das poucas alternativas para sua sobrevivência,
até porque, às vezes ser policial significava garantir a sobrevivência de famílias inteiras,
mesmo que em condições precárias 547.
Em Itabuna da década de 1950, a situação dos policiais era muito próxima desse
quadro descrito por Marcos Bretas. E talvez explique a possível participação de policiais em
tráfico de armas.

545
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves. O tempo do liberalismo excludente: da
Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
546
Ibidem, 25/03/1950.
547
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro:
1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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A impressão era que a cidade, naquele momento, estava prestes a entrar em


guerra. E nesta guerra, diversos grupos foram alvos da pecha de violentos, e quando o cenário
político era o das eleições, as formas dos preparativos para um momento de singular
importância como este, eram descritas em tons de preocupação e revolta e denunciava o
envolvimento das elites nesse processo:
a situação política de Itabuna já começou agitar-se profundamente.
Preparativos de toda especia estão sendo feitas. Até preparativos bélicos.
Consoante certas informações de fontes credenciadas, gente escolhida e
braba está decendo do Pernambuco e Alagoas, para engrossar de
conhecidíssimos capitães do cangaço local ...548

Nessa matéria, o foco é dado à violência praticada em Itabuna, pelos “capitães do


cangaço”. Sendo a alusão aos jagunços ou capangas, trabalhadores dos fazendeiros da região,
cuja função principal seria matar aqueles considerados inimigos ou os desafetos de seus
patrões. Esses personagens são muito recorrente na literatura local, Maria Delile Miranda
Oliveira, memorialista da região, em sua obra Tecendo Lembranças, contribuiu com essa
discussão registrando a ação desses indivíduos, a exemplo das eleições da cidade afirmando
que “(...) quando o chefão necessita de algum ‘serviço’, os ‘capangas’ eram solicitados (...) a
tocaia ainda permeava todas as vinganças”549.
Sob a alcunha de capanga, apresento neste momento Elpídio Santos, vulgarmente
conhecido por Sururu. Segundo Cláudia Viana D'Andrade, em Capoeira: de luta de negro a
exercício de branco(Via Literarum, 2006),Sururu havia sido “capanga”, ele era “querido, foi
empregado da família Barreto. Seus amigos o denominavam de ‘capanga’, já que nessa
década, existiam os coronéis de cacau e, Sururu, era uma espécie de guarda-costas”550.
Sururu também era capoeirista e “viveu intensamente a capoeira”, e ainda hoje “é
o mais lembrado dos angoleiros”. Em depoimento concedido pelo filho de Sururu à autora, ele
revela que o pai nutria “uma verdadeira paixão pela arte da capoeiragem. Muito forte, valente,
desafiava qualquer um para carregar uma saca de cacau com tanta facilidade”. A valentia e o
desafio eram traços característicos de um capoeira. Sururu aprendeu a jogar capoeira com
alguém que se chamava Teodoro Ramos, também conhecido por Paizinho. Era forte e temido,
sua atuação nas ruas de Itabuna teve seu auge nas décadas de 1940 e 1950, era visto com
freqüência no bairro da Conceição, subúrbio da cidade. 551

548
Voz de Itabuna, 25/03/1950.
549
OLIVEIRA, Maria Delile Miranda. Tecendo Lembranças. Itabuna: 2006.
550
D’ANDRADE, Cláudia Viana Ávila. Capoeira: de luta de negro a exercício de branco. Itabuna, BA: Via
Literatum, 2006, p. 71.
551
Ibidem.

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As ruas eram o palco principal da atuação desses valientes, eles precisavam ser
conhecidos e reconhecidos. O espaço público, assim, configurava um ambiente propício para
sua demonstração de poder e por vezes transformou-se em privado por conta da atuação
destes valientes. Eles eram os valentões donos da rua.
A rua tinha uma expressão maior para alguns sujeitos históricos que dela viviam.
Ela se configura enquanto um espaço de sociabilidade. Um local de trabalho, de lazer e de
acertos de contas. As relações sociais advindas desse espaço público têm como característica
fundamental a variedade de uso que se faz dele. O trabalhador do dia é o mesmo do lazer da
noite, o arrimo de família pode ser o mesmo “arruaceiro” bêbado das sombras da cidade após
as dezoito horas. O mendigo ou “vadio”, tem nas ruas um lugar de moradia e sobrevivência,
as prostitutas tem nas esquinas um trabalho que lhe rende o pão de cada dia. Assim, o que
para uns não passa de um lugar comum, para outros são a sua própria casa, o caminho que a
vida lhe oferece.
Para Josivaldo Pires de Oliveira, em sua obra No tempo dos Valentes: os
capoeiras na cidade da Bahia, uma das características dos capoeiras, é a valentia, a
ostentação de seus atributos – principalmente os físicos – por meio da força ou de ameaças,
sempre exaltando seu domínio sobre aquela área e/ou situação. Ainda em sua obra, Oliveira
cita Manuel Querino onde este descreve que o capoeira é, “em geral, pernóstico,
excessivamente loquaz, (...) typo completo e acabado do capadócio”, e Oliveira continua um
“notório tipo de rua, que inclusive determinava regras para a mesma. Era ele um tipo de
‘dono’ das ruas ou pelo menos dos territórios sociais que se constituíam nessas ruas”552.
Em Negregada Instituição, de Carlos Eugênio Líbano Soares, os capoeiras
também aparecem como um típicos valentões, que se envolvem com brigas tanto com a
polícia, quanto entre eles mesmo, e nesse último caso a disputa dos territórios é algo
recorrente, e faz parte das relações entre as maltas de capoeiras. Essas maltas eram grupos que
variavam entre 3 a 20 componentes que brigavam entre si por ocupação e defesa de
territórios, e em outros momentos enquanto rivais políticas da época, transição da monarquia
para república, as mais famosa apoiavam partidos políticos que defendiam a república e a
monarquia, entre ela estavam “gauiamus ” e “nagoas”. Essa rivalidade era percebida nas ruas,
palco de atuação desses capoeiras, ora em grupo, ora individualmente, ora por questões
internas às suas relações, ora por questões políticas partidárias. Esses conflitos tinham

552
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. No Tempo dos Valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador:
Quarteto, 2005. p36.

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ressonância nos jornais e no parlamento, ou vice-versa: “Ao mesmo tempo que capoeiras se
digladiavam nas ruas, no parlamento e nos jornais aliados e inimigos(...) terçavam duelos”553.
Segundo os autores, é possível verificar a proximidade dos valentões com os
capoeiras. E é a partir da análise das fontes que procuro, na medida do possível, perceber a
relação existente entre os valientes e os capoeiras da cidade de Itabuna na década de 1950.
No exemplo da Praça da Estação que foi um lugar de destaque em Itabuna naquele
período, logo freqüentadora assídua das páginas dos jornais, mais especificamente nas páginas
policiais, podemos encontrar indícios dessa relação:

A polícia precisa fiscalizar a zona da estação (...) onde se verifica todas as


noites, (...) contravenções e outras espécies de abusos por parte de indivíduos
irresponsáveis (...) A partir das 9 horas, as imediações do bar que ali
funciona, e das diversas barracas instaladas marginalmente à rodovia que vai
ter a Ilhéus, se enche desses indivíduos, que se engalfinham em lutas
corporais, e até mesmo tendo à mão armas de fogo.554

A esses “indivíduos, que se engalfinham em lutas corporais”, tenho algumas


considerações. Eram recorrentes essas contendas, aconteciam mais ou menos no mesmo
horário, ou seja, fazia parte do cotidiano daquele lugar. Esses traços são peculiares aos dos
capoeiras da época, que de ordinário se reuniam para praticar seu “brinquedo” – termo
utilizado pelos mestres mais antigos de capoeira ao se referir ao jogo555 - daí estes indivíduos
se encaixam ao esteriótipo dos capoeiras, que por hábito freqüentavam bares, bebiam e
“brincavam” à porta de botiquins, como cita Waldeloir Rego em sua obra Capoeira Angola:
Ensaio Sócio-etnográfico:

Havia capoeira, onde havia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um
largo bem em frente, propicio ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias
santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a
tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a
cachaça era animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos dons das
vendas, através de toque espacial de berimbau, que eles já conheciam. 556

Este autor é reconhecido por todos que escreveram sobre a capoeira depois dele.
Seu trabalho etnográfico é um amplo estudo sobre os costumes dos capoeiras, passando por

553
SOARES, Carlos Eugênio Líbano Soares. A Negregada Instituição: capoeiras na corte do Rio de Janeiro
(1850-1890). Rio de Janeiro: ACCESS, 1999. p 59.
554
Voz de Itabuna, 17/06/1954.
555
PASTINHA. Manuscritos do mestre pastinha.
556
REGO,Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-etnográfico. Ed. Itapuã. Coleção Baiana, p. 36.

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discussões sobre identidade, e quebrando tabus acerca de uma homogeneização em torno dos
hábitos, vestimentas e rituais da capoeira. Ele, problematizou as canções que envolveram e
ainda envolvem as rodas de capoeiras, sobre tudo na Bahia. Discorre sobre as variadas formas
de compreensão da capoeira desde quem a pratica a quem escreve sobre ela. Teve a
oportunidade de conversar com mestres de capoeiras que quebraram paradigmas, que é o caso
de Mestre Bimba, Manuel dos Reis Machado, o criador da capoeira regional. Viveu um
momento onde esta arte estava sendo transferida do campo criminal para ser um esporte
nacional. Assim, é um autor que muito contribuiu e continua contribuindo para os estudos
sobre este tema ainda em processo de desvendamento.
A capoeira foi uma prática proibida, que constava no Código Penal de 1890, ela
era tida como uma das práticas mais violentas que assolava o Rio de janeiro desde a
escravidão segundo Carlos Eugênio Líbano Soares em sua obra A Capoeira Escrava: e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Ele conta que aquele que fosse pego
exercitando a capoeira era preso e condenado a trezentas chibatadas, ou seja, o mesmo que
condenado a morte557. Essas são as raízes da capoeira, violenta, perseguida e mal vista.
Apesar dela não constar mais no Código Penal de 1940, ela apenas deixa de ser
crime, mas continua sendo marginal. A política nacionalista de Getúlio Vargas, retira do sub
mundo da criminalidade práticas oriundas dos negros escravizados, dentro de um discurso
populista ,ele zela por um Brasil homogêneo, com símbolos próprios, tenta reunir todos as
atributos do país em uma identidade nacional558, com isso procura disciplinarizar, manter
sobre controle os ânimos da maioria da população, que era negra.
Voltando um pouco no tempo, no início do século XX, já se pensava na capoeira
como um esporte. No Rio de Janeiro, um professor de educação física, argentino que morava
no Brasil, sugere que a capoeira poderia ser enquadrada na modalidade de esporte, já que
cuidava do corpo de forma exemplar .559Aquele era o tempo do culto ao corpo, do estímulo à
atividade física. Quem se exercitava não adoecia, estava mais disposto e preparado para o
trabalho, e no caso da capoeira podemos pensar que, sendo esta um esporte, estaria sob
controle ao invés de ser praticada nas ruas de “qualquer forma”. É o que vai acontecer anos
mais tarde, mas não detiveram o controle esperado.
Nos anos de um mil e novecentos e trinta, nas capitais do país, principalmente em
Salvador, a capoeira surge com uma nova roupagem. Os mestres de capoeiras, em especial

557
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). São Paulo: Unicamp, 2004.
558
FAUSTO, Boris. Getulio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
559
SOARES, A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), op. cit.

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Bimba e Pastinha, versam a capoeira em outra perspectiva, agora a capoeira era cultura e não
pertenciam mais ao mudo dos malandros e vagabundos. Pastinha, em sua obra Manuscritos de
Pastinha, classificou os capoeiras de outrora de violentos e desordeiros.560
Já o Mestre Bimba, enquanto criador de uma modalidade diferente da capoeira, a
Capoeira Regional, apesar de argumentar que criou essa nova versão por entender que a
Capoeira de Angola era fraca e estava desaparecendo, também a seu modo excluiu aqueles
que tinham um comportamento inadequado daquele que julgava correto561. Em sua academia,
a maioria dos seus alunos fazia parte de uma elite econômica, e as regras eram rígidas, entre
elas, a proibição de envolvimento em brigas na rua. A mensalidade excluía os pobres, logo
seus iguais. Bimba sofreu duras críticas por conta dessa nova opção, “ (...) na visão de mestre
Noronha, Bimba teria ido ao meio dos ricos."562
Esse processo de “culturalização” para Antônio Liberac Cardoso Simões Pires
ocorre a partir do momento em que houve uma busca por um “status na hierarquia social”,
houve uma negação do espaço para aqueles que eram malandros, e malandros neste caso tinha
a conotação negativa, tanto para Bimba, quanto para Patinha. A partir daquele momento a
capoeira era para trabalhadores e estudantes, sendo divulgada “enquanto símbolo cultural”.563
A violência, no discurso em prol da capoeira a partir da década de 1940, não tinha
mais espaço, Pastinha chega a declarar a respeito daqueles capoeiristas de alguns anos atrás
classificando-os de arruaceiros e desordeiros que, “tudo isso é mancha suja na história da
capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? Os canhões? E as
bombas?”564 Mestre Pastinha porém, admite que a violência é algo inerente à própria arte da
capoeira: “ o que serve para defesa também serve para o ataque. A capoeira é tão agressiva
quanto perigosa”565
O próprio Mestre Bimba, de certa maneira preservou o esteriótipo de violência
dentro da prática da capoeira. Em seus treinamentos rigorosos com “perfil militarista, (…)
utilizava os treinamentos de ‘emboscada’, semelhantes aos treinamentos de guerrilhas de
mato, realizados nas forças armadas”566. Apesar da inovação no treinamento tornando-o mais
ostensivo, mestre Bimba manteve outros aspectos, no tocante aos conflitos, uma das suas
recomendações, por exemplo, era:
560
PASTINHA, op. cit.
561
ABREU, Frederico. Criador da capoeira regional. Revista Memórias da Bahia II. Governo do estado da
Bahia.
562
PIRES. Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. op. cit.
563
Ibidem, p. 39.
564
Ibidem, p. 66.
565
Ibidem, p. 66.
566
Ibidem, p. 48

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Meninos não se metam em brigas. Se souberem que numa rua qualquer, está
acontecendo alguma, voltem, passem por outra. Mas se no atalho, também
houver, sem que haja meios de evitá-la, vão em frente, com segurança.
Vocês não podem sair perdendo e voltar para casa pra fazer tratamento na
cara. Iodo e arnica custam caro e o pai de vocês não é ladrão para gastar
dinheiro à toa.567

Essa recomendação, a meu ver, é um incentivo ao despertar do valentão. Primeiro


por que a palavra de um mestre de capoeira para seus discípulos é o equivalente a uma lei
instituída, assim o segundo ponto desse incentivo é a recomendação explícita para resolver
seus problemas exatamente onde eles começaram, ou seja, na rua, e não levar ‘desaforo para
casa’.
Sobre a imagem desses indivíduos, era comumente associada a beberrões e
brigões, assim caracterizados nesta matéria “(...) elementos irresponsáveis, que, além de
beberem a mangas largas, armam brigas e pronunciam imoralidades da pior espécie, em vozes
altas, que podem ser ouvidas pelas famílias daquela zona”568. Logo seu comportamento era
incompatível e inapropriado para o convívio com as famílias ali residentes, que ao contrário
destes, viviam de acordo com a moral e os bons costumes, pelo menos para elas.
Mas esses valientes eram destemidos, corajosos, defensores de seus territórios, e
ao que parece, gostavam, ou pelo menos não se incomodavam, em serem reconhecidos como
arruaceiros, brigões, valentões, donos das ruas. E são nas ruas que encontro com eles. É no
espaço público, que se dá o desfecho de suas atuações ante uma sociedade dividida entre as
riquezas do cacau e os infortúnios dos trabalhadores ou desempregados.
Diante destes acontecimentos, o jornal argumentou outros problemas que
corroboravam para a ação indesejável desses indivíduos. Era a precária infra-estrutura que
constantemente foi acusada com uma das colaboradoras dos desatinos ocorridos na cidade,
entre eles, assaltos e agressões de várias naturezas, principalmente nos subúrbios, que “... a
partir das 18 horas as ruas dos subúrbios transformam-se em zonas perigosas, onde só os
bêbados e os meliantes têm passagem franca”569. Deve- se questionar para quem essas zonas
eram perigosas, de que forma esse perigo se apresentava, e por quê? Para Michel de Certeau,
“o bairro constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva
570
ou negativamente, ele se sente reconhecido” , sendo assim classificar de violento um
indivíduo ou uma situação, perpassa antes de tudo, pelo lugar de onde se está falando. A

567
Ibidem, p. 50.
568
Voz de Itabuna, 27/04/1954.
569
Ibidem, 25/05/1951 p.04
570
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre
Maiol. Petrópolis, RJ: Vozes, 1966. p. 26.

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violência tem várias faces, aparecendo a que convém para quem a denuncia, a questão é
analisar a versão que se apresenta considerando o fato de haver outro viés que não pode ser
menosprezado.
Sendo assim, voltemos à Sururu. Além de capanga e capoeirista, também “era
auxiliar de polícia”571, neste tocante, além da obra de Viana, ele encontra-se nas páginas do
jornal Voz de Itabuna, onde aparece sendo criticado por conta de sua omissão diante de uma
atitude criminosa que acontece em um cabaré:

o criminoso, após praticar os crimes acima mencionados, desapareceu,


apesar de se encontrarem no cabaré sinistro quatro policiais: os guardas
noturnos conhecidos por Borracha e Cornélio, o inspetor de polícia
apelidado Sururu e o soldado Julinho.572

A trajetória de Sururu continua na obra de Manuel Coelho Brandão, O Capoeira,


um romance que trata da vida de capoeira de Itabuna. Uma autobiografia, onde o autor adota
nomes fictícios para contar sua experiência com a capoeira, e revela que,

na sua maior parte, os fatos são reais, baseados em acontecimentos de que


fui testemunhas em minha juventude e mesmo quando criança, cujos
personagens, apenas com os nomes substituídos, existem ainda em quase sua
totalidade. 573

Sobre Sururu, ele aparece no romance, como um mestre da capoeira angola que
coordenava rodas de capoeira ordinariamente na Praça Adami, centro da cidade. Era um
capoeirista respeitado na cidade, isso já foi confirmado por Claudia Viana acima, onde
convida o Zeca (personagem que representa o Manuel Brandão, ou Maneca, como também é
conhecido) para um jogo de capoeira, esse convite é atribuído pela fama de valentão que já
corria na cidade a respeito de Zeca capoeira.574
A trajetória desse personagem é permeada por um comportamento que se
assemelha aos valientes da cidade de Itabuna divulgado pelos jornais da época. A freqüência
na zona do meretrício, as recorrentes brigas, o excesso da bebida alcoólica, e demonstração de
força e exibicionismo. Este último sendo confirmado por Cláudia Viana quando ela comenta
sobre um outro capoeirista de Itabuna, de nome Alberto Ascênio Fernandes (Alemão), amigo
de Maneca Brandão, onde a autora coloca:

571
D'ANDRADE, op. cit., p. 71.
572
Voz de Itabuna, 06/07/1954.
573
BRANDÃO, Manuel Coelho. O Capoeira. Itabuna. 1979. s/e. p. 4.
574
Ibidem.

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Se envolvia com brigas e chegou a ficar preso quinze dias, fato que não se
esquece, pois junto com Maneca, sempre se metia em confusão (...). Muito
alegre, conta-nos que o que mais gostava no esporte era o fato de poder se
exibirem. 575

No texto de Manuel Brandão também fica claro essa questão do exibicionismo:

Para o Zeca, acostumados a confusões dessa natureza, o ambiente era


propicio à demonstração de sua arte, da qual era tido como um [il]. A briga
veio a calhar, pois precisava mostra a Itabuna quem ele era. E assim foi. Os
seus atacantes eram repelidos brutalmente por pernadas violentas e
certeiras.576

Essa confluência de informações é suficiente para confirmar que a capoeiragem


em Itabuna estava ligada a algo pernicioso e em detrimento aos bons modos de pessoa
trabalhadora e honesta, isso fica retratado na passagem do livro O Capoeira, quando o
personagem principal, após seus desencontros da vida, arruma um emprego “digno” de um
filho de um “respeitável” advogado e coronel, em uma empresa ligada à agricultura:

Na verdade, o rapaz passara de uma fase negativa em seu destino para uma
outra que muito lhe prometia em termo de dignidade e respeitabilidade.
Deixara de ser um elemento pernicioso à sociedade, para tornar-se uma
célula viva do mecanismo de um trabalho honesto e honrado. 577

Essa tendência à valentia como forma de ocupação e defesa de espaços, esse apelo
à briga como demonstração de força e poder, e o papel da capoeira em meio a este contexto
ocupando um lugar pejorativo submetido a um julgamento tendencioso, permite uma brecha
para uma avaliação mais cuidadosa sobre quais parâmetros é adotado para o julgamento de
atitudes oriundas de indivíduos com esse perfil. Pois, apesar de ter a mesmas características
de qualquer um dos valientes da cidade, Maneca foi poupado das linhas, não menos
agressivas, dos jornais. O fato de pertencer a uma elite econômica permitiu que suas ações
estivessem livres dos combates emitidos pelos jornais da época, lhe poupou constrangimentos
e execração pública que a outros foram impostos.
Apesar do reconhecimento do autor no que diz respeito à imagem da capoeira –
pernóstica – ele permite a interpretação de que converge com esse pensamento, onde a
capoeira só tornou-se algo menos danos a partir do momento que foi instituída pelo Major Da
575
D’ANDRADE, op. cit., p 76.
576
BRANDÃO. op. cit.
577
BRANDÃO, op. cit.

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Hora – Major Dórea, dono da primeira academia de capoeira de Itabuna, inaugurada para
atender os filhos de coronéis que voltavam de Salvador já conhecedores da arte, talvez até
pelo exemplo que tiveram de Maneca, ou seja, já que não posso impedi-los, ao menos tento
vigia-los – que o colocou com instrutor de capoeira para seus iguais, socialmente falando.
Esse parâmetro de comportamento, tanto dos jornais, quanto dos valientes, ricos
ou pobres, deixa claro que Itabuna passava por um momento de remodelação também dos
valores, já que bem ou mal a capoeira e alguns de seus valentões passam a ser um pouco mais
tolerados com o advento da academia. A academia de capoeira tentou domesticar o furor dos
jovens ricos e mantê-los longe dos “antros” dos bairros pobres que só ofereciam brigas,
bebidas e prostitutas, mas nunca o contrário, esses rapazes no auge do seu vigor físico, não
colaboravam de jeito algum com suas presenças nestes locais, já que o problema era o lugar e
não quem o freqüentavam.
Os valientes e capoeiras de Itabuna compartilharam e disputaram espaços e
méritos, morreram e sobreviveram a contentas e armadilhas, cercaram-se e eram cercados de
mitos e estereótipos que os colocaram na condição de principais fomentadores da violência,
mas também foram os responsáveis pela manutenção da ordem da cidade, da sua cidade
inclusive fazendo vigorar suas própria leis.

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“NÃO GOSTO DE VIVER SEM 'LIBERDADE'” – OS MENDIGOS E O


USOS DA AUTORIDADE CULTURAL EM ITABUNA (BA) NA DÉCADA
DE 1950

Erahsto Felício de Sousa - UFBA


erahsto@yahoo.com.br

Itabuna, cidade ao sul da Bahia, teve seu desenvolvimento urbano marcado pela sua influência
como entreposto comercial da economia cacaueira deste estado. A história desta cidade na
primeira metade do século XX é marcada por um grande fluxo de pessoas que a buscaram na
tentativa de terem melhores condições de vida. Com este fluxo migratório a paisagem urbana
modifica e as vivências de rua também. Na década de 1950 o grande número de mendigos – e
de outros agentes que viviam das ruas da cidade – se tornou uma pauta dos poderes públicos e
das preocupações das classes hegemônicas (cacauicultores e comerciantes, em geral). A
presença e a agencia destes grupos subalternos organizavam territórios simbólicos que
estiveram em tensão com os projetos urbanos de modernização para a cidade. Foi esta a
tensão que levou as classes hegemônicas a construírem a Casa dos Mendigos com a proposta
de recolhimento desses sujeitos das ruas da cidade. Neste trabalho eu analiso a insubordinação
dos mendigos ao não aceitarem o projeto de higienização da cidade a partir desta instituição,
analisando como estes usaram da própria autoridade cultural das classes hegemônicas para
construir seus domínios e territórios nesta cidade. O movimento de emancipação dos grupos
subalternos, assim, passar pelo uso não autorizado dos próprio mecanismos de subordinação
das classes hegemônicas.

Palavras-chave: Itabuna-BA; mendigos; subalternidade; cidade; insubordinação.

Itabuna é uma cidade localizada no sul da Bahia. Se desenvolveu tendo como pivô
a produção cacaueira. No início da década de 1950 era a terceira maior cidade do Estado.
Suas classes hegemônicas a representavam com símbolos de progresso e civilidade. Mas a
história que vou contar aqui está imersa nas experiências de agentes subalternos
negligenciados pelas representações hegemônicas sobre a cidade. Trata-se da recusa dos

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mendigos em se recolherem à uma política higienizadora e do uso que estes fizeram da


autoridade cultural para suas lutas.
Em 19 de março de 1954, com muita felicidade o editor do Voz de Itabuna
noticiou a inauguração, naquele dia, da “anciosamente esperada 'Casa dos Mendigos'”.
Tratava-se de uma obra “beneficente”578, na qual o objetivo seria retirar os mendigos das ruas
itabunenses. Esta instituição foi idealizada e tocada inicialmente pela Sociedade São
Francisco de Assis, ainda na década de 1940. Contudo, por falta de recursos para implantar tal
projeto, os franciscanos o passaram as Senhoras de Caridade. Passando “livros-de-ouro” no
comércio, angariando donativos de populares e recebendo doações de fazendeiros, as
Senhoras de Caridade conseguiram construir o prédio desta instituição e dotá-lo de móveis e
utensílios necessários579. A notícia da inauguração foi acompanhada por congratulações para
as beneméritas, que conseguiram concluir esta instituição, mas também por convite à
sociedade para que continuasse cooperando com esta iniciativa, com fins de manutenção.
Na edição posterior à inauguração, em 23 de março do mesmo ano, o mesmo
periódico reforça a importância da instituição, agora ressaltando sua trajetória que tal
instituição seria “um velho sonho de Itabuna”. Tal sonho parece indicar que a tensão da
racionalização e do controle da cidade com a existência dos mendigos em meio aos locais
públicos de Itabuna não era algo recente. Se na década de 1940 os franciscanos já estavam
imbuídos desta tarefa de retirar os mendigos das ruas itabunenses, é porque já naquele
momento o número de mendigos nas ruas incomodava alguns setores da localidade. Em parte,
o trabalho benemérito dos franciscanos estava envolto em uma demanda religiosa e moral,
contudo é possível imaginar que aqueles que investiram e doaram recursos para esta obra
poderiam ter o interesse claro de higienizar a cidade. A mudança da coordenação deste projeto
dos franciscanos às Senhoras de Caridade esteve marcada pela necessidade que grupos
hegemônicos locais tinham de construir tal instituição em mão menos autônomas que os
franciscanos (há indícios de que as senhoras de caridade poderiam ser, em geral, esposas de
integrantes destes clubes das classes hegemônicas, como Rotary Club e do Lions Club 580).
Porém, o importante nesta questão é que o trabalho de primícias meritórias das
Senhoras da Caridade, como afirmava o periódico, parecia não ser um consenso para todos. A

578
Voz de Itabuna, 19.03.1954, p. 01.
579
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
580
Em 1957 as Senhoras de Caridade fizeram festas intimas nas casas de suas associadas no sentido de angariar
fundos para a Casa dos Mendigos. Estes eventos ficaram conhecidos como chá social. Uma destas festas foi na
casa de Milton Viterbo, vereador e membro do Rotary Club. Diário de Itabuna 26.10.1957, p. 01 e Jornal
Oficial do Município, 12.07.1958, p. 07. Agradeço a Danilo Ornelas Ribeiro por informações cedidas de sua
pesquisa sobre as elites locais em Itabuna.

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relevância da Casa do Mendigo não era, assim, um entimema, algo que não precisava ser
enunciado, baseado “num menor número de premissas (porque conhecidas e, como tal, não
declaradas)”581. Esta necessidade de enunciar a importância já começa pelo título desta
matéria do dia 23 de março: “Significação social da inauguração da Casa do Mendigo”. E
qual seria esta?
A significação da inauguraão da importante casa de caridade, está à vista de
todos: proporcionar aos esmoleres desta cidade, uma vida mais condizente
com a evolução dos nossos tempos, livrando-os de dormirem ao relento e
vegetarem pelas ruas semi-nús, famintos, num atestado pouco recomendável
para uma população que se ufana de encontrar-se integrada os sentimentos
cristãos. (grifo meu)

Se realmente estivesse “à vista de todos”, tal significação, não seria necessário enunciá-la de
modo pormenorizado. Ao mesmo tempo que ressaltava a preocupação cristã de assistir os
“esmoleres desta cidade”, o editor mostrava uma real preocupação: livrar os mendigos de
“vegetarem pelas ruas semi-nús”. Não poucas vezes os periódicos locais queixaram-se dos
atentados à estética urbana, à moral e à sociabilidade pública que os mendigos causavam na
cidade, e recolhê-los à Casa dos Mendigos era uma forma de evitar tais atentados. É o que
denuncia claramente o editor na continuação desta matéria: “por outro lado há de se etinguir a
malta de pedintes que perambula pelas ruas, muitos do quais apenas exploram ao comércio e
às famílias itabunenses, uma vez que ainda podem fazer alguma coisa para a sua
subsistência”. Colocados como exploradores, os mendigos ainda são denunciados como
preguiçosos por não quererem trabalhar, e é esta denuncia que justifica, então, a proposta de
racionalização da caridade:
Isto não quer dizer, entretanto, que vamos deixar de dar esmolas. Esta
teremos que fazer de então em diante, através das Senhoras de Caridade, que
não pode dispensar o concurso dos itabunenses para a manutenção da
meritória casa pia. Será uma esmola muito mais racional e que atingirá
melhormente os seus objetivos. Se foi necessário o auxilio de todos para o
acabamento da Casa do Mendigo, mais imprescindível torna-se ainda esse
auxílio para a sua manutenção. Vamos todos ajudar as Senhoras de Caridade
na sua árdua missão.582

Tornar a esmola racional era então instaurar um monopólio da esmola, agora


destinada tão somente à Casa dos Mendigos. Esta proposta, aparentemente ingênua, nada mais
é do que um rastro do projeto higienizador da cidade. Se até então a “casa pia” parecia estar

581
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
50.
582
Voz de Itabuna, 23.03.1954, p. 01.

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marcada por um sentimento nobre (e nobres exploraram os plebeus), agora poderemos


problematizar o seu sentido higienizador. Para tanto recuemos um pouco no tempo.
Em janeiro do mesmo ano, em sua edição do dia 29, o Voz de Itabuna dá, para a
sociedade itabunense, o que seria uma importante notícia (bem posicionada em sua primeira
página). Era a notícia sobre a inauguração da Casa dos Mendigos, que se realizaria em 19 de
março daquele ano. Ao lado de todo clamor para a continuação das contribuições para as
Senhoras de Caridade, estava uma ótima notícia dirigida aos não mendigos, à todos que
detinham uma vontade de ausência destes na paisagem urbana: “esta notícia é das mais
agradáveis para esta cidade, pois, de uma vez por todas veremos nossas ruas livres desses
infelizes que ainda agora as infestam”583. Infestar se liga às noções de invadir, assolar,
devastar, causar estragos...584 De modo que a Casa dos Mendigos significaria a esperança do
fim desses estragos e danos na paisagem urbana, causada pelos mendigos. Se por um lado
parece que esta notícia surtiu um bom efeito em seu público alvo (comerciantes, fazendeiros,
profissionais liberais e etc), por outro, parece que um outro efeito inesperado ocorreu,
desagradando, consideravelmente, este mesmo público.
Trata-se de uma reação por parte dos mendigos. Um primeiro indício seria uma
matéria escrita por Ottoni no periódico local O Intransigente do dia 03 de fevereiro de 1954.
Segundo tal matéria os mendigos não estavam nada satisfeitos com a idéia de se mudarem das
ruas para a Casa dos Mendigos. Tratando os mendigos como “restos sociais”, Ottoni
apontavam que eles não teriam escolha e poder, não poderiam se recusar a um projeto maior
do que eles. Porém estes não estavam dispostos a deixarem a rua pela Casa dos Mendigos,
mesmo que esta última pudesse trazer-lhes algum conforto material. Nesta matéria a família
era a principal motivação para tal recusa. Um mendigo, a exemplo, afirmou à Ottoni que não
iria se recolher por conta da família. Sugerido a se separar de sua família, o mendigo teria
afirmado que toda ela seria doente (ele, assim, a sustentava). Então o cronista afirma: “pois
vamos internar todos êles. Nada mais fácil. Uma sorte até para o mendigo todos os seus
estarem em condições de serem internados, julgamos nós”. Contudo o mendigo teria afirmado
que “a família dele não se submeteria a isso! A solução era a mudança”. Ou seja, mudar de
cidade, migrar, seria a últimas alternativa ao recolhimento à casa.
Os mendigos, diferente de tomar os trabalhadores da Casa dos Mendigos como
beneméritos, os tomavam como exploradores que queriam prendê-los. Ottoni roga a Deus,

583
Ibidem, 29.01.1954, p. 01.
584
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buraque. Novo dicionário Aurélio eletrônico – século XXI. Software,
versão 3.0. 1999.

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então, assustado com a “ingratidão” dos mendigos. De alguma forma estava em jogo a
dominação paternal das classes hegemônicas sobre os subalternos (por isso tomar os
mendigos como ingratos), como se a “medição institucional das relações sociais” entre ambos
tivesse se quebrado, nos temos thompsonianos585.
Esta mesma matéria foi comentada por Eduardo Medeiros, colaborador do Voz de
Itabuna: “lemos no 'O Intransigente', de 03 do corrente o 'Bom dia' intitulado 'Chegou sua
vez'. Pela litura daquela nota vemos que mendigos não estão animados a se recolherem á casa
para eles destinada”. O texto de Ottoni em O Intransigente seria o primeiro a mostrar os
mendigos aparecem como sujeitos políticos que possuem opções e se manifestam no mundo
público (se bem que na matéria que afirma que os mendigos exploram o comércio e as
famílias, eles também apareçam como agentes, ainda que com uma imagem depreciada) e isto
chocava inclusive o periódico opositor. Eduardo Medeiros afirmou sobre esse desânimo dos
mendigos: “achei absurda a atitude desta classe sofredora, recusando essa dadiva e procurei
ouvir os que ás sexta-feiras percorrem as ruas J. J. Seabra e 7 de Setembro, fazendo o catado
semanal”. O colaborador da folha buscou entrevistar os mendigos para confirmar, ou não, o
que dizia a nota de O Intransigente. E eis o que nos reporta: “alguns confirmaram o que
disseram ao redor da nota acima, mas outros disseram não confiar na sinceridade dos que
viessem a dirigir aquela instituição e daí preferirem continuar pedindo ou mudarem-se daqui
caso fossem proibidos de esmolar”.586 Como na matéria de Ottoni, aqui os mendigos também
tomaram a migração como última alternativa ante o recolhimento.
É exatamente esta agência dos mendigos que aquela medida da racionalização da
caridade (monopolização do destino da esmola) visava combater. Os mendigos tinham
manifestado não apenas em um periódico, mas em dois, uma opinião contrária à idéia de que
a Casa dos Mendigos era a melhor saída para eles. Mais do que isso, os mendigos chegaram
mesmo a questionar “sinceridade dos que viessem a dirigir aquela instituição”, e se para o
mundo das classes hegemônicas havia um consenso sobre o mérito de tal empreitada, no
mundo subalterno este consenso foi questionado, foi quebrado, interditado
momentaneamente. Michel Foucualt afirma que “por mais que o discurso seja aparente em
bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder”587. Assim, a interdição que os mendigos realizaram no discurso de
beneficência pura da Casa dos Mendigos acabou por denunciar a ligação deste discurso com a

585
THOMPSON, Edward P.. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32.
586
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
587
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 10.

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vontade de controle e, de algum modo, essa interdição se instaurou no seio da própria classe
hegemônica, pois se tornou pauta dos dois periódicos locais. O Voz de Itabuna, então, com
aquela matéria sobre a “significação social da Casa do Mendigo”, estava tentando rearticular a
coerência discursiva após esse corte instaurado por aqueles que seriam os “beneficiados” do
dito trabalho “benemérito”. Tanto o é que nesta matéria o periódico ameniza o tom (não
utilizando, por exemplo, o verbo “infestar”, o substituindo por “perambular”) e conclama para
tomar este projeto como um dever cristão. De modo que destinar a esmola tão somente à Casa
dos Mendigos seria uma forma de obrigar os mendigos a não permanecerem nas ruas,
destinando-se à dita instituição.
O senso de dever cristão se mostrou presente na solenidade de inauguração –
mostrando a preocupação daqueles que coordenavam o projeto em se fazer uníssono ao
periódico. A solenidade foi realizada às 15 horas da sexta-feira, dia 19 de março, segundo o
Voz de Itabuna, “perante o que Itabuna possui de mais representativo”. Se encontravam ali
representantes das camadas médias e altas de Itabuna. Estavam ali para fortalecer a campanha
por aquela instituição, para se mostrarem enquanto colaboradoras e para conferir o produto de
seus investimentos.
É possível, então, afirmar que simbolicamente a solenidade de inauguração
tentava fazer jus ao discurso do Voz de Itabuna no quesito senso de dever cristão e consenso
social. Assim tentava rearticular uma coerência quebrada, uma vez que se tornara pública a
opinião dos mendigos. Contudo, é necessário perguntar por que tanta preocupação com os
mendigos, já que vimos anteriormente que tantos grupos subalternos preocupavam os poderes
públicos e as classes hegemônicas da cidade. Por outro lado é preciso questionar por que os
mendigos se negavam a se recolherem a uma instituição que os assistiria.
Com tantos problemas causados por distintos grupos subalternos, aprofundar o
questionamento sobre o por que das classes hegemônicas em Itabuna na década de 1950 se
preocuparem tanto com os mendigos. O que eu quero ressaltar é que talvez (e para os valores
de hoje) a mendicância na cidade não fosse o maior dos problemas a ser resolvido, contudo
emergiu como uma pauta a partir da inauguração da dita “casa pia”. Daí será necessário
pensar um pouco no cotidiano dos mendigos. Os mendigos construíram territórios simbólicos
– híbridos e efêmeros – que tocavam os limiares da dominação dos espaços pelo capitalismo:
o centro de Itabuna era assaltado por práticas não autorizadas pelas estratégias de controle da
cidade. O centro em Itabuna, na primeira metade da década de 1950, pode bem ser
reconhecido pela zona da cidade iluminada durante a noite. Podemos fazer também um
recorte espacial dele, uma vez que os acidentes naturais o definiram: “estava circunscrito pelo

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Rio Cachoeira ao sul, à leste e a norte pelo canal do Lava Pés, e à oeste pelo fim da cidade”.
Mas politicamente o centro se demarcava pelos prédios ocupados pelas elites locais: “a
Prefeitura Municipal, a Câmara de Vereadores, o prédio da Associação Comercial de Itabuna
(ACI), o da Associação Rural de Itabuna (ARI), os bancos”. Ou seja, as “várias edificações
não negavam que este era o lugar de poder na cidade”.588
E era justamente neste lugar do capital, na cidade, onde os mendigos construíram
sua arquitetura territorial – é no mesmo espaço de poder e de ostentação que também se
encontram marginais, policiais, mendigos, etc, afirma o antropólogo urbano Antônio Augusto
Arantes Neto589. Preferiam as ruas de maior fluxo de pessoas, mercadorias e dinheiro, a saber:
J.J. Seabra e 7 de Setembro. Precisar uma cartografia para os mendigos, entretanto, não é
fácil. Em parte, porque seus territórios eram tomados como algo “natural”, de modo a não ser
necessário enunciar. Edward P. Thompson afirma que estes aspectos da sociedade tomados
como “naturais” por seus contemporâneos, “acabam deixando registros históricos
imperfeitos”, assim “um modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio ou uma
situação atípicos”590. De modo que é possível localizar parte desta cartografia, quanto mais
ostensivas forem, as ações destes mendigos e as queixas dos periódicos. Estavam em diversas
ruas, praças e nos limites do centro de Itabuna.
Papai Noel, por exemplo, tinha também um cotidiano imerso nos símbolos de
poder da cidade. Segundo afirma a memorialista local Adriana Dantas Andrade-Breust, ele
“escolheu um lugar estratégico para instalar-se: a porta do Cine Itabuna”591, até então o único
cinema e teatro da cidade, localizado na rua Benjamin Constant, centro. Gostava de andar pela
região central de Itabuna carregando seu saco e seu porrete. Ou seja, qualquer transeunte, na
década de 1950, que visitasse o famoso teatro com alguma regularidade ou mesmo que
transitasse pelo centro, saberia reconhecer Papai Noel. De modo que os mendigos e Papai
Noel se faziam presentes ao lado de símbolos do poder e da ostentação econômica da região,
disputando o espaço político e desviando os valores da paisagem urbana.
Fora das dimensões do controle, a cidade oferecia certa possibilidade de uma vida
de subsistência. O Rio Cachoeira, muito utilizado pelos mendigos (até nos dias de hoje, em
meio à tamanha poluição de suas águas, há aqueles que pescam e se alimentam do pescado),

588
Ibidem, p. 14.
589
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 112.
590
THOMPSON, Edward P.. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: Antonio Luigi
Negro e Sergio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 235.
591
ANDRADE-BREUST, Adriana Dantas. Itabuna: histórias e estórias. Ilhéus, Ba: Editus, 2003, p.205.

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era um lugar onde se poderia pescar, lavar, tomar banho, beber água, apreciar a paisagem,
brincar.
O que talvez seja necessário ressaltar aqui é que o centro de Itabuna – mas
também o Rio Cachoeira – dava uma condição de sobrevivência aos mendigos. O ato de
caridade era rotineiro e por vezes um ritual, muito próximos dos descritos por Walter Fraga
Filho em seu livro sobre a pobreza em Salvador no século XIX. Segundo este, quanto mais
fiel ao ritual o mendigo fosse, mais era tratado com conivência, porém “o mendigo podia
deixar de ser tolerado desde que seu comportamento não se adequasse à imagem de
humildade e resignação dele esperada”592. Muito embora o quadro descrito por Fraga Filho se
refira à Salvador do século XIX, há muita permanência neste sentido, sendo inclusive o termo
“Deus lhe favoreça” algo ainda recorrente para a negação de um pedido de esmola. O fato é
que teatralizando humildade, cumprindo com os rituais, passando nos dias corretos para
receber esmola, por exemplo, às sextas-feiras (algumas casas podiam separar uma caixinha
com moedas para distribuir em determinado dia da semana), se posicionando nos locais
adequados nas ruas do centro, era possível aos mendigos sobreviverem em meio às ruas.
Ressalta-se, aqui, por hora, a habilidade, a astúcia, dos mendigos em tirarem
proveito da supremacia e autoridade cultural dos agentes das classes hegemônicas. Aqueles
que davam qualquer trocado ou que assistiam em alguma necessidade aos viventes de rua, em
geral se consideravam, numa hierarquia social e reconhecida no mundo público, superiores
aos mendigos. Nos termos de Arantes Neto, significa que aqueles que doavam tinham uma
referência no mundo público, que eles se situavam no mapa social, pois “pertencer a uma
classe, grupo, categoria ou nação é possuir uma localização no mapa social, ou seja, ter uma
posição social reconhecida como legítima e situar-se num espaço físico compartilhado”593. O
contrário seria uma ausência de referência, de presença no mapa social – ou algo tão móvel,
incapaz de ser capturado –, que tornaria o sujeito não reconhecido na coletividade (contudo
nós veremos que os mendigos podem construir tal reconhecimento, ainda que sempre em uma
condição hierárquica no mundo público inferior e depreciada). Se uma referência de prestígio,
os mendigos usavam desta posição para, ao teatralizar humildade, fortalecer a referência
daqueles que os davam algo. Era uma troca: os mendigos ganhavam recursos materiais e os
doadores ganhavam um prestígio público pela ação benevolente.

592
Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA,
1996, p. 39 e 40.
593
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas,
SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p. 133.

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Um elemento essencial que também precisa ser ressaltado sobre diversos


mendigos é a experiência migratória. Em um texto clássico sobre a região cacaueira, Antônio
Guerreiro de Freitas afirma que o poder desta construiu “um lugar onde, para baianos de todos
os outros lugares, se poderia ficar rico com rapidez”594. Tomarei esta idéia muito mais como
imagem disseminada pela riqueza material gerada pela economia cacaueira. Ela é um
elemento para perceber como a lavoura cacaueira poderia ser um atrativo para
desempregados, pobres, trabalhadores rurais com péssimas condições de trabalho e etc – não
por fazê-los ricos, mas por iludí-los com o mito de riqueza fácil. Por outro lado é possível que
a disseminação de tal mito (um El Dorado do início do século XX) poderia ser uma estratégia
das próprias elites cacaueiras, no intuito de afrouxar os laços de dependência que estas tinham
com os trabalhadores da região (se aportando no uso do “exército reserva de mão-de-obra”). É
o próprio Guerreiro de Freitas que nos informa que os produtores viviam a se queixar (ainda
na década de 1920) da carência de mão-de-obra: “os riscos de não realizar a colheita colocava
em pânico os produtores que pediam 'braços cearenses, flagelados pelas secas' ou sugeriam
que o governo baiano 'deveria colocar na lavoura a grande massa da população que a nada se
dedica porque assim estaria reprimindo a vagabundagem'”595 (obviamente na região já existia
mendigos e desempregados). Essa ação dos produtores em pedir ao governo que enviasse
trabalhadores necessitados de trabalho poderia, muito bem, ser uma forma de explorar ainda
mais estes, uma vez que não conhecendo a região e carentes por emprego, estes migrantes
poderiam aceitar as péssimas condições de trabalho oferecidas por estes produtores.
O grande problema nesse quesito é que, segundo Guerreiro de Freitas, “passado o
trabalho da colheita [do cacau], a mão de obra em disponibilidade quedava marginalizada”596,
e daí podemos supor que os trabalhadores que migraram para região pudessem por vezes ter
de viver das ruas das cidades, da caridade e assistência alheia.
Um exemplo dessa experiência migratória dos mendigos pode ser identificada no
trabalho já mencionado de Andrade-Breust. No capítulo que a autora dedica aos mendigos,
“Itabuna e suas loucuras...”, todos os mendigos citados não são oriundos da própria região.
Papai Noel, por seu turno, que teria chegado à região “após lhe ter sido negada uma
indenização justa pelos anos de serviços prestados à família Ferraz em Vitória da
Conquista”.597

594
FREITAS, Antonio Fernando Guerreiro de; PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro do
mundo: a capitania, os frutos de ouro e a princesa do sul, Ilhéus 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p. 100.
595
Ibidem, p. 105.
596
Ibidem.
597
ANDRADE-BREUST, op. cit., p 201-212.

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Esta experiência migratória será fundamental para compreender a recusa dos


mendigos a se recolherem à Casa dos Mendigos. Por sua vez, esta recusa, é fundamental para
pensar ou sugerir a mais sutil – e aqui mais importante – ação dos mendigos: o ato de se
instaurar na fala dos agentes hegemônicos, tirando partido destas no mundo público.
Retomemos, então, a matéria escrita por Eduardo Medeiros que teria entrevistado
mendigos nas ruas de Itabuna, à cata de opiniões por parte destes sobre a Casa dos Mendigos.
Lembremos que o entrevistador estava preocupado com uma matéria veiculada no periódico
local O Intransigente em 03 de fevereiro do referente ano, segundo a qual os mendigos não
estariam animados com a idéia de ter de se recolherem à instituição que estavam construindo
para eles: a Casa dos Mendigos. Medeiros achava “absurda a atitude desta classe sofredora”
em recusar “essa dadiva”, e se pôs a percorrer as avenidas J. J. Seabra e 7 de Setembro para
interrogar sobre o desânimo acusado pelo dito jornal. O resultado deste trabalho investigativo
é que os mendigos disseram “preferirem continuar pedindo ou mudarem-se daqui caso fossem
proibidos de esmolar”.598
Esta atitude chocou o colaborador do jornal, e de certo até muitos leitores. Porém
após saber da experiência individual de um dos entrevistados teve que parcialmente concordar
com tamanha recusa. Observe o que escreveu Medeiros sobre a experiência de um mendigo:

Um deles [um dos mendigos], para ilastrar a razão de sua recusa, citou o que
ocorrera na cidade de Vitória da Conquista com a 'Casa dos Mendigos' dalí.
Afirmou que os dirigentes surrupiavam o dinheiro e as novidades destinadas
áquela casa e os mendigos passavam fome e ficavam nús.
Com essa experiência pessoal, disse-me enfaticamente o mendigo 'não irei
para lá'.599

Havia, assim, até mesmo para Eduardo Medeiros, uma razão plausível para a não
mais “absurda atitude” dos mendigos: eles recusavam tornar-se objetos de exploração de
instituições que com simulacro de beneficência, o que faziam era usar da situação de
mendicância como um mercado para lucrar ao passo que aprisionavam e buscavam controlar
sujeitos que viviam da erraticidade do mundo das ruas. Medeiros não concordou com a recusa
dos mendigos, o que chamou de descrença. Concordou com a causalidade desta atitude ao
afirmar que “a falta de critério e de excrúpulo dos que dirigem as casas de assistência social
(com algumas exceções) é um fato indiscutivel”, mas ao fim lutou contra a “descrença”:

598
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p.02.
599
Ibidem.

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Entretanto, creio que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o
que aconteceu com a sua congênere em Vitória da Conquista.
Os mendigos devem confiar no bom êxito de seu abrigo, ainda mais quando
sabemos que o mesmo será dirigido pelas Senhoras de Caridade, e a
disciplina estará a cargo das irmãs de caridade. 600

Foi a experiência migratória de um dos entrevistados que deu coerência ao


discurso dos mendigos. Tomada a priori como uma recusa “absurda” (e por Ottoni, autor da
nota de O Intransigente, por ingratidão), a comprovação, no nível da experiência, que um
mendigo pôde oferecer a Medeiros, chegou mesmo a amenizar as críticas ao posicionamento
dos mendigos, fazendo com que o colaborador adotasse a postura de lutar contra a descrença
dos mendigos e a favor da moralidade e do bom trabalho que seria realizado pelas Senhoras
de Caridade.
O que talvez o repórter não tivesse entendido é que a queixa do mendigo não se
referia, tão somente, à falta de tratamento adequado destas instituições. Talvez fosse a
disciplina, “a cargo das irmãs de caridade”, um dos elementos de tal recusa. Eduardo
Medeiros ignorava que o viver nas ruas, mesmo na miséria material, carrega consigo uma
expressão de liberdade. Segundo Arantes Neto viver na rua é também um modo de vida onde
“cruzar limites é vivenciado como prazer e desafio lúdico”601. E é a constatação empírica
disto que nos remete à experiência de Papai Noel.
Em 1957, um colaborador da folha Diário de Itabuna, Nicolau Midlej, encontra
Papai Noel na rua e pára para uma conversa com este último. Nicolau já tinha estado em prosa
com o velhinho errante, e prometera que em outro dia continuaria aquela conversa (o
colaborador afirma ter escrito outra matéria sobre Papai Noel, ainda não localizada nos
periódicos locais disponíveis para pesquisa). Acontece que a edição desta matéria foi mal
impressa e talvez mal escrita, havendo erros excessivos nas frases, desacordo entre as palavras
e etc (os erros de impressão eram comuns nestes jornais). De modo que permita-me, então,
extrair da fonte uma breve história deste encontro.
Nicolau estava passeando pelas ruas de Itabuna em seu Jeep, de repente viu nas
“imediações do prédio da Cooperativa” Papai Noel caminhando, em sua ronda matinal.
Nicolau chamou por Papai Noel, que ao ouví-lo “estacionou dizendo”: “que queres de mim
moço”? Nicolau, então, encosta “o jipe à beira da calçada” e retoma o diálogo há dias
interrompido: “Papae Noél, que é que há [com] voce por aqui novamente?”. O bom velhinho

600
Ibidem.
601
ARANTES NETO, op. cit., p. 125.

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então responde: “É verdade[,] esta é a vida que eu aprecio, pois não gosto de viver sem
'liberdade'[!]”. (Um pausa nesta história para dar ênfase ao “não gosto de viver sem
'liberdade'” que um homem que vivia nas ruas disse para um homem em seu imponente jipe.)
“Muito bem”, disse Nicolau, “e lá na Casa dos Mendigos voce não tinha direito a passeios ao
ar livre e apreciar o panorama da cidade, roupas limpas[,] bôa cama, boa comida e tudo
enfim?” (observemos aqui a “liberdade” dentro da Casa dos Mendigos e a liberdade para
Nicolau). Papai Noel, então responde:

Tinha moço, mas acontece que lá é casa pra ficar aleijados e doentes e eu
não tenho nada disso, e outra, gosto de tomar vez em quanto minha 'pinga' e
tirar minha soneca, criar minha barbicha, minhas unhas e o melhor de tudo
isto que é meu pau que serve para me amparar nas longas caminhadas pelas
ruas, todo enfeitado de pedaços de panos velhos tiraram-me: e isto significa
a minha maior felicidade. (grifo meu)

(apenas uma informação que ajuda: Papai Noel esteve como interno daquela instituição, mais
do que o próprio Nicolau, sabe o que se passa por dentro.) Nicolau curioso pela vida de Papai
Noel pergunta-lhe se na Casa dos Mendigos, ele tomava banho diariamente. O velhinho
responde que “lá, todos tomavam, porem, eu já havia acostumado no meu velho regime e
dava pra ruim, pois já me havia habituado a tomar banho de 3 em 3 meses e para tomar todo
dia a gente estranha não é mesmo?”. Saciada a curiosidade, o entrevistador volta a se
interessar pela vida de Papai Noel na rua: “Voce saiu da Casa dos Mendigos recentemente por
sua livre vontade ou fugia, conforme dizem por aí?” (observe que as duas possibilidades não
são opositivas para o uso do “ou”). Papai Noel responde seco e duro: “Saí porque quiz e não
voltarei mais, pois a vida que gosto e hei d e acabar meus poucos dias, é esta, adeusinho
moço”. E corta a prosa se retirando (talvez tenha cortado a conversa porque Nicolau tocou em
algo incômodo, o fato de ter fugido). O final desta história fica para depois.602
A lição que tomo, por hora, é que há lógica e indícios de que a recusa a ir para a
Casa dos Mendigos esta associada à liberdade das ruas. Por outro lado, Papai Noel entendia,
como Ottoni na primeira entrevista com mendigos, que a Casa dos Mendigos não era para
quem mendigava, e sim para doentes – o que ele não era. É bem verdade que Papai Noel é um
caso atípico, não servindo como modelo ou exemplo para pensar uma coletividade chamada
mendigos. Ainda assim, o mendigo anônimo consultado por Eduardo Medeiros afirma que
não irá porque teve uma experiência de exploração em outra casa beneficente, num outro

602
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.

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momento de sua vida, em um outro lugar. Papai Noel também não era nascido em Itabuna. O
único rastro de sua origem, como vimos, aponta que ele, também, seria da região de Vitória da
Conquista603. As experiências migratórias desses mendigos talvez marcassem um
conhecimento das continuidades que existiam de um lugar para o outro, como por exemplo, a
tentativa das cidades de controlá-los (este é um fator a ser pesquisado numa pesquisa
posterior).
Pois bem, tanto no caso de Papai Noel como no mendigo entrevistado por
Eduardo Medeiros, os mendigos agiram colocando os seus interlocutores, seus representantes
no mundo público (o próprio Medeiros e o Nicolau), para refletir, indagar, questionar o
mundo a sua volta – e de algum modo, ajudá-los em seus interesses. O mendigo entrevistado
por Medeiros fez este perceber que a oposição ao recolhimento à Casa dos Mendigos não era
uma atitude tão absurda como ele acreditava antes de entrevistar o mendigo. Mais do que isso,
a experiência deste mendigo fez brotar a primeira – e, até este momento da pesquisa, a única –
crítica às casas de beneficência, por, muitas vezes, explorarem os “beneficiados”. De modo
que o Medeiro apenas “crê” “que não acontecerá com a Casa dos Mendigos de Itabuna, o que
aconteceu com a de Vitória da Conquista”604.
Com Papai Noel a situação foi diferente, mas o resultado foi muito próximo.
Aquela história (matéria) terminou com Papai Noel decidindo pelo fim da conversa (ele
decidiu falar e findar a “palestra” com Nicolau, ele é o protagonista da trama). Ao ir
descansar, deixou Nicolau prosseguindo seu caminho e dizendo para seus “botões”: “Oh
Deus, como soubeste tão bem dividir esta humanidade em formas e costumes, e dar
conformação a muitos, enquanto outros, têm tudo nesta vida e ao chegar mais tarde diante de
VOS não merecem nada”605. Nesta matéria intitulada “As pedras se encontram quanto mais as
criaturas!...”, um encontro se realizou: Papai Noel argumentando sobre sua vida aproximou
uma distância e fez o homem que passeava com seu Jeep refletir nas coisas espirituais de que
nos falam Walter Benjamin em sua quarta tese Sobre o conceito de história. Coisas estas
inexistentes sem a as “coisas brutas e materiais”, objeto da luta de classes, contudo que
“questionarão sempre cada vitória dos dominadores”606. Elas são essencialmente importantes,
pois, como afirma Michael Löwy comentando esta tese benjaminiana, “o que está em jogo na

603
ANDRADE-BREUST, op. cit.
604
Voz de Itabuna, 26.02.1954, p. 02.
605
Diário de Itabuna, 27.11.1957, p. 04.
606
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232
Disponível na web em http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/benjamin/benjamin_01.htm. Página 2.

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luta [de classes] é material, mas a motivação dos atores sociais é espiritual”607. E nesta luta
Papai Noel produziu uma agência reveladoramente importante: sensibilizou Nicolau, fazendo-
o pensar que o apego às coisas materiais de nada vale perante Deus. Noutras palavras, Papai
Noel faz Nicolau refletir que pessoas muitas ricas e materialistas, tendo tudo de material, não
possuem uma moral integra, ética e correta (“não merecem nada” diante de Deus). Nicolau
agora questiona os ricos. E quem sabe se os leitores de Nicolau também não se puseram a
refletir? Quem sabe não respeitaram um pouco mais a forma de viver de Papai Noel (alguém
que merecia algo diante Deus). Se essa luta parece essencialmente abstrata, é preciso dizer
que ela é grandiosa quando se percebe que havia um consenso estabelecido em meio às
classes hegemônicas de que não há nada de político na agência de mendigo, de loucos (eram
tratados como desajuizados, infelizes seres).
Contudo os mendigos em Itabuna, ainda que contingencialmente, asseguraram
uma luta política pelos lugares na cidade. Desta luta emergiu, por alguns instantes, uma
contra-visão em meio aos periódicos locais. Se antes estes estavam acostumados a negativá-
los, caricaturá-los e denunciá-los à polícia, Eduardo Medeiros e Nicolau, contraditoriamente,
aprendiam, tiravam lições do contato com os mendigos. A insubmissão e a diferenciação
cultural dos mendigos conseguiram, junto com a disposição e a curiosidade dos colaboradores
dos jornais, romper uma barreira simbólica que separava os mendigos dos produtores de suas
representações no mundo público. Aquela representação estereotipada, mascarada e velada,
que os mendigos tinham perante as classes hegemônicas, cedeu lugar a um reconhecimento,
ainda que parcial, do outro, com sua história e experiências. Essa mudança começou a marcar
uma emergência dos mendigos como sujeitos da história, como seres falantes, que decidiam
sobre sua vida, que possuíam opiniões e lutas.
Se ao fim da matéria de Medeiros, ele tenta convencer os mendigos a irem à Casa
dos Mendigos, é preciso que se diga que desde o começo os mendigos convenceram-no a
conhecer suas motivações e suas ações. Por um lado Medeiros se mostrou apreensivo,
chocado de certo modo, por uma atitude não esperada, insubmissa, da parte dos mendigos.
Talvez ele, como muitos, entendessem que os mendigos não tinham direito de escolha, não
tinham liberdade de ação. E no estarrecimento por conta da recusa dos mendigos, Medeiros
acabou por mostrá-los como sujeitos políticos (que escolhem e lutam), como sujeitos com
história e experiência. Onde se via passividade e piedade, agora é possível ver reflexão,
astúcia e ensinamento. Ou seja, os mendigos agiam, mesmo que a superfície que se projetava

607
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
São Paulo: Boitempo, 2005,p. 59.

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sobre eles fosse caricaturada como passividade. Ainda mais, os mendigos falavam, mesmo
que a superfície que se projetasse sobre sua fala fosse o texto e a fala de agentes das classes
hegemônicas

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MEMÓRIAS DO SERTÃO: MUCUNÃ E COURO CRU NA DIETA


ALIMENTAR DURANTE A SECA DE 1932

Daiane Dantas Martins - UNEB


daiuibai@yahoo.com.br

Em todos os períodos da história brasileira de que temos registros a seca foi um


acontecimento que marcou freqüentemente as páginas que se referem à região Nordeste. Em
vista disso, buscamos com esse trabalho discutir algumas questões referentes à seca de 1932
na Vila de Uibaí, atual município de mesmo nome, que se localiza no sertão baiano. Sendo
assim, o que propomos com esse trabalho é discutir a seca de 1932, a partir da metodologia da
História Oral, abordando aspectos referentes à adaptação da dieta alimentar experimentada
pelos moradores da vila, que recorreram a folhas, frutos, etc., ou seja, aproveitaram tudo o que
a natureza lhes oferecia naquelas condições. Dessa forma, pretendemos discutir e analisar a
partir da análise de suas memórias, as estratégias de sertanejas e sertanejos observando sua
alimentação como forma de resistir às agruras desse flagelo.

Palavras-chave: Sertão Baiano, Seca, Memórias.

INTRODUÇÃO

A história do Nordeste brasileiro está permeada freqüentemente por estiagens e,


no caso específico do Estado da Bahia esta história não aconteceu de forma diferente.
Buscamos com esse trabalho discutir algumas questões referentes à seca de 1932 na Vila de
Uibaí, atual município de mesmo nome, que se localiza no sertão baiano, dando visibilidade
aos sujeitos que vivenciaram experiências durante essa seca.

Sendo assim, o que propomos com esse trabalho é discutir a seca de 1932, a partir
da análise das memórias de pessoas que conviveram com a referida seca que eram tanto
moradores da vila, quanto de imigrantes que lá chegaram em decorrência dela. Serão
abordados aspectos referentes à adaptação da dieta alimentar experimentada pelos moradores

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da vila, que recorreram a folhas, frutos, etc., ou seja, aproveitaram tudo o que natureza lhes
oferecia naquelas condições. Dessa forma, pretendemos discutir e analisar as estratégias de
sertanejas e sertanejos a partir da observação de sua alimentação como forma de resistir às
agruras desse flagelo.

A Vila de Uibaí e a Seca de 1932

O recorte espacial apresentado nesse trabalho refere-se a uma pequena Vila com o
nome de Uibaí. A primeira denominação de Uibaí foi Canabrava do Gonçalo que com o
crescimento de sua população “passou à categoria de Vila em 1929, com o nome de Uibaí e
sendo distrito do município de Xique-Xique, cuja sede municipal era a cidade de Xique-Xique
localizada à margem direita do Rio São Francisco” (SOUZA, 1984, p. 9).

Atualmente a cidade de Uibaí possui uma população de mais ou menos 13.000


(treze mil) habitantes, distribuídos em sua sede e nos povoados, mas em 1932 ela não passava
de uma vila com uma população relativamente pequena. No entanto, não dispomos de dados
que possam afirmar que número era este.

A rotina dessa pequena vila, assim como de grande parte da Bahia e de outros
Estados do Nordeste, foi abalada por conta do flagelo que viria marcar profundamente a
memória de sua população, a seca de 1932.
Existe algo que não pode ser desconsiderado neste estudo que é a própria situação
em que vivem os sertanejos, para que possamos compreender os motivos da angústia
despertada quando há a possibilidade de ocorrência de estiagens. Esses sertanejos, que em sua
maioria – devido às más condições da distribuição de renda em nosso país - não dispõem de
condições materiais elevadas, dependem da ocorrência de chuvas suficientemente distribuídas
para que seja garantido o seu sustento. Quando por ventura, isso não ocorre, a população já
sabe que dificuldades virão.
Vale ressaltar que entendemos a seca enquanto um fenômeno social que, todavia,
tem esse caráter mascarado quando abordado de forma a refletir um problema apenas de
ordem natural.
O fenômeno seca faz parte do cotidiano sertanejo e carrega significados que vão
além do momento em que ela está presente. Com isso, recorremos a Alfredo Macedo Gomes
que afirma que o significado que a seca tem para os moradores do semi-árido nordestino

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[...] não se restringe ao período seco, mas muito pelo contrário, estende-se a
todos os momentos da vida social, econômica, religiosa e cultual do
nordestino sertanejo. Se é período seco, de estio, a sua significação é
inquestionável; se é período de chuvas, onde se vive o “inverno” e as
plantações se concretizam, é a ausência da seca que lhe dá significado, pois
dela o sertanejo não pode esquecer (GOMES, 1998, p. 57).

A seca de 32 como é retratada pelos moradores locais e acaba sendo perpetuada


pelas gerações posteriores, é apontada como a de maior repercussão de todas já enfrentadas,
tendo sido necessário uma verdadeira readaptação de sua rotina a fim de superá-la.
Essa readaptação foi feita com base em uma verdadeira resistência que a
população apresentou, percorrendo desde uma adaptação de sua alimentação aos escassos
recursos que o seu ambiente ainda dispunha, passando pela retirada de sua terra em busca de
um lugar que estivesse em melhores condições, sem esquecer a perspectiva e ansiedade da
chegada do fim do flagelo, para retornarem, e por fim, desembocando na morte quando não
havia outra saída. Contudo, daremos destaque à dieta alimentar desenvolvida nesse período
pelos moradores de Uibaí e localidades circunvizinhas que será abordado a seguir.

Dieta Alimentar de Sertanejos Uibaienses na Seca de 1932

Não há como falar em seca no sertão sem falar da resistência apresentada pelos
sertanejos no tocante à sua alimentação. Em 1932, quando culminou a seca, na região em que
se situa o objeto de estudo, consumiu-se de tudo. Desde cuca de umbu1, até couro cru,
mucunã1, xiq608ue-xique, etc. O gado qu609e existia não resistiu ou estava demasiado
magro, mas tendo em vista o que se preserva nas memórias que subsidiam a produção desse
trabalho, as precárias condições a que se chegou deu-se em decorrência da falta de farinha –
que constituía e ainda constitui em determinadas localidades, a base da alimentação. A
ausência desse alimento, devido à escassez de chuva seria, portanto, a principal causadora da
fome, e em conseqüência, do sofrimento.
Silvanito Dias e Silva, cordelista natural de Central1, em seu poema de cordel “A
a610ngústia de Zé Carote na seca de 32” traz um panorama dessa seca na região que Uibaí
faz parte. Apesar dessa fonte não ter sido produzida em Uibaí, mas em Central, retrata uma
realidade que permeou toda a região no período e foi produzido recentemente com base em
608
Mucunã é uma fruta considerada tóxica encontrada na vegetação da caatinga que foi consumida na forma de
cuscus durante a seca de 1932 em Uibaí.
609
O município de Central é vizinho ao de Uibaí, e em 1932 também fazia parte do município de Xique-Xique.
610
Cabeça de frade é o nome de um cacto bastante comum na vegetação da caatinga que normalmente não é
aproveitado na alimentação nem de animais.

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vários depoimentos. Acerca da alimentação destaca-se o fato de que “Mucunã e coro cru, /
Sirvia de alimento, / Pra aliviá a fome, / Dum povo em disalento, / Padiceno noite e dia, / Na
severa agunia, / Asperano livramento”. Aqui ganha destaque a mucunã e o couro cru como
fonte de alimento utilizados durante a seca. A fruta mucunã aparece em várias fontes talvez
por ter sido um grande desafio sobreviver dependendo de um fruto que acreditava-se ser
tóxico. Assim,

[...] Muitas vezes para matar a fome, recorriam às raízes da mancambira ou


de umbu; da fruta da mucunã, lavada em sete águas para tirar as substâncias
tóxicas, faziam uma espécie de cuscuz, segundo dizem, de péssimo sabor e
duvidosa qualidade alimentícia. Os que se embrenhavam pela Chapada
Diamantina, premidos pela fome, escapavam tomando o leite do mucugê
(ROCHA; MACHADO, 1988, p. 72).

Além disso, Jaksom Rubem dá destaque ao xique-xique, um cacto que teria


servido de fonte alimentícia para algumas pessoas descrevendo o processo pelo qual passava
até poder ser consumido.

[...] o xique-xique ajudou muita gente a sobreviver durante secas terríveis,


quando não restava mais nada como alimento. Pegavam o xique-xique,
retiravam todos os espinhos, e o assavam. Feito isso, retiravam suas cascas
como se estivessem descascando uma banana e comiam sua parte mais tenra.
O restante era dado aos animais, permitindo-lhes, também, continuarem vivos
(RUBEM, 1997, p. 80).

Uma das entrevistadas D. Joaquina, que cedeu informações que foram


fundamentais para a realização desse trabalho, ao rememorar as formas de alimentação pelas
quais ela e sua família passaram demonstra inclusive com detalhes como eram preparados
esses alimentos. Ao falar de seu pai ela diz que “ele tinha um brejo de batata que a gente dava
o povo e uns ia pedir até folha de batata pra ferver pra fazer cariru pra comer, folha de
mandioca frevia e comia”. Vale ressaltar que esta entrevistada fazia parte de uma família ao
que tudo indica com certo destaque na sua localidade que era Poço, que atualmente faz parte
da zona rural do município de Uibaí.
D. Joaquina demonstra em seu depoimento o que foi consumido em Poço durante
a seca de 1932. Segundo ela:

Quando nós cerçava assim [milho] numa peneira pra tirar as peles da canjica
o povo aparava chegava e dizia: [...] me dá essas pela pra eu torrar pros

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menino comer, aquelas sementes de melancia que tinha, pegava tudo [...]
comia até a raiz da taboa o povo comia, mucunã

É notório na fala dessa depoente o lugar ocupado por seu pai nessa sociedade, já
que ele possuía roças de mandioca possibilitava a obtenção de farinha tão fundamental para a
dieta alimentar dessa população e nesse momento encontrava-se escassa, bem como ia até
Xique-Xique comprar farinha para ser consumida, vendida e doada. Quando é revelado o que
as pessoas comiam D. Joaquina cita: “aquelas carne véia magra que a gente tem nojo, [...]
comia carne de gado, mas feijão era muito pouco [...], comia bode também, [carne] de bode,
de porco, uns porco véio magro [...], cozinhava os imbu verde e botava água e botava um saco
pra escorrer e comia ali puro; folha de mandioca, frevia as folha de mandioca, moía na
máquina, comia com imbu maduro também, de batata, as folha de batata”. Sua fala revela um
universo de possibilidades alimentares nesse cotidiano. Além disso, ela identifica a existência
de diferença na dieta alimentar entre os que ela considera como “os que podia” em oposição
aos outros. Segundo ela “os que podia comia cuscus de manhã e de noite, comia o angu de
milho, os que tava bem, farinha era com um tiquinho de feijão um taquinho de carne, carne
era barata”.
Algo interessante a ser destacado diz respeito ao final de sua fala citada acima. O
fato de se enfatizar que “carne era barata”. Contudo, apesar da carne ser barata, as
dificuldades eram maiores pela escassez de farinha e “tudo a gente comia com farinha e não
tinha farinha”. Assim, apesar de se encontrar em uma posição que permitia ajudar outras
pessoas não podemos desprezar o fato de D. Joaquina e sua família estarem incluídos nesse
universo de pessoas que resistiram à seca de 1932 enquanto ela mesma se inclui entre as
pessoas que passaram por dificuldades e por fim, revela “ia passando, passou, a gente passa,
come tudo quanto é coisa e passa”.
Uma segunda entrevistada foi D. Idália, que era de Irecê (distante 36 quilômetros
de Uibaí), e juntamente com sua família em 1932 emigraram para Jequié e de lá voltaram para
Uibaí após seu pai e alguns irmãos falecerem em decorrência da seca. O depoimento dessa
senhora mostra uma realidade diferente da anterior, pois D. Joaquina em momento algum cita
que sua família chegou a pedir esmolas, enquanto a fala de D. Idália está permeada por isso.
D. Idália também aponta a escassez de farinha como responsável pela
precariedade da situação. Quando ela fala da saída de sua família de Irecê diz que “meu pai
tinha um jegue, vendeu o barraco a troco de bode e daí panhou os bode e salgou e botou

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dentro das bruaca, pra nós ir comendo os pedacinho, só salgado sem farinha, até onde
encontremo farinha”.
Tal era dificuldade de encontrar esse alimento que da saída de sua família de Irecê
em direção a Jequié só foram encontrar farinha em Morro do Chapéu, farinha esta que era
feita de palmito de coco. É provável que essa farinha de palmito já fosse feita com a
finalidade de ser doada aos flagelados, pois, o senhor Valmyr, outro depoente, nos fala de
parentes seus que faziam farinha de cuca de umbu para ser misturada à farinha de mandioca e
doada aos pedintes.
D. Idália quando narra a saída de sua família até chegar em Jequié revela o que era
ingerido oriundo de esmolas dadas a esses flagelados. Segundo ela, as pessoas davam “cabeça
de fralda1 pra nós comer e nós comia e 611achava bom. Palmito de coco aqueles pedaço, nós
comia e achava bom, inda dava Deus que te ajude”.
Em contraposição à escassez de alimentos em todo o caminho percorrido até
chegar em Jequié, suas memórias revelam o lado da fartura encontrada “no sul”. “Ne Jequié.
Quando nós chegamo ne Jequié tantas barriga nós tivesse pra carne, banana e tudo quanto é
fruta era um farturão. Graças a Deus aí a fome acabou”.
Por fim, apontaremos as indicações do Sr. Valmyr, que em 1932 tinha 6 anos,
acerca da alimentação a qual os sertanejos recorreram durante a seca de 1932 “comia rato,
gato, rabudo, naquele tempo eles matavam e comiam a fome era devastadora era pouca gente
que não passava fome”.
O lugar ocupado pela família do Sr. Valmyr se assemelha à de D. Joaquina pois,
ele reporta a sua fala à solidariedade prestada por seus familiares às pessoas que estavam
passando fome. Ele fala de seu tio Dió Miranda que era considerado rico nessa época e
marcava um dia para matar um boi do qual se aproveitava tudo, “tripa, não ficava nada”.
Além disso, ele diz que “muitos tomavam água com sal não tinha outra coisa até hoje tem
esse ditado tá vivendo n`água e sal, naquele tempo era mesmo n`água e sal”
Em vista disso, podemos perceber uma infinidade de recursos oferecidos pela
natureza em momentos de escassez que eram aproveitados através de uma adaptação da dieta
alimentar como forma de resistir ao flagelo. Tudo isso foi aproveitado e ajudou esses
sertanejos a superar as agruras dessa seca e reproduzir as suas experiências como forma de
aprendizado para as gerações posteriores que retratam essa vivência seja através da oralidade,
de poemas de cordel e até mesmo de músicas como a de Wilson Oliveira, cantor e compositor

611
Arquivo Público Municipal de Itabuna – José Dantas (APMIJD). Voz de Itabuna, 27/04/1954.

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de Central que em sua canção “A seca de 32 no sertão da Bahia” cita em um trecho


informações sobre a alimentação durante essa seca que corroboram com as informações
recolhidas a partir dos depoimentos: “Dos 15 filhos que eu tanto gostei / Hoje presenciei 05
desencarnar / Dez que’inda restam, eu admirei / Comeu couro cru e mucunã pra escapar”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa vila por localizar-se, no período em foco, em um certo isolamento – como a


maioria das cidades do interior -, devido à falta de estradas, ficou completamente esquecida
pelo poder público. Sua população não teve o mínimo auxílio e enfrentou mais uma estiagem
apenas com o suporte dos próprios conterrâneos que ajudavam como podiam, dividindo o
pouco que havia restado. Contudo, não podemos desconsiderar as mortes, que apesar da
resistência ocorreram. Foram várias as pessoas que faleceram de inanição e de doenças em
decorrência dela na própria vila, ou quando buscavam sobrevivência em outros locais.
Apesar de estarmos tratando de um tema do início do século XX, não há como
ignorar várias permanências deles em períodos posteriores. O principal talvez seja o descaso
do poder público que mesmo instituindo, em seguida a essa estiagem frentes de serviço, não
conseguiu resolver essa problemática que ainda hoje é motivo de aflição.
Dessa forma, tentamos apontar aqui uma dieta alimentar oriunda da adaptação
feita por moradores do sertão baiano a fim de resistir a mais um flagelo dispondo de artigos
que a natureza oferecia nessas condições. Assim, através das experiências reproduzidas a
partir das memórias de pessoas que conviveram com essa estiagem buscamos dar visibilidade
a esses sujeitos que por tanto tempo foram marginalizados pela historiografia e têm muito a
contribuir para o alargamento dos estudos históricos, sobretudo no que se refere aos estudos
do sertão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES, Alfredo Macedo. Imaginário social da seca: suas implicações para a mudança
social. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1998.

ROCHA, Osvaldo Alencar; MACHADO, Edimario Oliveira. Canabrava do Gonçalo: uma


Vila do Baixo Médio São Francisco. Brasília: Ed. Do Autor, 1988.

RUBEM, Jackson. Irecê: História, Casos e Lendas. Salvador: Bureau, 1997.

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SILVA, Silvanito Dias e. “A angústia de Zé Carote na seca de 32”. Poema de cordel.


Impressão Gráfica Salobro, Irecê. s/d.

SOUZA, Antônio Machado de. Pequena História do Uibaí. Monografia. Ed. Prefeitura
Municipal de Uibaí. Uibaí-Ba, 1984.

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3.3 – SIMPÓSIO 3:
HITÓRIA POLÍTICA
Coordenação:
Prof. Msc. JoséVieira da Cruz (UNIT/SEED/ SEMED/Doutorando /UFBA
Prof. Msc. Dênio Santos Azevedo(UNIT/FASE)

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NORDESTE: ASPECTOS POLÍTICO, SOCIAL E MEMORIALÍSTICO

Maria Isabel Andrade de Almeida Santos – UNIT/UFS/CESAD


isabeluab@hotmail.com

Este artigo científico pretendeu analisar as diferentes visões acerca da região Nordeste, sob as
óticas de Euclides da Cunha (visão política ), em sua obra maior, Os Sertões, Graciliano
Ramos ( visão social ), Vidas Secas e, finalmente, em José Lins do Rego ( visão memorialista)
em Menino de Engenho. Através dessas análises, sobretudo de Os Sertões e Vidas Seca,
verificou-se o quão é discriminado o homem que vive no Nordeste, principalmente, àquele
que reside nos mais distantes arredores de um Brasil, por ele, desconhecido – o litorâneo.
Enquanto isso, José Lins do Rego aborda com saudosismo o desfalecimento da sociedade
açucareira nordestina. Contudo, mesmo de ângulos diferentes, esses renomados escritores
contribuíram para perpetuar entre nós, através da arte, muitos conhecimentos sobre esta tão
sofrida região Nordeste.

Palavras-chave: Nordeste, sertão, homem, terra, raça.

O presente artigo foi elaborado com o propósito de fazer uma análise acerca de
Os Sertões, Vidas Secas e Menino de Engenho. Para tal, foram verificados não só os aspectos
político, social e saudosista, como também considerada a conjuntura artística vigente no final
do século XIX e início do XX. Em se tratando dos aspectos românticos e realistas no
Regionalismo do século XIX, segundo Afrânio Coutinho, desde o Romantismo o Brasil
regional vem sendo valorizado de forma significativa. Vários aspectos contribuíram para que
esse fato viesse à tona, entre eles, a aspiração de se tornar independente tanto na política
quanto na cultura. Contudo, o regionalismo romântico e o realista são vistos e postos em
prática de forma diferente.
Isso porque escritores como José de Alencar ao tempo em valoriza o pitoresco e a
cor local, os seus personagens são idealizados segundo a cultura européia. Em virtude disso,
foi criticado por Franklin Távora, que por sua vez, desvestiu-se do sentimentalismo e do
idealismo e aborda em sua obra O Cabeleira, um regionalismo que valoriza a análise e a
interpretação do nordeste brasileiro.

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Partindo desse pressuposto, o regionalismo social encontrado nos escritores do


século XX, incorpora as tensões sociais do período vigente. Os modernistas não querem mais
idealizar a natureza, mas denunciá-la, como é o caso de Euclides da Cunha em Os Sertões e
de Graciliano Ramos em Vidas secas.
Ao contrário desse caráter denunciador, encontra-se em nosso regionalismo José
Lins do Rego com sua visão saudosista. Nela, a natureza é nada mais, nada menos, do que um
palco onde acontecem as mais fascinantes experiências de um menino de engenho, neto de
uma aristocracia de fogo morto.

Visão Política de Euclides da Cunha

Euclides da Cunha612 foi engenheiro, jornalista e escritor. Como escritor publicou


Os Sertões613, considerado por Afrânio Coutinho como a Ilíada brasileira. Sua visão diante
dessa obra pode ser caracterizada, segundo Adilson Citelli, como antilinear. Isso porque a sua
postura no início da obra é totalmente adversa do seu final. Esse caráter não retilíneo deve ser
respeitado com a mesma originalidade com que o escritor, e jornalista, Euclides da Cunha ao
perceber a real situação nordestina mudou seu posicionamento antes guiado pelo cientificismo
do século XIX.
Sua obra – prima Os Sertões, possui três partes distintas: A Terra, O Homem e A
Luta. Na primeira parte, (A Terra), faz uma apresentação da região baiana, demonstrando seus
conhecimentos geológicos, climáticos, sociológicos, entre outros, e, segue apresentando
hipóteses sobre a origem das secas, suas causas e possíveis soluções.
Na segunda, (O Homem), a nosso ver, a mais bela, estuda os tipos básicos de nossa
formação: o índio, o negro e o português. Descreve as possíveis diferenças entre o jagunço do
Nordeste e do Sul. Com isso nos mostra seus conhecimentos sociológicos e etnográficos.
Na terceira, (A Luta), constituída basicamente pelas reportagens, narra os
acontecimentos militares da Campanha de Canudos até a completa dizimação dos sertanejos.

612
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu na fazenda da Saudade, no município de Cantagalo, Rio de
Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Em 1896 abandonou as armas e foi para São Paulo de onde no ano
seguinte foi enviado para Canudos como correspondente do jornal “ O Estado do São Paulo” com o propósito de
observar a campanha contra os fanáticos de Antônio Conselheiro. Em 1903, foi eleito para a Academia Brasileira
de Letras. Em 1904 iniciou a estafante viagem para Amazônia, colhendo também material histórico- sociológico
para seus futuros livros. Em 1909, inscreveu-se para o concurso de Lógica do Colégio Pedro II, classificou-se
mas não chegou a reger a cadeira, porque a 15 de agosto desse mesmo ano, morreu tragicamente na estação da
Piedade.
613
Os Sertões foi publicado em 1902 e teve a primeira edição esgotada. Seu autor foi consagrado por críticos
brasileiros e internacionais por ser representante de um dos grandes compêndios da literatura do século passado.

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No início, Euclides da Cunha arraigado de teorias cientificistas614 do século XIX,


reportou-se aos sertanejos como sendo uma sub-raça, sinônimo de atraso. Em virtude disso,
Canudos deveria ser aniquilada, já que a mestiçagem extremada era um retrocesso e, isso sem
dúvidas prejudicaria o desenvolvimento do país como um todo. Para enfatizar essa visão
preconceituosa do autor em nota preliminar de Os Sertões nos afirma: a civilização entrará para
os sertões impelida por uma força motriz da história, e as raças fracas serão esmagadas pelas fortes.
Contudo esse olhar cientificista cai em contradição. Aspectos percebidos nas partes
O Homem e a Luta. Nelas, o mesmo homem torto, desengonçado, relegado tanto ao bel prazer
dos governantes quanto às tragédias naturais; um homem, capaz de sucumbir a tais oscilações,
aqui, é dotado de superioridade frente aos do Sul. Por isso nos diz que “o sertanejo é antes de
tudo um forte não tem o raquitismo exaustivo dos neurastênicos do litoral”.
Esse homem do sertão é dos brasileiros “o mais tenaz; é mais resistente; é mais
perigoso; é mais forte; é mais duro”. Através disso, percebe-se o paradoxo existente na
concepção do escritor de Os Sertões em relação ao homem do sertão. De um lado, guiado
pelas teorias raciais discriminatórias do século XIX, subordinadas à luz do cientificismo,
condena as “sub-raças”, para ele, sinônimo de atraso. De outro, ao analisar a resistência e / ou
capacidade de adaptação ao meio inóspito do agreste sertanejo, e, além de, reagir às
arbitrariedades ocasionadas pelo abandono e violência dos latifundiários, demonstra
admiração.
Em se tratando desse último aspecto, verificou-se que a discriminação da “sub-
raça”( do interior ) em detrimento da civilizada (do litoral ) transformou-se em denúncia da
violência e, porque não dizer do genocídio causados por essa mesma civilização que
representava o progresso da nação. Esses aspectos foram verificados na última parte do livro –
“A Luta”. Aqui, o texto euclidiano ganha não só intensidade dramática, no momento em que
narra os acontecimentos que envolvem a guerra, como também através dos sucessivos
combates. A escrita euclidiana passa a ter um caráter épico.
Nesse sentido, ao tempo em que discorre sobre a nova expedição comandada por
Artur Oscar, observa a bravura, a coragem e a determinação dos jagunços sertanejos frente ao
espetáculo aterrorizante oriundo das forças republicanas. A partir disso, verifica que os
conselheiristas estavam lutando por uma “justa causa” ou por suas sobrevivências.

614
Essas tendências acreditavam que a Ciência poderia resolver tanto problemas de ordem humana, como
também àqueles causados pela natureza. Entre outras, o Determinismo de Taine, o Positivismo de Auguste
Comte e o Evolucionismo de Espencer.

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Contudo, essa narrativa épica, consegue chegar ao ápice quando descreve os


combates finais de Belo Monte, ao mostrar a resistência final daquela população. Cercados,
bombardeados, famintos, com sede, cansados da longa jornada, a cada dia os sertanejos
pareciam exauridos, mas mesmo assim, lutavam. Enfim, todos os aspectos preconceituosos
percebidos no início dessa obra, transformam-se em admiração e respeito à figura do
sertanejo.
Com isso, notou-se que o olhar de Euclides da Cunha acerca da população de
Canudos não termina como começara. Isso porque os civilizados de ontem, capazes de trazer
o progresso para a nação, são os bárbaros de hoje. Pessoas que se utilizam do poder, nesse
caso, o militar, para praticar tamanha barbárie contra “a rocha viva da nossa raça”, lançando
mão de sua infinita capacidade humana de destruição.
E, com esse vigor freemente de vingança aos 05 e 06 dias de outubro caiu o arraial
de Belo Monte. Mesmo assim “Canudos não se rendeu”. Os seus únicos defensores eram: um
velho, dois homens e uma criança, contra a infindável crueldade do poder militar republicano
como nos diz o próprio Euclides da Cunha: Forremo-nos à tarefa de descrever os seus
últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre
profundamente emocionante e trágica (...)( Os Sertões, p. 532:2003 )
Como se pode notar, a atitude do escritor de Os Sertões, transformou-se a partir
do momento em que passou a interagir e / ou conhecer a realidade dos sertanejos. Esse novo
olhar,levou-o a detectar que o poderio republicano não lutava contra um possível retorno da
Monarquia, mas em prol do poder vigente e, contra uma população de marginalizados e
humilhados pelos despotismos ocasionados pelo poder dos coronéis.Com efeito, verificou-se
que aquela população de 25 mil habitantes almejava viver igualitariamente. Fato que de certo
modo, atrapalharia a visão de progresso estabelecida pela ordem. Por isso, para eles,
exterminando Canudos, estariam exterminando o atraso.

Visão Social de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos615 aborda em sua obra maior, Vidas Secas, segundo José
Maurício Almeida, uma adequação entre forma e conteúdo. Isso porque a integração entre o

615
Graciliano Ramos ( Quebrângulo, Alagoas, 1892, Rio de Janeiro, 1953 ). Primogênito de casal sertanejo de
classe média que teve 15 filhos. Fez estudos secundários em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Em
1910 estabeleceu-se em Palmeiras dos Índios. Em 1914, esteve no Rio de Janeiro e trabalhou como revisor do
Correio da Manhã e da Tarde. Entre 1928 e 1930 exerce a prefeitura daquela cidadezinha. Em 1925 redige seu
primeiro romance Caetés. De 30 a 36 conhece autores como José Lins do Rego e Raquel de Queiroz e escreve
São Bernardo e Angústia. Nesse mesmo período é preso. Na prisão redige Memórias do Cárcere.

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meio físico e social, o homem, a linguagem a ação, a temática e a própria articulação da


narrativa torna-se quase absoluta. O que nos revela um estilo substantivado, restrito, conciso
e, a propósito de seu título “seco” ou como designou Dácio Antônio de Castro “o estilo
cacto”, caracterizado pela sobriedade no uso dos adjetivos.
Para o crítico Olívio Montenegro, a idéia bem visível do autor foi criar uma
personagem que se mostrasse bruto e vítima de seu meio. Nota- se aqui, a velha questão do
determinismo. A família de retirantes nordestinos reflete as paupérrimas condições de vida a
que erelegada. Essas precárias condições eram ocasionadas tanto pelas oscilações do clima
quanto pelas injustiças sociais.
Em se tratando das injustiças sociais, segundo Afrânio Coutinho as obras de
Graciliano Ramos têm caráter inquietante e denunciador, sobretudo Vidas Secas. Isso porque
o próprio autor preferiu auscultar o viver precário dos nordestinos frente à caatinga rala, a
mascarar a realidade como ele nos diz em depoimento:

O que me interessa é o homem, e o homem daquela região aspérrima. Julgo


que é a primeira vez que esse sertanejo aparece em literatura. Os
romancistas do Nordeste geralmente costumam pintar o homem do brejo...
Busquei auscultar a hostilidade do meio físico e social e da ambição
humana. Por pouco que o selvagem pense - e os meus personagens são
quase selvagens- o que ele pensa merece anotação... ( CASTRO, P.31:1997)

Nesse universo artístico criado por Graciliano Ramos em que as personagens são
criaturas sofridas, tristes, infelizes e inúteis desprovidas da própria sorte, está implícito o
desabafo do próprio autor a cerca de uma experiência de vida sufocante e solitária, pois no
dizer de Álvaro Lins “existem obras que explicam o autor”. Por isso, sua arte mantém uma
certa verossimilhança com os caracteres do viver no solo árido do sertão. Nesse aspecto,
notou-se a objetividade do autor de Angústia em exprimir das páginas de suas obras
principalmente, Vidas Secas, suas raízes. Sobre isto nos diz Álvaro Lins: o autor não pode
exprimir piedade, porque o pudor e a dignidade artística o impede de ter piedade de se mesmo. Ele
não tem pena de seus personagens, porque estar projetado neles, e dispõe de forças suficientes para
de se mesmo não ter pena nenhuma..( VIDAS SECAS, p. 137:1947)
Essa incapacidade de verbalizar seus pensamentos, a marginalidade lingüística,
está devidamente atrelada à aridez do solo sertanejo. Assim como o solo reflete aridez,
improdutividade, também a vida dos retirantes se encontra mal resolvida, mal projetada,
inconstante. Esses fatos podem ser perceptíveis tanto nos capítulos Mudança quanto no
denominado O Mundo Coberto de Penas. Neles, encontra-se a inconstância de uma vida

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nômade, sem perspectiva de um futuro promissor já que são obrigados a evadir, porque como
de costume, a seca sempre existiu e irá existir. Para Alfredo Bosi, por eles não conseguirem
exteriorizar seus pensamentos de acordo com os padrões lingüísticos adequados à
comunicação, tornam-se a expressão concreta da incapacidade de interagir e compreender o
mundo que os cercam.
Um outro aspecto encontrado em Vidas Secas é a questão da zoomorfização. Isso
porque homem, animal e natureza são nivelados ao processo de animalização. Contudo,
verificou-se que Baleia, mesmo sendo animal recebia um tratamento individualizado, por isso,
era carregada de superioridade frente aos seres humanos, sobretudo, aos meninos que eram
identificados como O Menino Mais Velho e O Menino Mais Novo. Fato que nos revela
coisificação e / ou, por assim dizer, a impessoalidade ou ainda a generalização do viver
naquela inóspita região.
No plano estrutural, percebeu-se que ao contrário do que alguns autores insistem
em dizer que Vidas Secas é um romance desmontável, e composto por narrativas isoladas,
Frederick Willamis em recente ensaio, afirma-nos que isso é um absurdo, já que para ele, esse
romance é constituído tal qual a estrutura cíclica das secas e das chuvas torrenciais que
caracteriza a região retratada em Vidas Secas. Desta forma, qualquer alteração que houver na
estrutura de suas partes causa prejuízo no entendimento e / ou no significado que o autor quis
abordar por meio de sua obra. Nesse tocante, percebe-se que o livro termina como começa:
com o êxodo da família de retirantes em busca de novos lugares para sobreviver. Fato que
pode ser constatado através dos capítulos Mudança e Fuga, respectivamente como nos afirma
Castro:

...praticamente, só existe uma seqüência narrativa básica, definidas pelos


movimentos de partida e de chegada da família sertaneja. Essa arquitetura
cíclica se delineia pela repetição da mesma ordem: há uma convergência
entre o primeiro capítulo “mudança” e o ultimo “fuga”, pois ambos são
marcados pela mesma pressão implacável da seca, que afugenta a família e
impede a qualquer forma de estabilidade. Desse modo, a obra termina da
mesma forma que começa.( p. 50:1997)

Segundo Dácio Antônio de Castro, o estilo de Graciliano Ramos pode ser


caracterizado como seco, caatingoso. E, em virtude de seu modo de dizer apenas o necessário,
foi exaltado por João Cabral de Melo Neto através dos poemas “A Palo Seco” e com outro
que recebe o mesmo nome do autor: “Graciliano Ramos”.

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A propósito deste último, mais precisamente nos versos seguintes: Falo somente
por quem falo: / por quem existe nesses climas / condicionados pelo sol / [... ] de tantas
condições caatniga / em que só cabe cultivar o que é sinônimo da míngua. Através destes, o
autor de Morte e Vida Severina quis trazer à tona uma dramática situação da seca nordestina.
Conquanto, escritos em 1967, século XX, encontram-se tão nítidos em nossos dias como
naquela época. Fato que pode ser comprovado por meio de uma entrevista realizada pela
revista Veja a Amaro José da Silva, 46, bóia-fria conhecido como “Gabiru”. Essa
denominação lhe é proveniente, em virtude de ele pertencer “a geração de homens nanicos”.
Aspecto este, ocasionado pelo fator da subnutrição. Esse fator, a nosso ver, patenteia-se ao
caso da família de Fabiano. Como nos diz Castro: em certos trechos dessa premiada matéria
ecoam falas da vivência dos personagens de Graciliano Ramos.

E, assim como Fabiano não tem perspectiva nenhuma de melhorar a situação: (...)
Eu trabalho há 23 anos para a usina Bonfim. E o que eu tenho? Vou morrer como nasci:
nu e com fome. [...] cansa, mas não tem jeito de ser diferente. Cada dia a miséria e o
sofrimento aumentam” [...] ( p. 101).

Dos versos deste poema, verifica-se a relevância de Vidas Secas em nossa


literatura modernista. O fator de sua importância deve-se não só por constituir um clássico da
literatura modernista como também por eclodirem de suas páginas o drama do trabalhador
rural que sofre por não ter condições de exercer seu direito frente à sociedade, principalmente,
o que diz respeito às questões trabalhistas. Isso porque nossos representantes insistem em
perdurar a indústria da seca, como mencionou Dácio Antônio de Castro, em prol de seus
interesses econômicos e, assim atribuir o flagelo do povo nordestino, sobretudo, aquele que
vegeta no sertão do agreste-árido, fazendo “o país acreditar que este fenômeno da natureza é
irreversível e irremediável.”
Daí o motivo de o autor de Angústia fazer análises psicológicas, sociológica, e
porque não dizer, filosóficas das paupérrimas condições em que vive especificamente, o seu
povo nordestino, principalmente daquele que sobrevive precariamente no solo árido do sertão.

Visão Memorialista de José Lins do Rego

O desfalecimento da vida social dos engenhos nordestinos do século XIX, teria na


literatura da década de 30, um autor de fôlego insaciável, no sentido de nos contar por meio

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de suas memórias a decadência do patriarcado açucareiro. Para tal, José Lins do Rego616,
lançou mão de repetitivas narrativas denominadas o ciclo-da-cana, na tentativa de perpetuar
via memória ficcional o prestígio e a dominação de seus antepassados.
E, como nos afirma Moema Selma D’Andréia, em sua obra A Tradição da
Redescoberta, essa repetição verificada na estrutura dos cinco primeiros romances do ciclo,
para o autor, é: “a única maneira de evitar a “morte” do mundo patriarcal é redescobri-lo e
desdobrá-lo em narrativas reinterantes”. Percebe-se também que essa foi uma maneira
encontrada para espantar os males presentes na memória de um menino de engenho que
outrora fora engenhosa no mais amplo sentido da palavra.
Um outro fator que o impulsionou foi ter comungado com cronistas do
regionalismo nordestino da década de 20, tanto na percepção do declínio da aristocracia
açucareira como também na necessidade de lutar pela sua revalorização. Nesse sentido, sua
obra segundo Flora Süssekind está arraigada de um certo caráter documental sob o ponto de
vista do neto-autor já que tende retratar a realidade social dessa década.
Em se tratando da reação de protesto sobre as mudanças que abalam a ordem
estabelecida aqui, no Brasil, far-se-á nos meados da década de 20 por meio de dois pensadores
– Gilberto Freyre e Jackson de Figueiredo. Eles se colocam ao lado do tradicionalismo e, por
isso pregam contra as novas forças arraigadas com propósitos de desagregar a sociedade
brasileira, entre elas, o militarismo, o positivismo, a democracia e o futurismo.
No tocante a essa visão tradicionalista, pode-se dizer que do ponto de vista do
regionalismo tradicionalista nordestino, são elementos fundamentais da ideologia da ordem da
década de 20, tradicionalismo via colonização e a tradição via patriarcalismo.
Para os tradicionalistas, a integridade de nossos valores na concepção da ideologia
nacionalista dependeria da capacidade de sustentação e respeito das classes dominantes,
naquela época, as rurais, ameaçadas pelo crescimento das grandes cidades. Essa visão
exógena não tarda implicar sua verdadeira conotação: O cosmopolitismo das grandes cidades
viria atrapalhar os interesses “nacionais”. Interesses esses que se vinculavam estreitamente
aos dos senhores patriarcais.
Contudo, nota-se que a reivindicação da nacionalidade pelos aristocratas do
nordeste açucareiro, ou como o chamou Gilberto Freyre de paróquia açucareira, seria reduzida
aos interesses que estivessem em consonância com os ideais dessa classe. Dito isto, todas as

616
José Lins do Rego Cavalcante, nasceu em 1901 e faleceu em 12 de outubro de 1957. Escreveu várias obras,
entre elas, as denominadas como “o ciclo- da – cana”, Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo, Usina, Fogo Morto
e, a primeira do ciclo e mola propulsora de nosso trabalho, Menino de Engenho.

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transformações que vão de encontro a tais propósitos são vistas como nocivas e perigosas para
o desenvolvimento “nacional”. Este por sua vez, liga-se a uma concepção do regionalismo
atrelado aos interesses do estado de Pernambuco que podem ser em última instância os
interesses dos senhores de engenho.
Esse discurso do regionalismo-tradicionalista nordestino vem confirmar a
aistoricidade aliada, ao tradicionalismo. Essa negação do tempo histórico surge como reforço
da falsa representação do real e, por conseguinte apaga as marcas históricas de outros
movimentos e de outras praticas sociais: militarismo, democracia, futurismo. Nesse sentido, a
luta pela antiga hegemonia da classe rural fica mais explícita, uma vez que a volta da ordem é
ameaçada pela anarquia.
Alguns estudiosos comentam que Menino de Engenho, sua primeira obra do ciclo,
recebeu uma forte influência do escritor de Casa-Grande e Senzala. Isso porque o famoso
antropólogo havia confessado ao paraibano que iria escrever um livro que contasse se não
apenas sua meninice, mais a meninice de vários tipos regionais de brasileiros. Sete anos mais
tarde Lins do Rego escreve o seu Menino de Engenho. Disso, pode-se dizer que o escritor de
Soldados e Mucambos o incentivou, porém devemos reconhecer que, para tal acontecimento,
o crescido menino de engenho já possuía de pronto a sua própria substância romanesca na
vida que viveu nos engenhos de seus antepassados.
No plano estrutural, nota-se o caráter memorialístico da obra em que o narrador
observador combina forma autobiográfica para retratar o mundo onde viveu, com as
atividades produtivas, tipos humanos característicos, costumes e aspectos da paisagem. Desta
forma, o autor recupera através da memória e da arte, o efeito corrosivo do tempo sobre a
vida. Em um contexto mais amplo de nossa literatura nordestina Menino de Engenho deixa
transparecer a influência que recebera outrora de Gilberto Freyre e a atitude consciente de
questionamento e denúncia da realidade social, imperante na região. Contudo, o autor de
Usina deixa transparecer também, no decorrer da narrativa o predomínio de suas raízes, ou
seja, como o romance é composto por uma matéria que retrata a sua vivência enquanto filho
da aristocracia rural, como não poderia deixar de o sê-lo, focalizando os acontecimentos a
partir de uma ótica dominante.
Demonstra, com isso, a neutralização de sua consciência crítica acerca da
realidade. Isso porque ao invés de deixar aflorar sua consciência crítica, deixava fluir o
sentimentalismo e o predomínio dos tons vocativo e elegíaco frente àquele mundo que o
cercava. Nas palavras de Olívio Montenegro: Em José Lins do Rego o romance é como se
fosse mais de instinto do que da reflexão.( p .173)

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É nostálgico o modo como o narrador conta-nos o drama da enchente. Para ele,


esse acontecimento, menino nascido na cidade, era uma espécie de emoção irresistível.
Notou-se que concomitantemente ao seu fascínio pela enchente imperava a miséria e a fome
que assolavam os moradores daqueles arredores:

O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águas que cresciam em
ondas nos enchendo os ouvidos. Num instante não se via mas nem um banco
de areia descoberto. Tudo andava inundado. E grandes tábuas de espumas,
árvores inteiras arrancadas pela raiz (...) (M de E., p.24-25)

A partir disso, nota-se que a relação natureza x homem, em José Lins do Rego,
sobretudo em Menino de Engenho dá-se de forma desintegrada. Uma vez que, de um lado,
aparece como um simples pano de fundo e suas cores e o frescor dos ventos; de outro, a
miséria humana. Nesse sentido pode-se dizer que a posição do autor em relação às obras desse
ciclo era meramente saudosista. Já que não trabalha o contraste natureza x homem como uma
formulação contida no conteúdo da obra, mas como uma matéria de vida.
Contudo, o ciclo da cana-de-açúcar não só está arraigado dos tons evocativo e
elegíaco como também possui caráter extremamente memorialístico, constituindo assim, o
maior expoente narrativo da vida literária de José Lins do Rego. Através dele, esse autor
transmite de forma espontânea e intuitiva suas recordações tanto da infância quanto da
adolescência enquanto descendente de senhores de engenho. Para tal, faz uso de uma
linguagem, forte e poética ou como afirmou Josué Montello, “uma espécie assim de estilo
palestrado, que viesse diretamente da boca do povo para a pena do escritor”.(Obras
Completas, V.II. p.19) Verificou-se que o regionalismo de Graciliano Ramos e o de José Lins
do Rego se colocam em patamares distintos. Isso porque enquanto de um lado Graciliano
Ramos faz uso da natureza para denunciar as precárias condições a que são relegados os
sobreviventes do sertão; do outro, José Lins do Rego preza por uma visão memorialista em
que lança mão de suas experiências para nos conta o seu viver enquanto neto de uma
aristocracia de fogo morto.
Através das leituras das obras anteriormente mencionadas, foi verificado que a
região nordeste ao tempo em que reflete a fome, a miséria e o descaso político, demonstrando
assim uma vida estigmatizada pela seca, é palco também de grandes propriedades de terra
onde impera a supremacia dos senhores de engenho.

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Os estudos realizados, também nos permitiram verificar o quão a região nordeste,


sobretudo, o povo que mora no sertão é discriminado. Notou-se, principalmente, em Os
Sertões e Vidas Secas como a questão cultural delineia o viver e a interação do homem
frente ao mundo que o cerca. Com isso, pode-se dizer que tanto os sertanejos quanto os
retirantes são seres desprovidos da própria sorte. Isso porque tanto o clima como as
injustiças sociais os repelem para as paragens mais distantes de um viver em consonância
com as práticas sociais.
Em contrapartida de uma visão voltada para a realidade dos fatos, encontra-se
aqui, o caráter também regional, porém, com o olhar voltado para uma sociedade patriarcal
( no caso a açucareira), feudalista e autoritária que aos poucos se desfalecia. Nessa
perspectiva, foi elaborada a obra Menino de Engenho. Seu autor, José Lins do Rego,
recupera por meio de suas lembranças o viver de um menino nas grandes propriedades de
terra dos engenhos nordestinos.
Contudo, espera-se que esse quadro se reverta. Quem sabe esse milagre um dia
aconteça. Quando isso acontecer, espera-se que o Nordeste seja pintado com as mais
variadas cores. Não com as cores que retratam a fome, a miséria e o descaso político, mas
sim com o verde. Esse verde que representa a esperança e a resistência existentes no interior
de cada sertanejo que sofre amargamente as circunstâncias ora impostas pelo clima ora pela
ambição humana.

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REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO EM “OS DESVALIDOS”

Aldair Smith Menezes (HPONET/ NPGL/UFS)


aldairsmith@uol.com.br
Orientador: Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá (HPONET/DHI/ NPGL/UFS)
afsa@ufs.br

Esta comunicação tem o objetivo de apreciar como, através do personagem Coriolano, o


escritor Francisco José Costa Dantas construiu uma representação do cangaço. As narrativas
sobre o cangaço nesta obra suscitam imagens a respeito de Virgulino Ferreira, o Lampião, e
de seu bando e a relação entre eles e a sociedade. Essas imagens revelam medos, desejos e
desassossegos vivenciados pelo personagem. A construção desta abordagem literária localiza-
se no ponto de encontro entre o fazer literário e a ficção histórica. Ponto em que
acontecimentos e lembranças de uma época revelam um contexto social emblemático para o
imaginário cultural acerca do sertão e do sertanejo nos tempos do fenômeno social
mencionando.

Palavras-chave: Literatura, representação, cangaço, Francisco Dantas, sertão

INTRODUÇÃO

“as fronteiras dos estados são marcadas para se cruzar”


(DANTAS,1996, p. 90).

Em suas idas e vindas entre a região do agreste e do sertão de Sergipe, das


Alagoas e da Bahia, Coriolano tem seus encontros com Lampião, fica cara a cara com o “rei
do cangaço”, chega a cuidar das roupas e demais utensílios de couro de Lampião e de seu
bando, mas isso não foi suficiente para que ele dirimisse seus sentimentos de medo e de
apreensão acerca do cangaço.
Focalizando essa problemática, este trabalho tem como eixo central debruçar-se
sobre a perspectiva desenvolvida pelo escritor Francisco José Costa Dantas, em sua obra “Os

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Desvalidos”, para expressar o cangaço através do olhar do personagem Coriolano. A partir da


visão de mundo desse personagem o famoso cangaceiro toma corpo na narrativa. È através
deste fio condutor que a realidade social do cangaço passa a ser delineado. Realidade
comparada ao reflexo de um espelho ao refletir um objeto. Não se trata, pois, de um objeto
inerte. Mas de memórias que dão ao texto literário aporte para ser tecido com um toque de
realidade. Memórias oriundas de acontecimentos corriqueiros, na primeira metade do século
XX. O texto literário entrelaça, assim, a memória e a história em sua constituição. Aspecto
que torna difícil distinguir quem imita quem: se a arte imita a vida ou se a vida imitou a arte.
Logo, imerso no horizonte de tensões e dilemas cotidianos do sertão no decurso da República
Velha, este personagem revela, a partir da literatura, um outro olhar acerca do Cangaço. O
olhar de homens e de mulheres comuns, gente do povo, que se dividiam entre aqueles que
valorizavam ou temiam os cangaceiros.
Dentro desta perspectiva a riqueza deste personagem não apenas se limita a
revelar um olhar literário do cangaço e do sertão, mas como esse olhar é projetado a partir da
identidade cultural de um sertanejo que vive as tensões de uma sociedade que tarda a se
modernizar, com isso revela o cotidiano de homens e mulheres que viveram a época do
cangaço sem fazer parte efetiva desse grupo que representa, pode-se assim dizer, uma parcela
dos excluídos sociais. Neste sentido, os desejos e os medos do personagem Coriolano
constituem-se no objeto de estudo da pesquisa sobre as representações do Cangaço na obra
“Os Desvalidos”.

Literatura e História: Um Casamento de Almas

Um casamento cujas almas, verdadeiramente, encontram-se unidas. Esta poderia


ser a definição mais adequada para designar a relação existente entre a Literatura e a História.
Inúmeros historiadores fazem uso da literatura para perceber determinados detalhes que nem
sempre estão expressos em um documento. Quando se refere à história tem-se um misto de
fatos reais e lembranças ficcionais que imprimem ao relato um tom de romance. A literatura,
por sua vez, aproxima-se da história como fonte inspiradora que irá ajudá-la a compor o “tom
de verdade”. Freitas (1986) resume esta relação esclarecendo que a Literatura possui uma
“realidade estética”, fato que permite o uso ilimitado da imaginação. Enquanto que a História,
apesar de possuir uma “realidade objetiva”, demonstra imbricada em si uma dupla natureza: a
narrativa histórica encontra-se dividida entre as Ciências Humanas e as Artes.

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Raymond Williams, ao propor uma Sociologia da Cultura, vê na análise da


estrutura de sentimento de uma sociedade, em dada época, que as artes de um modo geral
captam as mudanças e tensões em ebulição. Tendo em vista que o artista consegue com sua
sensibilidade observer “o clima” que permeia a sociedade no momento em que vivencia e cria
sua obra. Para ele,

em muitas artes, embora o conteúdo social manifesto seja evidente de certo


modo em instituições, formações e relações comunicativas, e de outro modo
nas formas relacionadas com seleções específicas de questões, tipos
específicos de interpretação e de conteúdo reproduzido especificamente, um
conteúdo social igualmente importante e por sua vez mais fundamental pode
ser encontrado no meios sociais básicos – formas sociais de linguagem,
movimento e representação historicamente variáveis e sempre ativos – dos
quais, em última análise, dependem os elementos sociais mais evidentes
(WILLIAMS, 1979, p. 141).

Viver e analisar o tempo presente não é algo para todos. O pai da Psicanálise,
Sigmund Freud (1927), entende que, de modo geral, há certo ar de ingenuidade quando se vai
tratar do presente. O distanciamento torna-se necessário para que uma gama de fatores possa
ser avaliada em conjunto. Para ele a percepção do presente só poderá ser realizada por alguns
poucos. Ele mesmo acredita não fazer parte desse grupo tão seleto. Tendo em vista que a
percepção deve remeter a um contexto amplo, e a maioria das pessoas só consegue analisar
um ou outro aspecto, não todos ao mesmo tempo. Para ele os artistas conseguem ter tal
dimensão. Sua percepção, apesar de ser uma visão de mundo particularizada, exprime, no
conjunto das produções de sua época, aquilo que Raymond Williams define como “estrutura
de sentimento”.
A relação entre ficção e História revela que “a manipulação da realidade histórica
tem pois como objetivo primeiro transformar a história em aventura individual; o elemento
histórico se integra à ficção, acaba por acomodar às suas leis” (FREITAS, 1989, p. 51).

O Cangaço: Entre Ficção e Realidade

Groso modo o imaginário social acerca do cangaço é povoada de “muito ouvi


falar”, “ouvi dizer”, “me contaram”. Esse disse-me-disse promoveu várias leituras a respeito
do cangaço. Leituras que vão desde o banditismo social ao herói vingador. A imagem ligada
ao bandido encontra-se repleta de diversas atrocidades. O cangaceiro representava a
encarnação da própria “peste” que arrasava os lugares onde passava. Não deixando pedra

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sobre pedra. Retirando tudo de quem tinha dinheiro ou não. Deixando a pessoa na miséria
e/ou em desgraça, quando não lhe tirava a vida. Dessa forma, pode-se imaginar que havia uma
igualdade de tratamento entre rico e pobre, patrão e empregado, escolarizado ou analfabeto.
Não importava. Era a expressão viva do próprio “demo” (SOUSA, 1996).
O jornalista Carvalho Deda (1967) ao relatar a passagem de Lampião pela cidade
de Simão Dias, município de Sergipe, retrata como o medo da invasão provocou a saída de
alguns munícipes de suas casas, a união dos que ficaram combater os invasores, e, ainda, a
necessidade de solicitar reforço policial para proteger a cidade. Durante a narrativa é revelado,
também, como uma senhora grávida foi “fulminada por uma bala que partira da resistência”,
segundo ele, “num evidente erro de fato” (p.132). O ocorrido mostra o despreparo da
comunidade para lidar com os cangaceiros. O medo, então, passou a comandar suas ações,
impedindo-os de distinguir entre uma mulher em estado avançado de gravidez e um
cangaceiro. Medo que pode ser justificado a partir do imaginário social sobre o cangaço. No
romance “Os Desvalidos”, Coriolano apresenta bem essa face do medo. Sua visão impregnada
das histórias dos cordéis que lera e dos causos que ouvira. Para ele um cangaceiro
representaria estar acima de qualquer regra socialmente imposta. Eles possuíam regras
próprias. Imagem que corresponde à da realidade da época, para alguns.
Para além dessa imagem negativa, havia toda uma construção que envolvia
aspectos ligados à salvação, à proteção, à quebra da ordem vigente. Nota-se a presença de um
traço revolucionário cuja principal função seria proteger os pobres contra os desmandos dos
poderosos. Uma espécie de Robin Hood do sertão. Imagem positiva que revela o anseio por
justiça social por vezes associada ao cangaço. A presença marcante do cangaço imprime
respeito, mesmo aos que não lhe tinham simpatia.
É esse o aspecto que o personagem Coriolano cuja saída do Rio-das-Paridas,
cidade em que morava com seu tio-avô, humilhado e sem recursos, após uma temporada
remendando as roupas e as peças de couro do bando de Lampião, irá usar ao retornar a sua
cidade. Passa a utilizar a imagem do cangaço a partir de uma visão que representa força e
positividade. Mente, inventa estórias para se vangloriar. Mostrar-se forte, independente é
importante para retornar à cidade de Rio-das-Paridas em busca de melhores condições de
vida. Pois não poderia admitir continuar sendo um pobre coitado aos olhos de seus
conterrâneos.
Coriolano, assim, lida com a ambivalência da fama de Lampião. São dois aspectos
que irá manipular. Por um lado, externamente, contando e recontando histórias do tempo em
que conviveu com o cangaceiro. Por outro, internamente, reza para que nunca mais encontrá-

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lo. Numa mesma formação social, ocorre a disputa entre o bem e o mal: ora dentro do
personagem, ora com suas relações sociais. Percebe-se que a ficção consegue desempenhar
seu papel de estranhamento. Ir além da realidade.
Refletindo a respeito o historiador Fernando Sá argumenta que de fato o que
ocorre é um mosaico entre uma realidade e uma criação mítica na qual o fato histórico
encontra-se presente sob a forma de ficção. Acrescenta, ainda, que

como bem ressaltou Patrícia Sampaio Silva (...) que o cangaço é um terreno
privilegiado do imaginário social, na medida em que há um leque de
representações a partir do deslocamento de um mesmo símbolo. Como a
família é, ao mesmo tempo ideal de refúgio, abrigo, de segurança e imagem
de cela de prisão, símbolo da opressão carcerária, de jazigo, o cangaceiro é
um símbolo contraditório associado a múltiplas representações que vão do
bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro ao mau-caráter sem
escrúpulos, tornando-se, portanto, aberto a várias ressonâncias(SÁ, 2005, p.
288).

Isso explica de certa forma a expressão em itálico, “pagando tudo!” (MENEZES,


1937, p. 218), utilizada pelo pesquisador Djacir Menezes ao falar de Lampião. Seu relato da
passagem do “rei dos sertões do norte” na cidade de Aurora, na Paraíba, revela um comprador
que paga pelas mercadorias que compra. Fato realmente estranho se tiver como ponto de
partida a visão de bandido, que não respeita ninguém e cria suas próprias regras. Contrariando
relatos corriqueiros de atrocidades, Virgulino Ferreira e seu bando comportam-se como
cumpridores da lei. Atitude que denota a multiplicidade do comportamento de Lampião.
Assim se construiu, contraditoriamente, a mitologia em torno de Lampião e de seu
bando. O personagem Coriolano também se surpreendeu com essa postura. Lampião pagou
por seus serviços de remendão na arte do couro. Para Coriolano o valor que foi pago por seus
serviços havia sido baixo. Além de ser chamado de remendão recebeu pouco dinheiro
aumentado ainda mais a sua raiva contra o cangaceiro. Mas aceitou o dinheiro por não ter
mais outra opção. Por isso, engoliu seco e foi cuidar da vida.

Uma História de Coriolano sobre o Cangaço

Coriolano é o personagem principal e, também, um dos narradores de “Os


Desvalidos”. A história de Coriolano tem início com sua fuga da casa paterna em busca de
uma vida melhor. Encontra um tio-avô que ao morrer lhe deixa uma botica como herança.
Segundo o próprio Coriolano, grande parte de seu infortúnio é causado pela promessa feita a

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seu tio-avô: não deixar remédio industrializados entrar na botica. Essa promessa irá fazê-lo
perder tudo, sendo obrigado a aprender a lidar com a arte do couro junto a Mestre Isaías. Não
aprendendo tudo, pois as necessidades materiais obrigaram-no a pôr em práticas seus
conhecimentos deixando de lado o aperfeiçoamento nessa arte.
Nessas idas e vindas que o rumo de sua vida tomou sem assentar praça em lugar
algum, Coriolano encontra-se a contragosto por algumas vezes com Lampião. Momentos não
muitos agradáveis, pois o chefe do bando o chama de remendão. Palavra que ele abomina
completamente, mas quando pronunciada por Lampião o faz calar por medo de morrer na
ponta da faca do cangaceiro. Encontro carregado de medo que irá deixá-lo inerte diante da
proposta do chefe do bando:

Com medo de morrer, o coitado até tresvaria com o casco da cabeça assim
no tempo, escaldado e sem arquivo pra fichar coisa nenhuma; pois quando
este Coriolano se vê em má situação, amolece logo o tino e só toma pé
mesmo nas miudezas que não servem pra medir o que se passa, nem se
prestam a dar sossego ao coração. Vai assim indo o pobre homem, sumido
do seu natural, e já amolecido de sobrosso e de vergonha, a vidrar os olhos
naqueles chapelões de couro endurecidos, com a testeira enfeitada de estrelas
de níquel e signo-salomão” (DANTAS, 1996, p.103).

O medo que domina as reações de Coriolano advém da imagem criada a partir o


termo cangaceiro. Por isso não há distinção entre este ou aquele bando. O medo precede
qualquer tipo de julgamento. Fato que expressa a força da palavra. O imaginário sobre o
cangaço expõe nitidamente a rejeição ao estabelecimento de outra ordem social, outra forma
de organização.
Ao voltar a Rio-das-Paridas, monta praça e praticamente só lhe resta a função de
tamanqueiro, de onde retira alguns trocados. Envelhece e reza para nunca mais se encontrar
com o famigerado cangaceiro e seu bando. Ao saber da notícia que tanto desejava, pensou que
seria um homem livre novamente. Mas... a morte de Lampião antes de ser a libertação de seu
cárcere, foi pelo contrário a causadora de um processo de auto-análise. Coriolano voltar-se
para dentro de si, com o objetivo de encontrar a resposta do motivo de não conseguir sair de
Rios-das-Paridas.
Em 28 de julho de 1938, Virgulino Ferreira, o Lampião, na Grota do Angico em
Sergipe, morre. Nesta data Coriolano conta com a idade de cinqüenta e um janeiros. Pondo-se
então a ruminar suas lembranças a procura de um culpado para o seu infortúnio. O texto
lembra a dinâmica da memória. Mesmo os narradores querendo dar uma seqüência, um
aspecto de continuidade, ocorre o estabelecimento de um vai-e-vem, um diálogo entre o

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passado e o presente. Diálogo que possibilita observar, quase que simultaneamente, o


percurso do envelhecimento de Coriolano como o desenvolvimento de sua situação.
Nesta obra de autoria de Francisco Dantas o sertão revela o imaginário social da
sociedade brasileira. Um local onde a seca, a miséria, a aridez do solo, o sol escaldante
representam elementos característicos que determinam, mas não são determinantes à conduta
e à personalidade dos homens e mulheres que simbolizam a representação do sertão.

Em Busca de uma Conclusão

As representações suscitadas pelo personagem Coriolano sobre o cangaço


revelaram um duplo jogo acerca do medo propagado em torno de Lampião e de seu bando.
Essas imagens revelam o medo de reencontrar com o cangaceiro e seu bando, desejos de
melhorar sua condição sócio-econômica e desassossegos, pois com a morte que representaria
sua liberdade, vê-se preso ao passado. Tais sentimentos vivenciados pelo personagem são
verificados ao longo da obra. Outro ponto a ser destacado é como ele contraditoriamente se
aproveitou destes medos: tanto do seu próprio medo como do medo que seus correligionários
para retornar a Rio-das-Paridas dando a volta por cima. Neste sentido, a construção desta
analise literária de fundo histórico localiza-se no ponto de encontro entre o fazer literário, a
ficção histórica e psique do personagem: uma representação dos conflitos suscitados pela
modernidade transladada para o sertão Nordestino.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DANTAS, Francisco J. C. Os Desvalidos. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão (1927). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996,
vol. XXI.

FREITAS, Teresa de. Literatura e História: o romance revolucionário de André Malraux. São
Paulo: Atual, 1986.

MENEZES, Djacir. O outro Nordeste: formação social do Nordeste.Rio de Janeiro: José


Olympio, 1937.

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SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão;
editora UFS; Aracaju; Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.

SOUSA, Aninio Lindvaldo. “Homens de parte com o diabo”: violência, medo e ordem
pública no cotidiano das fronteiras e do agreste de Itabaina/SE (1889-1930). Belo Horizonte:
UFMG, 1996. (Dissertação de Mestrado).

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio se Janeiro: Zahar, 1979.

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BAHIA E SERGIPE: FRONTEIRAS EM CONSTRUÇÃO (1824 – 1850).

Lina Maria Brandão de Aras (FFCH/UFBA)


laras@ufba.br
Vagner Souza de Assis – Iniciação científica

A presente comunicação objetiva discutir as relações entre as províncias da Bahia e a de


Sergipe entre os anos de 1824 e 1850, a partir da documentação que constitui a Série
Correspondências dos Presidentes de Províncias, existente no Arquivo Público do Estado da
Bahia. A criação da Província de Sergipe (1824) significou a redefinição de suas relações com
a Bahia, como também a manutenção de práticas estabelecidas, a exemplo do uso da Praça de
Salvador como espaço de operações financeiras e transações comerciais. A posição de igual
administrativa – ambas províncias – contribuiu para o estabelecimento de ações de ajuda
mútua em defesa da unidade e da grandeza nacional. Desta forma, nos interessa analisar a
forma como se deu as relações no pós-1824 e como se posicionou as províncias em relação
aos seus temas comuns como a seca, a economia e a insegurança nas fronteiras.

PALAVRAS-CHAVE: Correspondências, Unidade, Fronteiras.

Objetivamos discutir as relações entre as províncias da Bahia e a de Sergipe entre os


anos de 1824 e 1830, a partir da documentação que constitui a Série Correspondências dos
Presidentes de Províncias, existente no Arquivo Público do Estado da Bahia. As
correspondências trocadas entre os Presidentes de Província, apesar da sua descontinuidade,
apresentam temáticas diversificadas e significativas das ocorrências internas da Província da
Bahia e sua relação com as outras províncias.
A historiografia recente tem pontuado os vínculos econômicos entre a Bahia e
Sergipe617 e aquela mais tradicional procura discutir as questões políticas, as querelas
limítrofes e o ressentimento presente entre os sergipanos e baianos. Todavia, as novas

617
No Programa de Pós-Graduação em História/FFCH/UFBA ver: AGUIAR, Fernando José Ferreira. Em
Tempo de Solidão Forçada: epidemia de varíola, sistema de saúde, revolta popular e fé em Sergipe oitocentista.
(2002); SANTANA, Joanelice Oliveira. Introdução ao estudo da escravidão em Estância. Comarca da Província
de Sergipe Del Rei (1850-1888). (2003)), Janete Ruiz de Macedo e João José Reis. NASCIMENTO, Jairo
Carvalho do. José Calazans: a história reconstituída (2004); SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre Farinhadas,
Procissões e Famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888)
(2004); SILVA, Sheyla Farias. Nas Teias da Fortuna: Homens de Negócio na Estância Oitocentista (1820-
1888).(2005)).

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discussões apresentam novas formas de discutir esses temas e apontar para os sujeitos que
participaram das tramas e teias que engendraram as relações entre uma e outra região ao longo
de suas histórias, de forma a analisar os papéis desempenhados por cada um e/ou grupo nos
contextos específicos.
A instalação dos pontos de ocupação da costa do Brasil desde os tempos coloniais
possibilitou a construção de redes de comunicação, comércio, apoio militar e político ao longo
desse período. O fortalecimento das relações entre esses pontos se deu mais no sentido de
cooperação e, em alguns momentos, de concorrência econômica para certas regiões que
produziam os mesmos produtos para exportação, como foi o caso de Bahia e Pernambuco,
com a produção e comercialização do açúcar, ou como economia complementar como foi
entre Bahia e Sergipe. Essa concorrência mercantil contribuiu, de um lado, para movimentar a
economia e, por outro, em constituição de práticas comerciais que fortaleciam o poder
econômico e político dos grandes proprietários, sejam eles, donos de engenho, terras, gado,
escravos. Por outro lado, havia um contato direto entre a Bahia e Pernambuco, o mesmo
acontecendo com Alagoas e Sergipe, parceiras no circuito do norte.

Muitos estudos realizados com uma ótica de historia social e econômica,


seja regional ou mais global, tem trazido numerosos elementos para
compreender as estratégias dos múltiplos atores da época. Outros estão
analisando com grande pertinência, com uma ótica mais antropológica,
movimentos populares e casos locais. 618

A ocupação e colonização da região que hoje constitui o estado de Sergipe foram


motivadas pelo interesse do grande proprietário de terras e gado, Garcia D’Ávila que solicitou
sesmaria para aquela região em 1657, interessado em estender suas atividades agropecuárias
mais ao norte da sua capitania de origem. Após longa disputa com os indígenas da região, o
estabelecimento dos colonos e a consolidação da empreitada se deram em 1589/1590 com a
criação da cidade de São Cristovão (1590), futura capital da província até 1855. Em 1621 se
iniciou a implantação das primeiras lavouras de açúcar, cuja expansão chegou ao auge no
século XVIII.
No final do século XVII, por Carta Régia de 17 de fevereiro de 1696, com o
desmembramento de duas comarcas da Bahia, cujos territórios encontravam-se entre o Rio

618
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências. Ensayos sobre lãs revoluciones hispânicas.
México: Fundo de Cultura Económica, 1993. P. 17

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São Francisco a Itapuã619. Segundo Felisbello Freire620, entre “1696 até quase o meado no
século XVIII o que salienta-se e caracteriza o desenvolvimento histórico –é, além destas
questões de limites, a luta de jurisdição em que viviam as principais autoridades da
capitania.”.

Toda a História de Sergipe no período colonial é marcada pelo esforço de


construção de uma sociedade sempre em conflito com os interesses do
colonizador. Sergipe aparece como área secundária submetida à exploração
direta do colono estabelecido na capital da Colônia621, e por isto certamente
o que sente mais de perto as exigências da Metrópole. Funcionou como
apêndice da Bahia, de quem recebeu encargos lançados pela Metrópole. Daí
o conflito entre, de um lado, os interesses locais e, de outro, as ordens da
Capital, que resultaram numa sociedade turbulenta, violente. 622

O desenvolvimento de um mercado local e a constituição de uma elite vinculada ao


comércio e a economia açucareira, a região passou a se constituir como área de criação de
gado bovino e importante região de uma agricultura voltada para o abastecimento alimentar,
fornecendo para a Bahia os suprimentos necessários para auxiliar a agricultura monocultora
da cana que ocupava as melhores terras do recôncavo baiano. Em 1652, a Câmara da Cidade
do Salvador solicitava a melhoria e a abertura de estradas que alcançassem outras regiões,
especialmente, Sergipe, de onde vinha uma parte do gado consumido na Bahia623. Tal traço
dessa economia permaneceu ao longo do período em relação à economia regional, além do
mais, era necessário criar condições para o escoamento da produção sergipana, da qual
dependia a Bahia e os grandes proprietários sergipanos.
Com o apoio dado ao governo central, situado no Rio de Janeiro, e em decorrência de
sua contribuição na repressão da revolta iniciada em Pernambuco em 1817, passou a capitania
08 de julho de 1820, por concessão do Rei Dom João VI. Este fato desagradou tanto parte das
elites baianas como também da própria elite local do território recém emancipado, que não
queria a separação.624

619
LIMA Junior, Francisco A. de Carvalho. História dos Limites entre Sergipe e Bahia. Aracajú: Imprensa
Oficial, 1918. Esta obra faz uma discussão sobre o estabelecimento dos limites entre os Estados de Bahia e
Sergipe, apresentando uma documentação preciosa sobre o tema. No entanto, chamo a atenção para o caráter
político de seu texto, onde busca demonstrar a supremacia política da Bahia ao longo da história e a usurpação
por esse Estado das terras sergipanas.
620
FREIRE, Felisbello. P. 173
621
Salvador foi capital do Estado do Brasil até 1763.
622
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracajú: UFS/BANESE, 1991P.
131.
623
Documentos Históricos da Câmara Municipal de Salvador. Salvador: PMS, 1959. p. 202.
624
Ver: QUINTAS, Amaro. O nordeste In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico. São Paulo:
DIFEL, 1985, Tomo II, Vol 22. p. 193-240.

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Luis Henrique Dias Tavares ao estudar a “adesão da Bahia às Cortes de Lisboa” não
discutiu o papel que a Bahia exerceu sobre Sergipe naquele ano de 1821625. “Na Bahia, a
adesão às cortes ocorreu já em fevereiro de 1821, antes do juramento do rei no Rio de Janeiro,
e a formação da junta de governo indicou a vitória dos constitucionalistas da nova
província.”626 Após o juramento da Constituição portuguesa, a Junta da Bahia, para reverter as
perdas dos territórios que agora pertenciam a Sergipe, decidiu pela reincorporação da
Comarca e para isso enviou uma tropa em direção à Sergipe, realizada em 26 de agosto de
1821, quando em São Cristóvão e em outras câmaras municipais os sergipanos foram
obrigados a fazer o juramento da Constituição e a fidelidade à Junta da Bahia. Tais ações
projetaram na história de Sergipe um ressentimento que se fazem presentes nas páginas da
historiografia sergipana.
O quadro político baiano, que naquele período estava dividido entre liberais e
“corcundas” (conservadores) e influenciou diretamente na política sergipana que também foi
marcada pela disputa desses dois seguimentos políticos, mas com um agravante: os liberais
defendiam a manutenção da independência e os “corcundas” o retorno da união com a Bahia.
Essa disputa levou a revolta armada, sobretudo devido à participação de militares na
contenda, o que trouxe grande turbulência ao governo da província recém-criada627.
Com a ordem restabelecida, o governo provincial foi totalmente consolidado em 1822
e muito dos revoltosos foram julgados e punidos, alguns foram, inclusive, julgados na Bahia,
o que já indica a permanente relação de cooperação entre essas duas províncias o que será
analisado nesse trabalho. Devo chamar a atenção que para a consolidação da independência
em Sergipe estiveram presentes tropas saídas da Vila de Cachoeira e contou com o apoio das
tropas do General Labutut que estava de passagem por Sergipe, após ter desembarcado em
Maceió, em agosto de 1822.
A constituição do poder provincial com a criação das Assembléias Provinciais
encaminhou a articulação política regional. Todavia foram os presidentes de províncias que
executaram a política monárquica nas províncias e funcionou como reforço político
administrativo para as suas co-irmãs. Segundo Nora de Cássia,

625
TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora da UNESP/Salvador: EDUFBA,
2001. p. 221-227.
626
MALERBA, Jurandir. A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. P.
187.
627
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracajú: UFS/BANESE, 1991. P.
133.

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“Os presidentes de províncias eram importantes e graduados funcionários


públicos – homens de segundo escalão, mas que estão incluídos na elite
nacional, como homens de decisão a nível provincial – e exemplos da
dificuldade de se separar a administração da política, na medida em que,
fazendo parte da burocracia imperial, também representavam um projeto
político vencedor, que precisava ser consolidado nas províncias.”628

A criação da Província de Sergipe629 significou a redefinição de suas relações com a


Bahia, mas, também, a manutenção de práticas estabelecidas, a exemplo do uso da Praça de
Salvador como espaço de operações financeiras e transações comerciais. A posição de
igualdade administrativa – ambas as províncias – contribuiu para o estabelecimento de ações
de ajuda mútua em defesa da unidade e da grandeza nacional.
Em 9 de julho de 1824, o Presidente da Província de Sergipe informou as dificuldades
de manter as defesas da província e informou que Alagoas estava em sossego público. As
dificuldades em administrar a tropa, a existência de focos de rebeldia e a insegurança vivida
na Província, exigiram do PPS a edição de uma proclamação.

“PROCLAMAÇÃO
Soldados de 1a Linha! A glória que tenhais perdido, degenerando-vos do
caráter Brasileiro, acha-se felizmente recuperada. O Vosso Presidente muito
se apraz ao ver, que vos conduzires como soldados, defensores do
Imperador, e da Pátria! E os vossos Concidadãos se congratulam do Vosso
comportamento Garantir os Direitos da Sociedade, a que pertence, é o
primeiro dever de todo soldado, maiormente
Do Soldado Brasileiro. Isto o que vos cumpre, e o q recomenda o Nosso
Augusto Imperador e Defensor Perpetuo. Soldados Brasileiros! Que
felicidade não será para os outros restituir-vos a Capital da Província entre
aplausos, e vivas os mais significativos? É desta arte, que se costuma
distinguir a virtude do vicio que, ainda agora apoderado dos ex
Comandantes, q vos depositavam vão principia a retribuir-lhes o excesso de
suas malfeitorias nos detrimentos do Asilo dos crimes. Soldados! A vossa
conduta passada não mais vos lembre; e se, suceder, que tenhais de encará-
la, seja somente para comparardes com a presente, e enlevados nas delicias
da Paz, e Tranqüilidade, que se nos acerca, gritardes entusiasmados Viva a
Religião e Viva o Nosso Imperador Constitucional e Perpetuo Defensor do
Império do Brasil. Viva a Independência Perpetua do Brasil. Viva a Septima
Constitucional. Viva os Brasileiros.
Povoação da Estância, 3 de Maio de 1824, 3º da Independência e do
Império.”630

628
OLIVEIRA, Nora de Cássia Gomes de. Os ilustrados, prudentes e zelosos cidadãos bahianos e a construção
do Estado nacional (1824-1831). João Pessoa: UFPB, 2007. p. 109.
629
“O decreto de 8 de julho de 1820, pelo qual D. João VI externava a sua simpatia pela ajuda sergipana na luta
pela sufocação do movimento republicano de 17, desanexava Sergipe da anterior sujeição a Bahia. Mas o seu
primeiro governador, o Brigadeiro Carlos Cesar Bulamarqui, nomeado a 24 de outubro de 1820, tendo posse a
20 de fevereiro de 1821, quase não chegou a governar”. Ver: QUINTAS, Amaro. O nordeste In: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico. São Paulo: DIFEL, 1985, Tomo II, Vol. 2. PP. 193-240.
630
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.

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As tropas viviam insatisfeitas com o tratamento dispensado pelo Estado e a indefinição


dos seus papéis. Tais problemas levaram na Bahia ao Levante dos Periquitos631, quando os
militares do 3º Batalhão dos Caçadores, se rebelaram em 25 de outubro de 1824, que foram
desmobilizados e embarcados para Pernambuco em 06 de dezembro de 1824.
Foi freqüente o envio de recrutas sergipanos e indivíduos julgados e condenados a
servirem às forças armadas imperiais à Bahia para que de lá fossem enviados para a Corte ou
outra província, onde fossem necessários e requisitados; isso se dava dentre outros motivos
devido ao fato da província baiana ainda possuir o controle da navegação marítima na região,
o que se constituiu, por muito tempo, em um entrave ao desenvolvimento da economia
sergipana. Tal situação foi registrada em correspondência de 31 de outubro de 1826.

“Tendo sua majestade O Imperador Determinado, que o batalhão de


caçadores no 26 de 1a linha do exército dessa província, marche por terra
para a Bahia, e daí embarque para esta Corte, visto não poderem ir desse
porto embarcações de lotação tal, que o possa conduzir, como me foi
comunicado por aviso de vinte do presente do presente expedido pela
secretaria d’Estado dos negócios da Guerra participo a V Excia que nesta
data se ordena a Junta da fazenda daquela província, para suprir com as
necessárias despesas, e dar as providencias, que estiverem ao seu alcance.632

As dificuldades dos presidentes de províncias eram grandes, especialmente, para


aquelas recentemente criadas como Sergipe. Antonio Pereira Rebouças, naquele momento era
o Secretario do Governo da Província e relatou as dificuldades enfrentadas para conter a
boataria e instalar a administração de uma Província, como a de Sergipe, pois “nunca teve
Governo, e que composta de muitos proprietários ricos, mas pouco, ou nada amigo da
independência do Brasil, que nunca sentirão a influencia da Lei, somente desejam dirigir-se
Segundo sua vontade.633”
As dificuldades políticas não se concentravam apenas nas elites e em 19 de outubro de
1824, o presidente da província noticiou as manifestações de insatisfação com a ordem
imperial, mas tranqüilizava o presidente da província limítrofe, informando que as medidas
para conter a rebeldia foram tomadas e, mais uma vez, o presidente de província informou,
ainda, sobre o sossego público, dando informações sobre a restauração da paz em

631
TAVARES, Luis Henrique Dias. O levante dos Periquitos. Salvador: CEB, n. 144.
632
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.
633
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1147.

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Pernambuco, que havia sido abalada pela Confederação do Equador. Essa era uma prática
recorrente em tempos de estruturação do Estado nacional, onde ainda existiam focos de
resistência à centralização do Estado imperial.
No que diz respeito à administração provincial foi freqüente o pedido de orientações
ao governo baiano sobre vários aspectos e formas de como se proceder diante de algumas
situações, tais pedidos foram mais freqüentes nos primeiros anos da década de 1820, como
reflexos do processo de consolidação do poder e organização administrativa provincial local.
Em 18 de abril de 1828, o presidente da província de Sergipe registrou suas dificuldades:

Não havendo ainda na Secretaria do Governo da Província de Sergipe


Instruções que regulem a distribuição dos Emolumentos das patentes dos
oficiais de ordenanças, passadas por aquela Presidência, rogo a V Excia se
digne mandar, que o secretario do governo desta província me auxilie com
uma copia da tabela, que regula os Emolumentos, e direitos que pagão as
referidas patentes, bem como a maneira da sua distribuição em beneficio da
Fazenda Publica, e dos oficiais da secretaria.

Os presidentes das províncias eram os responsáveis por manter as amarras e mobilizar-


se para sair em defesa do Império quando da ocorrência de qualquer tentativa de rompimento
da unidade. No caso da Bahia, o seu presidente de província já havia atuado na contenção da
rebeldia pernambucana e em outros momentos de ameaça a unidade nacional.
No que diz respeito à economia, a província, além de suas demandas internas, manteve
sua economia voltada para o abastecimento da Bahia e durante boa parte do século XIX, a
maior parte do capital produzido em Sergipe passará pelas praças comerciais soteropolitanas e
os produtos vendidos para outras províncias por via marítima (sobretudo para a Corte)
passavam pelo porto de Salvador.

O comércio sergipano realizava-se por quatro barras, destacando-se a da


Cotiguiba, centralizada em torno da povoação de Laranjeiras, e a do Vasa-
Barris, gravitando em torno de São Cristóvão. O comércio internacional se
fazia, exclusivamente, através do porto de Salvador, pois nunca nos portos
sergipanos “entraram navios estrangeiros a fim de comerciar, salvo por
alguma tempestade ou naufrágio.634

A afirmação da historiadora sergipana Maria Thetis Nunes, dá a dimensão da


vinculação econômica existente entre a Bahia e Sergipe. A situação de dependência em
relação ao embarque e desembarque de mercadorias começou a se modificar devido a uma

634
NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe a partir de 1820. Rio de janeiro: Cátedra, 1978. p. 27

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série de fatores: primeiro com o bloqueio feito pelo governo imperial ao porto de Salvador
durante a revolta de 1837 (mais conhecida como Sabinada), os sergipanos passaram a
comerciar diretamente com outros mercados produtores e consumidores; segundo, o
estabelecimento de empresas estrangeiras em solo sergipano contribuiu para a quebra do
controle exercido pela praça comercial de Salvador; e, por fim, – mas não menos importante -
o próprio desenvolvimento de alguns seguimentos econômicos da província, que gerou a
aplicação e empréstimos de capital sergipano na sua província vizinha.
A Bahia permaneceu sendo o principal consumidor do que era produzido em Sergipe,
dentre esses gêneros destaco: a farinha de mandioca amplamente usada na alimentação da
escravaria e dos despossuídos sociais. Outro gênero de relevância na economia da província
sergipana era o algodão, que era vendido tanto para a Bahia, usado na fabricação de tecidos
grosseiros, como também foi exportado para os Estados Unidos da América, que teve sua
produção de algodão no sul do país comprometida durante a Guerra de Secessão e necessitava
desta matéria prima para suas manufaturas emergentes. Entretanto a Bahia não constituiu
apenas um mercado consumidor dos gêneros produzidos em território sergipano, também
constituía uma fornecedora de produtos de primeiras necessitadas em momentos necessários,
a exemplo, dos períodos de graves secas, como no ano de 1828, quando o presidente da
província de Sergipe escreveu em 30 de abril:

A falta total de farinha de mandioca, principal gênero da primeira


necessidade, nesta Província, tem dado lugar a vender-se alguma que
aparece por um preço extraordinário até 14 $r, como de presente se está
vendendo, e a viver o povo no mais lamentável estado de penúria: nestas
circunstâncias não podendo eu remediar esse tão aflitivo mal se não com
socorros de fora, requisito a V Excia, que haja de comprometer se neste
caridoso lance, facilitando a Manoel Rodrigues da Lomba, morador na
Povoação de laranjeiras a comprar e embarcar dois mil alqueires da dita
farinha para o porto desta cidade, afim de que seus habitantes não pereçam;
e que ele faça a compra com moeda de cobre que leva da que até agora está
correndo nesta província

Do ponto de vista social pudemos constatar o fato de que muitos sergipanos iam
estudar nas instituições de ensino superior (principalmente médicos para estudarem na
Faculdade de Medicina da Bahia) e retornavam para sua província de origem para trabalhar
nas principais cidades como profissionais liberais. Além disso, também médicos baianos iam
tentar carreira profissional em terras sergipanas, mas apesar disso a política de saúde pública
do governo local era muito precária e o abastecimento de material usado nos hospitais e na

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política de prevenção de doenças era comprado de outras províncias, a exemplo da própria


Bahia. Sergipe também sofreu com os diversos surtos epidêmicos635 ocorridos na segunda
metade do século XIX e início do XX e morte de um grande número de cidadãos.

635
APEB, Seção Colonial e Provincial. Série Presidente de Província, maço 1148. “Tendo principiado agraciar
nesta provincial a peste das bexigas, rogo a V Excia se digne enviar-me uma porção de vacina, para com a
instituição da mesma, remediar tão grande mal.” Nesse caso o auxilio não foi imediato, pois foi feito novo
pedido, já que o primeiro não foi atendido, cerca de 2 meses depois (13 de janeiro de 1830)

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A REPÚBLICA DE FAUSTO: O PENSAMENTO REPUBLICANO DE


FAUSTO CARDOSO EM SERGIPE NOS PRIMEIROS MOMENTOS DA
REPUBLICA BRASILEIRA.

Humberto Ferreira da Silva – UNIT/FSLF


bertofs@yahoo.com.br

Este trabalho pretende analisa os reflexos e a ação republicana em Sergipe a partir da


proclamação da republica, ocorrida em 15 de novembro de 1889. Buscando apresenta
hipóteses da instabilidade política ocorrido em Sergipe entre os anos de 1889 até a “Revolta
de Fausto Cardoso” em 1906. Em curto período temporal as esperanças mantidas pelos
simpatizantes e defensores da República foram sufocadas pelas elites monarquistas regional,
que rapidamente aderiram ao novo sistema político administrativo da nação. A insatisfação
provocou uma instabilidade política administrativa que teve seu auge na “Revolta de Fausto
Cardoso”, que resultou a morte do ícone do pensamento republicano em Sergipe o deputado
Fausto de Aguiar Cardoso. O que podemos observa é que os reflexos os sistema republicano
em Sergipe foram são sutis que não se verificou alternância do poder, obrigando a tomada do
poder por outras vias que não fosse à via legal.

Palavras-chave: História, Fausto Cardoso, Sergipe

Este trabalho fui inicialmente produzido como Trabalho Conclusão de Curso (TCC)
entregue ao Curso de Especialização Ensino de História: Novas Abordagens, promovido pela
Faculdade São Luis de França (FSLF).
O texto a seguir busca apontar perspectivas sobre a implantação do sistema
republicano em Sergipe. Utilizando como respaldo teórico Terezinha Oliva de Souza, Ibarê
Dantas, Ângela Castro Gomes, Ariosvaldo Figueiredo, Emilia Viotti da Costa e a análise de
alguns os discursos parlamentares daquele que se consolidou como o maior ícone do
republicanismo em Sergipe: o deputado federal Fausto de Aguiar Cardoso.

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O objetivo principal é analisar o conceito república no discurso daquele que foi a


maior expressão do republicanismo em Sergipe, o deputado Fausto de Aguiar Cardoso. Assim
como a análise da idéia de fatalismo histórico colocada no discurso do deputado.
O nicho de investimento em investigação do projeto está na aplicação de uma teoria
desconhecida, que é a teoria extraída dos discursos parlamentares do deputado sergipano
Fausto Cardoso.
O trabalho se divide em dois momentos: um buscando analisar as questões nacionais
relativas ao significado da instalação da República e o outro buscando verificar, ou não, os
reflexos dessa mudança de regime em caráter regional, ou seja, em Sergipe. Assim, na
primeira parte a implantação política do novo sistema, e na segunda a teoria do fatalismo
histórico encontrada no discurso do Deputado sergipano Fausto de Aguiar Cardoso.
A república, fundada em 15 de novembro de 1889 construiu na história do Brasil um
momento de incerteza da perspectiva política brasileira, uma vez que o país, que aprendeu a
viver politicamente em um sistema político patriarcalista, voltado para o sistema
agroexportador, onde os interesses da aristocracia estavam acima de qualquer sistema político
ou partidário, como afirma Costa(2007). Na prática a República foi o arranjo institucional
para uma parte da elite, que não via mais, seus interesses refletidos no reinado de Dom Pedro
II, e tão pouco via uma alternativa administrativa naquela que seria a futura imperatriz do
Brasil, a princesa Isabel636.
Para Ângela de Castro Gomes a passagem para o sistema republicano foi precedido
por um conjunto de articulações conspiratórias principalmente concebidas por setores da
juventude militar, tal perspectiva dava a entender que:

É preciso deixar bem claro que os preparatórios para o


estabelecimento da república se foram tecendo ao longo do
movimento republicano que se estendeu por quase duas décadas e
atravessou o país, aliciando grupos e interesses sociais bem
diferenciados. Não há dúvidas de que, após a abolição da escravidão
em 1888, a expansão do movimento se acelerou sensivelmente. (2002,
p.14)

Para Ibarê Dantas, as diretrizes nacionais ganham dinâmicas próprias quando


incorporados elementos políticos, econômico-sociais e culturais. Para este autor, Sergipe vivia

636
Cujo nome completo era Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança
e Bourbon

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em uma estrutura perversa que o amarrava as velhas composições da elite latifundiária que
sobrevivia em um sistema penoso de produção e exportação de açúcar.
Dantas aponta que mesmo de uma “vida cultural acanhada” seria ela a responsável
pela divulgação das idéias republicanas, e seria desse pequeno círculo de pessoas que sairiam
os principais republicanos, que buscaram fomentar uma nova vida política para Sergipe. Para
este grupo havia a esperança de que a chegada do sistema republicano trouxesse uma
alternância no poder principalmente no executivo sergipano.
O período monárquico sergipano era marcado, segundo Dantas, por uma estrutura
nefanda, que entre outros aspectos impunha duras condições de trabalhos para a maioria em
prol de alguns que gozavam de vantagens e benefícios herdados pelo montepio.
Sergipe pode ser analisado como um exemplo da insatisfação política com os rumos
da nova República, o que provoca uma espécie de reinvenção da república em caráter local,
para Dantas:

Por mais que sejam condicionados pelas tendências do sistema


econômico mundial e dependentes do governo central, as decisões
políticas, econômico-sociais e culturais de âmbito nacional sempre
sofrem reinterpretação no âmbito local, tornando cada caso uma
vivência específica. Nesse sentido, em Sergipe, seus habitantes foram
adaptando-se aos diversos momentos institucionais. (2004, p. 11)

Ao analisarmos a Constituição republicana de 1891, podemos verificar como aponta


Américo Freire e Celso Castro637, que o sistema buscou implantar “mudanças conservadoras”,
inviabilizando qualquer perspectiva de promover maiores modificações no sistema político.
Houve intenções de mudanças mais profundas no sistema político-administrativo, a exemplo
da proposta do então deputado sergipano Felisbelo Freire que propunham uma re-divisão
territorial dos estados, com o objetivo de promover uma divisão mais equânime do território
brasileiro. Freire e Celso Castro afirmam que tal proposta foi absolutamente isolada.

Para Freire e Celso Castro a república não significou uma reestruturação de poder
entre os Estados, mas sim uma nítida manutenção da “ordem” em prol do “progresso” e
protagonizada pelas lideranças do sudeste do país. Para estes autores a grande mudança
republicana seria a admissão do federalismo como forma administrativa do território.

637
IN: GOMES, Ângela de Castro. PANDOLFI, Dulce Chaves. ALBERTI, Verena (Org.). A República no
Brasil. Rio de janeiro: Nova Fronteira. 2002.

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Souza informa em sua obra Impasses do Federalismo Brasileiro que a implantação do


sistema Federalista se deu através de um duvido liberalismo que provocou estorvos na sua
fundação, mas graças ao fato político-econômico das elites brasileiras, que moldaram o
liberalismo aos seus interesses, foi hasteado um complexo e questionável “liberalismo”, um
liberalismo à “brasileira”.
A montagem do liberalismo no Brasil não deve ser analisada a partir da perspectiva do
pensamento liberal da época, mas sim decompô-lo sobre a ótica da elite brasileira do fim do
século XIX, que pouco tinha a ganhar com a implantação de um Estado liberal no fim daquele
momento.

A constituição republicana de 1891, fruto do liberalismo, fixou os


princípios de um Estado federal e representativo, que de acordo com
as melhores idéias do tempo. Na prática, frustar-se-iam as esperanças
dos liberais. O sistema federativo deu lugar à hegemonia dos grandes
Estados, dos representantes da “realidade nacional” de então.
(SOUZA, 1985, p. 18)

A Constituição elaborada em 1891, segundo os autores Figueiredo, Freire e Castro foi


a ratificação que pouco seria mudado no país após o fim do longo reinado de Dom Pedro II. A
Carta Constitucional era apenas uma confirmação legal da ordem que seria imposta a partir
daquele momento.
Américo Freire e Celso Castro apontam que entre as mudanças ocorridas com a
chagada da república seria o federalismo, o fim do poder moderador, e o mais importante a
implantação do presidencialismo, no qual o poder executivo seria constituído por um
representante eleito pelo voto direto. Mas não necessariamente em favor do povo, uma vez
que o eleitorado brasileiro era bastante limitado devido às restrições da Constituição de 1891.

Oliveira Vianna que publicou, em 1949, a primeira edição de Instituições Políticas


Brasileiras onde ele irá procurar identificar os valores a partir dos quais a elite brasileira
dirigiu o modo da fazer política na república. A obra de Vianna esclarece que a perspectiva
de continuidade do sistema de privilégios que permaneceu no sistema república tal qual
existirá no Império, é fruto do que este autor chama de “clã parental”, que é “uma organização
aristocrática. É uma espécie de ordem da cavalaria das grandes famílias dominicais. Foi
enorme a sua influência no período colonial e, ainda maior no período Imperial e na
República” (1987, p. 182).

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Vianna defendia a idéia de que a tradição colonialista implantada no Brasil, durante a


colonização portuguesa, nos levou a um círculo vicioso de privilégios que percorrem grande
parte da História do Brasil. De modo que a passagem do sistema monárquico para o
republicano apresentará poucas mudanças na estrutura social do país.
Para José Murilo de Carvalho em Os Bestializados a República era:

Nossa República, passado o momento inicial de esperança de


expansão democrática, consolidou-se sobre um mínimo de
participação eleitoral, sobre a exclusão do envolvimento popular no
governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-
democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico. (2005,
p.161)

Já Ariosvaldo Figueiredo afirma que a “sociedade brasileira respirava liberdade”, uma


liberdade em grande parte promovida pela divulgação de idéias republicanas nascidas e
criadas nos clubes republicanos e divulgadas nos jornais republicanos que circulavam
livremente na época. Na teoria deste autor a Proclamação da República foi um retardamento
do processo da liberdade política que foi castrado por parte das elites associados à ambição
militar. FIGUEIREDO afirma que: “O golpe de 15–11–1889 na realidade tira a possibilidade
de o povo viver a democracia, que permanece distante de lares, escolas, sindicatos e,
principalmente, das ruas.” (s/d, p.33).
Para Figueiredo a República criada no fim do século XIX era um sistema voltado para
uma classe específica que visava à manutenção de seus privilégios e ao mesmo tempo
mantinha excluída a maior parte da sociedade brasileira. Desse modo, o autor aponta que
mesmo na República a maior parcela do povo não podia votar ou ser votados, devido aos
critérios de entrave democrático impostos pela constituição de 1891, a qual excluía
analfabetos que correspondia a quase 90% do total da população brasileira.
Mesmo que a constituição republicana tornasse o estado laico, no caso sergipano isso
não foi sentido, uma vez que o poder estava centralizado nas mãos de um religioso ligado a
cultura católica, o monsenhor Olimpio Campos638. Na descrição de Ariosvaldo Figueiredo é
“a maior liderança conservadora do Estado” (s/d, p.273). Este autor apresenta Olímpio
Campos como um ser não talentoso e nem esperto, mas um “amante” do poder, para o qual
dedicava sua vida.

638
Nascido em 1853, foi padre, dominou a política sergipana através do partido Conservador entre os anos de
1885 a 1906, ocupou mandatos de deputado, Intendente de Aracaju, senador e de presidente do Estado de
Sergipe (1899 – 1902).

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A adesão da figura de Olímpio Campos frustra os denominados republicanos


históricos, como afirma o padre Antonio Carmelo:

Quando a proclamação da República, e, 1889, os positivistas,


evolucionistas, monistas, estavam agrupados como vencedores de um
movimento que teve visibilidade nos jornais, nos clubes republicanos,
nos saraus. Olímpio Campos, político típico da Monarquia, aderiu à
República e com seu grupo terminou desalojando figuras históricas da
propaganda republicana. Fausto Cardoso, Sílvio Romero e
Gumercindo Bessa foram três deles, dos mais radicais, vítimas e
desafetos. (2005, p.13)

Na prática o monsenhor Olímpio Campos manteve seu status político inalterado com
a chegada da república, tanto é que segundo Carmelo, será ele que irá presidir a assembléia
Estadual Constituinte que elaboraria a Constituição republicana do Estado de Sergipe.
O que se verifica na bibliografia existente, é que de modo geral a república era algo
desconhecido da maioria dos brasileiros, de modo que foi preciso impor o novo sistema com a
mais moderna e brilhante transformação política do país, era preciso atribuir todos os males
do Brasil ao antigo regime monarquista. Assim, ficou a carga da monarquia brasileira
carregando toda a simbologia do atraso e do anti-modernismo político do país.

O PENSAMENTO REPUBLICANO DE FAUSTO CARDOSO

O deputado Fausto de Aguiar Cardoso é natural de Divina Pastora, cidade localizada


no interior de Sergipe, é filho do Tenente-Coronel do Império Felix Zeferino Cardoso e de
Maria do Patrocínio C. Aguiar. Teria nascido no engenho de propriedade de sua família
chamado São Félix, em dezembro de 1864. Seus pais eram membros das famílias mais
abastadas da sociedade sergipana da época e, como os demais membros da aristocracia
imperial, possuíam vastas extensões de terras sobre o cultivo da cana-de-açúcar e da força dos
negros escravos.
Fausto Cardoso ingressa na Faculdade de Direito de Recife639 em 1882, onde entrou
em contato com as idéias republicanas, as quais defendera até seu assassinato. Era um
discípulo do também sergipano Tobias Barreto, na época professor da mesma Faculdade. A
capital pernambucana, no início do século XX, era um dos focos de entrada das idéias mais
639
Era praxe das famílias abastadas sergipanas da época enviar seus filhos homens para fazer direito na cidade
de Recife.

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avançadas, trazidas geralmente da Europa, sendo um dos centros irradiadores dos ideais
republicanos no Brasil.
Fausto de Aguiar Cardoso irá apontar em suas duas obras: Concepção Monistica do
Universo e na Taxinomia Social, assim como em seus discursos parlamentares realizados
entre 1900 a 1903 e posteriormente em 1906, que a trajetória da história do Brasil, assim
como a história de todas as nações, segue um fatalismo histórico, que ele irá denominar de
“leis immutáveis” da História. Sendo assim as sociedades teriam que percorrer caminhos
muitos semelhantes, pois:

Os povos não aparecem feitos e acabados na história. Nascem,


crescem, nobilitam-se, definem-se, seguindo a mesma rota, fazendo a
mesma viagem, crivando-se nos mesmos espinhos, sentindo as
mesmas agonias que sentiu, fez, crivou e seguiu nossa espécie. Não há
dois caminhos: um para apurar a alma desta, outro para purificar a
daqueles. Não há duas estradas: uma para os povos que viveram a vida
nas épocas transatas de barbaria, outra para os que surgem, como os
americanos, quando a liberdade se tornava um símbolo e tendia a
tornar-se o patrimônio comum da humanidade. A vereda é uma só, as
estações são as mesmas: terror religioso, coação militar, império do
direito. Tal é a lei natural, precípua fundamental da história – a lei
soberana das sociedades.640

Dentro dessa visão as sociedades são regidas por “leis immutáveis”, de uma evolução
constante. E assim também seria a narração dos fatos dessas respectivas sociedades, por
mais que eventos inesperados ocorressem, a História teria uma linha lógica e racional de
evolução, ou seja, esse desenvolvimento das aglomerações humanas não ocorre de forma
aleatória, eles seguem uma ordem “immutável”.
Assim, o surgimento da República em 15 de novembro de 1889 era fruto dos
movimentos e articulações da própria sociedade e de seus grupos, que estavam apenas
movendo a “Maquina da História” que levaria à República como uma fatalidade da trajetória
do nosso país. Pois para o deputado sergipano a proclamação da República era:

Afinal, a República, imposta pelo fatalismo das leis históricas, surge


inesperadamente, e o Brasil entra na regra geral de evolução política a
que todos os povos, sem exceção, estiveram sujeitos e a que o estão
hoje os do continente americano, e começa a participar das agitações

640
Sessão da Câmara dos deputados de 9 de junho de 1902. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.688-711.

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militares que, por toda a parte e em todos os tempos, precedem a


ordem constitucional das nações.641

E para o deputado sergipano, a conquista da liberdade deveria obrigatoriamente ser


fruto de uma conquista, caso contrário não poderia ser chamada de liberdade, como
percebemos em seu discurso de 9 de julho de 1902:

A liberdade só se prepara na História com o sangue dos povos, o


esforço dos homens, o cimento dos tempos. E se ela não é o preço de
uma vitória, não é liberdade; será tolerância, favor, concessão, que
podem ser cassados, sem resistência, por quem quer que se revista do
poder. Não gera caracteres nem cria personalidades. Enerva, dissolve,
abate, humilha, corrompe e transforma os povos em míseras
sombras.642

Fausto Cardoso visualiza na República a possibilidade de uma liberdade política, a ele


visualizava uma possibilidade de alternância no poder, desse ele relacionava diretamente
liberdade política com o nosso regime.

A busca incessante pela liberdade é para Cardoso uma das “leis immutáveis da
história” pode ser vista em todas as sociedades ao analisarmos suas respectivas histórias,
como afirma ele em um de seus discursos na capital federal em 1900:

É que a História de todos os povos obedece a uma marcha regular


uniforme, fatal, de modo que toda sociedade, em seu
desenvolvimento, vai do automatismo religioso, artístico, industrial,
político, jurídico, econômico e financeiro, para uma autonomia
crescente, em religião, em arte, em indústria, em política, em direito e
em finanças; autonomia que se completa e esse define quando a
individualidade nacional se faz termina.643

641
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1900. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.227-261.
642
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1902. IN: IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p. 688-711
643
Sessão da Câmara dos deputados de 4 de setembro de 1900. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.227-261.

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Para ele, a República brasileira era um desses acontecimentos ocasionados pelas “leis
immutáveis da história”, pois o sistema republicano era certo e inevitável. O fato de o Brasil
ter se tornado Monarquia, a princípio poderia quebrar a teoria da “imutabilidade”, mas Fausto
Cardoso assegurara que não, pois a República chegaria ao País, mesmo que isso retardasse no
tempo. O ocorrido em 15 de novembro de 1889 era algo já determinado pelas “leis
immutáveis da história”.
A República brasileira seria uma obra da História, e não dos militares associados aos
interesses econômicos da aristocracia de algumas províncias. O sistema Republicano, segundo
Fausto Cardoso, “não fora obra do homem, mas da História, que um impulso destruíra o fruto
artificial da razão transviada: o império; e insinuara o natural que a razão esclarecida aceitou e
cultiva: a República” (CARDOSO, 1900, p.398).
A monarquia foi apenas um hiato na seqüência entre a Colônia e a República que não
destrói a teoria de Fausto Cardoso, apenas a confirma. Pois as “leis immutáveis” não regem os
meios, mas o alvo. Os processos pelos quais a República fora implantada não fazem parte das
“leis immutáveis da História”, porém, a sua concretização sim.
Em seu discurso de 9 de junho de 1902 Fausto Cardoso aponta que “revolução e
república foram a expressão da lei fundamental, precípua, inconsciente, fatal do envolver de
nossa espécie, lei que faz da história particular do povo, qualquer que seja a sua posição na
escala do progredir humano”644.
E acreditando que a República é uma obra da História, Cardoso convoca todos os
brasileiros a defendê-la com sangue, se necessário. O sistema que se implantou em 15 de
novembro foi uma “solicitação da História”.
Cardoso afirmava que a atuação das “leis immutáveis” poderia também ser vista
no efeito ação e reação, pois, em qualquer sociedade humana, sempre que se implanta algum
regime de restrição da liberdade, em algum momento futuro se ocasionará uma reação em
busca do livre-arbítrio.
Fausto Cardoso acreditava que, assim como “phenômenos” fixos agiam sobre a
natureza, as sociedades eram regidas por “leis fixas e immutáveis”. (CARDOSO, 1894, p.1).
Para fazer tal afirmação ele buscou fundamentos na filosofia monistica de Ernesto Haeckel645.

644
Sessão da Câmara dos deputados de 9 de junho de 1902. IN: CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis
Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e comentários do deputado Francisco Rollemberg).
Brasília: Câmara dos Deputados. 1987. p.688.
645
Pensador alemão nascido em Postdam, na Prússia, em fevereiro de 1834. Morreu em Lena, na Alemanha, em
agosto de 1919. Seguidor e um dos principais divulgadores da doutrina da evolução de Darwin. Criador do
“monismo materialista” onde a natureza é vista como única substância, submetida ao processo da evolução,
negando a existência de uma teoria da criação ou destruição,acreditando na concepção da transformação. Foi

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Tal filosofia acredita que a natureza segue uma seqüência lógica de acontecimentos e tem por
premissa o fato natura non fácil saltus. De igual maneira, a “história não dá saltos”, segue um
encadeamento lógico de acontecimentos.
As “Leis immutáveis da História” fariam sempre o mesmo percurso que Cardoso
descreve como “Utopia, Revolta e Instituição”. Tais etapas seguiriam a seguinte ordem: o
período da “Utopia” seria quando a idéia “brilha na mente solitária de um gênio”; no segundo
momento, seria quando essa idéia ultrapassa a mente desse gênio, tomando corpo e abraçando
“camadas humanas” a ponto de tornar-se a etapa da “Revolta”; o terceiro e último momento, é
o da “Instituição”, que seria quando aquilo que em outra ocasião fora uma idéia “utópica”
ganha forma e consolida-se em instituições.
Do mesmo modo, a história da conquista da liberdade estaria condicionada às mesmas
etapas na constituição de qualquer agrupamento humano, uma vez que e a história das
sociedades é a história da busca e da conquista da liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos afirmar que dentro de toda a incongruência que a implantação do


sistema republicano teve na História do Brasil, a República, dentro da visão do deputado
Fausto Cardoso, seguia um curso natural da biografia da cultura política do Brasil.
Como podemos observa sistema republicano foi implantado tendo em vista a
manutenção da ordem, voltado para uma classe que pretendia e via no Estado uma extensão
de seu patrimônio, o Estado era a instituição que lhe garantiria a manutenção de seus
privilégios, isso levou a maior parte da população brasileira do final do século XIX e inicio do
XX a marginalização política.
Desse modo, a república se impõe de forma alheia à maioria da sociedade, mesmo
que de forma inevitável como afirma Fausto Cardoso. Desse modo era preciso atribuir novos
rumos à república brasileira, mas especificamente a república em Sergipe, uma vez que o
deputado sergipano imagina que a república daria a chance do grupo de republicanos mais
“ousados”, do qual ele fazia parte, de chegar ao poder. Contudo, a força esmagadora da velha
elite passou por cima dos sonhos dos “faustistas” de assumir o poder local.
A República implantada em novembro de 1889, não era a projetada pelas “Leis
immutáveis da História” de Fausto Cardoso, era apenas o início de um novo sistema que teria

árduo crítico da teoria criacionista. São de sua autoria, entre outras, as obras: A Origem do Homem, Formas de
arte da natureza.

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que conviver com velhos vícios de uma elite que aprendeu a acomodar-se à qualquer situação
política.

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comentários do deputado Francisco Rollemberg). Brasília: Câmara dos Deputados. 1987.
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__________. Discurso Pronunciado na Câmara Federal, a 04-09-1900 no Rio de Janeiro. IN:
CARDOSO, Fausto de Aguiar. Perfis Parlamentares: Fausto Cardoso. (Seleção, introdução e
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VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras – Volume 1. 3 edição. Belo Horizonte:
Itatiaia: São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1987.

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TRAJETÓRIA DO INTEGRALISMO NO RECÔNCAVO SUL:


SUSSURROS DE TEMPOS DE TENSÕES POLÍTICAS – 1933 A 1937

Alex de Jesus Oliveira – UNEB


lex.jesus@hotmail.com

Sabe-se que o Brasil das primeiras décadas do século XX é marcado por significativas
disputas ideológicas e confrontos políticos além de transformações profundas em sua
economia e nos encaminhamentos filosóficos dos movimentos sociais. Neste universo
marcado por disputas políticas e crises econômicas, as disputas ideológicas sofreram um
acirramento nos primeiros anos da década de trinta do século passado quando Integralistas e
Comunistas confrontavam suas idéias e militavam ardilmente no cotidiano. O movimento dos
“camisas verdes” foi bastante difundido nas cidades do Recôncavo Baiano, existindo uma
memória pouco explorada pela academia. Neste sentido, a presente pesquisa tem como
objetivo central investigar a trajetória do Integralismo no Recôncavo Sul Baiano a partir de
uma reflexão sobre o discurso dos jornais que circularam no Recôncavo entre os anos de 1933
a 1937, temporalidade que abrange o apogeu e o declínio do Integralismo no Recôncavo Sul.
A partir da analise de narrativas e de jornais pode-se verificar diversos aspectos do
integralismo em cidades do Recôncavo como Cruz das Almas, Maragogipe e Cachoeira.

Palavras Chaves: Integralismo, Recôncavo Sul, Memória.

1-INTRODUÇÃO:

A Ação Integralista Brasileira (AIB) tem origem com a fundação da Sociedade de


Estudos Políticos (SEP), centro de reflexão política e sociológica criado em março de 1932
por Plínio Salgado quando este trabalhava no jornal “a razão” (TRINDADE, 1974, p.124). A
SEP visava congregar intelectuais e lideranças políticas contrárias aos modelos de cunho
liberal ou socialista (BARBOSA, 2006, p.67). Desta forma, a AIB se constituiu como um
“produto” do contexto de radicalização da esquerda e da direita na década de 1930,
caracterizando-se como um movimento de modelo “fascista” (MERG, 2006, p.1).

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Não obstante, a Ação Integralista Brasileira só seria fundada em 24 de maio de


1932 quando Plínio Salgado propôs, em assembléia na SEP, a criação de uma nova comissão
técnica, denominada Ação Integralista Brasileira (AIB), com a finalidade de transmitir ao
povo, em uma linguagem simples, os resultados dos estudos e as bases doutrinárias da
organização. Em junho do mesmo ano Salgado redigiu o Manifesto para a divulgação da AIB,
porém, a sua publicação foi adiada em virtude do iminente confronto armado entre o Estado
de São Paulo e o Governo Provisório de Getúlio Vargas. (BARBOSA, 2006, p.68).
Com a derrota dos insurgentes pelas forças federais, em 7 de outubro de 1932, foi
fundada oficialmente a Ação Integralista Brasileira(AIB) quando foi realizada a leitura do
documento que ficou conhecido como Manifesto de Outubro(BARBOSA, 2006, p.69) em
reunião solene no Teatro Municipal de São Paulo. A partir de então diversos núcleos do
movimento foram fundados em todo Brasil.
Neste sentido, o Integralismo logo alcançou diversos estados da Federação.
Segunda Ferreira “a trajetória do integralismo na Bahia se iniciou com a instalação do núcleo
provincial da Ação Integralista Brasileira em junho de 1933, por iniciativa de estudantes da
Faculdade de Direito da Bahia e profissionais liberais” (FERREIRA 2006, p.56).
O integralismo alcançou de imediato à classe média desejosa de contrapor os
valores que fossem de encontro aos seus interesses e projetos de construção da “Nação”.
Diante da expansão do Comunismo no Brasil e dos movimentos antiliberais muitas pessoas
viram no integralismo uma proposta de construir uma “nação” pautada, sobretudo, nos valores
tradicionais da Igreja Católica, e no Nacionalismo, pois o lema do Integralismo era “Deus,
Pátria e Família” (CAVALARI, 1999, p.72).
Em dezembro de 1937 AIB foi extinta como as demais agremiações políticas.
Contudo, para continuar na legalidade devido a nova conjuntura imposta pelo Estado Novo de
Getulio Vargas a AIB organizou-se novamente como uma sociedade civil (como a antiga
SEP), que teve a denominação de ABC, ou seja, Associação Brasileira de Cultura (CALIL,
2001, p.54).
Por conseguinte, durante o período de legalidade diversos núcleos do movimento
Integralista foram fundados na Bahia. Segundo FERREIRA (2006, p.56):

Em Salvador, vários núcleos distritais foram fundados por toda a cidade, mas
foi no vasto interior baiano que a AIB conseguiu maior êxito em seu
processo de expansão. Numa atuação intensa, a AIB fundou núcleos
municipais por todo o interior, inclusive em cidades importantes como
Ilhéus, Itabuna, Jequié e Feira de Santana. No pequeno município de
Tucano, localizado no nordeste da Bahia a Ação Integralista conseguiu a

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adesão da esmagadora maioria da população. Segundo dados da própria


AIB, em meados de 1936, haveria aproximadamente 46.000 integralistas no
estado, distribuídos por mais de 300 núcleos municipais e distritais.

Percebe-se que diversos núcleos do movimento Integralista foram fundados em


diversas cidades do interior da Bahia, onde o movimento acabou se tornando expressivo
obtendo adesão em massa de diversos “sujeitos” sociais. Pessoas de diversas posições sociais
acabaram optando pelo projeto de Nação formulado pela AIB e durante a primeira metade da
década de trinta militaram na tentativa de colocar em prática o projeto ideológico de estado
formulado principalmente por Plínio Salgado.
Sendo assim, o interesse desta pesquisa visa refletir e analisar a trajetória deste
movimento no Recôncavo Sul em especifico nas cidades de, Maragogipe-BA, Cruz das
Almas-BA, Cachoeira-BA entre os anos de 1933 e 1937, uma vez que durante esses anos o
movimento se mostrou expressivo, sobretudo entre nos anos de 1933 a 1936 quando foi
fundado em diversas cidades da Bahia núcleos Integralistas (FERREIRA, 2006) que tinham
como objetivo difundir suas ideais nas cidades.

1.2 – Reflexões sobre a trajetória do integralismo no Recôncavo Sul baiano.

A presente proposta de estudo se pauta basicamente em analisar a trajetória do


Integralismo no Recôncavo Sul em especifico nas cidades de Maragogipe-BA e Cruz das
Almas-BA entre os anos de 1933 a 1937 quando houve uma difusão das doutrinas do Sigma
em todo Brasil, por meio da fundação de Núcleos em diversos municípios da federação.
Neste sentido, busca-se enfocar os discursos em relação ao Integralismo nos
periódicos que circulavam no Recôncavo Sul baiano nos primeiros anos da década de 1930,
bem como investigar as trajetória do movimento a partir das narrativas de experiências de
quem vivenciou a militância no movimento da AIB fazendo um cruzamento com as
informações contidas em um dos principais jornais Integralistas produzido no Recôncavo Sul
“A Faúla” de Maragogipe-Ba.
Apesar dos esforços já empreitados na busca de manter contato com fontes que
versem sobre o integralismo no Recôncavo Sul baiano, a pesquisa ainda se encontra em sua
fase embrionária. Esse primeiro momento tem sido difícil, pois muitas pessoas que viveram e
militaram no movimento integralista nos primeiros anos da década de 1930 já faleceram,
existindo poucas pessoas vivas e aptas para narrarem suas experiências. Esse problema tem

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limitado o avanço dos trabalhos com as fontes orais, não obstante, tem instigado a avançar no
sentido de conhecer os personagens que participaram de um momento tenso e decisivo da
política brasileira.
Por conseguinte, as fontes escritas produzidas pelo movimento Integralista, como
jornais, revistas, boletins dos núcleos tem se apresentado de forma um tanto quanto
fragmentada, uma vez que muitas pessoas queimaram jornais, fotografias, atas de núcleos no
momento da dissolução da AIB com a instalação do Estado Novo, como rela o Sr. José
Souza646:

Quando houve o golpe de Getúlio, Rapaz Getúlio foi esperto deu o golpe
certinho, agente ia chegar no poder, só tinha os grandes no movimento, ate
ele era, ai, ai eu joguei a foto que eu tinha com Plínio que eu gostava tanto
na fose, mas não adiantou eu fui preso do mesmo jeito.

Temendo a prisão com a dissolução da AIB pelo Estado Novo implantado por
Vargas, muitos Integralistas acabaram destruindo seus documentos pessoais que poderiam
corroborar como evidência de sua participação no movimento no Recôncavo Sul. Essa atitude
dos militantes “camisas verdes” deixou como legado para posteridade um “silêncio” histórico
que esconde diversas nuaceas do cotidiano do movimento Integralista. Por outro lado, pode-se
entender com essa atitude uma tentativa de luta pela sobrevivência, que permitiu muitos
militantes do “Sigma” permanecerem vivos e no presente externarem memórias desses
tempos tensos da história política do Recôncavo Sul baiano e do Brasil.
A evidência contida na narrativa do ex-Integralista Senhor José Souza reafirma
de forma impar uma atitude coletiva que se expressa na sua lembrança de um momento tenso
de sua vida e de decisão imediata em ter que destruir as evidências de sua participação no
movimento do Sigma. A memória externada por seu José não é resultado de uma assimilação
de um evento experimentado individualmente, mas “o suporte em que se apóia a memória
individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela
memória histórica.” HALBWACHS (2004).

Apesar de constatar a fragmentação das fontes sobre o Integralismo no Recôncavo


Sul baiano, as evidências existentes e ate então apuradas nos permite afirma não de forma
precipitada, mas de forma segura que o movimento do “Sigma” obteve adesão de diversas

646
Sr. José Souza Pereira ( 94 anos), conhecido como Zeca da Breda, residente em Cruz das Almas
Bahia, participou ativamente do Núcleo Integralista de Cruz das Almas-BA.

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pessoas de origem social diversa, inclusive intelectuais de Municípios como Cachoeira-BA,


Maragogipe-BA e Cruz das Almas-BA.
O periódico “A Faúla” produzido pela impresa integralista de Maragogipe-BA
relata os principais acontecimentos naquela cidade envolvendo o movimento do “Sigma”,
além de relatar aspectos de outros núcleos como de Cruz das Almas e de outros Municípios.
A trajetória do integralismo no Recôncavo Sul baiano, ao que parece se inicia com
a implantação dos primeiros núcleos municipais entre 1934 a 1935. Em Maragogipe-Ba o
Núcleo é fundado em 1934 quando o professor e Jornalista Nestor Fernandes Távora toma
posse junto com o seu secretariado, chefes de departamentos e Chefes de divisão no dia 31 de
outubro de 1934 conforme noticiou o jornal “A Faúla”:

(...) Nestor Fernando Távora, que tomou posse em sessão realizada no dia
31corrente na sede, à rua Geni Morais número 16. No domingo passado teve
lugar uma sessão extraordinária onde tomaram posse os secretários
nomeados pelo Chefe que são os seguinte; Dr. Marivaldo Cotias – S.M.O.P.,
Eustorgio C. Junior – S.M.E, Bolívar Pinto – S.C. M., José Pereira Borba –
S.M.P., Eduardo Vieira de Melo – S.M.C.A., N.Fernandes Távora –
S.M.F.C.F., Otavio Batista Soares – S.M.F. DEPARTAMENTOS: Stela
Machado Todt – D.M.I, Manoel Lucas Larangeiras D.N.E.s, André Mato
Groso – D.M.C.I Florisberina Andrade – D.M.F. Eurípides Alves Peixoto –
D.M.P., Eraldo Lopes Mota – D.M.J., CHEFES DE DIVISÃO; Pedro
Baião de Jesus – D.M.G.I.C. Antonio F. Almeida do D.M.P., Meneleu
Batista Soares do D. M. E., Hereliano Jorge de Souza da S.M.C. A.:” ( A
Faúla,31 /10/1934).

Organizado em secretarias, departamentos e divisões os Núcleos Integralistas do


Recôncavo Sul baiano seguia a risca as diretrizes propostas pela organização central do
movimento. Com a participação de pessoas importantes de cada Município o movimento
integralista se estruturou no Recôncavo sul baiano com lideranças quase sempre com um bom
nível intelectual, uma vez que, os núcleos eram quase sempre compostos por pessoas letradas
a exemplo do Núcleo de Maragogipe que fundado em 1934 tinha como chefe o Senhor Nestor
Fernandes Távora, sendo este professor, jornalista – sendo diretor do jornal “A Faúla” – e
vereador como atesta a matéria publicada no jornal “A Faúla” fazendo menção a entrevista
dada pelo mesmo ao Jornal Imparcial da Capital.

O IMPARCIAL este acreditado jornal da capital do Estado, em sua edição


de 6 do andante, inseriu em suas colunas o clichê, acompanhado de uma
longa entrevista sobre os últimos acontecimentos nesta cidade, do nosso
ilustre e Diretor, o distinto e digno professor, jornalista e poliglota Nestor
Fernandes Távora, Chefe Municipal do Núcleo Integralista. Nesta entrevista,
o nosso Diretor que é também VEREADOR eleito por este Município,

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tratou da questão política municipal, expondo com máxima serenidade e com


o espírito justiceiro que o caracteriza alguns dos episódios das eleições. ( A
Faúla, 29 /11/1935).

É evidente que o chefe do núcleo integralista do Município de Maragogipe era um


homem culto. Sendo Vereador que fazia oposição a conjuntura dominante Liberal apoiada nas
diretrizes Varguistas, fora requisitado pelo jornal Imparcial da capital para tecer sua versão
sobre o desenrolar das eleições naquele Município em 1934. É preciso evidenciar que
segundo Ferreira (2006, p.58):

Após a chegada à direção de O Imparcial do jornalista Victor Hugo Aranha,


a linha editorial muda significativamente, a simpatia inicial cedeu espaço a
uma intensa e explícita propaganda pró-integralista entre os anos de 1935-
37, quando se estreitam as relações ente o jornal e a AIB da Bahia.

Neste sentido, percebe-se que jornal “O Imparcial” assume uma atitude


apologética em relação ao integralismo a partir de 1935, o que nos leva a inferir que tal
entrevista cedida pelo chefe do integralismo do Núcleo de Maragogipe se apresentou com o
intuito de demonstrar a partir da ótica integralista uma versão do pleito naquela cidade, além
de promover pela propaganda jornalista às doutrinas do movimento e, por conseguinte
demonstrar para sociedade que o integralismo em Maragogipe estava organizado.
È certo que o movimento dos “camisas verdes” em Maragogipe teve uma grande
expressividade no Recôncavo Sul da Bahia e o argumento para tal afirmação é o fato do
núcleo possuir um jornal organizado que apregoava tanto as doutrinas do movimento do
Sigma, quanto os eventos promovidos pelo núcleo da A.I.B do referido Município e também
dos municípios circunvizinhos. Para Cavalari (1999, p.79):

O jornal era organizado não apenas com o fim precípuo de doutrinar, mas,
mais do que isso, de transmitir a doutrina de modo uniforme. Os jornais do
interior, aqueles que chegavam até o militante mais distante, eram
organizados de modo a reproduzir os jornais maiores, editados nos grandes
centros onde se concentrava a elite dirigente do movimento

O jornal “A Faúla” do núcleo de Maragogipe-BA parece seguir a risca o que


Cavalari postula, não obstante, respostas a ofensas eram publicadas, sobretudo se referindo
aos artigos de oposição ao movimento que eram publicados no jornal liberal do município a
“Redenção”. Isto demonstra que o jornal era usando como meio de agressão e de defesa
verbal durante toda a existência do movimento no Município. Por outro lado, é evidente que

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todo discurso expresso no jornal de uma maneira explicita ou implícita acabava sempre
levando a doutrinação das “mentes desavisadas” dentro do campo ideológico do integralismo.
Em 1935 o jornal “A Faúla” fez referência ao núcleo de Cruz das almas com a
meteria intitulada; “ Histórico do Núcleo Integralista de Cruz das Almas-BA”. A matéria vem
assinada pelo chefe Integralista do Núcleo Cruzalmense Fernando Pinheiro;

O Núcleo Integralista deste Município de Cruz das Almas, foi fundado em 1


de abril do corrente ano, sendo nomeado para dirigir os destinos o camisa-
verde Fernando Pinheiro pelo chefe Provincial, tendo atualmente como
secretários, os seguintes companheiros: Dr.Ramiro Eloy Passos, Laudelino
da Mota Leal, Nelson Conrado de Andrade, Renato Passos Pinto, Antonio
Miranda e Altamiro Castro Leal.

A informação acima nos leva a supor que o Núcleo Integralista do Município de


Cruz das Almas-Ba foi organizado alguns meses após a fundação do núcleo da cidade de
Maragogipe-BA, sobretudo quando cruzamos a informação acima com o noticiário do jornal
“A Faúla” do dia 23/11/1935 que relata as atividades do aniversário do Núcleo de
Maragogipe:

O Núcleo Municipal A.I.B. comemorando o primeiro aniversario da sua


fundação, realizado no dia 11 do corrente, porém, sendo transferidos os
festejos para o dia 17 deste, por motivos superiores, levou a efeito um
programa cheio de entusiasmo e alegria, tudo na mais completa ordem e
disciplina, característicos estes de todas as comemorações Integralistas.

A partir do cruzamento das informações podemos afirmar que o Núcleo de Cruz


das Almas-BA fora fundado sete meses depois da organização do Núcleo Maragogipense.
Essa Informação nos leva a pensar que o Núcleo de Maragogipe-BA obteve uma posição de
irradiador das idéias Integralista em algumas cidades do Recôncavo Sul baiano, uma vez que
o jornal “A Faúla” noticia eventos integralistas que tiveram presença maciça de núcleos
como o de Outeiro Redondo( hoje distrito de São Felix), São Felix-BA, Cachoeira-BA,
Muritiba-BA, Cabeças (hoje Governador Mangabeira-BA) e Cruz das Almas-BA e Núcleos
da Capital Salvador em eventos realizados em Maragogipe-BA.
Segundo Sr. José Souza o núcleo em Cruz das Almas estava organizado e crescia
vertiginosamente. Ele afirma que o movimento estava bastante organizado e sob o comando
de Fernando Pinheiro, que para ele era um homem muito inteligente capaz de conduzir os
militantes de forma ordeira e simpática. O Sr. José Souza Afirma que:

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O Movimento Crescia! Crescia!, nós aqui no interior, como aqui em Cruz


das almas, nós tínhamos já um movimento bem avançado e tinha Fernando
Pinheiro que era o chefe, era um cara que tinha uma cabeça boa né? Muito
inteligente e sabia conduzir os seus camaradas de uma maneira simpática

A matéria referente ao Município de Cruz das Almas-Ba publicada no jornal “A


Faúla” ainda registra de forma minuciosa a estrutura do Núcleo:

ESCOLA PRIMARIA: Possui este Núcleo uma escola primaria para ambos
os sexos, a qual foi instalada em junho deste ano, já contando com o numero
de 30 alunos matriculados.funciona 3 dias por semana com uma freqüência
de 20 alunos. MOVIMENTO DA SEDE: Atualmente o Núcleo conta com
o número de 104 integralistas fichados, do seguinte modo; Milicianos 70,
juventude 30 e Departamento feminino 4. As sessões doutrinarias são às
terças feiras onde comparecem geralmente diversos simpatizantes e um
numero elevado de companheiro que varia de 30 a70, para ouvirem a palavra
de fé dos oradores designados sobre o ideal do “Sigma” que empolga o
Brasil.DISCIPLINA; A disciplina dos integralistas deste Núcleo é
irreparável, são geralmente rapazes obedientes e fervorosos defensores do
nosso ideal. EXERCÍCIO; adotamos os exercícios físicos como
determinantes e regularmente e agora estamos organizando a nossa
biblioteca. Tudo isto fazemos com extraordinário sacrifício, tendo os olhos
fitos num futuro grandioso para nossa Pátria afim de que muito breve
possamos realizar a obra monumental traçada pelo chefe Nacional que
consiste na integralização de um Brasil altaneiro e respeitado por nações pela
sua grandeza econômica, moral e patriótica, assentado sobre as bases
espirituais que enobrecem um povo tendo por lema; Deus, Pátria e família.
Fernando (Pinheiro C.M de Cruz das Almas-BA)

Como pode-se notar o núcleo integralista do município de Cruz das Almas se


encontrava em 1935 seguindo a risca os parâmetros de organização determinados pela
liderança central da A.I.B. Com 104 pessoas registrados no movimento fica evidente que a
proporção de simpatizantes também era bastante significativa. Este Núcleo, como se pode
constatar, possuía uma escola primaria, assim como o Núcleo de Maragogipe, o que acabava
levando diversas família integralistas ou simpatizantes a matricularem seus filhos, segundo o
Sr. José Souza; “O povo gostava bastante, bastante mesmo!”.
A narrativa do Sr. José pode externar um sentimento coletivo de uma parcela do
“todo social” que vivenciou o movimento Integralista em Cruz das Almas-BA. Mesmo sendo
uma memória de um tempo em que o mesmo experimentou o engajamento político–
ideológico na militância da A.I.B., as suas lembranças de modo algum podem ser
compreendidas como uma construção individual, mas se encontra entrecruzada de
perspectivas de vidas no todo social, tanto no passado como no presente em que ele externa a
sua narrativa. As memórias de Sr. José se apresentam no presente como lembranças

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compostas sob os alicerces de uma diversidade de sentimentos “individuais” que acabam


sendo externadas como uma expressão legítima de um contexto coletivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O integralismo de modo nenhum pode ser esquecido pela academia. Movimentos
neo-nazistas no mundo contemporâneo se organizam e militam cotidianamente, sobretudo nas
grandes cidades do planeta.
O próprio movimento integralista esta se organizando novamente no Brasil isso se
constitui como prova contundente da importância da academia e, sobretudo dos historiadores
de discutirem um assunto de tamanha relevância para a sociedade.
O sistema ideológico criado por Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale
“viaja” no tempo espaço, e na contemporaneidade, não se limita ao campo das idéias, mas se
torna vivo na prática de jovens integralistas que começam se organizar no Rio de janeiro.
A Bahia foi um dos estados que abraçou essa doutrina com afinco, cidades como
Maragogipe, Cruz das Almas, Cachoeira, Castro Alves, Muritiba, foram palco para os desfiles
das hostes Integralistas nos anos de 1934 a 1937. Muitas vidas experimentaram a militância
no movimento e depositaram seus sonhos e desejos na construção de um novo país dentro do
arcabouço das idéias Plinianas.
Frustadas ou não, as narrativas dos ex-militantes da A.I.B. analisadas a partir de
um cruzamento com o discurso produzido pelos jornais oficiais dos “Camisas Verdes” em
conjunto com os periódicos que se posicionavam contra o movimento do “Sigma” revelam
um tempo de tensão, de “sussurros políticos” que projetavam a tentativa de colocar em prática
um ideal político, um “projeto de nação”.
A presente pesquisa, apesar de está se iniciando tem desnudado aspectos
importantes da estrutura política e organizacional do movimento Integralista no Recôncavo
Sul Baiano nos primeiros anos de 1930. Neste sentido, pode-se dizer que, se entender o
movimento do Sigma já é bastante relevante, devido a sua abrangência em todo país e pela
sua construção ideológica, que dirais perceber que sujeitos socais distantes do grandes centros
do país se posicionaram e militaram ardilmente defendendo uma posição política em seu
cotidiano não apenas em momentos de eleição.
Por fim, A A.I.B. no Recôncavo Sul baiano não foi um movimento político que
isolava o individuo em partes estaques da vida social, mas toda multiplicidade do viver
cotidiano em suas diversas temporalidades e espaços, - o viver na Igreja, na família, na escola

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– esteve permeada pela militância diária como bem próxima do que afirma Sr. Jose Souza
“Era uma militância ferenha!”

2-Fontes

Histórica:
Jornal “A Faúla” Diretor .Fernandes Távora, Redator Chefe Eustorgio C.Junior – 25
exemplares depositados na casa Osvaldo de Sá em Mragogipe-BA e um exemplar no Centro
Cultural de Maragogipe-BA

Oral:
Sr. José Souza Pereira ( 94 anos), conhecido como “Zeca da Breda”, residente em Cruz das
Almas Bahia na rua Crisogno Fernandes S/N, participou ativamente do Núcleo Integralista de
Cruz das Almas-BA – OBS: Encontra–se lúcido sendo um exímio jogador de xadrez, vive
com a família, a esposa e filhos e Netos.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Jerffeson Rodrigues. A ascensão da ação integralista brasileira (1932-1937), In:
Revista Brasileira de Iniciação Científica da FFC. V.6, Nº. 1, 2, 3, Ano: 2006.

CALIL, Gilberto Grassi. O integralismo no pós-guerra: a formação do PRP (1945-1950).


Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de


massa no Brasil (1932-1937). Bauru: EDUSC, 1999.

FERREIRA, Laís Mônica Reis. O integralismo da Bahia: O caso de o Imparcial, In: Revista
de História regional, Vol.11, Nº1 Ano: 2006.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.

MERG, Camila Ventura. O Despertar da Nação: Nacionalismo e espiritualismo na doutrina


Integralista. In: Cadernos de História, Ano I, Nº. 2, Setembro de 2006.

TRINDADE, Hélio. Integralismo: O fascismo brasileiro na década de 30. Porto Alegre:


Difel, 1974.

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A DIALÉTICA DA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NAS MEMÓRIAS DE


IMIGRANTES CABOVERDIANOS NO RIO DE JANEIRO (1950-1973)

Artur Monteiro Bento – (UNIRIO)


artur-bento@hotmail.com

Esta comunicação se afirma nas reflexões surgidas no doutorado em Memória Social, sobre a
reconstrução das identidades assumidas pelos imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro,
associadas ao processo histórico da construção da nação caboverdiana, ou seja, de uma
situação de disputa da memória oficial. Utilizando a metodologia de História Oral, foram
computadas vinte e nove (29) entrevistas, sendo dezoito (18) de imigrantes da primeira
geração e, onze (11) da segunda geração, ou seja, brasileiros, filhos daqueles imigrantes. Da
análise das narrativas orais identificamos as principais características da identidade, atreladas
às disputas das elites política e intelectual em três momentos históricos, desenvolvidos por
nós no doutorado, a saber: Cabo Verde Portuguesa (1400-975); Reivindicação da
Independência (1956-975); Cabo Verde Independente (1975 em diante). A questão é saber
como os acontecimentos integram a estrutura simbólica nacional e, consequentemente, como
os imigrantes caboverdianos reconstroem as múltiplas identidades. Desta forma, procuramos
desvendar as implicações históricas da construção da nação que se dá a conhecer no presente,
a partir do exame das narrativas orais dos depoentes.

Palavras-chave: Memória; Identidade; Nação

Contextualização da Imigração Caboverdiana no Rio de Janeiro

Os imigrantes caboverdianos são provenientes do arquipélago de Cabo Verde,


constituído por dez ilhas e cinco ilhéus que perfazem uma superfície de apenas 4.033 km2,
situado em pleno Oceano Atlântico, especificamente, na encruzilhada dos continentes
africano, americano e europeu. No entanto, dispõe de um espaço marítimo que ultrapassa os
600.000 km2. As ilhas foram descobertas entre 1460 a 1462 por navegadores a serviço de
Portugal. Conforme a carta régia de 12 de junho de 1466, em 1462 iniciou-se o processo de
povoamento com povos oriundos, principalmente, da Europa e da África, sendo que a maioria
dos africanos entrou na condição de escravos. Diversos fatores propiciaram a emigração,
desde os fatores geográfico e climático – trata-se de um país marcado pela falta de chuva, pelo

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terreno montanhoso, pela seca – até fatores econômicos, políticos e demográficos, como a
pobreza, a agricultura de subsistência e, consequentemente, as fomes que até os anos de 1940
chegou a matar em média 40% da população local. Assim, a partir do século XVIII, a
emigração marcou as trajetórias dos caboverdianos. Por estas razões, atualmente, contamos
com uma média de 517 mil caboverdianos vivendo no exterior das ilhas, enquanto 475 mil
vivem no arquipélago, conforme estimativas do INE (2008).
De acordo com nossas investigações, os imigrantes instalaram-se no Rio de
Janeiro entre 1950 a 1973, à procura de melhores oportunidades de trabalho e moradia. No
entanto, na década de 70, constatamos o fechamento da corrente imigratória no Brasil, devido
ao processo da reivindicação da independência de Cabo Verde, culminado em 1975. Com
relação ao retorno, a maioria desses atores sociais não visitou a terra de origem, porém, os que
assim o fizeram foram em média uma a duas visitas num período compreendido entre 30 a 50
anos. Entretanto, reconstruam as várias fases das identidades nacionais, através das relações
sociais mantidas no novo espaço. Sendo assim, a análise das memórias nos permitirá resgatar
as características identitárias assumidas pelos imigrantes quando relatam as trajetórias de
vida.

Memória, Identidade e Nação

Memória e identidade constituem-se mutuamente em um processo contínuo de


construção e reconstrução do passado, encarnada nos marcos históricos sedimentados no
presente. Para Certeau (2002) quando o passado é evocado no presente, forma-se um sentido
por meio da compactação das experiências do passado, retirando-lhes as rugosidades e as
dobras, sendo que, as lembranças e os esquecimentos são apresentados em cuidadosa
narrativa sem que se perceba claramente a mão firme do artesão.
Podemos afirmar que, transformada em objeto de disputa, a memória e a
identidade evocam a representação do passado, no qual a primeira fornece substratos à
segunda. Basta lembrarmos como a preocupação com a memória oficial, é fundamental para
manter a unidade, a coesão e garantir os elementos necessários à afirmação de determinados
atores sociais. A este propósito, a memória é vista como suporte da identidade coletiva,
podendo ser analisada como um sistema onde se cruza todo o tipo de estruturas sociais,
culturais, religiosas, políticas e econômicas enquanto códigos de representação. Nesta direção,
importa acentuar a análise da memória como construção social, sujeita a mudança e
continuidade, apresentando-se como elo entre o passado, o presente e o futuro. É, assim, nesta

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dialética entre memória e identidade que situamos a reconstrução das identidades de


imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro, associadas à formação histórica da nação
caboverdiana, cujas fontes se estabeleceram em três momentos históricos, fontes essas, às
vezes, negadas, afirmadas ou negligenciadas pelas elites, e que reaparecem nas narrativas
orais dos entrevistados.
A partir da análise comparativa das histórias de vida com a historiografia
caboverdiana e portuguesa, mergulhamos num universo de informações que retratam as
diversas fases da construção da nação, emergindo assim, respostas sobre as identidades
assumidas pelos caboverdianos. Tais respostas derrubam a hipótese do conflito de identidade,
proveniente de alguns estudos carentes de comprovação científica. Além disso, nossa pesquisa
contradiz uma antiga visão do caboverdiano racista, que, supostamente estaria negando a
identidade africana, quando admite a identidade atlântica ou plural, derivado do
entrecruzamento de culturas diferentes. Entretanto, essa mesma visão não se percebe o quanto
racista ela se constitui, quando pretende silenciar as raízes portuguesas. De modo distinto,
partimos do pressuposto que o campo onde a ação política é materializada constitui-se de uma
dinâmica e existência que lhe são intrínsecas, em que coexistem o particular e o coletivo, a
curta e a longa duração, estabelecendo seus elos numa constante interconexão.
Neste sentido, passamos à descrição do Modelo Explicativo das Elites na
Construção da Nação Caboverdiana, formulado e desenvolvido no curso de Doutorado em
Memória Social da UNIRIO, que discute as identidades plurais, assumidas pelos
caboverdianos, cujas bases remontam as posições históricas do poder político. Partindo de um
olhar abrangente, analisamos a composição e atuação das elites caboverdianas, a fim de
melhor explorar a construção das identidades, cuja politização atingiu seu ápice, do ponto de
vista da história, no período pós-independência com o partido único -africano- (1975 a 1991),
e ao Movimento para a Democracia que a sucedeu (1991-2001). Nesta perspectiva,
demonstramos como o modelo explicativo das elites, calcado em seus valores, seus interesses,
suas estratégias e mecanismos de poder, influenciaram o processo da construção das
identidades. Este modelo se explica por se tratar de diversas mudanças políticas que o País
vem passando, após as primeiras eleições pluripartidárias em 1991, o que obriga as forças
políticas a se exporem e a se comprometerem, não só, com projetos nacionais, mas também,
com projetos internacionais.
A seguir, passamos a organização e sistematização do modelo explicativo das
elites sobre a construção da identidade nacional, conforme os momentos, a seguir:
1. Cabo Verde Portuguesa (1460 a 1975)

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2. Reivindicação da Independência (1956 a 1975)


3. Cabo Verde Independente (1975 em diante)

A constituição desses três momentos históricos está sempre em processo,


provocando mudanças sensíveis nas relações entre caboverdianos. É evidente que forjaram
historicamente as identidades assumidas pelos caboverdianos, a partir da disputa pela
consolidação da memória oficial. Neste caso, os caboverdianos tendem a assumir várias
posições identitárias, de acordo com a situação, posicionando-se ora como europeus, ora
como africanos, ora como atlânticos quando se isolam na imensidão das águas do oceano.
Com a mesma freqüência, esses três momentos políticos perpassam as histórias de vida dos
imigrantes e, constituem relações objetivas de identificações comuns, contraditórias e até de
disputas, o que não pressupomos conflito de identidade. Avançando em nossa observação de
campo, passamos à articulação do modelo explicativo das elites, a partir da descrição e análise
dos três momentos históricos, tendo em atenção os depoimentos orais dos entrevistados.
No primeiro momento, Cabo Verde Portuguesa (1460-1975), a elite política
reforça a autoridade central sobre a identidade da colônia, território inerente a Portugal por
direito de descoberta e povoamento, garantindo, assim, a legitimidade e o domínio do
arquipélago. Inicialmente, se constrói a afirmação do princípio da identidade portuguesa, em
oposição a outras formas de identidades, provenientes tanto da África como de outras partes
da Europa. Sendo assim, a identidade portuguesa passa a ser incorporada na memória dos
residentes, dando origem ao caboverdiano português. Mas, para que isso fosse viável, as
instituições trabalharam no sentido de controlar as identidades que não se enquadravam nos
parâmetros portugueses, controlando sistematicamente a memória individual e coletiva. Tal
controle fragmentou não só as raízes africanas, como também, as raízes de europeus não
portugueses.
De fato, uma vez rompido as barreiras étnicas e raciais, a elite política passou a
exercer melhor controle sobre o princípio da identidade portuguesa que, paulatinamente, foi
construindo a identidade mestiça, porém, modulada por valores europeus. Trata-se de um
momento especial da história caboverdiana, à medida que os grupos foram se harmonizando
em prol da unidade, coerência e continuidade da nação. Ao contrário, poderíamos estar
vivenciando a questão da busca de raízes de origem, o que, certamente, significaria um amplo
reconhecimento das formas próprias de cada grupo étnico, lutando pela preservação da sua
identidade ancestral. Não podemos ignorar que a reivindicação de raízes étnicas representa a
formação de grupos separatistas, que, de certa forma, dificulta a convivência de culturas

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diferentes. Neste sentido, reconhecemos e louvamos este momento da historiografia


caboverdiana, que forjou nos caboverdianos estratégias e elementos de memória, necessários
a identificação comum, independentemente da tonalidade da sua cor.
Partimos do princípio que a vivência portuguesa retida na memória dos
caboverdianos gerou uma cisão das raízes étnicas e, consequentemente, o distanciamento das
questões estritamente africanas. Tal distanciamento está embasado no processo de
mestiçagem, representado pela reconfiguração das várias identidades, embora esses sujeitos
preservam os traços singulares da europeidade. A revisão bibliográfica evidencia que a
mestiçagem está intimamente associada à dimensão política que visava aumentar a população
da Metrópole, através do cruzamento do branco com o negro, dando origem ao nascimento do
mulato. Assim, na teoria da época, o mulato daria suporte à continuidade do projeto de
civilização nas colônias portuguesas na África. Neste sentido, Lessa e Ruffiê (1960) salientam
que a formação do mestiço foi o único projeto verdadeiramente novo que existe nas raças
humanas contemporâneas e, foi de fundamental importância para a fixação da civilização
européia fora do território português. Na mesma direção, Moreira (1962) se refere à
caboverdianos como sendo a expressão mais perfeita do luso tropicalismo no mundo,
ressaltando que o caboverdiano é uma criação subordinada ao princípio da síntese das etnias,
tendo resultado no caboverdiano português. Com isso, os caboverdianos foram “desde sempre
um excelente vínculo difusor da cultura nacional, e devemos-lhe serviços inestimáveis no
aportuguesamento da Guiné, de Angola e de São Tomé” (Moreira, 1962:19). Ainda segundo
Moreira, o encontro do branco com o preto em Cabo Verde, ambos isolados de seus grupos de
nascimento, deu origem a uma síntese sem traumatismos que ainda não se encontra nos países
que alcançaram um alto patamar de riqueza e poderio.
Procurando, ao que parece, valorizar o mulato, o autor afirma que os
caboverdianos portugueses se encaravam como a elite imperial, tendo desempenhado
importantes funções nas instituições públicas do estado Português. O que se quer dizer é que é
preciso ter consciência da assimilação da identidade portuguesa na memória caboverdiana, e
que tal identidade deve estar sempre orientando os direcionamentos das trajetórias de vida dos
caboverdianos.
No segundo momento Reivindicação da Independência (1956-1975), uma pequena
parcela da elite caboverdiana, em oposição à portuguesa, se atrela ao projeto político
revolucionário do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)
fundado em 1956 por Amílcar Cabral. Além da luta armada para alcançar a liberdade e a
independência, pregava o retorno às raízes africanas, o que consistia na africanização do

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arquipélago em todas as suas dimensões, começando pela criação de um estado binacional,


através da unidade Cabo Verde-Guiné Bissau. Nesse caso, o retorno às raízes nos leva a
pressupor o silenciamento das memórias que fossem contrárias à ideologia do partido. Sendo
assim, a independência representaria o esquecimento dos quadros de referências da identidade
portuguesa, que se daria através da passagem da memória coletiva à memória oficial. Embora,
não concordamos com o direcionamento do partido africano, é válido pensar que sua
fundação marcou o início de um movimento político sem igual para a história caboverdiana.
Esse movimento teve como representação a adesão de dezenas de caboverdianos a um projeto
político, que se propôs como defensor da liberdade e, a única força política da nação.
A idéia de compreender a independência como um campo de interações entre as
forças políticas, nos possibilita entender a riqueza da dinâmica social na articulação das
tensões e negociações presentes nas relações de poder. Pois, a consolidação da independência,
ao contrário do discurso revolucionário, significou o alcance do ideário da reconstrução da
nação, além da inclusão de Portugal como parceira estratégica na resolução de problemas
internos deixados pela Coroa. Por outro lado, observemos que durante o projeto de unidade
Cabo Verde-Guiné Bissau, diversos conflitos entre os líderes partidários foram apaziguados,
em prol da independência. Porém, ao interrogarmos o projeto político, seus modos de
circulação e reprodução na sociedade caboverdiana, são possíveis compreender como a elite
intelectual reage à questão da identidade nacional.
Nesse cenário, as elites intelectuais caboverdiana e portuguesa se reuniram em
mesa redonda nas noites de 21 e 24 de julho de 1956, no Grêmio da cidade do Mindelo, ilha
de São Vicente, para buscar um entendimento viável sobre o perfil psicossocial do homem
caboverdiano, tendo como parâmetro a posição do mulato em relação às raças consideradas
inferiores no plano da antropologia. É evidente, que esse grupo surge como força
intermediária, à medida que procura elucidar as raízes européias na constituição da identidade
caboverdiana. Nesse ponto, constituiu superfícies de inscrições da continuidade, coesão,
coerência e unidade nacional. Embora, a maioria dos intelectuais tenha demonstrado a
preferência de sangue português em nível genético e cultural, reconheceram as contribuições
africanas na formação da nação. Neste encontro, foi debatida a questão de caboverdianos
como “mestiços portugueses”, que segundo os escritos do Padre Labat, em 1730, são
portugueses de três cores: “blancs, noirs e banzanés”. (Lessa e Ruffiê, 1960).

Adotando o método de debate, esses intelectuais constataram que o caboverdiano


apresenta em média 35% de sangue português e o restante de origem oeste-africana. Porém, o

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português Aníbal Lopes da Silva, chefe da missão seroantropológica, considerou que embora
não se constatou a predominância de sangue português, o caboverdiano é “um povo
absolutamente integrado na civilização ocidental e é, e assim se considera absolutamente
português pelo pensamento” (Silva, 1960: 95). Por outro lado, alguns debatedores ao
focalizarem os estudos de Chevalier (1935), contrapuseram a predominância de sangue negro,
afirmando que os caboverdianos têm na sua maioria sangue português. Mas, não pensam em
português, à medida que são pouco empreendedores, se expatriam com facilidade e, mais
facilmente regressam a Cabo Verde.

Daniel Tavares (1960) evidenciou a aristocratização na constituição da identidade


do caboverdiano português. Para ele, o caboverdiano tem na sua identidade um elemento
aristocrata na sua ascendência – o português – pois, orgulham-se de ser filho ou neto de
qualquer português, independente da sua origem, ou seja, “qualquer que seja a sua origem, é
um aristocrata na família caboverdiana. Nós imitamos o europeu sob todos os pontos de
vistas” (Tavares, 1960: 122). Para Tavares, ter um filho branco é a expressão máxima da
aristocratização, pois é “a sua máxima aspiração, e esse desejo de ter um filho aristocrata pode
enganar o indivíduo que cá aparece” (idem).

Observemos que o direcionamento africano para Cabo Verde se esbarra na


constatação de uma identidade singular, solidamente constituída em seu processo histórico,
através do cruzamento das raças branca e negra, o que provocou a sessão das raízes
etnoculturais, que, por si só, inviabilizaria o tão almejado projeto do partido africano.

O terceiro momento Cabo Verde Independente (1975 em diante) ocorre à


materialização da independência, em 1975, pela elite caboverdiana, tendo ascendido ao poder
político o Primeiro Ministro Pedro Pires e o Presidente da República Aristides Pereira, ambos
proveniente do partido africano, porém, de postura moderada em relação ao projeto
revolucionário de Amílcar Cabral assassinado em 1973. A análise da cena política mostra
claramente que os governantes caboverdiano e guineense manipularam suas identidades
nacionais, através da aceitação parcial dos laços surgidos da possibilidade da fundação de um
estado binacional. Assim, por algum tempo tiveram o mesmo hino e uma bandeira em comum
(ilustração 1).

Ilustração 1
Bandeira de Cabo Verde (1975-1991).

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Arquivo: Jorge Candeia.


Legenda: vermelha, inscrita com uma estrela negra, uma concha e duas espigas de milho;
amarela e verde.
No entanto, as tomadas de posições divergentes passaram a fazer parte da pauta
política, após o golpe de estado na Guiné Bissau em 1980. Tal golpe levou os governantes
caboverdianos a romperem com o projeto de unidade, tendo proclamado a fundação do
Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) em 1981. Esta situação passou a
representar na memória caboverdiana, o rompimento dos laços forjados durante a luta armada
pela independência. Alguns autores aludem que o passado histórico entre os dois países
induzia a existência de dois gêmeos autênticos, porém os direcionamentos políticos e
econômicos tão distintos levaram a percebê-los como falsos gêmeos. Pois, enquanto Guiné
Bissau mantinha fortes disputas internas, Cabo Verde, ao contrário, aproveitava a experiência
política para trilhar sua própria estratégia no campo das relações internacionais, visando à
superação dos problemas atinentes ao arquipélago. Assim, desde o início, procurou
estabelecer relações diplomáticas com outros países em busca da mais-valia. Neste aspecto,
percebemos que após a implantação da Segunda República em 1975, o plano de unidade foi
perdendo a sua força, embora a ideologia do partido africano permaneça viva e é,
parcialmente, reconstruída pelos militantes que se organizam em várias partes do arquipélago.
Assim, podemos dizer que a memória do partido vem sendo ressignificada ao longo dos
tempos, considerando-se cada militante um portador da história do grupo. Os novos elementos
procuram à integração nas releituras do partido ou nas lembranças dos militantes pioneiros,
considerados os depositários da memória da independência.

No âmbito das primeiras eleições pluripartidárias em 1991, o PAICV sofreu uma


derrota esmagadora, seguida da segunda em 1995. Esse momento histórico, marcado pela
ascensão da oposição do Movimento Para Democracia (MPD) que levou Carlos Veiga à
Primeiro Ministro e António Mascarenhas à Presidente da República, como independente.
Este momento histórico reduziu drasticamente o número de deputados do partido africano,
tendo o novo governo proclamado a Terceira República. Visando a construção da sua base de
poder, a maioria dos deputados nacionais aprovou a substituição do hino nacional e da
bandeira, símbolos esses, considerados fortemente atrelados à filosofia do partido africano, o
que não ia de encontro a representação das identidades. Nesta direção, foram instituídos novos
símbolos que representassem todos caboverdianos, independente dos grupos partidários. Esta
situação acelerou, ainda mais, a separação do projeto de unidade Cabo Verde-Guiné Bissau, à

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medida que a bandeira da República de Cabo Verde assumiu novas proporções, digamos
europeísta, conforme a ilustração 2.

Ilustração 2
Bandeira Caboverdiana (1992 em diante)
Arquivo: Antonio Martins.

Legenda: Azul, branca, vermelha, branca, azul, sendo


que as cores são perpassadas por 10 estrelas amarelas
(dez ilhas), em substituição a estrela negra “África”,
comentário de Artur Bento.

Assim como Barth (1978), a compreensão de uma determinada força social deve
ser realizada a partir da atuação concreta dos agentes sociais envolvidos na institucionalização
naquela memória. Para ele, dependendo da sociedade abordada, os atores podem ser os grupos
do processo, mas também, poderão se referir os indivíduos sem vínculos com a memória em
disputa, nos quais seja possível perceber processos de tomada de decisões. Aqui, “as decisões
tomadas pelos atores e as conseqüências das mesmas serão responsáveis por desenhar um
padrão agregado dessas ações, que junto aos padrões dos demais atores sociais é responsável
pelo surgimento de uma determinada forma social” (Barth, 1981, apud Comissoli, 2007: 6-7).

Sua reflexão volta-se, portanto, para os processos decisórios, considerados


momentos em que os atores percebem em conflitos por opções, ou seja, momentos em que são
forçados a escolherem entre uma ou várias alternativas. De fato, a escolha deve-se a estímulos
e constrangimentos a que os atores estão expostos e, dependendo da opção, poderá
comprometer os direitos e deveres que constituem o status. Pois, o status implica que as
decisões estejam atreladas a deveres que garantem que os agentes continuam se desfrutando
de direitos. Neste sentido, quando o ator se vê “constrangido a fazer uma escolha, ele acaba
por revelar seu status, e, os direitos e deveres que formam seus vínculos com a sociedade, ao
mesmo tempo procura resguardar seus interesses, isto é, maximizar seus valores” (Barth,
1981, apud Comissoli, 2007: 7). Para Comissoli, maximizar valores acarreta perpetuar esses
valores, isto é, alcançar aquilo que o ator considera ganho e minimizar as perdas, ou as
chances de perda. Portanto, à necessidade de tomar decisões, implica que os atores sociais
procuram proteger seus interesses, minimizando perdas, maximizando ganhos, enfim,
concretizando valores. Nesta perspectiva, notemos que por meio desses recursos “perda”,

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“ganhos” e “status” que podemos reconstruir as relações das elites caboverdianas e,


consequentemente, perceber a memória em disputa, que perpassa a identidade plural,
assumida não só pelos imigrantes caboverdianos, mas também, pelos residentes nas ilhas.

Como vemos, a memória e a identidade se mostram como espaço em disputa,


dentro do qual se articulam o poder, a cooperação e as relações sociais. Assim, percebemos
que o desenrolar da história caboverdiana vem demonstrando a afirmação de valores que se
apresentam de forma conflitante, impulsionados pelas várias fases da trajetória histórica de
Cabo Verde. O fato de podermos falar de uma pluralidade de identidades tais como
caboverdiano, caboverdiano português, africano, brasileiro, caboverdiano brasileiro, ou, a
mistura desses elementos, tornou foco de referência nos relatos dos entrevistados. Neste
sentido, o imigrante é aquele que melhor vivencia a ambigüidade de ser ou não ser brasileiro;
de ser ou não ser português; de ser ou não ser caboverdiano, de ser ou não ser africano. De
fato, esta ambigüidade adquire variações no decorrer das narrativas quando procuramos
elucidar o modo como esses indivíduos se identificam. O que primeiro se destaca nas
narrativas orais é o trabalho de seleção das identidades que age em função das trajetórias
históricas reconhecíveis no processo de institucionalização da memória oficial. Neste caso, a
Sra. Aida Gote, 69 anos, imigrante de 1960, narra que “como caboverdiana e brasileira
também, porque tenho mais tempo do Brasil do que de Cabo Verde” (entrevista, 2007).

Assumindo o estudo da memória social como fundamental para compreendermos


a identidade plural, Cabo Verde e Rio de Janeiro são destacados como eixos de representação
identitária. Assim, como resultado da consciência da construção histórica das identidades, a
Sra. Ana da Silva, 72 anos, imigrante desde 1960, ao ser perguntado como se identifica,
afirma que “eu identifico como uma brasileira porque sou naturalizada, e caboverdiana porque
mesmo que eu não quero falar que sou caboverdiana, as pessoas conhecem pelo meu sotaque,
então eu me identifico como caboverdiana também” (entrevista, 2007). Visando a elucidação
das identidades, o Sr.Manuel Gote, 76 anos, imigrante de 1956, em seu depoimento a respeito
de portugueses pretos, ele conta que “porque naquela época, nós os caboverdianos éramos
portugueses, a nossa carteira de identidade é português mesmo; porque naquela época não
tinha Cabo Verde, mas sim Portugal, depois é que tornou Cabo Verde independente”
(entrevista, 2007).

A um primeiro olhar, são esses elementos relacionados à identidade de um


caboverdiano português que são reconstruídas quando se relacionam com a sociedade
brasileira. De fato, esse processo prioriza a identidade mestiça em sua constituição histórica,

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como forma de organização das relações sociais, mas silencia as raízes da identidade africana.
Nesta direção, Pollak (1989), considerando a teoria que norteia o lembrar e o esquecer,
enfatiza que o silêncio tem, por vezes, razões muito complexas, e, algumas vezes, às causas
políticas somam-se as causas individuais e sociais. Daí a versão do lembrar e esquecer se
fundamenta no caráter seletivo da memória. Portanto, nem tudo é lembrado, pois, fica o que é
significativo para o grupo. Assim, pressupomos que o silêncio pontuado nos relatos a respeito
da identidade africana, pode significar uma estratégia que tende a preservar a memória do
branqueamento, tendo em conta que a categoria branca passou a ser atribuído a qualquer
caboverdiano, independente da tonalidade da sua cor, à medida que ascendia socialmente,
financeiramente e intelectualmente na sociedade. Por outro lado, pode representar versões
oficiais da superação da questão racial, quando dizem que a escravidão foi superada sem
traumatismos de cor.

De qualquer forma, para captarmos a identidade de um povo, devemos


compreender o processo de produção das identidades, inseridas no contexto das relações
sociais e das lutas ideológicas das elites política e intelectual. Sendo assim, acreditamos estar
ai, nesse entendimento linear da caboverdianidade. A nosso ver, em hipótese alguma,
podemos atribuir caráter científico a um estudo sobre identidade caboverdiana, que não leva
em consideração as raízes portuguesas e, por seu valor insubstituível como testemunho do
passado, que constitui recursos valiosos para o conhecimento da história de Cabo Verde em
sua dimensão política, econômica, social, cultural e religiosa. Como já dissemos, desejar que
o caboverdiano assuma a identidade africana, negando a européia, é, no mínimo, ridicularizar
a construção da nação caboverdiana. Nesta direção, acreditamos que a opção mais razoável e
conciliadora no entendimento da identidade caboverdiana passa pela mestiçagem, porque ela
foi a responsável pelo entrelaçamento entre europeus e africanos, e, pela dissolução das
barreiras raciais que vieram a proporcionar a harmonia entre os grupos. De fato, trata-se de
questões que vão além dos posicionamentos assumidos pelas elites, mas ecoa como um
desafio presente na pesquisa de doutoramento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FENART, Jocelyne. Teoria da etniticidade, seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de
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UM QUEBRA-CABEÇA ESQUECIDO: A PERFORMANCE DA AESI


EM ARES ACADÊMICO (1971-1988)

Gislaine Santos Carvalho – UFS

O presente trabalho tem como objetivo expor a atuação dos órgãos de segurança, a partir de
seus desdobramentos em Sergipe no decurso da Ditadura Militar. É inquestionável a presença
militar nas universidades, através da sua rede de informação, todavia ao longo da
historiografia pouco se pesquisou de que forma tal presença se consolidou, como é o caso, por
exemplo, das AESI´s nas instituições federais. E particularmente como essa assessoria
funcionou junto à UFS no período entre 1971-1988. Nessa perspectiva, este trabalho pretende
traçar um panorama da performance das assessorias de informação de modo a perceber os
seus mecanismos de espionagem e repressão sobre estudantes, professores e funcionários.
Além do uso das fontes documentais expedidas pela Assessoria de Segurança e Informação –
AESI/UFS – a grande chamada da pesquisa é o resgate da memória daqueles que vivenciaram
a UFS vigiada no período estudado.

Palavras-chave: História, Ditadura Militar, Rede de Informação, Repressão, Sergipe

Pesquisar a atuação do aparelho militar no Estado brasileiro é tida como uma


tarefa quase que impossível, a luta pela abertura dos Arquivos da Ditadura Militar explicita
bem a problemática. Dados perdidos ou impedidos de serem consultados? Independente da
resposta, o certo é que a atuação da rede de informação, liderada pelo SNI e,
conseqüentemente, de seus tentáculos as DSI´s e as AESI´s, são informações pertencentes a
uma caixa-preta.
AESI ainda é um tema tabu, pouco conhecido, e relegado pela própria UFS cuja
comemoração dos 40 anos não foi o suficiente para rememorá-la. A documentação sobre a
AESI/DSI, órgão instituído pelo Conselho Universitário desta Universidade, parece não
existir. Se procurarmos as correspondências entre a assessoria e os diversos setores da UFS
entre 1971 a 1988, perceberemos que a sua documentação é uma raridade, encontrada uma
vez ou outra entre o vasto acervo documental do AGUFS nas pastas das Ciências Humanas

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(Educação, História) e do Gabinete do Reitor e Vice-Reitor ou espalhados pelos


departamentos dos cursos.
Todavia, o acesso restrito à documentação deste período não foi o suficiente para
minimizar a ânsia pela caça aos arquivos. Na historiografia, poucas são as pesquisas que
esmiúçam as especificidades dos órgãos de informação e repressão da ditadura. O lançamento
de duas obras, nos últimos anos, instigou ainda mais o desejo de se navegar nos porões da
ditadura através dos arquivos do SNI e suas abrangências, DSI e AESI.
O historiador Carlos Fico647 e o jornalista Lucas Figueiredo648 são os
“desbravadores” que conseguiram dialogar e, até certo ponto, revelar facetas da SNI. Por
caminhos diferentes, porém com o mesmo objetivo, revelam pontos obscuros até
desconhecidos pela sociedade, tornando-se referências de peso acerca da temática. Em âmbito
local, os autores sergipanos, Ibarê Dantas e Ariosvaldo Figueiredo, mencionam
superficialmente as investidas dos órgãos de informação e repressão do governo militar,
todavia pesquisas futuras precisam pincelar suas respectivas obras.
É com este ensejo, que o presente trabalho se predispõe a formular uma breve
análise da atuação da AESI sobre os estudantes da Universidade Federal de Sergipe no
período de 1971-1988. Destarte, mencionaram-se aspectos importantes que caracterizam a
instauração da rede de informação no Brasil no contexto da ditadura militar, período em que
discurso salvacionista do golpe instaurado de que era necessário livrá-lo dos males que o
corroíam: a corrupção e a subversão. No entanto, a relevância da expressão “rede de
informação” só é compreendida quando se traça a performance do Sistema Nacional de
Informação – SNI – e de seus tentáculos, DSI e AESI.
Sob as diretrizes da Segurança Nacional, ideologia importada da experiência
americana, “a intervenção militar aparece na esfera política como legítima e necessária para a
preservação dos interesses maiores da nação: a ordem institucional” o que supostamente
reforçaria a democracia brasileira649. E eis aí que entra a importância da circularidade de
informações.
Obra - prima do general Golbery do Couto e Silva, o monstro SNI, comumente
conhecido, era um órgão federal que tinha como objetivo supervisionar e coordenar as

647
FICO, Carlos. Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política.
Rio de Janeiro: Record, 2004.
648
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula: 1927-2005. RJ: Record, 2005.
649
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge &
DELGADO, Lucilia A. Neves. Brasil Republicano: o Tempo da Ditadura - Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006, pp. 13 - 42.

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atividades de informações e contra-informações em todo o território nacional. A ele cabia


assessorar o presidente da República no que concerne aos aparelhos estatais. Já que em cada
em cada ministério poderíamos encontrar a Divisão de Segurança Interna (DSI) e nos demais
órgãos públicos, a Assessoria de Segurança e Informações (ASI). Estas divisões tinham como
missão observar e denunciar qualquer pessoa que fosse considerada uma ameaça à segurança
nacional.
Outrossim, também era o órgão formador do pessoal do quadro de inteligência do
país. Na década de 70 foi criada a Escola Nacional de Informação – ESNI – onde o candidato
aprendia línguas estrangeiras, doutrinas políticas, história, e mantinha-se conectado com todo
o corpo operacional da área de informação. Desta maneira, nada passava sem o controle do
SNI e suas prerrogativas aumentavam conforme crescia a oposição no Brasil. Ou seja, os seus
tentáculos estariam nos quatro cantos do país com os ouvidos e olhos bem abertos.
Em Sergipe, a presença dos órgãos de segurança e informação do regime militar
se fez presente desde a deflagração do golpe. Os governadores sergipanos sob a sombra do
Alto Comando Revolucionário, composto pelos respectivos comandantes do 28º BC, da 19ª
CSM e da Capitania dos Portos IV Exército sediado em Recife. Nada escaparia à vigilância
das forças militares: sob contínuo controle e aqueles que tiveram um mínimo de participação
política e não eram presos passava a viver na insegurança, sujeitos a serem, a qualquer
momento, alvos da sanha dos delatores que proliferaram em todos os setores650.
Inaugurada em 15 de maio de 1968, a Universidade Federal de Sergipe nasce no
período em que a ditadura militar assumiria sua fase mais violenta com o aval do AI-5. Sua
implantação ocorre no contexto da Reforma Universitária que remodelava o sistema
universitário do país realizado pelo governo de Costa e Silva que, dentre outras mudanças,
previa: a criação de departamentos e o fim do sistema tradicional de cátedra, o sistema de
créditos e medidas de caráter disciplinar, tais como uma maior restrição à participação
estudantil nos processos de decisões internas da universidade651.
A fase de vigilância e repressão que sufocaria a oposição também atingiria a
universidade. A recém criada instituição sofreu as pressões das autoridades militares e, viveu
dias turbulentos sob fogo o cruzado dos seus órgãos repressivos com representação no Estado:
da 6ª Região Militar, do Departamento de Polícia Federal e da Divisão de Segurança e

650
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004,
p.174.
651
Sobre maiores detalhes acerca do projeto da Reforma Universitária de 64, consultar CUNHA, Luiz Antônio;
Góes, Moacyr de. O Golpe na Educação. 11° edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.

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Informações (e mais a frente como veremos pela AESI) do MEC652. À exemplo do que
acontecia em outras universidades653 no Brasil a presença do aparato militar no meio
acadêmico tornar-se-ia uma constante.
A imposição da comunidade de informação nos órgãos públicos tinha como alvo,
principalmente, as universidades, classificadas pelas autoridades militares como “áreas de
potencial subversão”654. Aliás, esta expressão diz muito sobre a resistência estudantil nas
universidades frente ao regime militar. E, os estudantes sergipanos não fugiam à regra. No
contexto nacional, a mobilização estudantil universitária estava a todo vapor no calor,
influenciados também, pelos acontecimentos do ano de 1968, marco na história mundial.
Assim como no resto do mundo, no Brasil as manifestações de protesto ganharam
proporções consideráveis ao ponto de serem violentamente reprimidas, provocando as reações
de diversos setores da sociedade contra a agressão policial e o sistema autoritário e repressivo.
Nesses anos, os estudantes se reorganizaram em cada faculdade, universidade ou mesmo
escola secundaria, reivindicando mais vagas e melhores condições de ensino, reestruturando
suas entidades e realizando congressos. Sucediam-se greves, ocupações e passeatas.
Na verdade, podemos pensar a inserção de órgãos de informações como a AESI
nas universidades como complemento à tarefa de controle sob os estudantes já que medidas
vinham sendo implementadas visando frear a mobilização estudantil contra o Regime Militar.
Exemplo é a Lei Suplicy e o decreto nº 477. A primeira, aprovada pelo Congresso em
novembro de 1964, apelidada de “lei do suplício” em homenagem a seu mentor o ministro da
Educação da época, Flávio Suplicy de Lacerda, extinguia a UNE e vedava às representações
estudantis qualquer manifestação de caráter político-partidário 655.
O decreto nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, versava acerca das infrações
disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de
estabelecimentos de ensino público ou particular. Portanto, vê-se que o movimento estudantil
estava de mãos atadas. Os DA´s estavam sob permanente controle, cada passo era monitorado

652
DANTAS, Ibarê. Op.cit. p. 101.
653
Cf. CLEMENTE, José Eduardo Ferraz. Perseguições, espionagem e resistência: o Instituto de Física da
Universidade Federal da Bahia durante a ditadura militar (1964 – 1979). In: Revista da SBHC, Rio de Janeiro:
v. 4, n. 2, jul - dez 2006, p. 145-145 e CHRISPINIANO, José, PICANÇO, Marcy e GONZALEZ, Marina. Filha
Bastarda da USP, AESI desempenhou diferentes papéis na repressão interna. In: Revista ADUSP, São Paulo:
out, 2004, pp. 37- 48.
654
Expressão usada pelos ideólogos da Doutrina da Segurança Nacional. MARTINS FILHO, João Roberto.
Movimento Estudantil e Ditadura Militar 1964/1968. Campinas, 1987, p. 86.
655
Sobre os decretos e atuação estudantil neste período Cf. MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento
Estudantil e Ditadura Militar, 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987 e POERNER, A.J. O poder jovem. 2.ed.
Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 1979.

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- atividades, balanço financeiro, eleições, termo de posse, constituição de chapa, votação –


tudo passava primeiro pelo diretor de cada Centro e depois enviado era ao Reitor656.
Situações como estas só corroboraram a necessidade de vigiar a rotina
universitária, afastar do mundo acadêmico assuntos ou práticas considerados subversivos. A
“comunidade de informações”, comandada pelo SNI, também estaria presente na UFS, estaria
em vigilância permanentemente com “os olhos e os ouvidos” dos militares atentos, ainda que
invisíveis a olho nu, a qualquer indício de comportamento suspeito. O objetivo era vigiar,
punir e eliminar os opositores do regime a fim de assegurar a todo custo a Segurança
Nacional.
E, eis a função dada às Divisões de Segurança e Informações (DSI), criadas em
1967, as quais se inseririam dentro dos ministérios, e as suas Assessorias Especiais de
Segurança e Informação (AESI), atuando nas empresas estatais e autarquias, principalmente,
nas universidades. As respectivas estariam em todos os órgãos do Estado cujo papel seria
além de selecionar funcionários, em especial professores, controlar suas respectivas
atividades, colhendo e repassando ao SNI aquelas informações que pudessem ser de caráter
subversivo.
As AESIs, instaladas nas universidades, eram atreladas diretamente aos gabinetes
das suas respectivas reitorias, por sua vez conectadas à Divisão de Segurança e Inteligência do
Ministério da Educação e Cultura (DSI-MEC), cujos passos a SNI delineavam. Por meio desta
ramificação direta da ‘comunidade de informação’, formou-se uma ampla rede de
espionagens, informações e investigações no espaço universitário onde se implantaram657.
Na Universidade Federal de Sergipe, a AESI foi criada oficialmente em 06 de
agosto de 1971 sob Resolução nº16/71 do CONSU658, decretada pelo então Vice-Reitor Luiz
Bispo Aqui cabe uma ressalva. O pleito foi apreciado pelo vice-reitor em função do Reitor
João Cardoso do Nascimento, conforme consta em ata, ter viajado à Brasília para tratar de
assuntos relacionados à universidade659.
Embora fosse uma determinação do governo federal, a aprovação da Proposição
nº 04/1971, Proposta de Criação da Assessoria Especial de Segurança e Informações da UFS e
Ante-Projeto do Regimento Interno, gerou polêmica entre seus conselheiros. As discussões
circundavam quanto à competência de se aprovar a AESI na citada instituição: era

656
Caso se desejar ter acesso a tais documentos procurar no AGUFS ou no arquivo documental do DALH.
657
Detalhes sobre a estrutura da DSI / AESI, cf. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001
e FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula: 1927-2005. RJ: Record, 2005.
658
Resolução nº16/71 do CONSU de 06 de agosto de 1971.
659
Ata de Sessão Ordinária do CONSU, 30 de julho de 1971, fl. 01.

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competência do CONSU ou cabia ao Reitor da respectiva universidade? As opiniões


divergiam. Seriam necessárias duas reuniões do Conselho Universitário para atestar as
atividades da Assessoria no meio acadêmico.
Conforme instrução estatutária, à Reitoria caberia “propor a criação, agregação,
incorporação, modificação ou extinção da Unidade, de Órgão Suplementar, e ainda de
660
Unidades adminstrativas” enquanto que ao CONSU, instância deliberativa, aprovar as
propostas colocadas pela Reitoria sobre a instalação de órgãos Suplementares ou
Adminstrativos661. No entanto, ao longo do ponto de pauta um fato chamou atenção: em
momento algum, e faz-se referência às duas reuniões do CONSU, o vice-reitor, Luiz Bispo, se
posicionou quanto à polêmica instaurada. Sabiamente, apresentou a proposição e deixou a
cargo dos respectivos conselheiros, sem emitir nenhuma interferência às argumentações
propostas, decidir pelo pleito da respectiva matéria.
Divergências superadas, a Assessoria de Segurança e Informação passou a fazer
parte da estrutura adminstrativa como atesta o Regimento Interno da UFS da década de 70:

Art.90 – A Assessoria de Segurança e Informação destina-se a prestar


assistência direta ao Reitor em assuntos pertinentes à Segurança Nacional, à
mobilização e às informações, no âmbito da Universidade. Como integrante
do Sistema Setorial de Informação do MEC, está sujeita à orientação
normativa, à supervisão técnica e à fiscalização especifica da DSI.
Art. 91- O chefe da ASI será escolhido e designado pelo Reitor, obedecida às
exigências legais662.

Mesmo antes da instalação da sua assessoria, a UFS já vinha sendo vigiada. A


instalação da AESI/UFS ocorreu na gestão do Reitor João Cardoso do Nascimento. Foi um
período conturbado para o Reitor que antes mesmo da chegada deste órgão federal já
enfrentava, cotidianamente, pressão política dos militares representados pelo 28º BC e do
MEC, pela DSI que o cobravam inspeções a professores, alunos e funcionários, enviando
listas de livros considerados subversivos663.
Comprova-se este fato com o ofício nº 24-E/2 de 13 de fevereiro de 1969 recebido
pelo Reitor João Cardoso do Nascimento procedente do Comando da 6ª Região Militar na
qual trazia anexa a relação de 32 alunos da UFS acusados de participar da agitação de1968
(passeatas, reuniões e comícios). A correspondência oficial não explicitava a ordem para

660
Estatuto da UFS, 1971, art.55, alínea f.
661
Estatuto da UFS, 1971, art. 62, alíneas: a, g.
662
Regimento Interno da UFS, s/d, fl. 19 – 20 in: Arquivo UFS, Fundo: UFS/PROEX – 21.
663
Cf. DANTAS, Ibarê. Op. Cit. p.106.

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expulsar os alunos, contudo os militares faziam questão que as autoridades civis, no caso a
Reitoria, assumissem suas responsabilidades pela repressão.
A “punição” designada pelo reitor para com os estudantes veio por meio da
portaria “ad referendum” do Conselho Universitário que suspendia os estudantes do exercício
das funções que estivessem ou exercendo representação no Corpo discente da Universidade
(eleições estudantis)664. Tal fato mostra a existência de impasses entre a interferência militar e
os gerenciadores da instituição que, por vezes, se mostrava predisposta a “defender” os
estudantes. No entanto, ressalva que era um relacionamento difícil entre a reitoria e o
Movimento Estudantil.
A produção de informações se efetivou, e se tornaria habitual nos expedientes do
setor adminstrativo, com a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), a qual
funcionaria no gabinete da Reitoria, evidenciada nos ofícios expedidos e recebidos. O prédio
da Reitoria, nesta época, se localizava no centro de Aracaju, na Rua de Lagarto, onde hoje
funciona o prédio da FAPESE.
De lá, o seu chefe ou assessor mantinha contatos com os Centros e demais setores
da Universidade aos quais solicitaria informações sobre as movimentações de alunos e
professores quanto à participação política e posição ideológica, enviadas a DSI em Brasília.
Durante seu período de existência até a sua extinção em 1982, a AESI/UFS teve
dois efetivos assessores nomeados: Hélio Leão (1972 -1975) e o Coronel José Brito da
665
Silveira (1976- 1977) , sendo que após este último, a AESI ficou inativa666. A partir de
então, a estrutura da Assessoria ficou somente no MEC, passando a funcionar no
DEMEC/FAPESE – Delegacia do MEC – que funcionaria no antigo prédio da reitoria,
localizado no Centro de Aracaju, já que a parte adminstrativa da UFS foi transferida para o
atual Campus Universitário 667.
Em novo endereço, porém cumprindo as mesmas funções, a Assessoria de
Segurança e Informações foi reativada tendo na chefia, o militar da reserva, Amintas Viera
Machado, em 1987, cuja secretária Ivanilde Santana de Souza, assume a chefia do setor em

664
IDEM, pp. 100-106. Os citados ofícios encontram-se no Arquivo Geral da UFS ou podem ser consultados na
monografia CARVALHO, Adriana Melo. Universidade Vigiada: Documentos para a História da Ditadura
Militar na UFS (1969-1977). UFS: DHI, 2005. (Monografia).
665
Dados extraídos do livro de DANTAS, IBARÊ. A Tutela Militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e
eleições num estado autoritário. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1997, pp.132-133. Todavia, tais informações foram
confirmadas em entrevistas com pessoas ligadas a AESI, expostas no capítulo seguinte.
666
Aliás, no ano de 1985, um decreto federal extinguiria as assessorias das universidades, contudo no caso
específico da implantada na UFS continuou a vigorar até meados dos anos 90. A documentação referente a este
momento de transição encontra-se sob a guarda da DEMEC, ainda localizada na FAPESE.
667
Entrevista concedida por Ivanilde Santana de Souza em 08/08/08.

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1988. Os assessores eram indicados pelo Reitor e, obviamente, aprovados pela DSI, no
entanto, não pertenciam ao quadro de funcionários da universidade. Hélio Leão, funcionário
via cargo comissionado, e o coronel José Brito da Silveira, militar reformado do 28º BC
ascenderam ao cargo de chefia da AESI por convite dos Reitores da época, João Cardoso do
Nascimento e Luiz Bispo. Ao contrário destes, os seus respectivos secretários eram
funcionários da própria instituição, Walter Carvalho Mendes e Ivanilde Santana de Souza
perfazendo, assim a sua estrutura.
O sigilo sem dúvida nenhuma é o sobrenome deste tentáculo da SNI em Sergipe
cujas informações ainda se encontram bem guardadas. Quando dizem que um documento se
bem explorado, pode muito dizer basta observar os documentos da AESI. Ainda que raros
dentre a vasta documentação existente no AGUFS, os ofícios originários da AESI explicitam
suas peculiaridades: tais ofícios sempre vinham atestados com um carimbo com o nome da
universidade/assessoria e a classificação de sigilo “CONFIDENCIAL” ou “RESERVADO”
quanto ao assunto, ambos em tom vermelho sangue. A tonalidade poder-se-ia considerar uma
ironia já que a cor vermelha é assinalada como símbolo do comunismo e, a partir disto,
deduz-se que a intenção era sinalizar que o assunto era de caráter emergencial668.
A produção de informações supunha uma rotina bastante regulamentada, que
atribuía classificações quanto à fideginidade e veracidade das fontes e normas rígidas de
sigilo, basta observa os carimbos, também em vermelho, em que constava o seguinte aviso:
“O destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento. (art. 62 - Dec.
64.417/67. Regulamento para salvaguarda de assuntos sigilosos” ou a “Revolução de 64 é
irreversível e consolidará a Democracia no Brasil” 669.
Mas a que tipo de informação tanto se referiu? Uma das mais almejadas pela
AESI era o levantamento de dados biográficos – LDB - uma ficha em que se indicava o perfil
ideológico e as atividades políticas da pessoa investigada, fosse estudante, funcionário ou
professor, indispensável à nomeação de alguém para um cargo público. Sob o argumento de
manter o perfeito entrosamento entre a assessoria e os respectivos Institutos da Universidade
solicitava-se:

668
Tais características podem ser vistas nos ofícios anexados.
669
Característica encontrada no Ofício da Assessoria Especial de Segurança e Informações para a Diretoria do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, profª Maria da Glória Costa Monteiro. [Aracaju], 09 de novembro de
1972, 1 fl. A fim de confirmar que a produção de informações pela AESI/DSI seguia um padrão vigorado em
todo país recomenda-se consultar FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 95-105.

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a) Comunicar por ofício as chapas registradas com os nomes e os


candidatos à cargo de direção no Diretório Acadêmico, somente
determinando data da eleição após aprovação pelos órgãos de segurança;
b) Remeter impreterivelmente logo após o Término das inscrições do
concurso para professores, Curriculum Vitae dos mesmos, não
esquecendo de exigir, que o chefe da Secretaria verifique antes da
inscrição se constam todos de qualificação do candidato.
c) Comunicar a esta AESI, os professores eleitos para chefia e sub-chefia
de Departamentos, com inicio e término imediato do mandato670.

O pronto atendimento de tais informações era indispensável. Enfatizavam que as


atividades da AESI se encaminhavam de forma eficiente e positiva, se houvesse a valiosa
colaboração recebida das Direções das unidades e outros setores da UFS. No entanto, fazia-se
necessário ter atenção com a omissão e atraso dos dados solicitados em que, por muitas vezes,
diziam prejudicar os prazos de remessa desta Assessoria ao seu Órgão Superior671. Ou seja, o
protelamento no repasse dos dados implicava na liberação dos “investigados” para assumir os
respectivos cargos almejados672.
Como já frisado, a documentação referente ao expediente da ASI na universidade
é raríssima, todavia, os encontrados indiciam que a vigilância era intensa, e também fonte
importante para perceber a intensa mobilização estudantil dentro da universidade. Um ofício
expedido em março de 1974 à diretora de Educação demonstra bem a preocupação da
comunicação de docentes e discentes com os ideários comunistas como segue na mensagem
emitida:

Esta assessoria solicita a gentiliza de V. Sª., no sentido de nos informar com


urgência o seguinte:
a)Confirmar, ou não, se o Diretório Acadêmico desta unidade está recebendo
publicações oriundas da Cortina de Ferro, bem como se existem, também
programações estudantis, tendo como premio viagens à Rússia.
b)Caso positivo, dizer o nome das pessoas que já foram ou estejam em País
Socialista, tanto aluno como professor673.

Coligada a esta “exigência”, é impressionante a blindagem resguardada nas


correspondências. Tal espanto se dirige à proteção à figura do assessor e de seu secretário,

670
Oficio da AESI para o Diretor do Instituto de filosofia e Ciências Humanas, prof. Fernando de Figueiredo
Porto. [Aracaju], 07 de junho de 1973, 1fl. In: CARVALHO, Adriana Melo. Universidade Vigiada:
Documentos para a História da Ditadura Militar na UFS (1969-1977). UFS: DHI, 2005, p. 113.
671
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de novembro, 1974. 1fl.
672
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 28 de novembro, 1973. 1fl
673
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de março de 1974.

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fosse na gestão de Hélio de Souza Leão e Walter Mendes de Carvalho ou até mesmo na época
do Coronel José de Brito da Silveira, as respectivas assinaturas eram representadas pelas
iniciais de seus nomes: “hsl/ wcm” e “jbs/wcm”. Explicação para este procedimento?
Pesquisas futuras poderão responder.
Até aqui tudo o que foi descrito acerca da AESI/UFS são dados formulados a
partir das informações extraídas das correspondências trocadas com os Centros. O conteúdo
dos ofícios pode parecer vago ou desconexo, no entanto, apresentam pistas que tendem a
caracterizar a estrutura e as funções da assessoria na universidade.
São evidentes as dificuldades da sociedade brasileira em recordar o período da
ditadura militar. A inserção dos órgãos de informação e repressão do governo, que tinham na
espionagem e na repressão política suas armas de combate na esfera da administração federal,
se deu nos quatro cantos do país. E, ao contrário do que muitos esquecem ou pensam, Sergipe
também sentiu o braço forte da atuação dos citados órgãos. A Universidade Federal de
Sergipe fez parte deste trajeto percorrido pela SNI e sua rede de espionagem cujas faces
autoritárias do regime foram demonstradas.
A Assessoria Segurança e Informação – ASI – instalou-se na universidade,
seguindo a risca os preceitos ideológicos que fundamentavam o regime de 64: dissipar
qualquer indício da ameaça comunista. Cumpriu sua função de acompanhar as atividades
estudantis, além é claro do cotidiano da instituição como um todo cujos resultados se
resumiram a perseguir e reprimir estudantes, violar direitos como à liberdade de expressão e
de pensamento.
Entretanto, a escassez de seus documentos não foram o suficiente para apagar da
memória e da própria história da UFS, que neste ano completou 40 anos, as marcas deixadas
por um tempo abominável. Ainda que controversas e seletivas, as lembranças persistem no
imaginário daqueles que lidavam diariamente com tensão, medo e desconfiança. Tudo isto
fazia parte da rotina de estudantes, docentes e funcionários disseminados por um setor que se
localizava no gabinete do Reitor.
O panorama desenhado da AESI, propósito deste trabalho, entendeu-se que foi
traçado observando a conjuntura política do país e o desdobramento dos órgãos de informação
e de segurança aqui no Estado. Um primeiro passo foi dado, todavia, pesquisas futuras devem
complementar as lacunas deixadas ao longo da escrita do trabalho. E em se tratando de
memórias do período turbulento da ditadura, o desejo é que este início de escrita da história
sobre a AESI na UFS possa resgatar um pedaço de um todo que se encontra perdido e
guardado a sete - chaves acerca do regime militar em Sergipe. Como bem disse Daniel Aarão:

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“Olhares de época, ângulos de hoje, testemunhos, interpretações, analises,


versões. Como todo encontro humano, é plural, expresso em diferentes
referências teórico-metodológicas, diversas maneiras de recortar, constituir e
abordar o tema, múltiplos enfoques, distintas apreciações. Como todo
encontro plural, é avesso ao dogma e à tentação autoritária, aberto ao
dissenso e ao contraditório” 674.

Fontes Escritas

Ata da Sessão Ordinária do CONSU, 31 de julho de 1971.


Ata da Sessão Ordinária do CONSU, 06 de agosto de 1971.
Estatuto da UFS, s/d.
Resolução nº 16/ do CONSU, 06 de agosto de 1971.
Regimento Interno da década 1970.
Regimento Interno da UFS, s/d.
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de março
de 1974.
Ofício da Assessoria Especial de Segurança e informações para o Diretor do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Porto. [Aracaju], 19 de
novembro, 1974. 1fl. In: Arquivo Geral da UFS, Fundo: CECH/DHI 23.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia A. Neves. Brasil Republicano: o Tempo da
Ditadura - Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 13 - 42.

CARVALHO, Gislaine S. Espionagem, vigilância e perseguição: A história da AESI em


Sergipe (1971-1988). UFS: DHI, 2008. (Monografia).

CHRISPINIANO, José, PICANÇO, Marcy e GONZALEZ, Marina. Filha Bastarda da USP,


AESI desempenhou diferentes papéis na repressão interna. In: Revista ADUSP, São Paulo:
v.33, out, 2004, pp. 37- 48.

674
Introdução do livro. REIS, Daniel Aarão (orgs.). O Golpe e a Ditadura militar- 40 anos depois (1964-2004).
São Paulo: EDUSC, 2004, pp. 11.

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CLEMENTE, José Eduardo Ferraz. Perseguições, espionagem e resistência: o Instituto de


Física da Universidade Federal da Bahia durante a ditadura militar (1964 – 1979). In: Revista
da SBHC, Rio de Janeiro: v. 4, n. 2, , jul | dez 2006, pp. 145-145.

COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América


Latina. RJ: Civilização Brasileira, 1978.

DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e eleições num estado
autoritário. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1997.

FICO, Carlos. Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e


Polícia Política. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe. Vol.V, 1962/1975. Aracaju: s/Ed e


s/data.

FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de


Washington Luís a Lula: 1927-2005. RJ: Record, 2005.

GOES, Moacyr de. O Golpe na Educação. 11° edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.

MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento Estudantil e Ditadura Militar 1964/1968.


Campinas, 1987

POERNER, A.J. O poder jovem. 2.ed. Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 1979.

CARVALHO, Adriana Melo. Universidade Vigiada: Documentos para a História da


Ditadura Militar na UFS (1969-1977). UFS: DHI, 2005. (Monografia).

REIS, Daniel Aarão (orgs.). O Golpe e a Ditadura militar- 40 anos depois (1964-2004). São
Paulo: EDUSC, 2004.

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MEMÓRIAS DE TEMPOS SOMBRIOS: A CENSURA TEATRAL EM


SERGIPE

Mayara Gabrielly Carvalho Matos (UNIT)


mayaragabriellyc@yahoo.com.br

O presente trabalho possui como temática a censura teatral em Sergipe durante a Ditadura
Militar, tomando como base para seu desenvolvimento as memórias de artistas envolvidos
com o teatro nesse espaço de tempo. A censura foi uma prática que marcou diversos períodos
da história brasileira, no entanto a Ditadura Militar é lembrada como a fase mais “negra” da
censura no país, pois nesse período essa prática radicalizou-se e tornou-se rotineira. Em vista
disso, esse artigo busca descortinar os mecanismos de censura cultural impostos pelo regime
militar, através do resgate e análise de memórias de atores e diretores que vivenciaram essa
experiência cultural e política. Os resultados obtidos além de atender ao objetivo proposto,
apresentam os reflexos da censura cultural no teatro em Sergipe.

Palavras-chave: Memórias, teatro, censura.

INTRODUÇÃO

A censura é uma prática enraizada na cultura ocidental cristã. Ela se configura no


cerceamento moral, como na cena clássica do julgamento de Maria Madalena ou nos relatos
de fundo estético, como a defesa da liberdade de criação empreendida por Michelangelo
frente ao moralismo da Igreja Católica. Herdeira dessa tradição, a história no Brasil, também
possui uma trajetória de práticas de censura. Partindo desta discussão o tema central desse
trabalho, a censura imposta ao teatro, particularmente ao teatro em Sergipe, privilegia os seus
contornos a época da Ditadura Militar, fase na qual a censura institucionalizada exacerba seu
olhar sobre a moral, os costumes e o ideológico, pensado a partir de uma perspectiva restrita
do nacional.
Segundo Carlos Fico nos últimos anos vem crescendo o interesse de historiadores
a respeito de temas ligados ao período militar. Isso é atestado por dados levantados pelo

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Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ que ao sistematizar as pesquisas


produzidas entre 1971 e 2000 observou 27 trabalhos em torno dos movimentos sociais
urbanos, 27 temas da arte e da cultura , 25 de economia, 20 de assuntos relacionados à
esquerda e à oposição em gera. 15 relacionados a imprensa (15), 13 a censura, 11 a crônica
dos diversos governos, 8 ao movimento estudantil, 6 ao estudo do próprio golpe, entre outros
temas675.
A análise do teatro, um dos elementos de destaque do período, traz uma boa
contribuição para os estudos da cultura brasileira. No tocante à delimitação do campo de
trabalho ao espaço sergipano, a relevância ocorre, pois ainda se pesquisou pouco a respeito do
teatro local, nesse período, e no tocante a censura ela revela a particularidade regional deste
processo de controle imposto à produção cultural brasileira. Assim, esse trabalho ajuda a
suprir essas lacunas, ao resgatar e analisar os registros escritos e, de modo mais destacado, as
memórias a respeito da censura imposta ao teatro em Sergipe pelos órgãos de informação
institucionalizados durante o regime militar.

As Sombras sobre o Teatro em Sergipe

Em Sergipe, ocorreram vários casos de censura teatral, no acervo do Arquivo


Público do Estado de Sergipe (APES), por exemplo, existem alguns textos que passaram pelo
crivo da censura. Esses textos estão marcados página a página com um carimbo que identifica
a instituição de censura, contendo a siglas DPF (Departamento de Polícia Federal) e o nome
Departamento de Censura e Diversões Públicas. Além disso, é importante destacar que os
documentos em questão, apresentam uma censura parcial, pois as restrições resumem-se a
palavras, frases e parágrafos; explicitados por um carimbo com o nome “CORTE”.
Através da pesquisa a respeito das peças teatrais censuradas foi possível identificar
que mesmo após o fim da ditadura militar existiam textos que continuavam a apresentar
proibições, eles possuem o mesmo carimbo do DCPC, que aparece nos textos censurados
durante o período militar, e trechos explicitamente vetados. Isso é explicado pelo fato de que a
censura no Brasil, não foi uma prática que se desfez com o fim da ditadura militar.
Assim, a continuidade das atividades da censura deveu-se ao fato de que no início
do processo de redemocratização, a Divisão de Censura e Diversões Públicas continuou

675
FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Revista Brasileira de
História, 2004. Vol. 24, no 47, pp. 40-41.

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existindo no Brasil, embora com seus poderes diminuídos, em vista do contexto em que se
encontrava o país. O enfraquecimento e a perda de autonomia desse órgão, já é patente a
partir de 1980, quando foi regulamentada uma lei, criada em 21 de novembro 1968 (Lei no
5.536), que instituía o Conselho Superior de Censura e designava como sua atribuição rever,
em grau de recurso, as decisões finais, relativas à censura de espetáculos e diversões públicas,
preteridos pelo Departamento de Polícia Federal. Cabendo a esse Conselho elaborar critérios
de orientação para a censura676.
Mas a efetiva extinção das leis de censura, só ocorreria, definitivamente, após a
promulgação da Constituição de 1988, que regula a liberdade de expressão. Através do Artigo
5º, que trata dos direitos e deveres individuais e do Artigo 220 que trata da comunicação
social. Vejamos agora os trechos dessa legislação que proíbem a possibilidade de uma censura
institucionalizada ou não proibir:

Art 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independente de censura ou licença;
XIV - é assegurado a todos a acesso à informação e resguardo do sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.677

Entre as peças levantadas durante a construção desse trabalho, encontramos


algumas que passaram pela censura, pois conservam o carimbo da DCPC, mas não foram
oficialmente vetadas, pois os trechos “impróprios” estão destacados, mas não apresentam o
carimbo com o nome corte, como acontece nas demais. Pode-se pensar que isso tenha
ocorrido, justamente, por que apesar da instituição que promovia a censura continuar
existindo algum tempo depois do fim da Ditadura, as práticas censórias já não tinha a mesma
força, que emanava do clima repressivo estabelecido pelos governos militares. Assim, os
trechos destacados, indicavam talvez, uma advertência, não uma proibição.

676
FICO, Carlos. “Prezada censura”: Cartas ao regime militar. Disponível em:
http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/fico_prezada_censura.pdf
677
Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. 20 ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenação de Publicações, 2003.

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Enquadra-se nessa classificação a peça “Memórias de um esmoler”, de João


Ângelo Santos, do ano 1975; o texto “Corpos na Areia”, escrita por Seronn, em 1984 e a peça
“As irmãs tenebrosas e outras histórias”, interpretada pelo grupo Imbuaça e baseada em uma
adaptação de folhetos de cordel.

As Memórias da Censura Teatral

O uso da memória para a reconstrução da história, não é uma prática recente.


Ainda na antiguidade Clássica, a historiografia recorria a testemunhos diretos para seu
trabalho. No entanto, durante o século XIX, com a busca da objetividade e da cientificidade
da história, os relatos orais são desvalorizados em detrimento das fontes escritas. Só no século
XX, a memória voltou a ter destaque como fonte histórica678. Assim, os relatos
memorialísticos aqui relacionados proporcionam tanto um resgate das informações colocadas
pelos atores sociais envolvidos, como possibilita analisar as representações (des)construídas a
respeito desta memória passada mais ainda muito presente.
A seleção dos entrevistados para essa pesquisa foi feita baseada em dois eixos:
destaque no meio teatral em Sergipe e disponibilidade dos entrevistados. Assim, as
personalidades entrevistadas além de apresentarem importância no meio artístico em questão,
mostraram-se sensibilizados e inclinados a colaborar com essa pesquisa.
As informações elencadas nesse artigo privilegiam as experiências acerca da
censura e às impressões deixadas por ela na vida de quem sofreu suas implicações,
enfatizando as passagens mais importantes das entrevistas a esse respeito. Os entrevistados
foram: João Costa, Jorge Lins, Bosco Santos, Luís Antônio Barreto e Isaac Enéas Galvão. Os
quatro primeiros são autores de textos censurados, e o último participou de grupos que
encenaram peças vetadas parcialmente pela censura.
Uma das questões propostas foi como eles descreveriam o fazer teatral em Sergipe
durante a Ditadura Militar. Acerca disso, as opiniões variaram um pouco, Jorge Lins afirmou
que “Sergipe era mais ou menos como todo canto do Brasil: havia uma restrição absoluta679”
o que é complementado pela opinião de Luís Antônio Barreto ao falar que:

Com a Ditadura tudo que estivesse no âmbito da cultura passava pelo crivo,
direto ou indireto, da censura. Era difícil a expressão verbal sem liberdade, a

678
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002.
679
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.

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representação vigiada, a suspeita generalizada sobre todas as pessoas


letradas ou com pendores artísticos. 680

Junto a esse quadro, encaixa-se a descrição de Bosco Santos, que vê o teatro como
681
“um instrumento forte contra o regime militar” . As opiniões evidenciam que o regime
militar ficou na memória desses artistas como sinônimo de censura e repressão. Analisando a
bibliografia a respeito do teatro no Brasil é perceptível o descontentamento de vários
representantes do meio cultural com regime militar. Era o período do auge da “arte engajada”,
tinha-se a impressão de que o país todo havia se convertido para a esquerda682.
Diante disso, é importante saber se os artistas envolvidos com o teatro em Sergipe
faziam algum tipo de crítica ao regime. Segundo a maioria dos entrevistados, em Sergipe “não
havia um diálogo engajado politicamente”683. Luís Antônio Barreto, diz que os artistas não
faziam uma crítica direta, “mas representavam e cantavam sobre temas que não agradavam
684
aos dirigentes militares” e Isaac confirma, dizendo que os artistas sergipanos não se
685
ligaram a movimentos, se atentando apenas, a promover a cultura . Também João Costa
ratifica essas informações, mas acrescenta a opinião de que:

Tudo o que se refere à liberdade humana é encarado como crítica para os


regimes ditatoriais. Não venha isso dizer que os artistas faziam crítica ao
regime, por que qualquer referência que se fizesse ao cerceamento da
liberdade, do direito de dizer, de opinar, era tida como crítica. Já está
implícito na pergunta: a ditadura é uma espécie de dominação muito distante
a que se dá o nome de democracia.

Os dados expostos pelos entrevistados tendem a ser corroborados quando se


analisa as peças censuradas não observando nenhum tipo de crítica direta ao regime militar,
podendo-se ainda constatar que a maior parte da censura tem uma dimensão moral, pois são
vetadas palavras, frases e situações que “atentavam contra os bons costumes”.
A respeito de como funcionava a censura, Bosco Santos relata:

você acabou de escrever, você tinha que submeter o texto à censura para que
ela dissesse o que teria que constar ou não constar no texto. Você ia a Policia
Federal, preenchia um formulário no balcão, levava o texto, me parece que

680
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
681
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
682
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2001, p. 59.
683
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
684
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
685
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.

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eram duas ou três copias, dava entrada e eles davam um prazo para você
retornar lá, era um prazo que eles iam ler e analisar o texto 686

Complementa essa descrição as palavras de João Costa ao relatar que após a


análise da peça vinha a resposta:

que se constituía em receber uma cópia do original, com passagens ou partes


inteiras cortadas de caneta “BIC”, ou totalmente proibida, e ainda com a
inocente recomendação para que o autor refizesse o seu trabalho, para
submetê-lo outra vez à apreciação do censura. Sendo assim, já não seria o
mesmo trabalho não acha?

Assim, Costa ainda nos instiga a refletir sobre a interferência da censura na


liberdade de criação dos artistas. Desse modo, os dois artistas apresentam um panorama sobre
o processo de aprovação a que as peças eram submetidas. Demonstrando todo o aparato
burocrático por que passavam os textos teatrais. Os passos finais desse processo são descritos
por Jorge Lins quando este relata que após a sentença do censor:

você tinha que montar a peça sem aquela parte, aí tinha ensaio geral só para
eles no teatro, apresentava só para uma pessoa e ele tinha o direito de
censurar o espetáculo por completo, podia até está marcado a estréia e ele
cancelava, era um absurdo era uma ruptura muito grande de liberdade de
expressão. 687

É interessante ressaltar como no final da passagem, o escritor se mostra indignado


com o processo de censura por qual passava. É possível que uma das causas desse
descontentamento, venha da falta de informação sobre o método de análise da censura sobre o
qual o próprio Lins diz:

Eles não explicavam a gente, eles cortavam do jeito que cortavam não tinha
explicação nenhuma, não tinha a menor justificativa era completamente
aleatório, se você dissesse “forisbundo”, essa palavra não existe, mas eles
achavam que você poderia estar se referindo a não sei quem, e cortavam.
Depois chamavam você, era uma loucura cara, completamente arbitrária,
você não tinha nada, não tinha nenhuma explicação lógica. 688

Essa afirmação é atestada por Bosco, ao relatar que

686
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
687
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
688
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.

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nunca sabia que tipo de análise eles iriam fazer, mas de uma coisa a gente
tinha certeza, qualquer peça ou música, qualquer coisa que ia de encontro à
política do governo militar era um critério prático para que não passasse. 689

Isaac Galvão também concorda com a falta de critérios claros da censura, contudo, ele
acredita que as proibições eram:

de cunho pessoal eram coisas bobas que eles cortavam, pois eles pensavam
que aquela palavra teria duplo sentido e estava relacionada a tal coisa
entendeu, exemplo a palavra brigadeiro tem o doce e a patente brigadeiro.
Eram coisas bobas que para gente não tinha importância levavam eles a
pensar que o público iria entender de outro modo. 690

Quando indagado sobre a questão, João Costa ressalta, não a falta de critérios, mas a
inadequada especialização da censura e elenca os temas mais recorrentemente vetados, assim
dizendo que:
A Ditadura Militar não possuía comissões especializadas em crítica a textos,
tanto de músicas cantadas, como discursos, artigos de jornais, peças teatrais,
quaisquer escritos, isso tudo, parece-nos, metia medo ao regime. Por isso
quaisquer referências a liberdade, fome, injustiça, escravidão, tudo isso
amedrontava os partidários do regime. Por isso até peças de dois séculos
atrás, ou mais, eram censuradas, face ao desconhecimento literário.

Dessa maneira, os testemunhos ratificam o fato de não existir uma padronização por
parte da censura a respeito do que devia ser vetado em um texto. Por isso, a decisão sobre o
que censurar ou não, de certo modo, se tornava algo pessoal, já que dependia do julgamento
do censor. Mas após a análise da censura como ficavam as peças que eram vetadas
parcialmente? Pois apesar de receberem a permissão para serem encenadas, algumas delas
tinham boa parte do texto censurado, como foi o caso de “Atascal” de Jorge Lins. É ele quem
comenta a respeito, dizendo que as peças ficavam “... terríveis, isso eu não falo só das minhas
peças, falo de outras também. Eles censuraram as peças e às vezes você não tinha como
montar o espetáculo, pois perdia a lógica do espetáculo que era aquela coisa que eles
censuraram” 691.
Para Bosco Santos havia “... duas opções: retirar o que eles cortaram e depois
692
voltar para obter os registros ou apresentar correndo o risco de ser pego” . Claro que a
segunda opção era inviável, devido ao contesto repressivo em que se vivia. Além disso, Isaac

689
Entrevista concedida aos autores por Bosco Costa, em 30/04/2008.
690
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
691
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
692
Entrevista concedida aos autores por Bosco Costa, em 30/04/2008.

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Galvão informa que “às vezes eles [os censores] iam às apresentações para o público, para
verificar se tinham realmente feito os cortes, se estavam sendo obedecidos” 693.
Buscou-se saber como esses artistas sentiram-se ao passar pela censura e todos os
entrevistados são unânimes ao dizer que era uma imensa frustração. Jorge Lins diz que “É
terrível, é como se tivessem colocado uma mordaça em sua boca, que você não podia falar
uma coisa que você está vivendo” 694. E Bosco Santos conta:

Ah! É uma frustração muito grande, eu vi um esforço de anos, porque assim,


o sonho era escrever a peça e o sonho maior era adquirir o registro, tipo
assim, isso aqui é meu e ninguém me tira, ninguém pode fazer uso nenhum
sem a minha autorização. Então esse era o grande sonho, uma coisa
complementava a outra, então eu realizo o sonho de escrever, que levou
tempo bastante, que tive que refletir muito, ler muito, tira, coloca, não é isso,
é isso. Depois de você cumprir essas tarefas você vai pegar o registro e
quando você não consegue é uma frustração terrível. 695

Luís Antônio Barreto concorda, mas ressalta que apesar de toda a repressão, vários
daqueles que passaram pela censura, se tornaram grandes personalidades em sua área de
696
atuação, citando o diretor Benvindo Siqueira e Luiz Gonzaga Júnior (O Gonzaguinha) . Já
João Costa ao expressar seu ponto de vista acerca da pergunta faz uma breve análise sobre a
ação da censura nas produções artísticas, afirmando que:

O que se sente é difícil da explicar. Há um acabrunhamento, uma desilusão,


enfim uma falta de estímulo. Por isso que se diz que o período de censura no
regime militar produziu um atraso na arte, tanto da música popular, quanto
da literatura.

O mesmo entrevistado continua sua análise, desvelando como essas ações


refletiam negativamente na liberdade de criação dos artistas, dizendo que:

Quando você se refere a “CORTES” escapa-lhe a idéia da totalidade de uma


obra de arte. Não se pode mudar as feições de uma pessoa retratada numa
pintura, trocar as vestes de personagens que estão lá no quadro, modificar
partes do quadro porque elas não agradam ao censor... Assim se mutilaria
por completo a obra de arte. Afinal de contas, uma obra, aquilo que o autor
fez, não foi obra de encomenda como um bordado ou uma torta de maçã...
ou seja lá o que for.

693
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
694
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
695
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/40/2008.
696
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.

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Uma das curiosidades reveladas durante as entrevistas veio de Jorge Lins, que ao citar
697
“A cigarra e a formiga” , como uma de suas peças censuradas, afirma que esse foi o único
texto infantil censurado, possuindo treze cortes. Sendo, inclusive, mencionado em um curta
698
metragem de 35 minutos, dirigido pelo cineasta carioca Antônio Moreno . Muito
interessante são também as afirmações de Luís Antônio Barreto, que contou como viveu sua
experiência de censura:

Quando um texto meu – O Monólogo – foi montado pelo grupo Arena da


Ilha, do Rio de Janeiro, tendo Benvindo Siqueira como intérprete e
Gonzaguinha como autor da trilha sonora, a peça foi censurada em Aracaju e
os atores foram presos, quando o então Secretário de Segurança, o General
Graciliano Nascimento, sentenciou que “Em Sergipe quem entende de teatro
é a polícia, frase que entrou para “O Festival de Besteira que Assola o País
de Stanislaw Ponte Preta. 699

A frase do Secretário de Segurança evidencia o autoritarismo vigente na época e


se mostra preconceituosa, por menosprezar os conhecimentos dos artistas teatrais sergipanos.
Outra questão importante é saber como o público se comportava diante das
“intervenções” dos militares na cultura, em especial no teatro. Será que houve algum tipo de
apoio? Jorge Lins afirma que sim, o público apoiou “... mas não tinha como se expressar
porque não tinha espaço da impressa pra falar (...)” 700. Bosco Santos também confirma essa
acolhida do público em relação ao teatro. Já Isaac Galvão destaca a curiosidade das pessoas,
701
quando sabiam que certo espetáculo havia sido censurado . Isso leva a pensar, que a
censura, em vez de desviar a atenção do público de assuntos “espinhosos”, chamava a atenção
desse mesmo público, para os motivos da proibição, os levando a refletir sobre o contexto
repressivo em que o país vivia.
As entrevistas foram finalizadas com uma pergunta crucial para a compreensão do
que foi discutido nesse trabalho. O quê significou fazer teatro em Sergipe no período militar?
Para Lins, ficou a lembrança da contribuição que cada artista deu para que se alcançasse a tão
almejada liberdade de expressão, ele colocou que “... sofreu muito. (...) você dá a sua mini
contribuição e eu sinto que eu dei um pouquinho da minha força para a gente mudar essa
realidade e chegar ao ponto da liberdade que temos hoje” 702.

697
Essa peça não foi encontrada no APES.
698
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
699
Entrevista concedida por Luís Antônio Barreto, em 30/04/2008.
700
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.
701
Entrevista concedida aos autores por Isaac Enéas Galvão, em 19/05/2008.
702
Op. cit.

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Bosco Santos e Luís Antônio Barreto têm respostas parecidas, sendo que o
primeiro coloca a situação como “um desafio e uma realização pessoal um desejo interno de
703
você não aceitar a vontade dos militares” e o último é enfático ao dizer que foi “um
704
exercício de resistência” . As respostas evidenciam a importância de se fazer arte num
período onde o governo queria controlar as criações e até a mente dos artistas, onde você era,
não só proibido de manifestar suas opiniões, mas também de pensar qualquer coisa que fosse
de encontro com os interesses dos políticos ou moralistas daqueles que estavam à frente do
controle do Estado Brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A censura cultural no Brasil interferiu na liberdade de expressão dos artistas e


“mutilou” suas obras, muitas vezes com tal intensidade que estas perdiam o sentido e não
tinha condições de serem levadas adiante. Em Sergipe, ela também se fez presente,
estendendo suas “sombras” às produções teatrais. No entanto, essa prática não conseguiu
ofuscar a atividade teatral sergipana, pois foi justamente, no período onde a censura esteve
mais atuante, que o teatro local mostrou muita criatividade e irreverência, embora não
demonstrasse um engajado político evidente.
A censura, baseada no lema de manter a ordem e a moral vigente, ficou registrada
em Sergipe, através dos textos teatrais vetados parcialmente, salvaguardados no Arquivo
Público do Estado de Sergipe (APES). Além disso, a censura marcou a vida daqueles que
foram a ela submetidos. Para muitos desses, como no caso dos entrevistados durante o curso
desta pesquisa 705, ficou a lembrança de um período marcado pela repressão e pelo desrespeito
ao trabalho artístico, que era simplesmente proibido ou recebia interferências, sem as mínimas
explicações plausíveis.
A trajetória da censura teatral em Sergipe durante o período militar e seus
desdobramentos, apontados neste artigo, possibilita entender a necessidade de valorizar a
liberdade democrática que se tem hoje, o que foi suscitado em uma fala do escritor Jorge Lins
que coloca:

703
Entrevista concedida aos autores por Bosco Santos, em 30/04/2008.
704
Entrevista concedida aos autores por Luís Antônio Barreto, em 09/05/2008.
705
Jorge Lins, Bosco Santos, Luís Antônio Barreto e Isaac Enéas Galvão.

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hoje pelo menos eu tenho certeza que no Brasil tem muitas coisas, mas
liberdade democrática eu não posso reclamar, eu vim de uma geração que
sofreu, então quando eu vejo alguém falando pra votar nulo, branco, me
magoa porque as pessoas lutaram muito para conseguir essa liberdade eu
nem fui de esquerda, eu sempre fui um cara centrado, eu sempre quis
liberdade democrática, acho um absurdo você censurar a palavra, a vida de
alguém. 706

Assim, ao tratar da censura, esse trabalho deixa implícito sobre como cada um
deve exercer sua cidadania, valorizar a liberdade e os direitos conquistados. Pois esse é um
passo fundamental para evitar que novamente ocorram atos que atentem contra os direitos
humanos e a democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2004.

FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de
Janeiro, dezembro 2002.

FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Revista
Brasileira de História, 2004. Vol. 24, no 47.

_____. “Prezada censura”: Cartas ao regime militar. Disponível em:


http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/fico_prezada_censura.pdf

FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.


MOURA, Andréa. Entrevista - Jorge Lins. Aracaju: Jornal da Cidade, 24/11/2007.
Disponível em http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=79820.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto,


2001.

706
Entrevista concedida aos autores por Jorge Lins, em 19/03/2008.

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ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

______. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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FRENTE DE MOBILIZAÇÃO POPULAR: MUDANÇAS POLÍTICAS E


PODER LOCAL EM UNA DE 1960-1965

Soanne Cristina A. dos Santos- UNEB707

Influenciada pela Frente de Mobilização Popular- FMP nacional formada Sob a liderança de
Leonel Brizola, a formação e trajetória da FMP em Una na década de 1960, é observatório
singular para mobilizar discussões em torno das relações políticas e sociais que se
desenvolveram no cotidiano da cidade, após o debate nacional sobre reformas de base. As
propostas desse movimento como: reforma agrária, inclusão de trabalhadores de baixa renda
no cenário político partidário e formação de sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos,
colaborou para que houvesse mudanças políticas. Em 1960, Una vivia sob condições políticas
ainda em moldes tradicionais. Manuel Pereira de Almeida prefeito de 1919 á 1939, manteve
influência no executivo até 1965, através de parentes e correligionários, mantendo uma
política em moldes coronelistas. Este cenário começou a mudar após a eleição de Libberalino
Barbosa Souto, prefeito (depois pertencente a FMP) que realizou reforma agrária e permitiu
criação de sindicatos, dando a política em Una, um caráter reformista.

Palavras- chaves: Frente de Mobilização Popular; Política; Reformas de Base.

Este texto discute o processo de transformação política local ocorrida a partir da


formação e organização da Frente de Mobilização Popular- FMP, em Una, por influência da
FMP nacional. Os anos entre 1961 e 1965 tornaram-se observatório singular para mobilizar
discussões em torno das mudanças ocorridas na política local ainda vinculada no período ao
coronelismo e suas formas de exercício de poder mediante os usos do mandonismo,
patrimonialismo, clientelismo e nepotismo 708.

707
Mestranda em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
708
Ver: RIBEIRO, André Luis Rosa . Família, poder e mito: o município de São Jorge dos Ilhéus (1880-
1912). Ilhéus: Editus, 2001. A historiografia regional tem como foco a história de Ilhéus, cidade vizinha a Una, e
que durante muito tempo, foi principal cidade da região.

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Na cidade de Una, situada no Litoral Sul da Bahia, características coronelísticas709


permeavam a cultura política do lugar, ainda nos anos 1960. Quando a partir do início de
debates sobre a necessidade de democratização dos espaços na cidade e no campo, postos por
um grupo de homens com novas idéias, que de forma peculiar, visualizaram no contexto
nacional, condições favoráveis para que algumas mudanças pudessem ocorrer no município.
Este debate envolveu indivíduos do meio rural, antes marginalizados pela política
local, para discutir reformas e melhoria do campo, dentro da cidade. Foram tempos de
discussão política que deixaram marcas. A dita democracia anterior a 1964, n’ao foi capaz de
superar as pr[atiças pol[iticas tradicionais era profundamente limitada, pois foi incapaz de
superar o clientelismo, o mandonismo, os currais eleitorais e o poder incontestável dos
coronéis e do latifúndio710.
Em 1961, Una passou por uma série de transformações sócio-políticas que
remodelaram o cenário do município. O domínio da cena política pertencia às famílias
Almeida-Fuchs711, unidas por diversos laços de parentesco ocuparam o poder executivo no
município por cerca de seis décadas, impedindo o acesso de outros grupos à política de Una.
A partir de então outros segmentos, integrantes da elite local e subalternos a exemplo dos
trabalhadores do campo e da cidade passaram a se confrontar com os representantes da
referida política conservadora que dominou o executivo municipal. Cada segmento
desenvolveu diferentes mecanismos na defesa de seus interesses, a partir de suas visões sobre
o modelo de desenvolvimento local.
O terreno para a agitação política e social em Una se mostrava fértil no início da
década de 1960. Parte da população como evidencia o periódico o Democrata e depoimentos

709
Coronelismo aqui é compreendido a partir da análise de Vitor Nunes Leal, que entende que “a modificação, e
não o declínio do coronelismo deveria ser o tema da história política depois de 1930. O impacto da explosão
demográfica, a industrialização substituindo a importação e a conseqüente urbanização, a ascensão de um
sistema multipartidário em 1945, e as crescentes tendências centrípetas da presidência federal contribuiram para
a modificação do coronelismo. Os coronéis tornaram-se os intermediários do poder dos diversos partidos, nas
décadas de 1960 e 1970, ressurgindo assim, ‘como uma nova elite política partidária modificada’. ” PANG. Eul
Soo. Coronelismo e oligarquias: 1889-1934. RJ: Civilização Brasileira S.A, 1979. E conforme Maria de
Lourdes Monaco Janotti, como uma estrutura plástica, que se adapta a sucessivos momentos históricos, trazendo
a idéia de que o poder local não se enfraquece com a mesma intensidade em todo o país, pois ele se mantém sob
nova roupagem, ou se extingue nas áreas de maior concentração urbana, persistindo nos mesmos moldes em
regiões de economia tradicional. JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo: uma política de
compromissos. SP: Brasiliense, 1992.
710
TOLEDO Caio Navarro de (org.) 1964: criticas do golpe: democracia e reformas no populismo. São
Paulo: Ed. da Unicamp, 1997, pág.74.
711
Manoel Pereira de Almeida chegou á Una em 1919, engenheiro vindo de Salvador, herdou o prestigio político
e econômico do Sogro David Fuchs, suíço detentor de terras na região. Casou-se com Alice Fuchs e mais tarde
com a irmã desta, Adalice Fuchs. Foi intendente e prefeito em Una entre os anos de 1924 á 1939 exerceu
influência política no município até meados dos anos 1960. É denominado por alguns historiadores de “coronel”.
Ver sobre ele em: SILVA, Rosilane Maciel. O coronel Manuel Pereira de Almeida e a formação do
município de Una. Ilhéus: UESC, 2001. TCC em história, 45f.

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orais, discutia sobre a legalidade das decisões que eram no período, tomadas Carlos Cincurá
de Andrade, prefeito de (Abril de 1959 a Abril de 1963), genro de Manoel Pereira de
Almeida, político local, que foi talvez o mais influente dos Almeida-Fuchs. Um dos aspectos
do confronto aqui discutidos foi resultante exatamente a partir da formação da Frente de
Mobilização Popular.
Em Una, a FMP foi formada, em junho de 1963, sob a liderança de Victor Paes de
Barros Leonardi. Estudante do curso de Direito, da FESPI em Ilhéus, participou ativamente
do centro acadêmico, de congressos da União Nacional dos Estudantes - UNE e de reuniões
do diretório executivo. Membro de família endinheirada de Salvador foi apelidado de cabeção
pelas idéias modernizadoras que discutia freqüentemente com a população. Não era nativo,
mas seu pai havia adquirido para ele uma grande propriedade na chamada “capital da seringa”
(Una). Chegando neste município já como detentor de poder econômico, Victor Leonardi,
confrontou-se politicamente com o poder da família Almeida-Fuchs.
Fazendeiro na região formou a FMP entrando em conflito com os interesses da
família. Suas pregações em defesa da reforma agrária e democratização dos setores da
sociedade representaram para a administração local, uma ameaça para a suposta “ordem”
existente, e talvez, pela primeira vez na história de Una, um grupo de homens com ideais
contrários aos do grande fazendeiro Manoel Pereira de Almeida ganhava espaço.
Esta organização foi formada sob a influência da FMP nacional, esta última, por
sua vez havia sido criada em janeiro de 1963, sob a liderança de Leonel Brizola, no Rio de
Janeiro, logo nos primeiros meses em que se tornou deputado federal e após ter se destacado,
no seio das esquerdas, por sua trajetória no PTB, pela nacionalização de empresas norte-
americanas de comunicação e energia no RGS, quando governador (1959-1962) e também
com a Campanha da Legalidade.
Brizola percebendo a necessidade de ampliar as forças de esquerda formou a
Frente de Mobilização Popular, e extinguiu a Frente de Libertação Nacional, á qual havia
formado em 1962, juntamente com Mauro Borges, governador de Goiás. Um quarto dos
deputados eleitos e que tomaram posse em 1963 juntamente com Brizola eram integrantes da
712
FMP. Ruy Mauro Marini qualificou esse Congresso como “parlamento das esquerdas” .E

712
Citado em DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB. Do getulismo ao reformismo (1945-1964). São
Paulo: Marco Zero, 1989, p.236

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Daniel Aarão Reis de “mini-parlamento alternativo” construído pelas forças populares


alternativas713.
A FMP reuniu diversos grupos de esquerdas714 marxistas, cristãs, socialistas,
trabalhistas, subalternos das forças armadas, estudantes, bem como organizações de
trabalhadores urbanos e rurais. Interesses comuns norteavam os interesses da facção mais
esquerda do PTB, integrantes da UNE, PCB, operários urbanos do Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), militantes de outros partidos e grupos que se diziam revolucionários
como a Ação popular (AP), entre outros. Vários núcleos da FMP se formaram no Brasil,
existiram mais de 24 mil deles, segundo documentos da própria organização715.
Brizola incentivava através da rádio Mayrink Veiga, que iniciativas surgissem por
toda parte, conclamava: “onde se encontrasse um brasileiro consciente, um nacionalista, um
patriota: nos bairros, nas cidades, fábricas, escritórios ou campo o povo deveria se
organizar”716.
Este clamor reverberou em Una. Diversos segmentos da sociedade, comerciantes,
carpinteiros, pedreiros, trabalhadores assalariados e componentes da elite, integraram o núcleo
da FMP local, e desenvolveram ações para instruir a população quanto aos objetivos da
organização.

Contra os donos do poder e favoráveis as reformas de base, surgiu


assim a Frente de Mobilização Popular, núcleo de Una, em uma
reunião realizada em 6 de junho de 1963. (...) Nós fizemos uma
‘cruzada cívica’ por meio de uma campanha de esclarecimentos e
politização popular, com o objetivo de contribuir para a radical
transformação da estrutura econômica e social do país. Essa cruzada
deveria ser regida pelas normas que caracterizaram a verdadeira
justiça social, pregada por Cristo e pelo papa João XXIII717.

713
FERREIRA, Jorge; “Leonel Brizola os Nacional-revolucionaios e a Frente de Mobilizacao Popular”. IN
FERREIRA, Jorge. REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) Nacionalismo e reformismo radical. (1945-1964) As
esquerdas no Brasil . v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.P.35..
714
Utilizo o termo esquerda com o mesmo sentido que o utilizaram Jacob Gorender em Combate nas Trevas.
SP: Ática, 1998. e Marcelo Ridenti, na obra, Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 17
“para designar forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida, identificadas com as lutas de
trabalhadores pela transformação social”.
715
FERREIRA, Jorge. “A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular” In: Revista Brasileira de
História, Dossier: Brasil, do ensaio ao golpe, 1954-1964, São Paulo: Associação Nacional de História, ANPHU,
n.47, 2004. pág.200.
716
Citado em FERREIRA e REIS. Op.cit. Nacionalismo...p.543
717
LEONARDI, Victor Paes de Barros. Entrevista realizada em 5/05/2008.

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A campanha de esclarecimento da Frente tinha como instrumento propagador de


suas idéias o jornal O Democrata, redigido por Victor Leonardi e José Carlos da Silva718. Este
periódico era mensal, escrito em Una e reproduzido na gráfica de Ilhéus, o financiamento
provinha principalmente dos próprios redatores e de assinantes do pequeno comércio. Outro
instrumento utilizado para disseminar o ideário político, entre a população, foi à criação da
escola João XXIII719. Os estudos eram noturnos e as aulas ministradas por integrantes da
frente como, Lino Fontes720 e José Montalvão. A pedagogia da libertação721 e a necessidade
da discussão do método de alfabetização de adultos de Paulo Freyre eram pontos de pauta
constantes nas reuniões da Frente.
O núcleo de Una utilizou os serviços de auto-falante e criou a Voz da Frente, um
programa de rádio que funcionava durante 15 minutos, à noite, e propagava as idéias da FMP.
Para Jorge Ferreira, referindo-se à FMP nacional, afirma que ela tinha uma operacionalidade
ágil e flexível, sendo uma experiência aberta, um fórum de debates, articulação e politização,
pois os representantes dos diversos grupos políticos, após discussões, tomavam uma
deliberação conjunta722.
Pela rádio Mayrink Veiga de São Paulo, Leonel Brizola, componentes da UNE e
Comissão Geral dos Trabalhadores - CGT frequentemente discursavam, orientando as frentes
de todo o Brasil. O núcleo da FPM de Una se reunia semanalmente na casa de um dos
integrantes do grupo, chamado Beroaldo Bomfim, funcionário da coletoria estadual e
maçom723.
A FMP reivindicou junto a políticos da região, a oportunidade para que outros
sujeitos participassem da vida política local, debatendo fundamentalmente, a necessidade da
distribuição de terras para que famílias pudessem garantir espaços de moradia e plantio.
Citadinos e camponeses se mobilizaram para que reformas acontecessem na política local. A
cidade foi o lócus principal do movimento, pois nela ocorriam discussões em torno da
implementação das reformas de base. As discussões em torno destas reformas tinham ganhado
espaço em quase todo o Brasil, através de periódicos como o Brasil Urgente724, e programas

718
José Carlos da Silva. Entrevista realizada em 30/11/2007.
719
João XXIII considerado papa de transição (1958-1962), convocou o concílio vaticano em 1962, para explicar
os dogmas católicos ao mundo, e promoveu uma reestruturação da igreja católica, chamando atenção para os
problemas sociais do mundo.
720
Fontes, Lino. Entrevista realizada em 15 de Junho de 2007. Lino Fontes era funcionário de Manoel Pereira de
Almeida, trabalhador do seringal.
721
FREYRE, Paulo. Pedagogia da libertação. São Paulo: paz e terra, 1998.
722
FERREIRA e REIS Filho (orgs.) op. cit. Nacionalismo... p.548
723
Informação concedida pela maioria dos entrevistados.
724
Brasil Urgente foi um jornal editado em São Paulo por freis dominicanos com ideais de esquerda que
provocaram mudanças progressistas dentro da igreja católica.

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de rádio como o de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Brizola convidava
os indivíduos de todo o Brasil a lutar pelos projetos de reformas agrária, universitária,
administrativa, urbana, bancária e a extensão dos votos aos analfabetos que João Goulart
havia defendido.

A população de Una ouvia atenta Brizola falar na rádio, estava todo


mundo ás oito horas ligado na rádio dele, parado nas esquinas, falava
para todo o Brasil. Os ricos não gostavam de Brizola. A gente ficava
indignado, porque aqui em Una o pessoal dos Almeidas também eram
assim, queriam mandar em tudo o tempo todo. Mais naquela época a
gente não tava mais disposto a aceitar isso, não é?725

A sindicalização rural naquele ano tinha dado um salto. A FMP em Una iniciou a
organização do sindicato de construção civil e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais no ano
de 1963, eles atraíram muitos camponeses e assalariados, apesar de naquele momento no
Brasil haver grandes restrições à formação destes sindicatos, os trabalhadores reivindicavam
melhores salários e melhorias de condições de vida na zona rural, através dela. A atuação
destes sindicatos juntamente com a FMP, trouxe para a cidade indíviduos que fortaleceram os
ideais de esquerda e passaram a questionar a política local, segundo evidenciam as fontes
pesquisadas. Além disto, as ligas camponesas no nordeste eram notícias diárias no rádio, a
luta pela reforma agrária se intensificara e o partido comunista que atuava junto ao
trabalhador urbano voltou suas atenções para a politização dos trabalhadores no campo.
Outro aspecto que será investigado na trajetória da Frente em Una é o que se
refere às influências e atuação da Igreja, outro agente presente no campo, no período. Um das
normas da carta de princípios da Frente que era metodologicamente organizada a partir da
carta de princípios nacionais da FMP, foi exatamente, “agradecer a Deus e Nossa Senhora as
vitórias alcançadas”726.
No contexto nacional, setores conservadores da Igreja, com o objetivo de reforçar
seus vínculos com os trabalhadores buscaram conter a influência dos grupos de esquerda que
pregavam a transformação do campo. Ela criou associações de caráter civil por intermédio de
grupos leigos a ela ligados. A partir do momento em que a Igreja percebeu que perdia fiéis
grupos progressistas se organizaram e começaram a pregar uma doutrina social, que culminou

725
FONTES, Lino. Entrevista realizada em 30/05/2007.
726
Carta de princípios da Frente de Mobilização Popular em Una. (arquivo particular de Victor Leonardi)

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na teologia da libertação defendida por Leonardo Boff, inaugurando uma defesa pelos pobres
dentro da Igreja727.
A ação católica era formada por grupos de jovens como a Juventude Universitária
Católica – JUC, Juventude Estudantil Católica - JEC, da Juventude Operária Católica - JOC,
Juventude Agrária Católica – JAC. Integrantes destes grupos aderiram às posturas da esquerda
e contrariando a hierarquia conservadora da Igreja criaram Ação Popular (AP). Esta última,
por sua vez, em aliança com o PCB, criou a Confederação dos Trabalhadores Rurais –
CONTAG, que foi às ruas mostrar indignação com os problemas sociais nos centros urbanos.
Percebe-se assim a influência da religiosidade tanto a nível nacional como
municipal. Foi durante o papado de João XXIII, com a construção das encíclicas papais728,
que a igreja passou a expressar seu compromisso com o social.
Elemento que também instiga à problematização é o que se refere a influencia das
teorias políticas propagadas. Os integrantes da FMP, segundo Leonardi, liam Régis Debray,
que via a cidade como o túmulo da revolução, exaltando a guerrilha rural e ridicularizando os
revolucionários urbanos, chamando-os de acomodados burgueses de esquerda. O livro Guerra
de Guerrilhas de Ernesto Che Guevara, que afirmava a guerrilha rural como forma absoluta
de ação revolucionária e A Caminho da Revolução Brasileira, escrito em 1962, por Moniz
Bandeira, também estavam, segundo ele, na lista de obras que deveriam ser lidos pelos
integrantes da Frente de Una. E a ideologia maoísta também foi divulgada, pois atraía sua
afirmação de que “o poder nasce da boca do fuzil” tendo se tornado um manual para a ação
729
revolucionária da FMP. . Em Una, Adayrton Leite730·, redator da FMP, afirmou que o
desejo deles era pegar em armas antes que a revolução acontecesse.
O prefeito Carlos Antonio Cincurá em Una, tinha buscado manter restrito o
círculo político a integrantes da família Almeida e seus correligionários. Porém, no final de
seu mandato, em abril de 1963, foi eleito Libberalino Barbosa Souto pelo Partido Democrata
Cristão (PDC) criado na cidade em 1962, com apoio de Lomanto Júnior, recém eleito
governador do Estado da Bahia. A criação desse partido em Una já representava o
crescimento da disputa política e certa decadência da influência do jogo-partidário
monopolizado pela família Almeida731.

727
Ver: BOFF, Leonardo. E a igreja se fez povo. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
728
Encíclica, é um documento construído pelo papa para exercer o magistério ordinário, trata de doutrina para os
campos da fé, sociedade, cultura etc.
729
Os livros citados pelo entrevistado existem.
730
LEITE, Adayrton. Entrevista realizada em 01 de agosto de 2007.
731
Sobre Libberalino Barbosa Souto ver SANTOS, Soanne Cristina Almeida dos. Una: poder político
municipal de 1939-1967. Ilhéus: UESC, 2007. TCC em história, 54 f.

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Apesar disto Souto inicialmente fazia parte do grupo de influência dos Almeida-
Fuchs, porém, ao perceber que o poder político parecia escapulir das mãos dos setores
tradicionais, passou a dar atenção às reivindicações da esquerda buscando angariar seu apoio.
Em maio de 1963, sob pressão da FMP, Libberalino desapropriou algumas terras
para fins de reforma agrária, na região de Pedras, distrito de Una. Este ato representou a força
da influência que a Frente exerceu naquele momento732.
No entanto, as atividades da FMP, foram interrompidas com o advento do Golpe
militar, que caracterizou as ações da Frente como subversivas ao regime.

A população ordeira de Una, sempre gozou de absoluta tranqüilidade nas


administrações anteriores, toda via, Una não poderia fugir as injunções e
acontecimentos políticos que envolvem o país e teve que ser palco de fatos e
ocorrências também verificadas em todo território Nacional. (...) o município
foi avassalado por aquelas mesmas ocorrências, daí se originaram delitos e
contendas de toda espécie, com desacatos a pessoas gradas de famílias
tradicionais, daquela terra, tendo essa situação degenerado e descido ao
terreno da subversividade, sem que fossem tomadas providencias, por parte
das autoridades policiais.
Una, teve seu “clube dos onze733” que funcionou e floresceu para a difusão
subversiva. Contou com o jornal o democrata. Tudo isso impune, num
verdadeiro descaso a um povo que vive do seu labor e produz segurança734.

Mesmo depois de 1964, a FMP, continuou existindo, mas sua atuação foi
enfraquecida, pois os integrantes foram perseguidos, como foi o caso de Victor Leonardi,
exilado no Uruguai em dezembro de 1964.
Portanto, investigar a formação e atuação da FMP, é conhecer e problematizar a
estrutura da política local em Una, buscando identificar quais foram os elementos que
implicaram em tais transformações.

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732
Decreto municipal número 18 de 20 de maio de 1963. Local: Câmara Municipal de Una.
733
Os “grupos dos onze” eram comandos nacionalistas organizados por Brizola em 1963, com o objetivo de
organizar-se em defesa das conquistas democráticas, e fazer resistência a uma tentativa de golpe. Sobre o tema
ver: FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. São Paulo:
Record, 2004. p. 270-71.
734
Jornal Diário da Tarde. Una: largas perspectivas de desenvolvimento e o reverso da medalha.14/06/1965.

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PÁS DE DEUX : ENTRE O ENSINO DO BALÉ E A SOCIEDADE DE


CULTURA ARTÍSTICA DE SERGIPE – SCAS (1965 – 1969)

Mateus Antonio de Almeida Neto – HOPONET/FSLF/UNIT


telelneto@hotmail.com
José Vieira da Cruz – UFBA/ANPUH-SE/UNIT
josevieiradacruz@uol.com.br

Este artigo objetiva estudar, através da História oral e artigos de jornais, as memórias e as
histórias que narram o início do balé clássico em Sergipe, do ensino desta arte com a Escola
Sergipana de Ballet as apresentações de companhias que vieram para o Estado de Sergipe
patrocinada pela Sociedade de Cultura Artística de Sergipe – SCAS. A trajetória destas duas
instituições representa uma alavanca para a dança clássica no Estado, área reveladora do
universo artístico, cultural e intelectual em terras sergipanas. O estudo se situa entre os anos
de 1965 com a criação da Escola Sergipana de Ballet pela bailarina Dorinha Teixeira ao ano
de 1969.

Palavras-chave: História, cultura, balé, ensino, Sergipe

INTRODUÇÃO

As primeiras notícias relacionadas ao balé clássico no Brasil remontam ao Período


Imperial e foi patrocinada pela Família Real Portuguesa. Como a sociedade oitocentista era
muito conservadora, a possibilidade de vulgarização da dança entre filhos de brasileiros
ilustres não prosperou, apreciavam a arte, mas, não a praticavam. A situação começa a mudar
a partir da oficialização do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1936.
Começou então, o processo de profissionalização dessa arte no Brasil735. A essa experiência
se somou a passagem da companhia do Coronel De Basil, Original Ballet Russe. Esta
companhia, surpreendida pela Segunda Guerra Mundial não pôde retornar a Europa e nem ir
para os Estados Unidos, ficando seis anos em turnê pela América Latina, onde difundiu

735
FARO, Antonio José. A dança no Brasil e seus construtores. Rio de Janeiro: FUNDACEN, 1988.

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sementes através de seus artistas que se estabeleceram nos países visitados e abriram suas
respectivas escolas, foi o caso da bailarina russa, Tatiana Leskova, que se fixou no Brasil,
mais precisamente no Rio de Janeiro e fez do país um celeiro de grandes bailarinos736.
Em Sergipe, os primeiros registros do balé clássico se relacionam a segunda
metade do século XX. Em particular, ao estudo biográfico das memórias da professora
Dorinha Teixeira, que teve nessa época seus primeiros passos no balé quando participou do
Curso de Desenvolvimento Artístico, aos oito anos de idade, em 1955. Este curso fazia parte
de um projeto educacional do colégio da professora Neyde de Albuquerque Mesquita, o então
Colégio Sílvio Romero, localizado na Rua Lagarto, nº. 1147 no centro da cidade de Aracaju.
Ensinando além do balé, a poesia, a música e o teatro. Segundo Dorinha Teixeira, esse curso
plantou a semente da dança em Sergipe e serviu de estímulo para que ela fosse estudar balé
clássico no Rio de Janeiro, em 1965, onde teve contato com os grandes mestres do balé no
Brasil, Tatiana Leskova, Erick Valdo, Leda Yuqui, entre outros737.
Nesta época, o curso da professora Neyde já havia se encerrado foi quando
Dorinha percebeu a necessidade de dar continuidade ao ensino do balé em seu estado. Assim,
aos dezoito anos de idade, em março de 1965, esta jovem bailarina criou com o apoio de sua
família, a Escola Sergipana de Ballet. Para o historiador Ibarê Dantas, o profissionalismo na
dança clássica em Sergipe, surge com Dorinha Teixeira e sua Escola Sergipana de Ballet
(1965-1969), dedicando-se ao seu ensino, sobretudo, para as jovens mais abastadas do estado,
ensinando coreografias ritmadas com técnica aprimoradas, cultivando principalmente, o estilo
clássico738.
Com uma formação sem muita experiência, no entanto, Dorinha fez surgir em
suas alunas um despertar para o balé, pois, algumas de suas bailarinas preferiam os prazeres
da dança ao invés das viagens de férias. Estas viagens, às vezes, eram bastante aguardadas por
estas meninas, pois era um tipo de recompensa para quem se comportasse e tirassem boas
notas em seus estudos escolares. Além de ser uma oportunidade de rever parentes distantes739.
Não obstante, o que se observa pelos relatos nos jornais que a arte desta jovem bailarina vinha
crescendo consideravelmente em terras sergipanas. Assim, afirma a gazeta de Sergipe,

736
FARO, Antonio José. Pequena história da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
737
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
738
DANTAS, José lbarê Costa. História de Sergipe República: 1889-2000. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
2004. p. 219.
739
Entrevista concedida por Moema Sobral Mayanard ao pesquisador Mateus Antonio de Almeida Neto, em 21
de maio de 2007.

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Exímia bailarina [Dorinha Teixeira] em breve estará dando outra


apresentação com sua escola de ballet. Aliás, já várias jovens que pediram
para a mestra dar um curso de férias, aproveitando o próximo mês de
Julho740.

Neste sentido, arte de Dorinha Teixeira foi facilitada por causa do período de
mudanças que essa sociedade se encontrava, vivia-se uma conjuntura em que novos valores
culturais começavam a despontar nos anos de 1960. Foi uma época marcada por
manifestações artísticas que atraía todo tipo de público, era o tempo das pantomimas tanto
para o teatro como para a dança. O Brasil passava por um governo ditatorial. Em Sergipe não
era diferente, encontrando-se carentes do ensino do balé.

A disciplina, o ritmo de trabalho, a capacidade interpretativa demonstrada


por todos esses artistas, só vieram enriquecer-nos ... naqueles anos, não
existia vídeos, a televisão engatinhava, e o que se sabia do muito que estava
sendo feito no exterior era através de livros especializados que chegavam às
nossas livrarias – em muito maior quantidade do que hoje – e das
companhias que anualmente visitavam nosso país em suas habituais
excursões pela América Latina741.

Entretanto, em terras sergipanas o sistema televisivo só chegaria a 15 de


novembro de 1971, ano de sua primeira transmissão742. Além disso, a partir da segunda
metade do século XX, surgiram várias organizações de sociedades culturais com o intuito de
apoiar apresentações artísticas nacionais e internacionais. Em Sergipe, neste contexto, em
maio de 1951, nasce a Sociedade de Cultura Artística de Sergipe – SCAS, fruto da vontade de
um grupo de profissionais de várias áreas que desejavam apoiar eventos artísticos nestas
terras. Esta instituição era mantida com a contribuição dos sócios e alguns investimentos
públicos e privados. Os eventos patrocinados pela SCAS durante as suas primeiras décadas de
existência foram prestigiados por platéias distintas e elegantes de diferentes idades743.
A SCAS articulada com outras agências culturais estimulou apresentações de
artistas e companhias culturais no Estado de Sergipe entre os anos de 1951 a 1980. Entre elas,

740
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 15 mai. 1966. nº. 3002. p. 05.
741
FARO, Antonio José. A dança no Brasil e seus construtores. Rio de Janeiro: FUNDACEN, 1988. p. 86.
742
MACHADO, José Carlos. 21 de dezembro de 2006, Machado registra aniversário da TV Sergipe. Fonte:
Câmara dos Deputados. [online] Disponível na internet via http://www.deputado
machado.com.br/discursos_view.asp?id=%7B9622A046-294B-4BF3-A552-650C5F8E901F%7D. Arquivo
capturado em 23 de maio de 2008.
743
CRUZ, José Vieira da. Artes Cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe. Aracaju. In:
Jornal da Cidade, 29 jan. 2004.

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o Ballet de Nora Korach e o Ballet de Dalal Achcar que estiveram em Sergipe no ano de
1962; o Ballet da Caravana da Cultura sob o patrocínio do MEC que esteve em Aracaju, em
1964; Mercedes Batista com o Ballet Folclórico do Rio de Janeiro; o Real Ballet da
Dinamarca, entre inúmeros outras744.
Com todo este frenesi cultural patrocinado pela SCAS, Dorinha Teixeira se
destacou em Sergipe por ser a única a ensinar os prazeres do balé nos idos de 1960 para as
jovens sergipanas que se encantavam pela arte européia apreciadas nas visitas dessas
companhias culturais ou nos livros especializados.
Em nota a Gazeta de Sergipe, o colunista Luiz Adelmo nos esclarece a
equiescência dessas famílias em matricular suas meninas nas aulas de balé e o sustentáculo da
Escola Sergipana de Ballet, além de retratar o sentido desta arte que ainda estava no início no
estado.

A Escola Sergipana de Ballet ... já reiniciou as aulas. Já estando em franca


atividades as várias turmas formadas. Em conversa com Dorinha disse-me
que ainda restam algumas matrículas, bem poucas, aliás. Este ano a escola
está com bem mais alunas que no ano findo. O gosto pelo ballet vem
despertando muitas jovens de nossa sociedade. O ballet sempre fez parte da
“bagagem” de uma jovem prendada 745

De fato, quando Dorinha abriu sua escola de balé suas alunas eram as filhas das
colegas de sua matriarca, que por ser uma refinada pianista todos adoravam ouvi-la tocar.
Entretanto, como toda arte erudita e seleta, o balé era fruto de distinção social e fez parte da
formação de algumas jovens distintas e elegantes da sociedade sergipana. Portanto, o
desenvolvimento desta arte nos idos de 1960 em Sergipe, deve-se ao entrelaçamento
resultante do incentivo do trabalho educacional desta jovem bailarina, a imprensa falada e
escrita que contribuíram para que suas aulas e espetáculos fossem divulgados746, e, sobretudo,
da sensibilidade dessas famílias ao notar a importância dessa vanguarda cultural para a
educação de suas filhas, passando a matriculá-las na Escola Sergipana de Ballet. Além,
evidentemente, da SCAS que patrocinou um fervor cultural, não apenas para o balé, mas para
as artes em geral.

744
SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da Sociedade de Cultura
Artística de Sergipe (1951 a 1980). São Cristóvão, SE, 2002. (monografia de graduação). Universidade Federal
de Sergipe, UFS.
745
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 05 mar. 1966. nº. 2952. p. 07.
746
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.

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Em relação às apresentações da Sergipana de Ballet, eram todas abertas ao


público e patrocinadas pela família Teixeira com parte da renda destinada a entidades
beneficentes747. Divulgando o espetáculo Prelúdio da Primavera, o jornal Gazeta de Sergipe
elucida que os ingressos foram vendidos a preço de três mil cruzeiros e a renda revertida para
o Oratório Festivo Dom Bosco748. Assim, a bailarina Teixeira, além de despertar as
habilidades artísticas do balé em suas alunas, patrocinar o entretenimento voltado para a
dança, ainda possuía um senso de responsabilidade social, onde ela e sua família ajudavam a
instituições beneficentes.

A Escola Sergipana de Ballet ficava localizada na casa dos pais de Dorinha, na


Rua Lagarto, nº. 1021 no centro da cidade de Aracaju. Era uma sala de balé como outra
qualquer, quadrada com ventiladores, um espelho no centro, barras e o piano de Dona Ildete, a
mãe de Dorinha. Além de uma vitrola dessas bem antigas onde Dorinha pesquisava as
músicas para as suas aulas e os festivais 749. Entretanto, a sala tinha um diferencial, o carinho
que sua mãe teve ao decorá-la.

Tinha uma porta lateral para a entrada das crianças; meu irmão Kleber, tinha
acabado de ganhar uma máquina de tirar retrato, uma Polaroid, ele não
cansava de tirar fotos de minhas aulas. A sala era toda arrumadinha, com
vestuário, sanitários; era toda pintadinha com paredes de bailarininhas, eram
as artes da minha mãe750.

Com toda sua simetria e formação apriorística, a jovem bailarina com sua escola
de Ballet, em quase quatro anos de atividades conseguira realizar e produzir alguns
espetáculos: o Primeiro Festival Sergipano de Ballet, no auditório do Colégio Estadual de
Sergipe, no dia 01 de novembro de 1965; o espetáculo Prelúdio da Primavera, no Ginásio de
esportes Charles Moritz, no dia 03 de setembro de 1966; O Sonho de Natasha, no dia 11 de
novembro de 1967 e o Segundo Festival Sergipano de Ballet, no dia 30 de novembro de 1968.
A efervescência desta versátil e refinada bailarina patrocinou um fervor cultural no Estado de
Sergipe. Segundo a Gazeta de Sergipe, “Devido o sucesso alcançado, a bailarina Auxiliadora
Teixeira foi convidada para apresentar alguns dos números do Festival de Ballet, no Cine Rio

747
Idem.
748
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 04 set. 1966. nº. 3088. p. 08.
749
Entrevista concedida por Moema Sobral Mayanard ao pesquisador Mateus Antonio de Almeida Neto, em 21
de maio de 2007.
750
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.

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Branco em próximo show beneficente”751. Assim, sua produção cultural, mesmo estando no
início repercutiu, significativamente, na distinta sociedade Sergipana.
As formas como os agentes culturais do estado apoiavam o balé de Dorinha,
elucida também, a priori, como em pouco tempo a arte desta bailarina fora bastante
divulgada, seja alimentando o imaginário cultural ou despertando talentos artísticos. Ao
descortinar algumas das suas contribuições, revela que a jovem bailarina participou do evento
III Jogos da Primavera, acontecimento de tamanha relevância disputado entre os Colégios do
Estado, chamando a atenção, principalmente, de toda a população, tanto por causa dos jogos
esportivos e pelo desfile das instituições de ensino que eram aguardados pelas autoridades
sergipanas e a massa populacional. Portanto, os Jogos da Primavera fora um evento de
grandes proporções em Sergipe, pois, nos anos de 1960 era um dos poucos, ou o mais
importante no sentido de revelar o potencial dos atletas sergipanos. A bailarina que organizou
as balizas do Colégio Estadual de Sergipe assistira o desfile dos Colégios da sacada do
Palácio Olímpio Campos752.

Quando as balizas do Colégio Estadual se apresentaram em frente ao


palanque oficial, ficou todo mundo empolgado com o espetáculo. Em
harmonia, foi sem dúvida o melhor conjunto. O Dr. Rubens Chaves (que
fazia parte da comissão julgadora) assistiu a todas as evoluções de boca
aberta753.

Neste panorama, a princípio envolto com o imaginário cinematográfico da época


potencializando a revelação de talentos e o desenvolvimento de experiências artísticas
diversas, seus festivais de balé possibilitam expressar o teor da sua arte, pois alguns dos balés
da Sergipana sofreram influências da indústria televisiva, tanto no enredo quanto na
indumentária, podendo ser observado no Prelúdio da Primavera, espetáculo folclórico
baseado em filmes que Dorinha assistiu no Rio de Janeiro em suas habituais viagens de férias
e culturas internacionais, pois a jovem bailarina tinha contato com livros especializados,
sendo conhecedora de outras culturas.

Contudo, para Mário Cabral ao arrazoar o processo de estímulo e formação dos


artistas sergipanos, é necessário enfatizar a inauguração do Auditório-Teatro do Colégio
Estadual de Sergipe, em abril de 1954, pois segundo o literário,

751
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 13 set. 1966. nº. 3949. p. 03.
752
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 21 set.1966. n°. 3101. p. 05.
753
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 20 set.1966. nº. 3100. p. 05.

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A cidade de Aracaju jamais teve Teatro, tomando o termo em seu sentido


específico. ... Eram cinemas transformados em teatros por força das
circunstâncias ou de necessidade emergente ... é mister ser analisado, que na
década de 40, no Teatro Rio Branco, de Juca Barreto, uma rara figura
humana, estiveram artistas de renome, como Itália Fausta, Bidu Sayão,
Renato Viana, Eva Tudor, Jaime Costa, Joracy Camargo, Raul Rolien,
Procópio Ferreira, Tatiana Leskova e tantos outros754.

Dessa forma, percebe-se a importância do Auditório-Teatro do Atheneu,


atendendo as necessidades e a demanda cultural de Sergipe, norteando esta mocidade, tendo
profunda influência no despertar de vocações, o desabrochar de talentos. Segundo Eric
Hobsbawm, tanto a dança quanto o teatro encontravam-se ancoradas na experimentação
artística, na revolução social e cultural que o ocidente estava passando755, contribuindo com
um novo despertar nas artes brasileiras.
Entre os momentos de produção da Escola Sergipana de Ballet, o Primeiro
Festival Sergipano de Ballet que fora apresentado no Teatro Atheneu, tem significativa
importância para o ensino desta arte em Sergipe, pois na sua primeira parte fora realizada uma
aula para que a platéia pudesse apreciar o Corpo de Baile da Sergipana e como é uma aula de
balé, tentando fomentar os prazeres desta vanguarda e diversificar a área de atuação cultural
no estado, pois nesta época,

as artes cênicas ocupavam um lugar de destaque, sobretudo com a


participação de jovens talentos como João costa, Tereza Prado, Agláe
Fontes, Clodoaldo Alencar, Francisco Carlos Varela, João Augusto Gama,
entre outros. Surge o TGB simplificação do Teatro Gato de Botas; o Teatro
de Estudantes do Colégio Estadual de Sergipe (TECES); e o Teatro da
Cultura Artística de Sergipe (TECA)756.

Então, tentando conquistar este público, inclusive com uma contribuição primorosa da família
Teixeira, Dorinha e sua Escola Sergipana de Ballet com

as meninas todas de uniformes e toquinha de rendinha na cabeça que não se


usa mais, fazendo toda uma programação de uma aula mais rápida para não

754
Mário Cabral. Teatro Tobias Barreto. In: Jornal Gazeta de Sergipe. Ano XLII, n° 11651 5 out. 1997. p. 03.
755
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). Tradução Marcos Santarrita;
revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 190-192.
756
CRUZ, José Vieira da. Artes Cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe. Aracaju. In:
Jornal da Cidade, 29 jan. 2004.

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ficar muito demorado, mas com as seqüências obrigatórias de uma aula de


ballet: os pliés, os tendu, adágios, glissés, rond de jamb, battement e os
pequenos saltos. Todas numa circunferência e mostrados rapidamente em
grupos ao som do piano. Foi muito bonito! 757.

Com o florescimento da Escola Sergipana de Ballet, anualmente eram


apresentados seus espetáculos. Em 1966, Dorinha Teixeira apresentou no recém inaugurado
Ginásio Charles Moritz o Prelúdio da Primavera, espetáculo que repercutiu no imaginário
social sergipano, pois os jornais noticiavam o evento da seguinte forma: “... E do modo que
está sendo preparado, será coisa nunca vista antes aqui em Aracaju”758. O colunista Luiz
Adelmo da Gazeta de Sergipe destacava o espetáculo da seguinte maneira:

A bailarina Dorinha Teixeira está preparando suas alunas para a “Festa da


Primavera” a ser realizada no ginásio do SESC e SENAC, prometendo ser
um dos melhores espetáculos do ano. Em conversa com Dorinha, esteve me
explicando, será realmente coisa nunca vista aqui em Aracaju759.

Contudo, a Escola Sergipana de Ballet não apenas patrocinou um fervor cultural


em relação aos prazeres do balé em Sergipe, mas iniciou o ensino profissional da dança
clássica no estado, fomentando inclusive em algumas alunas o aprimoramento desta arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, observando o processo de iniciação do ensino e divulgação do balé em


terras de Sergipe, é mister enfatizar não apenas os esforços da bailarina e professora Dorinha
Teixeira com sua Escola Sergipana de Ballet, mas o entrelaçamento com a imprensa falada e
escrita, e também, a SCAS, Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, onde todos estes
agentes culturais deram uma significativa contribuição para a formação de uma realidade mais
significativa para esta arte no estado.
Enfim, após cinqüenta e cinco anos de início do balé em Sergipe, tendo como
marco o Curso de Desenvolvimento Artístico favorecendo o despertar desta arte em Dorinha
Teixeira, a bailarina que trouxe para o estado o profissionalismo no balé, pois hoje a arte se
encontra em um pleno desenvolvimento, onde Sergipe conta com uma Universidade

757
Entrevista concedida por Maria Auxiliadora Teixeira de Aguiar Machado (Dorinha Teixeira) ao pesquisador
Mateus Antonio de Almeida Neto, em 16 de abril de 2007.
758
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 07 jun. 1966. nº. 3020. p. 05.
759
Gazeta de Sergipe, Aracaju, 17 jun. 1966. nº. 3028. p. 05.

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proporcionando um desenvolvimento acadêmico nos bailarinos e consolidando todo o


processo fruto de pessoas que sempre acreditaram nas vanguardas culturais.

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Nobel, 1998.

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MACHADO, José Carlos. 21 de dezembro de 2006, Machado registra aniversário da TV
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A552-650C5F8E901F%7D. Arquivo capturado em 23 de maio de 2008.

Mário Cabral. Teatro Tobias Barreto. In: Jornal Gazeta de Sergipe. Ano XLII, n° 11651, 5
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graduação). Universidade Federal de Sergipe, UFS.

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VICENZIA, Ida. Dança no Brasil. São Paulo: Atração Produções Ilimitadas, 1997.

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OS DOCENTES FUNDADORES DA FACULDADE DE FILOSOFIA


DA BAHIA E SUAS TRAJETÓRIAS POLÍTICO-INTELECTUAIS
(1930-1945): PERSPECTIVAS ANALÍTICAS E PROPOSTAS DE
PESQUISA

Vanessa Magalhães da Silva – UFBA

O corpo docente que fundou a Faculdade de Filosofia da Bahia era formado por nomes da
elite baiana. Alguns desses docentes foram membros da Academia de Letras da Bahia e do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, formando, assim, redes de sociabilidades. Enquanto
homens de saber, alguns exerceram cargos políticos, e é esse campo de atuação que
pretendemos discutir neste artigo, investigando de que forma esses intelectuais estavam
envolvidos na política baiana, ao tempo em que atuavam como educadores. E por que meios
buscavam legitimar suas atuações.

Palavras-chave: Política; intelectuais; Bahia.

História Política e Intelectual

A atuação intelectual não pode ser dissociada da atuação política. Para


compreender a ação política de determinados grupos é também necessário observar sua
atividade intelectual, e vice-versa. As diversas gerações de intelectuais sempre estiveram à
frente das grandes mudanças políticas do Brasil. A exemplo de 1937, com o Estado Novo; em
1945 com o fim deste e a redemocratização e 1964, com o início da Ditadura Militar.760

Nosso trabalho se baseia em uma proposta de abordar as atividades intelectuais


enquanto atitudes políticas. Se um sistema político-econômico e social cria camadas de
intelectuais que o legitimem, como foi o caso do Estado Novo – e não só dele –, há que se

760
Sobre as transições políticas e os intelectuais ver PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil:
entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

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considerar também que a estrutura em vigor anteriormente deixa intelectuais depositários e


defensores de suas prerrogativas.761

As décadas de 20 e 30 do século XX são marcadas pelo surgimento de


estabelecimentos de ensino superior com o nome de universidade762, pois existiam,
anteriormente, apenas faculdades isoladas. Segundo Lucia Lippi Oliveira, “o discurso
ideológico dos anos 30 apresenta um nível de organização específica, extraindo seu êxito da
coerência simbólica, passível de transformar-se em um projeto político.”763 A Faculdade de
Filosofia da Bahia foi criada em 1941, a Universidade da Bahia em 1946 com a anexação das
faculdades existentes. Daniel Pécaut salienta que os intelectuais deste período não estavam
vinculados à instituições. “Não se situavam em um campo autônomo, com suas hierarquias e
estratégias alicerçadas em critérios relativamente estáveis. Não atuavam, tampouco, no
sentido de consolidar as liberdades e os direitos tocantes à condição universitária.”764 Segundo
Pécaut,

o intelectual brasileiro apresentava, comumente, três perfis: o de advogado


(eram numerosos os doutrinários de tendência autoritária com formação
jurídica); o de engenheiro (freqüentemente caracterizado pelo positivismo e
inclinado para uma visão técnica do poder) e, é claro, o de homem de
cultura.765

Mas nós acrescentamos, no caso da Bahia, os homens da Medicina. E são esses


homens – bacharéis em Ciências Jurídicas, engenheiros e médicos – que irão formar o quadro
docente da Faculdade de Filosofia da Bahia.

É importante salientar que esses intelectuais não estavam inseridos em


universidades, mas muitos estavam inseridos em faculdades, visto que essas já existiam e
tinham uma atuação na vida política, pois eram compostas por membros da elite, elite esta que
era letrada e também política.

761
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982,
p. 3-23.
762
Ver CUNHA, Luiz Antônio. A Universidade Temporã: o ensino superior da Colônia à Era de Vargas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira/UFC, 1980.
763
OLIVEIRA, Lúcia Lippi (coord.). Elite intelectual e debate político nos anos 30: uma bibliografia
comentada. Brasília/Rio de Janeiro: INL/FGV, 1980, p. 52.
764
PÉCAUT, op. cit., p. 34.
765
Id., ibid..

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Esta geração fazia parte de uma rede de sociabilidade baiana que transitava entre o
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a Academia de Letras da Bahia, além das
faculdades em que atuavam, principalmente com professores catedráticos e, em nosso
trabalho enfocaremos a FFB. Além disso, estavam inseridos na política estadual, alguns
também na política nacional.

Acreditamos que através da análise de trajetórias dos professores fundadores da


Faculdade de Filosofia da Bahia será possível identificar suas posturas políticas e atrelá-las a
seus comportamentos intelectuais, quando cultura e política tornam-se “componentes
indissolúveis do mesmo processo”.766

Angela de Castro Gomes nos adverte que os locais de sociabilidade intelectual de


uma determinada geração “podem ser indicadores valiosos pra análise de movimentos de
produção e circulação de idéias”. 767 No caso da Bahia estado-novista dois destes lugares são o
IGHB768 e a ALB – além da própria Faculdade de Filosofia. A análise destes locais
privilegiados enquanto centros produtores e difusores de saber, e da atuação desta geração
específica e das suas condições particulares de produção – além do seu comprometimento
político – em suas estruturas ajudará “a elucidar aspectos da constituição de uma formulação
intelectual, de sua vitalidade e continuidade através do tempo.”769

Um estudo que traz reflexões importantes é o de Michel Trebitsch. Primeiro


quando indaga sobre as formas pelas quais um universo intelectual produz suas
idiossincrasias.770 Depois, ao defender a idéia de que arenas de sociabilidade são
imprescindíveis para a produção intelectual.771 As premissas estabelecidas por este autor
oferecem a perspectiva de enaltecer as especificidades deste grupo de intelectuais baianos em
seus centros de sociabilidade que se conformam como bancadas para o debate erudito e para
disputas políticas. Jean-François Sirinelli, por sua vez, conclama o historiador que estuda a

766
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1980, p. 19.
767
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p. 41-42.
768
Seguindo esta linha de pensamento, Aldo Silva, em um estudo sobre o IGHB, nos diz que a instituição fora
criada para servir como espaço de interlocução das elites, centro privilegiado para a reflexão e produção de um
saber específico, absolutamente articulado às idiossincrasias locais. In: SILVA, Aldo José Morais. Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia: origens e estratégias de consolidação institucional (1894-1930). Tese de
Doutorado. Salvador: FFCH/UFBA, 2006, p. 15-16.
769
GOMES, op. cit., p. 42.
770
TREBITSCH, Michel. “Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme”. In: Le Cahiers de l’Institut d’
Histoire du temps présent. Paris: CNRS, nº 20, mars, 1992, p. 15-18.
771
TREBITSCH, op. cit., p. 17-20.

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sociabilidade intelectual a construir um mosaico de possibilidades de forma que toda e


qualquer circunstância de produção ou atuação intelectual seja inteligível. 772

Assim, propor uma história dos intelectuais pautada nas redes de sociabilidade
significa “seguir as trajetórias de indivíduos e grupos buscando mapear suas idéias, tradições,
comportamentos, formas de organização, de modo que seja possível caracterizar e
compreender seus esforços de reunião e de afirmação de identidade em determinados
momentos.”773

Paulo Santos Silva informa que, para além dos diversos laços de parentescos,
longas amizades, credos políticos, casamentos, apadrinhamentos e outros, um aspecto
importante “é que os baianos sempre se dedicavam a escrever uns sobre os outros, traço
comum a qualquer agrupamento que busca unidade ou pretende manter-se coeso.”774 Havia os
discursos de posse da Academia de Letras da Bahia e textos biográficos. Ainda sobre a
coesão, Silva acrescenta:

A produção intelectual veiculada pelas revistas do IGHB e da ALB revela o


quanto esta comunidade era auto-centrada: a maior parte dos textos
publicados entre 1930 e 1945 refere-se a personalidades locais, traçando-lhes
os perfis biográficos, o que, de resto, significava cumprir os objetivos
programáticos dos dois referidos periódicos. Assim, os intelectuais baianos
mantinham viva a memória e construíam para si, a partir de cada membro,
uma imagem positiva, reforçadora da coesão dessa pequena comunidade.775

Se Trebitsch está correto ao defender que a história dos intelectuais se pauta em


representações de uma comunidade idílica776, pretendemos averiguar que forma ela assume
no caso dos docentes da Faculdade de Filosofia da Bahia. Os intelectuais serão vistos como
produtores de bens simbólicos e como mediadores culturais que têm sua atuação atrelada ao
surgimento de um espaço público que, como afirma Roger Chartier, dá sentido às suas
atividades culturais ao tempo em que lhes confere doses de autonomia.777

772
SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de
Janeiro: Editora FGV/UFRJ Editora, 1996, p. 250-255.
773
GONTIJO, Rebeca. “História, cultura, política e sociabilidade intelectual”. In: SOIHET, Rachel, BICALHO,
Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria da Fátima Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história
cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 277.
774
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso histórico na
Bahia (1930-1949). Salvador: EDUFBA, 2000, p. 103.
775
Id., ibid..
776
TREBITSCH, op. cit., p. 20-21.
777
CHARTIER, Roger. História cultura: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1991, p. 15-20.

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É preciso considerar a relevância do papel social e histórico que uma coletividade


desempenha, neste caso, na conformação de instituições e/ou de grupos sociais específicos e
da prosopografia778 como elemento a ser utilizado para apreensão dos significados das
representações que marcam as ações destes grupos. A prosopografia pode ser uma ferramenta
que auxilia a análise dos intelectuais enquanto grupo (coletividade) institucionalmente
(IGHB, ALB, Faculdade de Filosofia) articulada.

A coletividade pode ser associada à construção de uma identidade letrada, mesmo


que endogenamente haja todos os tipos de cisões. Embora apresentando dissidências em
diversos departamentos o grupo pode se tornar coeso (“coletivo”) na medida em que
apresenta um projeto intelectual integrado.779 Seriam as formas particulares de “pensar e agir
de uma comunidade intelectual”780 específica, caracterizadas conjunturalmente pelas
possibilidades de um contexto que circunscreve suas faculdades de captar a realidade e
refletir sobre ela. Daí nasce a necessidade de entender as suas práticas intelectuais enquanto
práticas de um grupo específico, “seu modo de ser (...), suas estratégias, seus habitus.”781

É importante refletir sobre as funções sociais que estes intelectuais poderiam


assumir – suas posições não apenas na Faculdade, mas também nas outras instituições
intelectuais de prestígio da época, IGHB e ALB, especificamente – graças à sua competência
e erudição782, assunto tão recorrente em suas pastas pessoais783. Destarte, a pergunta que
Jacques Le Goff tenta responder, “o que é um intelectual?”784, pode ser pertinente às nossas
reflexões se acrescentarmos a ela “da primeira geração de docentes da Faculdade de Filosofia
da Bahia”. É atrás do itinerário, da trajetória destes gens de savoir que nós estamos.
Como propõe Nicolau Sevcenko, em outras bases epistemológicas, mas com o
mesmo objetivo, a análise das posturas destes homens e mulheres, os temas sobre os quais se
detiveram e o realce que lhes concederam, são algumas das referências para que possamos

778
BULST, Neithard. “Sobre o objeto e o método da prosopografia.” In: Revista Politéia: História e Sociedade.
Vitória da Conquista: Edições UESB, v. 5, nº 1, 2005, p. 47. Para uma análise pormenorizada ver HEINZ, Flávio
Madureira. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
779
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 69.
780
SILVA, Helenice Rodrigues de. “A história intelectual em questão.” In: LOPES, Marcos Antônio. Grandes
nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 16.
781
Id., ibid..
782
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999, p. 17.
783
As pastas pessoais são uma de nossas fontes e estão organizadas no Arquivo da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBA. Nelas estão documentos pessoais, cartas, crrículos, rascunhos de trabalhos, além
de documentos administrativos.
784
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20.

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compreender “suas tendências mais marcantes, seus níveis de enquadramentos sociais e sua
escala de valores”.785

Apresenta-se como sendo de fundamental importância o devido estabelecimento


das relações entre o contexto estado-novista e as instituições culturais – como IGHB e ALB –
que muitas vezes se configuraram como instrumentos do Estado. Não nos esqueçamos que a
própria Faculdade foi idealizada por um dos mais eminentes integralistas do cenário político
baiano. Esse pano de fundo histórico é fulcral para nossa análise e para o entendimento das
tentativas e possibilidades de interferência desses intelectuais na conformação de sua
sociedade.

Isso sem desconsiderar o “espírito de grupo”786 que marca suas relações,


independente da posição política assumida por cada qual. Assim, abre-se a possibilidade de
interpretação de “alguns momentos mais significativos em que a intelectualidade se debruçou
sobre si mesma para auto-avaliação ou, ainda, sobre o objeto do seu labor para defini-lo,
situando-o em relação ao contexto vivido”.787

Ao estudar esses personagens, que se distinguiam de outras categorias sociais pelo


capital cultural que amealharam, é preciso, como sugere Jacques Verger, “procurar
compreender os contornos e o estatuto desta cultura que era deles”.788 Mas não é só isso, é
necessário também entender a conformação dessa cultura no papel social que estes atores
desempenham. Ao escolher os professores fundadores pretendemos “estabelecer relações
horizontais e verticais entre eles”.789 A categoria geração assume aqui um sentido
“operacional para uma abordagem que pretende destacar as características das trajetórias de
vida”790 dos professores da Faculdade de Filosofia da Bahia “relacionando-as entre si através
de vínculos pessoais privados e profissionais/públicos ao longo do tempo”.791

Representação Simbólica: Os Quadros

785
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 22.
786
GRAMSCI, op. cit., p. 3.
787
MOTA, op. cit., p. 19.
788
VERGER, op. cit., p. 22.
789
GOMES, op. cit., , p. 39.
790
Id, ibid.
791
Id, ibid.

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Há no universo político e intelectual uma representação simbólica. No caso em


estudo, além dos discursos e da produção intelectual, há uma busca do simbólico representado
através de quadros que retratam alguns dos mais eminentes professores da Faculdade de
Filosofia da Bahia. Estes quadros, que se configuram a um só tempo como parte da cultura
material da Faculdade de Filosofia da Bahia e da sua história intelectual, podem, sem dúvida,
contemplar a agenda proposta por Ulpiano Meneses de temas que enriqueçam as relações
analíticas que colocam história e campo visual frente a frente.792
Os quadros eram uma das formas através das quais a perenidade – talvez
imortalidade seja um termo carregado demais, mesmo considerando que expresse melhor o
anseio dos envolvidos – da atuação intelectual dos professores poderia ser celebrada. Ela se
associava à produção intelectual completando-a na condição de memória visual793 e
desempenharia o papel de enaltecer, o retratado, em locais e contextos diversos. Concordamos
com Simões Filho que “o fato de estabelecer uma imagem pública e institucional foi o que
conferiu valor social para esse gênero de representação”.794
Diante destas fontes, decidimos fazer uma abordagem que contemplasse esses
quadros, sem escapar ao tema inicial de nossa pesquisa, que é o estudo da primeira geração de
professores da Faculdade de Filosofia da Bahia e seus meios e mecanismos de sociabilidade
intelectual na Bahia das décadas de 40 a 60 do século XX.
A perspectiva, deste modo, é realizar uma análise que promova o diálogo entre a
história intelectual e a cultura material. Algumas questões apareceram de imediato: por que
estes indivíduos especificamente foram contemplados com retratos795? O que os fez
merecedores desta honraria? Nem todos os docentes de uma mesma geração tiveram seus
retratos pintados, o que nos fez questionar os critérios da escolha dos indivíduos a serem
imortalizados em quadros.
As pinturas são símbolos que permeiam o imaginário e servem como elementos
de legitimação. “Um símbolo estabelece uma relação de significado entre dois objetos, duas
idéias ou entre objetos e idéias, ou entre duas imagens”796. Nossa intenção aqui é perscrutar o
significado que essas obras encerravam na sociedade que as viu nascer.

792
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório,
propostas cautelares”. Revista Brasileira de História, vol.23, nº45, São Paulo, Julho, 2003, p. 11-36.
793
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 93.
794
SIMÕES FILHO, Afrânio Mário. Retratos baianos: memória e valor de culto na Primeira República (1889-
1930). Dissertação de Mestrado. Salvador: EBA/UFBA, 2003, p. 8.
795
“A palavra retrato se refere à representação de uma pessoa real por processos artísticos tais como o desenho, a
pintura, a gravura. [...] A imagem pode também ser conseguida através de processos industriais. Em literatura o
termo retrato é descrição de alguém ou de algo.” In: SIMÕES FILHO, op. cit., p. 15.
796
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 13.

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Louis Marin chama a atenção para as potencialidades representativas de um


quadro comparando-o a um texto escrito que é capaz de enunciar o que as palavras já não
podem. Assim, “o espectador deve ler um quadro como se fosse um texto.”797 Esse exercício
intelectual tem a função de “recuperar a visão do passado”798, o que se apresenta como um
objetivo a ser atingido. Partimos da idéia de que essas pinturas têm por função “tornar
presente uma ausência, mas também exibir sua própria presença enquanto imagem e, assim,
constituir aquele que a olha como sujeito que olha”. 799 A partir daí podemos explicitar o
conjunto de significados e representações que estes documentos apresentam.
É possível encontrar em algumas pastas administrativas informações sobre datas
de inauguração dos retratos. Carlos Chiacchio faleceu em 1947 e, em sua pasta, consta um
documento da Conferência realizada no Salão Nobre da Reitoria por ocasião da inauguração
de seu retrato, no dia 28 de outubro de 1948. A pasta de Manuel Peixoto contém um
documento enviado à senhora Irene Baker, no qual a Faculdade a convidava para a
inauguração do retrato do professor Peter Baker na Galeria de Mortos Ilustres, no dia 22 de
abril de 1966. A pasta do professor José Valladares contém um convite destinado ao Sr.
Francisco do Prado Valladares, para a colocação dos quadros de Francisco Xavier Ferreira
Marques, Herbert Parente Fortes, Antônio Luiz Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto
e José Antônio do Prado Valladares, que ocorreria às 16 horas do dia 1º de outubro de 1962.
Nas pastas dos professores Magalhães Netto, Renato Mesquita e Barros Barreto também
constam informações sobre os quadros.
Assim, refletimos sobre como uma fonte visual, que integra os quadros da cultura
material de uma universidade baiana, pode se transformar em informação sobre o passado e
elemento a partir do qual signos possam ser identificados, tornando inteligíveis caracteres
desta sociedade na qual o retrato era uma arte distintiva.
A obra de arte se reveste de fonte histórica que auxilia na compreensão do
passado. É importante frisar que ela não se despe de sua materialidade, fazendo parte do que
se pode chamar de práticas materiais800 e se configurando como uma experiência social
cercada de uma série de especificidades e dotada, portanto, de uma historicidade particular.801
Neste sentido, representação e apropriação se configuraram como elementos a serem
797
MARIN, Louis. “Ler um quadro: uma carta de Poussin em 1639”. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas de
leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 119.
798
GASKELL, Ivan. “História das imagens”. In: BURKE, Peter. A escrita da História. São Paulo: UNESP,
1992, p. 260.
799
CHARTIER, Roger. À beira a falésia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p. 165.
800
MENESES, op. cit..
801
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Vendo passado: representação e escrita da história”. Anais do Museu
Pau1lsta, vol.15, nº2, São Paulo, Jul/Dez. 2007.

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considerados como fundamentais para compreensão dos significados históricos e sociais da


produção imagética.
A recepção, elemento que não pode ser desconsiderado em suas diversas formas
possíveis, entra em jogo atrelado a um dos objetivos da produção material-imagética: a
criação de locais de memória, nos quais os mais proeminentes intelectuais – ainda que seja
difícil a distinção dos selecionados a serem retratados – seriam relembrados por suas
ações/produções, pelo seu pertencimento ao grupo específico de homens de saber que fizeram
parte do universo de professores da Universidade de Filosofia da Bahia. Estes locais, além de
invocar a identidade local, evocariam “os tempos pretéritos consolidando a memória
institucional”.802 Desta forma, a Universidade sacramentava sua temporalidade na condição
de espaço cultural através da lembrança. 803
Há alguns traços nos quadros que podem ajudar a comprovar isso, como por
exemplo, as roupas que trajam os retratados. Elas obedecem a uma linearidade e alguns – a
maioria – portam seus mantos que servem para distingui-los de outros que não fazem parte
desta coletividade específica. Na condição de retratados, os professores são a representação
do corpo docente da Faculdade de Filosofia da Bahia e, portanto, abandonam
momentaneamente suas particularidades para se transformar em membros de uma corporação
em nome da qual falam.804.
A Faculdade enquanto instituição se expressa por meio desta documentação
imagética, cria uma narrativa do passado que se conforma como campo privilegiado para o
historiador. Essa narrativa pode ser útil para compreensão do seu mundo contemporâneo, não
apenas pelo que evidencia, mas também, pelo que oculta. O poder que confere legitimidade e
que torna algo visível é responsável também pelo que não ficou evidenciado e terminou
relegado à penumbra do esquecimento e à invisibilidade. Toda seleção implica em exclusão e
não é diferente quando está em jogo aquilo ou aquele que será registrado e legado à
posteridade e o que deve, por qualquer razão, cair no esquecimento. Assim, estes quadros que
fazem parte da cultura material da Faculdade de Filosofia da Bahia constroem um discurso
sobre o passado da instituição e o rastro deixado por estas obras, certamente, está relacionado
a disputas por poder e legitimidade.
Muito importante se faz aqui a proposta feita por Peter Burke ao estabelecer toda
sorte de interfaces entre a história e as imagens. Ele adverte, seguindo uma trilha

802
EL FAR, op. cit., p. 96.
803
GUIMARÃES, op. cit..
804
EL FAR , op. cit., p. 102-103.

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recomendada por Edward Carr, àquele que pretende se dedicar a escrita da história tendo
como fontes as imagens, “que inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores
destas imagens”.805
Cabe, então, estabelecer os diversos propósitos que motivaram os realizadores do
processo de confecção dos quadros dos professores da Faculdade de Filosofia da Bahia em
suas múltiplas fases, diferenciando idealizadores e executores, tentando entender as
ambivalências de seus anseios e a medida em que a idealização foi cumprida quando da
execução das tarefas encomendadas. Mesmo que tenham acatado ordens diretas e restritas, os
pintores sempre carregam doses variadas de subjetividade que marcam seu estilo, suas
preferências e influências artísticas e o resultado, por mais pragmático que pareça, está
impregnado pela mundividência do autor. Deve ficar registrado que os três pintores
contratados para execução dos quadros eram, eles também, componentes do quadro docente
da Universidade da Bahia, o que estimula a formulação de uma pergunta: qual a relação entre
artista e modelo? Mesmo que não tenhamos a resposta neste momento, tal interrogação
enriquece a discussão.
Os quadros devem ser vistos como documentos privilegiados que permitem
entabular diálogos entre diferentes tendências da narrativa histórica. Na condição de fontes a
serem utilizadas para enriquecer o entendimento da sociedade baiana de meados do século
XX, coadunam-se como elementos fundamentais para ajudar a elucidar traços das
mentalidades e dos costumes que norteavam os anseios e as convenções dos diversos
segmentos sociais, especialmente daqueles que alimentavam os grupos docentes com seus
representantes.
Traços da cultura material que, produzidos sob os auspícios de uma elite política
num contexto antidemocrático e conservador por excelência, apontam os mecanismos
utilizados por elementos destas elites que buscavam prestígio social através da atuação
intelectual para sacramentar suas ações e preservar sua memória, num período em que o culto
da personalidade era a tônica da atuação na vida política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Regina. A fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de consagração no


Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/Lapa, 1996.

805
BURKE, Peter. Testemunha ocular. Bauru: EDUSC, 2004, p. 24.

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MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO: UM OLHAR


HISTORIOGRÁFICO

José Vieira da Cruz806


josévieiradacruz@uol.com

Essa reflexão objetiva apresentar algumas possibilidades de interpretação historiográficas


acerca do movimento estudantil brasileiro. Ao analisar alguns trabalhos publicados é
perceptível como pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento – história, sociologia,
educação entre outras – têm procurado enfocar tal movimento a partir de problemáticas e
perspectivas próprias, identificando-as aos respectivos campos de estudo. De modo geral, as
possibilidades de interpretação a respeito da juventude estudantil no Brasil apresentam
ângulos de análises diferenciados, gerando uma simultaneidade de paradigmas. Esses estudos
tendem a focalizar experiências juvenis ocorridas nos grandes centros urbanos do país nem
sempre dando conta das diversidades espaciais, temporais e socioculturais que envolvem o
tema. Esse tipo de atitude tem colocado a necessidade de fomentar pesquisas que considerem
os desdobramentos e especificidades regionais dos movimentos relacionados à juventude
revelando seus mais diferentes contextos, necessidades, desejos e identidades.

PALAVRAS-CHAVE: história, historiografia, movimento estudantil, juventude estudantil

INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, grandes transformações marcaram o debate


historiográfico, e muito poucos historiadores preservam a crença na
capacidade da história de produzir um conhecimento inteiramente objetivo e
recuperar a totalidade do passado. A objetividade das fontes escritas com
que o historiador trabalha foi definitivamente posta em questão.807

Sem a intenção de esgotar os estudos desenvolvidos sobre a juventude estudantil


no Brasil. Essa reflexão objetiva apresentar algumas possibilidades de interpretação desta

806
Mestre em Sociologia/ UFS. Doutorando em História Social/UFBA. Atualmente é Prof. Adjunto da UNIT e
Diretor da ANPUH-SE. E-mail: josevieiradacruz@uol.com.br
807
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002

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temática. Analisando, em alguns trabalhos publicados, como os pesquisadores de diferentes


áreas do conhecimento – história, sociologia, educação entre outras – têm identificado as
problemáticas e perspectivas que envolvem esse campo de estudo.
Em termos historiográficos, os estudos relacionados ao movimento estudantil se
aproximam das discussões da chamada “história do tempo presente”808. Pois possibilitam
interpretações importantes acerca de acontecimentos de um passado ainda próximo e vivo na
memória nacional809. Esses estudos tendem a se apoiar na crítica à idéia de totalidade e na
problematização da exclusividade do uso de fontes escritas. O atual momento historiográfico
não apenas ampliou o entendimento acerca das fontes para pesquisa histórica, e de seus
objetos, como fizeram o colaboradores da revista Annales, em 1929, e os participantes da
École Pratique des Hautes Études, em1948, mas também tem revisto a idéia de cisão entre o
passado e presente colocada pela historiografia do século XIX810. O rompimento da idéia de
que os estudos históricos só poderiam ser realizados com objetividade com o certo
distanciamento cronológico negariam a premissa de que o olhar do historiador é movido pelos
interesses do seu tempo. Neste sentido, o aprofundamento das relações entre o passado e o
presente contribuiu para “... a expansão dos debates sobre a memória e suas relações com a
história” e isto “veio a oferecer chaves para uma nova inteligibilidade do passado” 811.
Analisando a literatura acerca do movimento estudantil no Brasil à luz dessas
discussões é possível, mesmo que incorrendo em equívocos, dimensionar três linhas de
interpretações: uma preocupada em relacionar a imagem “positiva” que já se fazia sobre a
juventude letrada dentro de uma dimensão “progressista”, resgatando uma identidade pela
812
qual a juventude estudantil é identificada como vanguarda cultural e política do “povo” .
Outra preocupada em entender o papel da juventude na sociedade moderna, suturando-a a
uma identidade sociológica em que as ações do movimento estudantil e dos movimentos da

808
BÉDARIDA, François. “Tempo presente e a presença da História” in: FERREIRA, Marieta de Morais &
AMADO, Janaína (Orgs). Usos e Abusos da história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1998, pp.219-232.
809
ARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Relume Dumará: Fundação Roberto Marinho, 2007.
810
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, pp.314-332.
811
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, p. 320.
812
PINTO, Álvaro Vieira. A Questão da Universidade. 2ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986;
POERNER, Artur José. O Poder Jovem. Op. cit.; MENDES JÚNIOR, Antônio. Movimento Estudantil no
Brasil. Op.cit.; RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da tv.
Op. cit..

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juventude se relacionam às estruturas sociais de classe813. E, por fim, uma tendência aliada
aos estudos contemporâneos com tendência a abordar as ações coletivas e individuais desses
atores sociais a partir de olhares mais pluralizados e descentrados814.
Em relação à participação política e/ou cultural dos estudantes na história
brasileira não rara foram às vezes em que eles se envolveram com fatos relacionados à
“grande política”, tomando partido diante de questões nacionalistas e/ou de cunho
universalizantes como as discussões pela modernização e a democratização do país. Estes
posicionamentos muitas vezes foram utilizados para construir uma imagem “progressista” e
“revolucionária” acerca da atuação estudantil, uma das muitas interpretações possíveis a
respeito dos estudantes e dos movimentos dos quais eles fizeram ou fazem parte. Atualmente
o alargamento do entendimento a respeito da atuação e do comportamento estudantis, em
particular identificados como jovens, tende a elaboração de estudos sobre estes atores sociais
dentro e fora dos limites institucionais que convencionalmente é a eles associado. Abordagens
que tem levado em consideração os valores culturais do lugar e da época em que estes
protagonistas estão inseridos815.

A Historiografia

Em âmbito geral, esses estudos têm evidenciado a visibilidade que o movimento


estudantil tem obtido, em particular nos seus enfoques sobre os anos 60 e 70. Estudos que
oscilam entre a percepção do movimento estudantil como uma vanguarda política e cultural, e
/ou a partir dos limites e possibilidades de sua situação social de origem. Sendo que os
trabalhos das últimas décadas tendem a contemplar também grupos descentrados do universo

813
IANNI, Otávio. “O Jovem Radical” in: BRITTO, Sulamita (Org.). Sociologia da Juventude I: Da Europa da
Marx à América Latina de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 225-242; FORACCHI, Maria A. A Juventude
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FILHO, João Roberto. Movimento Estudantil e a Ditadura Militar. São Paulo: Papirus, 1987.
814
SOUSA, Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da Utopia: A militância política dos jovens dos anos 90. São
Paulo: Hacker, 1999; MARTINS FILHO, João Roberto (org.). 1968 faz 30 anos. Op. cit.;. ALMEIDA, Maria
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regime militar” in: Schwarcz, Lilia Mortiz (Org.). História da Vida Privada no Brasil IV: contrastes da
intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp. 319-409.
815
LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude. História dos Jovens 2: A época contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

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estudantil dos grandes centros urbanos nacionais, focalizando também realidades sócio-
culturais de grupos situados na periferia: as chamadas tribos urbanas816.
Em seu conjunto, esses estudos ainda não têm dado conta das diversidades
espaciais, temporais e sócio-culturais que envolvem o tema. Este tipo de atitude tem
proporcionado à construção de leituras que desconsideram os desdobramentos e
especificidades regionais em seus mais diferentes contextos. Dentro dessa problemática,
novas tendências têm se voltado para fomentar pesquisas sobre os estudantes dentro e fora do
eixo Rio - São Paulo.
Esse é o caso do livro organizado por Martins Filho, 1968 Faz 30 anos, uma
coletânea de estudos sobre o movimento estudantil vista não mais de maneira centrada em um
único viés, em um único espaço, mas sim articulada às especificidades e aos desdobramentos
regionais817. Em seu conjunto, este livro traz à luz novas fontes, novos objetos e diferentes
enfoques regionais. Destacam-se neste sentido o artigo de Margarida Vieira que esquadrinha
acertos e erros dos líderes estudantis mineiros dos anos 60 mostrando como as “lembranças”
818
podem nos ajudar na reflexão de “... uma sociedade mais justa e mais livre” . Voltando a
atenção para Curitiba, Rafael Hagemeyer analisa as imagens do “estudante-povo”, do
“estudante-elite”, do “estudante-paranaense” e do “estudante-subversivo” utilizadas pela
imprensa durante o período militar. Já em Goiânia, os confrontos analisados por Teresinha
Duarte ressaltam o movimento secundarista e a rigidez das autoridades militares e civis. Já as
mobilizações estudantis em Alagoas, analisadas por José Saldanha, mostram como o
movimento estudantil, apesar de ter apresentado enfoques em políticas diversas, ficou
concentrando na luta pela ampliação das vagas para ingresso na universidade naquele Estado.
Este autor ao analisar os acontecimentos relacionados, particularmente ao
movimento estudantil durante a ditadura militar, visualizou os contornos de quatro momentos
históricos: o primeiro vinculado à inserção do movimento estudantil nas campanhas
reformistas do final do período populista (1962-1964). O segundo, associado a resistência do
movimento estudantil ao projeto educacional e político-repressivo implantado pelo golpe
civil-militar de 1964. O terceiro, tencionado a partir de 1968 com o “golpe dentro do golpe”
silenciando o movimento estudantil e levando alguns de seus participantes a luta armada. E

816
CARRANO, Paulo César Rodrigues Carano. “Juventudes: as identidades são múltiplas” in: Movimento. Rio
de Janeiro: DP&A, n. 1, maio de 2000, p.11-27; CARMO, Paulo Sérgio do. “Juventude no Singular e no Plural”
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Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da Utopia: A militância política dos jovens dos anos 90. São Paulo:
Hacker, 1999.
817
MARTINS FILHO, João Roberto. 1968 faz 30 anos. Op.ct.
818
Op. cit., p.9.

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por um último, o momento relacionado ao lento e gradual processo de distensão e abertura


política que começou com o governo de Geisel e se estendeu até 1984, final do governo
Figueiredo819. A delimitação desta proposta de periodização capta em grande medida os
desdobramentos das tensões entre o movimento estudantil e a ditadura militar.
Nas últimas décadas tem se avolumado uma série de pesquisas que toma como
eixo central entender, a partir dos enfoques regionais, a rede de mobilizações articulada pelo
movimento estudantil no Brasil. Este é o caso da obra de Sílvio Benevides - Na contramão do
poder, e das dissertações de mestrado nos programa de pós-graduação em História e
Sociologia na Bahia que tomam como enfoque de pesquisa o movimento estudantil. Em
particular, a dissertação de mestrado de Antônio Maurício sobre a história do movimento
estudantil na UFBA; a pesquisa de Antonio Eduardo relacionada à reorganização dos
estudantes baianos na década de 1970, e o trabalho de Sandra Regina B. da Silva a cerca da
participação de estudantes e militantes de esquerda com a luta armada durante o período
820
militar . Inserida neste universo de discussões, também se inserem as pesquisas sobre o
movimento estudantil em Sergipe821.
Potencializando as tensões relacionadas à atuação política e cultural do
movimento estudantil frente às restrições dos espaços de participação da sociedade civil em
detrimento ao fortalecimento das instituições da sociedade política tuteladas pelos militares
por um lado, e por outro, analisando como a memória dos atores sociais que vivenciaram essa
experiência representa esses acontecimentos, além de analisar como a memória estudantil
sobre esse período é apropriada no discurso historiográfico contemporâneo e pelos meios de
comunicação. Esses estudos tendem “... a fabricar um maior número de memórias coletivas, a
multiplicar os grupos sociais que se autonomizam pela preservação ou pela recuperação do
seu próprio passado”822.
Considerando que a memória é suscitada pelas necessidades do presente, o seu
uso como fonte histórica deve observar como ela é repetida, selecionada, rememorada e
819
Op. cit.
820
BENEVIDES, Silvio César Oliveira. Na contramão do poder: juventude e movimento estudantil. São
Paulo: ANNABLUME, 2006; (Dissertação de mestrado); SILVA, Sandra Regina B. da. “Ousar lutar, ousar
vencer”: histórias da luta armada em Salvador (1969-1971). Salvador: UFBA, 2003. (Dissertação de mestrado);
BENEVIDES, Silvio C. S. Proibido proibir – Uma geração na contramão do poder. Salvador: UFBA-FFCH,
1999. (Dissertação de mestrado); BRITO, Antonio Mauricio F. Capítulos de uma história do Movimento
Estudantil na UFBA (1964-1969). Salvador: UFBA, 2003. .(Dissertação de mestrado); OLIVEIRA, Antonio
Eduardo Alves de. O ressurgimento do movimento estudantil baiano na década de 70. Salvador: UFBA,
2002.
821
Em um outro artigo intitulado “A Juventude Estudantil em Aracaju: Trilhando os seus primeiros passos”
publicado na Revista de Aracaju, publicada em 2002, discutimos os estudos a respeito em Sergipe.
822
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Fernando. Combate entre história e memórias. Aracaju: Fundação
Oviêdo Teixeira, 2005, p.27.

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interpretada823. A emergência da chamada história do tempo presente e sua valorização dos


testemunhos históricos diretos; o retorno dos estudos políticos centrado nas experiências
vividas pelos sujeitos824, nas redes sociais e nas particularidades históricas; o entendimento de
que o passado é construído a partir das necessidades do presente ajudam a “... esquadrinhar os
usos políticos do passado recente ou a propor o estudo das visões de mundo de determinados
grupos sociais na construção de respostas para os seus problemas”825. Balizado com essas
indagações, observa-se que a rememoração de acontecimentos em razão de seu valor
simbólico tem se colocado como um “... instrumento fundamental do laço social. A memória
(individual e coletiva) torna-se, nessa última década, um dos objetos centrais de análise dos
historiadores do tempo presente”826. O estudo sobre as memórias estudantis se apresenta
assim intimamente relacionado aos debates da história do tempo presente, sobretudo, os
decorrentes dos acontecimentos desencadeados a partir de 1968 no ocidente cristão, e das
discussões associados à ditadura militar no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história e a memória daqueles que de alguma maneira participaram das


atividades do movimento estudantil durante o período militar entrelaçam os registros
históricos realimentado pelas rememorações de um passado próximo e presente. A relação
destas irmãs siamesas – história e memória – suscita um diálogo entre os estudos
bibliográficos e as fontes históricas relacionadas à participação da juventude na sociedade
brasileira, em particular do segmento estudantil, com a memória nacional a respeito do
período militar. Descortinar este passado ainda não esgotou as lições e entendimentos que
podem proporcionar para a história da cidadania no Brasil. Em especial no tocante a luta e a
resistência em defesa da democracia e dos direitos e garantias fundamentais individuais e
coletivas nos últimos desdobramentos de nossa história republicana.
Em seu conjunto as possibilidades de interpretação a respeito da juventude
estudantil no Brasil apresentam ângulos de análises diferenciados, gerando uma
simultaneidade de paradigmas. Esses estudos tendem a focalizar experiências juvenis

823
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, 2002, pp.425-438.
824
RÉMOND, René. Por que a História Política? In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,v.7, nº13, 1994.
825
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História, tempo presente e história oral”. In: Topoi, Rio de Janeiro,
dezembro 2002, p. 324.
826
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, 2002, p.426.

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ocorridas nos grandes centros urbanos do país nem sempre dando conta das diversidades
espaciais, temporais e socioculturais que envolvem o tema. Esse tipo de atitude tem colocado
a necessidade de fomento de pesquisas que consideram os desdobramentos e especificidades
regionais que os movimentos relacionados à juventude podem ter assumido em seus mais
diferentes contextos.

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3.4 – SIMPÓSIO 4:
HITÓRIA DA EDUCAÇÃO
Coordenação:
Profª. Msc. Cristina de AlmeidaValença (ANPUH-SE/UNIT/
Doutoranda na UFBA)
Profª. Msc. Cristiane Vitório de Sousa (SEED/FA)

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FILANTROPIA E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE MENORES “GETÚLIO


VARGAS” (1942-1974)

Alessandra Barbosa Bispo (Universidade Tiradentes)


alessandrabispo@oi.com.br

O presente estudo analisa o modelo de assistência e educação destinada aos internos da


Cidade de Menores “Getúlio Vargas”. As fontes utilizadas partiram da legislação educacional,
ofícios, mensagens, jornais, processos do Juizado de Menores e fotografias. A Cidade de
Menores foi inaugurada no dia 19 de novembro de 1942, durante o governo do Coronel
Augusto Maynard Gomes, destinada a receber menores abandonados ou delinqüentes na faixa
etária de sete a dezoito anos de idade, do sexo masculino, que eram enviados por assistentes
sociais ou pelo Juizado de Menores. Criou-se, com a secularização das instituições sociais, o
embate sobre as funções, as prioridades, os tipos de atendimentos, o papel do Estado e da
sociedade civil na assistência à infância pobre. O modelo assistencial adotado pela instituição
era a filantropia que estaria fundamentada na ciência, inicialmente médica e jurídica.
Considerada como obra patriótica a Cidade de Menores “Getúlio Vargas” representava mais
do que um saneamento social do Estado, era a segurança estatal para o futuro, com homens
sadios, educados e instruídos profissionalmente para o desenvolvimento do país.

Palavras-chave: infância pobre; filantropia; educação

A fim de estudar sobre a historiografia da infância brasileira, faz-se necessário


compreender o seu desenvolvimento ocorrido a partir de três vertentes: a história da
assistência, da família e da educação, cujo fator contributivo para o entendimento da relação
da sociedade com as crianças, ao longo dos séculos, foi relevante principalmente no que
concerne à infância pobre. Para tanto, é válido ressalvar alguns cuidados com o conceito de
infância, pela sua abrangência durante séculos.

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Compreende-se por infância a “representação que os adultos fazem sobre o


período inicial da vida da criança”827. Por isso, a necessidade de se estabelecer uma diferença
entre história da infância, compreendida a partir da história da relação da sociedade, da
cultura, dos adultos, com essa classe de idade, e a história da criança, entendida através da
relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade”828.
No entanto, pela abrangência do conceito, ela pode apresentar subdivisões, ou
seja, infâncias, principalmente quando são direcionadas ações para infância material ou
moralmente abandonada, para infância pobre, delinqüente e deficiente. A história da
assistência à infância pobre no Brasil recebeu ênfase com a chegada das leis de proteção e
assistência à infância e com a organização das ações do Estado. Tal fato ocorreu a partir da
secularização das instituições sociais.
Criou-se, com a secularização das instituições sociais, o embate sobre as funções,
as prioridades, os tipos de atendimentos, o papel do Estado e da sociedade civil na assistência
à infância pobre. Entrou em conflito o modelo até então adotado de assistência caritativa
versus os novos ideais da filantropia. A disputa entre a caridade e a filantropia apresentava-se
também como uma luta política e econômica para a tutela do pobre.

Pelo lado da medicina, além das costumeiras condenações aos hábitos ditos
desregrados e inconvenientes das famílias no que diz respeito à criação dos
filhos, os ataques passaram a ser dirigidos á caridade, partidários que eram –
os novos filantropos -, de uma racionalização da assistência baseada em
princípios de higiene e da Eugenia829.

A filantropia era o modelo assistencial que estaria fundamentado na ciência,


inicialmente médica e jurídica, na tentativa de adaptar a assistência à nova ordem, à
República. O discurso republicano salvacionista, contrário à vadiagem e na tentativa de
transformar vadios em trabalhadores, começava a investir na infância pobre com o intuito de
moldá-la e civilizar o país. Os princípios humanitários e científicos estariam aliados também à
missão moralizadora, no intuito de cuidar da infância material e moralmente abandonada.
As críticas direcionadas à caridade estavam presentes na falta de organização e no
seu método de trabalho, o asilar, desenvolvidos por ordens religiosas e sociedades

827
KUHLMANN Jr., Moysés; FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In: FARIA FILHO,
Luciano (org.) A infância e a sua educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil). Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. p. 33.
828
Idem. p.15.
829
KUHLMANN Jr., Moysés; FERNANDES, Rogério. Op.cit. p.12.

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beneficentes. Enquanto a idéia de caridade830 estava associada à caridade cristã, na busca da


salvação da alma, a filantropia831 expressava o sentido moderno de humanitarismo. Com seu
“método científico”, eram realizados inquéritos e auxílios para promover a melhoria da raça e
o controle social. Segundo Irma Rizzini, o “método científico da filantropia confundia-se com
valores de ordem, disciplina, organização, discrição e discriminação”832.
De acordo com Kuhlmann833, a segunda metade do século XIX e início do XX
foram marcados pela crença no progresso e na ciência, fazendo com que as nações ocidentais
se adaptassem aos novos instrumentos e processos produtivos. Houve, desse modo, uma
organização racional dos serviços de assistência apresentada por uma intenção educativa e
desenvolvida no interior das instituições de educação popular, jurídica e sanitária.
As tendências da valorização à infância aconteceram com o desenvolvimento
científico e tecnológico, sendo privilegiadas instituições “como a escola primária, o jardim de
infância, a creche, os internatos reorganizados, os ambulatórios, as consultas as gestantes e
lactantes, as Gotas de Leite”834.
No tocante à intervenção pedagógica, as instituições educadoras seguiam a
perspectiva da medicina higienista e da educação adequada, para os ditos normais através da
prevenção, e para os anormais, com a humanização do ambiente. O discurso utilizado no
Brasil para regenerar os menores abandonados estava baseado principalmente em duas teses:
a melhoria da raça – eugenia835 – e a interferência no meio psico social dos sujeitos –
higiene836.

(...) A higiene será um tipo de intervenção característica de uma medicina


que coloca em primeiro plano a questão de sua função social; que produz
conceitos e programas de ação através de que a sociedade aparece como o
830
“A palavra caridade origina-se do grego charitas ou caritas, embora se diga que seu conceito seja anterior aos
gregos (Soares, 1952:187). Simbolizando a maior das virtudes teologais, o termo caridade significaria, antes de
São Paulo, o amor ao próximo (Ibid). A idéia de caridade era intimamente associada ao amor a Deus, ou seja,
‘(...) ato pelo qual fazemos bem ao próximo pelo amor de Deus’(Grande enciclopédia portuguesa e brasileira,
s.d., V. XI: 334)” RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas para a infância no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Universidade Santa Úrsula, 1997. p.147.
831
“Filantropia é comumente definida como ‘amor à humanidade’.” Idem. p. 149.
832
RIZZINI, Irma. Assistência à infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed.
Universitária Santa Úrsula, 1993. p.59.
833
KUHLMANN Jr., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação,
1998. p. 60
834
KUHLMANN Jr., Moysés. Op. cit. p.28
835
“A palavra eugenia, vem do grego eugéneia, relaciona-se a um conjunto de métodos que visam melhorar o
patrimônio genético de certos organismos vivos.” VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO, Luciano Mendes
de. A infância no sótão. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 35.
836
“O higienismo relacionou-se a um amplo de intervenção, vinculando-se à necessidade de mudança de hábitos
relativos ao trato do corpo (de mulheres, homens, adultos e crianças) e dos espaços (cidade, moradias, escola,
instituições)”. Idem. p. 34.

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novo objeto de suas atribuições e saúde dos indivíduos e das populações


deixa de significar unicamente a luta contra a doença para se tornar o
correlato de um modelo médico-político de controle contínuo837.

A normalização da sociedade através da medicina ocorreria com prevenção a tudo


que poderia intervir no bem-estar físico e moral da população. “A prevenção se fundamenta
na eugenia, isto é, na idéia de que purificando-se a raça, evitava-se os caracteres psíquicos,
físicos e culturais nocivos presentes nas ‘raças inferiores”838.
Os higienistas, principalmente os médicos, propunham intervir no meio
ambiente, fosse na família ou nas instituições que abrigavam crianças, pois estavam
preocupados em combater a alta mortalidade infantil nas cidades. “A obediência á ‘lei de
higiene,’ ou seja, aos preceitos higiênicos, tornou-se uma necessidade incontestável no século
XX, consolidando a importância do papel do médico nas instituições”839.
O tema escolhido era “Salvar a criança” para transformar o país, independente de
religião ou de família, devido ao fato de se ter uma dimensão política de controle justificada
pela defesa da sociedade, uma vez que a criança era vista como algo possível de ser moldada.
A educação também seria convocada pelo movimento republicano para interferir nas questões
relacionadas à infância; esta passou a ter uma maior visibilidade e centralidade com a difusão
da crença no progresso da nação por meio da melhoria das letras, por isso a necessidade das
reformas no ensino dando a ele um caráter moderno e nacional.
Assim, diversas práticas e métodos foram substituídos paulatinamente por outros
que possibilitassem abreviar o tempo na educação das crianças para, desta maneira,
homogeneizar as classes e assegurar a centralidade da criança no processo educativo ao
mesmo tempo em que ajudariam na diminuição das despesas e na generalização da instrução
às classes inferiores. No século XIX, houve uma mudança nos métodos do individual para o
lancasteriano e do misto para o intuitivo a fim de atender as necessidades econômicas e
facilitar a aprendizagem das crianças. O discurso higienista presente na assistência à infância
fazia-se presente no discurso educacional a ela destinado. No método intuitivo, este discurso
foi perceptível com a utilização de espaços próprios, uma vez que as condições físicas no
local de funcionamento das escolas causavam danos à saúde e à aprendizagem dos alunos.

837
RIZZINI, Irene. Op. cit. p. 176.
838
RIZZINI, Irma. Op. cit. p.22
839
PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. (Org.) A arte de governar crianças: a história das políticas públicas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino,
Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. p.12.

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Nas primeiras décadas do século XX, foi feita a racionalização dos processos
educativos, principalmente na escrita e na leitura. A infância tornou-se alvo do discurso
higienista, “educar, atenuar, corrigir e conservar, são constituídos em ações diretamente
vinculadas à Higiene, recobrindo-a de uma perspectiva antecipatória, preditiva e
preventiva”840.
As iniciativas legislativas e jurídico-sociais para resolverem o problema da
infância abandonada estavam consoantes com o projeto civilizatório do país e com as teorias
da criminalidade nas nações ditas civilizadas e defensoras da necessidade da intervenção do
Estado. Caberia à sociedade escolher a justiça repressiva àqueles que cometessem algum
crime ou recuperá-los para que pudessem viver em sociedade. Tal situação era possível
devido à construção jurídica da categoria menor, que dividia a infância em duas – sendo
considerados pobres aqueles potencialmente perigosos. Era o momento de intervir neste
problema.
Por conseguinte, houve uma ampliação semântica do vocábulo menor, que passou
a abranger também as crianças pobres e abandonadas além das infratoras, pois “a partir de
1920 (...) a palavra passou a referir-se à situação de abandono e/ou marginalidade, além de
definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhe correspondem”841. Diante deste fato,
era necessário criar instituições de amparo às crianças – pobres, infratoras e abandonadas.
Preocupação referente ao futuro da sociedade, “pois caso não fosse contida – leia-se
disciplinada – viria a ser um criminoso adulto de amanhã”842. Se a sociedade possuía alguns
males, era necessário atuar sobre os seus componentes para prevenir e controlar o perigo.
Essa categoria social e jurídica destinada aos menores recebeu várias divisões no
Código de Menores de 1927 – quando se tratava de crianças em estado de vadiagem,
mendicidade e libertinagem, eram consideradas como menores moralmente abandonados e
quando viviam em companhia do responsável, mas praticavam atos contrários à moral,
poderiam ser chamadas de menores em perigo moral.
A infância pobre tornou-se, então, objeto de intervenção higiênica e disciplinar
pelo Estado, que via, potencialmente nessas crianças, futuros criminosos, na medida em que
as pobres, de modo geral, eram tidas como delinqüentes. Apesar do debate sobre a
importância da educação básica para as crianças, no sentido de diminuir a ociosidade e a

840
GONDRA, José. “Higienização da infância no Brasil.” In: GONDRA, José. (Org.) História, infância e
escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. p.109
841
VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Op.cit. p. 49.
842
FONSECA, Sérgio. Instituto disciplinar de Tatuapé e a infância em conflito com a lei na cidade de São Paulo.
1890-1927. In: I CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2000, Rio de Janeiro. Anais.
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. p.15.

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criminalidade e não de obter uma igualdade social, a preocupação com uma política nacional
voltada para a infância privilegiou o controle do segmento infanto-juvenil pobre.
Fazia-se uma associação entre a infância e o crime estabelecido a partir de uma
multiplicidade de fatores – ociosidade, vício, raça, tendências hereditárias, condições de vida
familiar e social. “Em seu nome, justificar-se-á a criação de um complexo aparato médico –
jurídico – assistencial, cujas metas eram definidas pelas funções de prevenção, educação,
recuperação e repressão”843.
A ociosidade representava para o Estado um vício perigoso devido ao fato de os
prazeres da vida ociosa desvirtuarem o homem do trabalho, uma vez que enquanto este
trabalhava estaria “docilizado” e não apresentaria perigo à sociedade. Uma medida saneadora
foi incidida sobre o pobre na tentativa de manter a “ordem pública” e a “paz das famílias”,
pois, ao atingir as famílias, poderiam não só regenerá-las como também incutir valores
morais, que iriam refletir no processo educacional dos filhos. O termo regeneração era
utilizado pelos criminólogos, uma vez que indicava a possibilidade de cura, sendo possível
corrigir, reabilitar ou reeducar.
Em nome da higiene, o Estado interferia no âmbito doméstico, na educação das
famílias e na vigilância dos seus filhos, estabelecendo se os responsáveis pelas famílias eram
considerados capazes e dignos de criá-los. Essa ação estatal tinha como base a teoria da
degenerescência, esta afirmava que vícios e virtudes poderiam ser tanto adquiridos
hereditariamente, quanto socialmente.

Os desvios patológicos do tipo normal da humanidade, transmitidos


hereditariamente, originando-se por intoxicação diversas (alcoolismo,
cocaismo, morfismo, etc), por moléstias adquiridas ou congênitas ou por
meio de influência do meio social ou da hereditariedade. 844

A legislação produzida, no início do século XX, estava visivelmente preocupada


com o aumento da criminalidade infantil. Essa legislação visava à proteção da criança e da
sociedade cujo objetivo era deter os que ameaçavam a ordem através da ação policial e do
encaminhamento desses menores de idade a instituições de assistência, legitimadas com a
criação do Juízo de Menores e do Código de Menores. “Ambas inserem-se na lógica do
modelo filantrópico, que visava o saneamento moral da sociedade a incidir sobre o pobre”845.
É válido ressaltar o fato de a legislação de proteção à infância pobre possibilitava a tutela do

843
RIZZINNI, Irene. Op. cit. p. 29
844
RIZZINI, Irma. Op. cit. p. 23
845
Idem, p. 207.

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Estado sobre os filhos considerados insubordinados, com a suspensão do pátrio poder e


transferência de paternidade para o Estado.

A educação na Cidade de Menores deveria se basear no fator preventivo, através


da adaptação dos menores ao ambiente social. A Cidade de Menores recebeu uma forte
influência da Psicologia, Biologia e Sociologia – característica da Pedagogia voltada para o
século XX, na qual a escola deveria preparar o indivíduo para busca do progresso e da
harmonia social. Os pressupostos da Escola Nova estavam presentes na formação educacional
dos menores. De acordo com os modernos preceitos pedagógicos, a escola deveria adaptar a
criança à vida social, a fim de que fosse assimilada a ordem intelectual e moral.
O regulamento do Serviço de Assistência Social846 ratificava que a educação
deveria ter suas bases no movimento moderno de renovação pedagógica a partir da oferta de
ensino primário, rural e profissional, com uma educação orientada para formar uma
consciência vigilante, um espírito reto, livre de preconceitos a fim de que os internos agissem
não pelo temor ao castigo, mas pelas claras visões do dever. Sendo assim, a educação deveria
estar firmada nos moldes da cautela, na adequação ao sistema social o qual vai pertencer, no
exercício da vigilância de tal modo que os alunos estivessem sob a contínua fiscalização ou do
Diretor ou dos monitores, assim, com impossibilidade ao cometimento de faltas847.
O entendimento na Cidade de Menores firmava-se na educação para o trabalho e
pelo trabalho no processo de reeducação aos internos, sempre pensando na saída do menor da
instituição. Esta o prepararia para a vida social uma vez que a educação recebida daria ao
menor a possibilidade de uma vida digna em qualquer meio social escolhido para viver, rural
ou urbano. Pensando no ambiente social a ser escolhido posteriormente pelo menor, a
instituição estabeleceu além do ensino primário, o ensino agrícola e as oficinas. Desta
maneira, a prática agrícola priorizava preparar o aluno para a vida no campo, assim como a
formação profissional visava prepará-lo para a vida na cidade.
A instituição construiu, com auxílio federal, um pavilhão-oficina destinado ao
ensino profissional dos menores, aparelhado com maquinário e material considerado
moderno. Nesse pavilhão, funcionavam as oficinas de sapataria, marcenaria e alfaiataria.
A Cidade de Menores, preocupada em formar hábitos de ordem, desenvolvia essas
oficinas em salas próprias. Estas atividades possibilitavam à instituição angariar recursos
financeiros além de auxiliarem na formação profissional do menor. Os materiais

846
ESTADO DE SERGIPE. Secretaria da Justiça e Interior. Decreto n.342, de 07 de agosto de 1954. Dá
Regulamento do Serviço de Assistência Social a Menores. 1954.
847
Idem

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confeccionados poderiam ser vendidos e o dinheiro dividido entre a instituição e o menor. A


quantia recebida por este deveria ser depositada em uma caderneta de poupança para ser
retirada no momento de desligamento com a instituição.
O internato seguia as orientações do Código de Menores que estabelecia no Artigo
212 a ressalva de que todo produto líquido da venda de artefatos e dos trabalhos de campo
realizados pelos alunos seria dividido em três partes iguais para ser aplicado na compra de
matérias – primas, despesas da casa, para prêmios e gratificações aos menores e a terceira
constituiria um pecúlio dos menores, depositado trimestralmente em cadernetas da Caixa
Econômica e lhes seria entregue na saída do estabelecimento.
O trabalho nas oficinas da Cidade de Menores era reconhecido por outras
instituições. Ao solicitar auxílio para a construção da casa pastoral, por exemplo, a Igreja
Presbiteriana Independente de Aracaju solicitou ao Governador de Sergipe tijolos, fabricados
admiravelmente pela Cidade de Menores; no entanto, como se tratava de uma doação do
Estado, não foi possível identificar se os mesmos foram pagos pelo Estado, uma vez que a
produção tinha a finalidade de consumo e venda. Apesar de ser considerada uma prática
educativa, a olaria no final da década de 1960 foi considerada como um ato de exploração,
uma vez que os menores entre cinco e catorze anos estavam envolvidos nesta tarefa848.

Não há uma oficina instalada de modo que se possa ensinar um oficio


qualificado aos menores que, ou perambulam pelos campos, ou são
empregados em oficios que mais se exige a força bruta do que mesmo um
trabalho educativo849.

Nas oficinas de alfaiataria, sapataria, marcenaria e carpintaria, confeccionavam


roupa e calçados para uso próprio, colchões e obras de madeira e telas de arame para
galinheiros da instituição. Foram construídos mais dois edifícios para estábulo, casa de
farinha e padaria. Para produção do próprio alimento e sustento dos internos e funcionários,
construiu-se uma panificação; também criaram-se, com o mesmo objetivo, a marcenaria, a
alfalataria para confeccionar exclusivamente o fardamento da Escola e uma sapataria, para os
calçados dos internos
Todos os mestres destinados ao ensino dos ofícios bem como o material utilizado
para realizar as atividades eram de responsabilidade do governo estadual. O diretor solicitava
ao Governo material como pneus considerados imprestáveis para poderem ser utilizados na

848
Gazeta de Sergipe. Caótica a Situação da Cidade de Menores. Aracaju, 19 de outubro de 1968. Ano XIII, n.
3687, p.6.
849
Gazeta de Sergipe. Cidade de Menores. Aracaju, 20 de outubro de 1968, Ano XIII, n. 3688, p. 3.

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oficina de sapataria. Os cursos eram realizados para quarenta aprendizes, respeitando a


vocação dos menores, e aos demais internos era ministrado o ensino primário, de acordo com
a legislação do ensino. Todos os cursos da instituição funcionavam normalmente com uma
freqüência de 97% dos internados850, uma vez que a participação era obrigatória para o bom
andamento da ordem e da disciplina e evitava a ociosidade.
As oficinas objetivavam preparar o menor para o trabalho após o desligamento da
instituição e, de acordo com o Código de Menores no artigo 101, era proibido em todo o
território da República o trabalho dos menores de doze anos e aos maiores dessa idade e
menores de catorze anos que não tivessem completado a instrução primária. No entanto, a
autoridade competente podia autorizar o trabalho quando o considerasse indispensável para a
subsistência dos mesmos ou de seus pais ou irmãos, contanto que recebessem a instrução
escolar. Por isso, a importância em freqüentar o ensino elementar e as oficinas.
Para completar a educação profissional e os primeiros contatos com a sociedade, o
Serviço de Assistência a Menores encaminhava alguns internos para as oficinas da Polícia
Militar e para o Senai; dezessete menores freqüentaram esses cursos, entre os vocacionais e de
aprendizagem de ofício.
A preparação dos menores na instituição também se dava com o ensino primário
seguindo as orientações do Departamento de Educação. As professoras estaduais lecionavam
a todos os alunos da Cidade de Menores. O controle disciplinar era desenvolvido por
monitores, supervisionados e orientados pela chefia médico-pedagógica.
Embora a Cidade de Menores oferecesse aos seus internos educação elementar, ao
concluir o ensino primário, eles poderiam se matricular em outros estabelecimentos de ensino
em Aracaju e em São Cristóvão, como o Aprendizado Agrícola. No entanto, era necessário
prestar um exame para o ingresso nessas instituições além de efetuar o pagamento das taxas
para realização das provas; assim o Secretário da Justiça e Interior solicitou ao Departamento
de Educação a dispensa das taxas aos candidatos que fossem assistidos do Estado na Cidade
de Menores “Getúlio Vargas”.
Foi na Escola Maximino Maciel que a Cidade de Menores buscou a prática
educacional destinada aos bons hábitos cuja realização se dava através do ensino agrícola e
primário elementar desenvolvido. De acordo com o Boletim de Inspeção Escolar de 1949, a
escola funcionava em dois amplos salões arejados, nos dois turnos, funcionando com duas

850
SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura da Sessão
Legislativa de 1957 pelo Governador de Estado de Sergipe Leandro Maynard Maciel. Imprensa Oficial. 1957. p.
66.

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professoras e, posteriormente, com quatro professoras. Nas observações do inspetor escolar


sobre as professoras, foram ressaltadas a ocupação no momento da visita, o cumprimento das
disposições, a ordem, as instruções recebidas e a informação da sociedade local quanto à ação
educativa do professor.
O trabalho agrícola era tido como formador do caráter da criança e como uma
maneira de coibir e controlar a ociosidade: “(...) é criminosa a escola que esclarece a
inteligência sem dar amor pelo trabalho honrado, princípio de disciplina do caráter. O homem
que trabalha é predisposto ao bem. Trabalho é ter garantido o seu sustento para não procurá-lo
por meios ilícitos, é ter as horas ocupadas... É preciso que a escola ativa implique o máximo
de realização com as mãos, princípio da coordenação moral”851.
O ensino agrícola era desenvolvido a partir da ótica de regeneração, na tentativa
de alterar a subjetividade dos meninos, ou seja, de interferir nos desvios da personalidade dos
menores, além de evitar a ociosidade. Conforme Jorge Carvalho do Nascimento852, em seu
estudo sobre o ensino agrícola, há a predominância de duas vertentes explicativas
concernentes à temática discutida “a primeira remete para a necessidade da formação de mão-
de-obra dos trabalhadores rurais, em decorrência da abolição dos escravos, enquanto a
segunda aborda a questão da delinqüência infantil”. Essa segunda vertente, que discute o
ensino agrícola sob a ótica da regeneração, é a que melhor explica a ênfase na utilização do
ensino agrícola na Cidade de Menores.
Notava-se a existência de um esforço pelo desenvolvimento dos trabalhos do
campo especialmente com relação à avicultura e à apicultura. Foram adquiridos trezentos
pintos de raça para começar o aviário, quinze ovelhas de raça, um terno de caprinos e dois
muares; todos os prédios passavam por uma remodelação geral853. Foi adquirido em 1953,
pelo Ministério da Agricultura, um plantel de gado essencialmente mantegueiro. Possuía área
cultivada e no aviário, cento e vinte e seis aves de espécies Leghorn e Hampshire, que
produziam diariamente de vinte e cinco a trinta ovos, um criatório de porcos Durec-Jersey,
além desses, dois assiminos e um muar.
Os menores trabalhavam na roça, criavam animais, ajudavam no pastoreio do
gado e auxiliavam no cuidado das bombas de água. Tais atividades eram desenvolvidas com
respeito à idade, ao desenvolvimento físico e à saúde.

851
VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A infância no sótão. Belo Horizonte:
Autêntica. 1999. p. 52
852
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Op. cit. p. 29.
853
SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura da Sessão
Legislativa de 1953 pelo Governador de Estado de Sergipe Arnaldo Rollemberg Leite. Imprensa Oficial. 1953.
p.22.

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A Cidade de Menores tentava funcionar como um estabelecimento de instrução


comum, por isso os menores poderiam passar as férias com seus familiares desde que fossem
autorizados pela instituição. Apenas aqueles que apresentavam bom comportamento poderiam
receber tal recompensa; é interessante observar que as premiações foram dispositivos
utilizados na Cidade de Menores de acordo com o comportamento e a disciplina dos internos.
No entanto, muitos meninos não saiam dela por não terem família.
A disciplina não era considerada rígida; de acordo com as Mensagens de Governo,
“vivem os meninos em liberdade”. Na Cidade de Menores “Getúlio Vargas” funcionava a
sede do Serviço Social de Assistência e este órgão era responsável para amparar e reeducar
menores abandonados e delinqüentes, que procuravam eliminar teoricamente a repressão. A
partir da exclusão formal dos castigos físicos, com o objetivo de construir por meio da
Medicina Social um processo de fortalecimento do corpo e da raça através da moralização e
da disciplinarização que era aplicada enquanto estratégia de recuperação de menores
abandonados e delinqüentes estando estes sob a custódia do Estado.
Os castigos físicos também foram aplicados para produzir docilidade; esta
situação demonstrou a resistência das crianças que não aceitavam facilmente os dispositivos
de disciplina impostos pela Cidade de Menores “Getúlio Vargas”. Não obstante, no Brasil,
fazia parte do discurso dos educadores, desde o início do século XX, abolir as penalidades
corporais, pois a pedagogia moderna defendia outras modalidades de castigo que não fosse os
físicos. Apesar dos poucos registros sobre esta forma de punição, foi possível identificar na
imprensa sergipana artigos que denunciavam o método da palmatória utilizada por um
enfermeiro da instituição.
Portanto, a educação deveria ter suas bases no movimento moderno de renovação
pedagógica a partir da oferta de ensino primário, rural e profissional, com uma educação
orientada para formar uma consciência vigilante, um espírito reto, livre de preconceitos a fim
de que os internos agissem não pelo temor ao castigo, mas pelas claras visões do dever. Sendo
assim, a educação deveria estar firmada nos moldes da cautela e na adequação ao sistema
social.

FONTES

ESTADO DE SERGIPE. Secretaria da Justiça e Interior. Decreto n.342, de 07 de agosto de


1954. Dá Regulamento do Serviço de Assistência Social a Menores. 1954.

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Gazeta de Sergipe. Caótica a Situação da Cidade de Menores. Aracaju, 19 de outubro de


1968. Ano XIII, n. 3687, p.6.

Gazeta de Sergipe. Cidade de Menores. Aracaju, 20 de outubro de 1968, Ano XIII, n. 3688, p.
3.

SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura


da Sessão Legislativa de 1957 pelo Governador de Estado de Sergipe Leandro Maynard
Maciel. Imprensa Oficial. 1957. p. 66.

SERGIPE. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa Estadual por ocasião da Abertura


da Sessão Legislativa de 1953 pelo Governador de Estado de Sergipe Arnaldo Rollemberg
Leite. Imprensa Oficial. 1953. p.22.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Menores “Getúlio Vargas” (1942-1974). Dissertação (Mestrado em Educação) - Núcleo de
Pós Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe. 2007

______. Alessandra Barbosa. A educação dos menores abandonados em Sergipe: a Cidade


de Menores “Getúlio Vargas” (1939-1954). São Cristóvão: UFS/DHI. Trabalho de conclusão
de curso. 2003.

FONSECA, Sérgio. Instituto disciplinar de Tatuapé e a infância em conflito com a lei na


cidade de São Paulo. 1890-1927. In: I CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO, 2000, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2000.

GONDRA, José. “Higienização da infância no Brasil.” In: GONDRA, José. (Org.) História,
infância e escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.

KUHLMANN Jr., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto
Alegre: Mediação, 1998.

___________. Moysés; FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância.” In: FARIA


FILHO, Luciano (org.) A infância e a sua educação: materiais, práticas e representações
(Portugal e Brasil). Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Memórias do Aprendizado: 80 anos de ensino agrícola


em Sergipe. Maceió: Edições Catavento, 2004.

PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. (Org.) A arte de governar crianças: a história


das políticas públicas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de
Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais
Livraria e Editora, 1995.

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RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas para a infância no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Universidade Santa Úrsula, 1997.

RIZZINI, Irma. Assistência à infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de
Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, 1993.

SOUZA, Josefa Eliana. Em busca da democracia: a trajetória de Nunes Mendonça. São


Cristóvão. Dissertação (Mestrado em Educação) – Núcleo de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Sergipe. 1998.

VEIGA, Cynthia Greive; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A infância no sótão. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.

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UM INTERNATO PÚBLICO: OS BENS E SERVIÇOS OFERTADOS


AOS INTERNOS

Joaquim Tavares da Conceição (UFS-CODAP)


jtc@ufs.br / joaquimtavares@infonet.com.br

Os bens e serviços ofertados aos alunos, na condição de internos, são partes das condições que
garantiam o funcionamento ou a sustentabilidade dos internatos das instituições federais de
ensino agrícola. Nos colégios-internatos da segunda metade do século XIX eram
disponibilizados aos internos, mediante o pagamento de mensalidade ou “pensão”, vestuário
(uniforme escolar), dormitório, lavagem de roupa, médico, correio, iluminação, alimentação,
entre outros. Esses mesmos bens ou serviços continuaram sendo oferecidos nos internatos em
colégios do século XX com a inclusão de serviços como os de engraxate e barbeiro. A
existência desses recursos no próprio colégio, além de ser uma fonte de recurso para o
estabelecimento, possibilitava a diminuição das saídas dos internos e, portanto, um maior
controle deles por parte da “equipe dirigente”. Nos internatos dos estabelecimentos federais
de ensino agrícola, no período de 1934 a1967, basicamente era disponibilizado aos internos,
sem a cobrança de mensalidades ou qualquer tipo de custo, um espaço determinado no
dormitório com a respectiva cama e colchão, o enxoval (fardas e roupas de cama),
alimentação e cuidados com a higiene e saúde.

Palavras-chave: internato, ensino agrícola, EAFSC-SE

1-APRESENTAÇÃO

Este artigo, parte resultante da dissertação de mestrado intitulada: A


PEDAGOGIA DE INTERNAR: uma abordagem das práticas culturais do internato da Escola
Agrotécnica Federal de São Cristóvão-Se (1934-1967), estabelece uma compreensão sobre as
condições de manutenção ou de sustentabilidade do internato da referida instituição, ou seja,
os bens e serviços ofertados aos internos (dormitório, enxoval, alimentação, assistência
medico-odontológica) e os custos com a manutenção do internato.

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A origem da Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão854 ocorreu no ano de


1924 quando surgiu o Patronato Agrícola São Maurício 855 fundado pelo então Presidente do
Estado, Maurício Graccho Cardoso (NERY, 2006). No ano de 1934, com a federalização do
Patronato, foi implantado em seu lugar o Aprendizado Agrícola de Sergipe. No período que
compreende o recorte temporal deste trabalho (1934-1967), a escola esteve vinculada ao
Ministério da Agricultura. Nesse espaço de tempo funcionou e desenvolveu diversos modelos
de ensino agrícola como: Aprendizado Agrícola (1934-1947), Escola de Iniciação Agrícola
(1946-1952), Escola Agrícola (1952-1957), Escola Agrotécnica (1957-1964) e Colégio
Agrícola (1964-1967).
A presente pesquisa, recebendo as contribuições de trabalhos sobre a História do
Ensino Agrícola em Sergipe (NASCIMENTO, 2004; NERY, 2006) procurou compreender
essa modalidade de internato público destacando os bens e serviços ofertados aos alunos, na
condição de internos, como condições que garantiam o funcionamento ou a sustentabilidade
do internato.

2-OS BENS E SERVIÇOS OFERTADOS AOS INTERNOS

Os bens e serviços ofertados aos alunos, na condição de internos, são partes das
condições que garantiam o funcionamento ou a sustentabilidade do internato. Nos colégios-
internatos da segunda metade do século XIX eram disponibilizados aos internos, mediante o
pagamento de mensalidade ou “pensão”, vestuário (uniforme escolar), dormitório, lavagem de
roupa, médico, correio, iluminação, alimentação, entre outros (ANDRADE, 2000). Esses
mesmos bens ou serviços continuaram sendo oferecidos nos internatos em colégios do século
XX com a inclusão de serviços como os de engraxate e barbeiro (COSTA, 2003;
MANGUEIRA, 2003; SILVA, 2000). A existência desses recursos no próprio colégio, além
de ser uma fonte de recurso para o estabelecimento, possibilitava a diminuição das saídas dos
internos e, portanto, um maior controle deles por parte da “equipe dirigente”.

854
Fica situada no povoado Quissamã, município de São Cristóvão-SE e atualmente é vinculada ao Ministério da
Educação, através da Secretária de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC).
855
Instituição assistencial dedicada à regeneração de menores desvalidos e formação de mão-de-obra agrícola.
NERY, Marco Arlindo Amorim Melo. A Regeneração da Infância Pobre Sergipana no início do Século XX:
o Patronato Agrícola de Sergipe e suas práticas educativas. São Cristóvão. Dissertação de Mestrado. Núcleo de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. UFS. 2006.

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Nos internatos dos estabelecimentos federais de ensino agrícola, no período


compreendido na periodização desta pesquisa (1934-1967), basicamente era disponibilizado
aos internos, sem a cobrança de mensalidades ou qualquer tipo de custo, um espaço
determinado no dormitório com a respectiva cama e colchão, o enxoval (fardas e roupas de
cama), alimentação e cuidados com a higiene e saúde.
Pelo próprio segmento pobre da população, especialmente da zona rural, que
procurou atingir, o Ministério da Agricultura sempre manteve a política educacional de
garantir a gratuidade do internato nos estabelecimentos de ensino agrícola que estiveram sob a
sua competência até o ano de 1967. Inclusive a Lei Orgânica do Ensino Agrícola determinava
que competia ao governo adotar “nos estabelecimentos oficiais de ensino agrícola o sistema
da gratuidade” (BRASIL, 1946). Dessa maneira, embora o custeio com o internato fosse
citado como uma dificuldade para a ampliação das vagas nesses estabelecimentos, continuou
sendo o regime dominante durante todo o recorte temporal desta pesquisa.
De semelhante modo, a instituição aqui pesquisada, como parte dessa rede de
estabelecimentos, caracterizou-se pela disponibilização de bens e serviços, sem custos, para
os internos. Primeiramente, era disponibilizada a utilização dos espaços específicos do
internato (dormitório, refeitório e instalações sanitárias), todos de utilização coletiva. O
“alojamento” era garantido pela disposição de um local específico no dormitório coletivo e a
cama com colchão. Também estava garantido o uso do espaço do refeitório e das instalações
sanitárias.

3-O ENXOVAL

Durante toda a estada no internato da instituição, os internos recebiam um enxoval


que, com algumas variações ocorridas durante o período referente à quantidade de itens e de
tipos ou modelos, era composto por fardas, calçados, roupas de cama e material para higiene
pessoal. O conteúdo do enxoval era uniforme e igualmente distribuído para todos. Era
entregue no momento da admissão no internato, devidamente identificado com a gravação nos
objetos do respectivo número do aluno, de uso obrigatório e cotidianamente fiscalizado pelo
inspetor e pelos guardas. Os bens pessoais, no caso dos poucos internos que possuíam, eram
substituídos pelos bens pertencentes à instituição. Desta maneira, a distribuição do enxoval
funcionava como mais uma “substituição padronizada” (GOFFMAN, 1974). Na seqüência, o
quadro apresenta uma relação dos bens e serviços que foram concedidos aos internos entre os
anos de 1934 a 1967.

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QUADRO 1: RELAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS DISPONIBILIZADOS AOS INTERNOS ENTRE


OS ANOS DE 1934 E 1967.

Nº Bens e serviços
01 Dormitório, refeitório, instalações sanitárias, enfermaria, auditório, centro social
02 Alimentação (três refeições diárias, lanche)
03 Artigos de higiene pessoal (sabão, escova e pasta de dente)
04 Fardas: uma farda mescla (calça /camisa), uma farda cáqui (calça /camisa), um par de
reiúnas, um par de rolós, um par de borzeguins, um casquete cáqui e um casquete
mescla)
05 Roupas de cama (lençóis, forro, fronhas, colcha, pijamas, toalhas de banho)
06 Cama patente ou beliche, colchão e travesseiro
07 Serviços de lavanderia (fardas e roupas de cama lavadas e passadas)
08 Serviços de rouparia (confecção de fardas e roupas de cama, consertos e guarda de
roupas lavadas)
09 Serviços médico-odontológicos
Fonte: BRASIL-EAFSC, 1935, 1939, 1946, 1955, 1957; SANTOS, M., 2005; LIMA, 2005;
SANTOS, J., 2006.

Sobressai-se na relação do quadro antecedente o modelo de fardamento em estilo


militar que imperou na fase em que a instituição funcionou como Aprendizado Agrícola,
caracterizado principalmente pelo uso das reiúnas (botinas com elástico) e casquetes (bonés)
comumente usados pelos militares na época. Outro aspecto evidenciado era a distribuição de
dois tipos de fardamento. A farda para as aulas era composta de calça, camisa e casquete
“cáqui” e sapato do tipo borzeguim. A outra farda, para o uso nos trabalhos de campo, era
composta de calça e camisa e casquete de tecido “mescla” azul e rolós. A farda utilizada nas
aulas servia para os desfiles e os passeios, conjugada com as reiúnas. A partir da década de
1950 em diante já não se utilizavam os casquetes e as reiúnas, a farda de campo foi
substituída por macacões azuis e os rolós foram substituídos por botas comuns. No entanto,
permaneceu a farda do tipo cáqui para as aulas, passeios e formaturas.
A farda era confeccionada no próprio estabelecimento por um funcionário alfaiate
e uma costureira. Esses funcionários, além de confeccionar as fardas, providenciavam
consertos nas roupas e eram incumbidos do recebimento das roupas usadas para serem
lavadas e da guarda das roupas limpas para serem entregues aos internos (LIMA, 2005).
A partir da década de 1960 iniciavam-se as solicitações para que os alunos
trouxessem alguns dos itens do enxoval; processo que no futuro poria fim à gratuidade deste.
Primeiro foi determinado que todos os alunos deveriam trazer dois macacões, conforme as
especificações do estabelecimento, para serem usados durante a realização dos trabalhos de
campo: “A escola nos oferecia todas as condições que hoje não existem. (...) Lá nós tínhamos

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o sapato, a farda para o desfile cívico, a pasta de dente e a escova. Recebíamos a toalha de
banho, pijama, forro de cama, alojamento, tudo gratuito” (SANTOS, Ademilson, 2006).
Finalmente, a partir da segunda metade da década de 1960, os internos ficaram
obrigados a providenciar o seu próprio enxoval de acordo com lista entregue no ato da
matricula. O trecho em seguida, parte do relato de José Cláudio dos Santos, ex-interno da
escola no período de 1963-1968, é elucidativo sobre o fim da gratuidade do enxoval: “o
enxoval era o colégio que fornecia, mas a gente já levava alguma coisa. (...) Essa fase acabou.
Eu entrei em 1963 quando chegou em 1965 eu concluí o ginásio. Em 1965 não davam mais
nada. Já avisaram: ‘Quem vai entrar em 1966 tragam tudo’ Inclusive a farda, mal dava o
colchão” (SANTOS, J., 2006).
Evidentemente, o fim da gratuidade do enxoval foi mal recebido pelos internos e
sobretudo por seus familiares que agora teriam que custeá-lo. A mudança recebeu os protestos
principalmente dos pais dos internos já matriculados na escola e, portanto, acostumados com
o beneficio. Os alunos ensaiaram sem sucesso, através da liderança do grêmio estudantil,
reações contra a decisão (BARROS, 2006). Muitos internos tiveram que “se virar” para
comprar o enxoval; outros tiveram que contar com a ajuda de terceiros para poderem
continuar estudando no estabelecimento (SANTOS, J., 2006). O fim da gratuidade do enxoval
deu-se de maneira definitiva, trazendo para os alunos pobres dificuldades para manter-se no
internato. Contudo, a dualidade de atuação da escola (formação/assistência) continuou com a
disponibilização aos internos de alojamento, alimentação e assistência à saúde.

4-OS COMENSAIS

A alimentação diferentemente do enxoval, que, como visto da segunda metade


da década de 1960 em diante, passou a ser da responsabilidade da família, foi disponibilizada
sem custos aos internos durante todo o período. O internato servia três refeições diárias aos
internos, ou seja, o café, o almoço e o jantar. Os alimentos eram preparados por cozinheiros
práticos sem nenhum tipo de formação técnica ou nutricional. A produção de uma
alimentação baseada em preceitos técnicos foi uma situação que existiu a partir da década de
1960, com a criação do Curso de Economia Doméstica.
Eram servidos aos internos predominantemente alimentos típicos da região,
muitos dos quais, em determinados períodos, eram produzidos pelos núcleos agropecuários da
escola. Os alimentos que mais figuraram nas três refeições durante todo o período pesquisado,
consoante os relatos dos ex-internos e ex-funcionários, foram os seguintes: a) no café da

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manhã: pão, com ou sem manteiga, café, leite, chá mate, mingau de amido de milho;
mungunzá, arroz doce; b) no almoço: feijão, arroz, farinha de mandioca, macarrão, carne
(bovina, suína), ave, peixe, salada e às vezes, refresco; c) no jantar: pão, macaxeira, café,
mate, leite, sopa.
Não há registros que tenha faltado alimentação no internato. Entretanto, a
quantidade e qualidade dos alimentos servidos foram sempre variáveis e no geral descritos por
ex-internos como “razoáveis”. Em seguida, expõe-se um relato de Ademilson Vieira Santos,
ex-interno (1961-1967), sobre a alimentação servida no refeitório do internato: “Eu cheguei a
comer pão, pão de milho como a gente chama, pão seco com chá mate. (...) Mas era um pão com
manteiga, uma xícara de café, (...) uma jabá (...). Tínhamos o peixe, o atum, a galinha. Não de boa
qualidade, mas na época tínhamos. Nunca passamos privação com alimentação” (SANTOS,
Ademilson, 2006)
Ocorreram manifestações dos internos motivadas pela insatisfação com a
alimentação servida pela escola, principalmente por parte dos colegiais da década de 1960 que
se sentiam muitas vezes, mesmo diante do rigor disciplinar do internato, encorajados a
realizar protestos por causa da qualidade e da rotina dos alimentos servidos no refeitório da
instituição. Os protestos tomavam forma através de discursos: “Certa feita eu entrei numa
sala, os alunos estavam revoltados: ‘Nós somos tratados como porcos. A comida é ruim,
parece uma lavagem, mal feita...’ Tinha um aluno revoltadíssimo. Esse era da Bahia, os
colegas aplaudiam (...) Uma voz até muito simpática e ele se inspirou...” (BARROS, 2006) e
até mesmo com a paralisação das atividades: “A gente fez greve lá. Pelo feijão com gorgulho e
não gorgulho com feijão. Porque vinha gorgulho mais do que feijão. (...) Chegava lá a charque e o
bacalhau ultrapassado já. Era ruim” (SANTOS, J., 2006).
As reclamações por causa da alimentação servida foram comuns nos colégios-
internatos (FREYRE, 1968). Os “romances de internato” também descrevem a insatisfação
dos internos com os alimentos. É exemplar, entre outros, a “revolução da goiabada” narrada
na escrita autobiográfica de Raul Pompéia:

Era um tumulto indescritível, vozear de populaça em revolta, silvos, brados,


injúrias, em que os gritos estrídulos dos pequenos destacavam-se como
arestas da massa confusa de clamores.
(...) Era a revolução da goiabada! Uma velha queixa.
A comida do Ateneu não era péssima.
O razoável para algumas centenas de tolinhos. Possuía mesmo o
condimento indispensado das moscas, um regalo. Mas aborrecia a
impertinência insistida de certos pratos. Uma epidemia, por exemplo, de
fígados guisados, o ano todo! Ultimamente, havia três meses, a goiabada

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mole de bananas, manufatura econômica do despenseiro. (POMPÉIA, 2001,


p. 125).

Além das três refeições diárias servidas, existe registro da distribuição de lanche
aos internos, embora de forma descontínua e provavelmente somente até a primeira metade da
década de 1960. O lanche consistia em pão, bolacha, frutas, leite com achocolatado, mate e
era servido principalmente no período da tarde (LIMA, 2005). No entanto, a complementação
da alimentação regular servida pelo estabelecimento ficava mais por conta das possibilidades
de cada família que enviava encomendas para os seus filhos internos: “Como em todas as
épocas sempre tinha o sacolão. Os mais antigos que sempre saíam no final de semana traziam
encomenda da família. Os pais faziam a sacolinha mandando a bolachinha, um queijo pra
gente merendar, porque não era fácil também lá” (SANTOS, Ademilson, 2006)

5-OS CUIDADOS COM A HIGIENE E A SAÚDE

As práticas de higienização e os cuidados com a saúde também foram serviços


oferecidos aos internos. Estes, quando chegavam à instituição, eram obrigados a conviver com
as regras higiênicas impostas e fiscalizadas pela “equipe dirigente”. Rotineiramente
participavam e aprendiam a manter os espaços do internato asseados e a fazer a higienização
dos corpos, a qual consistia nos banhos diários, escovação dos dentes, vestir a farda e calçar
os pés, entregar na rouparia as roupas sujas e receber as roupas limpas e passadas. O banho
era coletivo e ocorria pela manhã e no final do dia. Separados em grupos e em silêncio, os
internos banhavam-se nos banheiros coletivos providos de água encanada. Na prática do
banho, eles eram vigiados pelo guarda de alunos (LIMA, 2005).
Durante as décadas de 1930 e 1940, constantes problemas no fornecimento de
energia elétrica, os quais impossibilitavam o bombeamento da água do rio para os
reservatórios dos banheiros, deixavam os internos até dois dias sem se banharem (BRASIL-
EAFSC, 1942). Diante dessa situação, o inspetor levava os internos para se banharem no rio
que cortava as terras da escola e ficava a uma pequena distância do edifício-internato: “Eu
vou lhe dizer uma coisa aqui. Talvez eles não disseram. Quando não tinha água a gente ia
tomar banho no rio. O inspetor formava em grupo, fila indiana, ia tomar banho no rio. Nois
tomava o nosso banho lá e pronto, vinha pro café” (SANTOS, M., 2005).

Os internos recebiam roupas lavadas e passadas. A lavagem das roupas era


realizada no rio por antigas lavadeiras que chegaram à instituição ainda no último ano de

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funcionamento do Patronato Agrícola (1933) e se aposentaram no decorrer da década de


1960. A lavagem das roupas pessoais cabia a cada interno providenciar. Nas folgas de
domingo ou feriado eles dirigiam-se ao rio e lavavam-nas. Para engoma-lás, pediam o ferro
emprestado na rouparia (SANTOS, Ademilson, 2006).

A instituição também dispensava aos internos assistência médico-odontológica


por meio de um médico e um dentista, que faziam parte do quadro funcional da escola.

O primeiro médico do internato foi Dr. Abílio Fernandes de Farias. (BRASIL-


EAFSC, 1934). Com a aposentadoria do Dr. Abílio Fernandes de Farias, o cargo de médico
clínico do internato passou a ser exercido por Dr. Benjamin Alves de Carvalho, que
permaneceu na instituição do ano de 1943 até o final da década de 1960. O médico, além de
tratar dos internos doentes e medicá-los, examinava os alunos novatos candidatos à matrícula
para atestar as condições de saúde, pois os portadores de doenças contagiosas estavam
impedidos de se matricular no estabelecimento. Cuidava também da profilaxia e combate às
endemias, vacinando contra tifo e varíola, realizando combate à malária, às verminoses
(principalmente a esquistossomose) e protozooses.

O primeiro cirurgião-dentista do internato foi Dr. Manoel Torres, que serviu ao


estabelecimento entre os anos de 1934 a 1938. Com sua saída, o estabelecimento passou a
contar com os serviços do cirurgião-dentista Dr. Yolando Vieira de Melo, que permaneceu na
instituição até o final da década de 1960. O estabelecimento dispunha de um “gabinete
dentário” que funcionava na enfermaria. Os trabalhos realizados pelo dentista eram
obturações, incrustações, ablação, limpeza, extrações, pulpetomias e curativos (BRASIL-
EAFSC, 1955, 1956, 1957).

O internato possuía uma enfermaria que prestava aos internos serviços de


vacinação, dilatação de abcessos, curativos, injeções, etc. O interno acometido por alguma
moléstia que fosse contagiosa ou exigisse repouso era recolhido à enfermaria, ficando sob os
cuidados e vigilância do “enfermeiro-ajudante” ou “auxiliar-atendente”. Eram “práticos” que
cuidavam da enfermaria e dos alunos doentes e agendavam as consultas e outros
procedimentos médico-odontológicos (BRASIL-EAFSC, 1938, 1939, 1955).

6-CUSTOS COM A MANUTENÇÃO DO INTERNATO

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Um dos fatores que provocou o fechamento dos internatos a partir da segunda


metade do século XX foi a dificuldade de fazer face aos gastos com as mensalidades ou
“pensões”. Os custos tornaram-se proibitivos para a maioria das famílias (SANTOS, 2000;
SILVA, 2000). No contexto do ensino agrícola federal, o custeio com a manutenção do
internato era apontado com um fator responsável pelos altos custos de financiamento da rede.
Contudo, não foram encontrados registros nos anos pesquisados da diminuição da oferta do
internato para ceder lugar ao regime de externato ou mesmo a possibilidade de cobrança de
taxas para o custeio do modelo.
A dificuldade para traçar um panorama sobre os custos com o internato decorre
principalmente da ausência de dados quantitativos sobre a matéria, que poderiam ser
encontrados na antiga escrituração financeira, mas que praticamente inexistente no arquivo da
escola. Diante disso, trabalhou-se com correspondências oficiais (ofícios, requerimentos,
boletins, etc.), relatórios de gestão da década de 1950, relatórios anuais do Ministério da
Agricultura e alguns indícios nos jornais consultados que permitiram apontar, ainda que de
forma incompleta, algumas características sobre o assunto.
A manutenção do internato público e gratuito era garantida pelos recursos
financeiros destinados a escola pelo Ministério da Agricultura (MA), através da
Superintendência de Ensino Agrícola e Veterinário (SEAV) e da receita própria resultante da
produção dos Núcleos Agropecuários.
Foram comuns as reclamações dos diretores por causa da “insuficiência das
verbas” ou do atraso do seu envio. O diretor José Augusto de Lima, o primeiro após a
federalização, constantemente enviava ofícios ao Ministério da Agricultura relatando as
dificuldades para manter o estabelecimento funcionando de forma adequada; um discurso que
se tornou prática costumeira de outros diretores que lhe sucederam (BRASIL-EAFSC, 1939,
1955). No ano de 1960, a imprensa instigava: “Faltam verbas na escola ou é ‘defesa’”
(FALTAM VERBAS..., 1960, p.1).
A maior atenção com os gastos de custeio do internato foi com a alimentação dos
internos: “O custo médio da alimentação diária dos alunos foi: em 1952, de Cr$ 9,90; em
1951, de Cr$ 9,84; em 1948, de Cr$ 6,61, sendo os mais elevados nos Estados do Amazonas,
Rio Grande do Sul e Estado do Rio, e os mais baixos na Bahia e Pernambuco” (BRASIL-MA,
1953, p. 248). O quadro a seguir apresenta, embora com apenas a indicação de três anos,
valores gastos com a alimentação dos internos. Trata-se do único registro, no período
pesquisado, existente no arquivo da escola em que se trata de forma específica das despesas
com a alimentação dos alunos.

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A indicação específica dos gastos com a ali QUADRO 3: CUSTO MÉDIO DA ALIMENTAÇÃO
DOS INTERNOS NOS ANOS DE 1955, 1956 E 1957

Custo médio da alimentação (Cr$ = Cruzeiros)


Custo global Custo por aluno
Ano Anual Mensal Diária Anual Diária
1955 1.050.799,76 88.779,35 2.863,85 5.099,05 13,97
1956 2.086.853,70 173.904,47 5.796,81 6.102,80 16,72
1957 1.594.016,90 132.834,80 4.422,00 7.970,08 22,11
Fonte: BRASIL-EAFSC, 1955 , 1956, 1957.

A alimentação dos internos tinha um objetivo: fundamentar a necessidade de que


os estabelecimentos federais de ensino agrícola procurassem, pelo menos de forma parcial, o
auto-abastecimento do refeitório através da produção nos núcleos agropecuários, reduzindo os
gastos com a compra de gêneros alimentícios. De semelhante modo, as reformas,
readaptações e ampliações dos espaços e o aparelhamento material da rede refletiam em parte
essa política direcionadora do Ministério da Agricultura para que as escolas diminuíssem os
gastos com o internato, ampliando suas áreas agrícolas, “tendo em vista o auto-abastecimento,
pelo menos, de produtos regionais” (BRASIL, 1949, p.124). Na década de 1930 e em boa
parte dos anos 1940, a produção agrícola da escola foi praticamente insuficiente para diminuir
os gastos com o internato, ocorrendo, inclusive, momentos de insignificante produção
agrícola, pelo menos para um complemento significativo dos gastos com a alimentação dos
internos (BANDEIRA, 1989; BRASIL, 1939).
Nessa política de “auto-abastecimento”, os internos contribuíam através do
cumprimento das escalas de trabalho braçal no campo (diminuindo a contratação de operários
agrícolas) e, além disso, desempenhavam atividades rotineiras de manutenção dos espaços do
internato, as escalas de faxina. Na verdade, além da fonte pública de custeio do internato o
trabalho dos internos foi, durante todo o período pesquisado, um complemento importante
para a manutenção do internato. Dessa maneira, o internato foi sustentado por verba pública
destinada pelo Ministério da Agricultura e uma complementação através da exploração da
mão-de-obra dos internos.

7-CONSIDERAÇÕES FINAIS

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No contexto do ensino agrícola federal, o atendimento prestado através do


internato público e gratuito (residência, alimentação, enxoval, assistência médico-
odontológica, etc.) determinou na história da Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão-SE
uma dupla atuação: formação profissional agrícola e assistência integral aos seus alunos.
Principalmente nas décadas de 1930 e 1940, o internato foi o grande atrativo para
as famílias pobres que, além da instrução para os seus filhos, viam a escola como uma forma
de sustento material para estes. Contudo, a origem predominantemente pobre dos sujeitos
atendidos no internato do estabelecimento sofreu uma variação no início dos anos 1950,
motivada pelo ingresso de alunos procedentes das camadas médias da população em busca
dos cursos ginasial e colegial e por uma formação profissional técnica agrícola de nível médio
que a escola passou a disponibilizar.
O custeio com o internato era garantido pelas verbas federais destinadas à
instituição pelo Ministério da Agricultura, e uma pequena parte era resultante da produção de
alimentos nos núcleos agropecuários do estabelecimento destinados ao abastecimento do
refeitório. Esta última forma enquadrava-se na política do Ministério da Agricultura de auto-
abastecimento dos internatos das escolas agrícolas. Nesse sentido, cabia a cada escola
diminuir os gastos com o custeio do internato, produzindo alimentos na propriedade rural
onde se localizava, utilizando os seus recursos materiais e técnicos e contando com a
exploração da abundante mão-de-obra dos internos.
Assim, o internato público masculino foi uma característica que acompanhou a
trajetória da instituição e a evolução do ensino agrícola por ela oferecido. Por meio do
internato, a escola proporcionou instrução a uma parcela da juventude, principalmente rural e
pobre, de Sergipe e de outros estados.

8-REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ANDRADE, Mariza Guerra de. A educação exilada. Colégio do Caraça. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.

BANDEIRA, Astolfo Ribeiro Pinto. Um agrônomo no ensino agrícola do Nordeste.


Fortaleza, 1989.

COSTA, Rosemeire Marcedo. Fé, Civilidade e Ilustração: as memórias de ex-alunas do


Colégio Nossa Senhora de Lourdes (1903-1973). São Cristóvão, UFS - NPGED. Dissertação
(Mestrado em Educação). 2003.

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FREYRE, Gilberto.Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado Rural e


Desenvolvimento do Urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.

MANGUEIRA, Francisco Igor de Oliveira. Colégio Tobias Barreto: escola ou quartel?


(1909-1946). São Cristóvão: Dissertação de Mestrado. Núcleo de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe. UFS. 2003.

NASCIMENTO, Jorge Carvalho do.Memórias do Aprendizado: oitenta anos de ensino


agrícola. Maceió: Edições Catavento, 2004.

NERY, Marco Arlindo Amorim Melo. A Regeneração da Infância Pobre Sergipana no


início do Século XX: o Patronato Agrícola de Sergipe e suas práticas educativas. São
Cristóvão. Dissertação de Mestrado. Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Sergipe. UFS. 2006.

POMPÉIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Editora Ática, 2001.

SANTOS, Manoel Isaú Souza Ponciano. Luz e Sombras: internatos no Brasil. São Paulo:
Salesianas, 2000.

SILVA, Antenor de Andrade. Os Salesianos e a Educação na Bahia e em Sergipe – Brasil


1897 – 1970. Roma: LAS – Libreria Ateneo Salesiano. 2000.

9-FONTES PESQUISADAS

BARROS, Cacilda de Oliveira. Entrevista concedida ao autor em 9 de outubro de 2006.

BRASIL. Decreto-Lei n° 9.613, de 20 de agosto de 1946. Lei Orgânica do Ensino Agrícola.


SICON (Sistema de Informações do Congresso Nacional), 1946. Disponível em:
<<http://www.senado.gov.br/sicon>>

BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola Benjamin Constant. Livro de Anotações de


Ocorrências do Aprendizado Agrícola Benjamin Constant. São Cristóvão, 1942.

BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola Benjamin Constant. Livro de Correspondência


expedida pelo Aprendizado Agrícola Benjamin Constant, São Cristóvão, 1939.

BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola Benjamin Constant. Livro de Registro de Entrega


de Vestuários a Educandos, São Cristóvão, 1946.

BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola de Sergipe. Livro das Impressões dos Visitantes.


São Cristóvão, 1935.

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BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola de Sergipe. Livro de Matrícula do Aprendizado


Agrícola de Sergipe, São Cristóvão, 1938.

BRASIL-EAFSC. Aprendizado Agrícola de Sergipe. Livro de Registro do Pessoal


Permanente. São Cristóvão, 1934.

BRASIL-EAFSC. Escola Agrícola Benjamin Constant. Relatório anual de atividades. São


Cristóvão, 1955.

BRASIL-EAFSC. Escola Agrícola Benjamin Constant. Relatório anual de atividades. São


Cristóvão, 1956.

BRASIL-EAFSC. Escola Agrotécnica Benjamin Constant. Relatório anual de atividades.


São Cristóvão, 1957.

BRASIL-MA. Ministério da Agricultura. Atividades do Ministério da Agricultura em


1952. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1953.

BRASIL-MA. Ministério da Agricultura. Relatório das Atividades do Ministério da


Agricultura, durante o período de julho de 1934 a dezembro de 1935. Diretoria de
Estatística da Produção: Rio de Janeiro, 1938.

CRUZ, Marita Santos da. Entrevista concedida ao autor em 4 de janeiro de 2006.

FALTAM VERBAS na Escola ou é “defesa”. Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 1, 20 abr. 1960.

LIMA, João Ferreira. Entrevista concedida ao autor no dia 17 de novembro de 2005.

SANTOS, Ademilson Vieira. Entrevista concedida ao autor em 13 de setembro de 2006.

SANTOS, José Cláudio dos. Entrevista concedida ao autor em 20 de setembro de 2006.

SANTOS, Manoel do Carmo. Entrevista concedida ao autor em 23 de novembro de 2005.

SANTOS, Reginaldo José dos Santos. Entrevista concedida ao autor em 18 de novembro de


2005.

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ENSINO DE BIOLOGIA NO ATHENEU SERGIPENSE DA DÉCADA DE


1970: FORMAÇÃO DOCENTE NO INSTITUTO DE BIOLOGIA E NO
CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DA UFS

Kátia de Araújo Carmo – UFS


omrackbio@yahoo.com.br

Dentro do simpósio “História da Educação”, o presente trabalho analisa parte do processo de


formação docente que marca a década de 1970 no Estado de Sergipe. Sendo que a mesma se
insere nas mudanças sócio-educacionais que vigoravam nacionalmente, essas transformações,
com a lei 5.540/68, reestruturaram o ensino universitário com a implantação de institutos
básicos e como exemplo tem-se o Instituto de Biologia de Sergipe; sendo, somente em 1972,
implantado o Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Neste
estudo, propõe-se situar historicamente a implantação desses dois centros formadores do
professorado de Biologia no Colégio Atheneu Sergipense da década de 1970. Para tanto,
consultou-se bibliografias pertinentes, arquivos públicos e pessoais, legislação do período e
fontes documentais diversas: diários de classe, livros de ponto, avaliações escritas, ficha
documental de professores. Como resultado dessa pesquisa obteve-se um quadro de formação
docente ainda precário, sendo a prática de ensino vinculada à elevada especificidade no uso de
alguns conceitos biológicos, não necessariamente ligados à realidade cotidiana dos alunos;
além da ínfima importância dada às poucas aulas práticas de laboratório.

Palavras-chave: Atheneu, Biologia, Instituto.

No Ensino de Ciências, a aquisição de entendimento sobre conceitos e sobre


processos biológicos, além de um aprofundamento, objetiva a contribuição para tomadas de
decisões de interesse individual e coletivo com ética e responsabilidade no mundo atual. Além
disso, na sociedade contemporânea, a significação dada à Ciência e à Tecnologia; as
adequações à manutenção da saúde e a responsabilidade do homem frente a problemas
ambientais, confere ao ensino de Biologia uma responsabilidade em fornecer uma educação
plena em “alfabetização biológica”, isto é, adequada leitura de mundo. Portanto, a

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contribuição do Ensino de Biologia vai além da mera compreensão técnica e serve para um
exercer efetivo de cidadania plena.
No Ensino Médio, o exercício professoral de Biologia em nosso país variou
bastante nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1990. E por parte dos governos, americano e
brasileiro, não faltaram incentivos que propunha uma “melhoria” do Ensino das Ciências de
maneira geral, e em particular do Ensino de Biologia.
Desde a década de 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases de 20 de dezembro
de1961, houve uma descentralização das decisões curriculares, até então sob responsabilidade
federal856.
Especificamente na década de 70, o projeto nacional de ditadura militar, que
estava no poder, era o de modernizar e de desenvolver o país. E o ensino de Ciências era
considerado importante componente para a preparação de um corpo qualificado de
trabalhadores, conforme foi estipulado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada
em 1961857.
Embora visasse ao desenvolvimento do ensino voltado à qualificação, os
currículos escolares brasileiros de Biologia da década de 1970 eram atravancados por
disciplinas que pretendiam levar o aluno ao mundo técnico do trabalho (zootecnia,
agricultura, técnica de laboratório, etc), sem que os estudantes tivessem bases científicas para
aproveitá-las (KRASILCHIK, 2004).
Já no final da década de 1970, a chamada “Guerra Tecnológica” exigia novas
reformas urgentes no ensino de Ciências, entre elas a Biologia. Foi a vez dos currículos
chamados de socializantes.
Em Sergipe, a década de 70, sob a tutela militar, utilizou-se mais acintosamente do
modelo capitalistas na Cultura, sobretudo na Educação. Dentro desse contexto, o atendimento
à demanda do Ensino Médio e o nascimento da Universidade Federal de Sergipe receberam
incentivos sem precedentes (DANTAS, 2004). Em Sergipe, Colégio Atheneu Sergipense, foi

856
Art. 4º Os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional, e
uma parte diversificada rara atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades
locais aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos. (LDB, 1961).
857
Art. 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e
preparo para o exercício consciente da cidadania. (LDB, 1961).
Art. 5º §2º A parte de formação especial de currículo: a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciarão para
o trabalho, no ensino de 1º grau e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau; b) será fixada, quando se
destine a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local
ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados. (LDB, 1961).

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criado em 1870, por Manuel Luiz de Azevedo e recebeu inúmeras denominações (ALVES,
2006).
Este trabalho tem como objetivo caracterizar o ensino de Biologia no Colégio
Atheneu Sergipense durante a década de 70; situar os conteúdos ministrados pelos
professores, a formação docente e a constituição das turmas de Ensino Médio. Também se
objetiva, secundariamente, inserir a formação professoral sergipana em Biologia, dentro da
instituição mencionada, no contexto brasileiro da época. Para esta pesquisa historiográfica,
investigou-se diversas fontes documentais, como: diários de classe, livros de ponto,
avaliações escritas, ficha documental de professores, e outros.

CONTEÚDOS TRABALHADOS NAS AULAS DE BIOLOGIA DA DÉCADA DE 70

Há algum tempo, na era das mudanças tecnológicas e no bojo da chamada


“corrida espacial” entre Estados Unidos e antiga União Soviética, observou-se uma
redefinição na Educação brasileira, em especial no ensino de Ciências e Biologia. Para
Chassot (2004), os Estados Unidos procurou culpados pelo seu atraso tecnológico na corrida
espacial e “um apareceu em evidência: a escola”. Houve movimentos visando radicais
reformas curriculares nos Estados Unidos; e, para os currículos de Biologia no Brasil, o
recebimento de grande influência americana foi uma conseqüência direta da interferência
educacional em nosso país; principalmente após a década de 60.

O projeto mais conhecido que teve também circulação no Brasil foi, para a
Biologia, o BSSC – Biology Science Study Committee ou Comitê de Estudos de Ciências
Biológicas. E embora o IBECC, desde 1960 já se dedicasse à preparação de materiais para o
ensino prático de Biologia, optou por adaptar dois projetos do BSCS, ambos destinados às
escolas do Ensino Médio: as chamadas “Versão Azul”, que analisava os processos biológicos
a partir do nível molecular, e a “Versão Verde”, que centralizava sua análise ao nível de
população e comunidade.

Com o regime militar, a implantação desse projeto foi muito facilitada; pois o
golpe militar acabou gerando um modelo econômico que acelerou uma demanda social de
educação, com acordos com o MEC-Usaid que visavam atuar sobre os conteúdos, métodos e
técnicas de ensino. Introduziu-se no Brasil uma rede de Centros de Treinamento de Ensino de
Ciências que foram os locais de implementação dos projetos. E uma das alternativas para a

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execução desses treinamentos foi o Programa de Expansão do Ensino Médio (Premen). Estes
e outros programas influenciaram profundamente o ensino de Biologia atual (KRASILCHIK,
2004).

FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM BIOLOGIA E O PAPEL DO INSTITUTO DE


BIOLOGIA

Desde a década de 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 20 de


dezembro de 1961, houve uma descentralização das decisões curriculares, até então sob
responsabilidade federal. Também o aumento do progresso da Biologia contribuiu para o
rompimento da tradicional divisão em Zoologia e Botânica. E especificamente na década de
70, o projeto nacional da ditadura militar era o de modernizar e de desenvolver o país. Sendo
o ensino de Ciências considerado importante componente para a preparação de um corpo
qualificado de trabalhadores (LDB de 1971), veio a reforma imposta pela lei 5.540/68 que
reestruturou o ensino universitário e criou a estrutura departamental, implantaram-se os
institutos básicos que se responsabilizavam pelo ensino de Biologia, Física, Matemática e
Química; sendo que a parte pedagógica passou a ser assumida pelos departamentos da
Faculdade de Educação, que surgem, na maioria das universidades brasileiras, com a lei
5.540/69; pois até então o Curso de Pedagogia estava, como outras licenciaturas, nas
Faculdades de Filosofia (Ciências e Letras). Os alunos de licenciatura nos institutos eram
minoria; pois grande parte do alunado era composta por engenheiros, biólogos, químicos e
outros (LIMA, 1998).
Em Sergipe, o Instituto de Biologia, localizado à Rua Vila Cristina, 1051, formou-
se a partir da Resolução nº 06/69/Conselho do Ensino e da Pesquisa. E com o tempo, por
iniciativa do Professor Nestor Piva, foram contratados vários profissionais para
engrandecimento do curso e para uma reformulação no seu planejamento. Contou-se com a
presença da professora naturalista Maria Auxiliadora Santos, do entomólogo Dr. Pe. Jesus
Santiago Moura e do carcinólogo Dr. Jayme Loyola e Silva, sendo este da Universidade
Federal do Paraná. Embora os cursos, antes da lei 5.540/68, fossem muito extensos, após a
mesma, continuaram a ser conteudistas. Grandes projetos que vinham de fora traziam
diferenças significativas, como: uma menor quantidade de conteúdos e a valorização da
descoberta por meio de atividades experimentais. Eram amplamente criticáveis em sua
implementação no Brasil e houve alguma resistência. Um dos motivos dessa resistência é
apontado por Chassot (2004): “(...) as traduções não tiveram o cuidado de adaptar bolas de

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baseboll, de rubgy e mesmo sugeriam que os estudantes trouxessem para a sala um pouco de
neve”.

CURSO DE BIOLOGIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE E OS


LICENCIADOS

Criada em 1967, através do Decreto-Lei 269 e instalada em maio de 1968, a


Fundação Universidade Federal de Sergipe (UFS) incorporava inicialmente seis unidades de
ensino superior: Faculdade de Ciências Econômicas; Escola de Química; Faculdade de
Direito; Faculdade Católica de Filosofia e de Serviço Social e Faculdade de Ciências
Médicas. Com a implantação da Reforma Universitária no país, essas seis unidades deram
lugar a cinco faculdades iniciais e cinco institutos, dentre os quais o Instituto de Biologia.
(PIVA et all, 1980).
O Curso de Ciências Biológicas teve seu currículo pleno aprovado em 1969 e foi
implantado somente em 1972, com a oferta de 30 (trinta) vagas anuais. Durante a implantação
do curso, diversas resoluções do Conselho de Ensino e da Pesquisa mudaram códigos,
nomenclaturas, carga horária e disciplinas. Após ajustes, o Decreto 79.947, de 13 de julho de
1977, publicado no diário oficial de 14 de julho de 1977, à página 8.901, concedeu o
reconhecimento do Curso de Ciências Biológicas da UFS. E somente em 1983, através dos
trabalhos iniciados pelo antigo Reitor Aluísio de Campos, foram inauguradas as atuais
instalações; criando-se então o CCBS (Centro de Ciências Biológicas) e o DBI (Departamento
de Biologia) 858.
A estrutura curricular vigente à época, definida pela resolução nº 22/79/CONEP,
de 12 de dezembro de 1979 previa a formação de Licenciado ou de Bacharel em Ciências
Biológicas, no período de três a sete anos. Esse currículo abrangendo 183 créditos
(2.745horas) se desenvolvia em dois ciclos de estudos: um ciclo básico, composto por
disciplinas do núcleo comum e disciplinas complementares, totalizando 34 créditos
obrigatórios e oito optativos; e um ciclo acadêmico, que era destinado à formação biológica
básica do aluno e seu encaminhamento profissional em duas opções - a Licenciatura Plena,

858
Nesta época, as universidades estavam optando pela sucessão dos antigos Cursos de História Natural, que
englobavam grande carga horária de disciplinas de Ciências Geológicas, pelos Cursos de Ciências Biológicas,
mais centrados na área de Biologia. Essa foi uma tendência de modernização na Ciência e no ensino no Brasil, e
a Universidade Federal de Sergipe, então iniciante, a seguiu. (ALCÂNTARA & FRANCO, 1998)

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com disciplinas de formação pedagógica e estágio em Ensino de Biologia, e o Bacharelado,


com disciplinas relacionadas a métodos e práticas de pesquisa biológica. As duas opções
totalizavam 141 créditos, dos quais 92 eram obrigatórios e 49 optativos (PIVA et all, 1980).
Somente hoje, com a grade atual, aprovada em 1995, a opção entre as duas modalidades de
curso é prévia, à época do vestibular.

RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas características dos programas de Biologia no Ensino Médio (antigo


Curso Colegial) do Colégio Atheneu Sergipense, de acordo com diários de classe são: elevada
especificidade no tratamento dado aos conceitos biológicos; apresentação dos conteúdos sem
seqüência linear e de forma repetitiva; alteração na nomenclatura da disciplina nos diários –
identificada como sendo “Botânica” ou “Ciências Naturais”- ; poucas menções a aulas ou
avaliações práticas de laboratório. Ao que se constatou, reforça-se a verificação das
tendências do ensino de Biologia desta época no Atheneu Sergipense, vigorando como:
decorativas; sem relação direta com o cotidiano do aluno; extensas; descritivas e envolvendo
grande quantidade de assuntos não relacionados entre si.
Dentre os 47 (quarenta e sete) professores integrantes de seu quadro docente, no
período de 1970 a 1979, oito eram médicos ou estudantes de Medicina; sete biólogos ou
estudantes de Biologia; sendo dois médicos com especialização em Ensino de Biologia. Não
houve possibilidade de caracterização dos demais professores mencionados. Dentre estes sete
professores comprovadamente com formação em ensino de Ciências Biológicas, alguns eram
oriundos do Instituto de Biologia ou de outras Faculdades do Nordeste, como as de
Pernambuco e Bahia.

Além disso, as classes divididas pelas três séries (1º, 2º e 3º anos) apresentavam-se
numerosas, com uma média de 40 alunos por classe. No ano de 1970, por exemplo, eram: 10
turmas de primeiros anos, 17 turmas de segundos anos e 16 turmas de terceiros anos, nos três
turnos em que funcionava a escola; contando com a passagem de 20 professores de Biologia
durante este mesmo ano nesta instituição escolar. Em 1978, o número de professores de
Biologia alocados na instituição cai para sete, mas o número de turmas é ampliado para 52.
Apesar das dificuldades derivadas da falta de dados e da pouca tradição do estudo
do currículo de Biologia, verificou-se desarticulação e cientificismo em excesso no ensino de
Biologia no período e instituição pretendidos.

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Sergipe se insere na caracterização nacional do ensino de Biologia da década de 70


ao encaminhar a formação professoral ao Instituto de Biologia e, mais tarde ao Curso de
Ciências Biológicas. A formação atual dos professores de Biologia do Estado de Sergipe é
fruto das escolhas adquiridas à época da formação profissional do passado recente, que muito
contribuiu para sua caracterização. Essas escolhas vão desde as exigências de mais
professores especialistas até a desvinculação do Departamento de Medicina, a que os
licenciados em Ciências Biológicas estavam sujeitos naquele período.

Há a necessidade de estudo mais apurado sobre a formação de professores de


Biologia em Sergipe e o desenvolvimento de sua formação, junto ao Instituto de Biologia e ao
Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Sergipe. Dois marcos na formação
do licenciado em Ciências Biológicas em Sergipe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCÂNTARA, A. V. FRANCO, M. M. Histórico do Curso de Ciências Biológicas. In: UFS:


História dos Cursos de Graduação, UFS, 1998.

ALVES, E.M.S. A congregação do Atheneu sergipense: das ações pedagógicas aos acirrados
debates. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v.12, p. 59-72, jan/jun.2006.

CHASSOT, A. Ensino de Ciências no começo da segunda metade do século da tecnologia. In:


LOPES, A. C. MACEDO, E. Currículo de Ciências em debate. Campinas: Papirus, 2004.

DANTAS, I. História de Sergipe República (1889 – 2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2004.

KRASILCHIK, M. Prática de ensino de Biologia. 4ªed. São Paulo: Edusp, 2004.

LIMA, J.F. UFS: História dos Cursos de Graduação. Centro de Impressão Eletrônica da UFS,
1998.

PIVA, N. MENDONÇA, Y. D. CORREIA, M. A. (Orgs.) Universidade Federal de Sergipe:


Catálogo Geral. Aracaju: UFS, 1980.

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MARCOS LEGAIS DA HISTÓRIA DA DIRETORIA DE EDUCAÇÃO DE ARACAJU

Luciano Rodrigues dos Santos – FAPESE/UFS


lucianorod@bol.com.br
Jorge Carvalho do Nascimento – orientador – NPGED/UFS
jocarna@uol.com.br

O presente trabalho procurou estudar a trajetória da Diretoria de Educação de Aracaju – DEA,


tomando como base seus marcos legais, para compreender o porquê e quando do seu
surgimento dentro do sistema educacional na cidade de Aracaju, sendo esta um órgão ligado
diretamente a Secretaria de Estado da Educação de Sergipe - SEED, e tendo uma enorme
relevância e abrangência social no município, pois existem várias Unidades de Ensino que
fazem parte de sua circunscrição em quase todos os bairros pertencentes à mesma.
Desenvolveu-se uma pesquisa documental por meio de diferentes fontes: bibliografia;
documentos e relatórios obtidos junto a SEED; e documentos oficiais do Estado de Sergipe.
As análises centraram-se principalmente nas atribuições e/ou competências a ela designadas.
Portanto, compreende-se que a DEA passou por várias mudanças na sua nomenclatura;
abrangeu inicialmente 12 (doze) municípios envolvidos na sua circunscrição, depois somente
o Município da Barra dos Coqueiros, e por fim, somente a cidade de Aracaju, ao passo que
cada vez mais suas atribuições e/ou competências ao longo dos anos vão aumentando,
permanecendo sempre como uma representação fiel da Secretaria de Estado da Educação na
região.

PALAVRAS - CHAVE: História; Educação; Legislação.

Este estudo considera a relevância da Diretoria de Educação de Aracaju – DEA no


cenário educacional da cidade, principalmente pela sua abrangência de atuação, na qual
podemos constatar a presença de várias Unidades de Ensino pertencentes à rede estadual
presentes em quase todos os bairros do Município. A DEA é responsável pela uniformidade
das ações pedagógicas e administrativas advindas da Secretaria de Estado da Educação do
Estado de Sergipe para com a comunidade escolar aracajuana. Também procura respeitar a
autonomia das Unidades Escolares, que são respaldadas e garantidas pelos seus projetos
políticos pedagógicos, em virtude da sua realidade local.

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Neste trabalho, procuramos então estudar a trajetória da Diretoria de Educação de


Aracaju – DEA, tomando como base os seus fundamentos legais. O objetivo é a busca da
compreensão do porque e quando do seu surgimento dentro do sistema educacional no
Município de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Para tal verificação, percorremos a
trajetória da Secretaria de Estado da Educação, porque a mesma é uma instituição
subordinada a sua estrutura básica.
Para elucidar o surgimento da DEA foi necessário utilizar a pesquisa documental
como estratégia metodológica, fazendo uso de diversas fontes, como bibliografia; documentos
e relatórios obtidos junto a Secretaria de Estado da Educação e documentos oficiais do Estado
de Sergipe.
A Diretoria é responsável por 98 (noventa e oito); atendendo todos os níveis da
educação básica em vários bairros de Aracaju. Para dar conta deste universo foram
entrevistados funcionários que trabalham há vinte anos ou mais na referida Diretoria, devido à
mesma não possuir um acervo documental que pudesse conduzir à compreensão da sua
História, como as atas de posse dos seus diretores.
Ao analisar os estudos produzidos por Maria Thetis NUNES e José Antônio
Nunes MENDONÇA sobre a educação em Sergipe, é possível perceber que ambos possuem
algumas opiniões em comum, no que se refere aos impactos causados no cenário educacional,
em face da mudança da sede administrativa de São Cristóvão para Aracaju.
Na obra de Nunes (1984) buscamos as origens do órgão central de direção da
política de ensino em Sergipe. Encontramos elementos que dão conta do problema até a
década de 30 do século XX. Na obra de Mendonça (1958) é possível encontrar os elementos
que informam sobre os acontecimentos posteriores a esse período.
Para Nunes (1984, p. 86-101),

O setor educacional na nova Capital que por força do parágrafo 2º, do


artigo10°, do Ato Adicional à Constituição do Império, a Província assumiu
o ensino primário e secundário tendo que cobrir as despesas orçamentárias
com a educação, demonstrando o crescimento da responsabilidade do
governo na vida educacional, comparando-se os números registrados em
1835, referentes aos alunos matriculados, conclui-se que, nesses dois
decênios, houve um aumento de 60%.

A vida educacional espelhava, fielmente, a realidade da nova Capital, desde


quando se resumia a uma aula de Primeiras Letras para meninos, criada em
1948, pelo Presidente Zacarias de Góis e Vasconcelos, e que vinha
funcionando irregularmente, em situação precária, com poucos alunos
matriculados, e estes muitos pobres.

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Inúmeras foram as dificuldades a serem vencidas para que Aracaju


vivificasse. Com o falecimento [do Presidente] Inácio Joaquim Barbosa em
outubro do mesmo ano da mudança, acentuou-se os obstáculos naturais que
deveriam ser enfrentados pela ousadia e obstinação de seu fundador.

Difícil também seria, aí, o desenvolvimento do ensino, partindo da pobre


escola de Primeiras Letras existente. Pela Resolução nº. 422, do mês
imediato à mudança, o Presidente procurava dar organização ao ensino
público aracajuano. Este deveria contar com duas escolas primárias, uma já
funcionando e outra criada para meninas, e duas cadeiras secundárias
abrangendo uma de Língua Latina, então criada, e a de Filosofia, transferida
de São Cristóvão. Mas o professor de Filosofia, o Pe. José Gonçalves Barros,
adversário intransigente da mudança, não veio para Aracaju, apesar das
determinações governamentais. Alegando não encontrar residência
adequada, ‘nem mesmo de palha’, o que era comum nesses primeiros
tempos, terminou sendo jubilado com o ordenado proporcional ao tempo de
serviço quando a cadeira foi supressa em julho de 1858, sob a alegação de
que não existiam candidatos na pequena população de 415 menores livres
acomodada na cidade que procurava crescer entre pântanos e areias.

Em 1860, em Sergipe, se tornava evidente o desajuste entre o sistema


educacional adotado, que era réplica do que vigorava no país, e as exigências
que a sociedade sergipana começava a apresentar.

A autora afirma também que, ainda na República,

o sistema educacional vigente não correspondia às exigências das novas


classes em gestação. Apesar das denúncias feitas por estadistas e intelectuais
e das tentativas de reformas, o ensino continuava arcaico, livresco,
satisfazendo à demanda da classe latifúndio-mercantilista detentora do poder
político.

Ao assumir a presidência de Sergipe republicano, em 13 de dezembro de


1889, o Dr. Felisbelo Firmo de Oliveira Freire, um dos seus primeiros atos,
foi designar, em 30 do mesmo mês da posse, uma comissão para orientá-lo
na reforma educacional a ser feita.

Justificava o Presidente a necessidade de reformular radicalmente a


Instrução Pública ante ‘o verdadeiro estado de desorganização em que se
encontrava o sistema educacional sergipano acarretando grande desproveito
para o ensino e portanto, para as classes populares’, que, assim, pela
primeira vez em Sergipe eram invocadas no contexto de uma reforma da
educação. Ainda, o ensino popular era visto ‘como base principal do bem-
estar das nações’. Refletia-se este preâmbulo o idealismo daqueles que
fizeram a República e, no primeiro momento, a conduziram (NUNES, 1984,
p. 172-179).

Segundo Nunes (1984, p. 181), de acordo com os anseios dessa época é elaborado
outro Regulamento que,

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nos 380 artigos, disciplinava, minuciosamente, todo o sistema educacional a


ser implantado, traduzia os vastos conhecimentos do Presidente e a crença,
dominante da época, do papel da educação como agente modificador da
sociedade. Ao mesmo tempo, apresentava uma dissociação da realidade
estrutural de Sergipe, onde não existiam condições para que vigorasse a
maioria dessas determinações. Nem, atualmente, quase um século decorrido,
muitas das inovações, que então se tentava implantar na vida educacional
sergipana, têm execução.

Nunes (1984, p. 236) também ressalta que no ano de 1922,

continuava o sistema educacional dissociado das necessidades locais, sem


promover a renovação social, sem participar do desenvolvimento que se
operava no Estado. Era mais um meio de conservação de privilégios. A
sociedade sergipana urbana, em realidade, modernizara-se copiando modelos
estereotipados das regiões desenvolvidas. Mas permaneciam as estruturas
arcaicas, tradicionais, que atuavam sobre o processo educacional, fazendo
que este não correspondesse as solicitações imediatas da vida econômica em
andamento, passando a ser um obstáculo ao seu crescimento.

A administração do Presidente Graccho Cardoso refletiu, em seus atos, essa


inquietação sentida no país ante os problemas educacionais e

foi coerente quando procurou entrosar as leis educacionais a outras que


tentavam modificar a estrutura sócio-econômica vigente. Mas o impulso
dado, ante a resistência das arcaicas instituições que teimavam em
permanecer, não pôde alcançar o êxito que ele esperava de seus planos,
resultando na ‘falta de harmonização entre lei e prática, entre teoria e
aplicação, entre o mito educacional e a realidade educacional’, e que
‘constitui um problema administrativo fundamental dos sistemas
educacionais nos países em processo de desenvolvimento’ (NUNES, 1984,
p. 253).

Para Mendonça (1958, p. 63-64),

como esclarece o professor Fernando de Azevedo, deve-se entender por


sistema educacional, superestrutura organizada, ‘uma pluralidade de
organizações, públicas e particulares, um conjunto mais ou menos complexo
de unidades escolares, de natureza e níveis diferentes, superpostas,
hierarquizadas e ligadas entre si por suas relações de coordenação e
subordinação, e, portanto, por uma unidade de espírito (estruturas
organizadas à base de colaboração) e, mesmo em certos casos, como nos
regimes unipartidários ou totalitários, por uma unidade de direção (estruturas
organizadas à base de dominação).

O que caracteriza um sistema escolar, em que pesem as divergências quanto


aos elementos reputados indispensáveis à sua existência, são as relações de
coordenação e subordinação. É a articulação entre si. É a unidade de espírito,

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na nossa estrutura, organizada à base de colaboração. É, em suma, a


organicidade estrutural.

Segundo o mesmo autor, esta situação da falta de entendimento sobre o sistema


educacional é perceptível e reflete-se, principalmente, na ausência de um planejamento
educacional consistente, afirmando que,

em Sergipe, (...) não há planejamento, unidade de diretrizes ou conjugação


de esforços. A falta de planejamento e de coordenação assinala a ação dos
poderes públicos no campo educacional. Tampouco há coordenação entre os
diversos níveis e modalidades de ensino ou distribuição planejada de
unidades escolares, de acordo com as necessidades de cada zona do Estado.

Não se pode, assim, a rigor, falar em um sistema educacional sergipano. O


Estado não o possui. Dispõe apenas de uma rêde escolar, produto do esforço
isolado das administrações: estadual e municipais e da iniciativa particular;
esforço sem planejamento e sem unidade, sem a necessária formulação de
objetivos e critérios, sem a imprescindível conjugação de recursos para uma
ação comum, por isso mesmo mal orientado (MENDONÇA, 1958, p.64).

Continuando nas suas análises sobre a educação em Sergipe, relata que

a preocupação dominante, com relação ao ensino fundamental comum, tem-


se restringido, em Sergipe, a salpicar, no território estadual, sem a adoção de
uma política educacional apropriada e quase sempre à mercê de interêsses
estranhos à educação, escolas primárias puramente alfabetizantes, e mesmo
assim, sem as condições indispensáveis ao seu funcionamento e evolução.

Trata-se de uma maneira ilusiva de multiplicar oportunidades e satisfazer


necessidades educacionais, inspiradas, quiçá, por ingênuo romantismo
pedagógico, que leva a suposição de que as aquisições nas técnicas
fundamentais da cultura – leitura, escrita e cálculo – desacompanhadas de
um mínimo de educação integral, eficaz e bem distribuída, de acôrdo com as
aptidões de cada um a as condições diversificadas de trabalho, importam na
solução do problema educacional.

Na Capital, onde as solicitações escolares são enormes, existem dois Grupos,


que, instalados ambos no mesmo prédio e em local absolutamente impróprio,
não apresentam rendimento razoável. Trata-se dos Grupos Escolares ‘Barão
de Maruim’ e ‘General Siqueira’, situados numa área residencial de pessoas
abastadas, distantes das áreas onde habita a clientela das escolas públicas, a
matrícula de cada um não chega a duzentos alunos, enquanto outros,
localizados em sítios adequados, necessitam de recorrer ao desdobramento
para atender as matrículas elevadíssimas (MENDONÇA, 1958, p. 66-70).

Mendonça (1958, p. 75) considera que

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(...) se a educação escolar dilatou-se quantitativamente em Sergipe, pouco


evoluiu em eficiência e qualidade. Uma boa estatística é a base numérica
para o estudo e o planejamento de um sistema de educação. É o fulcro de
qualquer medida eficaz de administração educacional.

O chamado sistema escolar de Sergipe, efetivamente, está referto de


deficiências de ordem técnica e educativa, em situação precária, num atraso
deveras acentuado (...).

Entre os principais fatores que, ao nosso ver, vêm concorrendo para as falhas
da educação elementar, no Estado, desejamos, de início, assinalar:

a) a falta ou as deficiências de preparação intelectual e de formação


pedagógica do professor primário;

b) a falta de recursos materiais e de planejamento;

c) o excesso de interferência político-partidário na administração


educacional;

d) a falta de ajustamento da escola ao meio a que se propõe servir.

Mendonça (1958, p. 81-199) reforça ainda mais sua opinião, segundo a qual a
problemática educacional em Sergipe estava na administração escolar, uma vez que

a direção suprema dos negócios da educação, no Estado, cabe ao Chefe do


Poder Executivo, através da Secretaria da Justiça e Interior, à qual está
subordinado o Departamento de Educação.

Embora haja a Constituição Estadual, no seu artigo 148, determinando a


criação de um órgão de educação e cultura, ao qual ficariam subordinados
todos os estabelecimentos de ensino e instituições de cultura mantidos pelo
Estado, vigora ainda, com algumas alterações, o Decreto-lei n°. 335, de 29
de novembro de 1943, que fixou as bases da organização administrativa da
educação. Prevalece, outrossim, o Regimento do Departamento de
Educação, baixado com o Decreto n°. 121, de 06 de dezembro de 1943.

Continua o Departamento de Educação a ser ‘o órgão do Govêrno Estadual


que superintende, em todo o Estado, o ensino primário, normal, comercial,
industrial e secundário, exceto na parte privativa do Govêrno Federal’.

Segundo o citado diploma legal, ao Departamento de Educação estão


subordinados todos os estabelecimentos de ensino, de qualquer grau,
mantidos pelo Estado.

Vê-se que a administração educacional em Sergipe, tanto em sua estrutura


legal, como em sua organização usual, não atende à divisão racional de
trabalho e ao critério da funcionalização do comando.

O aparelho administrativo da educação é falho e defeituoso na sua estrutura


sistemática. Carece de unidades de trabalho, especializadas e devidamente

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articuladas, incumbidas de atividades de pesquisa e de elaboração de planos


de ação.

Os serviços técnicos existentes, desorganizados e sem coordenação, não


executam as tarefas que deveriam realizar, limitando-se ao formalismo
burocrático, à insignificância das pequenas iniciativas acidentais e aos
trabalhos de rotina.

Fator negativo, no setor administrativo da educação, tem sido, também, a


ausência de elemento humano especializado nas funções que exigem, dos
seus ocupantes, o indispensável equipamento profissional.

No que tange à assistência médico-dentária, o escolar sergipano, na Capital,


é atendido, antes diríamos, mal atendido, pelo Serviço de Higiene Infantil e
Assistência Escolar da Casa da Criança e pelo Centro de Saúde.

Urge, sem dúvida alguma, uma reforma educacional, no Estado, condizente


com os novos objetivos do ensino reclamados pela nossa civilização e com
os conhecimentos atuais sobre a aprendizagem.

Tal reforma deverá abranger, necessariamente:


a) a estrutura orgânica do sistema estadual de educação e a organização
científica da administração educacional;

b) a revisão dos planos de estudo e dos programas de ensino;

c) o ajustamento do ensino às diversas áreas ecológicas do Estado, para que


atenda aos objetivos de ordem sociológica da educação;

d) o preparo e o aperfeiçoamento do professor primário e a defesa e


valorização da profissão docente;

e) as instalações materiais e o aparelhamento didático da escola;

f) a ampliação da escola primária, com a instalação de cursos


complementares;

g) a transformação do trabalho escolar e da estrutura interna da escola,


mediante o ensaio e a aplicação das modernas técnicas de ensino, e a
implantação de atividades e instituições sociais e de situações democráticas
na escola;

h) a organização das classes;

i) a renovação dos métodos de administração escolar;

j) a inspeção escolar, transformada em orientação pedagógica;

k) o afastamento das influências perniciosas da politicagem e dos


partidarismos de qualquer espécie, da administração educacional.

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Dois anos após a publicação do trabalho de Mendonça (1958), a Secretaria de


Educação, Cultura e Saúde foi criada, através da Lei n°. 981, de 05 de abril de 1960, com as
seguintes finalidades:

1. Supervisionar os problemas da Educação e difundir o ensino em todos os


seus graus, no território do Estado;

2. Desenvolver a Cultura em suas diversas modalidades;

3. Supervisionar os serviços de Saúde a cargo do Estado.

Com a criação da Secretaria de Educação, Cultura e Saúde foram extintos os


Departamentos de Educação e Saúde, que eram até então, subordinados à Secretaria da Justiça
e Interior.
No dia seguinte ao da criação da Secretaria, o médico Antônio Garcia Filho foi
empossado no cargo de Secretário de Educação, Cultura e Saúde.
Em 1966, a Secretaria de Educação, Cultura e Saúde sofreu a primeira alteração
em sua base legal, reformulada pela Lei n°. 1408, de 27 de setembro de 1966, que a
reestruturou, retirando da sua pasta a responsabilidade pela política de Saúde do Estado,
transformando-se então em Secretaria de Educação e Cultura, com novas competências:

I – Zelar pela observância das leis do ensino e pelo cumprimento das


decisões do Conselho Estadual de Educação;

II – Administrar o sistema estadual de ensino de graus primário, médio e


superior;

III – Promover a expansão da rêde de escolas, do ensino de graus primário,


médio e superior;

IV – Desenvolver e difundir a cultura do Estado;

V – Administrar e conservar tôdas as instalações e equipamentos destinados


aos serviços de Educação e Cultura e pertencentes do Estado.

No ano de 1969, de acordo com o Decreto-lei n°. 115, de 28 de agosto de 1969,


ocorreu uma ampliação da sua área de competência: “Exceto o Gabinete do Secretário, os
órgãos da Administração Direta são estruturados em Divisões, Secções, Centros Regionais de
Supervisão, Centros de Treinamento e Formação de Magistério, de acôrdo com as
necessidades do serviço”.

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A partir deste Decreto-lei, foram criados os Centros Regionais de Supervisão, mas


somente através do Decreto n°. 1620, de 15 de outubro de 1969, o Estado foi dividido em
08(oito) Regiões Educacionais:

Art. 1 - O Estado de Sergipe fica dividido em 08(oito) Regiões


Educacionais, sob a coordenação de CENTROS REGIONAIS DE
SUPERVISÃO (CERES) que integram a estrutura da Secretaria
de Educação e Cultura (SEC);

(...)

Art. 4 - O CENTRO REGIONAL DE SUPERVISÃO DE ARACAJU


(CERES-1), com sede na cidade de Aracaju, compreende os
seguintes municípios da 1ª REGIÃO: 01- Aracaju; 02- Barra dos
Coqueiros; 03- Divina Pastora; 04- Itaporanga d’ Ajuda; 05-
Laranjeiras; 06- Malhador; 07- Maruim; 08- Nossa Senhora do
Socorro; 09- Riachuelo; 10- Santa Rosa de Lima; 11- Santo
Amaro das Brotas; 12- São Cristóvão.

(...)

Art. 15 - Todos os assuntos relacionados com as UNIDADES DE ENSINO


PRIMÁRIO de cada REGIÃO serão encaminhados ao
Departamento de Educação Primária da SEC por intermédio do
CERES respectivo, devidamente informado pelo Coordenador do
Centro.

Art. 16 - Mensalmente até o dia 10, os Coordenadores dos Centros deverão


encaminhar ao Departamento de Educação Primária (DEP) relatório
das atividades desenvolvidas, ressaltando as ocorrências das visitas
de supervisão feitas às unidades de ensino no mês anterior.

Na oportunidade surgiu o que hoje se conhece como Diretoria de Educação de


Aracaju–DEA e foram definidas as suas primeiras atribuições. O Decreto nº. 2041, de 18 de
fevereiro de 1971, reorganizou outra vez a Secretaria de Educação e Cultura e resolve em seu
artigo 9º que

Os Centros Regionais de Educação tem por finalidade descentralizar os


serviços técnicos e administrativos da Secretaria, nas diversas Regiões
Educacionais do Estado, com ênfase na supervisão e assistência técnica em
todos os níveis de ensino mantido pela SEC, competindo-lhe
especificamente: 1. Regionalizar o planejamento, fornecendo de um lado
subsídios para a programação geral a cargo da ASPLAN [Assessoria Setorial
de Planejamento] e, de outro, adaptando as diretrizes gerais às condições e
exigências locais; 2. Assegurar o bom funcionamento da rêde escolar nas
diversas regiões, orientando e assistindo tecnicamente as unidades
educacionais e, inclusive, fazendo observar a respectiva legislação; 3.
Ministrar o ensino em todos os seus níveis através das unidades escolares; 4.
Promover o entrosamento com as prefeituras municipais a fim de obter

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melhor eficiência na oferta dos serviços educacionais de ambas as


dependências; 5. Procurar integrar tôdas as iniciativas educacionais no
planejamento do Estado para a educação; 6. Influir nas comunidades, na
medida do possível, através de atividades de extensão e difusão educativa e
cultural.

(...)

Art. 13 - Ficam transformados em Centros Regionais de Educação os atuais


Centros Regionais de Supervisão.

Durante o quatriênio 1971/1974, o Centro Regional de Educação de Aracaju -


CERE 1 desenvolveu suas atividades com 67 (sessenta e sete) escolas, sendo 47 (quarenta e
sete) pertencentes à Capital e 20 espalhadas pelos demais Municípios da região.
Em 1976, outra vez a Secretaria de Educação redimensionou a Diretoria através
da Portaria n°. 179/76/GS/SEC, de 14 de junho:

considerando a necessidade de redistribuir entre as atuais Diretorias


Regionais de Educação e Cultura (DRs) os Municípios integrantes do antigo
CERE-1, não incluídos na jurisdição da atual Diretoria de Educação e
Cultura de Aracaju (DEA), resolve:

Art. 1 - Para efeito de atuação da Secretaria de Educação e Cultura,


considerar-se-á o Estado de Sergipe dividido em uma Região
Metropolitana e sete (7) Regiões Interioranas que corresponderão,
respectivamente, à Diretoria de Educação e Cultura (DRs).

Parágrafo Único – As regiões e os respectivos Municípios, bem como as


Diretorias correspondentes, passarão a ser os constantes do
Anexo Único desta Portaria.

ANEXO ÚNICO:

REGIÃO MUNICÍPIOS DIRETORIA


Aracaju (sede) e Barra dos
Região Metropolitana DEA
Coqueiros

Em 1987, o Decreto n°. 8567, de 21 de julho de 1987, estabeleceu que as


Diretorias Regionais de Educação e Cultura (DRs), passavam a ser chamadas de Diretorias
Regionais de Educação (DREs) e a Diretoria de Educação e Cultura de Aracaju (DEA), por
sua vez, em Diretoria de Educação de Aracaju – DEA, ficando apenas responsável pela
capital de Sergipe e tendo como órgão gestor a Secretaria de Estado da Educação, Ciência e
Tecnologia (SEDCIT).
Através da Lei n°. 3373, de 31 de agosto de 1993, novamente a organização
básica da Secretaria de Estado da Educação e do Desporto – SEED foi alterada:

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Art. 25 - As Diretorias Regionais de Educação – DRE’s, órgãos de


subordinação direta da Secretaria de Estado da Educação e do
Desporto, terão por competência a coordenação da política
educacional desenvolvida nas áreas regionais das respectivas
jurisdições, cabendo-lhes prestar assistência, assessoramento e
orientação técnico-administrativa às unidades que lhes forem
jurisdicionadas, bem como promover, supervisionar e avaliar as
atividades pedagógicas e administrativas e as medidas de
aperfeiçoamento da atuação das mesmas unidades, além de
exercerem outras atividades correlatas e as que lhes forem
regularmente conferidas ou determinadas.

(...)

Parágrafo 2° - As Diretorias Regionais de Educação funcionam como órgãos


operacionais da SEED, estruturadas em subunidades orgânicas
constituídas de Divisões, Secções, Unidades de Serviço e/ ou
Setores.

(...)

Art. 35 - O território do Estado de Sergipe permanece dividido em Regiões


Educacionais, que são administradas através das respectivas
Diretorias Regionais de Educação - DRE’s.

Parágrafo Único – A codificação ou numeração das Regiões Educacionais e


das respectivas Diretorias Regionais de Educação - DRE’s, bem
como as correspondentes sedes e os municípios integrantes, são os
estabelecidos em Decreto do Poder Executivo.

A Lei n°. 4749, de 17 de janeiro de 2003, reorganizou a Secretaria de Estado da


Educação e do Desporto e Lazer, agora denominada de Secretaria de Estado da Educação e
redistribuiu as Diretorias Regionais de Educação, dando origem a DRE-09 (Nossa Senhora da
Glória) e permanecendo a capital sob a responsabilidade da Diretoria de Educação de
Aracaju– DEA.
Tanto a Secretaria de Estado da Educação quanto a Diretoria de Educação de
Aracaju– DEA sofreram a ação equivalente a alteração das relações de poder e controle
partidário que verificou na administração pública estadual. A Diretoria de Educação de
Aracaju – DEA teve sua nomenclatura alterada algumas vezes e sua área de abrangência
reorganizada.
Inicialmente foram 12 (doze) municípios. Posteriormente, apenas a Barra dos
Coqueiros ficou sob a responsabilidade da Diretoria, e por fim, somente o município de
Aracaju. Cada vez mais cresceu o conjunto de atribuições e competências. Todavia, nem

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sempre a Diretoria recebeu o necessário suporte em termos de recursos financeiros,


equipamentos e transporte para o seu funcionamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MENDONÇA, José A. N. A educação em Sergipe. Aracaju: Livraria Regina Ltda. 1958.

NUNES, Maria T. História da educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de Sergipe,
1984.

SERGIPE, Lei n. 981, de 5 de abril de 1960. Cria a Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.
Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 13.023, 7 abr. 1960.

_______ , Decreto, de 6 de abril de 1960. Nomeia, em comissão, Secretário de Educação,


Cultura e Saúde. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 13.025 , 9 abr. 1960.

_______ , Lei n. 1408, de 27 de setembro de 1966. Reestrutura a Secretaria de Educação e


Cultura e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 15.343, 10
out. 1966.

_______ , Decreto-lei n. 115, de 28 de agosto de 1969. Dispõe sobre a organização da


Secretaria de Educação e Cultura, altera os níveis de vencimentos dos Cargos de Magistério
do Ensino Primário e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, 29
ago. 1969.

_______ , Decreto n. 1620, de 15 de outubro de 1969. Divide o Estado em 8 (oito) Regiões


Educacionais, localiza os CENTROS REGIONAIS DE SUPERVISÃO criados pelo Decreto-
lei n. 115, de 28 de agosto de 1969 e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de
Sergipe. Aracaju, n.16.032, 17 out. 1969.

_______ , Decreto n. 2041, de 18 de fevereiro de 1971. Reorganiza a Secretaria de Educação


e Cultura e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 16.353,
19 fev. 1971.

______ , Portaria n. 179/76/GS/SEC, de 14 de junho de 1976. Numera as Diretorias Regionais


de Educação e Cultura (DRs), redistribui Municípios integrantes dos antigos CERE’s e dá
providências correlatas. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 17.687, 2 jul. 1976.

______ , Decreto n. 8567, de 21 de julho de 1987. Reorganiza as Diretorias Regionais de


Educação e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, 23 jul.
1987.

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______ , Lei n. 3373, de 31 de agosto de 1993. Dispõe sobre a organização básica da


Secretaria de Estado da Educação e do Desporto - SEED e dá providências correlatas. Diário
Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, n. 21.889, 1 set. 1993.

______ , Lei n. 4749, de 17 de janeiro de 2003. Dispõe sobre a organização da Secretaria de


Estado da Educação e do Desporto e Lazer – SEEDL e dá providências correlatas. Diário
Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, 18 jan. 2003.

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A FACULDADE CATÓLICA DE FILOSOFIA DE SERGIPE:


ANTECEDENTES E ORIGENS

Nayara Alves de Oliveira - UFS


naalves10@hotmail.com

O presente estudo tem como objetivo compreender a história da Faculdade Católica de


Filosofia de Sergipe, também carinhosamente conhecida como FAFI. O recorte temporal
compreendeu o ano de sua criação (1950), ao ano de instalação e funcionamento, que só
ocorreu em 1951. Para tal, a investigação foi desenvolvida por meio de consultas a um
diversificado acervo documental e bibliográfico, do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe, Instituto Dom Luciano Duarte, Biblioteca Central e Arquivo Central da UFS. A
análise teve como referencial a metodologia de cunho historiográfico da Nova História
Cultural. A partir da análise, a pesquisa revelou que a primeira Faculdade de Filosofia de
Sergipe, foi criada em 1950 pela entidade mantenedora Sociedade Sergipana de cultura, com
o intuito de formar o magistério sergipano em nível superior, já que até o momento não existia
no Estado uma unidade educacional com essa finalidade. Entretanto, sua efetiva instalação só
ocorreu em 1951, proporcionando a comunidade uma nova expectativa no campo de ensino
superior sergipano, mediante o funcionamento dos cursos de História e Geografia,
Matemática e Filosofia.

Palavras-chave: História da Educação, Faculdade de Filosofia, Sergipe.

A intenção do presente artigo é compreender a história da Faculdade de Filosofia


em Sergipe, no período de 1950-1951. A proposta inicial da pesquisa, busca esclarecer
algumas questões relativas ao processo de criação e instalação dessa instituição, no espaço do
ensino superior. Nesse contexto, também pretende-se abordar as expectativas perante sua
efetiva contribuição na formação do magistério e conseqüentemente no desenvolvimento
intelectual e cultural do Estado.
Nesse estudo, foi selecionado como objeto de análise a primeira Faculdade de
Filosofia criada em Sergipe, a qual foi batizada de Faculdade Católica de Filosofia (FAFI)

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devido a sua íntima relação com a comunidade da Arquidiocese de Sergipe. O recorte


temporal compreende o ano de sua criação (1950), ao ano de instalação e funcionamento, que
só ocorre em 1951.
Para tal, a investigação tem sido desenvolvida por meio de consultas a um
diversificado acervo documental e bibliográfico, resgatados do Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe, Instituto Dom Luciano Duarte, Biblioteca Central e do Arquivo
Central da UFS. A análise tem como referencial a metodologia de cunho historiográfico da
Nova História Cultural.
Com o intuito de promover uma maior compreensão acerca da história da referida
faculdade em Sergipe, fez-se necessário realizar uma breve investigação histórica sobre o
ensino superior no Estado.

O surgimento do ensino superior em Sergipe

Em relação à trajetória do ensino superior em Sergipe, é possível afirmar que até o


século XIX não foi registrado a presença de instituições de ensino superior em Sergipe, no
entanto, algumas tentativas (sem êxito) de implantação foram identificadas.
A primeira tentativa ocorreu em 1860 quando foi criado o Imperial Instituto de
Agricultura Sergipana, durante a visita do imperador Pedro II à província. Essa iniciativa
tinha a intenção de mostrar a importância que Pedro II manifestava em relação à agricultura
da província, que no momento representava a principal fonte de riqueza do Estado.
Entretanto, essa instituição nunca chegou a funcionar efetivamente. (Cf. NASCIMENTO,
2006)
Outra iniciativa sem sucesso foi realizada no período republicano, durante o
governo de Daniel Campos:

Data dos fins do século XIX a primeira tentativa de fundar uma Academia
de Direito em Sergipe. Por ato de 20/8/1898, o Presidente em exercício, Dr.
Daniel Campos, nomeou uma comissão de cinco membros, composta de
homens “notáveis pelo saber” para elaborar o plano de fundação. Justificava
o ato ante a marcha regressiva que dia a dia se observa na instrução pública,
o declínio de nível intelectual, a diminuta freqüência do Ateneu, já por lhes
faltar desideratum que lhe assegura o governo da União no art. 430, do dec.
nº. 1.232 de 2 de janeiro de 1891, já pelo desânimo que invade a alma dos
moços sergipanos, em geral baldos de recursos, a procura de uma escola
superior. (NUNES, 1984, p. 194)

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Infelizmente essa tentativa de criar uma faculdade em 1898, não se concretizou.


Logo, outra experiência mal sucedida marcou a trajetória do ensino superior sergipano,
quando em 20 de novembro de 1907 o Presidente Dr. Guilherme Campos autorizou o
financiamento de 20:000$000 à sociedade que se organizasse na Capital para fundar uma
Faculdade de Direito.(Cf. NUNES, 1984)
As primeiras explanações sobre o funcionamento efetivo do ensino superior em
Sergipe foram registradas em 1913. Essa promoção foi realizada pela Igreja Católica, que
preocupada com a ausência de faculdades no Estado criou em 1913 o “Seminário” com os
estudos superiores de Filosofia e Teologia. Diante do exposto, pode-se verificar que:

[...] começou a funcionar o Seminário do Coração de Jesus em 4/41913,


decorrente da atuação do 1º Bispo de Sergipe, Dom José Tomás da Silva,
que chegara em 1911 com a criação da Diocese no ano anterior. Tornando-
se o primeiro estabelecimento sergipano de ensino superior, seria “uma
força nova, destinado a preparar o os sacerdotes de Cristo, com a finalidade
especial de servir à igreja é certo, mas também com o objetivo de ser um
poderoso e atuante instrumento de ação cultural numa terra de poucas e
deficientes fontes próprias de estudo e saber.” (NUNES, 1984, p. 219)

No período que compreende 1922-1926, durante o governo de Graccho Cardoso,


novas tentativas foram realizadas com o intuito de promover e consolidar o ensino superior no
Estado. O governador da época criou inicialmente o Instituto de Química Industrial,
caracterizada como a primeira instituição de nível superior sergipana estatal. Posteriormente,
foram criadas as Faculdades de Direito em 1925 (batizada com o nome de Tobias Barreto), e
de Odontologia e Farmácia, denominada de Aníbal Freire e dirigida pelo médico Augusto
César Leite.
Entretanto, nenhum dos cursos superiores e faculdades citadas anteriormente
obtiveram êxito em suas implantações, pois os cursos de Filosofia e Teologia foram extintos
em 1934 e as faculdades e cursos superiores criados no governo de Graccho Cardoso não
alcançaram a efetiva consolidação. Nesse sentido, constatou-se que:

(...) Já na década de 20, o Presidente de Sergipe, Graccho Cardoso,


tentando ver o sonho acontecer, criou os cursos de Direito, Odontologia e
Farmácia. A semeadura não germinou os cursos não funcionaram. Naquelas
décadas de silêncio que se seguiram, Sergipe assistiu ao êxodo dos seus
jovens estudantes para Salvador, Recife, Rio, Ouro Preto em busca de uma
graduação, após a qual muitos permaneceram nesses centros de cultura
mais pródigos, comprometendo o desenvolvimento intelectual do pequeno

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Estado de Tobias Barreto e João Ribeiro, privado de ter de volta seus filhos
mais preparados. (DANTAS, 1998, p. 10)

As décadas de 1940 e 1950 são marcadas por nítidas transformações no sistema


educacional sergipano. Essas alterações se tornaram claras, mais precisamente a partir de
1947, com a posse do novo governador do Estado José Rollemberg Leite (1947-1951). Como
afirma Araújo (1966):

A instrução pública mereceu, nesta administração, todo o amparo e atenção


carinhosa do governo do estado. Estava certo o governador José Rollemberg
Leite de que é nas escolas que se preparam as inteligências e as energias
cívicas dos povos [...] Todos os esforços, portanto, foram empregados para
desenvolver o sistema educacional do estado em relação aos ensinos
primário, secundário, comercial e superior. (ARAÚJO, 1966, p. 207)

Com relação ao ensino superior, foi também nesse período que o Governo Estadual
criou duas casas de instrução superior públicas, primeiro a Faculdade de Ciências Econômicas
mediante a Lei nº. 73 de 12 de novembro de 1948 e logo depois a Escola Superior de Química
pela Lei nº. 86 de 25 de novembro do mesmo ano. “Esta incorporou em seus quadros mestre
de grande competência que aqui viviam expatriados e o curso tornou-se referência nacional”.
(DANTAS, 2004, p. 158)
Em 1950, foram criadas a Faculdade de Direito e a Faculdade Católica de
Filosofia. A partir de 1954, a Igreja Católica fundou a Faculdade de Serviço Social. Já na
década de 1960 a Faculdade de Direito foi federalizada e criou-se a Faculdade de Medicina.
Com a instalação da Universidade Federal de Sergipe em 30 de abril de 1968,
todas essas faculdades isoladas do estado, foram incorporadas a recente instituição:

(...) Instituída pelo Decreto-Lei n° 269, de 28 de fevereiro de 1967, do então


presidente da República, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco,
sob a forma de Fundação, a Universidade Federal de Sergipe só veio a ser
instalada em 30 de abril de 1968, incorporando os bens móveis e imóveis das
faculdades isoladas, além de seus alunos, professores e técnico-
administrativos. (SANTOS, 1999, p. 13).

A criação e instalação da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe

Nas décadas de 1940 e 1950, principalmente durante o governo de José


Rollemberg Leite (1947-1951), o sistema educacional sergipano foi contemplado com a
criação de muitas escolas. Durante sua administração, Rolemberg Leite, chegou a inaugurar

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218 e deixou 20 em construção, todas dentro de um modelo padronizado e distribuídas na


capital e em diversos municípios do Estado. (Cf. DANTAS, 2004)
Segundo estudos de Nunes Mendonça (1958) no ano de 1943 existiam 635 escolas
de diferentes modalidades distribuídas em todo o Estado, sendo que 150 estavam sob
administração municipal, 361 pertencia ao poder estadual e 124 eram particulares. Em 1948 o
número escolas subiu para 747, compreendendo 188 da rede municipal, 424 da rede estadual,
134 particulares e 1 de administração federal.
Infelizmente, a qualidade do ensino não conseguia acompanhar esse salto
quantitativo, pois muitos professores não apresentavam uma aptidão satisfatória para
desenvolver suas funções. Além disso, o número de professores titulados não conseguia suprir
as necessidades do ensino, o que conseqüentemente favorecia o ingresso e concentração de
professores leigos no interior das instituições. Sobre essa formação do professorado, Nunes
Mendonça (1958) comenta que:

O número de professores leigos, incapazes, semi-analfabetos e


desinteressados é alarmante. E grande parte dos diplomados não dispõe das
habilidades específicas, indispensáveis ao magistério, em virtude de
formação incompleta e inadequada, e da falta de um sistema de
aperfeiçoamento profissional, próprio para corrigir as deficiências de
preparação [...] O número de leigos atingi a cifra de 968, ou seja, em têrmos
percentuais, 67,3%, o que representa índice bem alto de improvisação [...]
(MENDONÇA, 1958, p. 159)

Diante desse crescimento na rede escolar e a necessidade de titular o corpo


docente, tornou-se indispensável à criação de uma faculdade que formasse professores para
atuar no magistério sergipano, já que, nesse período não havia nenhum curso superior com
essa finalidade. Basta lembrar, que nesse momento a formação dos docentes em Sergipe era
concretizada nos cursos de magistério a nível médio, geralmente realizado nas Escolas
Normais.
Nesse período, a grande referência na formação do magistério superior no Brasil
era representada pelas Faculdades de Filosofia que, segundo Fernando de Azevedo, após a
criação da USP, em 1934, passou a ser a “medula” do sistema universitário, tendo por
objetivo a formação de professores para o magistério secundário, normal e superior.
Não se diferenciando do contexto nacional, a instituição responsável pela
formação do magistério em Sergipe também foi designada a uma Faculdade de Filosofia. Essa
unidade foi batizada com o nome de Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe (FAFI),
devido a sua intima ligação com os clérigos da Arquidiocese.

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O envolvimento com a Diocese de Aracaju foi vinculado a partir de um acordo


entre o governador José Rollemberg Leite e o Bispo Dom Fernando Gomes, no qual o
governo garantia uma subvenção anual de 100.000,00 cruzeiros e a Diocese se
responsabilizava pela criação e funcionamento da instituição. Ao aceitar o compromisso, Dom
Fernando concedeu ao Padre Luciano Cabral Duarte a responsabilidade de organizar todo o
procedimento de criação da FAFI.

Na mensagem anual enviada em 1950 à Assembléia Legislativa, o


Governador Dr. José Rolemberg Leite enfatizava: “É do pensamento do
Governo criar no próximo ano uma Faculdade de Filosofia”, ressaltando sua
importância para a formação do professor secundário. Não dispondo, porém,
o Governo de condições financeiras para custear mais um estabelecimento
de ensino superior, buscou a participação da Diocese de Aracaju, através do
sacerdote Padre Luciano Duarte. O Estado participou com a subvenção.
(NUNES, 2007, p. 4-5)

Ao receber a notícia de que seria o responsável pela criação da FAFI, o Padre


Luciano Duarte viajou até Recife, para conhecer a Faculdade Católica de Filosofia de
Pernambuco. O objetivo era conhecer as normas e os requisitos essenciais de criação e
funcionamento de uma Faculdade de Filosofia. Logo após conhecer todo o processo
administrativo e pedagógico da instituição de Pernambuco, o Padre Luciano Duarte produziu
e encaminhou o projeto da criação da FAFI a Diretoria do Ensino Superior do Ministério da
Educação, então a cargo do Dr. Jurandi Lodi. Este encaminhou ao Conselho Federal de
Educação.

A certeza de tal aprovação por parte do Governo Federal era tão evidente
que já se veiculava a preparação de um curso pré-vestibular gratuito para
fevereiro de 1951, com o possível mês de março para a realização da
seleção. O programa do concurso vestibular, inclusive, já estava pronto e
poderia ser encontrado no Seminário Diocesano com o Pe. Luciano Duarte.
As inscrições para o mesmo também já estavam abertas e as exigências
eram, entre outras, o curso ginasial completo (dois ciclos) ou o curso normal
também completo. (LIMA, 1993, P. 79-80)

Foi com muita expectativa, que durante os meses de dezembro de 1950 e janeiro
de 1951, o Padre Luciano e o Governador do Estado, aguardavam a publicação no Diário
Oficial da União o Decreto Presidencial que autorizava “oficialmente” a criação da FAFI.
Basta lembrar que a fundação da FAFI ocorreu em 20 de setembro de 1950, pela entidade
mantenedora Sociedade Sergipana de Cultura, mais seu funcionamento ainda não havia sido
aprovado pelo governo federal.

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O esperado Decreto do Governo Federal (nº. 29.311) foi finalmente aprovado e


publicado no Diário Oficial da República no dia 2 de março de 1951 e datava de 28 de
fevereiro do mesmo ano. O documento, assinado por Getúlio Vargas e pelo ministro Simões
Filho, autorizava o funcionamento de cinco cursos: Geografia e História, Pedagogia,
Filosofia, Letras Anglo Germânicas e Matemática. Dos cursos pleiteado, somente o Curso de
Letras Neo-latinas não foi aprovado para o funcionamento em 1951. Como divulga o Jornal
“A Cruzada” de 1951:

Artigo único. É concedida autorização para funcionamento dos cursos de


filosofia, geografia e história, letras anglo germânicas, pedagogia e
matemática da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, mantida pela
Sociedade Sergipana de Cultura e com sede em Aracaju, no Estado de
Sergipe.
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1952; 130º da Independência e 63º da
República.
GETÚLIO VARGAS E SIMÕES FILHO (“A Cruzada”, 1951, apud LIMA
1993).

Contudo, inicialmente só iriam funcionar os cursos de Geografia e História,


Filosofia e Matemática, sendo que anos depois começaram a atuar os cursos de Letras Neo-
latinas (1952), Letras Anglo Germânicas (1953), Didática (1954) e Pedagogia (1968).
O primeiro diretor da instituição foi escolhido a partir de uma lista tríplice,
composta pelos nomes dos padres Euvaldo Andrade, Luciano Duarte e Artur Pereira. A
escolha foi feita pelo Presidente da Instituição Dom Fernando Gomes, o qual nomeou o Padre
Luciano José Cabral Duarte.
A instituição superior começou a funcionar provisoriamente em 12 de março de
1951 no prédio emprestado do Ginásio Nossa Senhora de Lourdes, localizado na capital (Rua
Itabaianinha) sob a licença da Ordem Sacramentina, só passando a ter sede própria em 30 de
março de 1959. De acordo com Thétis Nunes:

Na noite de 12 de março de 1951, reunia-se pela primeira vez, essa


Congregação presidida por seu primeiro diretor, o padre Luciano, nosso
atual arcebispo. Foram meus companheiros naquela noite, que já vai ficando
distante, os doutores José Rollemberg Leite, Gonçalo Rollemberg Leite,
Felte Bezerra, Garcia Moreno, José Barreto Fontes, Lucilo da Costa Pinto,
meus ex-professores, no velho Atheneu da rua da frente, além de Manuel
Cabral Machado e José Silvério Leite Fontes, entre outros. Secretariado o
jovem Hélio Leão. (SANTOS, 1999, p. 127)

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Nesse contexto, também integravam a Congregação, os professores: Manuel


Cândido dos Santos Pereira, Manuel Ribeiro, Jorge de Oliveira Neto, Walter Cardoso,
Lourival Bomfim e José Bonifácio Fortes.
Em 5 de março de 1951, a secretaria da FAFI abriu as inscrições para os
interessados nas graduações de Geografia e História, Filosofia e Matemática. No ato da
matrícula inicial, o candidato deveria apresentar os seguintes documentos: carteira de
identidade; atestado de idoneidade moral; atestado de vacinação anti-variótica; atestado
negativo de exame tuberculino-toráxico; atestado de sanidade física e mental; certidão de
nascimento; comprovante de pagamento da taxa de inscrição e para os candidatos do sexo
masculinos, atestado que provasse estar em dias com as obrigações do Serviço Militar. Além
disso, deveria satisfazer uma das seguintes condições: Ser portador de diploma do ensino
superior, ter concluído o curso ginasial ou ter cursado o ensino normal completo.
A avaliação foi realizada no período de 17 a 19 de março por meio de provas
escrita e oral, as quais exigiam noções de História, física, lógica, geometria, Português,
Francês, latim ou Inglês. A apuração dos exames procedeu-se mediante a análise dos boletins
das provas escritas e orais expedidos pela comissão examinadora, a qual era composta pelos
professores da FAFI. Entre eles, destacam-se Maria Thétis Nunes, Dom Luciano José Cabral
Duarte, Felte Bezerra, José Silvério Leite e José Olino de Lima.
Apenas 19 alunos foram selecionados, para participar da primeira turma de 1951.
Estes ficaram distribuídos das seguintes formas: 7 alunos no curso de Geografia e História, 8
no de Filosofia e 4 no de Matemática. Entre os primeiros alunos estavam: Beatriz Sampaio,
Olga Batista Andrade, Josefina Sampaio Leite e Maria Carmélia Alves.
No dia 25 de março de 1951 a FAFI foi contemplada com uma solenidade de
inauguração da Faculdade e de abertura dos cursos. O evento ocorreu no salão nobre do
Ginásio Nossa Senhora de Lourdes (no momento, sede da FAFI), com o pronunciamento da
aula inaugural realizada pelo Pe. Luciano Duarte. As aulas da todos os cursos foram
efetivamente iniciadas no dia seguinte, no período noturno.
O corpo docente formado para o primeiro ano de funcionamento da faculdade era
constituído pelos professores: Fernando Porto, Bonifácio Fortes, Felte bezerra, Garcia
moreno, Gonçalo Rollemberg Leite, Jorge Neto, Jose Rolemberg Leite, José Silvério Fontes,
Lourival Bomfim, Manuel Ribeiro, Manuel Cabral Machado e a primeira mulher a atuar na
FAFI: Maria Thétis Nunes.

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Durante o período de criação e instalação da FAFI, a maior dificuldade enfrentada


por Luciano José Cabral Duarte, diz respeito aos aspectos financeiros. De acordo com relatos
de Thétis, verificou-se que:

Dificílimos foram os primeiros anos de funcionamento da FAFI. De acordo


com a própria Thétis, “alguns professores foram abandonando as cátedras,
minguavam os alunos. Permaneceu, porém, um grupo de abnegados e
idealistas animados pelo otimismo de seu diretor; que nele acreditava, e nos
acenava com a esperança de dias melhores”. Salvaram-na o idealismo e o
desprendimento dos professores Gonçalo Rollemberg Leite, Felte Bezerra,
Garcia moreno, Maria Thétis Nunes, Frei Edgard Stanikowski, Fernando
Figueiredo Porto, Luiz Rabelo Leite, José Silvério Leite Fontes, Manuel
Cabral Machado, José Rollemberg Leite, sob a condução corajosa e
obstinada do padre (depois arcebispo) D. Luciano José Cabral Duarte.
Enaltecendo a dedicação e reconhecendo os sacrifícios de alguns em prol da
sobrevivência da FAFI, ele teria, certa feita, desabafado: “Triste Faculdade
Católica de Filosofia se não fossem os ateus”. (SANTOS, 1999, p. 128)

Outra dificuldade enfrentada pelo Padre Luciano Duarte, estava relacionado ao


pequeno número de candidatos que tinham interesse em cursar as graduações referentes ao
magistério, pois devido à precária remuneração dos professores na época, os jovens não se
sentiam extigados para ingressar nessa carreira. Como podemos verificar, mediante estudos de
Nunes Mendonça (1966):

[...] Quase nada se tem feito para atrair ao magistério candidatos interessados
e portadores dos requisitos indispensáveis ao respectivo desempenho, bem
como para facilitar a tôdas as camadas da população, principalmente aos
jovens do interior, a formação pedagógica [...] O ideal das moças sergipanas,
residentes na Capital ou proviniêntes da classe média nas cidades do interior,
não é mais o magistério. As suas aspirações voltam-se para os cargos
federais e autárquicos, hoje acessíveis a todos mediante habilitação em
concurso, e para as profissões mais bem remuneradas. (MEDONÇA, 1958,
p. 158)

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Acrísio Torres Araújo. Pequena História de Sergipe, Aracaju: 1966.

AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. São Paulo, Ed. Universidade de Brasília,
1963.

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CHAGAS, Valnir. Formação do magistério: novo sistema. São Paulo: Atlas, 1976.
CUNHA, Luiz Antônio. “Ensino superior e universidade na Brasil”. In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira; FARIA Filho, Luciano Mendes e VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educação no
Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.

DANTAS, Ibarê. História Política de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 2004.

DANTAS, Beatriz Góis (Coord.). UFS 30 anos. São Cristóvão: UFS, 1998. 1 v.

FÁVERO, Maria de Lourdes de A. Universidade do Brasil: Guia dos Diapositivos Legais.


Rio de Janeiro: Editora UFRJ/INEP, 2000.

FÁVERO, Maria de Lourdes de A. Universidade e poder. Brasília: Plano. 2º edição.

FONTES, Carmelita Pinto. Cursos Superiores em Sergipe. In: DANTAS, Beatriz Góis (Coord.).
UFS 30 anos. São Cristóvão: UFS, 1998. 1 v. Não paginado.

LIMA, Luís Eduardo Pina. Ideologias e Utopias na História da Educação (o processo de


criação da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe – 1950/51). Monografia de Pós-
Graduação. Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 1993.

MENDONÇA, José Antonio Nunes. A Educação em Sergipe. Aracaju, Livraria Regina,


1958.

NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas Bôas Carvalho do; NASCIMENTO, Jorge. C. do; OLIVEIRA,
Maria Antonieta Albuquerque de; TAVARES, Maria das Graças Medeiros. Educação Superior em
Sergipe (1991-2004). In: GIOLO, Jaime; RISTOFF, Dilvo (Orgs.). Educação Superior Brasileira
(1991-2004): Sergipe. Brasília: Inep, 2006. p. 21-72.

NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra:
Aracaju; Secretária da Educação e Cultura do Estado de Sergipe/ UFS, 1984. (Coleção
Educação e Comunicação).

NUNES, Maria Thétis. Dom Luciano Duarte e a Faculdade Católica de Filosofia. In: Informe
UFS, Ano XII, nº. 398 de 26 de janeiro de 2007.

SANTOS, Lenalda Andrade. Da dispersão à unidade: o trajeto da UFS. In: UFS: História dos
Cursos de Graduação. São Cristóvão: Centro de Impressão Eletrônica da UFS, 1998.

SANTOS, Lenalda Andrade. Curso de História: resgate da memória histórica. In: ROLLEMBERG,
Maria Stella Tavares; SANTOS, Lenalda Andrade. UFS: História dos cursos de graduação. São
Cristóvão: UFS, 1999(a). p. 159-170.

SANTOS, Maria Nely. Professora Thétis: uma vida. Aracaju: Gráfica Pontual, 1999.

WYNNE, João Pires. História de Sergipe (1930 a 1972). Vol. 2, Rio de Janeiro: Pongetti,
1973.

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ARACAJU SOB O OLHAR DAS UNIVERSIDADES

Emanuele Tourinho Almeida - UNIT


emanuele.tourinho@gmail.com

O estudo do papel das Universidades em Sergipe destaca a importância de Aracaju. Uma


associação que inter-relaciona a idéia de modernização que a cidade tem potencializado ao
longo da sua História e a importância de suas Universidades para a concretização deste
objetivo. O percurso das instituições de Ensino Superior e a modernização trazida por estas
fazem um paralelo com a História política e cultural de Aracaju, cidade que está atualmente
envolta na criação de novas instituições de ensino superior. Partindo dessa perspectiva, é
preciso refletir à cerca das idéias que nortearam a fundação da cidade, o instante e a forma
como foram criadas as instituições de ensino superior em Aracaju e a importância destas para
a diversidade do desenvolvimento social, econômico, artístico e cultural de Sergipe,
apresentando uma associação entre a cidade e suas Universidades na busca da modernização
do Estado.

Palavras-chave: Aracaju; Modernidade; Universidade.

Este trabalho estuda o papel das universidades na História política e cultural de


Aracaju, apresentando uma associação entre a discussão acerca da modernização da cidade e
do Estado e a importância neste debate de suas duas universidades, a Universidade Federal de
Sergipe e a Universidade Tiradentes.

A construção de um projeto modernizador para o Estado de Sergipe começa a ser


gestado desde a mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju. Ganhando contornos mais
efetivos a partir dos instantes em que Aracaju passa a abrigar as primeiras instituições de
ensino superior, que após se efetivarem sinalizam possibilidades para o desenvolvimento
humano e cultural da região.

A educação cumpre importante papel nessa nova realidade e a cidade que antes
assistia os seus filhos partirem para outros centros a busca de um curso de nível superior, a
partir da efetivação das suas instituições de ensino superior passa a irradiador de
conhecimento e cultura.

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A partir do estudo das fontes bibliográficas disponíveis, da coleta de dados


pertinentes aos objetivos dessa pesquisa foi possível analisar a importância de Aracaju e de
suas universidades na construção de um projeto modernizador para o Estado. A elaboração
desse estudo apoiou-se na reflexão de alguns autores. No que diz respeito aos fatores que
levaram a mudança da capital do Estado de Sergipe, em 1855, muito nos valeu as reflexões de
José Calazans (1992), seu texto expõe claramente os rumos tomados após a decisão da
transferência da capital, bem como das motivações para tanto. A contribuição de José Silvério
Leite Fontes (1992) foi fundamental para a análise do novo perfil imposto ao Estado, tendo
Aracaju, a nova capital, a propulsora para a entrada de Sergipe na modernidade, suas
reflexões tornaram possível a percepção de que Aracaju passa a ser o novo centro irradiador
de conhecimento para o Estado. José Vieira da Cruz (2003) com um amplo conhecimento dos
movimentos estudantis e a dinâmica instaurada pela presença das Universidades, forneceu
argumentos que permitiram conceber as modificações trazidas por estas instituições no
cenário aracajuano e estadual.
Abordando a questão do desenvolvimento político e educacional de Sergipe, Ibarê
Dantas (2004) e Thétis Nunes (1984) foram peças fundamentais na construção de um olhar
mais crítico. Autores como Fernando Lins de Carvalho (2003), Edna Maria do Nascimento e
Waldefrankly Rolim de Almeida (2003) e Inaê Elias Magno da Silva (2002) também
lançaram luzes no percurso desta pesquisa.
Partindo dessa perspectiva, esse estudo enfatiza as idéias que nortearam a
criação da fundação da cidade, o instante e a forma como foram criadas as instituições de
ensino superior em Aracaju, e a importância das universidades para a diversidade do
desenvolvimento social, econômico, artístico e cultural da cidade de Aracaju e do Estado.

A cidade idealizada pelo engenheiro Sebastião José Basílio Pirro, num


quadriculado, sendo no Brasil, um dos primeiros exemplos de tendências geométricas, o que
proporcionava ruas retas e esquinas padronizadas, já anuncia a que viria a ser a nova capital, a
sua vocação para a modernidade e conseqüentemente para uma nova dinâmica social e
cultural do Estado. Aracaju se insere no cenário histórico de Sergipe no instante em que o
porto de São Cristóvão não mais atendia às demandas, buscava-se uma área que pudesse
atender de forma mais eficaz ao processo comercial em que estava inserida a província. Além
disso, a posição, no alto do morro, que antes era uma prerrogativa para a ocupação daquele
local, tendo em vista proteger-se de possíveis invasões estrangeiras, tornaram de menor
importância.

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Era preciso ter um fácil acesso, principalmente para a escoação de mercadorias.


Eram os reflexos da Revolução Industrial, que ampliava enormemente o consumo de produtos
tropicais, buscava novos horizontes, novas formas de viver. Segundo Maria Thétis Nunes “a
localização geográfica de São Cristóvão não correspondia às exigências das atividades
comerciais sergipanas em plena expansão”859.
José Calazans afirma que a tendência registrada desde o ano de 1700 e estendendo-
se até o século XIX, consistia em levar as cidades até às planícies, já que o posicionamento
estratégico destas no alto dos morros não se fazia mais necessário, à medida que a ameaça das
invasões estrangeiras não estava mais em voga. Portanto, as planícies eram a melhor opção
para a instalação destas, tendo em vista ainda a proximidade do mar. Em meio a esse
horizonte de idéias, a nova sede administrativa da província foi implantada numa área
inundável, cheia de lagoas e pântanos, extremamente baixa, entretanto mais próxima ao porto.
A decisão de Inácio Barbosa, juntamente com o Barão de Maroim, muda os rumos
da província de Sergipe Del Rey, transferindo a capital de São Cristóvão, para uma área, que
embora plana, apresentava uma geografia pantanosa e recortada por mangues. Segundo
Calazans, “pessoas simples e suas vidas rústicas, juntamente com o verde e a água abundantes
de Aracaju, formam uma paisagem tanto primitiva quanto bucólica” 860. Mas os desafios da
construção de uma cidade moderna inspiravam os gestores públicos que a idealizaram.
Dominar a natureza sobrepor-se a ela, enfim, conduzir os homens para um novo
mundo parecem desafios antenados com o desejo humano de desenvolvimento. Goethe, em
sua mais contundente obra, Fausto861, demonstra que a natureza é o ponto de partida do
homem moderno, a base para realizar todos os seus desejos, e é domando-a e modificando-a
que ele se sente eficaz na sua tarefa.
Funcionários públicos traziam para Aracaju, além da mudança e suas famílias,
parte do seu passado nas malas. A tarefa desses homens era alavancar um sonho que não era
deles. Teriam que gerir dificuldades e desafios de uma cidade que ainda era nascente862.
Aracaju, apesar da proposta inicial, converte-se em no centro das decisões de
poder,entretanto, sem ter correspondente infra-estrutura863. Apesar dessas conturbações
iniciais, Aracaju converte-se no pólo aglutinador e irradiador para todo o Estado e a partir de
859
NUNES, Maria Thétis. “Os 150 anos de Aracaju Capital” in: Aracaju e seus monumentos: sesquicentenário
da capital 1855 – 2005. Secretaria de Estado da Cultura; Gráfica e Editora Triunfo; Aracaju: 2005.
860
SILVA, José Calazans Brandão da. Aracaju e outros temas sergipanos. Aracaju: Governo de Sergipe –
FUNDESC, 1992.
861
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto; trad. Agostinho D’Ornellas – São Paulo: Martin Claret, 2003..
862
SILVA, Inaê Elias Magno da. “A bordo da Nau do tempo: uma viagem pela história de Aracaju” in: Revista
de Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2002.
863
FONTES, José Silvério Leite. A formação do povo sergipano. Universidade Federal de Sergipe, 1992.

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1855, torna-se o centro receptor das migrações do Estado e favorece o intercâmbio cultural. A
ampliação urbana de Aracaju se diferencia à medida que ela se torna o destino de migrantes
de várias localidades864. Desta forma, as relações humanas, além das geográficas, são o
grande desafio da nova capital. É preciso aprender a lidar com peculiaridades, com as
diferenças. É mais um desafio imposto pelos tempos modernos. Diante dessas circunstâncias,
além daquelas conferidas pelo século XX, Aracaju segue os trilhos da tão almejada
modernização. Os trilhos de ferro transportam mercadorias, pessoas e sonhos. O progresso
traz consigo grandes construções, afinal, era preciso ter um aspecto condizente com a posição.
A ampliação comercial e industrial são os álibis necessários para a expansão dos
meios de comunicação e da imprensa, em especial. Os jornais fazem parte do cotidiano das
pessoas. Através deles, chegam muito mais que informações, chegam atualidades. É através
deles que a modernidade encontra a sua melhor ambientação. A alquimia tecnológica fez o
tempo correr nesses últimos 100 anos, muito mais rápido do que nas diferentes revoluções
tecnológicas que vem sucedendo desde a invenção da imprensa por Guttemberg nos idos de
1455. Além disso, as interferências da comunicação no meio social são amplamente
discutidas por autores como Marshal McLuhan, que numa alusão a retribalização do mundo
numa “aldeia global” proporciona reações e interações na sociedade, bem como na cultura, na
economia e na política.
Na medida em que desenvolvia os serviços públicos e os veículos de comunicação,
Aracaju buscava inserir-se na modernidade e dessa forma, adquirir o status do poder
pertinente a uma capital. Era preciso estar em harmonia com a sua época, caminhar na mesma
velocidade que os outros Estados865. Segundo José Silvério, a centralização das vias de
comunicação, instituiu um novo centro cultural, antes ocupado por Laranjeiras e Estância. Isto
passou a assegurar a superioridade de Aracaju sobre as demais cidades do Estado866.
Trata-se, portanto, de uma busca frenética em legitimar a escolha e a decisão
tomada outrora. O engrandecimento do setor secundário era, nesse momento, o tentáculo mais
promissor da economia do Estado, os novos rumos estavam ali, e sua expansão, significava
não só uma economia mais estável, mas sim a possibilidade de ascensão social. Ibarê Dantas
trata deste período da história salientando a dilatação do comércio, afirmando que “O setor
864
CARVALHO, Fernando Lins de. “O popular e o popularesco: perspectivas para Aracaju” in: Revista de
Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2003.
865
NASCIMENTO, Edna Maria do. SANTOS, Waldefrankly Rolim de Almeida. “Aracaju urbana e humana:
aspectos de uma leitura da cidade” in: Revista de Aracaju / Prefeitura Municipal de Aracaju. Aracaju:
FUNCAJU, 2003.
866
FONTES, José Silvério Leite. A formação do povo sergipano. Universidade Federal de Sergipe, 1992.

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secundário prosseguiu em seu perfil no fim dos anos vinte. O número de estabelecimentos
industriais, excluídos usinas e engenhos, continuaram subindo, assim como o número de
trabalhadores, que teria duplicado.”867
O progresso da cidade demandava ampliar o nível de escolaridade da sua
população, afinal, impulsionada pelo desenvolvimento dos meios de produção, carece de
mão-de-obra qualificada e especializada, sendo necessário oferecer oportunidades para esse
contingente, preparar melhor seus atores sociais e conseqüentemente, ampliar as suas
possibilidades de inserção no mercado de trabalho. A modernização do Estado exigia a
construção de um farol para o seu desenvolvimento e posterior irradiação para o Estado. Esse
foral de consubstanciaria com a efetivação das instituições de ensino superior no Estado.
A cena de pessoas em volta de fogueiras, compartilhando experiências do
cotidiano, narrando acontecimentos, produzindo idéias, já delineava o que viria a ser a
educação que conhecemos hoje. Os milênios que separam essa cena da atualidade nos
mostram a constante busca do homem pelo conhecimento, o que mudou ao longo da História
foi à forma e a intensidade dessa busca. Por sua vez, a modernidade obriga os homens a
ampliar o seu campo de visão, a adaptar-se a um cotidiano mais movimentado e dinâmico,
onde as desconstruções antecedem às construções, onde é preciso apagar todos os resquícios e
saudosismo da vida pacata de outrora para implantar os ícones do mundo moderno.
A modernidade descrita em obras como Tudo que e Sólido Desmancha no Ar do
crítico literário Marshal Berman, não tem se universalizado de forma eqüidistante. Mesmo no
Brasil os estudiosos discutem quando o ritmo mais intenso da modernidade chegou em
algumas regiões. A historiadora Maria Nely dos Santos, a exemplo, escreve artigo mostrando
como em Aracaju as marcas da modernidade tardam a se manifestar com maior intensidade
868
. A capital do Estado de Sergipe parece só vivenciar este ambiente a partir dos anos
vinte do século passado mais ainda próximo. Uma Aracaju que assiste a chegada da linha
férrea, dos bondes com o seu leva e traze de pessoas, atraindo-os de suas casas e levando-as
para a rua. O ritmo citadino de Aracaju começa a sinalizar os primeiros passos de vida
moderna. Sinais que pareciam se materializar com a criação das primeiras faculdades ainda no
governo empreendedor de Graco Cardoso869. Uma importante iniciativa que não conseguiu se

867
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889 – 2000). Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
2004.
868
SANTOS, Maria Nely dos. Aracaju na contramão da ‘Belle Époque’. in: Revista de Aracaju / Prefeitura
Municipal de Aracaju. Aracaju: FUNCAJU, 2002.
869
NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e terra; Aracaju: Secretaria de
Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 1984..

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consolidar. Apesar de um cenário local demandar de mão-de-obra especializada, afinal, cada


vez mais, começava a se ampliar o leque de serviços oferecidos na capital.
O esforço sinalizando a construção de um projeto modernizador através da criação
de instituições de ensino superior, apesar do contratempo, escondia a necessidade de parte da
sociedade sergipana de formar seus filhos, vê-los com um diploma de “doutor”, permanecia
adiada. Apenas as elites possuíam a renda suficiente para mandar seus filhos para cursar o
nível superior em outras capitais, ou mesmo no exterior, o faziam, certos de que na volta, seus
herdeiros teriam boas colocações. Dessa forma, aos estudantes de famílias abastadas, sair
capital era uma necessidade870.
A intelectualidade sergipana formada em outras cidades do país como Recife,
Salvador e no Rio de Janeiro trazem para sua terra natal, depois de finalizados seus cursos,
um novo ânimo criador e fomentando a produção cultural e intelectual, bem como realçando a
sua gente e a sua terra. 871
As diferenças regionais são apontadas como importante fator no adiamento para
efetivação das instituições de ensino superior em Sergipe, haja vista que em outras regiões
brasileiras já algum tempo possuíam instituições de ensino superior. Fato que Aracaju só
conhecerá a partir do final da primeira metade do século XX, final da década de 40 e 50 872 .
Entretanto é nos anos 60 e 70 que Sergipe assistiria a efetivação das instituições que
passariam a marcar o seu cotidiano contemporâneo.
Os estudos de José Vieira da Cruz em torno dos movimentos estudantis alargaram
esse entendimento sobre o processo de criação dos cursos superiores em terras sergipanas.
Uma aposta que segundo o autor se tornou possível também em função da necessidade de
auto-afirmação intelectual e cultural de um Estado que se orgulhava em ser o “Ninho das
Águias” berço de intelectuais da envergadura de um Tobias Barreto, Silvio Romero, João
Ribeiro, Manoel Bomfim e tantos outros, mas não tinha uma faculdade funcionando.
Neste contexto, as primeiras faculdades instaladas em Sergipe, trazem consigo a
ascensão social de muitos jovens talentosos, que passando a constituir um ambiente cultural e
político capaz de bem formar novos quadros dirigentes para o Estado, e com eles manter o
873
curso do processo de desenvolvimento econômico e cultural do Estado . Os novos rumos

870
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).
871
Idem.
872
Idem.
873
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).

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pretendidos para a capital mostram-se mais próximos aos olhos da sociedade, que por sua vez,
passa a participar do remodelamento da política, da economia e, sobretudo, da cultura local, à
medida que capacita melhor os seus jovens.
As relações de poder são motivos de contestação, sendo os movimentos estudantis
um dos mais importantes meios de mobilização sócio-cultural, apresentando-se então como
instigadores das manifestações em favor das reformas que eclodiam no Brasil 874.
As discussões em torno da criação de uma Universidade que aglomerasse os
cursos oferecidos nas faculdades locais eram um dos principais pontos tocados pelos
estudantes. Esta proposta, como aponta José Vieira da Cruz, era contestada pelos acadêmicos
da Faculdade de Direito, já que estes estavam numa instituição federalizada, temiam o que os
recursos para uma instituição diminuíssem.
Neste contexto, a participação estudantil provocou certa efervescência na
sociedade sergipana, contribuindo assim para despertar na sociedade uma nova visão dos
acontecimentos. Os problemas da realidade nacional também são alvos desses estudantes, que
repensam o papel das Universidades na construção de uma sociedade democrática 875.
A juventude é, nesse instante, sinônimo de renovação, de novas perspectivas e é,
através dela, que a sociedade sergipana abre-se para a nova realidade do país e integra-se com
os acontecimentos que eclodiam em todo o mundo. É também símbolo da modernidade, a
expressão mais contundente dos novos tempos.
Mesmo sob a contestação de alguns, em 15/05/1968, é criada a Universidade
Federal de Sergipe e a sua chegada significava uma nova fase do ensino superior em Sergipe.
Os professores, por sua vez, são atingidos, à medida que, passaram a receber salários
condizentes com a profissão e, além disso, as atualizações passaram a ser mais freqüentes 876.
A instalação de uma Universidade traz consigo o espectro do desenvolvimento.
Uma formação profissional qualificada passa a estar ao alcance de um número maior de
sergipanos, num espaço plural, onde era possível exercitar o conhecimento, a cidadania, a
tolerância e principalmente a diversidade social. José Fernandes de Lima, atual reitor da
Universidade Federal de Sergipe, salienta que “a criação de uma massa crítica pensante, capaz

874
Idem.
875
CRUZ, José Vieira da. Juventude e identificação social: Experiências Culturais dos Universitários em
Aracaju/SE (1960-1964). Aracaju: UFS, 2003. (Dissertação de Mestrado).
876
DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889 – 2000). Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
2004.

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de ajudar e definir o futuro, de formar profissionais competentes e preservar a cultura do país


877
é o retorno que a sociedade deve esperar da universidade”.
Contudo, o progresso não tardaria a dar novos sinais no campo educacional
sergipano, e o que parecia improvável, torna-se real graças à persistência e obstinação de
Jouberto Uchoa de Mendonça, que em 1972, cria a primeira Faculdade particular de Sergipe,
disponibilizando, a princípio, três cursos de graduação – Administração, Ciências Contábeis e
Ciências Econômicas. A inserção das “Faculdades Integradas Tiradentes” neste cenário,
representaria para Sergipe mais um passo importante, já que um maior número de jovens teria
acesso ao nível superior, tendo em vista a escassez de vagas oferecidas pela UFS.
Entretanto, como é pertinente à modernidade, o desenvolvimento caminha a passos
largos e a Faculdade Tiradentes fez-se Universidade Tiradentes em 1994, oferecendo ao
menor Estado da Federação, onde, assim como em todo o Brasil, existe uma população
extremamente pobre, com uma distribuição de renda permeada de grandes distorções, mais
um espaço para fomentar discussões e soluções para os problemas do Estado e do país. O
Reitor da UNIT, Jouberto Uchôa de Mendonça, evidencia que a história da instituição é
escrita com grandes lutas e muitas conquistas e que durante todo o seu percurso, construiu um
patrimônio que hoje pertence a toda a sociedade sergipana.878
As questões levantadas a partir da observação e estudo da problemática
educacional apontam para uma educação que acompanha e consagra não apenas o
desenvolvimento social e político de um povo, assim como, a aceleração de seu processo de
desenvolvimento. A formação de sujeitos mais conscientes do seu papel numa sociedade
democrática torna-os participantes da dinâmica social e capazes de atender às demandas
colocadas pelo tempo presente. 879
É nesse contexto que insere-se a Universidade Tiradentes, à medida que oferece à
sociedade um espaço dedicado à iniciação científica, pesquisa, valorização da cultura, bem
como a fomentação do espírito desenvolvimentista. Conforme o Projeto Pedagógico adotado
pela instituição, o valor estratégico alcançado pelo conhecimento informação e comunicação,
são essenciais para o desenvolvimento econômico e a concorrência entre as nações, tendo em

877
LIMA, José Fernandes de. Universidade: problema ou solução? www.rnufs.ufs.br/rn/artigos.
878
MENDONÇA, Jouberto Uchoa de. Universidade Tiradentes – Catálogo 1999. Aracaju: 1999.
879
Relatório final da comissão de acompanhamento para transformação das Faculdades Integradas Tiradentes em
UNIVERSIDADE TIRADENTES – UNIT. ASA – Associação Sergipana de Administração – Projeto UNIT –
Aracaju - SE

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vista que os conhecimentos estáveis de outrora, deram lugar à diversidade, abundância e


rapidez com que as informações circulam 880.
É nesse espectro de desenvolvimento que a Universidade Tiradentes interioriza
suas atividades, criando novos campus em Itabaiana, Própria e Estância, além dos dois já
existentes na capital. Assim, Aracaju cumpre novamente o seu papel de centro irradiador de
potencialidades humanas, de cultura e política. Dessa forma, busca estender as suas propostas
educacionais e gerar desenvolvimento para todo o Estado de Sergipe.
Sendo assim, além do pacto social firmado entre a Universidade e a sociedade, no
que diz respeito à transmissão de saber, formação de mão-de-obra qualificada, prestação de
serviços, favorece também o desenvolvimento econômico e social da região e do país,
proporcionando uma significativa melhoria na qualidade de vida das pessoas 881.
As Universidades trazem, pois, não apenas o estigma do desenvolvimento e da
modernidade, trazem também a delineação de um Estado pronto para os desafios impostos
pelos novos rumos do mundo e inserindo-o de forma contundente no processo de
globalização, bem como de uma capital, que apesar da pequena territorialmente, apresenta
características que a habilitam a participar de toda a dinâmica econômica, política e social do
país.
Embora não haja concordância entre os autores sobre o surgimento das
universidades, a maior parte dos estudiosos atribui a sua consolidação à Idade Média, tendo
como iniciante a Universidade de Bolonha. Ainda neste período histórico, o papel das
universidades estaria começando a configurar-se, à medida que reunia professores e
aprendizes, com o intuito de especializar-se numa forma de saber882.
O compromisso das Universidades e a proposta de transformar a sociedade no
sentido de torná-la mais humana e moderna, buscando um engajamento de todos envolvidos
no processo. É relevante salientar que, assim como as artes, onde a sua expressão desvenda o
ambiente cultural em que se vive883, a Universidade instiga o conhecimento, revela novos
horizontes e desta maneira, forma cidadãos participativos, essencialmente numa sociedade
moderna, num espaço plural, onde o exercício da tolerância, a aceitação e reconhecimento da
diversidade social são peças fundamentais para essa formação. José Fernandes de Lima
demonstra que “os princípios que devem orientar o sistema de educação superior são: de um

880
UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma identidade / UNIT –
Aracaju: UNIT, 2005.
881
Idem.
882
SOBRINHO, Josué Modesto dos Passos. O Terceiro Estado. www.rnufs.ufs.br/rn/artigos.
883
CRUZ, José Vieira da. “Artes cênicas e literatura: o teatro da cultura artística de Sergipe”. In: Jornal da
Cidade, 29/01/2004.

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lado a fidelidade aos ideais históricos da Universidade – a defesa do humanismo, a crença na


dimensão libertadora do conhecimento – e, de outro, a reafirmação de nossa brasilidade” ·.
A dialética pertinente à modernidade fomenta e apura o senso crítico. É preciso
adaptar-se às freqüentes mudanças de ritmo e quantidade de informações as quais a sociedade
está exposta e a multiplicidade sugerida pela vida moderna estabelece uma atitude um tanto
quanto desafiadora para a coletividade. É nesse âmbito que a Universidade tem um papel
imprescindível: fomentar o desenvolvimento, sem esquecer de preservar os valores culturais.
Dessa forma, a difusão de diversos saberes, numa retomada a proposta inicial das
Universidades, tem o intuito de proporcionar consonância na vida em sociedade, bem como
incentivar os saberes científicos, culturais e artísticos884.
É importante ressaltar que as Universidades instaladas em Sergipe prestam
relevantes serviços à sociedade, à medida que disponibilizam para instalações que oferecem o
conhecimento da cultura e história regional, a exemplo do Museu do Homem Sergipano,
mantido pela Universidade Federal de Sergipe e o Memorial de Sergipe, que a Universidade
Tiradentes implantou e mantêm, numa demonstração de valorização dos aspectos da cultura
regional.
Buscando a aplicabilidade do conhecimento produzido dentro dos seus muros, bem
como o progresso local e do país como um todo, a Universidade Federal de Sergipe e a
Universidade Tiradentes disponibilizam para a população, prestação de serviços em diversos
áreas, contemplando a população com atividades culturais, hospital universitário, laboratório
de biomedicina, clínica odontológica, escritório de assistência judiciária, consultório de
psicologia, centros de educação e saúde, e um infinidades de projetos de extensão. Esses são
apenas alguns exemplos de como o meio acadêmico pode ser interagir na construção de um
mundo melhor.
Dessa forma, essas instituições reiteram o seu compromisso social, assumido
historicamente pelas Universidades, que sempre buscaram uma interação com a dinâmica
social e interferindo de forma a amenizar os seus problemas e principalmente apresentar
soluções para as dificuldades pertinentes ao mundo moderno. Legitimando essa perspectiva, o
Reitor da Universidade Tiradentes, Jouberto Uchôa de Mendonça, afirma que à Universidade
cabe “promover cada vez mais os valores, os homens e mulheres que fazem no dia-a-dia o seu

884
UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma identidade / UNIT.
Aracaju: UNIT, 2003.

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desenvolvimento, os seus valores culturais, artísticos, lutar para que a educação e o ensino
cheguem para todos com a qualidade e oportunidades iguais.” 885
A Universidade tem importante papel, ao passo que é formadora de recursos
humanos qualificados e como produtora de conhecimento, através de suas pesquisas,
essenciais ao desenvolvimento científico e tecnológico, e só através desse passaporte dar-se-á
o grande salto qualitativo sócio-econômico almejado para todos os brasileiros. Contudo é
preciso estar atento, já que as “comemorações tendem a inscrever os atos humanos em um
tempo mítico, destituindo do homem a sua historicidade.” 886.
Para Antônio Fernando Araújo de Sá, as comemorações cumprem outro
importante papel no sentido de ritualizar a história, analisando o passado e buscando neste,
instrumentos para a construção de uma identidade e dessa forma instaurando uma
solidariedade coletiva. Dessa forma, demarca-se na memória coletiva as passagens e
acontecimentos que devem ser lembrados, assim como, os que devem ser esquecidos 887.
A dinâmica de uma sociedade é visualizada pelo grau de desenvolvimento cultural
que ela alcança. A sociedade moderna em particular aposta na educação como um dos
caminhos possíveis para o auto-desenvolvimento humano. Modernizar se constitui nessa
perspectiva em esclarecer, em melhorar. As universidades neste contexto é um espaço
privilegiado no qual a formação profissional e a produção do conhecimento encontram abrigo.
O ensino superior em Sergipe sintoniza-se com as intenções dessa sociedade
moderna. Aracaju em particular, construído a partir de ideais modernos, aproxima-se dessa
busca e não sem razão comportou a efetivação e o desenvolvimento do ensino superior em
Sergipe. Processo que tardou a se concretizar, mas ao ser organizado a partir da segunda
metade do século XX, ganha impulso e logo cria um ambiente cultural propicio a produção do
conhecimento. A contribuição esperada de uma instituição de ensino superior e a sua
interação com a sociedade na qual esta inserida. É nesse contexto que se insere a participação
das Universidades no desenrolar da História da cidade de Aracaju. Pensada inicialmente para
ser o grande projeto urbanístico do Estado, Aracaju também vai ser o ponto irradiador do
conhecimento acadêmico em terras sergipanas. Uma História que entrelaça princípios
modernizadores articulados ao desenvolvimento social e cultural. Sintonizadas com esse
propósito, a História das instituições de ensino superior em Aracaju, de modo particular da

885
Discurso proferido pelo Reitor da Universidade Tiradentes – UNIT, Jouberto Uchôa de Mendonça, na
Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe, em ocasião da entrega da “Comenda do Mérito”.
886
SÁ, Antônio Fernando Araújo de. História e Memória na Era das Comemorações. ” in: Revista História e
Memória. Brasília: UNB, 2005.
887
SÁ, Antônio Fernando Araújo de. Op. cit.

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Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Tiradentes, notabilizam pela interação que


realizam uma importante colaboração para o desenvolvimento regional, respeitando a
diversidade e as singularidades da sociedade sergipana. Uma ilustração dessa interação pode
ser observada na forma como ambas instituições, cada uma a sua maneira, tem participado e
colaborado com as atividades comemorativas dos 150 anos de História da cidade de Aracaju.
Estudando, lembrando, refletindo ou comemorando os acontecimentos que
marcam a História e o desenvolvimento da cidade de Aracaju e do Estado, as instituições de
ensino superior cumprem o seu papel de pensar a sociedade e cultura regional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SOBRINHO, Josué Modesto dos Passos. O Terceiro Estado. www.rnufs.ufs.br/rn/artigos.

UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma


identidade / UNIT – Aracaju: UNIT, 2005.

UNIVERSIDADE TIRADENTES. Projeto Pedagógico Institucional: declaração de uma


identidade / UNIT. Aracaju: UNIT, 2003.

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RODRIGUES DÓREA, CARLOS SILVEIRA E HELVÉCIO DE


ANDRADE: REFORMADORES DA INSTRUÇÃO PÚBLICA
SERGIPANA (1910-1913)

Cristina de Almeida Valença - UFBA/UNIT


tina_valenca@yahoo.com.br

O objetivo dessa pesquisa é compreender a atuação do presidente de estado Rodrigues da


Costa Dória, do professor paulista Carlos Silveira e do professor Helvécio de Andrade no
campo educacional sergipano nos primeiros anos do século XX. As reformas educacionais
pensadas e implantadas por esses "intelectuais da educação” visavam disseminar os ideais do
movimento da Pedagogia Moderna e, consequentemente, consolidar do ideário republicano de
civilizar a sociedade através da educação.

Palavras-chave: História, educação, reformas.

Na tessitura da História, o final do século XIX reveste a escola como signo da


civilização e progresso. Influenciados pelos ideais iluministas, os intelectuais da educação
acreditavam no poder redentor da instrução pública. Mas a conformação da escola também
esteve assessorada pela crença nos dogmas da ciência e, por isso, a reconfiguração das
práticas, dos princípios curriculares e do papel do professor estava mediada de uma
racionalidade que geria o novo código da educação. Era preciso estabelecer uma nova
Pedagogia, princípios de higiene, de organização, de regulamentação, de modo a uniformizar
o ensino antes ministrado na casa do mestre-escola. Como salienta Nunes, “É no espaço das
cidades, com diferentes ritmos e intensidade, que as escolas deixam de configurar-se como
extensão do campo familiar, privado e religioso e, gradativamente, vão integrando uma rede
escolar”888. Mas para dar cabo a essa transformação, a ingerência dos intelectuais da educação
efetivou um projeto que afirmava a necessidade de moralizar os costumes, regenerar a
sociedade enferma.

888
NUNES, Clarice. “(Des)encantos da Modernidade Pedagógica” In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA
FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de Educação no Brasil. 3ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003. p. 374.

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Os ideais disseminados pelos intelectuais da República associaram à ordem


republicana o modelo de um Brasil moderno. Não obstante as várias estratégias da edificação
desse recente ordenamento político-cultural nacional, implantar uma compreensão
modernizante libertaria o País dos resquícios coloniais. Dessa maneira, a escola foi pensada
como um espaço social próprio para a apreensão dessas idéias. Adequar a realidade
educacional à modernidade seria, por fim, civilizar a sociedade. Ao discorrer sobre esse
assunto Herschmann e Pereira afirmaram que “moderno, modernidade, modernismo ou
mesmo modernização são categorias específicas que vão ocupando amplo espaço no campo
intelectual, constituindo-se em palavras de ordem significativa no começo do século XX”889.
Diz os mesmos autores que o discurso dos engenheiros, médicos e educadores assumiu o
palco da legitimidade em detrimento da “arte da retórica” própria dos bacharéis. O prestígio
dos especialistas era evidente, haja vista que estes conquistaram o reconhecimento e passaram
a ser responsáveis pela organização social, tornando-se, assim, mentores da modernização.

Para construir um estado de espírito moderno era preciso estabelecer a ordem,


administrar racionalmente o tempo escolar, gerir atividade produtiva, disciplinar, organizar o
espaço escolar e instruir o trabalho pedagógico. Nessa interseção, tornar a escola como uma
instituição modeladora da sociedade foi o empreendimento dos intelectuais desse período.
Para tanto, o poder cedido à ciência para postular o novo modelo educacional evidenciou uma
pluralidade de saberes que constituiu outro pensar sobre a cultura escolar. Investidos com
novas disciplinas, o currículo, o programa escolar e o método de ensino figuram como parte
da organização pedagógica racional. Esta subsidiada pela Psicologia Experimental, pela
Biologia, Pedologia e Pedagogia transformaria não só as práticas escolares, mas também a
cultura escolar.

Esses saberes científicos e especializados contribuíram sobremodo para difundir a


civilidade. A Medicina, por exemplo, ditava preceitos de normatização de hábitos e do corpo.
A engenharia foi um conhecimento que colaborou para a ordenação do espaço escolar por
defender a organicidade urbana e a limpeza visual, implementando outras configurações
discursivas a respeito da estrutura da escola. Através de formulações ideológicas, eles
desejavam incorporar uma série de valores e modelos que evidenciavam um efeito moral,

889
HERSCHMANN, Micael M. e PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O Imaginário moderno no Brasil”. In:
A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Micael M. Herschmann e
Carlos Alberto Messeder Pereira (orgs.) – Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 15.

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normatizador. Os intelectuais da educação falavam da contundente necessidade de modernizar


a instrução pública, comentavam através de relatórios, mensagens presidenciais e artigos de
jornais as mazelas sociais tornando visível a idéia de que a intervenção do Estado na educação
era cogente e difundiam os ideais do movimento da Pedagogia Moderna. Mas, por que
“Moderna”?

O paradigma do moderno que se instala desde o final do século XIX no campo


educacional pode ser compreendido como um conjunto de procedimentos, hábitos,
pressupostos, questões que orientam reflexões sobre a maneira de ver a realidade. Inserida no
processo de construção de um novo pensar pedagógico, a proposta de modernização,
entendida como uma intensa revisão crítica das práticas pedagógicas anteriores, adotou
modelos de apreensão da instrução a partir da superação teórica e didática. A Pedagogia
Moderna apresenta-se não apenas como uma necessidade intelectual ou discurso, mas também
como o meio capaz de empreender o progresso almejado. Entretanto, o que seria essa
Pedagogia Moderna? O que defendia? Existe algum marco temporal que defina quando
começou a ser implantada e quando findou?

Na tentativa de conceituar a Pedagogia Moderna foi possível entendê-la como um


movimento renovador das práticas pedagógicas. Caracterizada pela centralização dos
processos educativos na criança, pela adequação dos métodos de ensino e aprendizagem à
capacidade cognitiva do aluno e pelo aprimoramento das instalações escolares, a Pedagogia
Moderna apresentava um conjunto de idéias que se assemelhavam ao movimento da Escola
Nova no Brasil. É tênue a linha que as separa. Num momento de maior interferência sobre
esse aspecto, é plausível afirmar que a Pedagogia Moderna, assim denominada por
intelectuais do final do século XIX, antecedeu o discurso da Escola Nova.

Em defesa da renovação das práticas e princípios da educação, a Pedagogia


Moderna, a partir da influência dos estudos da Biologia, da Psicologia experimental e da
Pedologia, questionou as condições de aprendizagem, ou seja, os métodos aplicados e a
função dos programas de ensino. Defendia o aluno como o centro do processo de aquisição do
conhecimento, a co-educação dos sexos, o ensino da ginástica, jogos, excursões, a realização
de trabalhos manuais com fim educativo e a implantação de laboratórios de Pedagogia prática.

Esses projetos modernizadores agiam visando à alteração do habitus pedagógico


ao inserir novos preceitos regularizadores da formação docente. Essa renovação escolar,
mediada pela transformação do papel e da atividade docente, denunciavam a corrida contra o
velho e a busca pelo progresso. A Escola Normal foi o alvo dessas mudanças por ser o locus

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formador das futuras professoras primárias. Não bastava instruí-las; era necessário reformar
os padrões de ensino dessa instituição890.

Profusos em retórica, a intelectualidade sergipana vivenciou na passagem do


século XIX para o século XX o desencadeamento das letras e instituições voltadas para a
fecundação da cultura sergipana. As instituições beletrísticas891, científicas892 e educacionais
formavam os centros de discussões e foram as responsáveis pela circulação do conhecimento.
Os intelectuais que participavam dessas instituições idealizavam a instrução pública como o
caminho da salvação social. Ancorados nesse princípio, empreenderam diversas reformas no
campo educacional, a saber, a implantação de escolas primárias graduadas, da padronização
de métodos de ensino, de investimento na fiscalização escolar, na renovação dos processos de
ensino, na formação das normalistas, na organização dos regulamentos que conduziam o
ensino secundário, normal e profissionalizante.
Dentre eles, pode-se evidenciar os nomes de Carlos Silveira, professor paulista;
Rodrigues Dórea, presidente de Estado; Carvalho Neto, diretor da instrução pública; Graccho
Cardoso, presidente de Estado; Manoel Franco Freire, professor e diretor da instrução pública;
Augusto da Rocha Lima, professor; Penélope Magalhães, professora, e Helvécio de Andrade,
que foi professor e diretor da instrução pública por oito anos e três meses. As tentativas de
mudanças na estrutura educacional, consideradas fundamentais nos textos emitidos por alguns
desses intelectuais da educação, estavam muitas vezes marcadas por uma possível visibilidade
que as propostas de renovação educacional dariam às suas administrações.
Na realidade, falar em modernização pedagógica era o afã do período. Talvez o
discurso em si já desse legitimidade e respaldo ao orador. Pensando de outra forma, pode-se
supor que os envolvidos com a instrução estivessem desejosos em edificar uma nova cultura

890
Durante o governo de Prudente de Moraes, Caetano de Campos empreendeu, em 1890, a reforma que marcaria
a historiografia educacional como o momento que deu início à modernização do ensino. Como visto em
capítulos anteriores, o intuito dessa reforma era criar uma escola que servisse de modelo às instituições de ensino
dos outros Estados. A Escola Normal e a Escola Modelo constituíram o núcleo da reforma. Para assumir a
direção da Escola Modelo foram indicadas Miss Browne e Maria Guilhermina Loureiro de Andrade. Cf.:
SAVIANI, Dermeval. “O Legado educacional do ‘longo século XX’ brasileiro”. In: O Legado educacional do
século XX no Brasil. Dermeval Saviani ... [et. al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 23. –
(Coleção Educação Contemporânea).
891
As instituições beletrísticas existentes em Sergipe: Clube Literário 24 de Julho, Clube Literário Tobias
Barreto, Clube Literário Sílvio Romero, Clube Literário Progressista, Centro Literário e Educativo, Grêmio
Literário Simãodiense, Hora Literária Sílvio Romero, Hora Literária Tobias Barreto, Hora Literária Fausto
Cardoso, Hora Literária Gumercindo Bessa, Hora Literária General Calazans, posteriormente intitulada de Hora
Literária do Santo Antônio, Biblioteca Pública Epiphânio Dórea e Academia Sergipana de Letras. Cf.: SOUZA,
Cristiane Vitório. A Republica das Letras. 1889-1930. São Cristóvão: UFS, 2001. Monografia (História
Licenciatura).
892
As instituições científicas presentes no campo intelectual sergipano desse período foram: a Sociedade Médica
de Sergipe, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Sociedade de Medicina e Cirurgia de Sergipe, o
Instituto Parreiras Horta e Sociedade Odontológica de Sergipe.

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escolar, em forjar uma identidade educacional sergipana, ou mesmo em demarcar sua


singularidade em relação aos outros Estados. Fruto ou não de discursos produzidos para a
posteridade, tanto os relatórios de presidente quanto os enviados pelos diretores de instrução e
inspetores falavam em nome da modernização do ensino.
Os interesses políticos também contribuíram para a fixação dos reformadores no
campo educacional por permitir a coligação com grupos políticos já consolidados. Essas redes
de ligações estabelecidas pelos sujeitos possibilitavam não só a inserção nos grupos como
também contribuíam para a consolidação do individuo no campo. A esse respeito Elias893
informa que os agentes constituem teias de interdependências ou configurações como
estratégia para manter o poder ou mesmo a posição que ocupam na estrutura social.
Em Sergipe, apesar de a atuação política de Helvécio de Andrade não ter sido tão
expressiva quanto a sua atuação educacional, foi possível averiguar a determinação que
empreendeu na defesa de seus ideais públicos, principalmente no período em que residiu em
Maruim. Sustentou no Jornal de Sergipe uma propaganda sobre a necessidade da Revisão
Constitucional da República e fundou o Partido Revisionista junto com o Padre Dantas e
Antônio Motta. A repercussão de suas idéias teve como conseqüência a adesão de quatorze
municípios a esse partido.
Além disso, foi um dos primeiros a defender a sucessão do então deputado federal
Rodrigues da Costa Dórea ao cargo de presidente de Estado. Helvécio de Andrade difundia as
qualidades desse deputado afirmando que este “dispunha de todos os predicados para suceder
a situação criada pelos trágicos acontecimentos anteriores: cultura, moderação e honestidade
de meios e fins”894. O apoio incondicional à candidatura desse político permitiu que Helvécio
de Andrade se consolidasse no campo político e educacional, isto porque foi nessa
administração que conseguiu ter acesso aos cargos públicos educacionais considerados
importantes nesse período. Ao assumir a presidência do Estado, Rodrigues da Costa Dórea
indicou a Helvécio de Andrade o cargo de Delegado Fiscal do Governo Federal junto ao
Atheneu Sergipense. Ele permaneceu nesse cargo até o final da administração de Rodrigues
Dórea. Antes mesmo de entregar o cargo, esse presidente promoveu a vinda de um professor
paulistano para implementar a educação pública sergipana.
As viagens de estudos ou mesmo o empréstimo de técnicos eram práticas
correntes na Primeira República; faziam parte da rotina administrativa dos Estados que

893
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
894
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju:Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1.

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estavam preocupados em remodelar a instrução pública895. Consoante a afirmação de


Souza896, os educadores paulistas foram contratados por governos de vários estados para
participarem do processo de reorganização da instrução pública, bem como foram oferecidos
financiamentos para a realização de visitas comissionadas ao Estado paulista. O governo
paulista enviou diversos professores para verificar e relatar as práticas modernas de
ensino”897.
Sergipe também não esteve alheio a esses empreendimentos. Os movimentos de
renovação escolar foram adotados na gestão do presidente José Rodrigues da Costa Dórea
(1909-1911) como procedimentos prioritários para o setor educacional. Esse presidente ficou
impressionado com o que presenciou nas visitas que realizou às escolas americanas. Ao ter
em vista a necessidades de mudanças estruturais, Rodrigues Dórea convidou Carlos
Silveira898, que também esteve presente nas visitas ao sistema educacional dos Estados
Unidos, para implementar essas mudanças e capacitar o sistema educacional de regulamentos
e programas que estivessem de acordo com as novas diretrizes da educação paulista,
conforme suas palavras, “para favorecer o ensino”899 sergipano.

Ao chegar em Sergipe em agosto de 1911, o professor paulista acionou a


importância da criação de grupos escolares, da instalação de laboratórios para a Escola
Normal, da adoção de métodos de ensino, normatização da inspeção escolar, remodelação dos
regulamentos da Escola Normal e do ensino secundário. Foram esses os principais aspectos da
mudança liderada por esse intelectual. O professor paulista também procurou dar
organicidade ao magistério primário. Através de visitas às escolas da cidade, assistia ao
trabalho das professoras, conversava com elas e escolhia dentre elas as que deveriam compor
o quadro dos grupos escolares criados nessa administração. Além disso, observava as aptidões
das professoras, redistribuindo-as pelas classes.

895
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Reformas da Instrução Pública”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;
FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003. p.226.
896
SOUZA, Rosa Fátima de. “Lições da Escola Primária”. In: O Legado Educacional no século XX no Brasil.
Dermeval Saviani.. [et.al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 119. – (Coleção Educação
Contemporânea).
897
SOUZA, Rosa Fátima de. “Lições da Escola Primária”. In: O Legado Educacional no século XX no Brasil.
Dermeval Saviani.. [et.al.]. – Campinas, SP: Autores Associados, 2004. p. 119. – (Coleção Educação
Contemporânea).
898
Carlos Silveira era diretor do Grupo escolar da Avenida Paulista.
899
SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Estado em 7 de Setembro de 1910 pelo
presidente do Estado José Rodrigues da Costa Dórea. Aracaju: Typografia d’O Estado de Sergipe, 1910. p.
56.

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Em apenas quarenta e cinco dias o professor paulista divulgou a nova organização


do sistema escolar sergipano e, ao ser aprovada pelo presidente do Estado, foi publicada no
Diário Oficial do Estado de Sergipe. As reformas iniciaram logo após a data de publicidade e
tiveram o intuito de transformar-se num marco para a história da educação sergipana. Os
elogios na imprensa e as constantes ênfases sobre a importância dessa reforma delataram o
empenho na edificação de uma memória da reforma de 1911.

A representatividade dessa reforma não figurava apenas nos impressos, ela


instituiu-se também na construção dos prédios escolares públicos; isso não só por ter reunido
as escolas isoladas em um único edifício, mas pela monumentalidade deste. O edifício-escola
ou como chamavam na época, a escola-palácio, significava o momento da renovação. A
política educacional baseada nos princípios do ideal republicano culminava num processo de
reinvenção do espaço escolar e social. Nessa direção, as reformas dos espaços escolares
estavam ligadas aos pressupostos pedagógicos que pretendiam inserir novos hábitos e valores
para civilizar e homogeneizar a sociedade. A educação tornou-se um símbolo integrado à
República pela crença na sua capacidade de regenerar, disciplinar e moralizar900. Essas
reformas urbanas procuraram relacionar as idéias higienistas do final do século XIX com a
idéia de uma nova estética preocupada com o aformoseamento das cidades901.

Essas construções do moderno ou da modernização educacional brasileira como


evidenciaram alguns autores foi, no momento de sua formação e por longos anos, importante
instrumento de reflexão capaz de garantir, ou melhor, de viabilizar as relações entre diferentes
segmentos sociais, de promover a sustentação das articulações do Estado com a sociedade
civil, especialmente dos intelectuais com o Estado, ou mesmo com a cultura. Além disso,
possibilitou estabelecer os limites e diretrizes para o processo de constante reconstrução do
imaginário social.

As construções dos prédios da Escola Normal, Grupo Escolar Modelo e Grupo


Escolar Central estavam relacionados ao ideário de propagação de uma nova ordem que
creditava à educação o meio de instauração do progresso. Foi a partir desse princípio que se

900
VEIGA, Cynthia Greive. “Educação estética para o povo”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA
FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. p. 531.
901
VALENÇA, Cristina de Almeida. “Escola-Palácio: a monumentalidade e a educação estética do ideário da
modernização pedagógica em Aracaju. (1911-1928). In: Anais da 7 semana de História, 26 a 30 de janeiro de
2004: a historiografia de Maria Thetis Nunes. Universidade Federal de Sergipe. CECH, Departamento de
História. – São Crisóvão, SE: Departamento de História, 2004. p. 86.

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promoveu a construção das escolas-monumentos. Viñao Frago902, ao analisar a disseminação


desse modelo escolar, estabelece a relação entre os preceitos pedagógicos e os arquitetônicos.
A confluência deles permitia o acesso à organicidade do modelo escolar defendido pela
Pedagogia Moderna.

Esses projetos atrelavam a retórica arquitetônica à racionalidade pedagógica,


reinventando a escola, tornando-a um símbolo de progresso. O prédio da Escola Normal foi
um exemplo desse ideário. Seu projeto compreendia uma série de dispositivos que iriam
conferir à escola uma dimensão esperada pelo imaginário republicano. Esses dispositivos
estavam acompanhados pela orientação de um espaço escolar saudável.

O empenho do professor Carlos Silveira no desenvolvimento dessa reforma foi o


suficiente para insuflar desentendimentos e rixas com alguns políticos sergipanos.
Espaçadamente, Helvécio de Andrade informou sobre o episódio que provocou a volta do
professor a São Paulo. O professor sergipano relatou apenas que, por causa de um mal
entendido “nascido de tendenciosas informações e aceitas sem exame”903, determinou o
afastamento de Carlos Silveira, sustando o andamento da reforma que iniciou.

A retirada imprevista do orientador e as polêmicas dela decorrentes causaram


impressões de desagrado com a política vigente. Foi registrado um manifesto das normalistas
reivindicando a volta do professor paulista. No dia seguinte ao da rescisão do contrato do
professor paulista, elas escreveram nos quadros negros da escola “Viva ao Dr. Carlos
Silveira”. Helvécio de Andrade narrou o episódio revelando que um grupo de quartanistas
chefiado pela aluna mais distinta da turma dirigiu-se ao Palácio Presidencial e solicitou o
comparecimento do presidente Siqueira de Menezes.

Na presença do administrador do Estado lavraram seu protesto afirmando que


caso o professor paulista não fosse readmitido, elas deixariam a escola naquele mesmo dia904.
“O velho general”, como o invocou Helvécio de Andrade, “coçou a barba” e não disse mais
nada que “meninas tenham juízo!”. Sobre esse fato Helvécio de Andrade questionou o poder,

902
VIÑAO FRAGO, Antonio. “La renovación de la organización escolar: la escuela graduada”. In: SATUER, G.
O. (coord.). Psicologia y pedagogia em la primeira mitad del siglo XX. Madrid, UNED Ediciones. p. 77.
(Cuadernos de la UNED).
903
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju:Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1-2.
904
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju: Tipografia do Estado de Sergipe, 1931. p. 1-2.

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ou mesmo, a prepotência da política sobre a Instrução Pública. Ao retornar para São Paulo,
Carlos Silveira passou a atuar como professor do Instituto Pedagógico905.

Muitos dos objetivos idealizados pelo professor paulista só foram realmente


colocados em prática tempo mais tarde. A inspeção escolar foi um deles. Apenas em 1912 as
inspeções foram reorganizadas com o fim de incentivar a regularidade e o aperfeiçoamento do
ensino. Apesar de todas as esperanças depositadas nesse veículo demonstradas pelo afã com
que foram escritos os relatórios, a inspeção deixava dúvidas quanto ao seu rigor, conforme
reclamava Helvécio de Andrade num escrito sobre a escola sergipana906.

Esse não foi o único imprevisto do governo de Rodrigues Dórea (1909-1911).


Apesar de Aracaju ser nessa época uma cidade que não estava adversa a novas idéias, o
campo político caracterizado pelo domínio da oligarquia olimpista907 estava desgastado desde
o assassinato do líder opositor Fausto Cardoso, provocando dissidências que resultariam no
enfraquecimento do grupo de que Rodrigues Dórea era representante908. Desde que assumiu a
presidência do Estado, em 1909, contemplou os conflitos e descontentamentos gerados a
partir das reformas empreendidas.

As iniciativas desse presidente tinham como objetivo superar o quadro político


adverso, principalmente em relação ao sistema educacional. Como em todos os relatórios
elaborados pelos presidentes, Rodrigues Dórea também credita ao seu governo os esforços
para superar os problemas educacionais e refere-se, longamente, às divergências em relação
às suas ações no Estado. Certamente o retorno do professor paulista, Carlos Silveira, foi
gerado a partir dessas querelas políticas.

As especificações implantadas nessa reforma implicavam medidas criteriosas para


as mudanças pretendidas por Carlos Silveira. O próprio Rodrigues Dórea reconhecia que era
necessário suplantar os antigos padrões de ensino “feitos por métodos atrasados, e ministrados
por docentes muitas vezes catados entre os protegidos e afilhados sem atender às aptidões e
905
SERGIPE. Relatório apresentado ao Presidente do Estado pelo Dr. Helvécio de Andrade.
Aracaju:Tipografia do O Estado de Sergipe, 1914. p. 06.
906
ANDRADE, Helvécio de. Escola Sergipana. Aracaju: Tipografia do Estado de Sergipe, 1931.
907
Olimpio Campos, fora convidado a participar de uma reunião na qual foi convidado a assumir a presidência do
Estado, apesar de não se julgar propagandista da República, assumiu em 1898 e deixou o cargo apenas em 1902,
fato que o consumou no campo político. WYNNE, Pires. História de Sergipe. (1575-1930). vol. I. Rio de
Janeiro: Pongetti, 1973. p. 353.
908
Liderado pelo Monsenhor Olímpio Campos, esse grupo político manteve sua supremacia do ano de 1898 até
1911. Esse político exerceu por muitos anos grande influência como senador. O episodio conhecido como
Revolta de 1906 foi narrado pela historiografia sergipana como um acontecimento trágico por ter levado à morte
de Fausto Cardoso no momento em que as Tropas do Exército destituíram os revoltosos do poder. Em seguida,
Olímpio Campos foi assassinado pelos filhos de Fausto Cardoso por acreditar que o mentor da morte do pai.
DANTAS, Ibarê. Os partidos políticos em Sergipe (1889-1964). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

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competência, e só com interesse de dar empregos”909. Outras providências também foram


tomadas. Em 1911, ano que o professor Carlos Silveira voltou a São Paulo, Helvécio de
Andrade foi nomeado por Rodrigues Dórea lente das Cadeiras de Pedagogia, Pedologia e
Higiene Escolar da Escola Normal. Assumiu as cadeiras e com a pretensão de executar as
diretrizes definidas pela reforma, definiu um programa para a Cadeira que iria ocupar. O
programa instituído por Helvécio de Andrade estava afinado com as idéias defendidas pela
Reforma de Caetano de Campos implantada em São Paulo.

O diagnóstico do sistema educacional enfatizado nos primeiros artigos


demonstrava não só o modo como Helvécio de Andrade percebia a instrução, como também
servia como uma estratégia para calçar seu discurso. Diante de suas observações, a instrução
pública era a mesma de trinta anos atrás, com a diferença de que antes a fiscalização era mais
rigorosa. Apontou alguns erros implantados nas instruções relativas à organização, às
disciplinas, aos programas e aos métodos utilizados. Suas ressalvas enfatizavam o uso
indiscriminado da memorização e dos castigos físicos como processos de ensino correntes nas
escolas sergipanas. Disse Helvécio de Andrade: “o b-a-bá, o estudo decorado da taboada, da
orthographia, e até a cartilha, isso que em toda parte não é mais que uma lembrança do
passado, continúa a estimular os cérebros infantis”910.

Ressaltados por esse professor como o maior símbolo de atraso, os castigos físicos
eram o meio disciplinar mais utilizado nas escolas sergipanas, principalmente as de ensino
primário. Conforme acreditava, esse método produziria apenas meninos neurastênicos que
estudavam mais pelo “terror da férula” que por amor ao saber, ou mesmo, crianças
negligentes que se habituavam aos castigos e relaxavam. A escola moderna não poderia mais
submeter-se aos processos condenados pela ciência pedagógica, afirmava Helvécio de
Andrade. Suas premissas sobre a condenação aos castigos físicos estavam pautadas nos
fundamentos da metodologia implantada por Carlos Silveira na reforma de 1911. Ao tecer
suas argumentações contra o uso da palmatória, Helvécio de Andrade lembrou do seguinte
episódio ocorrido ainda no período da administração de Carlos Silveira.

Em um móvel de uma das mobílias recolhidas ao primeiro grupo escolar


organizados este ano, encontrou o dr. Carlos Silveira uma palmatória. Logo
909
SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Estado em 7 de Setembro de 1910 pelo
presidente do Estado José Rodrigues da Costa Dórea. Aracaju: Typografia d’O Estado de Sergipe, 1910. p.
50-51.
910
ANDRADE, Helvécio de. “Sobre a nova cadeira de Pedagogia da Escola Normal II”. Correio de Aracaju.
Aracaju, 6 de dezembro de 1911, ano VI, n. 634. p.2.col. 2.

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que a proprietária do amável traste deu pela sua falta, foi um tanto
commovida pedir licença para verificar se estavam no dito móvel uns papeis
que lhe eram pertencentes. O distincto educador, risonho respondeu: lá só
havia isso, cujo cabo desastradamente quebrei. Peço desculpas do prejuízo
que involuntariamente dei a v. ex.911.

Foi possível apreender que as ações de Rodrigues Dórea, Helvécio de


Andrade, Carlos Silveira e Baltazar Góes direcionadas para a implantação dos ditames da
Pedagogia Moderna nas escolas possibilitaram uma leitura da influência do movimento
modernizador em Sergipe. Como difusores dessa modernização pedagógica, esses
reformadores, mediaram a construção de uma cultura escolar sergipana baseada em um novo
fazer pedagógico com a introdução de novos métodos de ensino, novas práticas pedagógicas e
higienistas.
Eles também enfatizavam a importância de medidas que deveriam ser
desenvolvidas no sentido de uniformizar o sistema de ensino, o método, a definição dos
conteúdos, as normas que deveriam ser seguidas pelas escolas e a seleção prévia dos livros
didáticos. Apesar desses reformadores não terem sido os pioneiros a difundir as idéias da
Pedagogia Moderna em Sergipe, tiveram uma produção bastante significativa a esse respeito.
Os mecanismos de difusão das suas idéias refletiam a posição que ocupavam no campo
educacional. Dentre eles, a imprensa sergipana com os artigos, folhetos, ensaios e livros; as
salas de aula da Escola Normal e as conferências pedagógicas no salão da Hora Literária, do
Centro Pedagógico Sergipano e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. As idéias que
defendiam eram apropriações efetuadas da aproximação com as reformas e produções dos
intelectuais da educação de São Paulo. Principalmente, do pensamento dos intelectuais da
educação envolvidos com a propagação da Escola Nova e da Escola Ativa, como de Lourenço
Filho, Sampaio Dórea, Caetano de Campos, Afrânio Peixoto e Farias de Vasconcellos.
Os projetos desses reformadores e, principalmente, de Helvécio de Andrade
deram uma nova configuração aos problemas educacionais. Tratados a partir de uma
perspectiva cultural, justificava suas pretensões de elevar o nível da instrução pública com o
fim de proporcionar o desenvolvimento social, de civilizar.

911
ANDRADE, Helvécio de. “Sobre a nova cadeira de Pedagogia da Escola Norma III”. Correio de Aracaju.
Aracaju, 8 de dezembro de 1911, ano VI, n. 635. p.2.col. 2.

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BIBLIORAFIA

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______. “Velho Thema”. Correio de Aracaju, Aracaju, 21 de Agosto de 1912, ano VI, n.
738. p.1 col. 3.

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Aracaju, 6 de dezembro de 1911, ano VI, n. 634. p. 2. col. 2.

______. “O problema máximo”. Correio de Aracaju. Aracaju, 16 de fevereiro de 1913, ano


VI, n. 816. p. 2. col. 02.
______. “O Problema Máximo”. Correio de Aracaju. Aracaju, 16 de fevereiro de 1913, ano
VI, n. 816. p. 2. col. 3.

______. “O Homem e a sua Natureza: conferência realizada na Escola Normal de Aracajú


pelo Dr. Helvécio de Andrade”. Correio de Aracaju. Aracaju, 4 de outubro de 1911, ano V,
n. 608. p.1. col. 2.

______. “Assuntos Pedagógicos: como se ministra a leitura analytica.” Correio de Aracaju.


Aracaju, 3 de Março de 1912, ano VI, n. 668. p. 2. col.2.

______.Assuntos pedagógicos: uma lição de Pedologia. Correio de Aracaju. Aracaju, 19 de


Abril de 1912, ano IV, n. 689. p. 3. col. 2.

______. “3º Congresso de Instrução primária e secundária”. Correio de Aracaju. Aracaju,


31 de julho de 1913, ano VI, n. 945. p. 1. col. 3.

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“QUEM CALA SE SENTA”: A DISCIPLINARIZAÇÃO INFANTIL


ATRAVÉS DO DISCURSO MÉDICO-PEDAGÓGICO (1917)

Paloma Porto Silva – PPGH/UFPB


palomaporto_51@yahoo.com.br

São Paulo, 1917. As escolas públicas paulistas recepcionam uma das grandes obras que
propõe um modelo de educação higiênica da infância, emergida nos discursos republicanos,
em particular no discurso médico-higienista no início do século XX, configurando uma nova
prática escolar e trabalhos pedagógicos. Hygiene Escolar e Pedagógica para uso de médicos,
educadores e estabelecimentos de ensino (1917) é uma obra que faz parte de uma nova
literatura voltada a um receituário de civilidade, condutas e posturas. Assim, objetivamos
analisar as representações do corpo infantil contidos nesta obra e os ditames de condutas e
comportamentos, em nome da saúde, pensadas pelos princípios moralizantes e
disciplinarizantes tecidos pelos saberes/poderes. Contudo, nos apropriamos dos conceitos
como “disciplina” e “anormais” de Michel Foucault para a nossa narrativa no intento de
refletir acerca dos discursos classificadores e hierarquizantes no que referem as condutas e
práticas às crianças. Dentre algumas conclusões a que podemos chegar, uma é que não só a
História da Educação, como também os atuais educadores compartilham o consenso de que a
escola moderna é espaço dotado de visibilidade e dizibilidade, voltado para a homogeneização
dos corpos para a produção de crianças “perfeitas”.

Palavras-chave: higienização, educação, inspeção médica escolar.

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes
descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do
universo e do lugar que ocupamos nele, (...) a idéia de modernidade,
concebida em inúmeros fragmentários caminhos, perde muito da sua nitidez,
ressonância e profundidade e perde sua capacidade de organizar e dar
sentido à vida das pessoas. Em conseqüência disso, encontramo-nos hoje em
meio a uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria
modernidade. (BERMMAN, 1999, p. 16-17)

No texto que abre essa introdução, as palavras de Marshal Berman ilustram bem a
“vertigem” abissal de um jogo de vida e de morte entre a possibilidade de

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autodesenvolvimento e a ameaça de destruição dos valores humanos que tomavam conta do


período final do século XIX e início do XX. As transformações dos conhecimentos
científicos em tecnologia, influenciados pela industrialização da produção, constrói novos
ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo da vida. Transformações
sócio-culturais foram legadas (e ainda são) da crescente modernização da dita Belle Époque,
mas que gerou incertezas e angustias nas pessoas. Valores são desmanchados no ar, o mundo
capitalista impõe modelos de verdade absoluta, verdade que causa dúvida, estar por vir o
império do efêmero. Paradigmas tradicionais confrontam-se com modelos modernos de se
ditar o ritmo da sociedade, a contemporaneidade caracteriza-se pelas disputas entre o “novo”
e o “velho”...
Mudanças de sociabilidades e sensibilidades no interior do tecido social inferiram
as várias categorias sociais do ser mãe, do ser pai, do ser filho, do ser trabalhador e etc. As
relações sociais ganham novos direcionamentos, pois a velocidade dos acontecimentos acelera
a adaptação aos novos costumes.
Calma, leitor, você deve estar se perguntando o que todo esse “turbilhão da vida
moderna” tem a ver com nosso objeto em estudo. Entretanto, antes de nos adentrarmos a
nossa “trama”, consideramos importante “talhar” alguns contextos e conceitos emergidos com
o advento das mudanças de sociabilidade e sensibilidades na virada do século XX, pois estas
atingiram não só a população adulta, mas a infantil também.
A infância por muito tempo ficou silenciada pela sua significante “inutilidade
política”. O seu valor social foi construído ao mesmo em que se vivia em uma época de
grande efervescência das “certezas solapadas” e da desconfiguração no núcleo familiar. Neste
ínterim, infância é construída.
Portanto, ao falarmos em infância não remeteremos a uma abstração, mas a uma
construção discursiva que institui determinadas posições, não só das crianças, mas da também
da população adulta e das instituições escolares, instituindo determinados modos de ser, ver e
dizer a infância.
A partir deste pensamento, objetivamos, ao longo deste trabalho, perceber como o
discurso da modernidade do início do século XX, constrói espaços de “adestramento” e
“disciplinarização” para o corpo infantil. Escolher São Paulo como espaço desta pesquisa, é
tentar encontrar subsídios para compreender como um modelo de “instituição de seqüestro”
foi (re)elaborado pelos médico-higienistas. Assim, tentaremos responder como a escola foi
eleita como um espaço de higienização pelo discurso médico, principalmente nos anos de
1902 a 1917. O ano de 1902 inaugura o discurso do Dr. Balthazar Vieira de Mello com a

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publicação do seu livro intitulado A Hygiene Escolar. E como final do recorte elegemos o ano
de 1917 por ter sido o ano da publicação do segundo e último livro do Vieira de Mello
intitulado Hygiene Escolar e Pedagógica para uso de médicos, educadores e
estabelecimentos de ensino.
A narrativa que tomo como fonte nesta pesquisa compõe um “manual de receitas”
discursivas e não-discursivas expresso nos dois livros publicados pelo o médico-pedagogo Dr.
Vieira de Mello, fazendo uma análise dos discursos pelos livros disseminados,
esquadrinhando a infância e as práticas educacionais em torno dela, percebendo como um
sistema de códigos, condutas e hábitos higiênicos contribuíram “quebrar” o silêncio a cerca da
infância configurando uma nova (re)significação para as crianças, inserindo-as em um novo
contexto. Os discursos do Dr. Vieira de Mello postulavam métodos e formas adequadas de
como a criança deveria de comportar e se higienizar. Os livros usavam de usos e costumes de
como a crianças deveria ser educada.
A metodologia utilizada neste trabalho é a análise dos discursos912. Discursos
esses inventa(ria)dos e que desempenharam papel importantíssimo no recorte temporal
referido, pois os discursos científicos emergidos no período Iluminista ecoaram séculos
adiante, configurando-se em dispositivos de poder como um imperativo nas sociedades
modernas, que vigia, pune e corrigi os que não se inserem às normas.
Pode-se perceber que nesse lugar próprio de poder e saber, que as práticas para
com as crianças eram ali construídas em aproximação a figuras de disciplina e saúde,
apresentada sob a forma de um ato cujo objetivo era satisfazer as necessidades do Estado.
Está posto nas páginas dos livros do Dr. Vieira de Mello um legado discursivo que institui a
criança a aprender a motivar a saúde, a norma e a motivar a Pátria de maneira positiva.
O médico-pedagogo nos lega discursivamente interesses singulares sobre a
infância e que articula uma “trama” de visibilidade e de dizibilidade, a qual se pode
vislumbrar a partir de análises dos livros: A Hygiene Escolar (1902) e Hygiene Escolar e

912
Neste contexto, entendo o conceito de discurso a partir da acepção de Helena H. Brandão, como o espaço em
que saber e poder se articulam, se entrecruzam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito
reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional)
é gerador de poder. “Um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma
mesma formação discursiva”. Esta, por sua vez, é entendida como a regularidade de uma dispersão de elementos
que não estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cf. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução a
análise do discurso. 6º ed., Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, pp. 28, 29, 30 e 31. A categoria discurso
pode ser também entendida segundo a concepção de Foucault, o qual defende como o conjunto das coisas ditas,
as relações, as regularidades e as transformações que aí se podem observar o domínio em que certas figuras, no
caso, a infância, em que certos encruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito e podem receber o nome
de um autor. “Não importa quem fala, mas o que ele diz, ele não o diz de um lugar qualquer”. Cf. ARAÚJO, Inês
Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Ed. UFRN, 2001, pp. 96-97.

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Pedagógica para uso de médicos, educadores e estabelecimentos de ensino (1917). A


imagem da criança é construída pelo médico-pedagogo a partir de um enquadramento
corporal e estético singular, o qual exige tanto um bom desempenho social quanto
educacional.
A partir dos discursos do Dr. Vieira de Mello, posso inferir que a forma de
vigilância foi, talvez, um dos dispositivos de formação discursiva presentes nas relações
sócio-culturais que mais conduziu a criança a ser “policiada” e a se “autopoliciar” em suas
condutas.
Entre as linhas escrituradas pelo médico-pedagogo as crianças são referidas como
“anormais”, “idiotas”, “assimétricos”, “fracos” que, tanto fisiológico, psicológico como
moralmente deveriam ser corrigidas a partir de cuidados médico-pedagógico.

Medicalizando e inspecionado corpo e mente

Examinar cuidadosamente os alunnos das varias classes de ensino,


colligindo todos os dados que tiver obtido em vista do exame geral e
orgânico de cada um, de modo a construir as respectivas fichas; e, em razão
dellas, classifical-os entre os alunnos normaes ou anormaes, especificando
neste caso em que consistem as deficiências observadas e qual o remem
especial que reclamam. (MELLO, 1917, p.172).

Rastreando como o Dr. Vieira de Mello constrói a imagem da infância


encontramos o cruzamento do poder médico-pedagogo com efeitos de discurso bastante
incisivos. Isto é, prescrições de exames médicos nos educandos que constroem e dão sentido a
uma unidade. Tais prescrições se constituem em conceitos que estão em torno de uma
personagem: a figura da criança (a)normal. Este conceito se configura como uma ferramenta
da formulação de um “tipo” de criança, em especial a da criança paulista. O texto acima913
que nos serve de epígrafe, encontrado na obra Hygiene Escolar e Pedagógica para uso de
médicos, educadores e estabelecimentos de ensino, a segunda do Dr. Vieira de Mello, não é o
único, mas apenas mais um dos vários que tratam da formulação de fichas para examinar e
classificar os educandos:

913
O trecho citado faz parte da legislação, cabendo registrar que, dentre as atribuições que competiam aos
médicos inspetores em relação aos estabelecimentos de ensino sob a sua responsabilidade, figura em primeiro
plano, na lei n. 1.541, artigo 6º.

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este exame visa indistinctamente os alunnos sãos e normaes, ou supposto tal


e os doentes e anormaes, outr’ora considerados como indolentes ou pouco
applicados, quando às mais vezes, são myopes ou surdos escolares, que não
podem acompanhar as explicações do professor, ou instáveis, cuja
mobilidade de espírito não se subordina às exigências da pedagogia.
(MELLO, 1917, p. 57)

É perceptível como a figurada criança é construída em torno de um conjunto de


padrões que a classificam em normais ou anormais. Trata-se aqui de uma antologia de
escrituras que investe em (re)formar os pressupostos que consistem na idéia do “typo
paulista” de criança, reforçando seus desdobramentos discursivos, o qual constitui os vários
sentidos de um tipo infantil universal necessária à categoria.
Ao obedecer à lei que remodelou a Inspeção Medica Escolar, o Dr. Vieira de
Mello prescreve o exame dos educandos, compilando todos os dados obtidos pelo exame
físico, formulando um modelo de ficha sanitária individual, de fichas de exames anuais, além
de esquemas para a classificação dos escolares, esquema para o exame clínico dos anormais e
quadro do desenvolvimento físico dos educandos da cidade de São Paulo. Tais anormais
compõem todo um conjunto de dispositivos preparados pelo Dr. Vieira de Mello para
sistematizar e guiar o trabalho dos médicos e inspetores junto às escolas914.
Os dados produzidos pela análise minuciosa de todas as fichas se configuravam
como um dispositivo de produção de conhecimento sobre a infância. A autoridade dos
médicos e dos professores deveria produzir registros dos exames físicos que indicassem, sobre
os mais variados aspectos, desde a vacinação e revacinação, a aparência geral, o
funcionamento dos órgãos até as ocorrências mórbidas verificadas desde o nascimento da
criança, sem deixar de lado, também, as mensurações antropométricas de estatura e peso,
capacidade respiratória e força muscular. Tais mensurações deveriam compor a rotina dos
profissionais da Inspeção Médica Escolar. Para tanto, o Dr. Vieira de Mello apresenta
detalhados procedimentos para os exames dos educandos:

914
Aos médicos inspetores lhes foram atribuídas novas funções, mesmo àqueles que não pertenciam aos quadros
de funcionários da IME, mas que engrossavam a lista dos que compartilhavam do mesmo intento do inspetor
sanitário no trabalho de inspeção em escolas públicas e particulares, ensino primário, normal, secundário e
profissional com a coordenação do médico chefe, o livro serviria como um manual, uma cartilha de consulta dos
mais variados tópicos. O roteiro da obra foi baseado na literatura internacional e nos regulamentos estrangeiros
para uma eficaz organização do trabalho desse corpo profissional. A escola, segundo Dr. Vieira de Mello no
prefácio, era concebida como um “centro de irradiação de homens aptos a defende-la [a Pátria] e de mães
compenetradas dos seus deveres sociaes” (MELLO, 1917, p. 8), e deveria ser inspecionada por seus agentes com
orgulho e amor patriótico no peito.

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para se medir a estatura e tomar o peso de um escolar, deve este estar


descalço e despojado das peças de vestuário mais pesados, bastando para
isso uma toêsa e uma balança, reunidas ou separadas, com a condição,
porém que sejam aferidas. (...) Qualquer que seja o apprelho adoptado, o
essencial é que essas medidas sejam exactas, devendo o alumno cuja estatura
se tem de tomar, collocar-se em posição de perfilar, (1ª. posição escolar),
com os calcanhares unidos e as pontas dos pés afastadas, os braços pendidos
ao longo do corpo e o olhar horisontal, de modo que a haste transversal da
toêsa repouse no vertex. (MELLO, 1917, p. 63-64).

Tais registros se punham de modo concomitante às observações pedagógicas que


levavam em consideração a capacidade de memória e concentração, inteligência e
comportamento das crianças.
O livro publicado pelo Dr. Vieira de Mello é rico em detalhes ao expor os
procedimentos de exame, elencando vários aspectos que o professor e o médico devem
observar. Partindo da máxima “mentalidade sadia em organismo sadio”, o Dr. Vieira de Mello
formula a ficha individual em consonância com as observações pedagógicas feitas, tanto pelo
professor, quanto pelo educando, fomentando em uma ficha anthropopedagogica. É o
esquadrinhamento da criança por excelência. Ganha destaque nos estudos e descrições do
médico-pedagogo a grande ênfase nos aspectos pulmonares, ou melhor, na perimetria
torácica. O método de avaliação da capacidade respiratória é descrito técnica e objetivamente
para não causar dúvida alguma no leitor. As medidas, números e comparações atestavam o
positivismo triunfante, em que a visibilidade e a dizibilidade mensurável dos corpos infantis
eram indubitáveis.
O exame dos sentidos do corpo humano também foi estudado e descrito na obra
do Dr. Vieira de Mello. Sobre o sentido da visão era importante detectar as infecções que os
olhos poderiam estar acometidos e, também, perceber os efeitos da iluminação e seus efeitos
diretos no sentido da visão. Os alunos eram classificados como normais se a leitura em
relação ao quadro pudesse ser feita na distância de cinco metros e de insuficientes se não
conseguissem ler. Entretanto, é importante destacar o ofício do médico-inspetor, pois este não
estava preocupado em curar os alunos que possuíssem algum tipo de problema visual, mas
sim em diagnosticar apenas:

o contrario do especialista, que faz exames completos, o medico-inspector


escolar só procura conhecer os resultados sufficientes. A sua tarefa é
assignalar os alumnos cujo estado de saúde reclame cuidados hygienicos ou
médicos, para que os paes, tutores ou responsáveis os levem à consulta do
especialista da sua escolha (MELLO, 1917, P. 69).

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As preocupações higiênicas do Dr. Vieira De Mello se estendem aos órgãos de


outro sentido, os da audição. As secreções sebáceas produzidas pelos órgãos da audição
podem obstruir este sentido. A anatomia dos órgãos são os primeiros alvos da inspeção,
“antes do exame propriamente da audição, o médico escolar procurará verificar a
conformação das orelhas, (...) a ver si há anomalias” (MELLO, 1917, p. 71).
Contudo, também é nosso objetivo mostrar, a partir de alguns termos no discurso
do Dr. Vieira de Mello, como algumas crianças são classificadas ou mesmo rejeitadas no
ambiente escolar. Trata-se de lances de estereótipos que envolvem, por exemplo, algumas
crianças com problemas auditivos: não sendo admitidos surdos nas escolas, o medico só terá
de investigar a si a audição é normal ou insufficiente, constituindo esta a surdez escolar, muita
vez ignorada dos paes dos alumnos e dos professores (MELLO, 1917, p. 72).
É através da exclusão, como mostra Foucault, que o indivíduo entra na morte em
virtude das “práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de marginalização”. Efeitos e
mecanismos de poder que exercem sobre “os loucos, sobre os doentes, sobre os criminosos,
sobre os desviantes” 915
Assim, como nos sentidos de visão e audição, o órgão destinado ao sentido do olfato é
examinado primeiramente no aspecto estético: “depois de verificar o aspecto exterior do nariz,
isto é, a sua conformação e posição relativa ao eixo da face, o medico examinará o estado das
fossas nasaes” (Mello, 1917, p. 75). Mas o exame também possui o objetivo de evitar doenças
que acabem comprometendo as vias respiratórias:

as epistaxis não traumáticas devem merecer especial attenção do medico,


porquanto ellas podem ser indicio de varizes da pituitária, freqüentes nos
adenoidianos, cuja circulação de retorno é entravada, de ulcerações
syphiliticas ou tuberculosas, de molestias chronicas do fígado e dos rins, ou
o prenuncio de certas infcções agudas, como sejam a febre typhoide e as
febres eruptivas. (MELLO, 1917, p. 75-76)

No que diz respeito à garganta e à voz, o Dr. Vieira de Mello elabora um


esquadrinhamento bem mais detalhado, partindo da percepção de que “as lesões ahi
assentadas podem dificultar a palavra, como ainda o desenvolvimento intellectual e physico
do escolar” (MELLO, 1917, p. 77). As deformações no esqueleto da caixa torácica e aspectos
que passam uma fisionomia expressando estupidez causada, principalmente, pelas amidalites
e adenóides.

915
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. OP. Cit., p 54.

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No que se refere à garganta, percebe-se um deslocamento da função da inspetoria


médica. Devido à gravidade e ao elevado número de escolares afetados pelas amidalites e
adenóides, a inspetoria instalou uma sala de assistência operatória dentro da própria
instituição escolar, para tentar facilitar o acesso a um tratamento adequado.
A boca, juntamente com a garganta, também era constantemente examinada,
começando pelos lábios em suas configurações e em seguida se verificando a habitação de
germes causadores do herpes, muito freqüentes devido ao uso comum de canecas e lápis
(muito levados à boca) entre as crianças. A língua e as gengivas também não passam
despercebidas pelos inspetores. Entretanto, no constituinte da face do ser humano, a dentição
e os maxilares também ganham grande destaque.
Para os inspetores, a primeira dentição não ganha muita importância. Apenas a
partir dos cinco ou seis anos é que a segunda dentição começa a surgir e, a partir disso, se
possibilita uma avaliação dos maxilares. Preocupações com as erupções dos dentes são
descritas minuciosamente, mas as cáries dentárias, as complicações sépticas916 e dystrophias
dentarias fomentam preocupações e cuidados maiores, levando-se ao pé da letra a legislação
no tocante ao objetivo da inspeção médica917:

as caries dentarias, dizem Méry e Genévrier, devem preoccupar o medico


esclar; a sua extrema freqüência, os seus incovenientes e perigos, por demais
consideráveis, reclamam todos os cuidados necessários para entravar o seu
desenvolvimento, pois além de construírem focos permanentes de infecção
pelo accumulo nas cavidades dentarias de resíduos alimentares, que são os
melhores meios de cultura de todos os micróbios existentes na cavidade
buccal, as dores provocadas pela carie exercem perniciosa influencia sobre a
mastigação, acarretando dyspepsias, cujas origem todos os médicos são
acordes em atribuir á má dentição (MELLO, 1917, p. 88).

O inspetor médico escolar deveria estudar as enfermidades do sistema cárdio-


vascular e do sistema respiratório, neste último, levando em consideração o alto índice de
casos de tuberculose no início do século XX918, principalmente a tuberculose infantil, “cujo
estudo reclama o conhecimento de algumas particularidades anatômicas e physiologicas
peculiares a essa phase da vida” (MELLO, 1917, p. 93).

916
Dentre as complicações septicas “destacam-se a inflamação e suppuração dos gânglios submaxilares, ao
abcessos dentarios, as osteítes, seguidas algumas vezes de necrose parcial dos maxilares e, mais que tudo, a
infecção tuberculosa”.
917
Artigo 3º, número III da lei nº. 1541 de 30 de dezembro de 1916: “A inspecção dentaria dos alunnos, quer
por meio dos médicos-inspetores, quer por meio das clinicas dentarias escolares a que poderá o medico-chefe
confiar, gratuitamente, a tarefa”. (MELLO, 1917p. 170).
918
Conferir a referência que faço à tuberculose no Capítulo I desta monografia.

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A partir do que foi esquadrinhado sobre o corpo infantil, o Dr. Vieira de Mello
tem a preocupação de induzir os profissionais da educação e os próprios educandos, trazendo
um jogo de circunstâncias que coloca a infância como principal alvo do conhecimento
científico (médico e pedagogo). Trata-se, ao que se percebe, do “olhar do poder e o estrépito
919
de sua cólera” que, possivelmente, suprime qualquer pensamento ou sentimento de
“paparicação” que se tenha para com a criança. A partir da maneira como investe na
descrição, esquadrinhamento e classificação é possível perceber como o discurso do Dr.
Vieira de Mello demonstra frieza e tecnicidade com relação ao corpo infantil.
O esquadrinhamento (de órgãos) e a educação dos sentidos (visão, olfato, e etc.),
têm por efeito colocar as crianças em contato com os objetos exteriores, além de lhes dar
noções a cerca da natureza, da realidade social e material, o que atribui ao julgamento dos
educandos as qualidades essenciais de ponderações, polindo o mundo fantasioso das crianças
através de uma razão sadia920.
A narrativa apresentada pelo Dr. Vieira de Mello, além de demonstrar tais
objetivos, desempenha investigações que não se restringiam aos aspectos visíveis tentando
responder às interrogações mais peculiares das características humanas. Sendo assim, as
crianças eram classificadas como (a)normais, tendo por referencial os dados de
desenvolvimento físico, intelectual e moral comuns à suas respectivas idades. A classificação
pedagógica dos alunos era calcada no critério de inteligência, dividindo as crianças em
“supernormais ou precoces, normais, subnormais e tardias”, sendo que o último grupo
compreendia: a) astênicos, indiferentes, apáticos; b) os instáveis, inquietos, impulsivos,
indisciplinados; c) os ciclotímicos (que apresentavam características das duas categorias
anteriores).
Mantém-se, na abordagem dessas questões, a preocupação em formular um
esquema, uma espécie de catálogo das deformidades específicas dos anormais. O capítulo
intitulado Classificação dos anormaes é marcado pelas orientações em relação à classificação
dos educandos mentalmente anormais, traçando uma descrição e identificação do “anormal”
intelectual, moral e pedagógico, assim descritos: “estygmas de degenerescência, ou anomalias
physicas de caracter permanente” (MELLO, 1917. p.105). O esquema proposto para
classificar os alunos anormais divergia das fichas sanitárias individuais, pois não deixava
margens para o registro das características das crianças. Visando orientar a identificação das

919
Cf. Michel Foucault. “Ávida dos homens infames”. Op. Cit., p. 101.
920
Demeny apud SOARES, Carmem Lúcia. Imagens da educação do corpo: estudo a partir da ginástica
francesa no século XIX. 3º ed. Campinas, SP: Autores associados, 2005.

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deformidades e o trabalho de classificação, o esquema se constitui numa espécie de fichário


das deformidades que poderia ser encontrado quando o exame fosse feito em uma criança tida
como “anormal”.
Em linhas gerais, podemos dizer que o exame de um indivíduo, na modernidade,
substituiu a exclusão recíproca entre o discurso médico e o discurso pedagógico por um jogo
que poderíamos chamar de jogo de “dupla qualificação”921 médica e pedagógica. Tal prática,
a junção de saberes, a técnica da “dupla qualificação”, organiza o que podemos chamar de
controle da classificação do (a)normal. Controle esse que vai engendrar todo o campo da
dupla determinação, além de autorizar o aparecimento, no discurso de pedagogos e médicos-
higienistas, de toda uma série de termos ou de elementos estigmatizantes.
Ao percorrer os exames, o esquadrinhamento e a classificação feitos pelo Dr.
Vieira de Mello, o que mais chama a atenção são os termos utilizados como “insufficientes”,
“retardadas”, “fraca”, “preguiçosa”, “iniciativa rudimentar”, “laboriosas”, “crueldade”,
“débeis”, “degenerados”, “perniciosos”; o que nos é relatado são elementos diagnosticados
como uma espécie de “redução anunciadora”922, de quadros da infância (a)normal paulista.
Uma espécie de redução para crianças à normalidade.
Estudando os “anormaes intellectuaes”, o médico-pedagogo tipifica as crianças
como “violentas”, ou seja, nem exatamente doentes nem propriamente “asnos”, a qual junção
de saberes está voltada. No exame clinico dos anormaes, o que o médico-inspetor tem a
diagnosticar em sua análise é a criança “violenta”, “instável”, “impulsiva”. Desse modo temos
duas noções muito próximas de “diagnose”: a noção de “impulso” que percorre dentro de
conceitos médicos e pedagógicos; e a noção de “violência” que permite justificar a categoria
da correção e da punição.
Todavia, não estamos querendo enfatizar o lugar de “normal” dessas crianças,
buscamos problematizar a intervenção dos saberes pedagógicos entrecruzando com o discurso
médico, mostrando estereótipos inferidos à figura infantil. Buscamos, assim, mostrar como
tais estereótipos partem mais de circunstâncias histórico-culturais construídas através dos
saberes/poderes e menos de condutas propriamente perniciosas aludidas pelo discurso do Dr.
Vieira de Mello.
As nomenclaturas que acabamos de observar sobre as crianças podem nos remeter
a uma espécie de dossiê de “desaprovação”. A criança é desaprovada diante do discurso que
celebra a normalidade, a obediência e o comedimento.

921
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. 2001.
922
Idem, ibidem.

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Contudo, a junção do discurso médico e do discurso pedagógico realizado pelo


Dr. Vieira de Mello fomenta arquétipos de linguagem para a criança, uma linguagem do
medo, elaborada por ele, por ser um inspetor, que está protegido, legitimado pela instituição
médica. A linguagem materializada no exame funciona como aquilo que vai transmitir um
novo saber normativo da instituição médica à instituição escolar, os efeitos de poder.
É a partir da junção dos saberes médicos e pedagógicos, prescrevendo inspeções e
exames médicos dentro dos estabelecimentos educacionais e nos próprios alunos, construindo
conceitos como o de crianças (a)normais, que o Dr. Vieira de Mello dedica quinze páginas de
sua obra sobre uma preocupação latente: aos desvios da columna vertebral.
Os problemas de coluna que interessam ao médico-inspetor são as molestias, que
por mais que também possuam um caráter hereditário, sejam adquiridas no meio escolar, tanto
por vícios de atitudes e comportamentos, quanto pela deficiência “logística“ oferecida pela
escola. A mobília escolar poderia ser um grande contribuidor para o desencadeamento de
várias molestias, principalmente os relativos à coluna.
As diferenças de altura e distância entre a mesa e o banco do aluno, a posição do
livro ou do papel, são consideradas pelo Dr. Vieira de Mello como de grande importância para
a prevenção de molestias da coluna. Em sua narrativa, o autor aponta como o móvel escolar
deveria ser e como, também, não deveria ser.

Referências Bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção de textos, Manoel


Barros da Motta. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.

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Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

_____. Microfísica do poder. 21 ed., Rio: Graal, 2005.

_____. Os Anormais: curso no Collége de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_____. O que é um Autor. Lisboa: Presença, 1994.

_____. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

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_____. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1995b.

SARMENTO, Manuel J. e PINTO, Manuel. A globalização e a infância: impactos na condição social


e na escolaridade. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infância no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2001.

SEVCENKO, Nicolau “O prelúdio Republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso” In.:


SEVCENKO, Nicolau. (org.) História da vida privada no Brasil 3. República: da Belle Époque à Era
do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SILVA, A. M. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade


racional. Cadernos CEDES, Campinas, ano XIX, n, 48, 1999.

SILVA, Kalina Vanderlei et al. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005.

SOARES, Carmem Lúcia. Imagens da educação do corpo: estudo a partir da ginástica


francesa no século XIX. 3º ed. Campinas, SP: Autores associados, 2005.

VIGARELLO, Georges. Lês corps redressé. Paris, Jean Oierre Delarge, 1978.
.

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O JORNAL A DEFESA COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA


EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA MATERIALIDADE DO IMPRESSO

Ana Luzia Santos – UNIT


allussann@hotmail.com

Este trabalho, destinado ao Simpósio História da Educação, analisa a materialidade do jornal


católico A Defesa. Através dos indícios presentes na parte material, busco informações
referentes à produção, distribuição e organização material e discursiva do periódico, e ao seu
público alvo. A análise desses vestígios objetiva conhecer os recursos utilizados pelos
produtores do jornal para conformar a apropriação dos leitores às expectativas da Igreja e,
conseqüentemente, promover a educação defendida pela maioria dos clérigos da micro-região
sergipana do Baixo São Francisco durante a década de 1960. Utilizo os conceitos de
representação, apropriação e materialidade de Roger Chartier, e de civilização de Norbert
Elias. Faço uso também do método indiciário sugerido pelo historiador Carlo Ginzburg e da
noção de documento-monumento de Jacques Le Goff. Os aspectos referentes à materialidade
do jornal mostram que os produtores do periódico não utilizaram somente os enunciados
escritos para educar os leitores, mas lançaram mão também de outros dispositivos materiais,
que demonstraram grande sintonia com as abordagens veiculadas em A Defesa, servindo para
reforçar as representações difundidas através desse impresso.

Palavras-chave: Jornal A Defesa, Materialidade, História da Educação.

O jornal católico A Defesa foi criado em 13 de julho de 1932, pelo cônego Lauro
de Souza Fraga. Surgiu como um jornal da Paróquia de Propriá-SE. Em função das
dificuldades financeiras que enfrentou, essa publicação foi interrompida em vários momentos.
Com a criação da Diocese de Propriá, em 1960, e a chegada do bispo Dom José Brandão de
Castro, esse impresso foi revitalizado, tornando-se órgão oficial de imprensa dessa Diocese.923

Em cada época os jornais apresentaram características materiais distintas. Portanto,


para analisar historicamente esse tipo de impresso, faz-se necessário examinar não só as

923
CASTRO, Dom José Brandão de. A Defesa é mais antiga do que se pensa. A Defesa, Propriá, n. 378, p.01, 15
abr. 1962.

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informações e as idéias nele contidas, mas também a sua materialidade. Forma e conteúdo
demandam uma observação atenciosa. Partindo dessa premissa, apresento alguns dispositivos
que fizeram parte do suporte do jornal A Defesa ou que viabilizaram sua caracterização, na
perspectiva de perceber como esses mecanismos contribuíram com o processo de formação
empreendido pelos produtores do referido impresso católico.

Os aspectos materiais do impresso têm grande relevância tanto para os seus


produtores, que provavelmente se serviram deles para executar o processo de civilização
desejado, como para o pesquisador que pode encontrar neles indícios capazes de elucidar
alguns pontos que a análise exclusiva do conteúdo dos impressos pode negligenciar. A
investigação da sua materialidade também pode identificar sinais que mostrem a harmonia ou
as contradições existentes entre os discursos e os dispositivos constitutivos da materialidade.
Diante dessa concepção, este trabalho analisa a materialidade do jornal católico A Defesa.
Através dos indícios presentes na parte material do impresso, busca informações referentes à
produção e à distribuição do periódico, à sua organização material e discursiva e ao seu
público alvo. A análise desses vestígios objetiva conhecer os recursos utilizados pelos
produtores do impresso para conformar a apropriação dos leitores às expectativas da Igreja e,
conseqüentemente, promover a educação defendida pela maioria dos clérigos da micro-região
sergipana do Baixo São Francisco, durante a década de 1960. A abordagem é feita em
conformidade com os conceitos de representação, apropriação e materialidade de Roger
Chartier, e de civilização de Norbert Elias. Faço uso também do método indiciário sugerido
pelo historiador Carlo Ginzburg e da noção de documento-monumento de Jacques Le Goff.

De acordo com Chartier, a percepção e a apreensão do real variam conforme o


meio no qual são produzidas e compartilhadas determinadas disposições estáveis que
pertencem exclusivamente àquele grupo. “São estes esquemas intelectuais incorporados que
criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível
e o espaço ser decifrado.”924 As representações construídas acerca do mundo social se
propõem a oferecer compreensões universais do fenômeno apreciado, mas “...são sempre
determinadas pelos interesses do grupo que as forjam”925. Assim, os discursos enunciados têm
uma estreita relação com a posição e os interesses do indivíduo ou do grupo que os profere.

924
Cf. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000, p.
17.
925
Idem.

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Por outro lado, não existem apropriações universais. Assim, os diversos leitores se
apropriam dos impressos de formas distintas. Isso significa que os enunciados não chegam
aos leitores conforme a vontade de seus produtores. Todavia, as diferentes apropriações não
ocorrem de forma aleatória. Dependem também do suporte material em que o texto está
inscrito. Assim, o exame da materialidade dos impressos é de fundamental importância para
os estudos acerca desses documentos. Chartier mostra que cada suporte, cada forma, cada
estrutura da transmissão da escrita interfere na construção do sentido e se destina a um
público leitor determinado. Dessa forma, através da letra, dos anúncios, dos editoriais, das
imagens lançadas no jornal, dentre outras características que compõem a parte material do
impresso, foi possível perceber a que público(s) o jornal A Defesa era dirigido e as estratégias
que foram utilizadas para conformar os leitores à mensagem católica que era transmitida.

Para entender o modo como o clero da Diocese de Propriá procurou conformar, ou


mesmo moldar os católicos leigos aos propósitos do catolicismo, fiz uso também do conceito
de civilização de Norbert Elias. De acordo com Elias, os comportamentos humanos podem ser
amplamente moldados em consonância com o desenrolar dos processos históricos.

Para interpretar as fontes fiz uso principalmente de dois métodos: a noção de


documento-monumento de Jacques Le Goff, que mostra que nenhum registro documental é
neutro. Conforme essa noção, todo e qualquer documento deve ser visto como uma tentativa
de seus produtores de impor às pessoas que forem manuseá-los posteriormente uma
determinada imagem de si, de seus feitos ou de instituições que representa. Logo, todo
documento histórico deve ser problematizado como memória-monumento.
Por outro lado, em alguns momentos o pesquisador se depara com a escassez
informações que indispensáveis ao seu trabalho. Torna-se necessário então o emprego de um
método que possibilite a realização de uma análise qualitativa. Nesse sentido, o historiador
italiano Carlo Ginzburg sugere a adoção do método indiciário que consiste em uma análise
cuidadosa dos vestígios, dos pequenos indícios que são desprezados por olhares pouco
atentos, mas que podem revelar grandes informações. De acordo com Ginzburg, por menor
que pareça a evidência, ela não deve ser descartada: “se a realidade é opaca, existem zonas
privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-las”926.
Durante toda a década de 1960, o jornal A Defesa teve como redator-chefe o
Monsenhor José Moreno de Sant’Ana, que era o pároco de Neópolis – SE. Entre 21 de

926
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 183.

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setembro de 1961 e 01 de abril de 1962, período em que foram publicadas 11 edições, A


Defesa teve como diretor o Monsenhor Afonso Medeiros Chaves. A partir da 12ª edição,
publicada em 15 de abril de 1962, o Monsenhor Sant’Ana assumiu também o cargo em
caráter provisório, embora tenha permanecido na função por todo o resto do decênio.O
periódico contava ainda com diversos colaboradores atuando na sua produção, distribuição ou
buscando assinantes e anunciantes, sendo que a maioria se manteve no anonimato.

A distribuição do periódico era feita através dos Correios e com a colaboração dos
leigos. Rapazes e moças distribuíam grande parte dos impressos, entregando-os diretamente
nas casas. Além da entrega de grande parte dos impressos, alguns jovens também se lançaram
à busca de novos assinantes e anunciantes.927 Estes colaboradores habitavam a cidade de
Propriá e as circunvizinhança. No ano de 1968, a Diocese era composta por 25 municípios.
Destes, 17 tinham correspondentes que colaboravam com A Defesa.

É importante observar que a participação dos leigos foi importante no processo de


disseminação do pensamento e das representações católicas veiculadas no jornal A Defesa.
Naquele momento, a maior parte do clero da Diocese de Propriá atribuía grande importância à
participação deles nas atividades da Igreja, vindo a estimular o envolvimento dos fiéis com as
tarefas religiosas. Tal incentivo está refletido inclusive em muitos discursos que os produtores
de A Defesa disseminaram através do jornal.

A atuação desses colaboradores também foi muito grande no processo de produção


dos textos que foram veiculados no impresso católico. Estes foram escritos tanto pelos
clérigos quanto pelos leigos. No entanto, não é possível conhecer exatamente a extensão dessa
participação, já que a maior parte desses textos não apresenta assinatura.

Dentre os responsáveis pelas matérias assinadas, destacam-se principalmente os


seguintes autores: Monsenhor José Moreno de Sant’Ana, com 120 textos assinados, e o bispo
diocesano Dom José Brandão de Castro, com 112.

Embora a maior parte dos textos que apresentam autoria tenha sido escrita pelo
bispo ou por padres, é válido salientar que a maioria dos autores do jornal foi provavelmente
formada por leigos. Foi grande a importância que a redação do jornal dispensou à atuação dos
leigos no processo de evangelização empreendido com a utilização do periódico católico.

Na década de 1960, as edições do jornal A Defesa circulavam com quatro páginas


e tinham uma tiragem de 1000 exemplares. As edições que excederam as quatro páginas

927
.DONA Didi fez aniversário. A Defesa, Propriá, n. 404, p. 04, 30 jun. 1963.

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foram comemorativas. Ao ser transformado em órgão oficial diocesano, o jornal foi


apresentado como um periódico quinzenal. No entanto, sua circulação ocorreu em datas
irregulares. Assim como ocorreu com outras Dioceses produtoras de periódicos católicos, a de
Propriá também se queixava da falta de recursos financeiros para manter a circulação
regularmente e aumentar a tiragem: “todo jornal católico pelo não contar com verbas ou
auxílio dos poderes públicos, luta com mil dificuldades. Vive propriamente da dedicação, da
generosidade e da pontualidade dos seus assinantes e anunciantes.”928

Em nenhuma das edições de A Defesa referentes à década de 1960, o bispo Dom


José Brandão de Castro foi citado como membro do corpo editorial do jornal. No entanto,
além de ter sido uma das pessoas que mais publicou na folha católica, fez vários
esclarecimentos acerca da produção e distribuição do periódico e assinou 6 dos 23 editoriais.
Aliás, esse ponto requer um exame mais acurado, pois o editorial é um dos recursos que os
produtores de jornais e revistas têm para emitir as opiniões da redação e orientar os leitores
sobre determinados temas. De acordo com o jornalista Luís Henrique Marques, o editorial
deve expressar a postura da redação do impresso e não é comumente assinado, porque precisa
caracterizar a posição de toda a equipe de produtores e não a opinião de um indivíduo929.
Conforme o Dicionário de Artes Gráficas, produzido por Frederico Porta,

[...] editorial significa artigo de jornal ou revista, que reflete o pensamento


ou a orientação de seus dirigentes, habitualmente publicado na primeira
coluna da quarta página, ou outra página a isto especialmente dedicada,
artigo de fundo.930

O fato de os editoriais já serem vistos nos anos 60 como textos representativos do


pensamento dos dirigentes do periódico, leva a concluir que Dom José fazia parte do corpo
editorial do jornal, embora seu nome não tenha sido mencionado como membro da redação.
Além disso, pode-se supor que o bispo tenha feito uso desse recurso para promover a
formação cristã dos leitores de acordo com a postura católica dele.

Os assuntos abordados nos editoriais foram: a importância social e religiosa do


jornal A Defesa; o êxito da Diocese na tarefa evangelizadora; a postura correta do homem

928
SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. Um lugarzinho no coração. A Defesa, Propriá, n. 452, p. 01, 22 de
ago. 1965.
929
Cf. MARQUES, Luíz Henrique. Teoria e prática de redação para jornalismo impresso. Bauru – SP: EDUSC,
2003.
930
Cf. PORTA, Frederico. Dicionário de Artes Gráficas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958, p. 124.

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diante de Jesus Cristo; a carência de sacerdotes na Diocese; o culto à Nossa Senhora nas
Paróquias da Diocese; o comunismo; as celebrações da Semana Santa em Propriá; a compra
de votos com bolsas de estudo; a luta dos católicos pela paz; a importância de dar o dízimo; a
campanha da fraternidade; a luta da Igreja para promover as vocações sacerdotais; as
mudanças nos setores litúrgico e teológico da Igreja; o erro cometido por aqueles que
acusavam vários bispos brasileiros de subverterem a ordem política e católica; os ideais da
Teologia da Libertação; os padres redentoristas que atuavam na Diocese; todos os padres que
compunham a Diocese de Propriá e a sua atuação; a evangelização e a colaboração dos leigos
na pastoral católica. Alguns temas foram abordados em mais de um editorial.

Além dos editoriais, muitos textos veiculados em outras edições serviram para
expressar o posicionamento teológico e as opiniões dos produtores de A Defesa. Por se tratar
de um jornal católico, cuja função principal foi promover a formação ou reforçar a
mentalidade cristã dos fiéis, é importante ressaltar que vários dispositivos foram utilizados
para favorecer a civilização dos leitores. Alguns deles merecem destaque:

1 - Pequenos escritos, contendo de 2 a 5 linhas, intitulados “Pensamento”. Estes


eram constituídos geralmente por frases ditas ou escritas por personalidades eclesiásticas ou
leigas. Eram textos que ensinavam a viver de acordo com os valores cristãos e serviam para
despertar nos leitores uma conduta moral capaz de aliar a fé católica à ação social;

2 - Pequenos textos denominados “Graças Alcançadas”. Sua composição variava


entre 3 e 7 linhas. Apresentava os agradecimentos de alguns fiéis, especialmente das devotas.
Dentre aqueles textos que identificaram as pessoas beneficiadas, só aparecem nomes de
mulheres. Esses pequenos escritos eram uma demonstração para os leitores de como a fé e a
devoção geravam dádivas. Foi provavelmente uma forma de educar utilizando os exemplos
das pessoas que diziam já ter recebido alguma benfeitoria. Além dos agradecimentos, eram
mencionadas as quantias doadas pelas gratas fiéis. Tal menção provavelmente servia de
incentivo para que outros católicos também fizessem doações à Igreja.

3 - Vários preceitos religiosos foram colocados entre as matérias: “Ajudando um


seminarista pobre, você estará acumulando um tesouro no céu e formando um padre na
Terra”; “Quem dá aos pobres empresta a Deus”; “Deus é Alimento, Saber e Justiça”, “A
família que reza unida permanece unida”, “Deus é Amor, Bondade e Justiça”. Esses
ensinamentos foram repetidos diversas vezes, como se o objetivo fosse levar os leitores a
inculcá-los, transformando-os em orientações para as suas vidas. Outra estratégia usada foi a
apresentação destes com letras bem maiores do que aquelas que constituíam as matérias.

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Assim, essas “prescrições católicas” se destacavam em relação ao restante do conteúdo,


chamando provavelmente a atenção dos consumidores de A Defesa.

4 - Pequenos textos, contendo entre 3 e 7 linhas, transmitiam as chamadas


“mensagens de Jesus”, extraídas da Bíblia, além daquelas enunciadas pelos papas, bispos e
padres ou retiradas de outros impressos católicos e de documentos oficiais da Igreja. Essas
mensagens eram colocadas na primeira página de algumas edições. Inicialmente, ficavam
expostas no final da página com o seguinte título: “Assim disse Jesus”. A partir da edição de
número 460, de 15 de dezembro de 1965, foram transferidas para o alto da página,
provavelmente para dar maior visibilidade. Trataram de temas referentes à fé católica ou de
assuntos que se tornaram objeto das preocupações dos produtores de A Defesa, a exemplo do
divórcio e das injustiças sociais, mostrando qual seria a postura cristã considerada correta.

5 - Poesias, orações e hinos religiosos. Foram produções textuais que, com sua
leveza e graciosidade, podem ter sido usados para envolver os leitores e servir como reforços
aos ensinamentos bíblicos ou àqueles resultantes da postura teológica adotada pelos
produtores do jornal. O que existia em comum entre esses textos era o fato de todos
favorecerem a formação do católico idealizado pelos redatores de A Defesa: um ser humano
que utilizasse a fé não apenas para orientar sua conduta individual, mas também para guiar
suas ações em sociedade, no sentido de ajudar ao próximo e promover a justiça social.

6 - A estratégia dos títulos. Alguns títulos do jornal A Defesa serviram


provavelmente para direcionar a leitura, sugerindo uma interpretação coerente com a postura
do seu autor. Dentre estes estão: “Esposa, mãe e anjo”931 (trata do papel da mulher); “O
comunismo promete a paz e fomenta o ódio”932 (critica a atuação dos comunistas); “O
divórcio é inadmissível”933 (apresenta o casamento como uma instituição indissolúvel);
“Cuidado moças”934 (alerta as moças contra o perigo representado pelo namoro com homens
casados); “Juventude transviada: cópia carbono de adultos transviados”935 (afirma que a
delinqüência juvenil resulta do desregramento moral dos adultos); “Menores no cinema – fato

931
Cf. AMBRÓSIO, Frei. Esposa, mãe e anjo. A Defesa, Propriá, n. 366, p. 2-4, 21 set. 1961.
932
Cf. KOSSOLMOLOV, Frei Bono. O comunismo promete a paz e fomenta o ódio. A Defesa, Propriá, n. 375,
p. 2-3, 28 fev. 1962.
933
Cf. SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. O divórcio é inadmissível. A Defesa, Propriá, n. 479, p. 01, 29
set. 1966.
934
Cf. 934 Cf. SANT’ANA, Monsenhor José Moreno de. Cuidado moças. A Defesa, Propriá, n. 454, p. 04, 15 set.
1965.
935
Cf. FRANTZ, Theobaldo. Juventude transviada: cópia carbono de adultos transviados. A Defesa, Propriá, n.
390, p. 02, 28 out. 1962.

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que merece especial atenção dos poderes públicos”936 (chama a atenção das autoridades
competentes para a exibição de filmes considerados inadequados para menores de dezoito
anos); “Presidente Castelo Branco: Brasil não tem ditadura”937 (afirma que os militares que
promoveram a “revolução de 1964”, não implantaram no Brasil uma política ditatorial). Esses
títulos são representativos da posição cristã, teológica e sócio-política assumida pelos
produtores de A Defesa.

Os produtores de A Defesa também utilizaram matérias extraídas de outros jornais,


católicos ou não, a exemplo daquelas transcritas do Jornal Do Brasil, do jornal O Globo e do
jornal Lar Cathólico; de revistas católicas ou laicas, tais como: Revista Sallete, Revista Nova,
Revista Doentes Missionários, Revista Família Cristã, Revista Paz e Bem, de documentos
eclesiásticos, tais como a Carta Pastoral do Bispo de Santa Cruz do Sul – D. Alberto Etgez, a
Encíclica O Desenvolvimento dos Povos – de Paulo VI e a Bíblia; e de escritos ou mensagens
proferidas por membros do clero brasileiro. Além disso, é possível supor que alguns textos
apresentados sem autoria identificada tenham sido reproduzidos. As transcrições selecionadas
atenderam a um critério principal: corroboraram a postura teológica predominante na Diocese
de Propriá, contribuindo assim com a formação que os produtores do jornal A Defesa
pretenderam oferecer aos leitores.

A maior parte das edições de A Defesa era distribuída entre os assinantes. Existiam
dois tipos de assinaturas: a simples, mais barata, e a do benfeitor. Essas assinaturas eram
pagas anualmente, podendo ser feitas na secretaria do bispado, localizada na Catedral
Diocesana ou com os correspondentes que colaboravam no processo de distribuição do jornal.
Conforme os agradecimentos veiculados no impresso, os benfeitores eram principalmente
comerciantes e bancários, além de outros profissionais liberais. Os anunciantes também deram
sua contribuição para a manutenção do jornal A Defesa.

Dentre os 18 anúncios que apresentaram maior assiduidade no periódico, 13 são de


estabelecimentos comerciais, bancos ou prestadores de serviços localizados na cidade de
Propriá, 3 são de lojas da cidade de Penedo – AL, e 2 são de estabelecimentos comerciais da
cidade de Neópolis – SE. A freqüência desses anúncios é um indício de que a maior parte do
público leitor estava concentrada nesses três municípios, com a predominância dos leitores
situados em Propriá.

936
Cf. MENORES no cinema: fato que merece especial atenção dos poderes públicos. A Defesa, Propriá, n. 370,
p. 04, 15 nov. 1961.
937
Cf. PRESIDENTE Castelo Branco: Brasil não tem ditadura. A Defesa, Propriá, n. 471, p. 01, 29 mai. 1966.

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Em relação a essa última cidade, faz-se necessário considerar que os municípios


circunvizinhos também podem ter sido alvos desses anúncios, uma vez que o comércio e a
prestação de serviços do Baixo São Francisco convergiam para Propriá. Conforme Carlos
Roberto Britto Aragão, Propriá se manteve até o início da década de 1970, como o pólo mais
desenvolvido daquela região sergipana.

Apesar das grandes e sucessivas perdas territoriais, Propriá se manteve


como destacado centro regional até o início da década de setenta, período
em que manteve o comando regional, inclusive sobre os municípios que
dele se emanciparam administrativa e politicamente. 938

Os anúncios também trazem um indicativo de que o jornal era dirigido


principalmente a um público leitor urbano e com um poder aquisitivo que superava o padrão
de consumo da maioria dos habitantes do Baixo São Francisco, já que, por um lado, as
propagandas não faziam alusão a produtos ou serviços freqüentemente utilizados no campo e,
por outro, mencionavam mercadorias que provavelmente não eram acessíveis à maioria da
população daquela região, a exemplo das louças nacionais ou estrangeiras comercializadas na
loja A Popular, dos lustres e das jóias finas da Joalheria e Ótica União, dos móveis
produzidos pela Movelaria São José, dos automóveis e acessórios automobilísticos da
concessionária Irmãos Peixoto S.A., das elegantes vestimentas advindas do sul do país
anunciadas pela loja A Integral, dos televisores da Loja Eletrolar, ou mesmo das geladeiras
das marcas G. E., Gelomatic e Hotpoint vendidas na Casa Figueiredo. Considerando que
apesar do desenvolvimento usufruído por Propriá, a maior parte da população do Baixo São
Francisco apresentava grande carência financeira939, pode-se concluir que o jornal não estava
voltado primordialmente para os habitantes mais pobres do território que compunha a
Diocese.

Por outro lado, é provável que muitos católicos tenham tido acesso aos
ensinamentos veiculados no jornal através da disseminação oral, realizada principalmente
pelos clérigos.

938
Cf. ARAGÃO, Carlos Roberto Britto. Propriá e sua região: apogeu, crise e perspectivas. São Cristóvão:
UFS, 1997. (Dissertação de Mestrado). p. 59.
939
Cf. ARAGÃO. Op. Cit. p. 62.

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A difusão oral das idéias escritas tem sido realizada ao longo dos séculos. De
acordo com Alberto Manguel, mesmo com o domínio da Igreja sobre a cultura letrada, já na
Idade Média era praticada a “leitura ouvida” 940

É provável que as idéias e mensagens veiculadas no jornal A Defesa tenham tido


uma ampla circulação oral, promovida por padres, professores, diretores de escolas e de
associações, dentre outros, uma vez que esses grupos e indivíduos consumiram o jornal e
foram aconselhados em várias edições a fazer a leitura e a transmissão do conteúdo presente
no referido periódico católico, principalmente os clérigos, que eram aconselhados a fazer a
leitura das edições do jornal durante a celebração das missas. Logo, é possível supor que
idéias veiculadas em A Defesa tenham contemplado um público bem maior do que aquele
formado pelos leitores.

Pode-se observar também que o jornal A Defesa não seguiu um padrão de


organização para a apresentação da sua parte material. Não existiam normas que
determinassem o tamanho ou a quantidade de colunas que deveriam figurar no periódico, o
tamanho da letra variava muito, algumas matérias começavam nas últimas páginas e eram
concluídas nas primeiras, as seções fixas não tinham lugar definido para serem publicadas,
alguns textos eram muito grandes, chegando a ocupar uma ou duas páginas inteiras, enquanto
outros eram minúsculos, dentre outros aspectos que apontavam para o fato de o jornal não
seguir um modelo harmonioso de produção.

No entanto, é necessário salientar que essa forma “desordenada” como a folha


católica se apresentava era uma característica muito comum entre os jornais publicados
naquele decênio. De acordo com José Ferreira Júnior941, somente em fins da década de 1950 e
início de 1960, os grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo começaram a promover uma
renovação gráfica responsável por uma nova forma de organização para esses impressos. Esse
novo padrão editorial só chegou aos pequenos jornais bem mais tarde. Por outro lado,
segundo a própria redação de A Defesa, a edição não era confeccionada toda de uma só vez,
fato que tornava as matérias muitas vezes desproporcionais.

Não obstante a forma pouco harmoniosa ou mesmo precária como o jornal era
organizado, a parte visual não descuidou de imagens capazes de reforçar os discursos
enunciados. É provável que tais imagens tivessem a função de reforçar as representações

940
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 138.
941
FERREIRA JR., José. Capas de jornal: a primeira imagem e o espaço gráfico-visual. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2003.

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difundidas através da escrita veiculada no jornal. Com o auxílio da “realidade fotografada”942


seria possível conferir aos textos uma aparência mais fidedigna.

O jornal A Defesa divulgou principalmente representações e ensinamentos


relativos à fé católica. Mas também abordou temas católicos e laicos que se tornaram alvos de
vários debates no Brasil dos anos 60. Dentre esses se pode destacar: a participação dos leigos
nas atividades católicas, o Concílio Vaticano II, a escassez de sacerdotes, o posicionamento
da CNBB, a atuação pastoral dos clérigos, o comunismo, o golpe e o governo militar, o
divórcio, a delinqüência juvenil, o envolvimento dos jovens nos movimentos sociais, o
analfabetismo e a importância da instrução escolar, algumas descobertas científicas.

As letras sofreram muitas variações. Em várias matérias, cujos textos estavam


voltados principalmente para as mulheres, foi utilizada a letra cursiva que muitos editores
usaram no século XIX e mesmo no XX para facilitar a leitura daqueles que tinham menor
habilidade com o universo da escrita.

É um indício de que os produtores de A Defesa podem ter considerado as leitoras


menos hábeis do que os homens ao lidar com a escrita. Outro recurso utilizado no jornal foi a
variação do tamanho das letras que compuseram os títulos, em conformidade com importância
atribuída ao assunto.

É provável que os títulos maiores anunciassem as discussões e os temas


considerados mais relevantes para os produtores de A Defesa. As letras das matérias também
variavam entre a fonte 10 e 14. A maior parte dos textos sobre política e sobre economia
apresentava fonte 10. Provavelmente estes foram destinados principalmente a um público
leitor mais “erudito”. Outro indício de que o público visado pertencia a uma “elite intelectual”
é o vocabulário usado. Vários termos utilizados na composição das matérias exigiam
provavelmente um padrão de erudição que não era comum a maior parte da população que
habitava a micro-região do Baixo São Francisco ou em outras cidades da Diocese. Conforme
já foi dito antes, é provável que vários fiéis tenham acessado as idéias veiculadas em A Defesa
através das leituras realizadas pelos consumidores letrados, especialmente pelos padres
daquele território diocesano.

Além disso, a organização discursiva do jornal apresentou uma coerência capaz de


contribuir com a consolidação das representações difundidas através do periódico católico.

942
Expressão utilizada por Marcos Napolitano. NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In:
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto. 2005, p. 236.

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Nas edições em que foram discutidos assuntos considerados de grande relevância, alguns
textos giravam em torno do tema central, apresentando idéias semelhantes, se reforçando
mutuamente.

Os aspectos referentes à materialidade do jornal mostram que os produtores do


periódico não utilizaram somente os enunciados escritos para educar os leitores, mas lançaram
mão também dos dispositivos materiais, que demonstraram grande sintonia com as
abordagens veiculadas em A Defesa, servindo para reforçar as representações difundidas
através desse impresso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARAGÃO, Carlos Roberto Britto. Propriá e sua região: apogeu, crise e perspectivas. São

Cristóvão: UFS, 1997. (Dissertação de Mestrado).

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand;

Rio de Janeiro: Difel, 1990.

CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. México: Fondo de Cultura

Econômica, 2000.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1990.

FERREIRA JR., José. Capas de jornal: a primeira imagem e o espaço gráfico-visual. São

Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia

das Letras, 1999.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. edição. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MARQUES, Luíz Henrique. Teoria e prática de redação para jornalismo impresso. Bauru –

SP: EDUSC, 2003.

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NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).

Fontes Históricas. São Paulo: Contexto. 2005

PORTO, Frederico. Dicionário de Artes Gráficas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958.

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A ESCRITA EPISTOLAR DE SÍLVIO ROMERO: O USO DAS CARTAS


COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DA LEITURA

Cristiane Vitório de Souza (Faculdade Atlântico/ SEED)


cristianevitorio@hotmail.com

O objetivo desta pesquisa é evidenciar a utilidade das cartas como fonte para a análise do
Sílvio Romero leitor. Serão analisadas as missivas enviadas a Artur Guimarães, Artur
Orlando, Almáquio Diniz, Magalhães Carneiro, Barão do Rio Branco e Conde Afonso Celso.
Além das cartas, serão utilizadas como testemunhos a literatura de época e sobre a época. Para
interpretar essas fontes serão empregados: a noção de documento/ monumento de Jacques Le
Goff, o método indiciário, de Carlo Ginzburg; e os conceitos de apropriação e representação
de Roger Chartier. A leitura das cartas evidenciou que o intelectual sergipano costumava
trocar materiais bibliográficos com os destinatários, principalmente com Artur Orlando, Artur
Guimarães e Almáquio Diniz; que preferia a leitura matutina; que às vezes precisava
interromper por causa da reinação dos filhos ou das doenças e mortes de familiares; e que até
mesmo necessitava mudar de cidade para poder produzir. Revelou também que ele se
apropriava das leituras ao seu modo, construindo a partir delas suas próprias representações
do mundo social.

Palavras-chave: Sílvio Romero – Missivas – Leitura.

As cartas eram o principal meio de comunicação entre intelectuais na segunda


metade do século dezenove e primeiras décadas do vinte. A atividade epistolar era uma
prática disseminada e exercida com afinco e prazer pela maioria deles, que não só escreviam
muitas e muitas cartas, como se dedicavam a guardar as que recebiam, para alegria dos
pesquisadores que hoje sobre elas se debruçam. A correspondência de representantes do
campo intelectual brasileiro constitui um lugar de sociabilidade fundamental, revelador das
práticas culturais de um determinado período.

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Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero manteve intensa correspondência


com outros intelectuais. Através da análise de suas missivas é possível evidenciar a fertilidade
desse tipo de fonte para o desvelamento das suas práticas, mais especificamente, das práticas
de leitura.
Antes de efetuar a análise das epístolas é preciso conhecer um pouco da trajetória
do intelectual sergipano. Sílvio Romero nasceu no dia 21 de abril de 1851, na Vila de Lagarto,
Província de Sergipe. Era filho de André Ramos Romero, “português do Norte”, negociante
abastado, e Maria da Silveira de Vasconcelos Ramos Romero, descendente de próspera
família, também de origem portuguesa.
Estudou as primeiras letras na escola dos professores Bomfim e Badú na terra
natal. Em 1863, ingressou no internato Ateneu Fluminense, no Rio de Janeiro, onde cursou os
preparatórios exigidos para a admissão nos cursos superiores. Em 1868, se matriculou na
Faculdade de Direito de Recife e diplomou-se em 1873.
Em 1874, assumiu a Promotoria Pública de Estância. No ano seguinte voltou para
Recife para apresentar tese de doutoramento na Faculdade de Direito. No mesmo ano prestou
concurso para a cadeira de Filosofia do Colégio de Artes, anexa à faculdade, para a qual foi
aprovado, mas não foi nomeado. Em 1876, seguiu para Parati onde exerceu o cargo de Juiz
Municipal e de Órfãos. Em 1880, inscreveu-se no concurso da cadeira de Filosofia do Colégio
Pedro II, onde lecionou durante 30 anos. Também ministrou aulas na Faculdade Livre de
Direito e na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais.
Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras e foi membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia de Ciências de Lisboa e de diversas
outras associações literárias.
Escreveu sistematicamente na imprensa periódica e publicou diversos livros nos
campos da Poesia, Crítica e História Literária, Filosofia, Sociologia, Política, Direito, Folclore
e Educação. Faleceu em 18 de julho de 1914, aos 63 anos de idade.
Ao longo da sua trajetória estabeleceu amizade intelectual com Artur Guimarães,
Artur Orlando, Almáquio Diniz e Magalhães Carneiro e amizade intelectual e interlocução
política com Barão do Rio Branco e Conde Afonso Celso. Essas relações não foram marcadas
apenas por encontros, mas também pela troca de amistosa correspondência.
Foram localizadas cento e duas cartas enviadas por Sílvio entre 1891 e 1913.
Infelizmente, não foi possível até o momento encontrar a sua correspondência passiva.
Portanto, a análise aqui empreendida parte da convicção de que apenas remetente e
destinatários dominavam todos os pontos de referência sobre as matérias tratadas. E mesmo

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que fosse possível o acesso à correspondência recebida pelo intelectual sergipano, a


compreensão do conteúdo das cartas ainda seria parcial, pois, estes documentos, apesar de
revelarem uma intimidade que outros ocultam ou ignoram, podem conter uma ilusão de
realidade, pois os missivistas nem sempre se revelam como são, mas tentam impor aos
destinatários uma determinada imagem de si mesmos.
Uma análise das epístolas não deve cuidar apenas dos conteúdos abordados pelos
missivistas, mas também dos aspectos formais. Geralmente, as cartas seguem o seguinte
protocolo: local, data, saudação de abertura, texto, saudação final e assinatura. Em alguns
casos há um post scriptum. As saudações de abertura e saudações finais indicam o grau de
intimidade entre o remetente e o destinatário.
Nas cartas que enviou para o Barão do Rio Branco e para o Conde Afonso Celso,
fez saudações de abertura polidas: “Meu caro Sr. Barão, Saúde”, “Meu caro mestre,
saudações”, “Caro mestre e chefe, Saúde”, “Meu Caro Conde e Diretor, Saúde”; e saudações
de fim com o mesmo tom: “Desde já lhe agradece seu velho amigo e admirador ardente”,
“Com a mais subida consideração a V. Ex., do velho admirador, amigo e servo muito grato”,
“Desculpe todas estas franquezas de seu rude velho amigo muito grato Sílvio Romero”, “São
os votos do colega e amigo Sílvio Romero”. Esses cumprimentos revelam que não havia entre
os interlocutores uma relação muito íntima, pois o remetente faz questão de manter uma certa
formalidade.
Já nas cartas que escreveu para Arthur Guimarães, Arthur Orlando, Almáquio
Diniz e Magalhães Carneiro, nota-se exatamente o contrário. Sílvio fez saudações de abertura
bem amistosas: “Queridíssimo Artur, Saúde”, “Jovem e delicado Artur”, "Jovem e delicioso
Artur, Saúde”, “Artur, mimoso rapaz e seleto amigo”, “Santo, adorável, sublime Artur”,
“Artur querido”, “Artuzinho, “Caríssimo Almáquio”, “Caro e impávido jovem”. E as
saudações de fim não foram diferentes: “Do teu”, “Do namorado apaixonado”, “Do amigo
velho”, “Do velho camarada”, “Aceita um abraço do seu verdadeiro amigo”, “Aceite um
terrível abraço do velho amigo e compadre S. Romero”, “Lembranças do amigo namorado”,
“Do namorado” e “Do seu velho namorado”. Tais cumprimentos são marcados pela
informalidade. A impressão é de que Sílvio estava se dirigindo oralmente aos amigos e não
através de uma missiva.

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Em Sílvio Romero de perfil, Artur Guimarães, um dos destinatários mais


constantes do intelectual sergipano, afirmou que era comum ele dirigir-se de modo tão
informal aos amigos intelectuais e que estes sempre riam ao abrir as cartas do mestre.943
Foi justamente nas cartas que destinou a esses intelectuais que deixou entrever
indícios de suas práticas intelectuais. Nelas é possível perceber que os missivistas trocavam
constantemente materiais bibliográficos. Trocavam jornais, revistas, livros de autoria própria,
acompanhados do pedido de atenta avaliação, ou livros de outros autores que consideraram
interessantes, dignos de serem lidos.
Em missivas a Artur Orlando pede o nº 2 de Brasil Moderno944, Menores e loucos,
de Tobias Barreto945, Em cartas a Artur Guimarães pediu que comprasse e depois lhe
emprestasse História de Portugal de Schoeffer e uma obra de Leite de Vasconcelos sobre
946
Portugal Pré-Histórico e Antigo ; solicitou também o envio de algum jornal, o Gazeta de
Notícias, por exemplo, para que pudesse ficar “por dentro das notícias políticas e
literárias”947. Na correspondência mantida com Artur Orlando pediu o envio sistemático da
Província de Pernambuco e que providenciasse o número da Revista do Instituto
Arqueológico e Geográfico Pernambucano, no qual saiu o Diálogo das Grandezas do Brasil
de Bento Teixeira Pinto948.
Em epístolas a Artur Orlando agradeceu o envio do relatório sobre o estado da
Instrução Pública em Sergipe949, do Diálogo das Grandezas do Brasil950, do folheto sobre o
clima951 e do artigo do Brasil Moderno952. Acusou o recebimento do Diário953 e de artigos

943
GUIMARÃES, Artur. Sílvio Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p.
41.
944
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 283.
945
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 26 de novembro de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 303-304.
946
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 2 de fevereiro de 1898. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 234-236.
947
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 22 de julho de 1900. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 236-237.
948
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 12 de junho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 303.
949
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 13 de outubro de 1891. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 279.
950
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de setembro de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 312
951
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de julho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 287-289.
952
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
953
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de fevereiro de 1904. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 294-295.

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sobre Direito Penal954. Afirmou ter recebido também os volumes de Guerra e Paz e o do
Greef, mas informou que não teve tempo de lê-los955. Lamentou não ter recebido de folheto
com o parecer sobre a Constituição de São Paulo956. Na correspondência que manteve com
Almáquio Diniz informou que a sua família recebeu a Estética na literatura comparada e
guardou, mas não recebeu Escarpa e Na Imortalidade que também foram remetidos pelo
amigo.957 Afirmou ter recebido livros de Almáquio para apreciar958. Acusou o recebimento da
revista Seara de Rute, editada pelo amigo, e de livro que o mesmo escreveu sobre Domingos
Guimarães959. Em carta enviada a Artur Guimarães agradeceu a remessa do Jornal do
Comércio960.
Prometeu a Artur Orlando o envio de Pátria Portuguesa, de Teófilo Braga e
exemplares de Brasil Social961, de artigos sobre a educação nacional que estava publicando no
Diário de Notícias962, os artigos Haeckelianismo em Sociologia, que publicou na Revista
Brasileira, e História do Direito Brasileiro no Século XVI, que saiu na Revista da Academia
Livre de Direito, a memória Literatura Brasileira que sairia no Livro do Centenário e Vários
escritos de Tobias Barreto963, e um exemplar de História do Brasil através da biografia de
nossos heróis.964 Prometeu ainda enviar Parnaso Sergipano e Martins Pena assim que
saíssem do prelo.965 Em cartas a Almáquio Diniz prometeu enviar o primeiro capítulo das
Zeverissimações e algumas palavras sobre seu livro966. Prometeu enviar também A Geografia

954
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de fevereiro de 1900. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 288-289.
955
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 1 de fevereiro de 1896. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
956
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 10 de junho de 1911. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 311-312.
957
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz sem data. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de Sílvio Romero.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 247-248.
958
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
959
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 12 de agosto de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 245.
960
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 12 de setembro de 1900. In: GUIMARÃES, Artur. Sílvio
Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p. 83-84.
961
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 3 de fevereiro de 1907. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 304-305.
962
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 13 de outubro de 1891. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 279.
963
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 24 de fevereiro de 1900. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
964
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 14 de outubro de 1908. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 307.
965
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 29 de julho de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
966
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 12 de agosto de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de
Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.

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da Politicagem e Castilhismo, obras que já havia remetido, mas que não chegaram ao
destinatário. Lamentou não poder reenviar A Bancarrota por esta estar esgotada967. Em carta a
Magalhães Carneiro perguntou se recebeu Minhas Contradições e se deu um exemplar ao
amigo Prado Sampaio.968
Além da troca de materiais bibliográficos a correspondência de Sílvio permite
entrever alguns hábitos de leitura. Em carta a Almáquio Diniz afirmou que faria “um passeio
matinal” pelos livros do interlocutor.969 Essa informação é um indício de que preferia a leitura
matutina. Esta suspeita é confirmada por Artur Guimarães, que menciona que durante todo o
tempo de convívio nunca viu o mestre ler à noite970.
Através da leitura das cartas também é possível perceber alguns fatores que às
vezes atrapalhavam sua leitura: a agitação dos filhos menores e as reiteradas doenças e mortes
de seus familiares. Na mesma missiva a Almáquio Diniz informa que não fez as leituras
prometidas por causa da reinação de suas crianças: “O prometido é devido; mas é com vagar.
Não é por falta de amizade; é por invalidez e falta de sossego... Seis meninos a berrar!...
Tenha paciência comigo!”971. Em carta a Artur Orlando afirmou que para fugir do barulho
aproveitou as férias do Colégio Pedro II e foi para Campanha, Minas Gerais, a fim de ter
sossego para ler e escrever o terceiro volume da História da Literatura Brasileira972. Em carta
ao referido amigo asseverou que em virtude da doença da sua esposa Mocinha e da doença de
Maria e da morte de Aquiles, seus filhos, não estava fazendo muita coisa; apenas tirou provas
da nova edição de Cantos e Contos Populares do Brasil.973 Em outra missiva informou ao
destinatário que a filha Regina morreu e não estava podendo escrever.974
Sílvio sentia a necessidade de externar para os letrados mais próximos a
apropriação que fazia das leituras. Nas correspondências mantidas com Artur Guimarães,
Artur Orlando e Almáquio Diniz compartilhava freqüentemente essas experiências.

967
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz sem data. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário de Sílvio Romero.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 247-248.
968
ROMERO, Sílvio. Carta para Magalhães Carneiro sem data. In: CARNEIRO, Magalhães. Sílvio Romero na
intimidade. Aracaju: Imprensa Oficial, [s.d.], p. 9-10.
969
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
970
GUIMARÃES, Artur. Sílvio Romero de Perfil. Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p.
62.
971
ROMERO, Sílvio. Carta para Almáquio Diniz de 20 de fevereiro de 1911. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 244-245.
972
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de fevereiro de 1899. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 308.
973
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 8 de janeiro de 1897. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 283-284.
974
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de fevereiro de 1909. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 308-309.

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Nas cartas que escreveu para Artur Orlando entre 1896 e 1908 fez diversos
comentários sobre suas leituras. Em 1896, comentou que estava fazendo a História e
Geografia do Estado de Minas Gerais, um trabalho sob encomenda, e que a leitura de textos
975
sobre os bandeirantes colocaram-lhe “os miolos em água" . Também comentou os textos
produzidos pelo amigo. Em 1903, comentou que gostou muito do artigo que publicou na
Gazeta, ficou "mergulhado no infinito de satisfeito” a ponto de “relê-lo e tornar a ler"976. Em
outra missiva do mesmo ano afirmou que adorou seus três artigos sobre o Japão. Achou-os
977
“magníficos, esplêndidos!” . Em 1904, mencionou que gostou dos textos que recebeu:
"Devorei, deixando tudo que estava fazendo, de lado!”978. Em 1906, comentou a leitura de um
livro do amigo. Informou que estava na página 125 e estava gostando, principalmente da
comparação entre o direito criminal americano e europeu e das discussões sobre a
coexistência do arbitramento, o ensino pan-americano e o direito econômico979. Na carta
seguinte, após terminar a leitura, comentou que no oitavo capítulo gostou das páginas sobre a
economia da família, da cidade e da nação; no nono das páginas sobre direito econômico,
confederação do continente americano; no décimo das páginas sobre o papel dos negros na
América, sobre a participação de Nabuco, Patrocínio, João Alfredo e da Princesa Isabel na
Abolição; no décimo primeiro das páginas sobre o papel da religião e das ciências nas
sociedades modernas, a comparação entre protestantes e católicas e a discussão sobre lógica
racional e lógica emocional. Porém, ficou chocado com a citação de Castelar no começo do
livro “na qual aquele demônio nos molestava com loucas fantasias de latinos sobre
germânicos”. Afirma que se tivesse visto a tempo teria pedido para tirar980. Em 1908, elogiou
os seus livros O Porto e a Cidade do Recife. Achou muito boas as notas sobre clima,
temperatura, salubridade, chuvas, águas e produções naturais, recursos de viver e as
considerações gerais de caráter biológico e social981. Numa última missiva sem data afirma
que leu os textos Zonas geográficas, Flora e fauna brasileiras e Mato Grosso. Afirma que o

975
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 1 de fevereiro de 1896. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 282-283.
976
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 14 de setembro de 1903. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 292-293.
977
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 11 de outubro de 1903. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 293.
978
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 23 de junho de 1904. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 295-296.
979
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 6 de julho de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 301.
980
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 17 de julho de 1906. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do
Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 301-302.
981
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando de 23 de setembro de 1908. In: CHACON, Vamireh. Da Escola
do Recife ao Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 305-306.

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primeiro tem novidades e instrui. O segundo tem ainda mais novidades e instrui mais. O
terceiro contém pontos de vista mais inesperados e é mais instrutivo ainda. Sugere que o livro
deve-se chamar Brasil: o solo e a sociedade ou Brasil: a terra e o povo. De antemão dá-lhe os
parabéns982.
Nas cartas enviadas à Artur Guimarães faz comentários mais minudentes sobre as
suas leituras. Em 1904 escreve:

tendo acabado todas as leituras de preparo para o seu amplo quadro social do
Brasil durante os quatro séculos de sua existência, máxime o último, submeti
a uma leitura rigorosa e de conjunto os originais de seu livro e fiquei
satisfeito. Vamos ser os primeiros a falar não no Le Play, mas na sua bela
escola de análise social, sob a direção de seus discípulos. Meti-me no
inferno, isto é, a fazer um quadro do estado real, positivo, exato, do Brasil,
seu povo, sua cultura, sua vida social e política, segundo os princípios da
escola de Le Play, e estou abarbado. Tive de ler quarenta e tantos livros, e
estou abarrotado...983

Em missiva de 1910, comenta a apropriação de outras leituras:

Li o Mahan, escritor americano, sobre raça branca e seu futuro e perigos que
corre, e gostei. Estou acabando o Lapouge, que é muito bom para as
questões técnicas na antropologia. Ele e o Ammon são os fundadores da
antropossociologia, ciência que reúne a antropologia à sociologia, une Broca
a Spencer, como a escola de Le Play une a sociologia à etnografia, une
Spencer a Jubainville e outros. Como processo e método para estudar e
classificar povos, a escola de Le Play é melhor. Leva-lhe vantagem a de
Lapouge e Ammon, quando estabelece no fundo de tudo o elemento raça,
que foi sempre a minha velha mania. Há, porém, concordância nas duas
escolas quanto aos resultados: o homo europaeus de Lapouge é o
particularista de Le Play e consortes; e o alpinus e mediterranaeus de
Lapouge são ali os comunários de Le Play984.

Através dessas longas, mas necessárias, citações dos trechos das missivas que
trocou com os amigos, é possível perceber que Sílvio fazia predominantemente leitura
extensiva. Ao entrar em contato com os impressos ele ia comparando os autores, identificando
as semelhanças e diferenças, de modo a selecionar as idéias mais adequadas para forjar as
suas representações do mundo social.

982
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Orlando sem data. In: CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao
Código Civil. Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Simões, 1969, p. 313-314.
983
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 1904. In: GUIMARÃES, Arthur. Sílvio Romero de perfil.
Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p. 34.
984
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 14 de fevereiro de 1910. In: RABELLO, Sílvio. Itinerário
de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 241-242.

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Durante e após a realização das leituras, além de comentá-las nas missivas,


“afundava a pena no papel” para escrever os seus próprios textos. Para Sílvio leitura e
escritura não eram momentos separados. Ele sentia necessidade de expressar a sua
apropriação. A partir dos relatos apresentados percebe-se que ele dedicava-se com mais afinco
às leituras quando precisava escrever algum “volume”. Em carta a Artur Guimarães comentou
que para escrever o Brasil Social teve que ler “quarenta e tantos livros”985.
A leitura das cartas evidenciou que o intelectual sergipano costumava trocar
materiais bibliográficos com os destinatários, principalmente com Artur Orlando e Artur
Guimarães; que preferia a leitura matutina, que às vezes precisava interromper a leitura e a
escrita por causa da reinação dos filhos ou por motivo de doença ou morte de seus familiares,
e que até mesmo necessitava mudar de cidade para poder produzir. Revelou também que ele
se apropriava das leituras ao seu modo, construindo a partir delas suas próprias representações
do mundo social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Venâncio (Orgs.). Destino das letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo:
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privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 113-
161.

985
ROMERO, Sílvio. Carta para Artur Guimarães de 1904. In: GUIMARÃES, Arthur. Sílvio Romero de perfil.
Porto: Tipografia A Vapor de Artur José de Souza, 1915, p. 34.

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CULTURA E IMAGEM: INSTRUMENTOS DE COMPREENSÃO DOS


CONCEITOS MATEMÁTICOS NO LIVRO DIDÁTICO

Josoel Pereira da Silva–UEFS


Ginho.libero@gmail.com

O foco específico desse estudo são os conhecimentos geométricos presentes no cotidiano


quilombola, na construção, utilização e consumo de diversos tipos de objetos e produtos,
desde utensílios domésticos, até a produção artística, passando pela alimentação, vestuário e
habitação, comparando-os com os conhecimentos geométricos presentes nos livros didáticos
utilizados nas escolas da região que atendem à comunidade. Almeja-se através da referida
pesquisa a possibilidade de retratar as diferentes percepções das imagens e das figuras
geométricas presentes no livro didático, por entendermos que reconhecer a importância da
valorização da matemática praticada pelos diversos grupos culturais, é sinônimo de respeito
aos conceitos informais construídos pelos indivíduos em questão, destacando sua relevância e
analisando as influências culturais nas interpretações de tais símbolos, através de suas
experiências, preservando a diversidade, eliminando a desigualdade e mostrando a
matemática como uma disciplina humanística.

Palavras-chave: Matemática; Geometria; Cultura; Quilombola.

1. INTRODUÇÃO.

“Nossa proposta é ensinar uma Matemática viva”,


uma Matemática que vai nascendo com o educando
enquanto ele mesmo vai desenvolvendo seus meios
de trabalhar a realidade na qual está agindo.”
(D´Ambrosio, 1991).

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A matemática tem sido estudada em seu contexto histórico por muitos autores, e
sob os mais diferentes aspectos, que retratam a trajetória desta ciência em suas diversas
ramificações, enfatizando, sobretudo, a natureza dos conteúdos, sua aplicação e as
transformações ocorridas ao longo da história. A aplicação desta ciência e seu
desenvolvimento relatam, sobretudo, a matemática praticada nos meios acadêmicos, não
levando em consideração a forma e a apropriação de uma matemática contextualizada,
produzida em comunidades de culturas marginalizadas, que utilizam para essa construção
seus conhecimentos de origens social, cultural e étnica.

Tendo como foco de estudo a comunidade de quilombolas, situado no município


de Irará, no estado da Bahia, buscamos mostrar uma análise das influências dos fatores sócio-
culturais sobre a aprendizagem matemática, privilegiando os elementos culturais presentes na
comunidade, valorizando a compreensão dos conhecimentos matemáticos a partir dos
conhecimentos locais.

Para Geertz (1997) as configurações do saber são sempre locais e não podem ser
separadas de seus instrumentos e de seus invólucros. Assim, a análise dos significados surge
de um contexto social onde a interpretação dos símbolos ganha significados, e são como
sistemas de símbolos públicos interpretáveis. Compreende-se assim que as mais variadas
formas de saber estão relacionadas com a observação e a interpretação que cada indivíduo
realiza, o que nos leva a concluir que cada aluno na sala de aula produz significados através
dessas interpretações, fazendo relações com suas informações externas e transformando assim
em conhecimento científico tais interpretações. Ainda segundo Geertz (1989, p.61):

As implicações mais gerais dessas interpretações: e um ciclo recorrente de


termos – símbolos, significado, concepção, forma, texto [...] cultura – cujo
objetivo é sugerir que existe um sistema de persistência, que todas essas
perguntas com objetivos tão diversos, são inspiradas por uma visão
estabelecida de como devemos proceder para construir o relato da estrutura
imaginativa de uma sociedade.

A matemática que aqui pretendemos abordar procura lançar um olhar aprofundado


sobre a imagem mostrada nos livros didáticos de matemática do ensino fundamental,
concernente ao estudo das formas geométricas, contrapondo-se com os significados que os
indivíduos produzem no seu imaginário, significados esses oriundos da prática cultural.
Conforme afirma Galanter e Gerstenhaber, (apud Geertz, 1989, p.91):

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O pensamento imaginário nada mais é que construir uma imagem do


ambiente, sendo que o modelo corre mais rápido que o ambiente, e predizer
que o ambiente se comportará de acordo com o modelo... O primeiro passo
para a solução de um problema consiste na construção de um modelo ou uma
imagem dos “aspectos relevantes” do [ambiente].

Os livros didáticos de matemática não corroboram para a diminuição das


diferenças culturais presentes na interação entre a pluralidade de cultura existente na sala de
aula e a conseqüente associação com as imagens das formas geométricas presente nos
mesmos. Deve-se ter em vista que a compreensão dos conhecimentos se dá por meio dessa
interação, isto é, mesmo que ultrapassem as fronteiras culturais o indivíduo mantém suas
características sociais, deve-se observar, também, as distinções de etnia no caso da
comunidade em questão, seus membros como fator preponderante na construção de sua
identidade.

Conforme Weber (apud Poutignart e Fernart, 1998, p. 37), grupos étnicos são:

(...) esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade
de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes,
ou os dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que
essa crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco
importando que a comunidade exista ou não objetivamente.

2. A MATEMÁTICA COMO PRÁTICA CULTURAL

A valorização dos signos presentes na cultura quilombola e seu domínio instrutivo


das formas geométricas podem contribuir para a produção do conhecimento matemático, a
partir das relações existentes entre a matemática tradicional contida no livro didático e a
Etnomatemática. Uma abordagem das geometrias planas, espaciais e métricas, enfocando os
aspectos da cultura para uma observação de como tais figuras foram concebidas, qual a
unidade de medida utilizada, como é mensurado o volume dos utensílios produzidos pelos
indivíduos é determinante para a construção do conhecimento matemático, isto é, é preciso
tomar essa cultura como ponto de partida para explorar e investigar o conhecimento
matemático.

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As imagens, figuras e desenhos utilizados nos conteúdos de geometria presentes


nos livros didáticos são relevantes, para contextualização do problema em matemática, pois
servem como um instrumento, uma ferramenta ilustrativa, um ponto de partida, isto é um
elemento auxiliar na compreensão e entendimento para a aprendizagem. Daí infere o seguinte
questionamento: como o individuo produz seus significados tomando como base tais imagens
e desenhos?

Podemos então considerar que cada indivíduo faz uma interpretação de suas
experiências e organiza seus significados, daí se esta percepção for descrita por um texto, uma
idéia que implicitamente determine um problema de resolução através dos conhecimentos da
geometria, será conseqüentemente interpretada de várias maneiras, desenvolvendo diversas
concepções. A variedade de interpretações na sala de aula, determinantes para a ampliação
das barreiras interpretativas em virtude da homogeneidade de sentidos presente nesse
ambiente, acarreta, diferentes formas de construção de um significado, presentes no
imaginário de cada indivíduo e decorrentes da pluralidade de culturas presentes na sala de
aula. Tais indivíduos são oriundos de ambientes diversos, com simbologias construídas
socialmente conforme seu contexto histórico e, sobretudo sua localização geográfica. Durad
(2004, p.91) esclarece que:

[...] para sua formação todo símbolo necessita das estruturas dominantes do
comportamento cognitivo inato do sapiens. Assim, os níveis “da educação”
se sobrepõem na formação do imaginário: em primeiro lugar encontra-se o
ambiente geográfico [...], mas desde já regulamentado pelo simbolismo
parentais da educação [...] e das aprendizagens.

A interpretação evolutiva propõe um padrão cultural que consiste em esquemas e


pode ser identificado como uma estrutura de pensamento que leva a proposições que associam
a dificuldade do conhecimento matemático de alguns povos a uma deficiência na capacidade
intelectual e não à carência de uma prática simbólica adequada ao pensamento matemático, ou
considera a mente humana o produto de uma cultura moderna, sem qualquer participação de
uma possível evolução gradual da mente, este é um pensamento que não reflete a realidade,
uma vez que, conforme afirma Geertz (1989, p.90):

[...] parece inteiramente errônea a opinião aceita de que o funcionamento


mental é, basicamente, um processo intracerebral, que só pode ser auxiliado

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e amplificado secundariamente por vários mecanismos artificiais [...], o


cérebro humano é inteiramente dependente dos recursos culturais para o seu
próprio funcionamento. Assim tais recursos não são apenas adjuntos, mas
constituinte da atividade mental.

Pensando dessa forma, tomamos como objetivo principal desse trabalho analisar a
influência cultural na construção do conhecimento matemático a partir das relações entre a
matemática tradicional, presente nos livros didáticos, e a Etnomatemática, levando em
consideração os significados da prática geométrica executada pela comunidade quilombola de
Irará, representada na construção dos utensílios domésticos, estabelecendo com isso,
concepções relacionadas entre as suas experiências anteriores e as imagens e desenhos
utilizados para a contextualização dos problemas de geometria plana, espacial e métrica.

Para isso, também será necessário:

• Analisar a linguagem simbólica utilizada pela comunidade quilombola de Irará


na construção dos conhecimentos matemáticos;

• Fazer um estudo comparativo entre o conhecimento prévio dos membros da


comunidade quilombola de Irará e as imagens apresentadas nos livros didáticos
utilizados nas escolas localizados na comunidade quilombola e circunvizinhas a
esta;

• Analisar as imagens das formas geométricas apresentadas nas construções


artesanais e na arquitetura da comunidade;

• Investigar a relação existente entre a matemática tradicional presente no livro


didático utilizado pela comunidade e a Etnomatemática, nos aspectos sociais,
culturais e étnicos, no tocante à geometria plana, espacial e métrica.

O tema aqui abordado se condiciona a uma visão importante que temos sobre a
historiografia da matemática no que diz respeito à construção do conhecimento pelas camadas
sociais discriminadas, que têm muitas vezes esta historicidade negada, uma vez que a idéia
refletida nas imagens dos livros não reflete a realidade local e está focalizada no modo de vida
das regiões sul e sudeste do país, refletindo não só uma imagem descontextualizada do ponto
de vista social, como também mantendo uma barreira intransponível entre o universo cultural
dos quilombolas e a proposta de leitura de imagem que privilegia as informações externas.
Essa proposta pode favorecer, para que não se perca a diversidade cultural e manter vivos

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seus costumes e tradições, contribuindo para que a relação étnica fortemente estabelecida pelo
grupo também seja preservada como forma cultural e não como um processo de exclusão,
conforme afirma Fredrik Barth apud Poutignart e Fernart (1998, p.188):

As distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e


aceitação, mas são muito ao contrário, freqüentemente as própria fundações
sobre as quais são levantadas os sistemas sociais englobantes. A interação
em um sistema social como este não leva ao seu desaparecimento por
mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer apesar do
contato inter étnico e da interdependência dos grupos.

Justificamos, pois, a escolha do tema diante das leituras feitas no decorrer dos
nossos estudos, que apontaram a necessidade de verificar até que ponto as imagens grafadas
nos livros de matemática do ensino fundamental, corroboram com a produção dos
significados a partir das figuras geométricas presentes no cotidiano da comunidade,
proporcionando a construção do saber matemático. Buscaremos desenvolver essa pesquisa
baseados na perspectiva de que os alunos da comunidade e os professores, enquanto sujeitos
ativos imersos em experiências próprias de origem cultural, social e econômica distintas e a
conseqüente exposição de figuras geométricas apresentadas nos livros didáticos determinam
possibilidades interpretativas, principalmente na geometria plana e espacial, como esclarece
Souza (1987, p.13):

São significados que medeiam relações entre o indivíduo e o exterior a este,


sofrendo constantes transformações porque são construídos ao longo da
história dos seres humanos baseados nas relações que o homem tem com a
concretude.

Entendemos então que é necessário mostrar que a produção dos significados


geométricos tem influências culturais, e que é bastante relevante uma discussão a cerca deste
assunto, tentando produzir uma reflexão sobre a forma como são trabalhadas as figuras e
imagens presentes nos livros didáticos do ensino fundamental utilizados nas instituições de
ensino que recebem os alunos oriundos das comunidades quilombolas, visando contribuir para
a preservação desta cultura, melhorando a convivência com a sociedade e eliminando a
discriminação.

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3. PRÁTICAS ETNOMATEMÁTICA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA

O nascimento dessa nova matemática se dá pela necessidade de lançar um olhar


mais abrangente sobre o conhecimento social de cada indivíduo. Esse conhecimento,
enfatizado na década de 1970, apresenta uma forte reação contra a maneira imposta de
apresentação da matemática através de uma só visão, como um conhecimento universal e
caracterizado por divulgar verdades absolutas.

Daí a necessidade de se privilegiar a matemática aplicada pelos artesões, pelos


pescadores, vendedores de rua etc., como defende a nova vertente do estudo da matemática
defendida por Ubiratam D´Ambrosio, a Etnomatemática, apresentado pelo autor em 1985 no
seu livro “Etnomathematics and its Place in the History of Mathematics”.

As origens e a leitura das formas dos utensílios, e a analise da literatura utilizada


para associar tal conhecimento oriundo de uma forma de organização social, delimitada por
contrastes de uma série de conteúdos culturais como território, línguas, costumes ou valores
comuns, são fatores determinantes e devem ser utilizados para entender de que maneira a
comunidade constrói seus conceitos geométricos, portanto não se devem considerar estes
indivíduos como verdadeiros “depósitos” de conhecimento, uma vez que estes tem anseios,
esperanças e duvidas significativas do seu contexto, conforme afirma Paulo Freire (1984,
p.84):

Simplesmente não podemos chegar a operários, urbanos ou camponeses,


estes, de modo geral, imersos num contexto [...] colonial, quase
umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes
que transformadores, para a maneira de concepção “bancária”, entregar-lhes
“conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no
programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.

Os estudos dos membros da comunidade, além de culminarem com a necessidade


de conviver com culturas diferentes, devem adequar-se a um sistema no qual a preocupação
com a imagem trabalhada reflete o cotidiano destes, onde é levada em consideração a
valorização dos signos da cultura da comunidade para a produção do conhecimento

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matemático, levando em conta uma organização e sequenciação do aprendizado, que obedece


a uma estrutura lógica de conteúdos organizados, e esses favorecem aos estudos mais
avançados, ou seja, conteúdos influenciam os alunos no sentido de promoverem para estes
uma formação continuada. D`Ambrosio (1999) afirma que:

A proposta historiográfica que está implícita no programa Etnomatemática


teve sua origem na busca de entender o fazer e o saber matemático de
culturas marginalizadas, mas remete, sobretudo, à dinâmica da evolução
desses fazeres e saberes, resultante da exposição a outras culturas. [...] O
encontro cultural assim reconhecido, que é essencial na evolução do
conhecimento, não estava subordinado a prioridades coloniais como aquelas
que estabeleceram posteriormente.

A possibilidade de fazer um estudo das formas geométricas inseridas no contexto


de uma matemática de caráter étnico em sua formação na comunidade quilombola envolve
procurar entender o ciclo da geração, organização intelectual, organização social e difusão
desse conhecimento, com que finalidade estes são ensinados, como são ensinados e, por
conseguinte de que forma a leitura da imagem dos signos presentes na cultura destes
indivíduos nos remetem aos conceitos da Etnomatemática, de maneira tal que seja possível
lançar mão da semiótica como instrumento de compreensão de tais conceitos, que pode ser
evidenciada em virtude do conceito de cultura defendido por Geertz (1989, p.15):

O conceito de cultura que defendo, [...] é essencialmente semiótico.


Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca
de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado.

Considerando a pluralidade de significados que cada indivíduo pode fornecer, e


consequentemente a interação destes de cultura diferenciada com uma nova cultura em sala de
aula, uma micro sociedade que envolve diversos ambientes culturais, e, sobretudo, o
confronto com o livro didático projetado para um ambiente cultural distinto de sua realidade,
interpretaríamos que tais teias produzidas pelos elementos desta sociedade devem fazer um
cruzamento, respeitando os valores estabelecidos em cada cultura, delimitados por suas
concepções formadas a partir dos seus costumes e conceitos pré-determinados, para
possibilitar a construção de um conhecimento matemático das formas geométricas pautado
nas variáveis externas.

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Logo, amplia-se as possibilidades de mostrar que se desenvolvem nas chamadas


nações e populações periféricas, uma matemática voltada para a construção do conhecimento
científico, pautado nas condições históricas originais da organização social, no envolvimento
afetivo, no papel do indivíduo e suas necessidades básicas, observando a cultura como um
produto de símbolos, e não um resultado de mecanismos cognitivos internos, mas como
resposta pública ao relacionamento social, uma vez que segundo, Geertz (1989, p.20).

A cultura, esse documento de atuação, é, portanto pública, [...] o


comportamento humano é visto como uma ação simbólica (na maioria das
vezes: há duas contrações) – uma ação que significa, como a fonação da fala,
o pigmento da pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música, - o
problema se a cultura é uma conduta padronizada ou um estado da mente ou
mesmo as duas coisas juntas, de alguma forma perde o sentido.

Assim não podemos ignorar os conhecimentos prévios desta comunidade no


tratamento das formas geométricas através das imagens grafadas no livro didático ou
estaríamos condenando a sua cultura a um caráter puramente comportamental ou puramente
biológico. A partir daí é possível perceber que a forma de obtenção do conhecimento para a
construção das figuras geométricas presentes no cotidiano dessa comunidade, conseqüente da
sua confecção artesanal de vasos de cerâmicas que detém forma e volume concernentes à
geometria, como também a produção de iguarias do tipo beiju de formas geométricas
definidas, pode contribuir para o aprendizado, de maneira a considerar que os significados das
figuras presentes no seu imaginário propiciam requisitos para uma atividade significativa de
aprendizagem que possibilita a utilização do conhecimento da semiótica para a compreensão
de como os indivíduos constroem seus conhecimentos matemáticos através das imagens,
utilizando para isso uma linguagem própria da sua cultura, conforme afirma Vidal (19,
p.1998).

O ser humano, conhecendo a potencialidade de suas idéias, utiliza-as em


atitudes que afetam historicamente seus comportamentos perante o seu
próprio grupo e outros grupos sociais, e também a Natureza. Essas ações
também modificam o modo como projeta e realiza suas transformações na
cultura material da qual se utiliza para viver. Da cultura de idéia o ser
humano é capaz de atribuir significados a simples sinais aprendidos em seu
ambiente e, destarte desenvolver signos que podem compor os elementos
significantes de suas linguagens “verbais e não verbais”.

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4. AUTORES E CONCEITOS: DEMARCANDO TERRITÓRIOS

D`AMBROSIO, Ubiratam. O Programa Etnomatemática e Questões


Historiográficas e Metodológicas, e Etnomatemática: Um Programa. Esta obra dera-nos o
embasamento teórico a cerca do conhecimento da Etnomatemática, mostrando de que forma
os conteúdos matemáticos devem ser tratados, partindo do saber fazer do indivíduo, isto é, da
sua prática contextualizada, para chegar na construção de conceitos abstratos. Já na obra de
DURAND, Gilbert. O Imaginário: Ensaio acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem,
procuramos em particular entender com símbolos distribuídos pelas sociedades, constrói um
permanente intercâmbio entre o imaginário e o ambiente histórico, geográfico e social.

Buscamos os trabalhos de GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas e O


Saber Local, com o objetivo de entender a influência cultural na interpretação dos
significados da imagem, dos desenhos e ilustrações, uma vez que, na primeira obra estão
reunidos ensaios que relaciona os diferentes tipos de cultura, baseados em argumentos
centrados no social e partindo de estudos empíricos. A segunda aborda através de ensaios o
conhecimento se constrói a partir da compreensão de significados localizados, próprios do
contexto cultural onde são produzidos. A obra de GOMES, Luis Antonio Vidal de Negreiros.
Desenhando, nos mostra que o desenho pode ser traduzido como uma forma de comunicação,
uma linguagem que pelo uso dos signos nos possibilita novos significados, e na obra de
POUTIGNAT e FENART. Philippe e Jocelyne Streiff-. Teorias da etnicidade. Seguido de
Grupos étnicos e suas Fronteiras de Fredrik Barth, nos ajudaram a compreender a diferença
entre a identidade étnica e outras identidades coletivas, na segunda parte do livro, vemos que
as categorias étnicas são uma forma de organização social, e que a compreensão da etnicidade
é a compreensão do seu contexto.

O livro, de FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, assim como a obra O Ensino


da Matemática: Um processo entre a Exposição de DANTAS, Marta Maria de Souza foram
utilizadas como bibliografia complementar.

5. CAMINHOS A PERCORRER...

O delineamento da metodologia da pesquisa exige uma maneira de interpretar que


permita ao investigador dar conta, em profundidade, da dimensão do objeto estudado. Sendo

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assim, usaremos estratégias metodológicas que destaquem nem tanto o produto final da
pesquisa, mas que valorizem o processo percorrido até o resultado final da mesma. A
metodologia aplicada será o estudo de caso, porque entendemos ser uma alternativa
metodológica indicada quando estamos interessados em descobrir algo novo nas ciências
sociais e quando queremos enfatizar um contexto específico, no qual a pesquisa se
desenvolve.

Optamos por analisar a produção do significado das figuras geométricas na


comunidade quilombola e sua relação com as imagens e desenho no livro didático de
Matemática, buscando o aporte teórico do método qualitativo com enfoque participativo, onde
os agentes envolvidos no processo participam como atores. Para isso selecionaremos algumas
técnicas de coletas de dados primários – questionários, entrevistas, depoimentos, observação
participante, grupo focal e caderno de campo – e dados secundários – análise documental,
teses e monografias, livros didáticos, fotos e filmagens, diários de aula, e como fontes,
Arquivo Geográfico Histórico, os arquivos da Fundação Clemente Mariane, Fundação
Palmares, entre outros.

Nessa perspectiva, oferecemos oportunidade para retratar as diferentes percepções


das imagens e das figuras geométrica presente no livro didático, por entendermos que a
importância da valorização da Matemática praticada pelos diversos grupos culturais,
respeitando os conceitos informais construídos pelos indivíduos em questão, especificamente
os conceitos geométricos, destacando sua relevância e analisando as influências culturais nas
interpretações de tais símbolos, através de suas experiências, preservando a diversidade,
eliminando a desigualdade e mostrando a Matemática como uma disciplina humanística.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed – São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BAHIA, Secretaria da Educação. Orientações Curriculares Estaduais Para o Ensino


Médio: Área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias/ Secretaria da
Educação – Salvador: A Secretaria, 2005.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.


Parâmetros Curriculares Nacionais – Matemática, v.3. Brasília: MEC / SEF, 1997.

D`AMBROSIO, Ubiratam . O Programa Etnomatemática e Questões Historiográfica e


Metodológicas. In: _______. VI congresso Brasileiro de Filosofia, São Paulo: 1999.

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____________. Etnomatemática: Um Programa. In: ________ Educação Matemática em


Revista – SBEM (1993). nº 1, pp. 5-11

DANTAS, Marta Maria de Souza. O Ensino da Matemática: Um processo entre a


Exposição e a Descoberta. Salvador. Centro Editorial e Didático da UFBA, 1987.

DURAND, Gilbert. O Imaginário: Ensaio acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem.


– 3ª ed. Rio de Janeiro. DIFEL, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. Ed. Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1987.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e


Científicos, 1989.

____________.O Saber Local: Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa. Rio de


Janeiro, Vozes, 1997.

GOMES, Luis Antonio Vidal de Negreiros. Desenhando: Um Panorama dos sistemas


Gráficos. Santa Maria. Editora da UFSM, 1998.

POUTIGNAT e FENART. Philippe e Jocelyne Streiff-. Teorias da Etnicidade. Seguido de


Grupos étnicos e suas Fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.

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A INCLUSAO DE ALUNOS SURDOS NO ENSINO REGULAR: A


IMPORTÂNCIA DA SALA DE RECURSOS LUAN FAGUNDES
DOMINGOS (2003 a 2008)

Mônica de Góis Silva Barbosa - SEED/SE


monicagsb@yahoo.com.br

A sala de recursos Luan Fagundes Domingos, inserida na Escola Estadual Vicente Machado
Menezes, localizada no município de Itabaiana, tem como função apoiar os estabelecimentos
de ensino da Diretoria Regional de Educação Três - DRE’03 que atuam na inclusão de alunos
com necessidades especiais no ensino regular. Esse espaço oferece atendimento educacional
especializado de forma complementar ao processo de escolarização. Assim, foi feita uma
análise das atividades realizadas em sua atuação de 2003 a 2008. Como fontes foram
utilizadas documentos da escola e da sala de recursos e colhidos depoimentos de professores e
alunos. A presente pesquisa teve o objetivo de mostrar como foi realizado o trabalho dessa
sala durante esse período e sua importância para a comunidade regional. Após a coleta de
dados, foi feita análise e constatado que, desde a sua implantação, essa classe tem contribuído
para a inclusão e desenvolvimento de vários alunos, como também para o apoio e orientação a
professores.

Palavras-chave: Atendimento especializado; Inclusão; Sala de recursos.

Durante muitos anos, cegos, surdos e deficientes mentais foram proibidos de


estudar, pois se pensava que a educação não era para tais pessoas. Durante o período colonial,
os considerados anormais eram rejeitados pela família ou esquecidos em clínicas, asilos ou
manicômios no Brasil. Apesar da criação de dois importantes centros no século XIX: o
Imperial Instituto dos Meninos Cegos em 1854 (atual Instituto Bejamin Constant - IGB) e em
1857 o Instituto dos Surdos Mudos (atual Instituto Nacional de educação de Surdos - INES), a
educação dos deficientes ficou esquecida durante décadas.
Num primeiro momento, essas pessoas eram preocupações apenas de médicos e
especialistas que tinham como objetivo tratar daqueles que apresentavam um

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comprometimento maior. A partir de 1930, começa-se a criar algumas escolas para esses tipos
de aluno junto a hospitais, nas quais os educadores teriam que corrigir o que consideravam
falhas, como por exemplo, ensinar um surdo a falar.
Em 1962, surge no Estado de Sergipe o Centro de Reabilitação Ninota Garcia
que, segundo Souza foi “pioneiro na atuação com Educação Especial no Estado e o terceiro
do país” (2000, p.73-74).
No século XX duas importantes instituições surgiram no Brasil: a Sociedade
Pestalozzi (1934) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE (1954). Esta
última aparece em Sergipe em 1967. Além disso, foi criado pelo governo federal, em 1973, o
Centro Nacional de Educação Especial - CENESP. Dentre as suas diretrizes encontrava-se a
criação de salas de recursos. E foi neste ano que Sergipe volta o seu olhar para educação
especial: “O Estado só vem assumir a educação especial como sua responsabilidade, em
Sergipe, no ano de 1973, através da solicitação do MEC (Ministério da Educação e Cultura)”
(SOUZA, 2000, p.75).
Em 1977 já se verifica a existência de várias classes especiais implantadas nas
escolas estaduais de ensino regular na capital e no interior. Algumas escolas especializadas
vão surgindo, como a Sociedade de Ensino e Reabilitação Rosa Azul (1979), o Centro de
Educação Especial João Cardoso do Nascimento Junior (1989) e a Associação de Pais e
Amigos dos Deficientes Auditivos - APADA (1991), entre outras. Até então, todas essas
instituições realizavam um trabalho de maneira segregacionista ou, no máximo, promovia
apenas a integração de alunos com necessidades especiais com os considerados “normais”.
Finalmente, a partir da década de 1990, aponta-se a inclusão em vez da integração,
principalmente após a Declaração de Salamanca (1994). E a própria Lei de Diretrizes e Bases
da educação de 1996 ressalta que essa modalidade de educação deve ser oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino.
E é neste mesmo ano que a Escola Estadual Vicente Machado Menezes, do
município de Itabaiana, começa seu trabalho na área da educação especial. Criada em 26 de
dezembro de 1994, através do decreto nº. 15.163, a escola oferece inicialmente o ensino
fundamental e a Educação de jovens e adultos. Quando inicia o trabalho na área de educação
especial, teve primeiro como propósito atender a alunos surdos em classes especiais.
A primeira turma especial iniciou com dez educandos surdos e três anos após a
implantação da educação especial já se encontram matriculados trinta e seis alunos surdos.
Entretanto, com o advento da inclusão fez-se necessário adequar a escola às novas exigências.
Assim, em 2003, foram incluídos nove alunos surdos nas turmas regulares das 3ª e 4ª séries

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do Ensino Fundamental. Desta forma, fez-se necessário também inserir uma sala de recursos
na escola para dar o suporte necessário aos alunos surdos incluídos e aos professores. Nesse
sentido, foi criada a sala de recursos Luan Fagundes Domingos, em 2003. A sala recebeu esse
nome para homenagear o aluno surdo Luan que estudou na classe especial e que veio a falecer
em agosto de 2002 com oito anos, devido a problemas de saúde.

A implantação desta sala foi essencial para a inclusão dos alunos surdos, visto que
essa classe é um espaço indispensável para o desenvolvimento dos educandos, pois contribui
com a aprendizagem dos alunos dando o suporte necessário. Sobre isso afirma Alves (2006, p.
15):

O atendimento educacional especializado em salas de recursos


multifuncionais se caracteriza por ser uma ação do sistema de ensino no
sentido de acolher a diversidade ao longo do processo educativo,
constituindo-se num serviço disponibilizado pela escola para oferecer o
suporte necessário às necessidades educacionais especiais dos alunos,
favorecendo seu acesso ao conhecimento.

A sala é equipada com material pedagógico e tecnológico podendo atender alunos


com necessidades especiais de outras escolas, sempre em horário contrário ao do ensino
regular. Como fala Mazzotta (1997, p.52): “A sala de recursos consiste num ambiente que
conta com um professor de educação especial sediado na escola comum, tendo a sua
disposição os materiais e equipamentos especiais”.
É importante frisar que o espaço Luan Fagundes é a única sala de recursos da
Diretoria Regional de Educação - DRE’03 (com sede em Itabaiana/Sergipe) que agrega 14
municípios, totalizando 52 escolas estaduais. No momento esta sala atende alunos
provenientes de povoados e da cidade de Itabaiana, Malhador, São Domingos, Campo do
Brito, Frei Paulo e Carira. Verifica-se, portanto, que a importância do trabalho que este
espaço oferece abrange também outros municípios.
Inicialmente, a referida sala, funcionando em horário integral e com duas
professoras, passa a atender os nove alunos surdos incluídos no ensino regular. No ano de
2004, continua dando atendimento aos nove alunos. Em 2005 matriculam-se quatorze surdos
de 3ª a 6ª séries. Em 2006 treze alunos surdos, uma surdacega e, pela primeira vez, dois
alunos com deficiência mental são matriculados, de 1ª a 5ª séries. No ano de 2007, treze
surdos, dois deficientes mentais, uma surdacega e cega, de 1ª a 6ª séries. Diante da
necessidade, a partir desse ano passa a dá atendimento na sala de recursos três professoras.

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Em 2008, chega a vinte e nove o número de alunos matriculados na sala de


recursos, com faixa etária entre seis a vinte e nove anos, sendo de 1ª a 7ª série e EJA -
Educação de Jovens e Adultos. Dentre eles, são dois alunos cegos, dois com deficiência
mental, um com dificuldade de aprendizagem, uma com Síndrome de Down, duas com
deficiência múltipla (física e auditiva) uma surdacega, um com autismo e dezenove surdos.

Observando o gráfico abaixo, pode-se verificar que desde a implantação desta sala
cresce a cada ano o número de alunos matriculados:

Isso demonstra a importância desta sala para uma comunidade que carece de
atendimento educacional especializado. Entretanto, junto com o aumento de matrículas de
alunos com necessidades especiais diferenciadas surgem também obstáculos para que possa
ser dado o atendimento de qualidade. Entre eles, pode-se destacar a falta de material adequado
para se trabalhar os diversos tipos de comprometimentos, como também a escassez de
educadores com especialização na área. No próprio Plano Nacional de Educação aprovado
pela Lei nº. 10.172 de 2001, pode-se ler alguns desses obstáculos:

Apesar do crescimento das matrículas, o déficit é muito grande e constitui um


desafio imenso para os sistemas de ensino, pois diversas ações devem ser
realizadas ao mesmo tempo. Entre elas, destacam-se a sensibilização dos
demais alunos e da comunidade em geral para integração, as adaptações
curriculares, a qualificação dos professores para o atendimento nas escolas
regulares e a especialização dos professores para o atendimento nas novas
escolas especiais, produção de livros e materiais pedagógicos adequados para
as diferentes necessidades, adaptação das escolas para que os alunos especiais
possam nelas transitar, oferta de transporte escolar adaptado, etc. (BRASIL,
2001, p. 39)

Apesar das dificuldades existentes, esta sala tem realizado um importante papel na
inclusão dos alunos especiais, pois o atendimento que é dado aos alunos no horário contrário

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tem possibilitado aos mesmos um melhor acompanhamento das aulas, como também uma
melhor aprendizagem. Além disso, os professores da sala de recursos estão sempre à
disposição dos professores da inclusão, realizando um trabalho de colaboração e cooperação.
Sobre isso, confirma Alves (2006, p.15)

O atendimento educacional especializado constitui parte diversificada do


currículo dos alunos com necessidades especiais, organizado
institucionalmente para apoiar, complementar e suplementar os serviços
educacionais comuns.

A professora Alessandra Rezende revelou na entrevista concedida, que quando


iniciou seu trabalho na inclusão em 2004, numa turma de 4ª série, não tinha nenhuma
formação para ensinar a surdos e foi um grande desafio. A então professora da sala de
recursos ajudou-a muito emprestando materiais para ela utilizar durante as aulas, além de tirar
dúvidas referentes à metodologia mais adequada. Isso demonstra mais uma vez que não
apenas beneficia os alunos especiais, mas também aos professores possibilitando um trabalho
em equipe com o propósito de realizar a inclusão.
E com esse intuito de proporcionar um ambiente escolar inclusivo e acolhedor para
esses alunos, como também possibilitar uma melhor aprendizagem aos educandos com
necessidades especiais, desde a implantação desta sala vários trabalhos já foram e vem sendo
realizados, visto que:

O atendimento educacional especializado não pode ser confundido com


atividades de mera repetição de conteúdos programáticos desenvolvidos na
sala de aula, mas deve constituir um conjunto de procedimentos específicos
mediadores do processo de apropriação e produção de conhecimentos.
(ALVES, 2006, p. 15)

Portanto, essa classe não pode se limitar a explicar assuntos e tirar dúvidas de
alunos, mas desenvolver atividades que possibilite o desenvolvimento do educando como um
ser agente, tornando-o independente e capaz dentro das suas limitações. Nesse sentido, há
uma preocupação em desenvolver as potencialidades de tais alunos, que têm participado de
eventos estaduais como as olimpíadas especiais, realizada pela UNIMED (2005 e 2007); o III
festival de educação especial (2005), a III mostra de potencialidades de pessoas com

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necessidades educacionais especiais (2006), “Xamego especial” (2008), realizados pela


Secretaria Estadual de Educação.
Além disso, desde 2001 com a formação do coral “Estrelas Silenciosas” por alunos
surdos das classes especiais, é realizado o projeto: Inclusarte na Educação. Com a
implantação da sala de recursos esse projeto foi incluído em suas atividades, permanecendo
até o momento. Através dele as educadoras da sala de recursos se reúnem com as das classes
especiais e planejam atividades voltadas a explorar o potencial dos alunos, estimulando-os a
prática da arte. Isso tem possibilitado aos educandos mostrar suas habilidades artísticas e
esportivas, como também vivenciar momentos que possibilitam aprendizagens significativas.
Como afirma Alves (2007, p. 15):

Para que possamos incluir, devemos respeitar e querer desenvolver o


indivíduo em todos os aspectos dentro do processo de aprendizagem. Deve
haver a inclusão social, respeitando a criança portadora de necessidades
especiais, possibilitando-a da convivência com indivíduos ditos normais,
através de trocas, dando-lhes assim condições necessárias para a
aprendizagem e o ajustamento social.

O trabalho realizado pelas salas de recursos deve proporcionar ao educando


especial esse desenvolvimento integral, preparando-o para a vida em sociedade, mesmo diante
dos obstáculos existentes. Por isso, além das professoras do espaço Luan Fagundes se
mobilizarem para participar dos eventos estaduais, também organizam atividades envolvendo
a comunidade escolar com o intuito de proporcionar um ambiente mais inclusivo.
Assim, em 26 de setembro de 2006, foi realizado o I movimento em homenagem
ao dia nacional do surdo. Este evento envolveu toda comunidade escolar com o intuito de
conscientizá-la da importância da inclusão de alunos surdos. Houve palestras para
sensibilização e apresentação artística dos alunos com surdez e com deficiência mental.
Em 2007, vários projetos foram desenvolvidos, como o projeto “Aprendendo com
os jogos do PAN”, permitindo ao aluno ampliar seus conhecimentos sobre esporte, geografia,
sinais específicos referentes ao assunto, além de possibilitá-los acompanhar de forma
compreensível os acontecimentos do panamericano.
Além disso, foi realizado o projeto “Vivenciando a surdez”, desenvolvido nos
meses de setembro e outubro, que visou despertar nos alunos surdos da escola a necessidade
de se auto-conhecer e de se valorizar como pessoa surda. Para isso, foram desenvolvidas
ações, como palestras de conscientização, debates sobre a condição de ser pessoa surda, visita

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ao Centro de Atendimento ao Surdo-CAS/SE. A realização deste projeto permitiu oferecer aos


discentes surdos uma maior compreensão da realidade, proporcionando saberes necessários
para seu crescimento pessoal e social.
Ainda em 2007 foi realizado também o II movimento em homenagem ao dia
nacional do surdo. Um dia que envolveu todos da escola com palestra e o desenvolvimento de
atividades em LIBRAS valorizando, assim, a língua de sinais.
Na foto abaixo, pode-se verificar a turma de 6ª série apresentando um jogral em
LIBRAS para homenagear os colegas surdos:

(Foto: Mônica de Gois Silva Barbosa. Acervo: Sala de recursos Luan Fagundes Domingos)

Outro importante trabalho desenvolvido foi o projeto “A difusão da LIBRAS no


ambiente escolar”. Tendo como objetivo possibilitar a comunicação entre surdos e ouvintes,
contribuiu para um bom relacionamento entre todos. Assim, foram ministrados mini-cursos de
LIBRAS por doze discentes surdos nas cinco turmas inclusivas em que estudam. Organizadas
em cinco módulos, as atividades foram desenvolvidas semanalmente, com duração de
cinqüenta minutos, de julho a dezembro de 2007. Com essas atividades, foram possibilitados
aos ouvintes (alunos e professores) conhecimentos básicos sobre a Língua Brasileira de
Sinais, permitindo uma maior comunicação e interação com os surdos; interesse de alunos e
professores para aprender mais a LIBRAS; conscientização da importância da língua de sinais
no ambiente escolar e a valorização da LIBRAS na escola.
Em 2008, as professoras tem dado continuidade aos projetos “A difusão da
LIBRAS no ambiente escolar” e “Inclusarte na educação”, pois diante dos resultados
alcançados tem visto a necessidade de dá prosseguimento aos mesmos. Elas também vêm

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sistematizando e organizando outros para serem aplicados no segundo semestre, com o intuito
de possibilitar a inclusão dos discentes com necessidades especiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Possibilitar a inclusão de alunos com necessidades especiais no ensino regular é


um grande desafio. Contudo, constata-se que com a realização de atividades e projetos pela
sala de recursos Luan Fagundes Domingos, passos são dados para que seja possível viver em
um ambiente escolar e social mais inclusivo.

Através desta classe, alunos especiais tem tido um melhor nível de aprendizagem,
como também uma maior formação integral e os docentes das turmas regulares recebem
constantemente o apoio das professoras desta sala. Portanto, o atendimento especializado em
salas de recursos é indispensável para alunos com necessidades especiais, pois na maioria dos
casos, somente nos espaços de recursos é que esses discentes conseguem concretizar sua
aprendizagem.

Apesar dos obstáculos que surgem a cada momento e dos desafios que aparecem a
cada decisão tomada, verifica-se que as tentativas são válidas para proporcionar um ambiente
mais inclusivo. Com as sementes que são plantadas e as folhas que desabrocham, mesmo
diante das provações que existem, torna-se gratificante para educadores que atuam na sala de
recursos colherem os frutos e apreciá-los. Torna-se também prazeroso para alunos sentirem-se
inseridos em um ambiente que tenta acolhê-los e incluí-los.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Denise de Souza. Sala de Recursos Multifuncional. Espaço para atendimento


educacional especializado. Ministério da educação: Secretaria de educação Especial. Brasília,
2006.

ALVES, Fátima. Inclusão: muitos olhares, vários caminhos e um grande desafio. 3 ed. Rio de
Janeiro: Wak Editora, 2007.

BRASIL, Presidência da República. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as


diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: 1996.

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BRASIL, Presidência da República. Lei nº. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano
Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília: 2001.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO SÉCULO XXI: ENTRE A


FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA E A REPRODUÇÃO DE
CLASSES

Manoel Lacerda Santos Júnior (UNIT/UFS)


lacerda_his@yahoo.com.br

A última década do século XX foi marcada por discussões acerca do sistema educacional
brasileiro, questionava-se acerca da qualidade do ensino oferecido nas escolas e sobre
qualificação dos professores, principais promotores do processo ensino-aprendizagem. No
início da década de noventa essas discussões aumentaram, já não dava para esperar, era hora
de rediscutir as políticas educacionais a fim de promover uma educação de significativa
qualidade. Após vasta discussão chega-se a algumas conclusões: é necessária uma
reformulação no processo de formação inicial dos professores, a promoção da formação
continuada e o alargamento da autonomia na sala de aula, isso para que ele possa avaliar a
necessidade de seus alunos e tomar iniciativas efetivas na promoção do processo ensino-
aprendizagem. É dentro deste processo de tantas modificações e transformações do sistema
educacional que se traçará, através da revisão bibliográfica, uma análise do papel social dos
cursos de formação de professores, analisando se estes são formadores de docentes capazes de
desenvolver a consciência crítica, responsável pela mobilidade social, ou se apenas
“adestram” reprodutores de classe.

Palavras chave: Educação, Formação, Professores.

INTRODUÇÃO

O processo de transformação pelo qual o mundo passa, promove a contínua


aquisição de novas visões de homem, de cultura, de sociedade e, sobretudo de educação, pois
não se encontra num processo de estagnação, mas está sempre em busca da descoberta da sua
identidade ou de melhor forma de criar cidadãos críticos, atuantes e, sobretudo aptos a viver
num mundo que cada vez mais privilegia o saber.
Diante dessas vertentes, a educação vai à busca de novos posicionamentos, de

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novas formas de transformação da escola, não visando subitamente à transformação da


sociedade, até porque isso não seria possível, mas conduzir o processo de ação de uma escola
de forma democrática, o que garantirá uma liberdade de trabalho.
A questão em voga não é a acomodação do discurso democrático, mas a procura
de adentrar, mergulhar nas situações, como uma forma de compreendê-las, situá-las e a partir
dali não fazer somente o possível, mas criar as possibilidades dentro da ética profissional de
cada partícipe da unidade escolar. Posto isto, sabe-se que o papel do professor e a sua
valorização é uma constante nos discursos contemporâneos, mas por diversas vezes foge do
grau de compreensão por parte da sociedade.
Acredita-se que o professor vem passando historicamente por um processo de
degradação social, com uma vergonhosa e inaceitável “erosão salarial”, sendo que o próprio
professor passa por uma crise de identidade social. Pois afinal questiona-se: Quem és tu
professor?
Na pesquisa intitulada “Formação de Professores do Século XXI: Entre a
Formação da Consciência Crítica e a Reprodução de Classes” destaca-se a importância do
tema “Função do Docente” o qual se justifica a priorização da escolha do tema devido ao
despertar dos pesquisadores para um momento em que é possível perceber práticas
pedagógicas historicamente desarticuladas e descontextualizadas de valor efetivo para a
sociedade.
Objetivou-se na pesquisa analisar a reestruturação produtiva e a função docente, a
pesquisa visa romper com a velha concepção entre concepção e execução, pensar e fazer,
teoria e prática, no interesse de resgatar o controle do trabalho desenvolvido pelos educadores.
Pode-se afirmar que há uma proletarização do educador a qual vem sendo
fortalecida nas políticas atuais de educação. A pesquisa representa um momento de reflexão, o
que dará à comunidade interessada na temática e ao futuro profissional de educação, uma
visão mais acentuada em relação à profissão de educador e objetiva-se ainda que os
profissionais façam prevalecer, a partir da conscientização das suas limitações sociais,
comportamentos éticos, prudência e constante luta ética na busca da cidadania, diante da sua
realidade, que por hora não se encontra necessariamente justa e democrática.
Esta é uma pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica. A pesquisa bibliográfica é
desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e
artigos científicos. Os livros constituem as fontes bibliográficas por excelência.

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1-A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O IMPACTO NO CENÁRIO


EDUCACIONAL

No final da Idade Média observaremos o declínio do feudalismo como modelo


econômico, e a ascensão do chamado capitalismo; as bases do feudalismo se constituíam nos
grandes latifúndios e nos senhores feudais, já o capitalismo se fundamentava no comércio.
O advento das cidades ajudará a declinar o feudalismo e a fortalecer o
capitalismo, isso porque eram nessas novas cidades que começavam a se estruturar o
comércio que frequentemente precisava de mão de obra para o desempenho das mais diversas
funções. Essa mão de obra sairá diretamente da zona rural, onde os moradores desta
procurarão uma melhor condição de vida na cidade, longe dos abusos dos senhores feudais.
O capitalismo se instalará no mundo e se estruturará como um poderoso modo de
produção de difícil substituição, seu principal objetivo será a geração de riquezas através da
exploração do homem pelo homem.
Este modo de produção será tema discutido por um grande teórico, Karl Marx,
que conceituará o capitalismo na tentativa de entendê-lo e explicá-lo de maneira cientifica,
entre suas principais considerações está a que diz que o capitalismo gerará um antagonismo
social, denominado luta de classes, e esta luta de classe será o “motor da História”, pois
devido a este ocorrerão em diversos momentos revoltas na tentativa de corrigir as diferenças
sociais geradas pelo capitalismo.
No capítulo inicial do “Capital” Marx assim conceituará o capitalismo:

A função verdadeira, específica do capital enquanto capital é, pois a


produção de mais-valor, e essa não é outra coisa se não produção de
sobretrabalho, apropriação — no curso do processo de produção real — de
trabalho não pago, que se oferece aos olhos e se objetiviza como mais-valor.
(Marx, 1993, p.58)

Esses conceitos trabalhados por Marx servirão de base para a explicação da


reestruturação produtiva, termo que engloba o grande processo de mudanças ocorridas
principalmente nas empresas visando principalmente à organização do trabalho industrial nos
últimos tempos via introdução de inovações tanto tecnológicas como organizacionais e de
gestão, buscando-se alcançar uma organização do trabalho integrada e flexível.

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Os teóricos da atualidade que procuram explicar essa reestruturação baseada no


capitalismo tecerão um discurso que colocará o empresário e o operário como sendo
funcionários do modo de produção, onde a única coisa que os distinguirá será o grau
hierárquico que estes ocupam. Com este discurso os teóricos tentam estabelecer que não
existem grupos sociais antagônicos e assim o capitalismo não estabelecerá a luta de classes,
pois esta luta só seria possível se houvessem classes rivais.
Esse discurso fará com que a luta de classes e seus antagonismos se tornem algo
sobremaneira invisível, onde o capital e o trabalho se apresentam como elementos reais de
uma história natural, ambos ligados por laços estreitos às leis de ferro do mercado.

Para seus teóricos e práticos o capitalismo apareceu sempre como o fim da


história, plena realização da espécie humana, negação da existência das
classes antagônicas. Para eles os antagonismos são coisas do passado.
Capital e trabalho são parceiros ativos. Essa aparência tem o poder de
colocar o conjunto das classes subalternas na defensiva 986.

Toda esta tentativa de se criar uma ideologia não passa de uma armadilha do
capitalismo moderno que vem através de seu discurso negar a possibilidade de uma
identificação classista, negando ao trabalhador sua sociabilidade e sua subjetividade. A
história do capitalismo é a história da reestruturação produtiva, pois desde os tempos passados
o capitalismo teve que freqüentemente rebelar-se sem cessar e expropriar os trabalhadores,
tanto em relação aos instrumentos de produção quanto ao conhecimento e quanto à sua
condição enquanto classe social.
Como podemos observar a luta de classes não deixou de existir, mas apenas se
travestiu de uma roupagem moderna; essa luta de classe se tornará inteiramente clara se
observarmos as atuais privações que a classe operária passa devido à reestruturação produtiva,
pois o que observamos é que o capitalismo operará diversas mudanças no setor de trabalho o
que fará com que se tenha a necessidade de se limitar os gastos com o social, e assim sendo
deixa-se de se investir verba estatal em educação, moradia e saúde.
As mudanças operadas pelo capitalismo reestruturarão todo o cenário social, pois o
Estado passará abandonar o mesmo e torna-lo-á um terreno de caça mercantil, isso porque
para o capitalismo tudo deve ser submetido à mercantilização.

986
Texto extraído do artigo Reestruturação produtiva de Edmundo Fernandes Dias

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2 – A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

No tópico anterior tentamos explicar o que era o processo de reestruturação


produtiva, e como este afeta os diversos campos de trabalho, principalmente os trabalhadores
ligados ao comércio e a indústria; neste procuraremos discutir como esse fenômeno afeta
diretamente o processo de formação de professores, já que a educação foi uma das esferas
atingidas pela reestruturação.
As transformações ocorridas graças ao processo de globalização farão com que os
diversos países ajustem suas finanças, sob a premissa da contenção de gastos, na tentativa de
promoverem a racionalização e modernização do Estado; sendo que a racionalização
acarretará um menor investimento nas áreas sociais, como saúde, moradia e educação.
Entre as principais transformações ocorridas nas áreas sociais, devido à
reestruturação produtiva, destacaremos aqui as ocorridas na educação brasileira, enfocando
principalmente o processo de formação do professor da educação básica, analisando o tipo
formação que esse professor recebe e quem são os principais promotores dessa formação e
qual o papel social dos mesmos.
A última década do século XX foi marcada por discussões acerca do sistema
educacional brasileiro, questionava-se acerca da qualidade do ensino oferecido nas escolas e
sobre qualificação dos professores, principais promotores do processo ensino-aprendizagem;
no início da década de noventa essas discussões aumentaram, já não dava para esperar, era
hora de rediscuti as políticas educacionais a fim de promover uma educação de significativa
qualidade.
Após vasta discussão chega-se a conclusão de que se fazia necessária uma
reformulação no processo de formação dos professores, era preciso analisar a formação que os
professores estavam recebendo nos cursos de formação inicial, e desenvolver também
mecanismos que garantissem o processo de formação continuada.
O governo brasileiro reconheceu o problema, mas recusou-se a gastar nenhum
centavo a mais para que o problema fosse resolvido; a solução encontrada pelo governo foi
relegar unicamente ao professor a responsabilidade da promoção da sua própria formação.

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2.1- A DESESTRUTURAÇÃO DA FORMAÇÃO INICIAL

A reestruturação produtiva acelerou o processo de desqualificação do professor,


pois a partir desse período passou a existir uma maior necessidade de professores, isso porque
o sistema educacional tem agora por incumbência formar a maior quantidade de mão de obra
“qualificada” possível, e para isso utilizará de diversos artifícios.
Um dos artifícios utilizados para se arranjar professor será o aproveitamento de
alunos formados no ensino médio, que por lei só teriam direito de ensinar o ensino
fundamental menor, para a docência no ensino fundamental maior. Na tentativa de não tornar
visível essas irregularidades as secretarias de educação enquadrarão estes docentes no PEB
I987 igualando estes aos demais docentes legalmente qualificados.
Além dos problemas citados acima ainda podemos citar o fato de que mesmo os
professores legalmente qualificados acabam ficando obsoletos, pois devido à longa jornada de
trabalho e a falta de recursos financeiros estes se vêm impossibilitados de participarem de
cursos de reciclagem, o que irá fazer que com que o professor se torne desatualizado e assim
passará a ser um reprodutor de conceitos “vencidos”.
No Brasil nota-se uma queixa constante em relação a este aspecto, pois devido à
reorganização das escolas da rede pública algumas chegaram a formar turmas extremamente
numerosas, contando-se com a evasão de uma parte dos alunos para se constituir uma
quantidade equilibrada. Dados do INEP revelam que o número de alunos por sala, em
diversos Estados brasileiros variava entre 22,2 e 32, 9, sendo que em Sergipe esse número
chegou a 43, índice considerado entre os mais altos da federação.
Segundo a OCDE988 não há a possibilidade de obtermos dados conclusivos em
relação a condição numérica e os resultados obtidos pelos alunos imersos nesta superlotação,
mas existem dados que comprovam que turmas menores possuem um melhor grau de
aproveitamento em relação aos conteúdos curriculares.
Como já dissemos essa superlotação na sala de aula irá influir diretamente no
desenvolvimento das práticas docentes, sendo que ficam mais prejudicados os docentes que
lecionam disciplinas como História ou Geografia, pois estes têm que assumir uma maior
quantidade de turmas devido à quantidade mínima de aulas que estes têm por semana,
normalmente duas.
987
Professor de Educação básica I
988
Organização para a cooperação e desenvolvimento econômico.

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Portanto, são computados mais alunos para um mesmo professor, que atua
em maior número de turmas. Esse é um elemento de forte incidência sobre a
precarização do trabalho do professor, o qual, para preencher uma carga
horária de trabalho que lhe forneça subsistência, precisa trabalhar com um
volume de cerca de 600 jovens!989

Como podemos observar a reestruturação produtiva é um processo que resulta


num processo de precarização do trabalho docente, e incidirá de maneira catastrófica nas
práticas curriculares, pois o atrelamento da escola às instituições econômicas e financeiras
tornará a prática docente em um trabalho frágil e insuficiente.

CONSIDERAÇÕS FINAIS

A literatura educacional brasileira inspirou-se nas idéias socialistas para


apresentar propostas alternativas para a escola, no entanto, o socialismo real entrou em crise.
Viria essa situação abalar os ideais socialistas de uma escola para todos? Seria capaz essa
escola de transformar a sociedade, melhorando a formação dos atores educativos e
construindo assim uma nova práxis social?
O profissional da educação conseguiu construir uma prática pedagógica
consubstanciada nos princípios do saber universal e da formação da consciência crítica e da
cidadania, colaborando efetivamente com o ideal pedagógico de conduzir os alunos ao acesso
e aquisição do saber historicamente construído.
Diante de tantas atribuições e responsabilidades, será que os cursos de formação
de professores têm conseguido formar uma consciência crítica ou tem apenas conseguido
reproduzir as relações de classe obstante o processo de reestruturação produtiva, quebra de
paradigmas, além do processo de proletarização docente que vem passando o ofício de
professor ao longo dos anos na sociedade brasileira.
É evidente que o mundo vem passando por um processo de mudanças profundas,
ao ponto de ser conceituada como uma crise sem precedentes. Esta crise atinge inclusive a
escola, o processo educativo e seus atores, uma vez que a incorporação de novo processo
produtivo acarreta na sua base material de produção e reprodução, um novo modo de fazer e
produzir, uma nova forma de circular informação, a cultura, os modos de viver das pessoas,
bem como os instrumentos utilizados para fazer a realidade e planejar o futuro.

989
Dado extraído do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

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Todas as mudanças apontam para uma questão paradoxal: os novos paradigmas de


organização do trabalho, surgidos com o desenvolvimento de novas tecnologias, novas
linguagens e formas de comunicação, do desenvolvimento da tolerância, da diversidade e
pluralidade cultural, revigoram o debate sobre à escola, e a formação docente, reconstituindo
o ideal de unidade entre a formação técnica e científica, reativando o debate sobre a
concepção da educação, da escola, do processo ensino-aprendizagem consubstanciando a
exigente necessidade de formação de professores, no caso específico do professor de história,
uma vez que caberá a este o desenvolvimento de uma prática pedagógica que transcede a
mera reprodução de conhecimento, de cumprimento de parâmetros institucionais, de
adestramento de futuros trabalhadores para o mercado de trabalho.
Na esteira deste processo, observamos que o profissional da educação assume a
posição de pivô, no desenvolvimento de estratégias que possam desencadear uma práxis
libertadora, que transcende a mera função de reprodutor da ideologia dominante, do mero
saber constante nos livros didáticos.
Mais como fazer isto, diante de um processo de proletrização docente, diante de
baixos salários, ausência de cargos e salários, violência no trabalho, falta de perspectivas
profissionais, ausência de programas de formação continuada sérios, e de prestígio social.
Assim chamou-me a atenção um veio pouco discutido na literatura educacional
que focaliza essas transformações do mundo moderno, das exigências sociais e da escola
enquanto equipamento social imprescindível para o desenvolvimento e garantia da
sustentabilidade.
A introdução dessas mudanças no cenário da educação, com a conseqüente
ampliação do “mercado educacional”, tende a colocar em pauta um novo problema que se
refere à necessidade de atualização das práticas educativas.
As questões aqui levantadas não dão conta de explicar a complexidade que
envolve os temas educação, trabalho e emprego. Ao tratar desses assuntos, numa perspectiva
cada vez mais ampliada, surge a necessidade de encontramos soluções futuras para os graves
problemas decorrentes da expansão mundial do modelo neoliberal, o qual desafia a sociedade
civil, as agências de formação profissional, os sindicatos e os sistemas de ensino, para
capitanearem a superação de limites e resgatar suas potencialidades, integrando-as e recriando
uma nova forma de participar e inferir no contexto educacional tão excludente e adverso.

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CASA FORMOSA: CENTRO ILUSTRADO DE EDUCAÇÃO FEMININA


(1917 – 1952)

Maria de Lourdes Porfírio Ramos Trindade dos Anjos - IERB


E-mail mlprta@ig.com.br

Este estudo se propõe analisar a contribuição da Escola de Trabalhadoras Cristãs (ETC) para a
formação das moças protestantes de confissão batista a partir das práticas escolares durante o
período de 1917 a 1952. A pesquisa investiga também os antecedentes históricos desta
escola, apoiando-se em fontes bibliográficas e documentais como: atas, prospectos, livros,
revistas, jornais, dissertações, entre outras. Os resultados apontam que, no início do século
XX, um grupo de missionárias batistas norte-americanas sentiu a necessidade de organizar um
plano educacional, para ministrar o ensino pedagógico e religioso. Desde então, a escola
apresentou-se como uma estratégia fundamental para a formação da mulher que atuaria como
professoras das escolas anexas no ensino primário, educadoras religiosas nas igrejas e esposas
de pastores. Constatou-se também a presença do Instituto de Educação Religiosa (IBER), que
desde 1916 preparava moças para o ensino e evangelização, no Rio de Janeiro. Neste período
atuaram como diretoras da “Casa Formosa,” como era conhecida, as seguintes missionárias
batistas norte-americanas: Graça Taylor (1917-1919); Paulina White (1919-1924); Essie
Fuller (1926-1932); Mildred Cox Mein (1933-1945); Maye Bell Taylor (1947 -1952).

Palavras-chave: História da Educação, educação protestante, educação feminina.

Durante o início do ano de 1918, o modelo pedagógico materializado na Escola de


Trabalhadoras Cristãs (ETC), trazia em seu bojo, algumas inovações que se destacava da
política educacional existente que se preocupava mais com a educação dos jovens do sexo
masculino.
Desde os primórdios do trabalho batista no Brasil (1881), seus fundadores
reconheciam a importância do preparo de jovens brasileiros, para dar continuidade ao seu
projeto de evangelização e ensino. Dessa forma, não pouparam esforços, no sentido de fundar

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escolas de primeiras letras990, até as de nível colegial e superior, como os seminários


teológicos. Esta ênfase ao ensino constitui-se um dos empreendimentos bem sucedidos do
trabalho da denominação batista nas primeiras décadas, conforme ficou registrados nas fontes
que retratam a História dos batistas do Brasil. 991
No entanto, no Brasil, o primeiro projeto educacional implantado pelos batistas
voltado para a educação feminina, foi no Rio de Janeiro, no ano de 1916, com o curso de
Educação Religiosa do departamento feminino do Colégio Shepard.
A missionária batista norte-americana Jane Soren992 foi a primeira diretora desse
departamento, que tinha como finalidade preparar moças batistas para trabalhar nas igrejas.
Segundo Berry. “O departamento feminino do Colégio Batista abrangia o curso Primário, a
Escola Normal, e o Curso Religioso, sendo que a Escola Normal expandiu-se com a inclusão
de matérias de Educação Religiosa no seu currículo.”993
Em Recife, os presbiterianos se estabeleceram em 1873. Nesta época era comum
os conflitos entre católicos e protestantes. Mesmo diante das divergências, existia um grupo
de adeptos que contribuía de forma significativa para a manutenção do trabalho e da
evangelização. Entre as estratégias utilizadas pelos missionários para divulgação do
evangelho, e de sua religião estavam às instituições educacionais, prova disso é que nos idos
das décadas de 1920, já havia uma escola para o sexo feminino, o Colégio Agnes Erskine.
Em Pernambuco a Escola Normal foi criada em 1864. “Em 1865 foi implantada
uma escola anexa ao lado da Escola Normal para a prática dos professorandos”.994 No
entanto, a Escola Normal só abriu suas matrículas para o sexo feminino após a reforma de
1875, conforme explica Sellaro, “[...] A partir de 1869 o curso foi dado em 3 anos, mas as
modificações maiores resultaram da reforma de 1875, que além de ampliar o plano de
estudos, abriu suas matrículas também para as mulheres”.995

990
As escolas de primeiras letras correspondiam ao início da escolarização. Seu currículo estava voltado para o
ensino dos rudimentos da escrita, da leitura, da Aritmética e dos princípios da Doutrina Cristãs. FREITAS,
Anamaria Gonçalves Bueno. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do século XX.
Campinas: UNICAMP, p. 33. (Tese de Doutorado).
991
MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil de 1907 até 1935. Vol. II. Rio de Janeiro:
Casa Publicadora Batista, 1984. p. 15.
992
Jane Filson Soren era norte-americana, nascida em Kentucky, casada com um brasileiro, Francisco Fulgêncio
Soren.
993
BERRY, Lois Roberts; BERRY Edward Grady. IBER: uma porta aberta para o serviço cristão. Rio de
Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicação, 1986. p. 37.
994
SELLARO, Leda Rejane Accioly. Educação e Religião: Colégios protestantes em Pernambuco na década de
1920. Recife: UFPE. 1987. p. 82 (Dissertação de Mestrado)
995
SELLARO, Leda Rejane Accioly. Educação e Religião: Colégios protestantes em Pernambuco na década de
1920. Recife: UFPE. 1987. p. 82 (Dissertação de Mestrado)

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Com o surgimento das primeiras escolas normais, as oportunidades da mulher ter


acesso à instrução foram ampliadas. A instrução primária continuava provavelmente passando
por uma série de dificuldades, nem todos os professores possuíam formação adequada para
desenvolver tal tarefa, outras vezes, as escolas funcionavam em casas que abrigavam os
alunos, mas não ofereciam condições para funcionar uma escola, a higiene era precária, de
modo que, um grande número de aluno, não conseguia se matricular e permanecer na escola.
Consequentemente o número de analfabeto se tornava cada vez maior.
Outro ponto, que influenciou muito na decisão dos batistas organizarem escolas
anexas às igrejas, foram as constantes queixas apresentadas pelos seus filhos que se sentiam
incomodados diante da situação vivenciada. Mein relata que os alunos “[...] nos grupos
escolares eram vaiados e perseguidos, constrangidos pelos professores a assistirem às aulas
religiosas administradas pelo padre”.996
Foi diante deste quadro que os missionários norte-americanos resolveram colocar
em prática um plano estratégico e criaram escolas com a finalidade de alfabetizar os novos
conversos e desenvolver a organização interna da Igreja. Para Hack as escolas anexas
funcionavam com múltiplas funções,

A escola estabelecida junto a uma Igreja evangélica tinha objetivos


definidos. Além de ensinar as primeiras letras, também ministrava o ensino
religioso da Bíblia [...] A escola destinava-se a suprir a ineficiência do
sistema pedagógico brasileiro e garantir instrução àquelas crianças que
fossem constrangidas por práticas católicas romanistas [...] e suprir a falta
de professores. 997

A Escola de Trabalhadoras Cristãs (ETC) foi fundada em 1917, oferecendo o


curso pedagógico e o Religioso. Neste mesmo ano com a chegada da jovem amazonense
Josefa Silva, ao Recife, com o propósito de se preparar para servir como professora nas
Escolas Anexas as igrejas, foi fundada a Escola Normal para moças batistas.
Neste mesmo ano o nome da escola foi mudado para Trianing School, que iniciou
suas aulas como departamento do Colégio Gilreath (atual Colégio Americano Batista - CAB),
e recebeu a matrícula de oito moças.
Em 1919, passou a ser denominada de Escola de Trabalhadoras Cristãs e
funcionava em um prédio alugado situado na Rua Visconde de Goiana com o Parque do

996
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.17.
997
HACK, Osvaldo H. Protestantismo e educação brasileira: presbiterianismo e seu relacionamento com o
sistema pedagógico. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, p. 64 -65.

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Amorim. A ETC estava destinada a preparar as jovens que pretendiam trabalhar no serviço de
Deus e se dedicar ao magistério nas escolas batistas. Outra função da instituição era formar
moças para trabalhar nas diversas instituições batistas: hospital, escola, igreja, Casa Batista da
Amizade e com o serviço social.
Este projeto recebeu apoio das mulheres batistas do Brasil, e da União Feminina
Missionária Batista do Sul dos Estados Unidos da América, que em 1935, doou a quantia de
dez mil dólares, para a construção de um novo prédio; com dois pisos, favorecendo ainda
mais, o crescimento da instituição e seu reconhecimento como uma escola de qualidade e
prestígio. Além de despertar outras jovens, residentes nos vários Estados do Brasil e do
estrangeiro, para se tornarem alunas.
A ETC vivenciou algumas mudanças educacionais que favoreceram a melhoria do
programa educacional. O primeiro mecanismo estratégico para dar sustentação, foi promover
a instrução primária capacitando as suas alunas para o exercício do magistério.
Os relatos encontrados nas fontes deixadas por Mein atestam parte das
características do ensino da época em Pernambuco.

As estatísticas mais risonhas de então acusam 50% da população nortista ser


analfabetas, e fora dos centros, 70%. Ao apagarem-se as luzes do século
dezenove, pode-se mesmo afirmar que o semi-analfabetismo se impunha em
90% do elemento feminino.998

No período de 1917 a 1952 atuaram como diretora desta escola as missionárias:


Graça Taylor (1917-1919); Paulina White (1919-1924); Essie Fuller (1926-1932); Mildred
Cox (1933-1945); Maye Bell Taylor (1947 -1953). A ETC era um seminário de educação
feminina dirigido e mantido por mulheres.
A cargo dessas diretoras estava a tarefa de desenvolver um plano de ação, para
que a instituição se expandisse cada vez mais. Bem como, a responsabilidade de enviar
relatórios para a Junta de Richmond. Esses instrumentos estavam permeados de informações
desde rotina escolar, a situação financeira da escola, a situação dos professores, o grau de
instrução de que cada professor, a disciplina que ministrava, bem como seu envolvimento na
causa de evangelização. Os padrões definidos pela diretora, em conjunto com a Junta
Administrativa e as orientações da própria Junta de Richmond, se dava no sentido de que a
escola continuasse exercendo sua função principal: evangelizar e ensinar.

998
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 56.

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Enviavam também os dados numéricos de matrícula e de conclusão de curso. Aos


poucos, a escola foi vencendo as dificuldades, firmando sua importância e conquistando
novos olhares contribuindo para sua expansão.
A educação idealizada por essas missionárias no início do século XX, estava
relacionada a um tipo de mulher que a escola desejava formar. Para tanto, as ações
apresentadas eram permeadas pelas normas e valores transmitidos. Os professores e
funcionários eram orientados a instruir e ou moldar vidas para serem úteis na propagação do
evangelho e na consolidação da educação batista.
Sob esta perspectiva surgiu uma preocupação. Quais foram às ações utilizadas
para formar essas moças? Entre as estratégias usadas pode-se perceber a criação da Escola de
Trabalhadoras Cristãs, que procurou preencher uma lacuna existente na educação da mulher,
uma vez que, estas moças estavam impossibilitadas de se matricular no Seminário Teológico
Batista do Norte do Brasil, cujos valores morais não permitiam a co-educação dos sexos.
A escola passou a atender às candidatas ao curso religioso e ao curso normal. As
quatro moças internas ficaram sob os cuidados de Graça Taylor. Esta missionária defendia e
lutava pela permanência desta instituição, e tentava convencer a Junta de Richmond através
dos relatórios da sua relevância dizendo,

A Escola está cumprindo uma importante missão no Norte do Brasil. Há


muitos analfabetos nas igrejas e estas jovens professoras podem servir nas
igrejas, fundando uma escola anexa e ao mesmo tempo ajudando na obra
religiosa. A Escola em Pernambuco se esforça para satisfazer este tremendo
mister.999

Com a implantação de algumas inovadoras reformas educacionais a escola se


fortalecia cada vez mais. Uma das mudanças foi à criação de duas “Juntas”, uma para ajudar
na administração do CAB e outra para a ETC. A matrícula crescia e deixava a direção mais
animada. A primeira formatura da ETC, foi realizada com duas alunas apenas, Josefa da
Silva Lima1000 e Anísia Duclerc. 1001

999
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.20.
1000
As duas alunas foram convidadas para lecionar no departamento primário do Colégio Americano Batista.
Silva assumiu posteriormente a direção. Em 1922, depois de ter realizado um curso de aperfeiçoamento, nos
Estados Unidos da América, Josefa criou o Jardim de Infância que segundo Mildred Cox Mein se tornou modelo
para todos que estavam sendo organizado. Casou-se com Euclides Meneses, mas continuou exercendo o
magistério até seu falecimento.
1001
Anísia exerce o magistério com professora do Colégio Americano Batista, posteriormente seguiu para
Salvador. Fundou várias escolas anexas às igrejas e no interior da Bahia.

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Em 1922, efervescentes disputas vieram à baila, as divergências tinham base na


desconfiança existente entre brasileiros e norte-americanos que discursavam na defesa do
sustento próprio e administração das verbas enviadas. As polêmicas revelavam outra
insatisfação, dessa vez era sobre a organização do trabalho, que passava os privilégios e
comandos para as mãos dos missionários norte-americanos.
Descontente, a Convenção Batista Regional enviou um memorial à Missão Batista
do Norte, com a equiescência dos pastores nacionais pedindo que as verbas advindas da Junta
de Richmond, e destinadas à evangelização fossem repassadas para a Convenção que faria a
distribuição conforme as necessidades apresentadas. As disputas foram travadas
principalmente entre Alfredo Freire; educador e advogado que concedia seus serviços ao
colégio e D.L. Hamilton, missionário da Junta de Richmond e ex-diretor do CAB. As
polêmicas foram acirradas e Hamilton não conseguia chegar a um consenso com os colegas,
os pastores.
Várias foram às dissidências religiosas, chegando a atingir as duas instituições: o
Seminário Teológico e a ETC. Mein escreveu que “os seminaristas e as moças do ETC logo
se pronunciaram a favor dos brasileiros e como isso militasse contra a disciplina das
instituições, foram chamados à ordem, não se submetendo [...].1002
Os conflitos continuaram. Os seminaristas abandonaram o Seminário e instigavam
as moças da ETC, a agir da mesma forma. Duas alunas resistiram, não seguiram os colegas.
As outras moças se refugiaram nas residências dos membros das igrejas que freqüentavam. A
direção da escola, descontente com o movimento, enviou uma comunicação aos pais,
relatando o problema. Diante da situação os pastores Adrião Bernardes e Pereira Sales
entraram em contato com as famílias e as igrejas expondo os fatos acontecidos, ao mesmo
tempo, assumiram a responsabilidade de proteger as moças e os seminaristas.
O resultado dessa discórdia foi o surgimento do Colégio Batista Brasileiro, que
funcionava em um prédio alugado nas proximidades do Colégio Americano Batista.
No ano de 1931-1932, a ETC apresentava sinais de desânimo, não só pelas
disputas polarizadas pelo poder e religião, mas pelas mudanças ocorridas no interior da
instituição com as transferências dos missionários para os Estados Unidos, para cuidar da
saúde, ou para assumir outras funções em diferentes Estados do Brasil. Com a saída dos
missionários (que eram mantidos pela Junta de Richmond), as dificuldades foram ampliadas,

1002
MESQUITA, Antônio Neves. História dos Batistas no Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1984. p. 166-167.

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a crise financeira se agravou, dificultando inclusive convidar professores substitutos e a escola


ter que assumir essas despesas.
Em 1935, a Escola de Trabalhadoras Cristãs, recebeu uma verba no valor de dez
mil dólares para a construção de um edifício, constituído de dois andares, com um anexo que
incluía lavanderia, cozinha e quartos dos empregados. O responsável pela planta arquitetônica
foi o A.E Hayes que demonstrava preocupação com a higiene da instituição. ETC foi
contemplada e recebeu duas máquinas de costura, espelhos, uma cozinha, que favoreceu a
aprendizagem das alunas nas aulas práticas.
Em 1938, em relatório enviado por Bertha Hunt, diretora interina, confirmava a
matrícula de 28 alunas, e a conquista de ter 11 alunas da ETC, cooperando com as igrejas aos
domingos desenvolvendo uma prática pedagógica junto à igreja e exercitando os
ensinamentos aprendidos. Neste mesmo ano, outra ação educativa e religiosa foi inaugurada.
A intenção era o fortalecimento da vida espiritual das alunas. Mein escreveu que “no dia 11
de fevereiro de 1938, inauguraram-se as preleções semanais que se realizaram dali em diante
num período matutino, às sextas-feiras. Oradores de mérito, com precisão e lucidez,
expuseram suas mensagens apropriadas nestas ocasiões.”1003
O dia Educação Feminina aconteceu pela primeira vez, em 23 de junho de 1938,
dia que se comemorava o aniversário da organização da União Geral de Senhoras. Nesta data
foi elaborado um programa e distribuídos entre as sociedades. O apelo de orar, zelar e
sustentar esta escola aparecia embutido no impresso.
As dificuldades encontradas por essas missionárias foram diversas entre elas é
possível citar: A falta de verba para gerir os projetos, as polêmicas que se davam em torno de
quem deveria assumir a direção do Seminário Teológico que se destinava a educação do sexo
masculino.
De alguma forma esses problemas prejudicavam a educação feminina da ETC. Na
27ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira, realizada no Rio de Janeiro após sucessivos
debates o público presente teve conhecimento do parecer do Comitê Inter-Missão, publicado
no “Jornal Batista” que concedia o direito de administrar a ETC à União Geral de Senhoras.
As dificuldades administrativas e financeiras foram sanadas paulatinamente, a
escola avançava, apresentando a sociedade um ensino de qualidade e a ordem ia sendo
estabelecida, pela direção e a Junta, ao organizar os estatutos e o regimento interno, tornando-
a dessa forma pessoa jurídica. Mein explicava que essas ações foram realizadas “a fim de

1003
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movimentar as contas bancárias e tratar dos negócios necessários ao andamento da


Instituição.”1004
Outros aspectos favoreciam a escola, por exemplo, o prédio, utilizado pelas
alunas portava condições estruturais e higiênicas necessárias para um bom funcionamento do
processo de ensino-aprendizagem. Aos poucos a escola ia ganhando projeção, e outras moças
batistas iam chegando a “Casa Formosa”. Um dispositivo que foi utilizado e deu bom
resultado foi à prática educativa exercida pelas alunas, nas igrejas que trabalhavam aos
domingos. Dessa forma o curso se tornava bastante significativo onde se unia teoria/prática.
Aos poucos ETC ia ganhando legitimidade perante as igrejas, à Convenção Batista, e a União
Geral de Senhoras, que se empenhava para manter a escola dentro dos seus propósitos.
No período de férias as alunas da ETC prestavam serviços, às igrejas, realizando a
Escola Popular Batista (EPB). Este trabalho era muito elogiado pelas igrejas. Na programação
constava: músicas, cânticos, histórias bíblicas e com lições de moral, trabalho manual,
brincadeiras, lanche e concursos. Em 1941, Helena Bagby Harrison escreveu um relatório,
fazendo menção as alunas da ETC.

Incorrompida por desinteligências denominacionais, mantendo padrão


elevado, porém prático de erudição, expedindo anualmente pelo vasto
setentrião uma força na vanguarda de formanda completamente equipadas e
uma hoste de entusiasmadas e consagradas estudantes para as atividades das
férias escolares, a Escola de Trabalhadoras Cristãs marcha de vitória em
vitória, à música marcial das orações dos seus intercessores. As alunas da
ETC sempre são procuradas e as Escolas Populares Batistas que dirigem,
pois elas cultivam milhares de novos crentes ou amigos do evangelho. 1005

No início do século XX o sistema educacional apresentava índices de


analfabetismos significativos. As campanhas eram destinadas a todos, na tentativa de resolver
essa nódoa que manchava as páginas da História da Educação brasileira. Luciano Lopes
conclama a sociedade para deflagrar uma grande campanha de educação
e faz uma reflexão sobre o analfabetismo dizendo:

[...] O analfabetismo é uma calamidade. É mais danoso do que uma guerra.


É pior do que uma epidemia. Combatê-lo é medida de salvação pública que
o governo, devido às dificuldades econômicas, não está em condições de

1004
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.61.
1005
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.61.

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vencer o analfabetismo. À prova disso é que nada menos de 80% dos


estabelecimentos de educação no Brasil são de iniciativa particular.1006

Lopes convidava todos os batistas para participar deste movimento tão importante
para a educação, em seguida, apresentou uma proposta delineando dessa forma:

Em primeiro lugar devemos formar um plano para acabar com o


analfabetismo dentro das igrejas. [...] É necessário que os pastores e
oficiais, sem perda de tempo, providenciem na organização de classes
especiais para a instrução desses nossos irmãos, de tal sorte que dentro de
poucos meses todos estejam lendo e escrevendo. [...]. Para maior eficiência
desta grande campanha dois métodos podem ser postos em prática ao
mesmo tempo. Um deles é a organização de classes, que podem funcionar
dentro das próprias igrejas. Outro método consiste do ensino individual. Isto
é, além do ensino em classes que a Igreja deve manter, sob a direção de
professores, há também o ensino individual. Cada crente que sabe ler deve
ensinar ao vizinho que não sabe. 1007

No início da republica a educação da mulher apresentava algumas dificuldades. A


educação estava restrita as escolas privadas e religiosas e destinadas ao ensino primário, e
quem tinha acesso a escola era os mais ricos. Conforme Mein, “[...] as moças, que se
educaram, fizeram-se por meio de tutores particulares nos lares”1008 . A inserção da mulher na
cena educacional se deu em 1827, quando foram criadas as escolas de primeiras letras como
afirmou Freitas,

No Brasil, a mulher adquiriu direito legal à educação pública através da Lei


Imperial de 15 de outubro de 1827, que previa a criação de escolas de
primeiras letras. Nas cidades, vilas e lugarejos mais populosos, para
meninos e meninas, em todo o território brasileiro. A partir de então foram
implantadas as aulas de primeiras letras para meninas que deveriam ser
providas, preferencialmente, por professoras. Esta mesma lei determinava
ainda conteúdos curriculares diferenciados para meninos e meninas. Ler,
escrever, contar e a doutrina cristã consistiam os primeiros ensinamentos
para ambos os sexos. No entanto, destacava-se o ensino de geometria para
os meninos e para as meninas bordado e costura.1009

Desde sua criação a ETC, oferecia as suas alunas uma educação integral.
Conforme explica Nascimento:
1006
LOPES, Luciano. A grande campanha de educação. O Jornal Batista. Ano XLVI, Rio de Janeiro, 01 de
agosto de 1946, nº 31.
1007
LOPES, Luciano. A grande campanha de educação. O Jornal Batista. Ano XLVI, Rio de Janeiro, 01 de
agosto de 1946, nº 31.
1008
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p.13.
1009
FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do
século XX Campinas: UNICAMP, p. 33.

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A escola oferecia uma educação integral, isto é, uma formação intelectual,


moral e espiritual de homens e mulheres tementes a Deus, bem instruídos e
disciplinados, amantes da liberalidade. Além de cristãos verdadeiros, seus
alunos seriam cidadãos participantes da vida civil e política do seu país,
construtores de uma sociedade democrática, moderna e progressista,
semelhante à sociedade norte-americana1010.

O ensino ministrado servia para defender uma instrução baseada no civismo no


patriotismo e na moralidade. O currículo compreendia os conteúdos necessários para a
formação das moças batistas. Atrelado a esses dispositivos estavam o rigor disciplinar e
outras práticas educativas que valorizava o corpo, como os exercícios físicos, basquete, e o
voleibol. A música também estava presente. Segundo Mein o repasse do conteúdo e “as
lições eram preparadas nas bancas de estudo noturno sob a vigilância de monitoria
conscienciosa”.1011
Dentre as inovações que foram realizadas nesse período estão as festas da ETC que
em determinados momentos se tornavam espetáculos que alegravam e divertiam. A instituição
mantinha um calendário festivo. As festas pareciam unir aquelas moças em torno de um ideal.
Distante das famílias, esses momentos eram fundamentais, criando laços de cooperação, e
solidificação de amizade, na convivência do internato.
Em 1942, foi organizada a Associação de Ex-alunas, elo que havia de unir as moças
que passaram por esta escola. Mein explica como aconteciam os encontros, “Reúne-se
anualmente com um almoço de confraternização e programa cheio de inspiração. A diretoria é
eleita por ocasião da reunião anual.”1012 Esses momentos são festivo, onde se dá o
reencontro, e é aproveitado, para trazer à memória os tempos vividos no internato,
compartilhavam as alegrias e as dificuldades encontradas no seu campos de trabalho.
As fontes comprovam o trabalho desenvolvido pela sociedade de moças Jane
Soren, desde fundação até a década de 1950. Existia uma diretoria, que era responsável pela
elaboração da programação anual. As atividades eram abrangentes, abordando o crescimento
cultural, espiritual e social da aluna.

1010
NASCIMENTO, Ester Fraga Villas Boas Carvalho do. Educar, curar, salvar: uma ilha de civilização no
Brasil tropical. P. 109
1011
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 24.
1012
MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs. (1917-1967).
Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966. p. 65.

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A criação da ETC contribuiu de forma significativa para a formação das moças


batistas, possibilitando a inserção da mulher na sociedade; como professoras de primeiras
letras, enfermeiras e dedicando-se ao serviço social e no trabalho religioso.
As missionárias norte-americanas que atuaram como diretoras desenvolveram um
plano de ação que compreendia a formação da mulher que eram permeadas de normas e
valores que serviram para instruir e moldar essas vidas. Corporificou a cultura norte-
americana e no seu projeto foi possível perceber, a preocupação com o analfabetismo, o
cuidado com o corpo, o rigor da disciplina, as festas bem como a construção de um novo
prédio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERRY, Lois Roberts; BERRY Edward Grady. IBER: uma porta aberta para o serviço
cristão. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicação, 1986.

FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no


início do século XX Campinas: UNICAMP.

HACK, Osvaldo H. Protestantismo e educação brasileira: presbiterianismo e seu


relacionamento com o sistema pedagógico. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985,

MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil de 1907 até 1935. Vol. II.
Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1984.

MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de ouro do Seminário de Educadoras Cristãs.
(1917-1967). Recife: Gráfica Editora Santa Cruz LTDA 1966.

NASCIMENTO, Ester Fraga Villas Bôas Carvalho do. Educar, curar, salvar: uma ilha de
civilização no Brasil tropical. Maceió:UFAL. 2007.p.33.

SELLARO, Leda Rejane Accioly. Educação e Religião: Colégios protestantes em


Pernambuco na década de 1920. Recife: UFPE. 1987. (Dissertação de Mestrado).

DOCUMENTOS

SEMINÁRIO DE EDUCADORAS CRISTÃS. Prospecto da Escola de Trabalhadoras Cristãs.


Recife: SEC, 1917.

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A FORMAÇÃO DA ECONOMIA DOMÉSTICA E SUA RELAÇÃO COM


A FAMÍLIA, O FEMINISMO E O GÊNERO

Ana Carla Menezes de Oliveira


Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão
anacarla@eafsc.gov.br

Esta pesquisa visa demonstrar que as atividades desenvolvidas pelas famílias, para a
satisfação das necessidades de seus membros, compreendem processos administrativos
complexos que envolvem relações de interação entre a Economia Familiar Doméstica e o
Gênero. Dessa forma esse trabalho busca fortalecer o campo da Economia Doméstica, em
função de abordagens amplas, do avanço do movimento feminista, do desenvolvimento de
capacitação científica de profissionais da área e da conceitualização da teoria de gênero, para
explicar as mudanças socioculturais e econômicas entre mulher e homem na sociedade. A
partir daí serão utilizado dados de revistas, entrevistas, documentos, relatos e conceitos. Este
artigo visará assim mostrar que a Economia Familiar Doméstica não tinha sua história
própria, sendo confundida com a história da humanidade, que era baseada no trabalho
conjunto da família, ou seja, homem, mulher, criança, jovens e velhos, ocupando o mesmo
espaço na sociedade. Como também a referida pesquisa irá apresentar a contribuição do
feminismo para a ciência, bem como para todos os campos de conhecimento, incluindo a
Economia Doméstica e as abordagens inovativas no pensar epistemológico, metodológico,
teórico e ético que estão ocorrendo em resposta às questões feministas.

Palavras-chave: Economia Doméstica, Família, Gênero.

INTRODUÇÃO

Até meados dos anos 60, a administração de recursos na família era,


compreendida como um instrumento disciplinar. Essa administração lembrava um conjunto
de regras, sobre o que deve ser feito e o desejável. Essa idéia vêm do caráter normativo da
Economia Doméstica nos seus primórdios. Com o fortalecimento do campo da Economia
Doméstica, em virtude da utilização de abordagens mais amplas, o avanço do movimento

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feminista e do desenvolvimento de capacitação científica dos profissionais da área,


começaram a surgir estudos, a partir de reflexões críticas e enfoques explicativos.
Para o contingente feminino, o primeiro passo para a conquista de maiores direitos
revelou-se na possibilidade de apropriação de conhecimentos que transcendessem o privado.
(SAVIANI, 2004:78).Enquanto os homens disputavam poderes no espaço público,
mantinham-se as mulheres na penumbra doméstica e domesticadora, que restringia o espaço
de liberdade e expansão da inteligência e do talento.
Assim após muito tempo de incompreensão, as economistas domésticas e as
feministas começaram a estabelecer um diálogo aceitando as posições divergentes das duas
correntes de pensamento e da prática. Para Badir: “No passado, as feministas acusavam as
economistas domésticas de aprisionarem a mulher na esfera doméstica, considerada por elas
opressiva e causadora de todos os problemas da mulher.(BADIR, 1991).
As economistas domésticas afirmavam que as feministas ignoravam a existência
da família e da unidade doméstica, que constituem uma realidade com muitos significados de
importância para a sociedade. O reconhecimento mútuo está sendo proveitoso para ambos os
campos de conhecimento. (PETERAT, 1992). A contribuição maior do feminismo para a
ciência, bem como para todos os campos de conhecimento, incluindo a Economia Doméstica,
foi a conceitualização da Teoria de Gênero, para explicar as mutantes diferenciações
socioculturais e econômicas entre a mulher e o homem na sociedade e para refutar as
explicações biológicas que tendem a considerar tais diferenciações como "naturais".
Os questionamentos feministas surgiram em virtude do caráter e da prática
androcêntricos (sexista) da ciência e da sociedade. Nas discussões feministas, tratava-se de
definir como as metodologias e as teorias existentes deviam-se modificar, para incorporar a
realidade da mulher ao campo substantivo de estudo. A tarefa de descobrir as abordagens
mais apropriadas para estudar a mulher, no sentido de captar sua realidade, mas sem
discriminá-la, ainda continua.
Por serem formadas em disciplinas e teorias androcêntricas, as feministas
acadêmicas privilegiam a esfera pública em sua pesquisas e consideravam que a razão da
subordinação social da mulher residia em seu envolvimento quase exclusivo na esfera
privada, familiar. Essa foi uma das razões pelas quais, no começo do feminismo, se ignorou a
esfera familiar. Mas, com o desenvolvimento do pensar feminista, descobre-se que as
explicações baseadas nas teorias (androcêntricas) existentes só explicam parte da realidade
feminina e daí emerge a teoria do gênero.

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Essa teoria postula que o gênero é uma interpretação cultural das diferenças
biológicas entre a mulher e o homem; que é construída por meio de processos socioculturais,
criando um universo simbólico que fica institucionalizado na estrutura e nas relações sociais e
refletido nas vivências e experiências diferenciadas de pessoas de ambos os sexos. Sendo uma
construção sociocultural, o gênero não tem conteúdo fixo, mas é construído e reconstruído por
processos socioculturais através da história e toma variadas formas diferentes e nos extratos
sociais distintos, na mesma sociedade.
O conceito de gênero fornece ferramentas novas e incisivas da análise da vida
sociocultural e de seus “produtos” (instituições, símbolos, teorias,etc.), oferecendo a
possibilidade de produção de um conhecimento mais detalhado e abrangente da realidade em
que vivemos.
Para Dwyer e Bruce em análises de gênero, aplicadas a estudos de economia
familiar, mostram que:

As rendas dos homens e das mulheres têm destinos distintos, ou seja, as


rendas femininas têm relação mais direta com a qualidade de vida familiar
do que a dos homens, que, em muitos casos, têm boa parte reservada para
gastos pessoas. (DWYER e BRUCE, 1988).

Uma outra aplicação da análise de gênero demonstra como se deve analisar a


situação da família e de seus membros individuais, em um contexto holístico, global. A
análise de gênero, feita por Patrícia Thompson (1991) apresenta quatro níveis: 1. Nível amplo
institucional, socioecômico e histórico que examina os aspectos institucionalizados de família
com relação à sociedade mais ampla (privado/público); 2. Nível intermediário de comunidade
que organiza os processos produtivos e reprodutivos com relação a mulheres, homens e
crianças na comunidade; 3. Nível de família- unidade doméstica que apresenta os
relacionamentos entre homens e mulheres e a divisão de responsabilidades; 4. Nível
individual que demonstra as conseqüências individuais do presente sistema de gênero na
família com relação a saúde, bem estar, auto-estima e estima na comunidade.
Em nível mais abstrato, a análise de gênero, feita por Patrícia J. Thompson (1991),
dos fundamentos simbólicos e socioculturais das bases dos campos de conhecimentos
clássicos das disciplinas acadêmicas e do lugar que ocupa a Economia Doméstica, levou a
uma nova conceitualização desse campo de conhecimento e prática. Para Thompson
(1991:21), os problemas com o nome Economia Doméstica tiveram sua origem na cooptação
patriarcal da palavra "oikonomeia" e a supressão de seus laços com o "oikos" ou o domínio "

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Héstia". O avanço da economia como ciência, em busca do desenvolvimento de modelos


matemáticos para a previsão de fenômenos de interesse, deu-se à custa do menosprezo pelas
atividades da esfera, típica das famílias, em razão das dificuldades de enquadrá-las nos
modelos teóricos e metodológicos. Para Thompson (1991), a Economia Doméstica: “É a
única área de estudo fundada fora das tradições patriarcais prevalecentes, daí seu baixo status
social. Um modelo não patriarcal teria uma lógica, uma linguagem e um objeto não-
patriarcais”. (THOMPSON. 1991).
A Economia Doméstica, contudo, lida com o mundo patriarcal em virtude do
modelo de família e sociedade, vivendo, assim, em conflito entre o que é considerado
"científico" e o senso comum (prático). Como o desenvolvimento da ciência e das teorias, em
geral, tem sido, até o presente, um empreendimento predominantemente masculino, centrado
no homem que apóia privilégios patriarcais, pode-se dizer que a economia Doméstica existe "
fora de teoria", porque ela existe fora do patriarcado das ciências ou das relações que
controlam e que são mantidas pelos textos e pelos símbolos patriarcais. A Economia
Doméstica tem sido marginalizada por aqueles que aceitam categorias conceituais patriarcais,
usam linguagem patriarcal e seguem linhas de raciocínios patriarcais.
Um dos problemas que tem dificultado a compreensão da Economia Doméstica
como atividade produtiva da economia geral do País, e ainda, como campo de estudo e
profissão, advém de sua associação com o termo "doméstico", que significa o espaço da casa
e da mulher, isto é, a associação com o que é considerado próprio da esfera privada da vida,
portanto, de interesse restrito ao âmbito da unidade doméstica ou familiar e possível de todo o
estigma que o termo carrega. Para Paul Hugon, a economia política também interfere nesses
aspectos no momento que:

O desenvolvimento das "forças produtivas" de uma nação realizar-se dentro


dos limites das fronteiras existentes no privado e público e na importância
dos fenômenos econômicos que exigem o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento de seu estudo. (HUGON., 1994:365-367).

Essa concepção, contudo, mostra-se limitada, pois a esfera privada ou o mundo do


doméstico constitui a outra face ou o complemento da esfera ou mundo público, já que a idéia
do privado só se completa com a idéia de público. Se a unidade doméstica/família constitui a
esfera privada da sociedade, é porque existiria uma outra que seria pública.
Essas esferas constituem idealizações de categorias construídas por pessoas, para
explicar, reivindicar e justificar propósitos diversos. Elas representam os diferentes espaços,

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não-separados, mas entremeados, da sociedade, pelos quais as pessoas, membros de família


(considerando as mais diversas formas, tipos e classes), transitam em virtude dos múltiplos
papéis que desempenham (de suas funções), quais sejam: empregados, empregadores,
consumidores, produtores, comerciantes, pais, mães, filhos, filhas, donas de cãs, executivos
(as), chefes de família, banqueiros, biscateiros, desportistas, estudantes, políticos, eleitores.
Essa visão dividida da sociedade em esferas distintas não é recente. No século 17,
quando a distinção entre público e privado tomou a forma de um estado e de uma unidade
doméstica (“household”) separados, as hierarquizações, culturalmente reconhecidas até então,
baseavam-se, principalmente, nas distinções políticas, nas quais o estado constituía o domínio
público do privilégio, enquanto a propriedade fundamentava-se na distinção entre classes.
No século 18, contudo, a esfera política da sociedade perdeu terreno para a esfera
econômica, e a distinção na hierarquia passou a ser baseada nas prerrogativas econômicas.
Essas mudanças na interpretação cultural, associadas à industrialização, à criação das esferas
separadas para homens e mulheres, bem como ao surgimento do individualismo econômico,
também favoreceram o realinhamento das relações Estado/economia como público/privado,
expressas na doutrina do “laissez-faire” da economia clássica.
No século 19, as discussões sobre economia deram pouca consideração à mulher,
à família e mesmo ao consumo, com exceção das discussões de Malthus e Stuart Mills, que
trataram da questão da população e dos direitos da mulher, respectivamente. O estado deveria
limitar-se a atividades de que o empresariado, por interesses próprio, não pudesse se
encarregar. Nesse período, o estado e a economia não compartilhavam a esfera pública, ao
contrário, a economia era demarcada de acordo com a forma modificada, pela distinção entre
o interesse público e o privado.
A tradição patriarcal ocidental privilegia um corpo de conhecimento teórico que
se dirige ás questões políticas do estado, em detrimento de um corpo de conhecimentos
teóricos que se dirige às questões da família. Com a capitalismo e a valorização das atividades
na esfera pública, as atividades da esfera privada foram ofuscadas e perderam ou tiveram seu
significado diminuído.
As questões de interesse do domínio privado só se tornam “problemas ‘ quando
alcançam proporções de crise no domínio público. As famílias e suas economias têm sido
exploradas e subjugadas pelos interesses econômicos e políticos, de tal forma e por tanto
tempo, que chegaram ao ponto de desagregamento da sociedade, culminando na crise atual. as
estatísticas sobre a situação da família atestam que os interesses e as atividades da esfera
doméstica não podem permanecer subjugados aos interesses ditos públicos ou dos setores

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formalmente reconhecidos da sociedade. O setor doméstico, ainda que às vezes apareça na


retórica política e nas teorias econômicas, é marginalizado nos orçamentos, bem como na
implementação de modelos. Em ambos os casos, porém, existe a suposição tácita de que o
setor doméstico, por meio do trabalho não remunerado da mulher e dos filhos, vai assumir a
responsabilidade de manter a vida dos membros da família.
Para GALBRAITH (1973) afirma que, ao longo da história, os setores mais
organizados da sociedade têm desenvolvido mecanismos para fazer com que certas atividades,
ainda que desagradáveis, mas úteis ao sistema q que servem, continuem a ser feitas. Um
desses mecanismos é atribuição do que ele chama de “a conveniente virtude social”. Para o
autor, a mulher e a família têm sido os alvos preferidos nessa cooptação. Em lugar da
recompensa financeira, recebem o louvor moral da comunidade, o que constitui “uma força
essencial ma modelagem de atitudes sociais”. Assim é que, na sociedade pré-industrial, a
mulher virtuosa era a genitora - a mãe de família com grande prole. Com a industrialização,
com o avanço da tecnologia e com a produção de bens em massa, virtuosa passou a ser a
administradora, a que sabe comprar, consumir. O autor apresenta uma visão muito crítica da
família e do papel da mulher, que ele considera subserviente, em face da sociedade de
consumo.
Diante do exposto, pode-se dizer que a economia doméstica é a soma de todos os
bens e serviços produzidos pela unidade doméstica, incluído o consumo. Ao falar estão em
economia doméstica, referimo-nos às atividades de produção, distribuição e consumo, no
âmbito doméstico, pelos membros da família, sem remuneração (MARQUES, 1989). Para
Reid:

A produção doméstica consiste naquelas atividades não-pagas que são


realizadas pelos membros da família e para eles, atividades essas que
poderiam ser substituídas por bens de mercado e serviços pagos, permitindo
que o serviço fosse delegado a alguém fora do grupo doméstico. (REID,
1994:11)

Este trabalho procura situar a Economia Doméstica, ou seja, os processos


econômicos da unidade doméstica no contexto da economia geral do país
(CEBOTAREV,1984).Esse modelo é retratado por um contínuo, proporcionando uma
compreensão mais ampla da economia geral ao longo do qual se situam diversas atividades
econômicas da sociedade, desde as atividades empresariais especializadas, com transações
financeiras em crédito e dinheiro, até o outro extremo, em que se encontra a Economia

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Doméstica na qual se produzem e se consomem bens e serviços com valor de uso, com troca
em espécie e afeto.
Ao falarmos de Economia Doméstica, estamos falando também daquelas
atividades ligadas ao produzir e ao reproduzir a vida, nas quais estamos todos envolvidos.
Esse envolvimento sugere uma familiaridade natural das pessoas com as questões domésticas,
seus problemas e procedimentos para a satisfação das necessidades, a qual não é verdadeira.
Em parte, essa suposta familiaridade também explica o “status” da Economia Doméstica na
sociedade, pois há tendência de se considerarem sem importância ou corriqueiras aquelas
coisas que nos cercam e que fazem parte do cotidiano. Essa pretensa familiaridade com as
estratégias, para satisfazer às necessidades básicas, tem levado todos, dentro e fora da
academia, a uma simplificação excessiva do que constitui, de fato, a administração de
recursos na família, escondendo a complexidade do cotidiano nas cidades, em virtude da
especialização das instituições.
Em geral, a produção e o consumo na família estão estreitamente relacionados
com o seu poder aquisitivo e com a situação econômica da sociedade. Em épocas de declínio
ou de estagnação da economia, com retração da oferta de emprego, verifica-se intensificação
nas atividades domésticas. Se o poder aquisitivo da família cai, quer por desemprego, quer
pela desvalorização dos salários ou aumento dos preços, verificam-se duas conseqüências
imediatas: a ativação da produção doméstica e a modificação no padrão de consumo. A
economia familiar tem a função importante de absorver os desempregados da economia de
mercado por meio da produção doméstica, indispensável para a manutenção do grupo familiar
e, portanto, para a sociedade.
Assim a invisibilidade da economia familiar resulta não apenas da exclusão social
da mulher no trabalho, como também da falta de remuneração. Ainda que se reconheça a
eficiência da Economia Doméstica e das pessoas que fazem essa economia, ela é desprezada
por não ser um trabalho, uma atividade remunerada. Para BURNS (1975), a desvalorização do
trabalho doméstico reside em sua não-remuneração. Segundo esse autor, a economia familiar
fere um dos artigos intocáveis do credo do capitalismo: os indivíduos trabalham (produzem)
em troca de dinheiro.
Diante de tudo que foi exposto podemos dizer que a Economia Familiar no
âmbito da Economia Doméstica não tem sua história própria, ela se confunde com a história
da humanidade. O modo de produção na sociedade pré-capitalista e no início do capitalismo
era baseado no trabalho conjunto da família, isto é, homem, mulher, criança, jovens, velhos,
parentes e não-parentes que constituíam uma " household", não separado da ordem pública,

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onde as atividades de produção, consumo e distribuição ocupavam o mesmo


espaço.(ENGLES, 1982).
De fato as atividades na esfera doméstica têm sido a pedra fundamental da
existência humana desde os tempos imemoriais, quer feitas pelas mulheres, quer pelos
homens. É um trabalho essencial, às vezes tido como penoso, mas que precisa ser feito ,mas
ser feito com inteligência (MORAES, 1981). Precisa ser pensado e teorizado, assim também
como as outras áreas de conhecimento que se dedicam ao estudo das demais atividades
humanas. (THOMPSON, 1991).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BADIR, Doris. Research: exploring the parameters of home economics. Canadian Home
Economics Journal 41 (2). Spring, 1991, p.. 65-70.

BURNS, Scott. The household economy: its shape origins and future. Boston, Bacon Press,
1975. 225p.

CEBOTAREV, Eleonora A. Nuevas perspctivas sobre el rol de la familia em el desrollo.


In: SEMINÁRIO TALLER DIMENSION SOCIAL DEL DESRROLLO, 1984. Dimension
social del desarrollo: Perspectivas para el tabajo com la família e la comunidad Manizales,
Universidad de Caldas, 1984, p.. 41-50.

DWYER, D. & BRUCE, J. A home divided: womwm and income orientationin the third
world. Stanford, Cal. Stanford university Press, 1993.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 8 ed. Trad.


Lenadro Konder. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982. 215 p.

GALBRAITH, John Kenneth. The economics & the public purpose. Boston, Houghton
Mifflin Company, 1973. 334p.

HUGON, Paul. A Economia Política no Brasil. In. AZEVEDO, Fernando de (org.). As


Ciências no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1994.

MARQUES, N. A.C. - A produção doméstica no sistema capitalista: os espaços que ainda


permanecem. Associação Brasileira de Economia doméstica. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE ECONOMIA DOMÉSTICA - ECONOMIA DOMÉSTICA DO
PRIVADO AO PÚBLICO, 10, Piracicaba, ESALQ. 1989, Anais... Piracicaba, ESALQ, 1989.
P95-103.

PETERAT, L. & DEZWART, M. L. " The Meaning of Paractical Home Economics".


Research Forum. Spring, 91: 57-59. 1992.

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REID, M. The economics of household production. Nem York, John Wiley and Sons, 1934.

SAVIANI, Dermeval- O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP:


Autores Associados, 2004.

THOMPSON, Patrícia J. Toward a proactive threoryof home Economics: the Hestian/


Hermean paradign. Themis: Journal of Theory in Home Economics, 1: 15-54, 1991.

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MÃE, ESPOSA E PROFESSORA: A EDUCAÇÃO FEMININA E


PROFISSIONAL DE EX-DOCENTES SERGIPANAS DO JARDIM DE
INFÂNCIA JOSÉ GARCEZ VIEIRA

Ana Paula dos Santos Lima – NPGED/UFS


paulinhampb@hotmail.com

Este artigo é um recorte de uma pesquisa, fruto da dissertação de mestrado que se encontra em
fase de investigação sobre o Jardim de Infância José Garcez Vieira, inaugurado em 10 de
novembro de 1944. O presente trabalho tem como objetivo aprofundar os estudos sobre
História da Educação Feminina em Sergipe, procurando desenvolver uma análise sobre os
caminhos traçados pela mulher para chegar ao magistério e sua contribuição para o
desenvolvimento educacional da sociedade, verificando, especificamente, de que forma se deu
essa influência no Brasil e em Sergipe. As fontes utilizadas para análise dessa trajetória foram
documentos oficiais e institucionais, como atas, ofícios, decretos, entrevistas e depoimentos
de ex-professoras, registros da imprensa e diplomas das respectivas professoras. Os aportes
teóricos da Nova História Cultural possibilitaram subsídios para identificar que as moças
sergipanas no início do século XX eram encaminhadas para escolas particulares para
realizarem o ensino primário e, em seguida, grande parte para a Escola Normal Rui Barbosa,
que formou grande parcela de moças de famílias sergipanas.

Palavras-chave: Docentes, Educação feminina, Jardim de Infância.

INTRODUÇÃO

Nas duas últimas décadas do século XX, o campo da História da Educação, sob a
influência da História Cultural, sofreu uma revolução no que se refere aos temas, objetos,
fontes e contornos teórico-metodológicos.1013

1013
CASTANHO, Sérgio. 2000. Questões teórico-metodológicas de História Cultural e Educação. IN: Anais do
1º Congresso Brasileiro de História da educação. Rio de Janeiro. SBHE. CDROM.

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Assim, ao olhar a nossa historiografia da educação, verificamos que estas são


conquistas recentes. Segundo Lopes e Galvão1014, no campo da História, a educação tem sido
tradicionalmente um objeto ignorado ou considerado pouco “nobre”, porém a influência da
Nova História Cultural vem transformando um pouco essa realidade. Tem permitido ao
pesquisador um aporte teórico para as pesquisas em História da Educação.
Atualmente existe uma tendência na comunidade de historiadores quanto às
renovações temática e metodológica relacionadas aos estudos nessa disciplina. Nas décadas
de 1960 e 1970, predominavam as pesquisas que optavam por uma tendência marxista de
interpretação. A partir da década de 1980 já encontramos trabalhos voltados para o viés que
utiliza os conteúdos engajados na Nova História Cultural. O interesse por práticas e materiais
pedagógicos não considerados anteriormente, tais como “vasculhamento” de arquivos,
estudos autobiográficos, dentre outros, nos fazem acreditar que está se formando uma nova
geração de pesquisadores. Segundo VIDAL e FARIA FILHO, “desde a segunda metade do
século XIX, tratados sobre história da educação brasileira foram elaborados por médicos,
advogados, engenheiros, religiosos, educadores e historiadores e circularam no País e no
exterior”1015.
Em Sergipe, o pesquisador e professor Jorge Carvalho do Nascimento fez um
levantamento dos estudos de História da Educação produzidos nesse Estado. O autor faz um
elenco das monografias, dissertações e teses sobre História da Educação, permitindo a outros
pesquisadores o encontro com novas fontes.

Os estudos sobre História da Educação produzidos em diferentes períodos e


sob distintas perspectivas teóricas contribuíram, seja como estudos
historiográficos de valor, seja como elementos de construção de uma
memória. (...) O avanço dos estudos em História da Educação no Estado de
Sergipe, na última década, permite, provisoriamente, uma única conclusão:
há muito ainda por fazer, porque cada época ‘tem de reescrever a história,
sendo impossível um resultado definitivo ou uma síntese final.1016

Este artigo é um recorte de uma pesquisa fruto da dissertação de mestrado que se


encontra em fase de investigação, sobre o Jardim de Infância José Garcez Vieira, inaugurado
em 10 de novembro de 1944. O presente trabalho tem como objetivo aprofundar os estudos

1014
LOPES, Eliana Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da educação. Rio de Janeiro
DP&A. 2001.
1015
VIDAL, Diana Gonçalves e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. “História da Educação no Brasil: a
constituição histórica do campo (1880-1970)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº45, p.37-
70. 2003.
1016
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Historiografia educacional sergipana: uma crítica aos estudos de
História da Educação. São Cristóvão, UFS, 2003, p.72. (Coleção Educação é História, 1).

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sobre História da Educação feminina em Sergipe, procurando desenvolver uma análise sobre
os caminhos traçados pela mulher para chegar ao magistério e sua contribuição para o
desenvolvimento educacional da sociedade, verificando especificamente de que forma se deu
essa influência no Brasil e em Sergipe. As fontes utilizadas para análise dessa trajetória foram
documentos oficiais e institucionais como atas, ofícios, decretos, entrevistas e depoimentos de
ex-professoras, registros da imprensa e diplomas das respectivas professoras. Os aportes
teóricos da Nova História Cultural possibilitaram subsídios para identificar que as moças
sergipanas no início do século XX eram encaminhadas para escolas particulares para
realizarem o ensino primário e em seguida grande parte para a Escola Normal Rui Barbosa,
que formou grande parcela de moças de famílias sergipanas.
Sendo assim, a história de vida das entrevistadas possibilitou a compreensão da
realidade vivenciada no cenário educacional sergipano em meados do século XX. Assim,
como lembra Catani,1017 o fato de narrar a sua vida favorece a constituição da memória
pessoal e coletiva, inserindo o sujeito professor “nas histórias” e possibilitando, a partir desse
exercício, a compreensão e renovação de suas práticas.
Ainda que cada depoimento contenha a sua particularidade, é possível identificar
semelhanças nas informações transmitidas devido ao fato das educadoras dividirem o mesmo
contexto sócio-histórico, conforme pode ser acompanhado posteriormente.
As trajetórias dessas professoras foram marcadas por uma visão idealista da
educação, percebida como um sacerdócio, o que é expresso em referências como “amor”,
“vocação” e “doação”. O ser professor nesse período histórico está associado à noção de
mestre sábio e respeitado.
A idéia de compreender a memória de professoras da pré-escola em Aracaju tem
como pressuposto a necessidade de ampliar os estudos sobre os professores sergipanos, e
analisar a sua contribuição no cenário educacional em Aracaju.
Foram realizadas entrevistas com as ex-professoras, através dos instrumentos
metodológicos da pesquisa biográfica semi-estruturada através da coleta dos depoimentos e da
análise documental, procurando perceber as concepções e práticas do magistério, e, seus
reflexos na formação educacional.

1017
CATANI, Denice Bárbara. Práticas de formação e ofício docente. In: BUENO, Belmira Oliveira; CATANI,
Denice Bárbara; SOUSA, Cynthia Pereira de. A vida e o ofício dos professores. São Paulo: Escrituras. 1998.

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1. A PROFISSÃO DOCENTE NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Excursionar o século XX pelos caminhos da educação feminina, a formação das


jovens professoras pelas escolas normais e a feminização do magistério, a formação da
mulher durante alguns séculos foi relegada ao segundo plano. Mas com o advento da
República a mulher conquistou o direito de receber uma educação formal para atender as
necessidades exigidas pela sociedade que se encontrava num processo histórico emergente.
Nesse período, passou a ser preparada, para o mercado de trabalho, e assim, conquistar outros
espaços e se afastar um pouco das tarefas domésticas do lar.
Acompanhando a inserção feminina num espaço profissional representado pela
educação da infância, há de se considerar que no cenário das primeiras décadas, o século XX
foi também o período em que se iniciaram os primeiros movimentos pela libertação feminina.

O início da República aponta para a necessidade da educação da mulher,


vinculando-a a modernização da sociedade, à higienização da família e á
formação dos futuros cidadãos. Novas exigências são colocadas para as
mulheres, que desde jovens devem ser preparadas para assumir o papel de
educadora no lar. Os discursos liberais insistiam na escolarização primária
da mulher e valorizavam como campo de atuação feminina, o espaço
doméstico. 1018

Assim, exigia-se da mulher-mestra, preparo para se tornar uma espécie de mãe de


seus alunos, para que recebessem dela os ensinamentos que os capacitassem servir a pátria.
Essa idéia estava presente no imaginário daquelas professoras e ligada ao projeto político do
Brasil, desde a sua Independência.
Ao longo das últimas décadas do Império, o crescimento do número de escolas
femininas e a implantação de escolas mistas no mesmo período favoreceram o acesso das
meninas e jovens a escolarização, embora não sendo suficiente para alterar a concepção
vigente que as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”. A educação escolar
objetivava prioritariamente a formação moral e a constituição do caráter, em detrimento ao
acesso aos conteúdos formais. Serem boas esposas e mães exemplares era o destino
socialmente estabelecido para elas, que exigia uma moral adequada e bons princípios sociais.
A categoria masculina, no caso os homens, é permitido e exigido, segundo o seu
"caráter natural", serem mais fortes, destinados ao sucesso e à liderança. Estas características
1018
FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do
século XX. Campinas: Faculdade de Educação. 2003, p.35. (Tese de Doutorado).

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aparecerão como parte de sua natureza, o que vão colocá-los como mais capazes de violar os
condicionamentos que lhes são apresentados. Enquanto para as mulheres, consideradas
dóceis, frágeis e menos capazes de ousar, os elementos da educação são mais determinantes e
cobram delas um comportamento submisso, entendido como constitutivo de sua condição
feminina.
A educação feminina para alguns pais era entendida como aprender a ler e
escrever, dentro dos lares e que o ensinamento oferecido aos meninos seria diferente. A ida
dessas jovens ao convento significava aprender a bordar, coser, culinária, ler, escrever e
contar, latim, música e história sagrada, era uma educação que preparava as jovens para o
casamento em idade de tenra mocidade.
O movimento de feminização do magistério correspondeu a uma ampla
transformação social relacionada ao projeto modernizador. Simultaneamente à urbanização e
industrialização do país, aumentaram as possibilidades de trabalho para os homens, as
expectativas de escolarização da população, a presença dos imigrantes e a ascensão de grupos
sociais médios. Os homens foram, então, abandonando paulatinamente o magistério. Aqueles
que ficaram foram sendo remanejados para funções mais altas como a de inspetores escolares
e diretores para disciplinas específicas, de caráter mais técnico, justificando-se, desse modo a
diferenciação salarial do corpo docente relativos ao gênero. O discurso sobre a incapacidade
feminina, “[...] sua pouca energia e grande fragilidade física e intelectual”1019, descredenciava,
pois, as mulheres a ocupar cargos mais altos na educação e as legitimava a ensinar disciplinas
atribuídas ao gênero feminino, em especial, as prendas domésticas1020.
A profissão docente no Brasil vem passando por grandes transformações desde o
século XIX, quando surgiram as primeiras Escolas Normais incumbidas da formação de
professores para atuarem nas escolas primárias do país. Desde o período imperial, já existia o
propósito de formar o professor para o magistério "primário", sendo que o governo imperial
responsabilizava-se pela manutenção dos cursos superiores então existentes e reduzidos e
atribuía às províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário.
A criação das escolas normais, nas décadas de 30 e 40 do século XIX, representou
nova etapa no processo de institucionalização da profissão docente, o qual foi marcado pela
restrição do controle estatal e pela busca de melhoria do estatuto sócio-profissional dos
docentes. Os primeiros decretos de criação de Escolas Normais surgiram em vários pontos do
país: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Nem todas essas instituições foram
logo inauguradas.

1019
ALMEIDA, Jane. Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998, p.197.
1020
NOVAES, M. E. Professora Primária: mestre ou tia. 4ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.

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Durante muito tempo, os estudos sobre o processo de formação de professoras não


foi priorizado pela historiografia educacional brasileira. No entanto, ultimamente a
experiência de vida de professoras como agentes educacionais e especificamente a
feminização do magistério têm se tornado sujeito da memória. Dar “vozes” às mulheres
professoras possibilita identificar e reconhecer espaços de resistências, além de desconstruir
uma história da educação registrada em sua maioria por homens e respaldada por documentos
oficiais.
No Brasil a mulher adquiriu direito legal a educação pública através da Lei
Imperial de 15 de outubro de 1827, que previa a criação de escolas de primeiras letras nas
cidades, vilas e lugarejos mais populosos, para meninos e meninas, em todo o território
brasileiro.1021. A partir de então, foram implantadas as aulas de primeiras para meninos e
meninas que deveriam ser providas, preferencialmente, por professoras.
Em Sergipe, as primeiras aulas públicas de primeiras letras para meninas surgiram
em 1831, nas cidades de São Cristóvão, Laranjeiras (SE) e Própria (SE). Em 1834,
funcionavam 29 escolas de primeiras letras, das quais 25 eram masculinas e as 4 femininas.
Dessa forma, funcionavam, neste mesmo ano, 12 aulas públicas que atendiam apenas aos
alunos homens. 1022
Segundo Freitas1023, em 1930, em Sergipe, as professoras públicas primárias se
distribuíam entre as três entrâncias e a capital. Apesar do número de professoras leigas, a
participação das professoras formadas pela Escola Normal é significativa, principalmente na
capital.
Durante muito tempo, os estudos sobre o processo de formação de professoras não
foi priorizado pela historiografia educacional brasileira. No entanto, ultimamente a
experiência de vida de professoras como agentes educacionais e especificamente a
feminização do magistério têm se tornado sujeito da memória. Dar “vozes” às mulheres
professoras possibilita identificar e reconhecer espaços de resistências, além de desconstruir
uma história da educação registrada em sua maioria por homens e respaldada por documentos
oficiais.
Um dos principais responsáveis pela naturalização dos papéis do homem e da
mulher na sociedade é o processo educativo - ato eminentemente político, comprometido com

1021
FREITAS, Op. Cit, p.52.
1022
NUNES, Maria Thétis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Aracaju: Secretaria
de Educação e Cultura do Estado de Sergipe; Universidade Federal de Sergipe, 1984, p.47.
1023
FREITAS, Op. Cit, p.149.

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a formação da personalidade dos sujeitos, responsável por transmitir-lhes valores, impor-lhes


proibições, apresentar-lhes e inculcar-lhes modelos com os quais cada um - homem ou mulher
- deverá se identificar e, conseqüentemente, aderir, segundo sua "natureza".
O Estado de Sergipe, como afirma Thétis Nunes1024, é influenciado por alguns
movimentos sócio-políticos como, “O Congresso Brasileiro de Instrução Secundária e
Superior em 1922, a fundação da Associação Brasileira de Educação em 1924 e os amplos
debates na Imprensa e no Parlamento sobre a realidade educacional brasileira traduziam a
ânsia de renovação dominante”, bem como, também é identificado nos registros históricos
que, em 1923, a Escola Normal passou a denominar-se “Rui Barbosa” e em 1926 recebeu
novo Regulamento, que alterava o plano de estudo vigente com a ampliação do curso para
cinco anos, assim identificando a ressonância dos ideais em nível do Brasil no Estado de
Sergipe.
Em análise sobre a relação entre gênero e docência, a pesquisadora Guacira
1025
Louro , afirma que algumas mudanças sociais ao longo do século XIX permitiram não
somente “a entrada das mulheres na sala de aula, mas, pouco a pouco, o seu predomínio como
docente.” A autora esclarece que para entender estas mudanças se faz necessário ir além dos
decretos e leis que permitiram este movimento.

Talvez mais adequado seria entender que, naquele momento um processo de


urbanização estava em curso, no interior do qual – além da presença de
outros grupos sociais, como os imigrantes, de outras expectativas e práticas
educativas e de outras oportunidades de trabalho – um novo estatuto de
escola se instituía. O magistério se tornará, neste contexto, uma atividade
permitida e, após muitas polêmicas, indicada para mulheres, na medida em
que a própria atividade passa por um processo de ressignificação; ou seja, o
magistério será representado de um modo novo na medida em que se
feminiza e para que possa, de fato, se feminizar.1026

No que diz respeito à formação docente, se analisada em uma perspectiva


histórica, baseava-se no faça como eu faço, ou seja, os professores apenas repetiam aquilo que
haviam aprendido em sua formação. Faziam seus planejamentos e os utilizavam, durante
muito tempo, apenas repetindo aquilo que haviam aprendido, acreditando como sendo esta a
única verdade e forma de realizar sua tarefa. Diante de tal situação e das diversas
transformações pela qual a sociedade passou, vem passando e ainda passará, o professor se
depara com muitos desafios tanto em seu processo de formação inicial, como no

1024
NUNES, Maria Thétis. Op. Cit, p.244-245
1025
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:
Vozes, 1997.
1026
LOURO, Op. Cit, p.95

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desenvolvimento de sua prática. Behrens1027 cita dois principais desafios que os professores
têm que transpor, “um relaciona-se ao profissional, que enseja um realinhamento do seu papel
como docente; o outro se relaciona ao âmbito pessoal (...) na reconstrução de crenças, valores
e convicções”. A primeira etapa desse desafio tem sido mais comentado, mas o segundo que
se refere ao aspecto pessoal, na maioria das vezes é esquecido, como se o professor não
tivesse a sua prática direcionada também por este aspecto. Nóvoa comenta a respeito da
dimensão pessoal e profissional no processo de formação docente.

A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça


aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as
dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um
investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os
projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também
uma identidade profissional. (...) a formação não se constrói por
acumulação (de cursos, de conhecimentos ou técnicas), mas sim através de
um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re) construção
permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a
pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.1028

2. A EDUCAÇÃO FEMININA EM SERGIPE

Os poucos registros deixados apontam indícios pertinentes às construções de


escritas biográficas de mulheres sergipanas que viveram entre os séculos XIX e XX e
permanecem silenciadas na história, especificamente no que se refere às pobres e indigentes.
As fontes atrelam-se a questões vinculadas às sentenças judiciais e às resoluções, como a de
nº 979, aprovada pela Assembléia Provincial em maio de 1874, que autorizou o presidente da
Província a criar um asilo para órfãos desvalidos.
O asilo de Nossa Senhora da Pureza foi criado com esse propósito. O crescimento
da população de Aracaju, na década de 1920, além das questões econômicas e comerciais
como a instalação de duas grandes indústrias têxteis a Fábrica Confiança e a Sergipe
Industrial, pode ser explicado pela grande migração do interior para a capital, entre outros

1027
BEHRENS, M. A. Formação continuada de professores e a prática pedagógica. Curitiba: Champagnat, 1996,
p.95.
1028
NÓVOA, Antônio. A formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, Antônio. (org.) Os
professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995, p. 25.

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fatores. A modernização da cidade e a maior oferta de oportunidades de emprego e de


escolarização aumentaram o interesse para este processo migratório. Segundo Dantas1029, em
1920, a população de Aracaju era aproximadamente de 37.440 habitantes e, em 1924, cresceu
para 42.469 indivíduos.
Entretanto, o número de habitantes não correspondeu ao aumento do número de
crianças e jovens escolarizados. O total de alunos matriculados no ensino primário em 1889
era menos de 2% da população. Em 1930, o percentual de atendimento subiu para quase 3%da
população. Apesar do crescimento da matrícula do Colégio Atheneu e da Escola Normal e
também do aumento do número de alunos concluintes do ensino primário na capital, os
índices ainda apresentavam a seletividade do sistema de ensino e a restrita parcela da
população que tinha acesso ao processo de escolarização oficial.
Na segunda metade do século XX, o magistério primário em Sergipe, aos poucos
deixou de ser exercido apenas pelas jovens solteiras oriundas das classes mais favorecidas da
sociedade. A partir da década de 1960, muitas jovens que procuravam o Instituto de Educação
Rui Barbosa almejavam uma carreira e investiram de forma estratégica em busca de ascensão
nesta profissão. O magistério, enquanto profissão passou a ser exercido de forma a garantir
não apenas os meios de subsistência, mas também como espaço de realização profissional e
de conquistas para algumas gerações. Logo após a formatura no curso normal as ex-alunas
geralmente buscaram os concursos públicos no âmbito estadual ou municipal para
ingressarem no magistério público. Muitas delas passaram os anos iniciais do exercício do
magistério lecionando no interior do Estado. Uma das estratégias mobilizadas em favor da
ascensão profissional foi à realização de cursos de graduação de licenciatura plena na
Universidade Federal de Sergipe, criada em 1968, ou em outra instituição de ensino superior
privada. A conquista do diploma do curso superior significou para um grupo de entrevistadas
a possibilidade de exercer funções de administração, orientação, supervisão e coordenação
pedagógica, garantindo a ampliação do exercício do magistério para além da sala de aula.
Algumas também investiram em cursos de pós-graduação como especialização.
A década de 1960, no âmbito educacional, não teve registros significativos com o
objetivo de melhorá-los. Destacaram-se entre elas a criação do Colégio Estadual Rui Barbosa
de Sergipe e o início da construção de um novo edifício para o Instituto de Educação Rui

1029
DANTAS, José Ibarê Costa. O tenentismo em Sergipe. 2. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade Editora, 1999,
p.48.

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Barbosa. Além de Escola Superior de Serviço Social, contava o Estado com as Faculdades de
Filosofia, Ciências, Letras, Ciências Econômicas, Direito e Química, direcionando para essas
instituições a aspiração das classes média e alta.
As moças sergipanas no início do século XX em geral eram encaminhadas para
escolas privadas, que funcionavam em regime de internato ou semi-internato, para realizarem
o ensino primário e posteriormente a maioria delas seguiam para a Escola Normal Rui
Barbosa, que formou várias gerações de intelectuais sergipanas.
Assim, em Sergipe, a presença das mulheres no magistério foi marcante, assim
como em outros setores do mercado de trabalho como nas indústrias e nas atividades
relacionadas com a esfera doméstica. A partir das primeiras décadas do século XX, mais
precisamente na década de 1960, vamos perceber uma maior presença das mulheres em
alguns campos profissionais, mas em outras áreas profissionais ainda era difícil o acesso ao
trabalho feminino.

Na prática, a inclusão de mulheres de classe média e alta na força de


trabalho provavelmente mais beneficiou a economia do Brasil do que
beneficiou as próprias mulheres. Somente um pequeno número delas
conseguiu verdadeira satisfação e independência com o trabalho
assalariado, enquanto a economia em rápida expansão ganhou uma grande
reserva de mão-de-obra facilmente explorável, que podia ser encaminhada
para empregos rotineiros e de baixo status. Além disso, o ingresso de uma
elite de mulheres em carreiras novas mais prestigiadas só muito
gradativamente modificou os estereótipos da ‘natureza’ feminina. O
impacto potencialmente radical do emprego feminino foi solapado pela
segregação da ampla maioria de trabalhadoras em cargos ‘femininos’ que
lhes proporcionavam remuneração muito baixa, exigia apenas qualificação
mínima e não permitia exercício algum de autoridade – em suma, cargos
que as mantinham impotentes. 1 1030

A participação feminina em atividades fora do lar, mas dentro da sala de aula,


favoreceu o redimensionamento do estado feminino na sociedade. Sua valorização e,
diminuição do preconceito foi questão de tempo, pois, logo, ela conquistaria outros ramos de
atividades. Diante do convite à industrialização, as moças procuravam o Curso de Formação
de Professores Primários no Instituto de Educação Rui Barbosa, passaram a interessar-se por
curso que poderiam lhe proporcionar uma formação geral, como o científico ou clássico,
provocando uma diminuição significativa na demanda nesse ramo da educação.

1030
BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 1914-1940.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 180,181.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Instituto de Educação Rui Barbosa foi responsável pela formação de várias


gerações de professoras em Sergipe. Até meados da década de 1940, era única instituição de
ensino público dedicada à formação de professores ao lado de colégios confessionais que
atuavam na capital e no interior do Estado.
A maioria das sergipanas estava acomodada aos papéis tradicionais de esposa e mãe,
restritas ao ambiente doméstico. Subverter as fronteiras entre os limites do público e do
privado, para as professoras a partir da década de 1960, era uma conquista que parecia ter sido
realizada por algumas gerações anteriores, mas ainda assim causava uma certa dúvida.A
maneira como cada uma delas lembrou os processos de formação, as conquistas na carreira
docente, as marcas que deixaram em cada uma das instituições em que atuaram, a pluralidade
das atividades que desenvolveram permitiram, em alguns momentos, aproximações mais
incisivas aos processos de rupturas e de tensões em que estiveram envolvidas. No jogo
político das lembranças e dos esquecimentos foi possível perceber como as professoras
desenvolveram suas diferentes atuações, que táticas mobilizaram e como construíram suas
marcas na ocupação do espaço público.
Para a realização da coleta de dados, elaboramos um roteiro, baseado em estudos
bibliográficos referentes à metodologia. Esse momento serviu tanto para o aprofundamento
teórico-metodológico do pesquisador, como para a preparação do pesquisador-entrevistador
que se encarregou da coleta e do registro dos relatos.
É importante destacar que esse roteiro se destinou apenas a orientar o pesquisador,
para que estes não perdessem o elo com as referências que norteavam a pesquisa, abarcando,
dessa maneira, às categorias eleitas no projeto, tais como: o imaginário, os processos de
escolha e de formação e as relações de gênero.
A maternidade aponta os dados analisados, continuava sendo avaliada como o
principal papel da mulher, todavia os discursos mostram que uma nova função começava a
aparecer como sendo também ligado ao da maternidade, o de educadora. Criar os filhos e
educá-los eram atribuições consideradas naturais ao feminino. O papel de professora era tido
como compatível com as qualidades femininas e indicado para as mulheres, já que não se
contrapunha às determinações biológicas.

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Observa-se através da análise realizada neste trabalho, a importância dos estudos


sobre educação, gênero e infância. Ao entrar em contato com os discursos e as práticas dessas
professoras do século XX, foi possível perceber que elas viam o magistério como uma
“vocação”, destino ou até mesmo “talento”, para a profissão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UNESP, 1998.

BEHRENS, M. A. Formação continuada de professores e a prática pedagógica. Curitiba:


Champagnat, 1996.

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IN: Anais do 1º Congresso Brasileiro de História da educação. Rio de Janeiro. SBHE.
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ASPECTOS DA EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL COLONIAL: OU


PROCESSO EDUCATIVO DESIGUAL

Iêda Maria Leal Vilela – IERB-SE/UFS


imvilela@yahoo.com.br

O presente artigo objetiva realizar um estudo bibliográfico sobre as origens da educação


feminina no âmbito da família patriarcal, no Brasil Colônia, tendo como foco principal o
processo desigual da educação da mulher. A trajetória teórico-metodológica estabelece como
ponto inicial de análise a formação da família brasileira como modelo da unidade básica do
patriarcado, na qual se constrói os nexos para a relação com a educação patriarcal Trata-se de
um estudo complementar, ora em desenvolvimento, decorrente de um trabalho mais amplo
desenvolvido pela autora. Objetiva, também, problematizar o patriarcado enquanto discurso
normativo de papéis familiares, uma vez que valores patriarcais atravessaram os tempos e
deixaram suas marcas, de forma visível e traumatizante, na constituição da família brasileira
ainda nos dias de hoje. Com esta pesquisa, pretende-se contribuir para o aprofundamento da
compreensão da Família Patriarcal, da Igreja e do Estado como fontes geradoras de atraso do
processo educacional escolar feminino. Basicamente, a fundamentação teórica deste estudo
dar-se-á através da compreensão e análise das idéias de Fátima Quintas, Heleieth Saffioti,
Guacira Lopes Louro, Maria Thetis Nunes e Arilda Inês Ribeiro.

Palavras-chave: História da Educação Feminina; Família Patriarcal; Brasil Colonial.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo bibliográfico sobre os


primórdios da educação feminina no âmbito da família patriarcal, sob a égide da Coroa
Portuguesa no Brasil Colonial, cujo foco principal é a educação da mulher, sendo essa
originária de um processo desigual, resultante do contexto histórico-cultural do Brasil naquela
época. Para alcançar tal objetivo, será estudada, inicialmente, a instrução formal recebida
pelas mulheres, ministrada nos Conventos, que representaram, assim, a primeira Instituição de

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Educação formal direcionada às mulheres. Este estudo tornou-se necessário em decorrência


de um trabalho mais amplo, desenvolvido pela autora sobre o baixo grau de escolaridade
como um dos agravantes da violência praticada contra a mulher pobre, no ano de 2003.
A educação da mulher, ao longo da história, sempre se deu de forma diferenciada e
desigual daquela destinada aos homens. Durante muitos anos a mulher foi induzida a não
transpor as barreiras do lar, na medida em que suas únicas funções eram cuidar do “seu
senhor”, o provedor da casa, de sua prole e dos afazeres domésticos.
Na sociedade brasileira, como em outras sociedades, cuja base de sustentação era a
desigualdade, a situação da mulher brasileira, até os primórdios do século XX, foi equivalente
à do escravo e à da criança.
Segundo Saffiotti (1987), embora o poder de macho apresente nuances diversas,
está presente nas classes dominantes e dominadas, nos contingentes populacionais brancos e
não brancos. Ademais, a mulher era depositária de todo o poder do macho, do patriarca, da
família tradicional, da Igreja, da ciência e afastada, distanciada da questão do saber, devido à
proximidade com o poder.
Assevera Ribeiro (2007) que as mulheres, independentemente de sua etnia,
poderiam ser brancas, ricas ou empobrecidas, negras escravas, como também indígenas, não
tiveram o direito à instrução. Segundo a autora, essa questão tem suas origens na influência
exercida pela cultura árabe presente em Portugal durante quase 800 anos e transposta para a
sua colônia brasileira. Aquela cultura sempre considerou a mulher como um ser inferior.
Assim, para tal cultura, a mulher fazia parte do imbecilitus sexus ou sexo imbecil. A essa
categoria estavam enquadradas as mulheres, as crianças e os débeis mentais. Dessa forma, a
instrução feminina não era valorizada; seria assim uma coisa desnecessária. Afirma Ribeiro
(2007) que o poeta e alfabetizador português Gonçalo Trancoso, muito lido pelos homens
entre os anos 1560 e 1600, justificava a falta de interesse, na época, em transmitir instrução
para a mulher, diminuindo-a a ponto de argumentar que ela não tinha necessidade de ler,
escrever e, se possível, falar. Assim, a mulher honrada deveria ser sempre calada. Logo, era
esse o padrão de comportamento exigido da mulher na sociedade seiscentista em Portugal e,
conseqüentemente, na colônia brasileira.
Vale destacar, afirma Cardoso (1981), que as mulheres de família viviam
trancafiadas, dentro de casa, para não ver o que faziam os homens e as prostitutas, fora de
casa. Foi nesse contexto, totalmente relegadas a uma situação de inferioridade e desprestígio,
discriminadas na sua própria casa e na sociedade, que as mulheres viveram por longos anos.
Há milênios o poder esteve concentrado em mãos masculinas, ancorado na Instituição

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Patriarcal. A família patriarcal, no período colonial como um todo, era rigorosa e autoritária
para com a mulher, impossibilitando-a de desenvolver-se em todos os sentidos, execrando-a
aos limites do âmbito doméstico como um ser de segunda categoria, cuja única função seria a
procriação, a produção de seres humanos.

A INSTRUÇÃO FEMININA NA COLÔNIA: UM PROCESSO DESIGUAL

No período colonial, a economia brasileira estivera atrelada à exploração da mão-


de-obra escrava, expropriação das riquezas naturais e o comércio dos produtos, que tinham
grande representatividade e valor no comércio internacional.. Assim, diz Safiotti, [...] a
sociedade que gira em torno desse quadro não considera a educação como uma questão de
prioridade, uma vez que não representa requisito para aquisição de bens (SAFFIOTI, 1976,
p.130).
Durante o período em que o Brasil esteve sob a égide da Coroa Portuguesa, de
1500 a 1822, a educação feminina era, praticamente, restrita aos cuidados com o marido, os
filhos e a casa. A educação era, assim, direcionada aos filhos homens, dos indígenas e dos
colonos. Os filhos dos colonos cuidavam dos negócios do pai, tornavam-se padres jesuítas ou
iam estudar em Coimbra (RIBEIRO, 2007). Assim, a Instituição Escolar, da época,
privilegiava a instrução masculina em detrimento da feminina, impossibilitando, dessa forma,
quaisquer chances de a mulher participar da vida social, principalmente, da vida pública, até
mesmo de sair, para simples lazer. Assevera Ribeiro (2007) que no período colonial os
indígenas reivindicaram ao padre Manuel da Nóbrega instrução para suas mulheres, pediram
que lhes fosse ensinado a ler e escrever do mesmo jeito que eles estavam aprendendo. Esse
pedido causou, realmente, admiração. Ao contrário do homem branco, eles consideravam suas
mulheres como companheiras. No entanto, não foi aceito pela Rainha de Portugal, que alegara
tratar-se de uma iniciativa ousada, pois poderiam advir “conseqüências nefastas” com o
acesso das indígenas à cultura. Ademais, diz Ribeiro, [...] no século XVI, na própria
Metrópole não havia escolas para as meninas. Educavam-se em casa. As portuguesas eram, na
sua maioria, analfabetas (RIBEIRO, 2007, p.18). Argumenta, ainda, essa autora, através de
suas pesquisas, que o Padre José de Anchieta escrevia nas cartas de Piratininga sobre os
encontros de conversão da catequese, afirmando que a freqüência das mulheres era muito
maior do que a dos homens. Não obstante, o pedido do padre foi negado, e mesmo assim,
algumas poucas índias conseguiram burlar tal ordem e aprenderam a ler e escrever, a exemplo

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de Catarina Paraguaçu, que parece ter sido a primeira mulher brasileira a aprender a ler e
escrever. Não se sabe ao certo, conforme diz Ribeiro (2007), se seria filha ou esposa de Diogo
Álvares Correa, o Caramuru, que já se encontrava na Bahia, e fora incumbido pelo Rei de
Portugal a auxiliar Tomé de Souza no processo de colonização portuguesa no Brasil. No
entanto, no “Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade”, organizado por
Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil, estes esclarecem que Catarina Paraguaçu era uma
índia tupinambá, filha do morubixá Taparica e tinha o nome indígena Guaibimpará. Presume-
se que ela tenha nascido em 1503. Casou-se com Diogo Álvares Correa, que chegou ao Brasil,
mais precisamente no litoral da Bahia, em 1510, vítima de um naufrágio, quando se encontrou
com Guaibimpará, a qual intercedeu junto a seu pai a fim de que este poupasse a vida de
Diogo Álvares Correa. Ademais, acrescentam os autores anteriormente citados sobre a
importancia e as representações desse casal para a historiografia brasileira, senão vejamos:

[...] Catarina Paraguaçu foi uma figura histórica; representou a união das
duas culturas e sua vida deu origem a inúmeras imagens criadas em torno
desse processo civilizatório, especialmente por autores do século XIX.
Consolidou-se na memória construída em torno das mulhrres indígenas
como uma das mães do povo brasileiro (Scumaher; Brasil, 2000, p.144-
145).

Nessa época, século XVI, a colônia brasileira tinha poucas mulheres portuguesas.
Dessa forma, seria necessário que fossem enviadas, com urgência, mulheres brancas para a
Colônia. Ademais, decorrente de tal fato foi criado o mito da mulher branca. Assim, o
preconceito em relação às mulheres de outras etnias aumentou com a vinda da mulher branca
portuguesa, independentemente de sua procedência. Poderia ser ladra, alcoólatra, prostituta ou
portadora de debilidade mental, pois [...] na colônia brasileira elas seriam responsáveis pela
perpetuação do domínio europeu, por meio da procriação (RIBEIRO, 2007, p.82).
As primeiras escolas na colônia foram criadas pelos jesuítas. Entretanto, a
educação não era um bem que as pessoas valorizassem naquela época. Apesar de os padres
deterem muito poder, eles não enfrentavam o senhor patriarcal, que era o dono de tudo:
terras, escravos, inclusive da mulher e filhos. Contudo, os padres usaram de muita delicadeza,
mas não deixaram de ensinar a religião às crianças, nas escolas que fundaram, e as mulheres
ministravam suas lições nas capelas da Igreja Católica. Assim, a mulher discriminada em
todos os espaços encontrou na Igreja uma espécie de refúgio. Entretanto, a Igreja pregava que
a mulher deveria obedecer não só ao marido, mas também à religião, como pregava São Paulo
(CARDOSO, 1981). Logo, a Igreja nesse período, pode-se afirmar, muito contribuiu para que

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a mulher se tornasse medrosa, obediente, parada e submissa dentro de casa. Raramente


aprendia a ler e escrever; era tímida, corava diante de estranhos, porém a Igreja achava esse
comportamento [...] salutar, porque via nele a única forma de salvar a virtude da sociedade
(CARDOSO, 1981, p.19).
Contudo, apesar de precária, a primeira instrução recebida pelas mulheres foi
transmitida, inicialmente, nos conventos. Ensinaram as primeiras letras, escrita, música e,
sobretudo, os trabalhos manuais. Eles representaram, dessa forma, argumentam Santos &
Torres (2001), a primeira instituição de transmissão formal de instrução à mulher, mas sua
contribuição na educação feminina foi diminuta, uma vez que objetivavam, basicamente,
influenciar na conversão à vida religiosa, em detrimento da ação verdadeiramente educativa.
Devido à rigidez da família patriarcal, as mulheres permaneceram, durante muito tempo,
reclusas no âmbito privado, o que acarretou atraso na sua participação e conseqüente
alienação em relação aos acontecimentos fora daquele ambiente.

A Igreja teve sua grande parcela de responsabilidade, contribuindo para que tal
quadro fosse mantido, na medida em que reforçou a reclusão da mulher no mundo privado e
em contrapartida, a libertinagem dos senhores no trato com as escravas. De acordo com essas
autoras, para manter a estabilidade estrutural da família patriarcal, a condição de vida da
mulher não poderia ser modificada. Para tanto, deveria ser acatada a filosofia da rejeição das
tentações da carne, e ainda, submissão aos inúmeros sacrifícios, através dos quais se
purificaria o espírito para alcançar a tão almejada salvação. As mulheres brancas, pela
situação de subalternidade e submetidas aos seus maridos e senhores, não tinham o direito de
reclamar das cópulas extraconjugais que eles praticavam com as escravas no âmbito
doméstico. Contudo, não deixavam de assumir a posição de senhoras e descontavam nas
escravas, duplamente exploradas, infringindo-as a castigos variados. “Se a beleza dos dentes
das negras incomodava a desdentada sinhá, estas mandavam arrancá-los” (Quintas, 2001, p.
125). O que se observa, então, é que, diante da impossibilidade de enfrentamento do jugo
patriarcal, as senhoras vingavam-se nas escravas, que se encontravam sob sua orientação e
administração nos afazeres domésticos, assim se a [...] a escrava adoçava a boca do senhor e
recebia chicotada a mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam
destinadas à mãe de família (FREYRE¹ apud QUINTAS, 2001, p. 210). O Estado também
contribuiu para a manutenção de tais idéias. Dessa feita, a autoridade inquestionável do
patriarca, os dogmas impostos pela Igreja e as normas determinadas pelo Estado
representaram as bases de sustentabilidade do domínio sobre a mulher, cujo mundo era

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limitado ao espaço privado e ao universo da aprendizagem aí circunscrito. Reforçando esse


argumento, Saffioti (1976) afirma que o ideal da educação feminina limitava-se,
exclusivamente, às prendas domésticas.

Os Conventos somente foram criados no Brasil a partir da segunda metade do


século XVII. E foi nesses espaços que as mulheres receberam aulas de escrita, de leitura, ao
lado da música e de trabalhos domésticos, principalmente da confecção de doces e flores
artificiais. No entanto, ainda nesse mesmo período, as meninas provenientes de famílias mais
abastadas iam estudar em Portugal. O primeiro convento instalado no Brasil foi fundado
em1678, na Bahia, denominado Santa Clara do Desterro, o qual foi considerado

[...] o mais luxuoso e mais mundano pelos excessos ali cometidos,


pois algumas freiras ‘vestem por baixo dos seus hábitos camisas
bordadas, calção e meias de seda ligando-as, comumente com fivellas
de ouro cravejadas de diamantes (RIBEIRO, 2007, p.88).

Assim, a pouca religiosidade de algumas freiras era explicada por diversos fatores,
como a falta de vocação para a vida monástica, a pouca idade e os motivos que levaram seus
pais a interná-las no convento contra a vontade delas. Dessa forma, diz essa autora, os
mosteiros eram considerados “prisões místicas,” que serviam tanto para a família como para
as decisões do Governo. Assim, as moças que infringiam as normas e os preceitos morais e as
esposas que, supostamente, traíam seus maridos eram, também, encaminhadas para esses
ambientes. Dessa forma, estes representaram, além da educação formal, o reflexo das
questões econômica e comercial, pois de certa forma os conventos desempenharam o papel de
banco, pois na época, no Brasil Colônia, não havia bancos.

Apesar de o comportamento das mulheres, decorrente da mentalidade da época, ter


sido incentivado para a apatia, submissão, obediência e ausência de vida social. Relegadas a
viverem enclausuradas em casa, cuidando das crianças e dos afazeres domésticos, entretanto
quando havia alguma ameaça aos domínios dos portugueses, esse comportamento era,
automaticamente, modificado. Assim, se o domínio de seu marido fosse atacado, elas
assumiam de imediato os cargos considerados masculinos e administravam a propriedade,
tanto privada quanto pública. Aprenderam com facilidade tal encargo, e o fizeram muito bem.
Assim, independentemente de sua vontade, tiveram que ultrapassar da esfera privada para a
esfera pública. Acrescenta Ribeiro (2007) que das capitanias hereditárias doadas no século
XVI, apenas duas prosperaram: São Vicente e Pernambuco, que, ironicamente, foram
administradas por mulheres, na ausência de seus maridos.

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Portanto, diz a autora, que apesar da ausência de instrução formal direcionada à


mulher, naquele contexto muitas delas tiveram que ultrapassar do âmbito privado para a vida
pública, e com bastante sucesso, haja vista que administraram as únicas capitanias que
prosperaram.
O monopólio exercido pelos jesuítas na educação de Portugal e de suas colônias
dilapidou-se em 28 de junho de 1759, quando foi aprovado o Alvará de D. José I, sob
influência de seu então ministro Marquês de Pombal. Pela primeira vez na Europa, o Estado
assumia os encargos da educação.
Com tal alvará, encerrava-se o monopólio que os padres jesuítas exerceram na
educação da metrópole e de suas colônias além-mar, durante mais de dois séculos. Todas as
escolas e classes criadas por eles foram extintas. Esse alvará representou a síntese das idéias
iluministas do Marquês de Pombal, ministro do então Rei de Portugal, D. José (NUNES,
1984). Diz a autora que [...] pela primeira vez na Europa, o Estado avocava a si a
responsabilidade da educação secundária, ao organizar um sistema centralizado, tendo à frente
o diretor de Estudos, cargo então criado (Nunes, 1984, p.18). Assim, pouco mudou em relação
à educação feminina, após a expulsão dos jesuítas e da implantação da reforma pombalinado.
O livro “O Verdadeiro Método de Estudar”, do autor português Antonio Verney, que dedicou,
nessa obra, um apêndice à educação da mulher. Esse autor tinha como proposta os cuidados
com o lar e o serviço doméstico, além dos cuidados com os filhos, que, anteriormente, eram
entregues à “mãe preta”. Segundo ele, cabia à mulher aprender segurar o marido no lar.
Aconselhava, também, que as mães deveriam ensinar as meninas em casa. Censurava a falta
de instrução das mulheres portuguesas e brasileiras. Entretanto, sua proposta educacional foi
pouco divulgada ou quase não chegou ao Brasil. Diz Ribeiro (2007) que chegaram à colônia,
[...] de forma concreta, apenas o livro de José Lino Coutinho, Carta a Cora e os Estatutos do
Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, em Olinda (RIBEIRO, 2007, p.89).
Assevera a Professora Maria Thétis Nunes (1984) que a Reforma Pombalina
sofreu influência do livro de Verney, publicado em 1745, em que era apresentada, com
relevância, a atrasada realidade educacional portuguesa.
No entanto, a instalação da Corte trouxe, de certa forma, grande significado para a
mulher, uma vez que trouxera como desdobramento a concessão de alguns benefícios, dentre
os quais é possível destacar a criação de escolas não-religiosas onde a mulher pudesse estudar.
Desse modo, passaram a ter acesso a esse ensino, que consistia em cursos de costura, bordado,
religião e noções elementares de aritmética e português. O ensino era ministrado por senhoras
portuguesas e alemãs que prestavam serviços domiciliares, iniciando, assim, a educação laica

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para a mulher. De acordo com Cardoso (1981), em relação às primeiras professoras, algumas
começaram o ensino equivalente às primeiras séries do “primário”, atualmente ensino
fundamental, sem programa e sem amparo legal. A iniciativa de estudar não partia
propriamente das moças, como é possível inferir dos registros que as professoras fizeram em
seus diários, onde constava que [...] as alunas mostravam-se indiferentes e eram verdadeiras
selvagens, que chegavam a se comportar com intenso nervosismo, obrigando as professoras a
trancá-las num armário para se acalmarem (CARDOSO, 1981 p. 16).
A situação da educação formal da mulher durante o período colonial permaneceu,
em sua totalidade, precária, quase inexistente. Entretanto, somente com a instalação do
Governo Imperial, após a Proclamação da Independência, ocorreram mudanças significativas,
principalmente no que concerne à educação da mulher. Na constituição de 1823, que não
chegou a ser promulgada ou outorgada, já havia propostas para a educação da mulher. No
entanto, tal idéia apenas foi cristalizada na Constituição de 1824, ocasião em que a educação
escolar passou a ser uma preocupação da Assembléia Legislativa, que propôs o ensino
obrigatório para as meninas. No entanto, as professoras não precisavam ensinar Geometria
para as meninas, que deveriam estudar somente as quatro operações.
As professoras das meninas, pelo fato de terem sido dispensadas de ensinar
Geometria, ganhavam menos que os professores dos meninos, apesar de a lei dispor que os
salários devessem ser iguais. Na legislação de 1827, as mestras ficaram desobrigadas desse
ensino, o que representou uma diferenciação na grade curricular das escolas femininas e
masculinas (SANTOS & TORRES, 2001). No entanto, diz Saffioti (1976) que:

A maior dificuldade de aplicação da Lei de 1827 residiu no provimento das


cadeiras das escolas femininas, não obstante sobressaíssem às mulheres no
ensino de prendas domésticas, as poucas que se apresentavam para reger
classe, dominavam tão mal aquilo que deveriam ensinar que não logravam
êxito em transmitir seus exíguos conhecimentos (SAFFIOTTI, 1976, p. 193).

Somente se apresentou algum avanço a partir de 1827, com a publicação dessa Lei
de Instrução Pública, determinando que [...] se estabelecessem escolas de ‘primeiras letras’,
as chamadas ‘pedagogias’ em todas as cidades, vilas e lugarejos mais populosos do Império
(LOURO 2000 p.,445). Assim, segundo dispõe o art.11 da citada lei, as meninas passaram a
ter direito à instrução formal em Instituição Escolar, embora com certas restrições, “Artigo11
– Haverá escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas, em que os Presidentes, em
Conselho, julgarem necessário este estabelecimento”.(Lei de 15 de outubro de 1827).
Entretanto, a realidade estava muito distante. Ler, escrever e saber as quatro

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operações eram, naquela sociedade escravocrata, coisas de menor importância, em que os


latifundiários e coronéis tinham poder sobre a ordem política. Acrescente-se a isso o fato de a
sociedade mostrar-se, na maioria das vezes, omissa e sucumbida pelo autoritarismo
exacerbado desses senhores.
Contudo, são criadas escolas esparsas; provavelmente um número maior para os
meninos em detrimento do das meninas. São escolas fundadas por Congregações e Ordens
religiosas femininas e masculinas, mantidas por leigos, professores para os meninos e
professoras para as meninas. Devem ser pessoas de moral inatacável, assim como suas casas,
ambientes decentes e saudáveis, uma vez que as famílias lhes confiam seus filhos e filhas.
(LOURO, 2000). Em tais ambientes, não são iguais as tarefas desses mestres e mestras. Para
ambos os sexos, os primeiros ensinamentos consistem em ler, escrever, saber as quatro
operações e a doutrina cristã. Pouco tempo depois, foram feitas algumas modificações: para
os meninos, noções de Geometria; para as meninas, bordado e costura. Segundo Cardoso
(1981 ), apesar das mudanças que ocorreram, a mulher [...] deveria continuar sem instrução,
em nome de uma moralidade discutível. O mundo mudava, mas as pessoas insistiam em fazer
de conta que tudo continuava da mesma forma (CARDOSO, 1981 p. 20). A educação escolar
da mulher somente podia ser transmitida pelas professoras, que, por sua vez, não precisavam
prestar concurso, o que gerava docentes sem nenhuma capacitação para cuidar das meninas,
que tinham aulas separadas dos meninos e de péssima qualidade. Analisa essa autora que os
homens, que sempre tiveram acesso à instrução, mostraram-se incapazes de ministrar o ensino
das primeiras letras. No entanto, mais lamentável é a situação do nível de ensino da educação
feminina, cujas mestras sequer tinham acesso à educação formal.

Se mesmo as escolas masculinas estavam corroídas pela incompetência dos


mestres, as femininas constituíam verdadeiros arremedos de instituição de
ensino, o que não ocorria apenas no setor de instrução pública, mas
também, alarmantemente, no setor de ensino privado (SAFFIOTI, 1976,
p.196).

As meninas continuavam excluídas da instrução secundária oficial. No entanto, o


curso secundário masculino procurava, principalmente, encaminhar os rapazes para os cursos
superiores ministrados na Europa, enquanto que a educação feminina tinha, ainda, como
princípio fundamental preparar a mulher para o casamento. Assim, tal princípio imprime à
educação feminina secundária um cunho marcadamente doméstico, e a área intelectual
constitui-se num obstáculo para a superação do seu estilo conservador (SAFFIOTI, 1976).

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PALAVRAS FINAIS

À princípio a educação ministrada pelos jesuítas era, exclusivamente, direcionada


aos povos indígenas, os curumins, e meninos brancos. As mulheres foram excluídas daquele
processo, uma vez que a obra da catequese, inicialmente, representava os objetivos principais
da permanência dos jesuítas no Brasil, porém, gradativamente, acabou se ocupando da
educação dos filhos das famílias abastadas. A educação média seria voltada para a classe
dominante, e a superior, para a classe sacerdotal. As pessoas da classe dominante que não
seguiam a carreira eclesiástica iam para a Europa a fim de complementar seus estudos na
Universidade de Coimbra.
Dessa forma, somente a partir do século VIII, quando os conventos foram criados
é que as mulheres começaram a sair para assistir às aulas de trabalhos manuais, rudimentos de
aritmética e portuguesa, assim como para aprenderem a contar e as primeiras letras.
Inicialmente, por falta de contato social, tendo em vista que interagiam somente com as
negras escravas, que falavam dialetos variados, a depender da sua procedência, essas
mulheres falavam quase nada o português. As meninas continuavam, por longo tempo,
excluídas da instrução secundária oficial. No entanto, o curso secundário masculino
procurava, principalmente, encaminhar os rapazes para os cursos superiores ministrados na
Europa, enquanto que a educação feminina tinha, ainda, como princípio fundamental preparar
a mulher para o casamento. Logo, a educação desigual para as mulheres foi implantada no
Brasil desde os primórdios da colonização de nosso país pelos portugueses. Tal desigualdade
perdurou como uma marca de desvalorização da mulher, a qual tem sido bastante combatida
pelas próprias mulheres até os dias atuais. Por conseguinte, tal desigualdade imprimiu à
educação feminina, no dizer de Saffioti (1976), um cunho marcadamente doméstico, e a área
intelectual constitui-se num obstáculo para a superação do seu estilo conservador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Jane Soares de. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? Campinas:
Editora Associados, 2007.

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1998.

CARDOSO, Irede. Os tempos dramáticos da mulher brasileira. S.Paulo: Global, 1981.

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org) História
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MORAES, Márcia. Ser humana: quando a mulher está em discussão. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2002.

NUNES, Maria Thétis. História da educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
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QUINTAS Fátima. A mulher e a família no final do século XIX. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana, 2000.

RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres educadas na colônia. In;Lopes,Eliane Marta


Teixeira, Faria Filho, Luciano Mendes, Veiga, Cynthia Greive (Orgs). 500 anos de educação
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ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil (1930-1973), Petrópolis,


Rj:Vozes,2001.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classe: mito e realidade, Petrópolis:


Vozes,1976.

_________________. O poder do macho. S. Paulo: Ed. Moderna, 1987 (Coleção Polêmica).

SANTOS, Marluce Arapiraca dos, Torres, Claudia Regina Vaz. A Educação da Mulher e a
sua vinculação ao magistério. In: FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho. Ensaios
sobre gênero e educação. Salvador: UFBA, Pró-Reitoria de Extensão, 2001.

SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, E.V. Dicionário das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.

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HISTÓRIAS DE PROFESSOR: A EDUCAÇÃO E A PROFISSÃO


DOCENTE DA MICRORREGIÃO DE ITABAIANA

Antônio Vital Menezes de Souza – UFS


a.vmsouza@yahoo.com.br

As histórias de vida são hoje utilizadas com bastante freqüência na antropologia, sociologia,
psicologia e história, em conseqüência da crescente importância atribuída à utilização da
memória oral e dos documentos pessoais na investigação em ciência sociais. Esta pesquisa
tem como objetivo identificar, inicialmente, os principais educadores da microrregião de
Itabaiana-Sergipe, suas influências e contribuições para a história da profissão docente no
Estado. Trata-se de uma pesquisa de base exploratória, ligada às abordagens qualitativas da
pesquisa em educação. O referencial teórico utilizado está relacionado aos autores das
abordagens biográficas procurando situar-se no plano metodológico de duas novas
metodologias: a da etnobiografia e das histórias de vida cruzadas. Por fim, trata-se de um
estudo em fase de desenvolvimento que disponibiliza aos pesquisadores e aos estudantes
envolvidos um confronto com duas tarefas distintas, embora complementares: em primeiro
lugar, recolher a documentação e, em seguida, explorá-la, fazendo a síntese dos elementos
coletados e retirando deles o seu significado para a história da profissão docente e do
pensamento pedagógico sergipano.

Palavras-chave: História de Vida - Profissão Docente - Pensamento Pedagógico Sergipano

1- PONTO DE PARTIDA

A origem deste artigo se articula ao projeto de pesquisa intitulado Histórias de


Professor, Formação e Subjetividade: a emergência de novos conceitos nos cenários
educacionais, aprovado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade
Federal de Sergipe – UFS e conta, atualmente, com a participação de três estudantes de
iniciação científica – PIBIC/UFS. O principal objetivo da pesquisa é explorar o campo das

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abordagens biográficas tendo em vista a construção de novos aportes teóricos relativos ao


conceito de formação ligado à história e à profissão de professor. Neste artigo, pretendo
situar a importância dos estudos voltados às abordagens biográficas, particularmente,
enfocando a autobiografia e o relato de vida a partir de duas novas metodologias de trabalho:
etnobiografia e das histórias de vida cruzadas, ambas valorizando a produção da subjetividade
do sujeito-professor como espaço fértil e relacionado às bacias de sentido cultural, oriundas
do exercício pessoal do professor na cultura da docência.

O texto está dividido em dois momentos básicos e interdependentes. O primeiro


momento será destinado à exploração heurística da produção teórica existente, incidindo na
elucidação de elementos conceituais que permitam uma melhor definição dos termos que
compõe esse estudo, a saber: história de professor, autobiografia, formação e história de vida.
O segundo momento será destinado à exposição da estrutura da pesquisa que vai desde a
organização de grupos de pesquisa ao acompanhamento de práticas de formação,
levantamento de informações e registro de relatos de vida, tendo por foco os percursos de vida
profissional de diferentes grupos professores da rede pública da microrregião de Itabaiana -
Sergipe. Por conseguinte, esse estudo procura analisar a relevância e a pertinência da
utilização da história de vida como suporte metodológico para a compreensão mais bem
ampliada a respeito da vida de professor, buscando-se, sobretudo, elementos que dêem
estruturação teórica para o desenvolvimento de novos conceitos que melhor possam delinear o
desenvolvimento de pesquisas na área da didática e da formação de professores.

2 HISTÓRIAS DE PROFESSOR: autobiografia, história de vida e formação

A temática relacionada às histórias de vida e à história da profissão de professores


está ligada às principais discussões ocorridas durante os anos 90 a respeito da formação
docente. A perspectiva (auto) biográfica, dentro dos estudos sobre o desenvolvimento pessoal
e profissional de professores, vem sendo bastante explorada por diversos pesquisadores em
educação, considerando a importância das micronarrativas, da experiência pessoal e/ou
profissional demarcada pela autopoiésis (autoprodução), circunscrita às trocas simbólicas e à
influência de redes de interação social no campo de trabalho docente.

O contexto da utilização das abordagens biográficas teve sua origem nas


produções teórico-metodológicas da sociologia americana ocorridas entre as duas grandes

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guerras mundiais. Em realidade, os sociólogos da Escola de Chicago foram os principais


precursores de um movimento que trouxe às ciências sociais o reconhecimento científico no
campo das epistemologias contemporâneas. A influência da antropologia cultural e da
sociologia qualitativa foi determinante para dar vigor ao método biográfico. Basicamente, foi
na Polônia e nos Estados Unidos que a abordagem biográfica ganhou impulso e divulgação.
Entretanto, é somente no final dos anos 60 que o survey research perde sua hegemonia
enquanto método científico. Vale ressaltar que em 1978, a partir do IX Congresso Mundial de
Sociologia, em Upsala, é que a expansão atual do uso das histórias de vida como instrumento
de reflexão teórica e de prática metodológica, tornou-se referência de produção científica nas
ciências sociais.

Nesse sentido, a sociologia americana e a pesquisa empírica polonesa voltada para


os estudos urbanos nos anos vinte formaram o contexto de origem das abordagens biográficas.
Em especial, os cientistas sociais da Escola de Chicago buscaram pesquisar problemas
relacionados à imigração, criminalidade, delinqüência e à condição operária, com base num
modelo de ciência que deixasse de ser referendada nos métodos quantitativos. Tais estudos
desenvolveram a pesquisa empírica de base qualitativa, utilizando métodos originais de
investigação. Ademais, os documentos pessoais (cartas, diários, autobiografias e fotografias)
foram inseridos na pesquisa social como fontes preciosas de levantamento de informações.
Vale destacar que a sociologia dos anos 20-30 é uma “sociologia do interior” (Ferrarotti,
1990: p.7), interessada no ponto de vista do próprio sujeito a respeito de aspectos que se
engendram na relação entre sociedade e cultura, dimensão pessoal e coletiva.

Autores com Bertaux (1980) e Pujadas (1992) vêm discutindo a complexidade das
abordagens biográficas, destacando a reviravolta provocada pela mudança de análises sobre a
vida social de populações humanas. Tais análises focalizavam as dimensões pessoais sem
desarticulá-las da influência do social sobre a vida dos sujeitos estudados. Destaca Negré
(1986) que, inicialmente, a abordagem biográfica procura analisar a vida urbana e os
problemas da cidade. Assim, as abordagens biográficas foram se constituindo como
referências importantes no tratamento de questões de problemáticas epistemológicas, culturais
e sociais variadas. O caráter interdisciplinar dos métodos biográficos é considerado por Finger
(1984) como sendo fundamental para as inúmeras possibilidades de leituras sobre uma
considerável gama de aspectos da cultura. Não cabe apenas aos métodos biográficos, a
descrição da vida de um sujeito, ou de um grupo de sujeitos, mas, sobremaneira, a

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sistematização de uma fecunda leitura sociocultural sobre os meandros de uma cultura em


formação.

Por isso mesmo, a pesquisa e a abordagem biográfica ganharam espaço em outras


áreas de conhecimento. Gaston Pineau e Jean-Louis Le Grand (1993) definem a História de
Vida como pesquisa e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais que implica
num processo de expressão da experiência. Foi graças à utilização da história de vida em
pesquisas diversas, que os fenômenos sociais puderam ser vistos como processos e não apenas
como produtos. O aumento de interesse dos cientistas sociais pela história de vida demarca
uma substancial passagem da importância de uma vida particular, reduzida ao seu próprio
estado de constituição grupal, familiar ou comunitária, para a valorização de experiências
coletivas de grupos humanos, propiciando a necessidade de singularizar o vivido e torná-lo
propício à apreensão de aprendizagens dos mais variados componentes da cultura, do social e
da existência de uma determinada circunstância histórica.

Em diversas áreas de conhecimento a utilização da história de vida traz


contribuições inquestionáveis. Na sociologia francesa, Daniel Bertaux em Histoire de vie ou
récits de pratiques? Méthodologie de l’approche biographique en sociologie (1976), explicita
que o trabalho biográfico deve se orientar no sentido de analisar as práticas e os processos
sociais pela obtenção de um relato de vida sustentado por um relato de práticas. A
preocupação do pesquisador na utilização da história de vida deve ser considerada mais
próxima aos instrumentos de observação longitudinais do que das observações transversais.
Trata-se mais de uma ambição em renovar epistemologicamente a metodologia de pesquisa
do que se manter retido aos modelos estatísticos predominantes. Danielle Desmarais e Grell
Paul em 1986 aprofundam essas questões na obra Les récits de vie. Théorie, méthode et
trajectoire types. Os autores procuram discutir a relevância das pesquisas sociais e a
significativa contribuição que o método e a técnica da abordagem biográfica, inspirados na
pesquisa qualitativa, imprimem às mudanças epistemológicas na segunda metade do século
XX.

Na Literatura e na Lingüística, Philippe Lejeune tem sido um dos autores que


mais se destacam. Uma de suas obras intitulada L’autobiographie en France (1971), é
apontada como um marco da influência dos estudos relacionados à escrita da história de vida
ou dos relatos de vida na área da literatura. A exploração de situações socioculturais, a
discussão sobre as chamadas “identidades sociolingüísticas dominantes e/ou dominadas” faz
parte desse movimento. Cristhian Leray (1995) é um dos principais autores inseridos nesse

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contexto. Nessa perspectiva, o jornal íntimo, os diários, as escritas intimistas representam o


ponto de partida para uma produção de forte tendência, em particular nos Estados Unidos,
denominada narrativismo.

Em História e na Etnografia, destacam-se os trabalhos de Philippe Jourtard (1983)


e Paul Thompson (1978). Respectivamente, tanto Ces voix qui nous viennent du passé quanto
The Voice of the Past, trazem à tona a história do tempo presente, veiculada pela instigante
recorrência à história oral, direcionada ao acolhimento de testemunhos de indivíduos e grupos
de indivíduos sobre o passado, especialmente quando ocorre uma mudança cultural rápida nos
sistemas partilhados por um número considerável de grupos sociais. Vale destacar que
Clapier-Valladon [et. al.] propôs o conceito de etnobiografia para especificar as histórias de
vida onde a pessoa é considerada como um “espelho de seu tempo e de seu meio” (p.226). O
pesquisador precisa estar atento ao meio sociocultural que diretamente influencia na
constituição dos estudos sobre a história de vida de grupos sociais distintos.

Nessa perspectiva, o interesse dos cientistas sociais pelas histórias de vida de


grupos humanos contribuiu efetivamente para consolidar o status epistemológico da
abordagem biográfica nas ciências humanas. Por mais que os pesquisadores de diferentes
áreas do conhecimento tenham procurado referências teórico-metodológicas através da
utilização da história de vida, no âmbito das metodologias qualitativas de pesquisa, foi a partir
dos anos 70 que ocorreu a valorização da história de vida e da história oral como
metodologias de investigação.

A primeira obra publicada sobre história de vida, data de 1927, no campo da


sociologia, escrita por Thomas e Znaniecki e intitulada The Polish Peaseant in Europe and
America. As tentativas de registro de situações relativas à história de vida, feitas pelo homem,
são inúmeras. As memórias de família, incidindo sobre os costumes e práticas entre gerações
distintas; os aniversários, as confidências entre amigos, os registros de cerimoniais como
nascimento, batismo, casamento, o histórico escolar, o curriculum vitae, dentre outros, são
exemplos interessantes que trazem à tona um precioso campo, para a exploração científica,
ligado à formação e à vida de grupos humanos. Inclusive, o trabalho investigativo com a
História de Vida tem servido como referência para avaliar teorias, inclusive provocando o
aparecimento de novas perspectivas teóricas sobre o já construído através das pesquisas de
método biográfico. Dentre outras questões, o caráter minucioso presente na história de vida
permite que o pesquisador se aprofunde no estudo de inúmeras variáveis e das relações entre
diversos fenômenos, incrementando novos conhecimentos na área.

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A autobiografia, na atualidade, é um dos mais ricos aportes teórico-metodológicos


para a compreensão da cultura e das relações sociais, históricas e simbólicas do homem.
Entretanto, acentua Momigliano (1991: p.125) que foi no movimento de reforma política e
cultural da Grécia, durante o século V a.C, que surgiu pela primeira vez a expressão bios. Tal
reforma foi demarcada pelo movimento de influência do povo persa na identidade do povo
grego. Desde então, nesse contexto, a expressão bios, foi empregada para descrever fatos
individuais e apareceu ao mesmo tempo em que a palavra história foi empregada para
designar a narrativa pautada pelos fatos coletivos. Vale ressaltar que entre o século XVIII e
XIX, através da crescente utilização de memórias, lembranças e histórias de vida, é que a
palavra “autobiografia” aparece na Alemanha e na Inglaterra pela primeira vez. Por isso,
destaca Pineau e Le Grand (1993: 21) “que a utilização da história de uma vida (ou de um
grupo) como fonte de pesquisa é muito recente”.

É nesse contexto que tem surgido uma variedade de pesquisas sobre vida de
professor. A constante recorrência às teorias aplicadas aos contextos de formação de
professores, ou ainda, a recorrência à utilização da abordagem biográfica aos contextos da
terapia, da indústria, da educação de adultos etc, somando-se à influência das produções de
autores internacionais, especialmente os autores francófonos e americanos, foram marcante
para o estabelecimento de um movimento cada vez mais em ascensão: a pesquisa-formação,
inspirada em abordagens de pesquisa, agora denominadas (auto) biográficas. Nessa
perspectiva, os estudos sobre o professor ganham destaque permitindo trazer-se à tona
dimensões pouco discutidas no âmbito das políticas públicas de formação docente. Para
António Nóvoa (1995, p.25) “urge por isso (re) encontrar espaços de interação entre as
dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus
processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida...”. Por
conseguinte, deseja-se fazer da abordagem (auto) biográfica uma reflexão estritamente
pedagógica.

Em educação, segundo Pineau e Le Grand (1993), um dos pioneiros é Paul Le


Bohec. Este autor, inserido no movimento da pedagogia freinetiana, escreveu em 1976 um
artigo intitulado Les biographie dans la formation, no qual acentuou que o ensino da língua
francesa poderia ser mais bem desenvolvido pela inserção de escritas biográficas, provocando,
num só movimento, a apreensão cultural do idioma e da história de uma tradição. Entretanto,
as pesquisas em educação que se apropriam dos instrumentos típicos às abordagens da história

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de vida vão ser ampliadas pelo desenvolvimento de trabalhos e estudos sobre a formação de
adultos.

Gaston Pineau vai desenvolver um trabalho de repercussão internacional que,


desde 1983, engloba uma articulação entre pólos teóricos e práticos, analisados por uma
diversidade de intelectuais da área educativa. A autoformação vai ser um dos principais
conceitos a serem trabalhados durante as próximas décadas por um número considerável de
pesquisadores. Gaston Pineau, inclusive, coordena em parceria com Bernadette Courtois um
livro intitulado La formation expérientielle des adultes (1991), o que favorece um aclamado
acolhimento de suas produções teóricas em muitos países.

A utilização da história de vida nas pesquisas sobre os professores, sua vida e


formação, contribuiu, assim, para a superação de abordagens cientificistas nas pesquisas em
educação. A abordagem biográfica surge como fruto de insatisfação dos pesquisadores da
segunda metade do século XX em relação ao tipo de saber valorizado e produzido
cientificamente. Isso significou um avanço considerável uma vez que os professores deixaram
de ser vistos apenas como meros reprodutores de técnicas de ensino ou portadores de histórias
mescladas por informações descontextualizadas e sem importância científica e social.

As pesquisas desenvolvidas a partir de meados dos anos 80 têm provocado outra


compreensão sobre a problemática da formação e da prática de ensino. É no âmbito do
desenvolvimento profissional e pessoal do professor que os principais resultados dos estudos
sobre a vida de professor têm repercutido de maneira relevante e pertinente. Por exemplo, a
autonomia do método biográfico tem se afirmado, através das múltiplas perspectivas teóricas
sobre a questão da subjetividade do professor. Desde então, diversos pesquisadores foram se
articulando na busca de produzir estudos em educação que se tornassem mais relacionados às
necessidades do professor e, ao mesmo tempo, indicassem possibilidades de superação de
inúmeros problemas que afligem a educação, a formação e a produção de conhecimentos na
área educativa. Nesse sentido, “a literatura pedagógica foi invadida por obras e estudos sobre
a vida dos professores (...) que teve mérito indiscutível: recolocar os professores no centro dos
debates educativos e das problemáticas de investigação” (Nóvoa, 2000, p. 15).

Henri Desroche (1991) e Bernadette Courtois (1991), dentre outros autores, vêm
desenvolvendo tendências ou movimentos dentro da chamada abordagem (auto) biográfica,
centrada na perspectiva teórica da história de vida. Pode-se citar, por exemplo, a biografia
educativa, a narrativa de formação, a autobiografia-projeto, a pesquisa-formação. Não
obstante, as abordagens (auto) biográficas têm mantido uma aproximação considerável com

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movimentos epistemológicos respaldados pelo predomínio da identidade. Anteriormente,


destaquei alguns problemas que a questão da identidade no campo da formação de professores
engloba. Não são problemas ligados apenas aos aspectos de natureza teórica, mas, sobretudo
aos aspectos de natureza epistemológica.

Um dos principais objetivos dessa pesquisa é a tentativa de documentar a


influência de Histórias de vida na educação e na profissão docente da Microrregião de
Itabaiana- Sergipe, através da articulação de uma abordagem (auto) biográfica que tenha
como preocupação o devir na profissão, na pessoa e nas práticas de professores e não a
identidade, pois que “quando pensamos a construção das identidades, também somos
perseguidos por esse modelo de estabilidade, de harmonia e de cristalização como padrão
desejado” (Pereira, 2001, p. 36). No caso dos recortes encontrados na abordagem biográfica, a
biografia educativa "não é uma narrativa global de uma história de vida, (...) mas uma
narrativa centrada na formação e nas aprendizagens de seu autor" (Josso, 1988:40), e a
narrativa de formação é a “apresentação de um segmento de vida: aquele durante o qual o
indivíduo esteve implicado num projeto de formação" (Chené, 1988: 90).

A presente pesquisa caracteriza-se por sua natureza histórico-documental. Trata-se


de uma pesquisa de natureza qualitativa voltada para a exploração empírica de documentos
orais, escritos, fílmicos e/ou demais fontes de informação. O projeto se desenvolverá dentro
da abordagem biográfica estritamente subordinada a concepção epistemológica da
multirreferencialidade em relação à história da educação. Trata-se de abranger e incorporar
perspectivas teórico-metodológicas variadas, embasada na triangulação historiográfica e na
abordagem interdisciplinar. Nesse sentido, Magalhães (1995) afirma que é inevitável tratar a
educação a partir do triangulo espaço, tempo, ação, em que processos e racionalidades
educativas se cruzam em sentido sincrônico e diacrônico. No contexto educacional, é, pois,
coerente e necessário, a inserção de um olhar interdisciplinar frente o alargamento da
abordagem historiográfica, bem como diante do conceito de fonte historiográfica. A pesquisa
será dividida em três etapas. A primeira etapa consiste em levantamento de informações a
respeito dos principais educadores da microrregião de Itabaiana. Essa etapa consiste em fazer
um levantamento inicial de personalidades (educadores e/ou educadoras) que tiveram e/ou
têm reconhecimento social no campo da profissão de professor dentro do município. Serão
consideradas quatro instâncias: a) identificação de sujeitos; b) descrição e caracterização de
perfil; c) cruzamento de informações a respeito de práticas, contexto de formação e de atuação
profissional, subdividindo tais informações por década; d) levantar informações sobre estudos

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já elaborados no município sobre a organização do sistema educacional nas décadas de 30-40,


50-60, 70-80, 90-2000, 2000-2008. Metodologicamente serão utilizados os seguintes
instrumentos de coleta de informações: questionário fechado, entrevista semidirigida, análise
de conteúdo e pesquisa documental.

A segunda etapa é a identificação de fontes de informação sobre a organização do


sistema de ensino na microrregião de Itabaiana. Essa etapa consiste em documentar as
práticas de ensino predominantes e descritas mediante as informações encontradas na etapa
anterior, recorrendo-se aos seguintes momentos: a) elaboração de um quadro sinóptico que
situe e descreva o contexto histórico das diferentes décadas no município e suas relações com
a História da Educação em Sergipe; b) elaboração de um quadro descritivo e comparativo
sobre as tendências da educação no Brasil no período correspondente ao delimitado na
pesquisa; c) elaboração de uma tabela sobre a organização do sistema de ensino da
microrregião de Itabaiana; d) elaboração de quadro de referência que explicite, contextualize e
especifique as concepções pedagógicas de educadores e/ou educadoras em relação aos dois
primeiros quadros sinópticos. Serão utilizados os seguintes instrumentos de coleta de
informações: questionário fechado, triangulação de dados, estudos orientados.

A terceira etapa consiste na documentação de relatos de experiências


(profissionais e pessoais de educadores e/ou educadoras) ligadas às atividades educativas de
expressiva importância para a compreensão da problemática histórico-educacional do
município e da microrregião. Essa etapa está organizada para sistematizar os seguintes
momentos: a) registro de relatos de vida (pessoal e profissional) de no mínimo 15 educadores
e/ou educadoras da microrregião; b) cruzamento (ou triangulação) de informações sobre
elementos da história de vida de cada um dos educadores identificados como de suma
importância e de reconhecimento social na microrregião, procurando organizar um banco de
dados sobre a história da profissão docente da microrregião, aprofundando e sistematizando o
registro das informações através dos seguintes instrumentos de coleta: questionário fechado,
triangulação de dados, relato de vida, história de vida, entrevistas intensivas dirigidas.

Como relevância científica e social a pesquisa pretende auxiliar na criação e


disponibilização de dados sistemáticos sobre a profissão docente na microrregião de
Itabaiana; auxiliar na criação de Núcleos de Estudo em História da Educação, Memória,
Cultura e Docência no Estado de Sergipe; criação de Grupos de Pesquisa em História e
Cultura da Docência no território sergipano; favorecer espaços de debates (ciclo de palestras
ou seminários) para a apresentação parcial e final dos resultados da pesquisa

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O PROFESSOR SEVERIANO CARDOSO E LOJA CAPITULAR


COTINGUIBA

Maria Fernanda dos Santos – UFS


nanda_ufs@hotmail.com

O presente trabalho propõe-se analisar a relação do professor Severiano Cardoso (1840-1907)


e a Loja Capitular Cotinguiba e suas possíveis influências quando membro fundador daquela
instituição. A partir da pesquisa de conclusão da graduação em História (2007),
acompanhamos a trajetória do Prof. Severiano Cardoso, que ao longo de sua vida trouxe
contribuições relevantes para o campo educacional sergipano. O estudo se baseia nos
pressupostos teóricos da História da Educação e da História Cultural, visando compreender a
biografia, envolvendo aspectos da docência em Sergipe e a influência exercida pela Loja
Capitular Cotinguiba em alguns dos catedráticos sergipanos, no século XIX, através do
personagem Severiano Cardoso.

Palavras- chave: Severiano Cardoso, Loja Capitular Cotinguiba, Século XIX.

Este estudo pretende analisar a relação do professor Severiano Cardoso (1840-


1907) e a Loja Capitular Cotinguiba. Nascido em Estância/Se, membro de uma família de
conceituados professores, Severiano Cardoso após concluir seus estudos mudou-se para a
Bahia no ano de 1855, quando ainda tinha quinze anos de idade, para lá trabalhar no
comércio, e foi ainda lá, que iniciou suas atividades intelectuais, escrevendo no jornal “Bahia
Ilustrada” ao lado do seu irmão Brício Cardoso.
No ano de 1870 retornou para Sergipe e logo foi convidado a ocupar o cargo de
escriturário do Colégio “Atheneu Sergipense”, instituição educacional criada naquele mesmo
ano, a fim de centralizar e organizar o ensino secundário em Sergipe.
Severiano Cardoso, assim como outros intelectuais do século XIX, também fez
parte da “intelligensia” sergipana, militando nas diversas áreas, onde pode contribuir ao
desenvolvimento intelectual a sociedade sergipana, principalmente no campo educacional. Na
literatura, dedicou-se a vários gêneros literários. Na seara da prosa criou diversas peças
teatrais, algumas inéditas e listadas por Armindo Guaraná, que se encontram nos acervos do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1925).

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No Jornalismo, iniciou sua carreira ainda na Bahia, no ano de 1864. Mas, foi em
Sergipe que freqüentou assiduamente os órgãos de maior publicidade do Estado, onde recebeu
de Acrísio Torres, o qualitativo de “príncipe do jornalismo sergipano” (1999).

Como político, exerceu o cargo de deputado por duas legislaturas: a primeira em


1898/1899 e segunda em 1902/1903. Foi ainda oficial de gabinete na vice-presidência do Dr.
Pelino Nobre, além de camarista e presidente da Câmara Municipal em Aracaju. (Santos,
2007, p.7-8).

No magistério, dedicou maior parte de sua vida, era conhecido como a “alma” da
Escola Normal (Valença, 2005, p.28), sendo considerado como uma das principais
autoridades educacionais de Sergipe.

Na busca pelos vestígios, para construir a trajetória desse personagem, Severiano


Cardoso, verifique que o mesmo fez parte da Loja Capitular Cotinguiba, como membro-
fundador daquela instituição essencialmente filosófica, filantrópica e educativa. Criada em 10
de março de 1872 tendo como princípios a liberdade individual e dos grupos, bem como a
igualdade de direitos e obrigações, os objetivos dos maçons se resume em investigar a
verdade, o exame da moral e a prática das virtudes. A história da Maçonaria no Brasil pode
ser assim considerada:
“misteriosa e lendária, é a única sociedade secreta que conseguiu manter a
sua estrutura, vencer as dificuldades e sobreviver nos tempos modernos.
Surgida no período colonial, o seu passado está marcado pela influência que
os maçons tiveram nos movimentos políticos no século XIX.” (Nascimento,
2000, p.13).

Dentre as principais contribuições da Loja Maçônica na Política do Brasil,


podemos citar a Independência em 1822, depois a Abolição da Escravatura, no ano de 1888 e
a Proclamação da República, em 1889. Entre os maçons de maior destaque nesses
movimentos políticos tivemos a presença do imperador, D. Pedro I, José Bonifacio,
Gonçalves Lêdo, Luis Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias), Deodoro da Fonseca,
Floriano Peixoto, entre outros.
Em Sergipe, o ingresso a Loja Capitular Cotinguiba significava aderir a uma
sociedade, com seus ritos, seus códigos morais e principalmente seu engajamento em causas e
campanhas que se corresponde a uma atitude singular. (Barreto, 2000).

“(...) maçons sergipanos intensamente comprometidos com as lutas sociais e


políticas em prol dos ideais republicanos, e com a propaganda em favor da

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extinção da escravatura negra, fundavam a 10 de novembro de 1872 a Loja


Maçônica Cotinguiba.” (NASCIMENTO, 2000, p.20)

Os maçons fundadores da Loja C. Cotinguiba em Sergipe foram Clodomir Silva, ao


Oriente de Aracaju, Piautinga, ao Oriente de Estância e Luz do Opara, ao Oriente de Propriá.
(Nascimento, 2000, p.47). No entanto, pouco se sabe de concerto sobre a atuação dos maçons
em Sergipe e a respeito da participação daquela instituição que muito contribuiu para
intensificar os movimentos em prol de uma sociedade igualitária.
Vale ressalvar o livro sobre a maçonaria em Sergipe intitulado “A Loja Maçônica
Cotinguiba nos Caminhos da História”, do Prof. José Anderson Nascimento, que muito
contribui ao desenrolar da trajetória de fundação da Loja Capitular Cotinguiba. Mas, sobre
essa importante instituição, ainda a muito que ser desvendada. Com isso, a Loja Capitular
Cotinguiba é um objeto de pesquisa aos interessados em estudar e analisar as influências
dessa instituição, bem como a contribuição de seus membros a sociedade sergipana.
Contudo, percebe que parte dos catedráticos do Colégio “Atheneu Sergipense”
(fundado em 1871 com o objetivo de centralizar e organizar o ensino secundário em Sergipe)
foram também membros da Loja Capitular Cotinguiba. Segundo Lima: “a atuação dos maçons
– discreta; imperceptível no seu agir subterrâneo” (1995, p.96), contou com a presença de
vários nomes, dentre eles podemos citar o do Prof. Severiano Cardoso como membro-
fundador da maçonaria em Sergipe, no ano de 1872.

O professor Severiano Cardoso, membro-fundador da maçonaria em Sergipe foi


eleito a 10 de novembro de 1872 como “Gradi. Interino” presidindo esse cargo até o ano de
20 de novembro de 1873 e indicado a mais um ano de gestão. Esse cargo, aparentemente,
entende-se como uma espécie de secretário geral. Um homem da estirpe do ilustre mestre
estanciano que ocupou diversos cargos no funcionalismo público era sempre bem requisitado
a ocupar cargo de responsabilidade na maçonaria sergipana.

As possíveis influências sofridas por Severiano Cardoso ao pertence à Loja


Capitular Cotinguiba podem ser vistas na construção da sua trajetória de vida. Foi Severiano
um homem, que além de viver momentos marcantes na história brasileira, como também, na
história local, ativo nas participações pelas campanhas políticas a favor de uma sociedade
justa e igualitária escrevendo em diversos artigos de jornais, suas críticas e denúncias as
diferentes injustiças cometidas pelas autoridades locais.

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Essa pesquisa encontra-se em fase inicial, levantamento de fontes e leituras


bibliográficas, mas já permitem visualizar, pelo menos as possíveis influências do maçom
Severiano Cardoso e o seu compromisso com os princípios e os objetivos da Loja Capitular
Cotinguiba, nos anos de 1872 a 1873, utilizando como ponto de partida a ficha individual do
Acervo da Loja Maçônica, bem como, a memória dos seus contemporâneos e de pesquisas
recentes na área de História da Educação.

O estudo, que é parte da pesquisa monográfica de conclusão da graduação em


História, apresentado no ano de 2007, pela Universidade Federal de Sergipe. Ao analisar uma
obra inacabada, que seria um livro didático destinado ao ensino primário, caso fosse
publicado, de autoria do professor estanciano, Severiano Maurício de Azevedo Cardoso
(1840-1907), despertou a possibilidade de estudar a trajetória de vida deste personagem
oitocentista e suas contribuições a sociedade sergipana.

Enfim, este estudo se baseia nos pressupostos da História da Educação e da


História Cultural, tendo em vista a abordagem biográfica e a possibilidade de compreender
aspectos da influência da Loja Cotinguiba e a participação dos professores do Colégio
“Atheneu Sergipense” em Sergipe, no século XIX, através da trajetória da figura do Prof.
Severiano Cardoso.

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Correio de Aracaju. Sergipe, 1907; 1908
Jornal do Aracaju. Sergipe, 1872; 1873; 1874; 1875.
O Estado de Sergipe. Sergipe, 1889.
Sergipe Jornal. Sergipe, 1923.
Revistas
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Nº26 A, 1962.v. XXI.

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O PERFIL BIOGRÁFICO DE MANOEL CLEMENTE NA PROVÍNCIA


DE SERGIPE (1825-1826)

Mariângela Dias Santos. (UFS)


mariangela.dias@uol.com.br

Escrever sobre a história de vida de alguém é abrir uma janela para a compreensão da
realidade, assim na abordagem biográfica, o objeto de estudo é, portanto, o indivíduo com sua
singularidade. Dessa forma, artigo tem como objetivo reconstruir a trajetória de vida de
Manoel Clemente Cavalcanti de Albuquerque como segundo Presidente da Província de
Sergipe no período de 1825-1826. A análise dos dados auxiliou no entendimento que Manoel
Clemente trouxe um ritmo novo e progressista para Sergipe. A abordagem biográfica foi a
ferramenta metodológica utilizada para desvendar os percursos da trajetória de Manoel
Clemente. Assim, a pesquisa foi estruturada fazendo relação entre a História da Educação
com a História Cultural, trazendo conceitos de teóricos como: Norbert Elias (1993), Roger
Chartier (2002), Carlo Ginzburg (2002), e Pierre Bourdieu (1989), os quais oferecem
categorias de análise como representação, capital simbólico, biografia, história de vida. De
acordo com a análise das fontes, é possível identificar que muitas das medidas tomadas para o
desempenho cultural da vida sergipana repercutiu para a qualidade do serviço prestado a
Província, sendo o percussor do Ensino Profissionalizante em Sergipe. Por fim, a pesquisa
contribui para a construção da trajetória de um personagem da história sergipana.

Palavras – chave: Manoel Clemente, História Cultural, Ensino Profissionalizante.

INTRODUÇÃO

Este estudo pretende discutir os pressupostos da pesquisa biográfica e suas inter-


relações com os estudos de História da Educação, principalmente às contribuições da História
Cultural. Foram utilizados como categorias de análise, os conceitos de representação e apropriação
de Roger Chartier e de configuração de Norbert Elias, campus e capital simbólico de Bourdieu,
bem como estudos de pesquisadores da História da Educação sobre biografias.
Os pressupostos teórico-metodológicos que embasam este estudo procuram
aproximar a História da Educação e com a abordagem biográfica. A utilização dessa

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abordagem facilitará a compreensão da importante contribuição dos estudos biográficos para


os entrelaces da História. Assim, o estudo faz referência a trajetória de Manoel Clemente na
província de Sergipe, como Presidente da Província nos anos de 1825-1826, momento este em
que Sergipe tem uma aceleração em seu processo administrativo.
Dessa forma, o estudo vem configurar que a abordagem biográfica tem sido uma
importante linha de pesquisa que ajuda a compreender fatos, histórias de vida, momentos
sociais de épocas passadas, a partir de uma vida. Isso porque, todos os biografados estão
inseridos em uma rede social, possuem uma profissão ou ocupação, uma mania e tabus, que
revelam características, valores e comportamentos de uma época.

A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS BIOGRÁFICOS

A biografia hoje é certamente considerada uma fonte para se conhecer a História.


A razão mais evidente para se ler um a biografia é saber sobre a pessoa, mas também sobre a
época, sobre a sociedade em que ela viveu.
É tarefa do historiador ler o passado e interpretar os diferentes registros deixados
pelo homem. Ao escolher cumprir esta missão através da investigação de trajetórias, da
analise de percursos biobibliográficos, da pesquisa sobre vivencias profissionais, do estado de
registros de viagens e outras fontes, produzidos por diferentes personagens ou sobre eles, o
historiador escolhe um caminho que exige mais do que faro investigativo, como também
sensibilidade, criatividade, persistência e dedicação exaustiva.
As abordagens sobre intelectuais são importantes contribuições que servem para
reafirmar a condição do individuo como sujeito da história, colocando em destaque as
personagens, no processo de vida social.
São muito importante os estudos em torno dos intelectuais. Recompor suas
trajetórias, seus lugares, suas intervenções na cena cultural e política pode ensejar uma
compreensão mais acurada dos processos mediante os quais foram cotejados e postos em
disputa padrões de formação da vida social.
Ao estudar a trajetória dos intelectuais é necessário compreender as pressões
sociais que atuam sobre o individuo. Não basta apenas produzir uma narrativa histórica,
precisa-se buscar compreender na estrutura os modos através dos quais a sociedade atua sobre
o individuo, uma vez que, como entende, mesmo sendo autônomo o intelectual esta

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subordinado a tal estrutura, posto ser “ simplesmente impossível para uma pessoa ter uma
propensão natural geneticamente enraizada de fazer algo”. (ELIAS, 1995, p. 58 , apud
Nascimento)
O sociólogo alemão Norbert Elias abordou as possibilidades dos estudos que
buscam relacionar História e Sociologia. Para o estudo das trajetórias dos intelectuais as
reflexões de Elias são muito importantes, uma vez que permitem buscar o entendimento das
figurações (configurações), nas quais estes estiveram inseridos e as relações de
interdependência que estabeleceram:

A tarefa da sociologia é trazer para i primeiro plano justamente aquilo que


costuma aparecer na pesquisa histórica como segundo plano o
desestruturado, tornando tais fenômenos acessíveis a investigação com o
nexo estruturado dos indivíduos e de seus atos. Nessa mudança de
perspectiva, os homens singulares não perdem, como as vezes tendemos a
considerar, o seu caráter e valor enquanto homens singulares. Porem eles
não aparecem mais como indivíduos isolados, cada um totalmente
independente dos demais, existindo por si mesmo. Não são mais vistos
como sistemas fechados e vedados, cada um contendo o esclarecimento
final acerca de um ou outro evento histórico, constituindo um começo
absoluto. Na analise das figurações, os indivíduos singulares são
apresentados da maneira como podem ser observados: como sistemas
próprios, abertos, orientados para a reciprocidade, ligados por
interdependências dos mais variados tipos e que formam entre si figurações
especificas, em virtude de suas interdependências.(ELIAS, 2001, p. 50).

A pesquisa em História da Educação ampliou as possibilidades de estudo a partir


da utilização de documentos e fontes não tradicionais. Não apenas a legislação educacional e
os relatórios produzidos por governantes e autoridades do ensino, regulamentos, programas de
ensino e dados estatísticos constituem um acervo documental legitimo, mas também outros
testemunhos e vestígios deixados pelo homem. É legitimo utilizar memórias, diários, cartas,
biografias, fotografias, literatura, musica, pintura, história de vida, depoimentos, anúncios e
relatos de festas escolares publicados em jornais e revistas, assim como discursos e outros
dispositivos produzidos por homens e mulheres, bem como dicionários biográficos e
coletâneas de biografias de personalidades.

Além de permitir a observação do habitus que, segundo Pierre Bourdieu


(1996), “(...) é um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que
incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor particular
desse mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo
como a ação nesse mundo” (p. 144).

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No caso dos estudos a respeito de biografias, o documento é um instrumento


valioso para o historiador, servindo de suporte as interpretações necessárias a compreensão do
objeto proposto.
Um dos propósitos da pesquisa foi também o de recuperar, para a História da
Educação os rastros deixados por homens e mulheres, muitas vezes apagados da memória de
um único indivíduo expressa seu acervo de experiências, revelando a visa social em
determinado tempo, num dado lugar, pois todos os homens transportam consigo as
particularidades do seu grupo na mesma medida que cada grupo transporta as marcas dos seus
homens.
Nessa direção, procurei levar em consideração o tempo, o espaço e os sujeitos,
isto é, os homens e as circunstâncias envolvidas na produção dos discursos, fazendo com que
seu entendimento pudesse ser visto não como uma produção rigorosamente individual, mas,
como uma prática cultural controlada e controladora de outras ações. Para tanto, é necessário
destacar que a compreensão com a qual estou trabalhando é a de que a ação discursiva é, ela
própria, uma prática social como tantas outras, mas com algumas particularidades que devem
ser observadas. O discurso escrito, conforme alerta Certeau (1982), confere ao seu autor e a
seus leitores lugares bem determinado, visto que o primeiro toma para si a tarefa e
competência de (re) ordenar referências simbólicas, cabendo aos últimos apropriarem-se das
mesmas.
A biografia abordada nesta pesquisa não pretende desvelar todos os momentos da
vida da pessoa, nem relatá-los tal como aconteceram, mas sim focar alguns aspectos da vida
dos biografados. Esse atual campo de pesquisa vem ampliando a noção e a utilização de
fontes e documentos sobre um objeto de estudo.
O uso de memórias, diários, cartas, biografias, fotografias, literatura, música,
depoimentos, relatos permitem rememorar práticas e saberes difundidos em uma época, assim
como, os discursos e os dispositivos produzidos em torno do objeto de estudo a ser
investigado, considerando as particularidades existentes em cada contexto. Na pesquisa
biográfica, busca-se uma aproximação com a realidade vivida pelo biografado, levando em
consideração as limitações da pesquisa, no que diz respeito ao acesso às fontes.

(...) a biografia o resumo de vida, um excerto, uma parte do todo, resultado


da construção de um determinado olhar, em um determinado momento.
Nessa perspectiva, o estudo realizado permanece, sim, como uma das
possibilidades de leitura e interpretação (BASTOS, 2002, p. 319).

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Nesse sentido, vários aspectos da vida do biografado podem ser relevantes para a
pesquisa, como sua origem, formação, atuação profissional, valores políticos, ideais, bem
como suas redes de interdependência. Sobre isso, Norbert Elias afirma que

(...) cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente
desvinculados na rua, está ligada a outras por laços invisíveis, sejam estes
laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais
díspares de funções tornaram-se dependentes de outrem e tornaram outros
dependentes dela. Ela vive, e viveu desde pequena, numa rede de
interdependências que não lhe é possível modificar ou romper pelo simples
giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria estrutura dessas
dependências o permita; vive num tecido de relações móveis que a essa
altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal (ELIAS, 1994, p. 22).

Como os documentos são evidências que podem ser utilizados para fazer História,
resultando de opções feitas durante o processo de apropriação daquilo que se acredita fazer
parte de um contexto, é necessário problematizar as fontes encontradas. Pois, nenhum
documento é inofensivo, ele sempre será o resultado dos acontecimentos da sociedade que o
produziu e, por isso, pode ter sido manipulado pelos interesses da época em questão.
Como exemplo estão os estudos de feitos a partir de memórias. Segundo LE GOFF
(2003),

(...) a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-


nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas ( p. 419).

A memória, portanto, é composta por vários elementos que influenciam e interferem


na sua descrição. Por isso, os registros aqui descritos não são a cópia fiel do passado, tal qual
como este aconteceu, mas sim, um olhar lançado sobre ele.

Sendo necessário, portanto, ao historiador fazer a confrontação das fontes obtidas, com
o cuidado de não isolar os documentos do conjunto de seus monumentos. Por isso, muitos são
os aspectos a serem observados pelo pesquisador quando da construção de uma possível
versão de acontecimentos históricos.

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A CONTRIBUIÇÃO DE MANOEL CLEMENTE A PROVINCIA DE SERGIPE

Entre as grandes realizações desse administrador, pode-se destacar: a sua atenção


para a agricultura, tentando fazer com que os agricultores tivessem conhecimentos de novas
técnicas agrícolas, ousou da tentativa de lançar os fundamentos de indústrias acessórias à
canavieira, providenciou a instalação de feiras em algumas localidades, objetivando o
desenvolvimento do comércio, planificou e construí estradas, deu prosseguimento ao exame
das minas da Serra de Itabaiana. No entanto, uma de suas maiores medidas foi à reforma
fiscal e tributária da província. Essa tentativa de autonomia ao comercio não obteve sucesso.
(DOMINGOS, 2005)
A participação de Manoel Clemente trouxe para a vida de Sergipe um ritmo novo
e progressista. Este voltou-se para a agricultura, procurou mostrar aos agricultores técnicas
novas, através da criação do Horto Agrícola, logo após sua posse.
Solicitou às autoridades imperiais mudas de sementes, chegando a Sergipe cerca
de mil pés de chás, sobrevivendo apenas duzentos. Tentou lançar acessória aos donos de
canaviais, com a instalação de uma fábrica de cordoaria, contudo, ante as dificuldades de
matéria-prima como tucum, gravatá e caroá, esta fracassou. Visando o desenvolvimento do
comércio instalou férias em diversas localidades da Província. (NUNES, 1999, p. 141)
Seu governo foi marcado pela tranqüilidade e arrefecimento das disputas políticas
que conseguiu manter, pela larga visão administrativa, foi um hiato na tumultuada política
sergipana vivida após a saída do Brigadeiro Carlos César Burlamaque, enfrentada pelo
Brigadeiro Manuel Fernandes da Silveira com tenacidade nos onze meses de governo.
(DOMINGOS, 2005)
Este procurou organizar a arrecadação das rendas públicas, tentou agilizar a
cobrança de impostos principalmente sobre os produtos importados a Bahia, entretanto essa
medida não vigorou , prevalecendo os interesses dos comerciantes e das autoridades de
Salvador, aos quais era financeiramente vantajosa a situação da dependência econômica
vigente.
Ao buscar perceber as “relações de interdependência” estabelecidas por Manuel
Clemente no decorrer de sua trajetória, os documentos já localizados, apresentam situações de
enfrentamento e expressam “relações de força” que serão analisados a partir das proposições
de Carlo Ginzburg:

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Mas, ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo


ponto vista sobre a realidade de acesso a documentação, a imagem total que
uma sociedade deixa de si, (...) é preciso aprender os testemunhos as
avessas, contra tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a
elas. (...) Os instrumentos que nos permitem compreender culturas diversas
da nossa são os instrumentos que nos permitirão dominá-las (GINZBURG,
2002, p. 43)

Este pretendia alterar a estrutura sócio-econômica sergipana, porém não consegui,


escapando a sua ação pacificadora. Pois, não conseguia controlar os senhores de engenhos
locais que detinham o poder econômico de Província.
Diante do Conselho do Governo ser constituído maioria de senhores de engenho,
foi resolvido na sessão de 20 de novembro de 1826, que as reuniões ficariam suspensas.
Entre feitos do Presidente Manoel Clemente, tem destaque o Palácio de S.
Cristóvão, a Casa do trem militar, autorizou o de Laranjeiras e S. Cristóvão, promoveu os
meios de edificação de um quartel, que não levou a cabo1031.
Em 25 de junho de 1825, o Conselho Militar manda reintegrar os oficiais
portugueses, está decisão desagradou os sergipanos, encadeando o descontentamento da
classe média urbana. Essas agitações permearam Laranjeiras e Itabaiana. A ação repressiva do
Presidente e do comandante das Armas impediu as agitações de ter encargos maiores.
Na mesma época, houve a manifestação da transferência da sede da Vila de Santo
Amaro para Maruim. Manoel Clemente manteve-se favorável ao pedido no ofício
encaminhado ao Imperador. Todavia, foi contrário ao envio Pe. Gonçalo Pereira Coelho, e
alguns habitantes. Para evitar sérias agitações não foi resolvido o impasse.
Com relação a obra do Palácio, em 21-V-1825, baixou portaria ao Escrivão
Deputado da Junta da Fazenda pública, Vetor Fiscal da Pagadoria Militar da Província, onde
foi inaugurado a 12-X-1825. Essa data foi escolhida como propósito de comemorar o
aniversário da sua Majestade D. Pedro I e da Fundação do Império “a graça de promover a
ultimação da Igreja da Matriz de São Cristóvão”. Na visita do imperador a Sergipe, em 18 de
abril de 1826, ordena a melhoria ou reedificação do Palácio.
Diante da falta de não haver na Província Oficial um engenheiro, foi encarregado
de inspecionar e dirigir a Obra o Ajudante de Milícias Miguel Arcanjo de Vasconcelos Café.
Somente em 6-X-1825 deu a conhecer a Portaria de 27-VIII, o Imperador aprova
a deliberação em contratar o edifício destinado a servir de Palácio do Governo1032.

1031
Felisbelo Freire. História de Sergipe. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p.272
1032
Sebrão Sobrinho. Fragmentos da História de Sergipe. Aracaju, 1972.

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Apesar das dificuldades decorrentes da falta de engenheiros hidráulicos, recorria


a pessoas que possuíam alguns conhecimentos do ramo, tentou executar as determinações da
Corte para construir um canal ligando os rios Japaratuba e Pomonga, bem como tornar menos
perigosa a Barra do Cotinguiba.
Várias lutas foram travadas por Manoel Clemente, como a tentativa de funcionar
em Sergipe as cadeiras de Lógica, Retórica e Poética, Filosofia Racional e Moral, e
Aritmética e Geografia, enfatizando que ao momento que a população fosse adquirindo
conhecimentos elementares, os mesmos estariam aptos para os ramos do serviço público,
afastando – os dos crimes e atentados de toda a natureza.
Com a tentativa de solucionar o problema do local da instalação do Ginásio
Geral, o Presidente teve como idéia aproveitar os Conventos de São Cristóvão, o dos
Franciscanos ou o dos Carmelitas, onde quase nunca existiam mais de dois religiosos
residindo no local. Ao mesmo tempo, serviria de habitação para os alunos oriundos de Vilas e
Povoações distantes.
Reabriu o Hospital da Misericórdia, que se encontrava fechado há alguns anos,
construí também um pequeno hospital militar. Já a Capital, a cidade de São Cristóvão,
recebeu impacto da visão administrativa, com calçamento de ruas. Foram realizadas na cidade
de Estância as primeiras tentativas de vacinação antivariólica com a aquisição, na Bahia, de
algumas lâminas apropriadas.
Não foram poucas as dificuldades encontradas pelo Presidente para levar adiante
seus largos planos administrativos, como a seca que em 1826 assolou a região, faltando a
farinha de mandioca.
Um mérito a ser apresentado por este Presidente é o de ser pioneiro do ensino
profissional sergipano, ao melhorar as instalações do Trem Militar, formando homem úteis à
Pátria, como ferreiros, letreiros, coronheiros e sapateiros.

Algumas das solicitações de Manoel Clemente só se tornaram realidade a


partir de 1828, em decorrência da Lei Imperial de 15 de outubro do ano
anterior, que estabeleceu normas para a execução dos dispositivos
constitucionais relativos à educação. (NUNES, 1984, p.45)

Dificuldades foram encontradas por ele para levar avante seus avançados planos
administrativos, a começar pela grande seca que em 1826, assolou a região trazendo escassez
de alimentos. Manteve constantemente a maior harmonia com o comandante das armas.

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Durante sua administração recebeu a comunicação do governo imperial de ter declarado


guerra as republicas do Rio do Prata1033.
Em 02 de novembro de 1826, morria repentinamente, de moléstia natural, o
Presidente Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque, trazendo a interrupção de uma
administração esclarecida e progressista e da época de tranqüilidade que a Província vivera
nos seus 20 meses de seu governo.
Mesmo enfermo Manoel Clemente oralmente constrói seu Testamento com o
auxilio de seu companheiro Ignácio Antônio Dormundo Rocha, prescrevendo o testamento,
sendo solicitado que fossem seus testamenteiros em primeiro lugar Coronel Ignácio José
Aprígio da Fonseca e Galvão e em segundo Tent. Major Alexandre da Cruz Brandão.
A declaração de suas dívidas informa seu compromisso e honraria com suas
palavras:
Declaro1034 que devo a algumas pessoas varias quantias, as quais serão pagas
com o produto de meus bens, como: Francisco de Paula Martins muito maior
quantia de Cem mil reis, e menor de duzentos a meu testamenteiro. Deixo
ainda, meu escravo Leandro criolo, pelos bens serviços que dele tenho
recebido, desde que o comprei, e muito mais no tempo da minha moléstia, o
deixo forro, e só com a infalível obrigação de dar a Nossa Senhora de
Amparo a quantia de Cem mil reis. Como também, dará a minha afilhada D.
Luisa Mendes, filha de meu Compadre Euzébio e D. Maria, a quantia de
Cem mil reis.

Além de deixar esclarecido que possuía bens que poderiam pagar suas dívidas,
informa ainda que:

Sou filho legítimo de Capitão Mor João Baptista Rego Cavalcanti, e D.


Catharina de Pena Rosa V. já defunta. Declaro que depois de pago todas as
minhas dívidas, e despesas com o meu funeral, deixo todos meus bens ao
meu referido Pai, que instituo que é meu legítimo e único herdeiro, pois
nunca fui casado. Declaro que meu corpo será sepultado em uma das Igrejas
a esta Cidade, onde mais convier a meu testamenteiro.

Assim, sua vontade foi acatada, sendo sepultado na Igreja do Convento de São
Francisco, em São Cristóvão1035. Assumiu em seu lugar o Sargento – Mor Manuel de Deus
Machado.

1033
Felisbelo Freire. História de Sergipe. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p.272
1034
Testamento de Manoel Clemente, pesquisado no Auditório do Arquivo do Poder Judiciário de Sergipe, Caixa
162. Estado de Sergipe
1035
In: RIHGS, vol. II, 1914, p. 331 a 333.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que o Presidente da Província Manoel Clemente Cavalcanti de


Albuquerque, durante o período de 1825 e 1826, em seu projeto político pretendia acalmar os
ânimos exaltados dos fazendeiros da Província, fazendo crescer a economia do Estado, por
meio de suas construções de facilitação de compra e venda de produtos da Província.
As medidas tomadas favoreciam a economia e a segurança pública da província,
em seu governo procurou empossar homens que tivessem ligados a cargo como: Capitão Mor,
Tabelião, Escrivão da Comarca, e sempre homens aliados a suas idéias progressistas.
Para Elias (1993, p. 97), o indivíduo “ é sempre obrigado a pautar seu próprio
comportamento no ‘tempo’ instituído pelo grupo a que pertence e, quanto mais se alongam e
se diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os homens entre si.
No estudo das representações se faz necessário identificar o processo de
apropriação que, segundo Chartier (1990), tem por objetivo uma história social das
interpretações que é elaborada pelos diferentes grupos sociais através das “determinações
fundamentais” como as sociais, culturais, institucionais efetivadas em suas práticas.
Nas analise das provisões dos Ofícios, fica obvio o interesse de manter no
Governo pessoas de sua confiança, para que houvesse confronto de idéias.
As nomeações refreiam-se a cargos de segurança pública e finanças. A estes eram
dados plenos poderes, perante a Lei Imperial, juramento e proposta do Presidente da
província.
Sergipe teve um político empreendedor que frisava o bom andamento da estrutura
administrativa da Província.
Assim, o estudo indaga a seguinte afirmação: A pesquisa “autobiográfica” procura
reconstruir suas trajetórias é retirá-las do mar do esquecimento e pinçar do passado as
pegadas, os sinais, os rastros deixados num tempo já esmaecido por formam um mosaico de
experiências, ações, atitudes que, quando juntas, possibilitam vislumbrar as cores que um dia
tiveram.

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3.5– SIMPÓSIO 5:
ENSINO DE HISTÓRIA
Coordenação:
Prof. Dr. Itamar Freitas (ANPUH-SE/IHGS/UFS)
Prof. Hermeson Alves de Menezes (PPGG-UFS/GPEH-UFS)

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AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS, A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL


E O ENSINO DE HISTÓRIA

Alix Pinheiro Seixas de Oliveira - UERJ


alixpoliveira@yahoo.com.br

Este artigo apresenta os resultados da investigação da relação entre as políticas educacionais


pautadas nas Diretrizes Curriculares (CNE/CES) e na Avaliação (INEP), desenvolvidas entre
1996 e 2002, e a concepção docente da formação do profissional de História, tendo como
ponto de partida a centralidade do modelo de competências, presente na legislação. Tratou-se
de uma pesquisa de natureza qualitativa e teve como sujeitos dez professores do departamento
de Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, os quais se submeteram a
entrevistas semi-estruturadas. Os resultados da investigação tornaram mais claras as
expressivas divergências entre as posturas dos docentes do ensino superior pesquisados e os
documentos que regem seu curso de graduação, exibiram profundas polêmicas quanto ao
caminho a seguir em relação à formação de professores, mostrando unanimidade quanto à
indissolubilidade entre licenciatura e bacharelado na área de História. Finalmente, foram
indicados e possivelmente abertos novos caminhos de discussão e participação do docente do
Ensino Superior na elaboração da legislação relativa aos seus cursos e seu impacto no ensino
de História.

Palavras-chave: Formação de Professores de História, Diretrizes Curriculares da Graduação


de História, Ensino de História.

1 – Apresentação:

A pesquisa, em processo de desenvolvimento no Departamento de Ciências Humanas


da Universidade do Estado do Rio de janeiro, investiga a relação entre as políticas
educacionais pautadas nas Diretrizes Curriculares e Avaliação e a concepção docente da
formação do profissional de História, tendo como ponto de partida a centralidade do modelo
de competências, presente na legislação.
O Modelo de Competências se desenvolve no Brasil a partir da Reforma Educacional
dos anos 90, transferindo para o campo da Educação conceitos aflorados e desenvolvidos no

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mundo do trabalho, dentro de uma perspectiva voltada para o mercado, fazendo frente a
exigências de competitividade e produtividade.
A Reforma da Educação no Brasil adota o conceito de competências nos cursos da
Educação Básica, de nível Básico, Médio e Superior conforme é expresso nas Diretrizes
Curriculares Nacionais e passa quase que instantaneamente a fazer parte do vocabulário diário
dos profissionais da Educação, levantando grande polêmica quanto à sua teoria e aplicação.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores da Educação Básica
consideram “a competência como concepção nuclear na orientação do curso; os
conteúdos como meio e suporte para a constituição das competências”.
O debate que cerca a questão da formação e profissionalização de historiadores e
professores de História está marcado por dilemas políticos e pedagógicos envolvendo os
profissionais da área dos mais diversos níveis de ensino, associações sindicais e científicas e
especialmente a ANPUH (Associação Nacional de História).

A pesquisa em questão realiza-se em dois níveis, o primeiro, busca a análise dos


documentos relativos à Reforma Educacional dos anos 90 e o segundo parte da realização de
entrevistas com docentes do ensino superior, discutindo suas concepções e avaliando o
impacto das Políticas Educacionais sobre sua prática docente.

As grandes transformações do sistema capitalista dos anos 80 trazem uma nova fase de
internacionalização do capital e a globalização. O fenômeno em questão se espalha
mundialmente e aporta num Brasil em crise, lutando para restabelecer o crédito internacional
e a estabilidade econômico-financeira, dando início a uma série de modificações profundas,
como o processo de privatização, reforma do Estado, flexibilização das leis trabalhistas e a
nova lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394 de 1996, que surge como decorrência da
Constituição de 1988 (NUNES, 2002). A Reforma Educacional implantada no Brasil “assume
como concepção orientadora o modelo das competências” (DELUIZ, 2001).
Surgindo no bojo de um fenômeno que tende a considerar a crise na educação uma
crise de gerenciamento e avaliação, a transferir processos, metodologias e conceitos do
sistema produtivo para os demais setores da sociedade, a nova lei introduz no mundo da
Educação um conceito, o das competências, importado do mundo do trabalho. A adoção do
modelo das competências na gestão da mão-de-obra relaciona-se ao uso, controle, formação e
desempenho da força de trabalho diante das novas exigências requeridas pelo padrão de
acumulação capitalista flexível (DELUIZ, 2001).

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As novas exigências do mundo do trabalho, centradas na flexibilidade, trans-


feribilidade, polivalência e empregabilidade transformam-se no foco da educação
profissional e dominam os perfis de competências estabelecidos nas Diretrizes Curriculares
Nacionais. Provocando grande impacto sobre o ensino profissional e básico, o conceito de
competência, entretanto, passa também a representar a centralidade nas Diretrizes
Curriculares do Ensino Superior.
É através da especificação das Diretrizes Curriculares do Conselho Nacional de
Educação que o conceito de competência se fixa definitivamente e movimenta as discussões
dos grupos voltados para o questionamento e a reescrita dos currículos.
A partir da promulgação da LDB, as diretrizes para o curso de graduação de História
passam a ser elaboradas por uma comissão de especialistas, assessorados por representantes
da Associação Nacional de História (ANPUH – Associação científica, fundada em 1961 que
congrega professores e pesquisadores de História) que trazem para os documentos um perfil
de graduado com ênfase específica no trabalho do historiador, na preeminência da pesquisa e
no fim da dicotomia entre bacharelado e licenciatura. Os resultados parecem atender aos
anseios de grande parte da comunidade acadêmica até surgir a obrigatoriedade, para os cursos
de licenciatura, da adequação quase que imediata às Diretrizes da Formação de Professores
com sua especificidade voltada para as disciplinas pedagógicas e com uma marcante presença
da “lógica das competências”.
Ao mesmo tempo em que se reacende a discussão acerca das Diretrizes, começam a
ser determinados os caminhos da avaliação institucional1036 e do Exame Nacional de Cursos,
mais conhecido como “Provão”. A polêmica se estabelece, principalmente, no que se refere
ao eixo de conteúdos mínimos a serem exigidos, reproduzindo o perfil conteudista do Parecer
S/N do MEC de 19 de dezembro de 1962. Toda a flexibilidade que havia transparecido no
preâmbulo das Diretrizes Curriculares dá lugar a uma portaria que reforça princípios de
definição retrógrados e ultrapassados, ignorando a experiência acumulada pela área e
posicionamentos adotados pela ANPUH. O restabelecimento desses conteúdos desconsidera
as próprias Diretrizes Nacionais aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação para os
Cursos de Graduação (ANPUH, 2001).
Para tornar a questão ainda mais polêmica, não é levado em consideração o fato de que
93% dos cursos de graduação em História são licenciaturas (ANPUH, 2002), deixando o
INEP completamente afastada a avaliação do Ensino de História e também a questão da

1036
Portaria do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) nº 3020 de 21 de
dezembro de 2001.

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interdisciplinaridade, quando não se pretende avaliar também as áreas de Antropologia,


Sociologia, por exemplo.

2- Política Educacional e Polêmica na área de História entre 1996 e 2002:

Em fevereiro de 1997 a Secretaria da Educação Superior do MEC convocou comissões


de especialistas de ensino para a elaboração de critérios para a avaliação de cursos de
graduação e conseqüente autorização para funcionamento (RICCI, 2003, p. 87). A Comissão
responsável pelas diretrizes de História, que redigiu proposta em consonância com os
especialistas da ANPUH, apresentou seu documento em 1998, mas a aprovação só veio em
2001, através do Parecer CNE/CES nº 492/2001, que revela mudanças de redação,
“mostrando um pouco do processo conflituoso da elaboração das diretrizes curriculares dos
cursos de graduação de História” (RICCI, 2003, p. 91).
As Diretrizes acima mencionadas apresentam o seguinte perfil profissional:

O graduado deverá estar capacitado ao exercício de trabalho do historiador,


em todas as suas dimensões, o que supõe pleno domínio da natureza do
conhecimento histórico e das práticas essenciais de sua produção e difusão.
Atendidas essas exigências básicas e conforme as possibilidades,
necessidades e interesses das IES, com formação complementar e
interdisciplinar, o profissional estará em condições de suprir demandas
sociais relativas ao seu campo de conhecimento (magistério em todos os
graus, preservação do patrimônio, assessorias a entidades públicas e
privadas, nos setores culturais, artísticos, turísticos, etc).

Na Resolução 13, de 13 de março de 2002, as Diretrizes Curriculares já alteradas


(Parecer CNE/CES 492/01) passam, oficialmente, a orientar a formulação dos projetos
pedagógicos dos cursos de História, acompanhadas, no caso das licenciaturas, das Diretrizes
para Formação de Professor do Ensino Básico em Cursos Superiores. Cronologicamente
anterior, a Portaria nº 3020, de 21 de dezembro de 2001 do INEP detalha os objetivos e os
conteúdos que norteariam o Exame Nacional de Cursos, que apesar de concomitante a todas
as discussões travadas pelos especialistas na Câmara do Ensino Superior do MEC, opta por
utilizar o currículo mínimo de História da década de 60 (ANPUH, 2002).
As críticas às Diretrizes para Formação de Professores da Educação Básica, aos
parâmetros utilizados pelo INEP em seu processo de avaliação, através do “provão” (Exame
Nacional de Cursos) e à centralidade do modelo de competências, aparecem fragmentadas na
literatura e embora algumas dissertações (RICCI, 2003; CAMPOS, 2002; MATIAS; 2003;

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MESQUITA, 2000) e a própria ANPHU através de seu GT de Ensino da História, tenham


resgatado parcialmente essa discussão, ela se encontra ainda aberta. Redimensionando as
discussões travadas por tão polêmicas políticas públicas, a ANPUH (2002) apresenta seus
perfis para a formação do profissional em História:

1. Formação integral, levando em conta a complexidade do momento


histórico;

2. Indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão, em todos os níveis do


ensino: isto significa na prática a rejeição da divisão entre cursos de
licenciatura e bacharelado, que segmentam e desarticulam essas dimensões
inerentes ao processo educativo;

3. Diálogo contínuo e renovado entre saberes acadêmico e escolar, sem que


isso signifique escolarizar o saber acadêmico ou academizar o saber escolar.
Em outras palavras reconhece-se, pois, os fios fundamentais da tessitura da
formação de docentes da área de História:

a) o professor como agente do processo educacional;

b) que a atividade docente pauta-se na articulação entre teorias e


práticas;

c) que a prática profissional não é o locus de aplicação de saberes


universitários, mas de produção de saberes docentes;

4. Natureza educativa e social de toda e qualquer dimensão do trabalho do


historiador. Em conseqüência a estrutura curricular dos cursos de graduação
deve contemplar essa dimensão como eixo estruturante e elemento de
articulação entre a produção do conhecimento histórico e o ensino em todos
os níveis.

A concepção acima, inspirada no documento introdutório às Diretrizes, funda-se


na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, bem como entre licenciatura e
bacharelado.

Em abril de 2002, o documento em questão foi aprovado pelo Conselho Nacional


de Educação, com a ressalva de que as licenciaturas seriam regidas pelas Diretrizes para a
formação de Professores de Educação Básica, aprovadas em maio, desvirtuando, na essência,
o teor da proposta da ANPUH, levando a instituição às seguintes reflexões (ANPUH, 2002):

• Ainda que as Diretrizes Curriculares dos Cursos de História, aprovadas


pelo CNE e já homologadas, em sua introdução, critiquem e proponham a
superação da dicotomia entre Licenciatura e Bacharelado, a sua articulação
às Diretrizes para a Formação Inicial de Professor de Educação Básica
reafirma a separação e contraria a concepção de formação de um profissional

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de História capacitado ao exercício do trabalho do historiador em suas


múltiplas dimensões, o que supõe o domínio da natureza do conhecimento e
práticas essenciais à sua produção e difusão.

• A despeito da valorização da pesquisa anunciada pelas ditas Diretrizes,


centrada prioritariamente na área do ensino, a concepção que se implementa
textualmente é a da transposição do saber acadêmico para a área da
educação, inviabilizando o movimento inventivo da articulação entre
diferentes saberes (históricos e educacionais) pelos sujeitos envolvidos.
Como decorrência, instala-se uma ordem hierarquizada de saberes,
privilegiando os conhecimentos acadêmicos, que sob a ótica pragmática e
utilitarista, reduz a condição de professor a mero reprodutor de
conhecimento.

• O documento das Diretrizes é marcado pela centralidade dada à


“pedagogia da competência”, apoiada numa concepção atrelada ao mundo
do trabalho, que sobrevaloriza o fazer pedagógico em detrimento da relação
entre teorias e práticas, sustentando-se muito mais numa visão
individualizada do próprio trabalho. A complexidade do conceito de
competência é traduzida através de uma leitura redutora e homogenizadora,
que freqüentemente se confunde com habilidades técnicas e mecânicas.
Ademais o conceito é tão polêmico e pouco consensual que a própria
discussão pelo CNE, levou à apresentação de um voto em separado.

• O documento propõe paradigmas relativos à formação de professores,


que têm como alvo uma produtividade concentrada no mensurável, passível
de ser controlada através de uma estrutura já montada de avaliações. Tal
postura inviabiliza uma avaliação processual e qualitativa.

Até fins de 2001 as discussões da comunidade acadêmica da área de História, con-


centradas mais especificamente nos documentos da ANPUH, se resumiam às críticas apre-
sentadas acima. Entretanto, a Portaria nº 3020 do INEP, de dezembro de 2001 que esta-
belece as Diretrizes de História para o Exame Nacional de Cursos vem reacender a po-
lêmica. O documento em questão, apesar de afirmar ter como um de seus objetivos “for-
necer subsídios para a melhoria do ensino de graduação em História”, ignora cerca de
quarenta anos de avanços curriculares e baseia seus “grandes eixos do conhecimento his-
tórico” em documento oficial de 1962. O documento do INEP menciona um perfil de
graduando “com habilitação que lhe permita atuar nos vários campos em que se faça
necessário seu conhecimento” (INEP, 2001) e faz referência (embora isso não venha a se
concretizar no “provão”) às fontes históricas e técnicas de investigação, assim como ao
“historiador e seu trabalho”, mas sequer toca na formação de professores de História, nas
questões voltadas para o ensino ou no processo pedagógico com ele relacionado.

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O artigo 3º da Portaria nº 3020 do INEP determina que as seguintes competências e


habilidades serão avaliados pelo Exame Nacional de Cursos:

1. problematizar os processos históricos observados;

2. interpretar, por meio de fontes e linguagens diversas, a experiência


histórica;

3. produzir análises e interpretações utilizando-se dos conceitos, categorias


e vocabulário pertinentes ao discurso historiográfico;

4. produzir, criticar e transmitir conhecimento;

5. conhecer o processo de construção da historiografia;

6. distinguir a História enquanto disciplina da história vivida;

7. reconhecer e valorizar as diferenças presentes nas práticas sociais e


culturais;

8. entender a especificidade e as características do conhecimento histórico


no conjunto das demais disciplinas com as quais se relaciona;

9. demonstrar conhecimento dos conteúdos fundamentais que expressam a


diversidade das experiências históricas através de suas múltiplas
manifestações;

10. demonstrar capacidade de leitura crítica;

11. propor e justificar um problema de investigação, estabelecer suas


delimitações ( cronológica, espacial, temática, etc ), definir as fontes da
pesquisa, as referências analíticas, os procedimentos técnicos, realizar a
análise do material pesquisado, justificar suas conclusões e expor os
resultados de acordo com os requisitos do trabalho acadêmico;

12. perceber a temporalidade do histórico para além da simples sucessão


cronológica, suas continuidades, rupturas e ritmos diferentes;

13. perceber a diversidade das relações históricas e as inúmeras mediações


que as articulam;

14. perceber as relações/tensões entre as ações dos sujeitos e as


determinações que as constrangem no processo histórico;

15. perceber a unidade do social ultrapassando as várias divisões


disciplinares ( História, Antropologia, Sociologia, Economia, Ciência
Política, etc ), temáticas ( História Política, História Social, História
Econômica, História Cultural, etc ), geopolíticas (História do Brasil, História
da América, História da Europa, etc), cronológicas ( Antiguidade, Idade
Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea, Tempo Presente, etc ) ou
espaciais ( global, nacional e regional ) do processo histórico;

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16. perceber a hierarquia dos diferentes elementos integrantes de um


contexto histórico;

17. incorporar sua experiência de vida como elemento para o conhecimento


histórico;estabelecer diálogo com outras disciplinas.

Finalmente, no artigo 5º o documento afirma que avaliará todas essas competên-


cias e habilidades através de uma prova com quatro horas de duração, constando de quarenta
questões de múltipla escolha e apenas cinco questões discursivas.

3- Considerações Finais:

Os resultados parciais da pesquisa mostram que apesar da abrangência teórica


discutida nos preâmbulos dos documentos, as Resoluções, Pareceres e Portarias produzidas
surgem com referências mais específicas às competências técnicas. A investigação aponta
também para inconsistências e contradições no que se refere a documentos oriundos das
diversas agências governamentais (SESU, INEP, entre outras) quanto à indissociabilidade
entre licenciatura e bacharelado e outras questões cruciais. Quanto à concepção docente, a
maioria dos entrevistados favorece o documento original de 1998 (produzido pelos
especialistas em História, mais o presidente da ANPUH), encomendada pelo próprio governo,
em detrimento das versões oficiais que se seguiram. Para boa parte dos docentes do Ensino
Superior entrevistados, as modificações introduzidas pelos técnicos do MEC
descaracterizaram o perfil inicial de indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão em
benefício de políticas que viriam a viabilizar um modelo aligeirado de Universidade. Quanto à
adoção do conceito de competências, alguns a consideram um avanço em relação aos
currículos mínimos apresentados na legislação anterior, mas a maioria não se encontra
informada sobre a complexidade de problematização daquele conceito, apreendendo-o pelo
senso comum.

A análise preliminar, realizada a partir de resultados parciais, indica:

• Um consenso quanto à indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão e a


aspiração pelo fim da dicotomia bacharelado X licenciatura;
• Um conhecimento parcial da legislação educacional pertinente aos cursos de
História e uma informação limitada no que se refere às Diretrizes da Educação Básica;
• Uma percepção do modelo de competências extraída do senso comum;

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• Um posicionamento que aproxima a formação ideal daquela do profissional


completo: Não formar apenas o professor ou o pesquisador, mas sim o professor-pesquisador.

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EDUCAÇÃO PARA O PATRIMÔNIO E O ENSINO DE HISTÓRIA E


CULTURA AFRO-SERGIPANA EM SÃO CRISTÓVÃO-SE

Marcelo Santos -NPPCS-UFS


wall21@ig.com.br

O texto em tela se propõe a discutir um roteiro de visita à cidade de São Cristóvão, em


Sergipe, que proporcione o ensino de História e Cultura Afro-Sergipana. Utilizamos como
metodologias de estudo a Educação para o Patrimônio, pesquisa bibliográfica e o método
Indiciário. Constatamos que as igrejas católicas, que abrigaram irmandades religiosas, se
constituem em patrimônios culturais apropriados para o ensino proposto.

Palavras-chave: Cultura afro-sergipana, ensino de história, São Cristóvão-SE.

As experiências religiosas dos africanos no Brasil podem ser percebidas através de


diversas expressões da cultura material e imaterial integrantes do patrimônio cultural
brasileiro. Assim, das danças desenvolvidas nos terreiros de candomblés1037 ao culto aos
santos católicos, parte dessas vivências são cotidianamente reencenadas, reconstruídas e
utilizadas como traços identitários dos afro-brasileiros.
As culturas dos negros africanos foram transmitidas aos seus descendentes no
Brasil e reelaboradas em diversos tempos e espaços. São inúmeros os exemplos dessas
experiências. No período colonial, em Minas Gerais, instrumentos, línguas, danças e práticas
culturas africanas foram incorporadas e ressignificadas pelos negros que lá viveram1038. No
Rio de Janeiro, no século XIX, religiões afro-cariocas foram herdeiras de tradições da África
Central1039. Por fim, em Sergipe, a existência das taieiras demonstra a presença de matrizes
africanas na nossa cultura na atualidade1040.

1037
Entendemos essa religião enquanto de “matriz africana” ou seja, que contem elementos significativos dos
povos africanos que se estabeleceram no Brasil.
1038
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão. IN: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e Escravidão. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.142-159.
1039
KARASCH, C. Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.p. 375.
1040
A historiografia sergipana registra um estudo relevante sobre essa prática cultural. Ver:
DANTAS, Beatriz Góis. A taieira de Sergipe: pesquisa exaustiva sobre uma dança
tradicional do nordeste. Petrópolis: Vozes, 1972.

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Nesse processo de transmissão estão envolvidos golpes de continuidades,


ressignificações, rupturas, mortes e estagnações capturadas através de diversos olhares, sob
densas camadas de histórias e memórias que envolvem vozes e silêncios1041.
Parte dessas experiências foi vivenciada nas irmandades religiosas de leigos. Essas
associações proporcionaram aos seus integrantes: o acesso a bens religiosos; o socorro diante
da doença e da morte; a ajuda financeira diante das dificuldades materiais. Elas se
constituíram em espaços de construção/preservação de identidades e foram palcos de relações
sociais que expressaram conflitos, acomodações, negociações e resistências de grupos étnicos
diversos1042.
Mas, poucas irmandades sobreviveram ao processo de romanização1043. Assim, em
muitos centros urbanos brasileiros, as experiências dos africanos e afro-brasileiros nessas
associações religiosas só podem ser percebidas através dos diversos templos religiosos
erguidos por eles e de outros bens culturais salvaguardados, pesquisados e expostos em
memoriais e museus, como as imagens de santos católicos, utilizados em suas práticas e
representações culturais.
Nesse sentido, a cidade de São Cristóvão, no Estado de Sergipe, com suas igrejas,
e o Museu de Arte Sacra - cujo acervo contempla bens religiosos pertencentes as irmandades,
como as imagens de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Boa Morte, São Benedito e
Santo Antônio1044- se constituem em espaços sociais que podem informar sobre histórias,
memórias e identidades religiosas dos afro-sergipanos.
Na cidade de São Cristóvão a disposição espacial dos templos em que as
irmandades desenvolveram suas atividades, denuncia a segregação social, econômica e racial
que existiu na sociedade quando da criação desses templos, entre os séculos XVII e XVIII1045.

1041
Um das funções do “olhar” do historiador é detectar a existência dessas camadas e removê-las para tornar
visíveis as histórias e as memórias que elas encobrem.
1042
SANTOS, Marcelo. As Irmandades no campo religioso de São Cristóvão. In: IV SEMANA DE CULTURA
AFRO-BRASILEIRA: políticas públicas e ações afirmativas, 2007, São Cristóvão. Anais eletrônico da IV
Semana de cultura afro-brasileira: políticas públicas e ações afirmativas., 2007. P.1
1043
A autonomia construída historicamente pelas irmandades foi perdida no final do século XIX, quando elas
voltaram a se constituírem “meros apêndices da Igreja.” Cf: SILVEIRA, Renato da. Sobre o exclusivismo e
outros ismos das irmandades negras na Bahia colonial. IN BELLINI, Lígia; SOUZA, Evergton Sales;
SAMPAIO, Gabriele dos Reis (orgs). Formas de crê: Ensaios de História religiosa do mundo luso-afro-
brasileiro, séculos XIX-XXI. Salvador: Edufba: Corrupio, 2006.p.184.
1044
Além desses, a bibliografia consultada indica outros santas e santos cultuados por africanos e afro-
descendentes: Santa Ifigênia, Santo Elesbão, Santo Rei Baltazar, Santo Antônio de Categeró, Senhor da
Redenção, dos Martírios, da Ressurreição; além das diversas invocações de Nossa Senhora, como Amparo,
Guadalupe, Das Dores e Conceição. Cf. p. ex: REGINALDO, Lucilene.Os Rosários dos Angolas: irmandades
negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005,Tese (Doutorado em
História-UNICAMP).p.60
1045
Cf: SANTOS, Marcelo.“Irmãos da santa conveniência”: a Ordem Terceira de São Francisco de Assis na
Cidade de São Cristóvão (1840-1870). São Cristóvão: DHI/UFS, 2001. (monografia de conclusão de curso).

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Dessa forma a Ordem Terceira de São Francisco de Assis e a Irmandade da Santa


Casa, por exemplo, estão localizadas num espaço privilegiado, acompanhando a tendência de
suas congêneres brasileiras. Afastadas do centro administrativo e comercial da capital da
Província, até meados do século XIX, estavam as igrejas das irmandades das camadas menos
favorecidas da sociedade. Este é o caso da Igreja de Nossa senhora do Amparo, composta por
homens pardos, e a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, constituídas por negros.
A distribuição dos templos religiosos católicos deixa claro a segregação social,
especificamente, a distinção racial e econômica que existia em São Cristóvão. Chama a nossa
atenção para interrogarmos como a arquitetura das nossas cidades afasta ou aproxima as
pessoas e os grupos sociais na atualidade. Nessa direção, temos uma oportunidade de
provocarmos uma discussão sobre a construção histórica dos elementos identitários dos
indivíduos e grupos sociais.
Esta evidência impõe ao profissional de História a “desnaturalização do
convencional”, ou seja, fazermos uma leitura do patrimônio material da cidade que
evidenciem as tensões e acomodações, exclusões e inclusões sociais e como ele participa na
constituição de culturas e identidades e apontam outras memórias e histórias.
Neste sentido, com a Educação para o Patrimônio é possível discussões sobre
rupturas e continuidades e a importância de tomarmos a identidade étnico-racial enquanto
uma construção social e histórica.
A Metodologia da Educação para o Patrimônio é composta por quatro passos:
observação, registro, exploração e apropriação1046. Trata-se de um conjunto de procedimentos,
constituído de atividades e objetivos, que possibilita ao aluno adquirir habilidades, conceitos e
conhecimentos definidos de acordo com o currículo e a cultura escolar.
Na perspectiva da Educação Para o Patrimônio, que leve em consideração uma
discussão étnico-racial, é fundamental despertamos a curiosidade dos nossos educandos sobre
os templos que no passado “representavam um marco fundamental de identidade”1047. É
pertinente, portanto, questionarmos, por exemplo, qual a localização dos templos religiosos
dos diversos grupos étnicos-raciais existentes na sociedade.

p.35-6; OLIVEIRA, Vanessa dos Santos.Identidade e religiosidade no universo católico da cidade de São
Cristóvão-Se (1860-1880). CadernosUFS: História. São Cristóvão: CEAV, 2008.p.25
1046
Nosso propósito foi destacar questões gerais sobre a Educação para o Patrimônio, na perspectiva étnico-
racial. Nesse sentido, a ênfase recaiu na etapa da exploração. Para um conhecimento mais detalhado desta
metodologia ver: HORTA, Maria de Loudes Parreiras, GRUMBERG, Evelina, MONTEIRO, Adriane Queiroz.
Guia básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN,1999.
1047
REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.49

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Temos a consciência de que o patrimônio religioso da cidade de São Cristóvão é


formado por vários elementos materiais e imateriais. Entretanto, tendemos a enfatizar, nas
cidades ditas históricas, apenas o patrimônio formado pela “pedra e cal”, ou seja, o patrimônio
arquitetônico.
Parte dessa visão, de “pedra e cal”, é resultado de uma política nacional de
preservação, “protetora” de bens de interesse da elite econômica, religiosa e política
brasileira. No campo da educação formal, esta visão foi absorvida pela escola e provocou
sérias conseqüências, uma delas foi que a maioria da população teve, por muito tempo, seus
bens culturais a ser preservados definidos por critérios, na maioria das vezes, alheios a seus
interesses.
Ora, se atualmente existe uma política pública de preservação do patrimônio
cultural, articulada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
preocupada em preservar os bens culturais, materiais e imateriais, mais significativos da
população brasileira como um todo, não podemos esquecer que essas mudanças devem ser
analisadas de forma crítica pois,

O acesso à memória, fonte de identidade agregadora e portanto tonificante,


depende do estado e estará subordinado ao projeto da classe ou estrato que
estiver controlando num dado momento. Nesse sentido, examinar a política
da memória em uma época pode ser o primeiro passo para fazer com que sua
face libertadora possa prevalecer.1048

Pois bem, ao revisitarmos parte do patrimônio arquitetônico religioso da cidade de


São Cristóvão, não desconsideramos as novas perspectivas sobre o patrimônio cultural, já que
estas nos ajudam a observarmos os cantos, os becos, as ruas estreitas e tortuosas desse núcleo
urbano, e, principalmente, as manifestações culturais dos homens de “carne e osso”
ressignificadas, por exemplo, através de reisados, samba de coco e taieiras.
A proposta elaborada é provocativa pois, apesar de trazermos a “pedra e cal”,
representado pela arquitetura predominantemente religiosa e católica, tentamos, através desses
bens e das indagações formuladas a partir deles, lançar um “olhar” diferente, que nos permita
pensar sobre a vida de homens e mulheres, de condições econômicas, raciais e sociais
diferenciadas, que fizeram parte de várias irmandades.

1048
BITTERCOURT, José. Invenção do passado: ascensos e descensos da política de preservação do patrimônio
cultural (1935-1990). IN: MENEZES, Lená Medeiros de et al (orgs). Olhares sobre o político: novos ângulos,
novas perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ. 2002.p.207.

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O itinerário proposto abaixo, além de destacar a história dos monumentos


elencados, pretende mostrar as possibilidades de explorá-los como elementos provocadores de
discussões sobre a história e a cultura dos afro-sergipanos, e, principalmente,
contextualizarmos alguns bens culturais expostos no museu de Arte Sacra de São Cristóvão.
Eis o itinerário: a) a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; b);
Igreja Nossa senhora do Amparo; c) Museu do Ex-votos e Igreja do Carmo; d) Igreja Nossa
senhora da Vitória; e) Igreja e Santa Casa de Misericórdia f) Igreja e Convento São Francisco.
É possível explorarmos a temática da História e da cultura afro-sergipana a partir
de um estudo de campo que contemple o contato com os bens acima mencionados. Mas,
devido à natureza deste escrito, nos deteremos em dois exemplos.

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos está localizada na rua
Erundino Prado, antiga rua do Rosário. Este templo, de estilo barroco, foi construído pelos
jesuítas1049 no século XVIII.Trata-se de um bem cultural tombado, em 1943, pelo Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A Igreja do Rosário abrigou a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
composta por negros. A administração desta irmandade “estava limitada aos angolas e
crioulos, ocupando cada grupo quatro vagas como juizes e quatro como procuradores,
divididas entre homens e mulheres1050”, até meados do século XIX.1051
A presença das mulheres, angolas e crioulos nesta irmandade pode proporcionar
discussões sobre relações étnicos-raciais e de gênero, bem como apresentar um momento
privilegiado de debates sobre a construção, circulação e apropriação da idéia de “nação” por
diferentes grupos sociais ao longo da história.

1049
Um dos principais divulgadores da devoção a Maria.
1050
OLIVEIRA, Vanessa dos Santos. Etnicidade e religiosidade: fronteiras no campo religioso de São Cristóvão-
SE (século XIX). In: Reunião Equatorial de Antropologia e X Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste.
Aracaju-SE: UFS. 08 a 11 out. 2007. Cd-rom. P.7
1051
Na Bahia, em 1685, era admitida, na Irmandade do Rosário, apenas negros de Angola.”com a Consolidação
social ‘houve aceitação de negros brasileiros e até de brancos”. Ver: RUSSEL-WOOD, A. J R. Fidalgos e
filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.p.108-
109.

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Segundo a historiadora Mary Karach, a idéia de nação, além de outros usos, foi
apropriada por grupos de africanos em Salvador, no Rio de Janeiro e em Goiás, no período
colonial, para a construção de identidades1052.
Esta evidência serve para relativizarmos posturas que enfatizam que “as confraria
ou irmandades religiosas contribuíram para descaracterizar a cultura africana, sobre a qual já
incidiam tantos fatores desagregadores”.1053 Acreditamos que não podemos perder de vista
esta ênfase, entretanto, é fundamental ampliarmos as possibilidades de interpretação das
funções destas instituições na formação de identidades.
As discussões sobre a idéia de nação na perspectiva étnico-racial bem como sobre
a presença/ausência das mulheres nas irmandades religiosas de leigos têm um espaço
insignificante na historiografia sergipana. Diante desta lacuna, o saber histórico escolar sente
a falta desta discussão nos dispositivos didáticos, principalmente, nos livros que são utilizados
nas escolas.
Mas, esta constatação não encerra possibilidades do professor incentivar seus
alunos a perceberem a importância deste espaço - a Igreja do Rosário- como elemento
relevante na construção de identidades dos afro-sergipanos. Diante da parca produção
historiográfica local, mas com estudos nacionais disponíveis, o professor pode estabelecer,
com seus alunos, relações entre o local e o nacional, discutir a construção e o emprego de
conceitos históricos, como a idéia de “nação” e justificar por que esse bem deve ser
preservado.
Para além do binômio acomodação-resistência, as irmandades também foram
espaços de sociabilidades diversas. Nesta direção, não podemos deixar de citar as festas, os
casamentos, as danças e os rituais que eram realizados nos templos religiosos, ou no seu
entorno, e que são alguns dos exemplos de “formas de pensar e agir” da cultura afro-
brasileira.
As festas eram acontecimentos importantes na vida dos irmãos das irmandades, era
a principal atividade destas instituições. Elas eram momentos de rivalidades, distinção e
integração social, enfim, elementos relevantes na construção de identidades.
Segundo a professora Thétis:

1052
KARASCH, Mary. “Minha nação”: identidades escravas no fim do Brasil colonial. IN SILVA, Maria beatriz
Nizza da (org.). Brasil: colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.p134-5.
1053
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS-Fundação Oviêdo Teixeira, 2006.
p.243

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Caracterizou-se a igreja colonial pelas manifestações do culto exterior. As


festas religiosas – missas, novenas, trezenas, procissões, romarias –
congregavam no pátio e no interior das igrejas as populações que, pelo modo
de viver, se encontravam dispersas. Em torno da igreja gravitava toda a vida
social da colônia, o que conferia grande prestígio do clero.1054

Fundamentados neste autor, somos levados a pensar como as diversas “tradições”


historiográficas, com seus métodos e teorias interpretativas, podem enriquecer as reflexões
sobre as festas das irmandades religiosas. E como o conhecimento histórico escolar,
apropriando-se deste conhecimento acadêmico e levando em consideração a cultura escolar,
enriquece as práticas dos educadores em, tomando as festas com objeto de ensino, falar sobre
não apenas sobre o lúdico, mas também sobre o trabalho, o poder, as rupturas e continuidades.
A principal festa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
de São Cristóvão era dedica a sua santa padroeira, a Senhora do Rosário. Ela era celebrada, no
século XIX, junto com a Epiphania ou adoração dos Reis Magos.
Além da Festa da padroeira, outras manifestações culturais estavam presentes
nessa irmandade. Podemos citar as taieiras, o reisado o samba de coco e a chegança. Todas
essas manifestações possuem elementos que se referem a cultura afro-sergipana.

Articulando diferentes planos, quando concluídos os rituais sagrados que


acompanham a Epiphania, era a vez da festa profana. Autos e danças
populares eram então apresentados na frente do templo tomando a rua do
Rosário, primeiramente a taieira, em seguida cacumbi, chegança, mourana e
batalhão de fuzileiros. Após apresentações, a taieira acompanhava a
procissão, visitando algumas residências, acompanhada pelas figuras reais.
Dessa forma, a festa entrava pela madrugada do dia seguinte, animada pelas
danças, bebidas e comilanças. 1055

Como podemos observar, existe registro da existência de grupo de taieiras que


desenvolviam suas atividades neste templo 1056. Entretanto, atualmente, não identificamos a
continuidade desta prática cultural. Apesar disto, a menção a existência deste grupo no
passado nos leva a refletir sobre a importância desta prática na cultura dos negros sergipanos.

1054
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1996.p219
1055
OLIVEIRA, Vanessa dos Santos. Etnicidade e religiosidade: fronteiras no campo religiosos de São
Cristóvão-SE (século XIX). In: Reunião Equatorial de Antropologia e X Reunião de Antropólogos Norte-
Nordeste. Aracaju-SE: UFS. 08 a 11 out. 2007. Cd-rom. P.8
1056
SOUZA, Fabio Silva. Arqueologia do cotidiano: um Flaneur em Sao Cristovao-Sergipe. 2004. 181 f.
Dissertacao (Mestrado em Geografia)p. 136 que cita taeira e chegança. SERGIPE. SECRETARIA DA
CULTURA DO ESTADO. São Cristóvão e seus monumentos: 400 anos de historia. Aracaju 1989. P.19

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Apesar da irmandade ter sido suspensa em 1907, um grupo de mulheres, e poucos


homens, mantêm o samba de coco1057, o reisado e a chegança ainda em funcionamento. Além
disso, anualmente é realizada a Procissão do Fogaréus1058. Estas práticas culturais a
importância da preservação deste bem como espaço de memórias, identidades, rupturas e
continuidades.
Acreditamos que ao visitar a Igreja de Nossa senhora do Rosário dos Homens
Pretos de São Cristóvão1059, os estudantes começam a vivenciar a experiência de entrar em
contato não só com um exemplar do patrimônio arquitetônico do período colonial, mas,
também com histórias, memórias e identidades que são reconstruídas a todo momento.
Neste sentido, ao visitar este templo com seus educandos, o professor pode aguçar
a curiosidade dos alunos sobre os usos da Igreja nos períodos colonial, imperial e na
atualidade.

A Igreja da Ordem Terceira e o Convento São Francisco.

A Igreja e o Convento São Francisco tiveram suas construções iniciadas no século


XVII, através de doações aos padres franciscanos. Devido a pobreza da Ordem franciscana e
da sociedade da época, este conjunto foi concluído na segunda metade do século XVIII.
A igreja do convento passou por uma série de reformas que provocaram algumas
modificações arquitetônicas no que se refere à sua torre.
O conjunto franciscano foi tombado pelo IPHAN em 1941. No ano de 2008, foi
elaborada a inscrição, na UNESCO, da Praça São Francisco para se tornar um patrimônio da
humanidade.
O Convento Bom Jesus se apresenta como uma boa oportunidade para refletirmos
sobre os papéis desempenhados pelos negros neste espaço. Tal reflexão é importante, já que
boa parte da população pobre e que desenvolviam atividades relacionadas à pintura e
marcenaria eram pardas ou negras.

1057
“Dança brasileira de origem negra, o coco surgiu na época da escravidão, principalmente em Alagoas e
Pernambuco, tendo-se espalhado por todo o norte e nordeste do pais {...}.Conta a história que os negros escavos,
para aliviar as dores do trabalho de quebrar cocos secos com os pés e embalados pelo barulho que faziam,
cantavam e dançavam.” Ver: CÔRTES, Gustavo. Dança, Brasil! Festas e danças populares.Belo Horizonte:
Editora Leitura, 2000.p.94.
1058
SERGIPE. SECRETARIA DA CULTURA DO ESTADO. São Cristóvão e seus monumentos: 400 anos de
historia. Aracaju 1989. P.19
1059
Sobre a construção de identidades nesse espaço, Ver: OLIVEIRA, Vanessa dos Santos, SOGBOSSI,
Hippolity Brice. Devoção com diversão: A Festa de Nossa Senhora do Rosário na Cidade de São Cristóvão-SE
(século XIX). In Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste. Maceió-AL: UFAL. 03 a 06 set. 2007.

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Neste sentido, cabe ao professor incentivar novas discussões sobre rupturas e


continuidades históricas, na medida em que incentiva debates sobre o mundo da educação e
do trabalho da população negra.
O Convento Bom Jesus abrigou a Irmandade de São Benedito. Não era difícil, no
Brasil, ter nesses conventos as irmandades negras de São Benedito e de Santa Efigênia. Na
Bahia, por exemplo, elas tinham um desconto substancial no preço da cova para seus
irmãos1060.
O culto à Nossa Senhora do Rosário e à São Benedito era comum entre os brancos
de Portugal1061. No Brasil, na Bahia e em Minas Gerais, por exemplo, era freqüente a
existência de irmandades dedicadas a estes oragos.
Sendo assim, até o momento, não estamos autorizados a afirmar que a irmandade
de São Benedito que existiu no Convento de Bom Jesus, na cidade de São Cristóvão, era
formada por negros. De qualquer forma, não devemos nos esquecer que, assim como ocorreu
com outras ordens religiosas, não era difícil a utilização do trabalho do negro escravo pelos
franciscanos.
Ao lado do convento franciscano, funcionava a Ordem Terceira de São Francisco
de Assis, sede do museu de Arte Sacra. Esta Ordem, ao menos no século XIX, foi formada
por “irmãos” que se destacavam economicamente na sociedade sancristovense1062.
A Ordem Terceira de São Francisco era formado por leigos que procuravam
conduzir suas vidas a partir do exemplo de São Francisco de Assis. Entretanto, diferentemente
da pobreza pregada pelo santo, a maioria das ordens terceiras se constituíram em espaços
sociais freqüentados por pessoas abastadas.
Nessa associação religiosa de leigos eram excluídos, dentre outros, os negros e os
pobres. Ela era formada por membros da elite que observavam nela oportunidades para
adquirir bens materiais e simbólicos. Portanto, a ajuda financeira e o reconhecimento social,
eram alguns dos atrativos oferecidos por essa associação a seus “irmãos”.
Em Sergipe, no século XIX, alguns irmãos freqüentavam, ao mesmo tempo, a
Ordem Terceira e outras irmandades. Podemos citar, por exemplo, o caso de Joaquim Ferreira

1060
REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p.234.
1061
Idem. P.78.
1062
SANTOS, Marcelo. A Ordem Terceira de São Francisco de Assis na Província de Sergipe (1840-1870).
Caderno de Estudantes da UFS. São Cristóvão: CEAV, 2007.

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Salgado, que freqüentavam as Irmandades do Santíssimo Sacramento, a do Amparo, a de São


Benedito1063.
A presença das imagens de São Benedito e Santo Antônio1064- santos bastante
cultuados pelos negros- no Convento de São Francisco, representa uma oportunidade
significativa para, mais uma vez, o professor discutir com seus alunos a formação de
fronteiras étnicas, como se deu a construção de espaços distintos de negros, brancos e pardos
e como as imagens sacras foram apropriadas por esses agentes sociais, em tempos e espaços
diversos1065.
Um outro ponto importante que merece ser discutido com os alunos é a presença
das obras de pintura atribuídas ao pardo José Theófilo 1066 de Jesus e seus discípulos1067 na
igreja da Ordem Terceira de São Francisco, sede do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão.
Isso é relevante, principalmente quando sabemos que em muitos espaços sociais brasileiros os
artistas pardos e negros são esquecidos1068.

Algumas considerações

Neste texto procuramos apontar um possível itinerário de visita a alguns dos bens
culturais da cidade de São Cristóvão, tendo como objetivo direcionar “um olhar” para as
discussões étnico-raciais a partir das construções religiosa que abrigaram as irmandades.
Nesta perspectiva, somos simpáticos à leitura da cidade proposta por Fábio Silva
Sousa. Para este autor:

1063
FARIAS, Claudia Maria Lima Trindade. A Irmandade do Santíssimo Sacramento: Expressão religiosa da
Elite Sancristovense/1820-1887. São Cristóvão: DHI-UFS, 2004. (monografia)p.21-22
1064
Este santo “era constantemente chamado no caso de escravos fugidos (século XIX)” Ver: MOTT, Luiz.
Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. IN: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida
privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhi das letras,
1997.p.186-187.
1065
As imagens de Santa Efiênia, Santo Antônio de Catagerona e São Benedito tinham ocupavam posições na
tradicional “Procissão de Cinzas” organizadas pelos terceiros franciscanos da cidade de Salvador. Cf:CAMPOS,
João da Silva. Procissões tradicionais da Bahia. Bahia: Museu da Bahia/Secretaria da Educação e Saúde, 1941.
p.30.
1066
José Teófilo de Jesus era um pardo forro que se destacou como pintor entre o final do século XVIII e na
primeira metade do século XIX. Pintou várias obras, principalmente, para as irmandades religiosas. Ver:
ALVES, Marieta. Dicionário de artistas e artífices na Bahia. Salvador: Universidade Federal da Bahia/Centro
Editorial e Didático, Núcleo de Publicação, 1976.pp-90-91.
1067
DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (org.). Textos para a História de Sergipe. Aracaju: UFS/BANESE, 1991,
277.
1068
As Diretrizes Curriculares Nacionais incentiva ações educativas de divulgação de artistas africanos e
afrodescendentes. Cf: BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação,
2005.p21-24.

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A cidade é o locus da heterogeneidade entre modos de vida e dos usos


diferenciados dos espaços. Nela é possível perceber, por meio de sua
paisagem edificada, os modos de viver, pensar e sentir, os comportamentos,
valores, conhecimentos e formas de lazer presentes no cotidiano de seus
habitantes. Por isso ela deve ser entendida como o produto de um
determinado momento histórico, que não ficou engessada ou petrificada no
tempo, onde seus habitantes e citadinos estão constantemente
transformando-a, atribuindo novos usos e significados. 1069

Dos inúmeros olhares que podem ser lançados sobre a cidade, procuramos um que
focalizasse a presença de parte da cultura afro-sergipana. Neste sentido, convidamos os
interessados a construírem outros olhares sobre essa mesma parte ou outras que não
conseguimos alcançar, para evidenciamos outras memórias, outras histórias e outras culturas.
Tentamos confeccionar o itinerário exposto a partir de problemáticas que dessem
sentido à coleção dos bens culturais selecionados. Dessa forma, procuramos compreender o
que esses bens podem nos dizer sobre à história e a cultura afro-sergipana.
Poderíamos discutir todas as questões elencadas acima sem necessitar visitar esses
monumentos? Sem seguir este, ou outro itinerário?
Claro que sim. Mas, é importante lembrarmos que estamos falando sobre
memórias, histórias, culturas e identidades. Tais elementos são materializados através de
diferentes suportes e percebidos pelos homens através de diversos sentidos. Portanto, o
contato com o patrimônio edificado pode marcar, significativamente, a memória daqueles que
o visita.
Assim, citando Dominique Veillon, Michael Pollak nos informa sobre a
importância dos elementos sensoriais como o barulho, o cheiro e as cores como pontos de
referência nas lembranças pessoais1070. Nesta direção as sensações visuais provocadas nos
visitantes que entram em contato com os lugares edificados tornam a visita dos estudantes
bastante proveitosa.
Isto nos leva a justificar a visita dos alunos à cidade, aos monumentos religiosos e
aos museus da cidade de São Cristóvão, não apenas como um dispositivo de ilustração de
conteúdos trabalhados em sala de aula, mas também como uma experiência sensorial que
essas instituições e os espaços que elas ocupam podem proporcionar aos alunos e professores.

1069
SOUZA, Fabio Silva. Arqueologia do cotidiano: um Flaneur em São Cristóvão-Sergipe. 2004. (Dissertação
Mestrado em Geografia)
1070
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.. 2, n. 3,
1989.p.9.

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Entretanto, as instituições e os espaços sociais devem ser vistos como artefatos. Nesta
condição eles devem ser interrogados a partir de problemáticas específicas.

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DESCORTINAMENTO HSTÓRICO ATRAVÉS DA SÉTIMA ARTE

Onesino Elias Miranda Neto – UNIT


onesino@hotmail.com

A problemática deste trabalho consiste em compreender a importância do Cinema para o


ensino de história. E neste sentido entender como trabalhar a sétima arte em sala de aula?
Quais as dificuldades em utilizar este recurso didático? Estas são algumas das indagações que
norteiam a construção desta pesquisa. O trabalho traz como objetivo geral a necessidade de
apresentar o volume, a importância, o papel que a interferência do Cinema exerce no ensino
de História, explicitando a maneira pela qual esta vertente contagiou historiadores e
professores. Os objetivos específicos são: ressaltar a vital importância da Nova História,
mostrando que a utilização do Cinema como um novo recurso didático, além do livro,
dinamiza a aprendizagem; e elucidar a importância contumaz da leitura histórica
cinematográfica e da leitura cinematográfica histórica, observando que estes são os dois eixos
prioritários a serem seguidos por aqueles que se questionam sobre a relação entre Cinema e
História e por todos que acreditam nas novas tecnologias pedagógicas como forma de
enriquecer o ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Cinema, Ensino de História, Nova História.

O Cinema remonta as vivências presentes no mundo em diversas linguagens. E é


justamente por esta razão que a sétima arte tem despertado paixões nos quatro cantos do
planeta. Partindo deste prisma, o Cinema passou a ser utilizado como recurso didático. Os
recursos didáticos consistem em materiais que o professor utiliza para a melhoria do ensino-
aprendizagem. Com isto, a arte cinematográfica pode ser qualificada como auxiliador, tendo-
se em conta algumas precauções. O estudo a respeito deste paradigma didático, fundamenta-
se em pesquisas junto às referências bibliográficas que intercalam a arte e o saber histórico.
E, de modo particular, através do uso metodológico de análise fílmica.
A história cinematográfica se apresenta no escopo desta pesquisa como uma forma
de captação de auxílios para dispor ao professor, em particular da disciplina de História,
algumas ferramentas que intensificam o ensino-aprendizagem. Neste sentido, é imprescindível
uma reflexão sobre a natureza da obra fílmica e o papel do professor, em que se qualifica em
uma didática de mão dupla, pois tanto os ideais ideológicos do cineasta, quanto à

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instrumentalização do educador se completam. Requerendo, portanto, toda uma preparação,


planejamento e cuidados metodológicos.
A problemática deste trabalho consiste em compreender a importância do Cinema
para o ensino de história. E neste sentido entender: como trabalhar a sétima arte em sala de
aula? Quais as dificuldades em utilizar este recurso didático? Estas são algumas das
indagações que norteiam a construção desta pesquisa.
O trabalho traz como objetivo geral a necessidade de apresentar o volume, a
importância, o papel que a interferência do Cinema exerce no ensino de História, explicitando
a maneira pela qual esta vertente contagiou historiadores e professores. Foi sobre a
perspectiva desta premissa maior que surgiram os objetivos específicos que deram
norteamento ao trabalho, com o intuito de aprofundar a temática. Um desses objetivos é
conseguir ressaltar a vital importância da Nova História, mostrando que a utilização do
Cinema como um novo recurso didático, além do livro, dinamiza a aprendizagem. O outro
objetivo é elucidar a importância contumaz da leitura histórica cinematográfica e da leitura
cinematográfica histórica, observando que estes são os dois eixos prioritários a serem
seguidos por aqueles que se questionam sobre a relação entre Cinema e História e por todos
que acreditam nas novas tecnologias pedagógicas como forma de enriquecer o ensino-
aprendizagem.
Balizado por este entendimento o artigo em exposição articula-se de modo a
acrescentar no leitor o entendimento deste recurso didático, sem esquecer da preparo
planejado do educador.

A NOVA HISTÓRIA HOMOLOGANDO O CINEMA COMO RECURSO DIDÁTICO

Durante o século XIX, a Europa presenciou o resultado do processo de Revolução


Industrial, encabeçado pela Inglaterra, no que resultou na Primeira Grande Guerra
Mundial1071. Para tal fim, os pensadores e intelectuais europeus utilizaram-se do conceito de
ciência, tido como um saber superior e acessível a poucas pessoas, destacando o saber

1071
“Com os Estados modernos munidos de arsenais cada vez mais cheios de uma tecnologia da morte
tremendamente superior, mesmo seus adversários mais formidáveis só podiam esperar, na melhor das hipóteses,
um adiamento da retirada inevitável. Esses conflitos exóticos eram materiais para livros de aventura ou
reportagens de correspondentes de guerra (...), mais que assuntos de relevância direta para a maioria dos
habitantes dos Estados que os travavam e vivenciam. Tudo isso mudou em 1914. A Primeira Guerra Mundial
envolveu todas as grandes potencias.” HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 31.

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positivista. Contrariando a influência positivista, surgiu uma nova forma de compreensão


historiográfica, a Nova História1072.
Com isto, os historiadores da Escola de Annales, seguiam uma linha em que se
buscavam novos objetos de estudo, novas metodologias de pesquisa e novas fontes. O Cinema
entra neste meio para focar os fatos históricos sobre uma nova ótica. É necessária também a
atenção sobre os novos paradigmas históricos, pois, o que foi renovado no século XX não
foram os fatos históricos, mas como pesquisar e estudar os acontecimentos presentes na
historiografia.
O Cinema passou por uma evolução exacerbada ao longo da História, desde a
forma como se adquirem as obras fílmicas até a preocupação com a estética e a linguagem das
escolas cinematográficas1073. Isto está presente, também, nas temáticas épicas, em que os
cineastas estão preocupados em fazer resgates de temas históricos, pode-se usar como
exemplo, a obra “Carlota Joaquina: a Princesa do Brasil”, da diretora Carla Camurati. Este
filme é um ponto de vista crítico firmado sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil
em 1808, fugindo das invasões napoleônicas. Porém, não bastava apenas a cineasta contar
este processo histórico com base em livros didáticos, assim, a mesma pesquisou na Biblioteca
Pública Nacional do Rio de Janeiro, fundada pela própria família real, com um acervo vindo
nas caravelas que trouxeram a corte portuguesa. Ou seja, para que este filme pudesse
exemplificar este contexto historiográfico, fez-se necessário uma pesquisa metodológica1074.
Portanto, a História a partir da Escola de Annales adotou outros métodos de pesquisa. Isto
possibilitou a amplitude do que era conhecido como documento, já que a partir deste novo
seguimento historiográfico todos os elementos que, de certa forma, registram a passagem do
homem pela Terra passa a ter o status de documento, assim como a memória que também
estava inserida neste contexto. Com isso, Annales possibilitou um maior arcabouço de fontes,

1072
OHISTORIADOR.HPG. O Positivismo, Os Annales e a Nova História. Disponível na internet via <
mhtml:file://C:\Documents%20and%Settings\Katia\Meus%20documentos\SHIS.mht> capturado em 20/01/2005.
1073
“Hoje, o cenário já está pronto: basta comprar um ingresso, ao entrar na saca de exibição, sentar-se numa
poltrona e assistir ao filme escolhido – em cores,as pessoas falando (ou cantando), conforme as intenções dos
autores. Mas há apenas 85 anos, o cinema sequer existia” CUNHA, Wilson. Cinema.Rio de Janeiro: Bloch
1980.
1074
“Carlota Joaquina não é um filme em cima do muro, é um filme que toma um partido, que tem uma visão
sobre o contexto ali apresentado. Acredito que isso aconteça em tudo o que fazemos, o que é muito natural. As
idéias passam pelo diretor, que é um filtro dessas idéias já por si tendenciosas. A pessoa já tende para aquilo que
acredita ser bom, é a sua maneira de ver o mundo. Para fazer Carlota Joaquina, formei uma biblioteca enorme
sobre o período. Li livros portugueses, livros com características do Rio de Janeiro e autores que enfocaram só
Carlota.” Ver em: NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
Paulo: Editora 34, 2002.

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como a fotografia, cinema, pinturas e as artes em geral. E contribuiu com a inovação da


metodologia de pesquisas através do resgate da memória social1075.

CINEMA: RECURSO DIDÁTICO CINEMATOGRÁFICO

A História e o Cinema se prestam a muita polêmica, e, por isso, talvez seja útil
primeiramente, argumentar sobre o gênero documentário. As filmagens com um intuito de
documentar são caracterizadas por mostrar algo que aconteceria independentemente da
realização de um filme, diferentemente, de uma produção fictícia, em que ocorre uma
preparação textual antes das filmagens, o famoso enredo1076.
O filme documentário tem um fator muito inerente na sua produção, que é a
personificação do participante da obra fílmica. Ou seja, o cineasta ao entrevistar um homem
da vida pública, por exemplo, a argumentação dada pelo participante é a melhor possível de
sua caricatura, além do que o entrevistado pode melhorar seu aspecto e modular o tom de voz
especialmente para a filmagem. Seja por timidez, seja por vaidade, o entrevistado oferece ao
espectador uma imagem que ele julga mais interessante. Com isso, os atuantes do
documentário estão sempre interpretando. É óbvio que ele interpreta de forma diferente do
ator profissional que encarna um personagem que não é ele, mas assim mesmo interpreta a si
mesmo, numa situação que, talvez, fuja ao seu cotidiano. Portanto, a diferença entre o
documentário e as obras de ficção pode não ser nítida, de modo que é exatamente correto
dizer que o documentário apresenta fatos e situações que ocorreriam, independentemente da
filmagem, porém, com uma visão particular deste fato1077.
O cineasta filma os participantes do documentário de acordo com o intuito dele em
focar este fato isolado, isto é mais presente em filmes que acarretem uma posição política ao
longo da História. O diretor vai preferir o ponto do assunto em que ele possa argumentar seus
preceitos, dependendo da situação política. Por exemplo: um documentário sobre um
determinado político, o enfoque deste poderá ser sisudo ou sorridente, dependendo da
instrumentalização. Como se vê, uma série de opções deverão ser feitas e estas dependem da
escolha do cineasta e das condições de filmagens. O resultado disso é que por mais que o

1075
“Os redatores da Annales rejeitam a história factual, biográfica, historicizante, a erudição monográfica, o
corporativismo ciumento e deliberadamente imperialistas dos historiadores do estabilistment universitário, a sua
fé ingênua no método milagroso graças ao qual o fato brota do texto.” Ver em: CARBONELL, Charles Olivier.
Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987.
1076
Ver em: BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 1988.
1077
Op. Cit.

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cineasta queira ser independente, a obra sempre terá uma identidade do diretor, embutindo
seus pontos de vista1078.
E é impossível ser de outro modo, portanto, não se pode filmar a não ser de uma
determinada maneira, com isto, o filme documentário serve também para uma análise sobre o
pensamento dos intelectuais da arte cinematográfica à cerca de um determinado fato. Esses
são detalhes que vão construir significações. Esses elementos não são reproduções da
realidade, eles constroem uma interpretação da realidade1079.
Além da filmagem, temos a montagem, quando as imagens filmadas serão
selecionadas e colocadas numa determinada ordem. Conforme a imagem do conteúdo e dos
participantes, apresentando-os sorridentes ou, ao contrario, sisudos: será mantido ou será
eliminada qualquer imagem não condizente com o argumento do diretor1080. Não esqueçamos
a música: o silencio poderá provocar um efeito solene ou de solidão; uma música pomposa
também poderá contribuir para a solenidade, a não ser que seja justaposta, pela mixagem,
desta maneira, resultará um efeito irônico; uma musica mais leve sobre o sorriso de algum
participante poderá torná-lo uma figura mais amistosa, simpática1081.
Em suma, o que vemos é uma reprodução da realidade enquanto olhos do cineasta.
Vemos um discurso. Se esse discurso tiver sido montado habilmente, quase não percebemos e
ficaremos com a impressão de tê-lo visto de forma coesa1082.
Diante dessa, aparentemente, perfeita reconstituição da realidade, todas as
precauções metodológicas devem ser utilizadas, ainda mais que os documentários e cine
jornais são comumente associados à atividade histórica. Acredita-se que eles tragam consigo
um alto grau de confiabilidade, ou melhor, que eles se apresentem como perfeitas
reconstituições da realidade1083.
Acredita-se que o filme documentário, o noticiário semanal, o histórico,
constituem uma fonte nova e diferente de todas as fontes históricas até então existentes. Em
1934, quando se criou o Arquivo Nacional dos Estados Unidos, mandava-se recolher aos seus
depósitos, alem da documentação em papel, mapas, gravações sonoras, documentos
fotográficos, com projeções fixas, vistas aéreas cartográficas e filmes cinematográficos.
Reconhecia-se a capacidade, sem par, oferecida pela câmara cinematográfica de documentar
1078
Op. Cit.
1079
Op. Cit.
1080
BERNARDET, Jean-Claude. O Que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000.
1081
Ver em: BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 1988.
1082
CUNHA, Wilson. Cinema. Rio de Janeiro: Bloch 1980.
1083
RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2ªedição. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969.

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os acontecimentos para fins históricos. Filmes oficiais, filmes de propaganda do governo ou


de empresas comerciais ou industriais, noticiários de campanhas cinematográficas, filmes
históricos, tão históricos quantos as novelas históricas, todos igualmente ofereciam
possibilidades de utilização para fins de pesquisas e reconstituição histórica1084.
O filme tem muitos pontos de contato com o quadro, a pintura histórica, mas não
deve ser confundido com eles; o filme documentário, devido à objetividade do processo
técnico de que se serve e a noticia verbal que possui, pode oferecer certo grau de
credibilidade, apesar de sofrer forte influencia subjetiva. Mas não é pelo fato de apresentar
estes pontos fracos e de oferecer riscos quanto à fidedignidade que ele se distingue
fundamental e gradualmente das demais fontes. O principal problema que o historiador deve
enfrentar é o do conteúdo do filme, é o da veracidade da fonte. A fotografia em si, o filme em
si não representam, tanto quanto qualquer documento velho ou novo, uma prova de verdade.
Toda a critica externa e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe
igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser ‘montados’, todos
podem conter verdades e inverdades1085.
Os documentos são muitas vezes aceitos no trabalho cientifico empreendido pelo
historiador pelo fato de ser uma expressão fidedigna do real. Ainda que José Honório
Rodrigues chame a atenção para as possíveis falsificações, o que fica marcado em suas
considerações é a objetividade do instrumento cinematográfico, da câmera. Esta por si só
eliminaria as marcas do trabalho humano, as marcas do sujeito de conhecimento e, portanto, o
resultado final estaria mais próximo da verdade, ou então, não tão longe dela. O autor nos
adverte para a necessidade de verificarmos a veracidade da fonte, do objeto que está sendo
filmado, não do processo mesmo da filmagem1086.

CONCLUSÃO

As relações existentes entre Cinema e História são complexas. Ao desenrolar deste


artigo, tentou-se configurar algumas das propostas didáticas e historiográficas à cerca desta
questão.

1084
Op. Cit.
1085
Ver em: RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2ªedição. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969. e BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil.
São Paulo: Editora Contexto, 1988.
1086
Op. Cit.

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É imprescindível ressaltar que o conhecimento da arte cinematográfica deve ser


inerente no profissional que se habilita a utilizar os filmes em sala de aula. Por isso a
preocupação em demonstrar neste projeto, o quanto o professor deve analisar o conteúdo
programático da disciplina e o conteúdo fílmico. O conjunto de problemas aqui abordados
ficaria incompleto se não se discutisse a noção de filme histórico.
Faz-se mister que as artes em geral, e principalmente o Cinema, auxiliam o
professor de História de forma a dinamizar a aula, utilizando-se da obra fílmica como um
novo recurso didático. O professor deve precaver-se analisando o filme antes de passá-lo em
sala de aula, para associá-lo ao conteúdo programático da disciplina de História. Ressalta-se
ainda, no trabalho, que utilizar a sétima arte correlacionando com a História requer ao
professor uma erudição, pois, o mesmo deve ter conhecimento da arte cinematográfica e o
embasamento teórico da disciplina.

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SIMONARD, Pedro. ORIGENS DO CINEMA NOVO: A CULTURA POLÍTICA DOS


ANOS 50 ATÉ 1964. Disponível na Internet via
<http://www.achegas.net/numero/nove/pedro_simonard_09.htm> Capturado em 02/06/2007.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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A PEQUENA HISTÓRIA DE SERGIPE: OBRA-PRIMA DA HISTÓRIA


REGIONAL DE UM “INTELECTUAL FORASTEIRO”.

Diogo Francisco Cruz Monteiro – GPEH/DED/UFS


diogocruz_21@yahoo.com.br

Este artigo estuda a escrita escolar da história regional elaborada pelo professor Acrísio
Tôrres Araújo, em Sergipe, entre as décadas de 1960-70. Nosso objetivo é observar, a partir
da exposição de características que compõem o livro didático Pequena História de Sergipe
(1966), qual foi a relevância didático-pedagógica assumida por este manual diante da
sociedade e comunidade escolar sergipana. No contexto educacional sergipano das décadas de
1960-70 - que se ressentia da publicação de obras do gênero didático sobre a História local -,
a Pequena História de Sergipe possibilitou um melhor desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem histórico nas escolas do Estado, bem como uma relação mais intima do
público leitor em geral com temas da História de Sergipe. A obra chamou à responsabilidade,
ainda, sergipanos estudiosos da História que viviam alheados da realidade circundante,
relegando a segundo plano a realização de pesquisas que colaborassem com a ampliação da
cultura intelectual das crianças.

Palavras-chave: Acrísio Tôrres Araújo, Livro Didático, Ensino de História.

O texto que segue trata da literatura didática do professor, historiador e advogado


cearense Acrísio Tôrres Araújo, produzida em Sergipe entre as décadas de 1960-70. Ocupa-se
em observar, a partir de breve apresentação de alguns traços que compõem o livro didático
Pequena História de Sergipe (1966), qual foi a importância didático-pedagógica assumida por
este manual perante a sociedade e comunidade escolar aracajuana.
O desenvolvimento e efetivação de uma pesquisa desta natureza representam uma
empresa de grande valia para o universo acadêmico, pois as produções historiográficas
universitárias que abordam temas relacionados ao ensino da disciplina História e ao livro
didático de história regional encontram-se escassas, sendo estes estudados apenas por uma
parcela bastante reduzida de pesquisadores.
A linha de investigação proposta para esta pesquisa está em consonância com os
trabalhos realizados pelo GPEH (Grupo de Pesquisas em Ensino de História), vinculado ao

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Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, que fomentando estudos


sobre os diversos aspectos do livro didático de História, tem procurado desvelar as
vicissitudes e prováveis avanços que caracterizam o ensino da disciplina História no Estado
de Sergipe.
A pesquisa foi concretizada por intermédio da utilização de documentação
diversificada, que compreendeu desde os próprios livros didáticos produzidos pelo professor
Acrísio Tôrres nas décadas de 1960 e 1970, até artigos de jornal sobre as suas empresas
intelectuais em Sergipe, de fácil acesso aos pesquisadores nas bibliotecas e hemerotecas do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e do Arquivo Público do Estado.
Foi de grande relevância para a ratificação dos argumentos aqui apresentados, o
diálogo com o conceito de livro didático difundido pelo professor Kazumi Munakata, que
afirmou: “o livro didático é um artefato de papel e tinta, costumeiramente utilizado em
situações didáticas”. (cf. MUNAKATA, 1997, p. 84). Ele, porém alertou: “não são meras
idéias, sentimentos, imagens, sensações, significações que o texto possa apresentar. Nem
tampouco é o texto em abstrato, pois esse texto de que as pessoas normalmente vêem apenas
idéias, sentimentos, imagens, etc., é constituído de letras (confeccionadas com tinta sobre o
papel) segundo uma família de tipo (ou face de tipo ou fonte), que lhes dá homogeneidade”.
(id.,).
Igualmente, ao tratarmos das estratégias de transmissão do conhecimento histórico
escolar e dos tipos de cidadãos que se pretendia formar através das lições introduzidas na
Pequena História de Sergipe, utilizamos com grande proveito a categoria Pedagogia da
História, propalada pelo professor Itamar Freitas de Oliveira, como sinônimo de “teoria do
ensino de história (...), pensamento sistematizado sobre o ensino de história que contempla
finalidades, conteúdos e metodologias para a referida disciplina escolar”. (cf. FREITAS,
2006, p. 210).
Como procedimento metodológico, o trabalho cumpriu as etapas relativas ao
levantamento bibliográfico da produção didática de Acrísio Tôrres Araújo. Após a seleção e
escolha das obras a serem examinadas, foi realizada a crítica historiográfica dos discursos
contidos em seus textos, principalmente daqueles que estão inseridos na obra Pequena
História de Sergipe, com a finalidade de identificar os seus principais traços.
Foram fontes indispensáveis ao delineamento satisfatório do tema, os jornais que,
à época, veicularam artigos sobre a atuação intelectual do professor Acrísio Tôrres no Estado
de Sergipe: Gazeta de Sergipe, A Cruzada, Diário de Aracaju, Diário Oficial do Estado de

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Sergipe, Jornal da Cidade, documentos que foram submetidos a um rigoroso processo de


leitura, interpretação e críticas interna e externa1087 .
Estabelecidas a problemática, justificativas, fontes, fundamentações teórica e
metodológica para o exame em foco, resta apenas debruçarmo-nos de maneira mais contida
sobre questões peculiares que permitiram ter em perspectiva qual foi a relevância didático-
pedagógica assumida pela Pequena História de Sergipe entre a sociedade e os escolares de
Aracaju das décadas de 1960-70.
O cearense Acrísio Tôrres Araújo passou a integrar os quadros do mercado
editorial sergipano de livros didáticos com a publicação em 1966 da Pequena História de
Sergipe, obra em que ensejava tornar conhecida de todos os sergipanos, em especial da
mocidade, a experiência histórica da sua terra.
A iniciativa da escrita de uma obra de História regional empreendida pelo
professor Acrísio Tôrres teve o incentivo de jornalistas renomados, como Teresa Neumann e
Antonio Francisco de Jesus, que sob o pseudônimo de A. F de Jesus lançava notas de apoio e
divulgação dos seus trabalhos voltados para crianças, principalmente por meio dos jornais A
Cruzada e Gazeta de Sergipe, ambos de Aracaju.
Após rememorar sua trajetória como escritor e refletir sobre as variadas razões
que o estimularam a levar a bom termo a constituição do seu primeiro livro publicado em
Sergipe, o professor a Acrísio Tôrres relatou:

Foi um prazer, a diligente pesquisa que me levou a escrever essa História.


Foi toda composta nas oficinas do Jornal A Cruzada, da diocese, graças ao
editor, o jornalista João Oliva Alves. Na época, colaborava com uma crônica
semanal, intitulada Assim é a vida... Tornamo-nos amigos, até hoje.
Não só tive o estímulo e a boa vontade do Jornalista João Oliva Alves, editor
de A cruzada, na composição de minha Pequena História de Sergipe. Nos
finais de semana, nas oficinas do jornal, passei a receber a visita do professor
e escritor José Amado Nascimento. Ele queria saber como ia a minha
História. Ele foi um forte incentivo à minha iniciativa histórica, obra editada
pela Livraria Regina, do livreiro Apóstolo, em 1966 (...) 1088.

1087
As críticas interna e externa são operações que, como orientavam Charles Victor Langlois e Charles
Seignobos (1946, p. 46), visam observar a relação que prende o documento ao fato, através da reconstituição de
toda a série de causas intermediárias que produziram o documento.
1088
ARAÚJO. 2008. Carta para o autor em 24 de janeiro de 2008.

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Às vésperas da sua publicação, a Pequena História de Sergipe gerou


expectativas acerca das possibilidades de adoção nas instituições de ensino do Estado e estilo
de escrita que seria empregado pelo autor. Assim, divulgou-se à época:

O filosofo, advogado, historiador e poeta cearense o Dr. Acrísio Araújo, aqui


radicado há mais de 2 anos, fez um estudo aprofundado da nossa terra
durante esse período de tempo em que aqui esteve, estudo esse que será
impresso e publicado brevemente.
O livro terá como título- “A PEQUENA HISTÓRIA DE SERGIPE”.
Pelo estilo empregado, tem o professor Acrísio Araújo esperança que o seu
livro seja incluído entre os livros didáticos nos currículos das escolas de
Sergipe. (cf. NEUMANN, A Cruzada, Aracaju, 09 jan. 1966).

Neste ínterim, um artigo intitulado “Um livro para Sergipe”, ao atender a


solicitação do público leitor sergipano ávido por informações sobre os andamentos dos
trabalhos de confecção e publicação da Pequena História de Sergipe, teceu alguns
comentários sobre os seus primeiros capítulos, além de um relato sobre o desenvolvimento
dos serviços de impressão:

Os primeiros dez capítulos, compreendendo mais de setenta páginas já foram


impressos na tipografia da livraria Regina. E os trinta capítulos restantes
estarão no prelo nas próximas semanas. Tivemos a oportunidade de ler os
primeiros capítulos da referida obra e podemos afirmar que agradará
plenamente os leitores e os curiosos da história de nossa terra.
Além de estarem os capítulos suficientemente desenvolvidos, chamou-nos a
atenção a originalidade de denominação dos capítulos como também os
conteúdos dos mesmos.
O segundo capítulo, tomando como exemplo, tem o título sugestivo: “O
Herdeiro e a Herança indesejável”. E narra numa linguagem clara e perfeita
o sinistro legado deixado pelo pai à Manoel Pereira Coutinho.
Também o oitavo capítulo tem um título sugestivo: “O longo período da
Tetrarquia”. E se refere ao período de mais de meio século em que Sergipe,
Ihéus e Pôrto Seguro, estiveram subordinados à Bahia.
Desta Forma só nos resta aguardar que a “Pequena História de Sergipe”
comece a circular em nosso meio. E por hora só nos cabe desejar ao

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professor Acrísio Araújo o mais completo êxito nesta tarefa histórica que êle
em tão boa hora empreendeu (...) (A CRUZADA. Aracaju. 22 jan. 1966).

O professor Acrísio Tôrres fazia questão de encaminhar os seus manuais voltados


à formação escolar das crianças do primário para a apreciação do Conselho Estadual de
Educação. A Pequena História de Sergipe foi indicada à publicação pelo parecer nº 18/66,
processo nº 24/66, em que se lia: “Opinamos que o Conselho Estadual de Educação
recomende este livro como subsídio para o professor primário e um guia para o estudante de
História de Sergipe. É o nosso parecer. Neide Mesquita, conselheiro-relator; Alcebíades Melo
Vilas-Boas, Presidente da CEP.” 1089
O livro atendeu às demandas de professores e estudantes dos mais variados níveis
de escolarização, sendo adotado por diversas unidades de ensino públicas e particulares,
principalmente da cidade de Aracaju. Teresa Neumann já escrevia em 1966:

O livro do Professor Acrísio Torres Araújo, “Pequena História de Sergipe”


(...) já se encontra à venda na cidade.
O prof. Acrísio não Cabe em si de contentamento, com muita razão, aliás, já
que seu livro foi adotado por diversos colégios da capital, nos cursos
pedagógicos, científico e ginasial.
Os colégios Nossa Senhora de Lourdes, Tobias Barreto, Tiradentes, Walter
Franco, Senhor do Bomfim, Ginásio de Aplicação, Colégio Estadual e
Escola Normal já adotaram a obra em aprêço.
Espera-se que os demais estabelecimentos de ensino de nosso estado
venham, igualmente a adotar o mencionado livro, uma verdadeira dádiva
para a juventude sergipana.
Trata-se da primeira obra completa sobre a evolução da nossa terra.
O prognóstico desta colunista foi assim concluído: Passa a “Pequena
História de Sergipe” a integrar o currículo escolar dos nossos
estabelecimentos de ensino. (cf. NEUMANN; GS, 08 mar. 1966).

No noticiário do dia 19 de março de 1966, o Diário Oficial do Estado de Sergipe


anunciava que havia sido “editada a Pequena História de Sergipe”. E prosseguia:

1089
Parecer transcrito por AcrísioTôrres em carta ao autor de 24 de janeiro de 2008.

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O chefe do governo (Dr. Sebastião Celso de Carvalho) recebeu às primeiras


horas da noite Transata, na residência de veraneio da Atalaia, o Prof. Acrísio
Tôrres de Araújo, que ofereceu a Sua Excia. com expressiva dedicatória um
exemplar de sua ‘Pequena História de Sergipe’, de sua autoria, dividida em
40 capítulos e contendo 220 páginas. O chefe do estado, manifestando-se
grato ao cativante gesto do jovem historiador louvou-lhe a iniciativa,
prometendo lêr, com interesse e simpatia, o seu trabalho.

O professor Acrísio Tôrres considerava o estudo da História de Sergipe uma


atividade antes de tudo empolgante, sendo isto, um dos principais estímulos para escrevê-la.
Atribuiu-se a realização da “Pequena História de Sergipe” aos primeiros contatos do autor
com a biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe1090 e a sua necessidade de
sistematização dos conteúdos de História de Sergipe para melhor desenvolvimento das aulas
que ministrava no Colégio Tobias Barreto do professor Alcebíades Vilas Boas.
Além dessas motivações, outra razão incitou o professor Acrísio a compor a
referida obra: a “falta de ciência” de parte da sociedade sergipana para com as questões
históricas do Estado, pois se considerava que “quase ninguém em Sergipe conhece o
suficiente de nossa História para iniciar, se quer, uma conversa” 1091.
É possível afirmar que essa dada parcela de cidadãos sergipanos ciente da sua
precária formação acerca de conhecimentos específicos da História do seu Estado, no sentido
de minorá-la, tenha colaborado para o relativo sucesso de vendagem que o autor logrou
alcançar com a publicação do seu livro didático.
Neste particular, discorria-se:

Prosseguem em rítimo acelerado os trabalhos de impressão do mais que


esperado livro “Pequena História de Sergipe” do professor Acrísio Araújo.
Segundo fomos informados ele pretende tirar um milheiro nesta primeira
edição o que, segundo nos parece, vai voar nos primeiros dias, pois, diversos
pedidos já estão sendo feitos tanto por pessoas como por livrarias de outras
partes do Brasil, onde sergipanos possuem colônias. E, adiantava: Conversa-
se que o eminente intelectual cearense professor Acrísio Araújo, já está

1090
Segundo alguns estudiosos da obra histórica de Acrísio Tôrres Araújo, o professor foi estimulado a escrever
a Pequena História de Sergipe após o primeiro contato na biblioteca do IHGS com o livro História de Sergipe
(1891) de Felisbelo Freire e ter-se dado conta da sua insuficiência para os escolares da época, pois as suas
pesquisas chegavam somente até meados século XIX. (SANTOS, 2004).
1091
A Cruzada. Aracaju, 19 de Fevereiro de 1966.

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preparando outro livro sôbre Sergipe, trata-se desta vez de uma obra
exclusivamente física. (A CRUZADA. Aracaju, 6 fev. 1967, p. 7).

Alcançado o seu intento, Acrísio Tôrres Araújo iniciou, com apoio do órgão
governamental responsável pela promoção de atividades culturais no Estado, a confecção de
uma edição renovada e ampliada de sua obra (História de Sergipe 3º ano primário).
Assim, observou-se que:

O primeiro milheiro da inicial edição da “Pequena História de Sergipe”


esgotou-se por completo. O professor Acrísio Torres Araújo informou-nos
que agora cuida de uma nova edição de sua tão útil obra. Vem ampliada,
devidamente corrigida, com ilustrações e com encadernação mais segura.
Fomos informados também que a Secretaria de Educação e Cultura do
Estado, na sua ânsia de proporcionar ao Estado uma cultura sempre mais
alta, através de seu secretário Sr. José Carlos, está providenciando já o início
de composição do livro do prof. Cearense. Será uma dupla vitória. Dos
sergipanos e da secretaria que, assim, caminha para a sua realização como
órgão ao bem da cultura (...) (A CRUZADA. Aracaju, 12 nov. 1966, p. 9).

Livro que introduziu o cearense Acrísio no rol da intelectualidade sergipana, a


Pequena História de Sergipe pode ser considerada ainda a impulsionadora da elaboração de
outros manuais didáticos publicados pelo autor e que contribuíram, sobremaneira, para a
formação do espírito das crianças e jovens sergipanos.
As obras didáticas que escreveu para as crianças sergipanas eram a expressão
mais profunda dos elos intelectuais que uniam o professor Acrísio Tôrres ao Estado de
Sergipe. Essas produções atingiram um total de nove títulos publicados, cinco na área de
estudos sociais: Minha Terra, Minha Gente, 1º ano, Aracaju, Minha Capital, 2º ano (prefácio
de Dom Távora), História de Sergipe, 3º ano (prefácio de Áurea Melo), Geografia de Sergipe,
3º ano (prefácio de Gildete Lisboa; com vocabulário auxiliar) e Sergipe e o Brasil, 4º ano
primário; e quatro na área de comunicação e expressão: Leituras Sergipanas, 1º, 2º, 3º e 4º
anos do ensino primário (ARAÚJO, 2008).
O referido sucesso editorial da Pequena História de Sergipe pode ser associado
ainda a sua ação em sala de aula, sua operosidade professoral, valiosa sem dúvida ante a
pobreza e apatia intelectuais de um meio indiferente às conquistas técnicas e valores de um
mundo em constante transformação.
A labuta do professor Acrísio Tôrres, neste particular, foi louvável,
principalmente num contexto em que a maioria dos dirigentes e da dita “elite pensante” pouco
ou nada queriam, diziam e faziam, relegando ao ostracismo o desenvolvimento de

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investigações que viessem a colaborar com o engrandecimento do ensino e da cultura


histórica entre os escolares da época1092.
O contato inicial com as 220 laudas da Pequena História de Sergipe, fracionadas
em 40 capítulos, proporcionava ao leitor o conhecimento de temas que abarcavam desde a
doação da capitania de Sergipe D’el Rey por D. João III ao donatário Francisco Pereira
Coutinho em 1534 até as grandes ações político-administrativas que marcaram o governo do
Dr. Sebastião Celso de Carvalho em meados da década de 1960.
Assim, compreende-se que além de ser concebida como instrumento didático
auxiliador dos estudos históricos desenvolvidos pelos alunos dos cursos primário, ginasial,
científico e de formação de professores, a Pequena História de Sergipe se configurava como
obra de síntese historiográfica que se ocupou da vivência sergipana a partir da trajetória
política do executivo estadual, inserida num marco temporal de aproximadamente 4 séculos
de experiências.
Era recorrente, principalmente a partir da abordagem do período imperial, a
apresentação (no contexto das administrações governamentais) de rápidas narrativas das
Histórias de vida dos baluartes da intelectualidade sergipana. Nesses trechos da Pequena
História de Sergipe, o autor buscava enfocar as preciosas contribuições que estes pensadores
das terras de Serygi legaram à posteridade nos âmbitos das artes, letras e ciências.
Ao narrar acontecimentos do mandato do presidente Cunha Galvão, que assumiu
o governo da província num contexto nada animador para as finanças públicas, Acrísio Tôrres
divagou e fez a seguinte menção: “Nesta administração nasceu João Ribeiro, 1860, em
Laranjeiras, uma das figuras mais completas de homem de letras, poeta, filólogo, crítico,
folclorista, historiador. Sobretudo historiador, foi o primeiro a abandonar o critério puramente
cronológico, para fundar-se na compreensão mais larga dos fenômenos sociais e culturais”.
(cf. ARAÚJO, 1966, p. 108).
É digno de nota o fato de que nos textos da Pequena História de Sergipe o autor
deixou transparecer a sua proposta de Pedagogia da história, qual seja: a Pedagogia do

1092
Antes da publicação pelo professor Acrísio de manuais didáticos como a Pequena História de Sergipe (1966)
e o Sergipe e o Brasil de (1973), havia mais de 50 anos que não se produzia livro do gênero em Sergipe, desde a
iniciativa de Elias Montalvão que legou o Meu Sergipe: Ensino da História e Chorografia de Sergipe (1916) aos
alunos das séries primárias das escolas do Estado. Considerado o primeiro livro puramente didático em matéria
de História e Corografia de Sergipe, apresentava, segundo o autor, “uma linguagem bem accomodada à
comprehensão da creança”. Em Meu Sergipe quem contava a história eram os personagens ligados à vida do
estudante como a avó, a tia, os colegas de turma e o professor. A obra foi reeditada em 1919, sem muitas
alterações no conteúdo original (FREITAS, 2002).

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exemplo, fornecendo aí um importante indício sobre qual espécie de cidadão que desejava
formar a partir dos ensinamentos introduzidos no livro.
Como quem pretendia preparar os futuros cidadãos sergipanos para assumirem as
tarefas político-administrativas do Estado, a leitura de excertos de alguns capítulos do manual
didático em questão permitiu inferir que, o exemplo da experiência dos grandes homens – os
heróis da ciência, da poesia, das artes – poderia fazer daquele Sergipe o Estado promissor que
se desejava e de seus habitantes “o povo do futuro”.
Sobre esta questão, é sugestiva a leitura do décimo oitavo parágrafo do décimo
segundo capítulo intitulado “Do ano 1836 à maioridade”, que trata do período politicamente
conturbado do governo regencial no Brasil e suas implicações no contexto sergipano.
Após relato das ações do presidente Mariano Albuquerque, considerado como
principal responsável pelo retorno à província de Sergipe, embora em curto prazo, de dias de
paz e tranqüilidade, o autor afirmou: “Por tudo isso e mais alguns serviços prestados, o
presidente da província, Mariano de Albuquerque deve ser considerado como O pacificador.
Que a posteridade sergipana nunca o esqueça, como belo e seguro exemplo a orientar os
passos e atitudes de futuros administradores...” (cf. ARAÚJO, 1966, p. 81).
À guisa de finalização das idéias aqui apresentadas, reitera-se que o “surgimento”
e introdução da Pequena História de Sergipe nos currículos das unidades de ensino do Estado
representaram acontecimentos de grande importância para o desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem histórica.
Sua presença no mercado editorial permitiu que o público leitor em geral
desenvolvesse, com a prática da leitura do manual, uma relação mais íntima com
conhecimentos acerca da evolução histórica do povo sergipano. O livro torna-se ainda mais
relevante quando sabemos que anteriormente a sua publicação reinou um prolongado vazio no
que dizia respeito à composição de obras do gênero.
A iniciativa de confecção da Pequena História de Sergipe pelo professor Acrísio
Tôrres teve, conseqüentemente, outro mérito; como percebeu José Silvério Leite Fontes em
1976: “reabriu o interesse pela História sergipana. Mostrou a responsabilidade dos sergipanos
que, estudiosos da História, viviam alheados da realidade circundante, e isso pelo simples fato
de sua publicação.” (FONTES, 1976, p. 8).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Livros de Acrísio Tôrres Araújo referenciados.

ARAÚJO, A. T. Aracaju, Minha capital: segundo ano primário. 4. ed. São Paulo: Editora
do Brasil S/A, 1967.
_____. Carta para Diogo Francisco Cruz Monteiro. Brasília, 26 jan. 2008. 16 f.
_____. Geografia de Sergipe: terceiro ano primário. 6. ed. Editora do Brasil S/A. [196].
_____. Geografia de Sergipe. Aracaju: Livraria Regina, 1969.
_____. História de Sergipe 3º ano primário. 2. ed. Aracaju: 1967.
_____. Leituras Sergipanas. Primeiro ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia S/A,
[196-].
_____. Leituras Sergipanas. Segundo ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia S/A,
[196-].
_____. Leituras Sergipanas. Quarto ano primário. Bahia: Editora do Brasil na Bahia, [196-].
_____. Minha Terra, Minha Gente. Área Estudos Sociais. 1. ed. Bahia: Editora do Brasil na
Bahia S/A. 1973.
_____. Pequena História de Sergipe. Aracaju, 1966.
_____. Sergipe e o Brasil. Área Estudos Sociais. 4ª série. São Paulo: Ed. Do Brasil, 1973.

Livros e artigos sobre Acrísio Tôrres Araújo e obras.

A CRUZADA. 9 jan. 1966


_____. 22 jan. 1966.
_____. 19 fev. 1966.
_____. 12 nov. 1966.
_____. 6 fev. 1967.
DIÁRIO OFICIAL do Estado de Sergipe, 19 mar. 1966.
FONTES, J. S. L. Um projeto de história de Sergipe. Momento: revista cultural da gazeta de
Sergipe. Ano I, nº 02, Aracaju, março de 1976, p. 7- 14.
FREITAS, I. O livro didático de História de Sergipe. Jornal da Cidade, Aracaju, 29 e 30 jan.
2002.
GAZETA DE SERGIPE, 8 mar. 1966.
NEUMANN, T. A grande Pequena História de Sergipe. Gazeta de Sergipe, Aracaju, 8 mar.
1966.

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SANTOS, V. M. dos. A Geografia e os seus livros didáticos sobre Sergipe: Do século XIX
ao século XX. Aracaju, 2004. 204 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Departamento de
Educação, Universidade Federal de Sergipe.

Referencial teórico.

FREITAS, I. Ensino de história à brasileira nos conselhos de Fernand Braudel. In: _____.
Histórias do ensino de história no Brasil. São Cristóvão: Editora da UFS, 2006. p 208-224.
LANGLOIS, Ch. V; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo:
Renascença, 1946.
MUNAKATA, K. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo, 1997. Tese
(Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.

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ESCRITA DA HISTÓRIA NA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE JOÃO


RIBEIRO

Silvia Carolina Andrade Santos (DHI/UFS)


silviacarol_as@yahoo.com.br

Na virada do século XIX para o século XX, o grupo de intelectuais da “geração de 1870”–
dentre eles João Ribeiro – que se dedicava à escrita da história era formado, em sua maioria,
de poetas, romancistas, jornalistas, ou seja, “homens de letras”. O ser historiador no início da
República era operado por intelectuais que transitavam em várias áreas já que não havia
faculdades dedicadas à formação desse profissional. Com o objetivo de compreender a
trajetória intelectual de João Ribeiro e como esta fundamentou a sua escrita da história – em
especial do livro didático História do Brasil (1900). Esse estudo pretende investigar os
intercâmbios estabelecidos entre esse polígrafo e uma rede de intelectuais reunidos não só no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) - local destinado oficialmente à produção
histórica - mas também no Colégio Pedro II e na Academia Brasileira de Letras (ABL). A
análise das relações nesses locais de sociabilidade permite identificar elementos importantes
na formação e canonização de João Ribeiro como historiador.

Palavras-chave: João Ribeiro, História do Brasil, livro didático.

Com o objetivo de compreender a trajetória intelectual de João Ribeiro, essa


pesquisa pretende investigar os intercâmbios estabelecidos entre esse historiador e uma rede
de intelectuais reunidos não só no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) - local
destinado oficialmente à produção histórica - mas também no Colégio Pedro II e na Academia
Brasileira de Letras (ABL). A partir da análise das relações nesses locais de sociabilidade
(SIRINELLI:1996), procuraremos identificar alguns sentidos/significados assumidos pelas
posições ocupadas por João Ribeiro nessas instituições, no que se refere à sua produção
historiográfica.
Na virada do século XIX para o XX o grupo de intelectuais da “geração de
1890”– dentre eles João Ribeiro – que se dedicava à escrita da história eram na maioria
poetas, romancistas, jornalistas, ou seja, “homens de letras”. O ser historiador no início da
República, “não poderia ter marcas muito especiais, até porque não havia distinções
disciplinares mais nítidas no Brasil até os anos 30, inclusive pelo fato de não existirem

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faculdades dedicadas à formação de profissionais nessa área do saber” (GOMES, 1996:38).


Assim, assumir uma concepção mais restrita de intelectual nesse trabalho, “que privilegia a
idéia do produtor de bens simbólicos envolvido direta ou indiretamente na arena política”
(GOMES, 1996:38), possibilitará pensar os intelectuais em seus lugares de produção e de
sociabilidades.
João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes nasceu em 24 de junho de 1860 na cidade
de Laranjeiras, Província de Sergipe e faleceu no Rio de Janeiro, em 13 de abril de 1934,
coincidentemente numa Clínica Hospitalar situada no bairro de Laranjeiras. Filho de Manuel
Joaquim Fernandes e Guilhermina Ribeiro Fernandes, João Ribeiro ficou órfão de pai muito cedo
e foi morar na casa do avô materno, Joaquim José Ribeiro, admirador de Alexandre Herculano e
dono de grande biblioteca. Ao concluir os primeiros estudos em Laranjeiras, transferiu-se para o
Ateneu de Sergipe, em Aracaju, onde sempre se destacou como o primeiro da classe. Foi para
Salvador estudar medicina, mas logo desistiu mudando-se para a Corte em 1881 com o intuito de
estudar engenharia na Escola Politécnica. Uma vez no Rio de Janeiro, tornou-se amigo de Sílvio
Romero e acabou se dedicando a outras atividades como pintura, música, os vários ramos da
literatura e sobretudo filologia. Casou-se em 1889 e teve 16 filhos. Em 1894 formou-se em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro1093.
João Ribeiro desde cedo dedicou-se ao magistério. Foi professor de colégios
particulares desde 1881 e, em 1887, fez concurso para o Colégio Pedro II concorrendo à
cadeira de Português. Nesta oportunidade, defendeu a tese "Morfologia e colocação dos
pronomes." Entretanto, só foi nomeado três anos depois, para a cadeira de História Universal.
No Rio de Janeiro dedicou-se ao jornalismo - onde atuou até o fim da vida - e fez-se amigo
dos grandes jornalistas da época ao integrar o grupo abolicionista e republicano de Quintino
Bocaiúva, José do Patrocínio e Alcindo Guanabara. Conforme Hansen, “os próprios recursos
intelectuais ou diplomas não eram suficientes; era necessário também um largo esforço de
mobilização das relações sociais de que se podia dispor. E, no caso de João Ribeiro, seria
principalmente através do jornalismo que o autor iria adquirir efetivamente as relações que lhe
seriam imprescindíveis” (2000:14).

1093
Sobre os dados biográficos de João Ribeiro ver: HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do
Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000; LEÃO, Múcio. João Ribeiro. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1962; GASPARELLO, Arlete Medeiros. Construtores de identidades: A pedagogia da nação nos livros
didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: IGLU, 2004; GOMES, Angela de Castro. História e
historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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Ao analisar os processos de (re)significação do ofício do historiador no âmbito da


História da Historiografia, Freitas (2003) discutiu os critérios de canonização de obras e
autores que se debruçaram sobre a experiência brasileira. Para tanto, tomou como objeto o
manual História do Brasil, de João Ribeiro, lançado em 1900.

“O ‘livrinho’, como assim referia-se o autor, foi vendido aos


milhares em três versões: ensino primário e secundário, ensino
primário, e ensino superior. Juntamente com outros títulos, História
Antiga (1892), História Universal (1918), e História da Civilização
(1932), a História do Brasil – notadamente a dedicada ao curso
superior, que em 1960 circulava em sua 17ª edição – ajudou a
sedimentar, de forma lateral, a imagem do laranjeirense nos anais da
historiografia brasileira” (FREITAS, 2003:3).

Segundo Freitas (2003:3), “essa marginalidade se deve à relativa indiferença que


sustentam os historiadores da historiografia acerca dos livros em forma didática”. Entretanto,
o manual de 1900 tem chamado a atenção de alguns leitores. Foi “a partir desses novos
leitores, colhidos em programas de pós-graduação em Educação e História, que os critérios
responsáveis pela canonização e marginalização de obras e autores costumam ser repensados,
como soe acontecer na comunidade de historiadores de qualquer país” (FREITAS, 2003:3).
A consagração de João Ribeiro como cânon da historiografia brasileira veio com a
publicação do livro História do Brasil na sua versão para o ensino superior1094, na medida em
que o historiador sergipano adotou uma "pedagogia de formação do professor de História do
Brasil, cuja prática, nesse momento, parece confundir-se em muitos aspectos com a do
historiador" (HANSEN, 2000:128). Os recursos dessa pedagogia inovadora “foram o método
de organização dos conteúdos e a utilização de tipos gráficos (letras) com duas dimensões: o
maior, descritivo, factual, destinado à leitura do aluno; o menor, explicativo, causal, crítico,
dirigido ao trabalho do professor e (de forma direta ou indireta) ao aluno” (FREITAS,
2007:3).
De acordo com o prefácio de Araripe Jr. à 2 edição de História do Brasil, “o manual
é a carta de navegação pela qual o peior piloto póde levar o discipulo ao porto do destino”1095. O
autor foi retratado nesse prefácio como exímio filólogo e historiador ligado aos assuntos

1094
“Seu livro repercutiu no mundo intelectual da capital e teve ampla aceitação no ensino, atestada por
sucessivas edições, principalmente na versão Curso Superior para Ginásios e Escolas Normais”.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. Invenção e continuidade: a História do Brasil de João Ribeiro. I Seminário
Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro: UFF/FCRB, 2004, p.4.
1095
Araripe Jr.. “João Ribeiro – Filólogo e Historiador”. In: História do Brasil. Curso Superior. 4 edição. Rio de
Janeiro/São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1912.

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nacionais. Esse interesse em entender a formação da nação era corrente entre vários intelectuais
de seu tempo.
Ainda sobre o reconhecimento de João Ribeiro pelos seus pares historiadores1096,
Freitas (2003) destaca que o seu grande trabalho como historiador não foi a pesquisa inédita
junto a fontes (como Capistrano de Abreu), mas as grandes sínteses produzidas em compêndios
escolares. A primeira década do século XX foi marcada pela contribuição desses dois
intelectuais na renovação do campo historiográfico e do ensino de história no Brasil.
Professores do Colégio Pedro II, “Capistrano e Ribeiro também tinham em comum a origem
nordestina, o gosto pela pesquisa e o estudo das coisas nacionais: João Ribeiro, especialista na
língua nacional, Capistrano na língua indígena” (GASPARELLO, 2004:3).
Neste estudo, a leitura e a análise dos escritos de João Ribeiro não se justificam
pela atualidade ou possível caráter precursor da sua interpretação do Brasil mas, considerando
o que Hayden White (1994:98) identifica como a natureza metafórica dos grandes clássicos da
historiografia, pelo tipo particular de representação do passado que resguarda certos textos da
invalidação definitiva. Neles, poderíamos reconhecer modelos do ofício do historiador muito
tempo depois que as suas explicações específicas dos “fatos” perderam a vigência e a
relevância1097.
Criado em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) dedicou-se
à escrita da história nacional, “num processo simultâneo de construção dessa história e de
afirmação do papel do Estado como criador e garantidor de nossa nacionalidade” (GOMES,
1996:15). O Instituto tinha como diretrizes “a coleta e publicação de documentos relevantes
para a História do Brasil e o incentivo, ao ensino público, de estudos de natureza histórica”
(GUIMARÃES, 1988:8-9) na medida em que surgia como centro oficial para produzir um
discurso sobre o Brasil. Assim, o pragmatismo da história (constituidora da nação e formadora
do cidadão) e o gosto pela pesquisa (cuidado com a heurística e a crítica documental) são
elementos importantes na atuação deste órgão. Conforme Iglésias,

“Pretende-se fazer uma história que tenha função pedagógica, orientadora


dos novos para o patriotismo, com base no modelo dos antepassados. É o
velho conceito da história como a mestra da vida que se cultua. Daí certa
insistência em biografias de vultos tidos como exemplares” (2000:61).

1096
Reconhecido tanto por seus contemporâneos como por intelectuais de destaque na cultura nacional, que
estudaram e citaram João Ribeiro em suas obras: como Gilberto Freyre, Oliveira Lima, Delgado de Carvalho,
Fernando de Azevedo e outros (Gasparello, 2004).
1097
WHITE, Hayden. Historicismo, História e imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso. 2.ed. São Paulo:
Edusp, 2001, p. 135-136.

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Apesar da diminuição de apoio financeiro e da concorrência do Pedro II, que se


destacava como lugar privilegiado de produção historiográfica assim como os jornais, o
IHGB, mesmo nos anos posteriores à proclamação da República, gozou de prestígio e teve
como sócios figuras que atuavam nas principais instituições secundárias e também nas escolas
normais do Rio de Janeiro e de São Paulo1098.
Sobre o locus privilegiado de atuação do professor/pesquisador Gomes (1996:44)
destaca que “tão ou talvez mais importante do que uma escola superior, o Pedro II é um lugar
vital na sociabilidade intelectual dos que vivem no Rio da virada do século”. Assim, foi como
catedrático do Ginásio Nacional que João Ribeiro escreveu seus compêndios de História,
prática comum entre os professores do Colégio 1099. No restrito e ainda em formação mercado
editorial brasileiro da passagem do século, “os livros didáticos constituíam um
empreendimento bem mais seguro que as obras literárias” (HANSEN, 2000:7). No entanto,
atuar em jornais e revistas era imprescindível “não só porque fazia parte de qualquer
estratégia de ascensão intelectual (o que não ocorria sem suportes político-sociais), mas
também porque os periódicos eram a base da circulação de idéias da época” (GOMES,
1996:46).
Quando a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi fundada, em 1896, João
Ribeiro - que era membro do grupo da Revista Brasileira1100 - não estava no país, por isso não
fez parte do quadro de fundadores. Entretanto, dois anos depois, o poeta Luiz Guimarães
Junior faleceu e uma vaga foi aberta. Assim, o laranjeirense “se viu eleito a 8 de agosto de
1898, tendo tido como antagonista José Vicente de Azevedo Sobrinho, que mais tarde foi
diretor da Secretaria da instituição” (LEÃO, 1962:65). Na Academia, João Ribeiro foi um dos
principais promotores da reforma ortográfica de 1907. Conforme Gomes,

“A ABL surge assim como a grande realização dessa geração intelectual, na


qual os historiadores têm posição reconhecida e de destaque. Já o IHGB é
uma instituição com tradição assentada. Tradição que sempre cultivou laços
diretos de mecenato com o poder político central – imperial ou republicano –
, o que a ABL pretendeu explicitamente evitar. [...] para os homens da

1098
João Ribeiro tomou posse no IHGB em 1915. Para saber sobre outros professores sócios do IHGB ver:
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996;
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº
1, 1988.
1099
Entre os lentes estavam: Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves de Magalhães, Araripe Jr., Capistrano de
Abreu, Sílvio Romero, José Veríssimo, Carlos de Laet, Max Fleuiss, o Barão do Rio branco, entre outros.
HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000,
p.12.
1100
“A Revista Brasileira foi o núcleo organizacional do grupo de intelectuais que, no início da estabilização
política da República – em 1898 – decidi criar a ABL” (GOMES, 1996:48).

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geração de 1890, era mais difícil entrar no IHGB do que na ‘sua’ ABL”
(1996:52).

O trânsito de João Ribeiro no círculo de relações de poder político e cultural da


época foi fundamental, uma vez que lhe facilitou exercer funções e realizar viagens
comissionadas ao exterior (GASPARELLO, 2004:162). Estas oportunidades de viajar à
Europa possibilitaram o seu contato com a cultura germânica, “cuja apropriação contribuiu
para sua interpretação renovadora da história do Basil, com atenção aos aspectos
socioculturais” (GASPARELLO, 2004:162). Esta ligação com a cultura alemã estava
“incrustada tanto no imaginário popular, quanto presente nas discussões dos cientistas
brasileiros” (NASCIMENTO, 1999: 244-245).
Esse estudo assume a tarefa de propor respostas possíveis à interrogação,
indispensável para esta análise: “O que fabrica o historiador quando faz história?”
(CERTEAU, 1976:17). Nesse sentido, os três elementos que compõem a operação histórica
proposta por Certeau para que um texto seja identificado como historiográfico são: o lugar
social de produção, a prática e a escrita.
Não obstante, a trajetória intelectual do autor estudado esteve permeada por uma
rede de sociabilidades cujas trocas permitem indicar elementos importantes na formação e
consagração de João Ribeiro como historiador. Assim, faz-se necessário analisar os escritos
de João Ribeiro (as correspondências ativa e passiva também serão consultadas na Casa de
Cultura João Ribeiro em Laranjeiras-SE) por meio de uma interlocução com autores
contemporâneos cujas proposições incidam sobre questões relacionadas à escrita da história.
Outros aspectos da biografia do historiador que se relacionam mais diretamente com a
formulação de sua concepção de história também serão contemplados.

Referências bibliográficas

ARARIPE JR.. “João Ribeiro – Filólogo e Historiador”. In: História do Brasil. Curso
Superior. 4. edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1912.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOOFF, J. e NORA, P. História: novos
problemas. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1976.
FREITAS, Itamar. João Ribeiro e o ofício do historiador: seus leitores, suas prescrições. XXII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA, ACONTECIMENTO E

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NARRATIVA, 12, 2003, João Pessoa. Anais... João Pessoa: UFPB/ANPUH, 2003. 1CD-
ROM.
FREITAS, Itamar. Leitores e leituras da História do Brasil de João Ribeiro (1900).
Palestra proferida durante a abertura do Curso de Especialização em Ensino de História,
promovido pela Faculdade São Luiz de França, no prédio da Câmara de Vereadores do
município de Estância-SE, em 16 de junho de 2007. Disponível em
HTTP://www.ensinodehistoria.com.br/producao.htm.
GASPARELLO, Arlete Medeiros. Construtores de identidades: A pedagogia da nação nos
livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: IGLU, 2004.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. Invenção e continuidade: a História do Brasil de João
Ribeiro. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro:
UFF/FCRB, 2004.
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1996.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, nº 1, 1988.
HANSEN, Patrícia. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de
Janeiro: Access, 2000.
IGLÉSIAS, Francisco. Os Historiadores do Basil: capítulos de historiografia brasileira. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; Bel Horizonte, MG: UFMG, IPEA, 2000.
LEÃO, Múcio. João Ribeiro. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962.
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A cultura ocultada. Londrina: Editora da UEL, 1999.
SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Réne (org.). Por uma história
política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol.7, n.13, 1994.
. Historicismo, História e imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso. 2.ed.
São Paulo: Edusp, 2001.

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3.6 – SIMPÓSIO 6:

HITÓRIA, SUJEITOS E PRÁTICAS CULTURAIS

Coordenação:
Profª Msc. Sheyla Farias Silva (UNIT/SEED/FJAV/ Doutoranda em
História Social/UFBA)

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EVOCAÇÃO AO CÉU: A IGREJA DE NOSSA SENHORA DO


SOCORRO UMA EXPRESSÃO DO PENSAMENTO JESUÍTICO NA
ALDEIA DO GERU (1683-1759)

Ane Luíse Silva Mecenas – UFS


anemecenas@yahoo.com.br

O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do templo de Nossa Senhora do
Socorro, em Tomar do Geru, inserindo aspectos da mentalidade jesuítica, como fruto da
Reforma Católica, associada à difusão do barroco. A leitura foi desenvolvida no sentido de
apresentar o barroco não só como mero estilo artístico, mas como meio de difusão ideológica
da estética e do pensamento da época: os séculos XVI e XVII. A reafirmação da fé é
construída com base na reorganização e na catequização feita através das construções das
Igrejas, das quais a de Nossa Senhora do Socorro é exemplar desse período.

Palavras-chave: Barroco, Jesuítas, Geru.

O espaço colonial no Brasil esteve regido pelo sagrado, ou seja, pela Igreja. A
metrópole portuguesa deixou a cargo dos eclesiásticos as responsabilidades pela instituição de
normas que acabaram definindo a formação dos espaços urbanos. Dentre as construções
jesuíticas edificadas na Capitania de Sergipe Del Rey, foi utilizada como exemplo a Igreja de
Nossa Senhora do Socorro, fruto da atuação dos padres na antiga Aldeia do Geru. Alguns
autores divergem quanto ao ano da fixação dos inacianos na referida aldeia. Dessa forma, o
limite temporal desse estudo se restringe do ano de compra do sítio Ilha, em 1683, até o ano
da expulsão dos membros da Companhia de Jesus das colônias portuguesas em 1759.
Vale ressaltar a profunda influência dos jesuítas na arte colonial brasileira, o que
por muito tempo restringiu toda a arte desse período a ser chamada de arte jesuítica
(SANTOS, 1951, p. 10). Percebe-se que na Capitania de Sergipe Del Rey a atuação dos
padres também deixaram marcas nas localidades por onde passaram, principalmente na
arquitetura colonial. Com a leitura dos primeiros textos a atenção foi voltada para a Igreja de
Nossa Senhora do Socorro, na aldeia Kiriri, localizada no atual município de Tomar do Geru.
Principalmente pela frase, tantas vezes citada, do Padre Serafim Leite de que a igreja
“levantada pelo P. Luiz Mamiani della Rovere, era a mais bela de todas as Igrejas
missionárias fora da Baía” (LEITE, 1945, p. 326). Essa frase evidencia que essa Igreja
deveria ter algo especial para ter merecido o título de “mais bela” fora dos limites da sede da

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colônia. A edificação desse templo é marcada por elementos que permearam a vida da
Capitania de Sergipe no período colonial. Nesse espaço ocorreu, assim como em toda a
colônia, o encontro dos índios com os propagadores da fé cristã, nesse caso os padres do
hábito preto.
Esse trabalho visa repensar a mentalidade da Igreja após a Reforma Católica
através de um templo religioso, buscando alicerçar o pensamento cristão da época com o
estilo de arte utilizado. Para ilustrar a difusão dos dogmas da Igreja foi adotada a Companhia
de Jesus como ícone na reformulação proposta no Concílio de Trento (1536-1563).
O elemento artístico presente na Igreja de Nossa Senhora do Socorro, assim como
na arte colonial brasileira de um modo geral, é o barroco. Dessa forma o presente trabalho
mescla a doutrina cristã ao estilo barroco buscando compreender elementos presentes nas
raízes da formação cultural brasileira. A discussão proposta não se deterá nem na figura do
índio, nem na do jesuíta, os sujeitos da História serão apresentados pelo seu feito, a Igreja.
Para isso, procurou-se perceber a incorporação da mentalidade tridentina presente no templo.
Na tentativa de estabelecer um “roteiro de viagem”, tendo como ponto de partida o objeto
localizado na Praça da Matriz, na cidade de Tomar do Geru, com o seu passado permeado
pelas figuras marcantes do período colonial brasileiro: o índio e o europeu (representado pelo
jesuíta).
Essa viagem tem por finalidade promover uma interação da História com a Vida.
Vida sim, promovendo o despertar da História da sua “necrópole” adormecida para saltar do
seu sono para o presente (FEBVRE, 1997, p.56). Na busca pela vida, tentou-se estabelecer
uma interpretação dos primórdios do espaço físico com base no acervo material edificado na
praça matriz somado à bibliografia produzida sobre o mesmo.
Na Igreja não foi encontrado o Livro de Tombo, nem referências do seu possível
paradeiro. No Arquivo Público do Estado da Bahia foram encontrados documentos referentes
à elevação da aldeia do Geru à vila, pelo corregedor Miguel Arez Lobo de Carvalho, e uma
correspondência deste ao Governo da Bahia denunciando o roubo de bens dos jesuítas após a
expulsão. Mas não há referência à construção da Igreja, nem venda dos bens da missão do
Geru.
Além dessas fontes, também existem as publicadas pela Biblioteca Nacional,
denominadas Documentos Históricos. Neles está contido o documento de compra do terreno
do Carmo pelos jesuítas, o que mais tarde seria o aldeamento do Geru. As fontes pesquisadas
para esse trabalho já foram utilizadas por outros autores que se debruçaram no estudo a
respeito da missão.

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A escassez de novas fontes não impossibilitou o desenvolvimento do estudo


porque se procurou então utilizar como fonte a arte, sendo esta uma expressão não verbal. A
contribuição proposta por essa releitura da Igreja de Nossa Senhora do Socorro é inserir a
discussão da mentalidade jesuítica na produção da arte, nesse caso na construção do templo
religioso. Algo ainda não realizado nos estudos anteriores realizados no estado de Sergipe,
mas que vem sendo debatido em recentes estudos referentes a algumas missões localizadas no
sul do país.
Para perceber a antiga aldeia Kiriri, hoje inserida numa cidade, esbarrou-se na
necessidade de repensar o atual espaço com uma organização diferente da existente no
passado, há uma outra territorialidade que difere da pensada pelos jesuítas. Mas que ainda
exerce uma funcionalidade ao passo de sua permanência. É relevante pensar que o foco da
ação jesuítica ultrapassou os limites da permanência deles no espaço. Deixando um legado
arquitetônico de suntuosa beleza, parte integrante da colonização da capitania de Sergipe Del
Rey, traço peculiar da cultura local.
Percebendo a presença jesuítica na aldeia do Geru mesclada no tripé Concílio de
Trento, Reforma Católica e Barroco, busca-se assim promover novas interpretações aos
trabalhos existentes. Serafim Leite (1945) é um ícone nos estudos referentes sobre a presença
dos jesuítas na colônia portuguesa, materializado na obra História da Companhia de Jesus
no Brasil, composta por dez volumes. A grande contribuição da referida coleção é a
sistematização de Serafim Leite em dividir a atuação dos inacianos de acordo com a
localidade em que estiveram presentes e a partir daí tecer uma minuciosa descrição desses
religiosos calcada em fontes diversas. Dentre elas destaque-se as cartas, as atas e os Livros de
Tombo. No capítulo no Tomo V, intitulado “Sergipe El-Rei”, o autor descreve os
acontecimentos envolvendo os jesuítas desde as primeiras tentativas de colonização até a
expulsão. Referente à aldeia do Geru, o autor apresenta a localização e descreve a
participação dos soldados de Cristo na construção da Igreja de Nossa Senhora do Socorro, na
organização de uma gramática e na elaboração de um catecismo Kiriri.

1. Signos e Símbolos

Os discípulos de Loyola são conhecidos pelo aperfeiçoamento das técnicas de


catequizar os índios e educar os filhos dos colonos. Junto a essas tarefas também participaram
na edificação de alguns estabelecimentos arquitetônicos. Após um período inicial em que

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desempenharam suas atribuições em missões ambulantes os padres jesuítas passam a


estabelecer missões permanentes. Para essa nova forma de organização das missões, havia a
necessidade de estabelecer residências e construir tudo o que era necessário para o êxito da
política da Companhia de Jesus. De acordo com Serafim Leite, “as artes de construção foram
as primeiras que os jesuítas exercitaram no Brasil, por necessidade local” (LEITE, 1953,
p.39).
Inicialmente, os materiais empregados nas obras eram de pouca durabilidade,
como paus, terra, barro amassado, palha, dentre outros. Com o tempo veio a necessidade de
tornar as construções “eternas” e dessa forma poder, utilizando-se da pedra e da madeira
trabalhada, catequizar os gentios. A arquitetura das igrejas era a bíblia para os iletrados e
tendo essa idéia como base remontamos o olhar sobre a igreja da antiga missão do Geru.
Ao adentrar o município de Tomar do Geru, segue-se rumo ao ponto mais alto
onde se localiza a Praça da Matriz. Na cidade nada resta da antiga missão, apenas um rastro
da presença dos jesuítas marca a localidade, a exuberante igreja. Ao lado do templo, afirmam
os atuais habitantes, havia a residência dos padres. Mesmo com a população afirmando o
possível local onde se encontrava a residência dos inacianos, não há precisão nas informações.
Principalmente por não existirem dados que informem os limites da antiga aldeia, assim como
também não foi realizado ainda um trabalho de arqueologia histórica1101.
Para compor o cenário, a Igreja está cercada por casas e diante da Praça Matriz.
Antes da chegada aos portões da igreja, encontra-se o cruzeiro, “benzendo” todos que passam
pela localidade, exercendo sua função de marcar a territorialidade cristã. De acordo com
Lúcio Costa há pontos a serem observados quando se faz um estudo relacionado com arte. Os
cinco pontos fundamentais são: o programa, a técnica, o partido, a comodulação e a
modernatura O programa diz respeito ao objetivo e a finalidade almejada com a construção.
No caso das construções jesuíticas o programa visava atender três funções: os cultos
religiosos, concentrados na igreja (coro e sacristia); o trabalho, que era o local onde se
desenvolviam as aulas e as oficinas; e por fim as residências.
No caso do templo em questão o programa analisado visa a difusão dos dogmas
cristãos através dos cultos no espaço da Igreja. Até porque, como já foi apresentado, as
residências e as oficinas da antiga missão do Geru não resistiram ao tempo. O templo
responsável pela evocação da fé atendia de forma direta os objetivos da evangelização. A
funcionalidade da Igreja como local de ligação dos fiéis aos céus ainda hoje é perceptível

1101
Observa-se que na introdução de alguns trabalhos os autores se propuseram a fazer um estudo arqueológico,
mas não conseguiram desenvolver a idéia inicial.

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pelos seus elementos de decoração. Ao adentrar na capela-mor, a composição teatral dos


objetos é capaz de confundir o real com a fantasia. É como se aquele local servisse de
passagem e estivesse mais próximo do mundo habitado por anjos, arcanjos, serafins e santos.
O referido autor enfatiza que os discípulos de Inácio de Loyola tinham como
objetivo a doutrinação e catequese, dessa forma os padres normalmente optavam pela
construção de igrejas amplas para receber um maior número de fíeis. Assim os templos
deveriam ser edificados em um espaço amplo e aberto, possivelmente um terreiro. Atualmente
quando se observa o templo jesuítico do Geru, é perceptível que o mesmo está de acordo com
a funcionalidade adotada pela dita ordem, entretanto não há informações de como estavam
organizadas no período da missão, acredita-se que com a urbanização do município o traçado
em “quadra” tenha sido mantido.
O segundo ponto a ser observado é a técnica, que consiste nos materiais e sistemas
de construção adotados. Inicialmente nas primeiras edificações encontradas no Brasil há
indícios de construções simples com materiais de pouca durabilidade. Mas logo os projetos
seguiram as instruções vindas de Roma, cujo sentido era atender a perpetuidade. Assim, as
primeiras estruturas provisórias foram substituídas por construções de caráter definitivo.
Mesmo tendo um custo inicial maior era preferível optar pela utilização de materiais duráveis
como madeira, pedra e cal.

2. O Palco da Teatralidade Barroca: Descrição dos Altares

Após a observação da técnica então se estabelece o partido, que consiste na forma


como a utilização da técnica foi produzida de acordo com o programa. No caso, os jesuítas
dispuseram as edificações em “quadra”. Na maioria das construções jesuíticas a planta baixa é
composta de uma nave.
Em sua análise o autor organiza grupos classificatórios estabelecidos com base
nas distinções das plantas, tendo formado quatro diferentes categorias. O primeiro grupo é
composto por igrejas mais singelas e rudimentares, possivelmente são as primeiras tentativas
de edificação. No segundo grupo estão igrejas onde aparecem perfeitamente diferenciadas a
nave e a capela-mor propriamente dita de largura e pé-direito menores. O terceiro grupo
mescla a forma singela e o partido das igrejas maiores do século XVII, que possuem além dos
três altares as capelas laterais.

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Os últimos pontos da analise das obras de arte, a comodulação e a modernatura,


abordam as qualidades plásticas dos monumentos. Embora os padres seguissem as formas do
estilo de arte vigente no período das construções, era comum a inovação de algumas técnicas
adaptadas às especificidades locais.
A igreja na qual está baseado este trabalho encontra-se inserida no segundo grupo,
sendo composta de três altares e dois corredores laterais. Os corredores permitem o acesso à
sacristia, os bastidores do palco e ao púlpito. Através da planta, pode-se perceber melhor a
“independência” dos corredores laterais por onde se locomovem os protagonistas da
encenação, tanto rumo à nave central, como em direção aos bastidores, à sacristia e também
ao púlpito. A Igreja possui um pavimento superior na sacristia que dá acesso ao retábulo da
capela-mor, esse local funciona como salão paroquial. No primeiro pavimento também está
localizado o coro feito de madeira e pintado com motivo floral, a mesma escada que dá acesso
ao coro segue rumo a torre da Igreja.
A fachada singela esconde a beleza avassaladora do interior, nota-se um toque de
sobriedade na parte externa da Igreja. A arquitetura é regida por linhas retas de traçado fino e
pouco expressivo, característicos do barroco joanino, marcado pela simplicidade do traçado
externo e exuberância do espaço interno. Para o observador é um puro choque de emoções: a
simplicidade da fachada contradiz com as formas e detalhes do interior. Nesse ponto as
fachadas dos templos portugueses, e como conseqüência os brasileiros, diferem das
construções italianas nas quais se percebe o abuso de concavidades e formas convexas.
Nas construções jesuíticas no Brasil é possível encontrar frontispícios de uma
porta, bem como conjuntos formados de até cinco vãos. Na Igreja de Nossa Senhora do
Socorro a entrada para o “céu” é demarcada por uma porta única1102 de madeira trabalhada no
estilo de almofada. Não existem maiores detalhes decorativos no portal da Igreja, dando uma
harmonia a sobriedade adotada na decoração da fachada. Só na parte superior do portal da
fachada há uma referência ao ano de 1688, a inscrição se encontra em algarismos romanos
MDCLXXXVIII. A data evidenciada no portal é posterior a data de compra do sítio Ilha aos
Carmelitas pelos Jesuítas (1683), ano tido como limite temporal para esse trabalho.
O interior do templo de Nossa Senhora do Socorro é composto por um conjunto
de talha dourada e policromada. O resultado alcançado representa os conceitos estéticos da
teatralidade barroca, indo além da sua função decorativa para um universo mergulhado na

1102
Convém ressaltar a existência de uma entrada lateral que dá acesso a um dos corredores.

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simbologia difundida pelos inacianos. A madeira entalhada e dourada modifica o interior do


templo, redesenhando os limites arquitetônicos.
Ao adentrar o templo, não se tem mais o forro da nave e não se sabe se havia uma
pintura, resta apenas o resplendor feito de madeira com o símbolo da Companhia de Jesus
talhado em alto relevo. O símbolo da Companhia de Jesus é o monograma I.H.S.1103 cercado
por um resplendor. Ele representa o nome de Jesus escrito numa forma grega abreviada, e
originalmente nada tinha que ver com as palavras latinas Jesus Hominum Salvatori (Jesus,
Salvador dos Homens). Esse objeto de decoração ilumina o espaço e lança o olhar para o
céu. Parece um sol, transmitindo aos fiéis as “bênçãos” de Deus e anunciando o inicio de uma
nova época para os pagãos agora convertidos. Na igreja do Colégio Jesuíta da Bahia em
Salvador, esse símbolo também foi encontrado sendo assim descrito por Campello:

(...) Este espaço é coberto por um magnífico forro artesoado, constituído em


madeira como uma falsa abóbada de berço – na mais rica tradição do
artesanato português desenvolvido com a indústria naval - transmitindo ao
recinto uma magnífica suntuosidade. (CAMPELLO, 2001, p.115)

Nesse palco central que é a nave, onde ocorre a encenação há também o púlpito
que proporciona a interação dos padres com os índios. As missas tinham uma dinâmica maior,
alternando a visão dos fieis pelo cenário que compõe a nave. O púlpito apresenta elementos
da arte chinesa, o que é comum de se encontrar tanto nas igrejas da Bahia como em Minas
Gerais, e sua função era receber o padre que faria uso da palavra para os fiéis.
Após a observação da singela fachada vamos deter o olhar na exuberância da
capela-mor e dos retábulos laterais. Visto o sol que reluz as bênçãos celestiais, abre-se na
única nave que compõe a Igreja o caminho para o palco onde é realizada toda a encenação da
catequese cristã. Os corredores laterais são utilizados para os padres se deslocarem, sem
serem notados pelos gentios, da sacristia para o coro ou para o púlpito. O partido retangular
facilitava a adequação da Igreja a um teatro, onde o palco é representado pela capela-mor, a
platéia é distribuída pela nave única e os bastidores correspondem à sacristia.
O espaço sagrado do templo é composto pelo altar-mor e altares laterais. A
harmonia dos detalhes que compõem os altares laterais é majestosa, há uma sincronia nos
elementos decorativos que transcende a funcionalidade, para promover apelo ao recinto,
mesclados aos valores simbólicos. A talha foi cravejada por uma decoração fitomórfica

1103
O I.H.S. foi popularizado pela primeira vez por São Bernardino de Siena, no começo do século XVI e,
posteriormente, adotado pelos jesuítas.

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(designação aplicada à peça ou ornato com forma vegetal), com elementos de folhas, flores e
frutos distribuídos de forma simétrica. O fruto encontrado na igreja do aldeamento do Geru é
a uva, localizada principalmente no altar-mor, junto às imagens dos santos: Inácio de Loyola e
Francisco Xavier. É perceptível a incorporação de elementos do rococó, junto à decoração
fitomórfica, onde são encontradas características de rocalhas, cada objeto apresentado na talha
corresponde a um significado. De acordo com Costa:

(...) no caso da árvore, como símbolo de vida humana; das ervas, como
brevidade; das espigas, como sinal de fartura; das flores, como símbolos de
esperança; e dos frutos, representativos de realizações. Além de significados
genéricos, cada elemento ornamental possui também um conteúdo
simbólico. Assim inúmeros casos particulares de ornatos adquirirão um
interesse especial, pelo qual se interpretará o cedro como a excelência, o
cipreste como o incorruptível e o plátano como alteza. Entre as flores, os
jacintos serão marcas de sabedoria; os narcisos, de gentileza; o lírio, de
pureza. Entre as frutas, a maçã terá o significado de discórdia; o pêssego, de
intimidade; e a pêra, de perfeição. (TIRAPELI, 2001, p.64)

O fuste das colunas robustas é também todo decorado com motivo de rocaille
(decoração feita à base de motivos concheados). Essa decoração difere dos fustes encontrados
na Bahia, evidenciando a afirmativa de Lucio Costa de que a decoração desse templo é um
estilo à parte. Outra inovação é o aparecimento dos culs-de-lampe denominação técnica que
em português foi adaptada à palavra peanha, um pequeno pedestal que sustenta uma imagem.
Os culs-de-lampe ficam entre as colunas e tem a função de receber as imagens que
anteriormente eram colocadas nos ninchos. Estes objetos estão localizados tanto nos altares
laterais (dois em cada altar) como na capela-mor (também possui dois). Em todo o templo são
encontrados seis culs-de-lampe.
No alto dos altares laterais chama a atenção à figura de dois anjinhos. Ambos com
uma corneta nas mãos como que anunciando o início da missa e o contato com os céus. O
interessante é o semblante deles que muito lembra a figura de um índio. Podemos imaginar
que através da intenção dos missionários de conduzir os indígenas à fé, foi permitida certa
autonomia aos artífices para incorporar elementos dos gentios como forma de aproximação
estética. A presença da figura do indígena é também evidenciada por Lúcio Costa:

Entretanto, é num dos altares laterais da igreja do antigo Colégio de Campos


que a presença do nosso índio se manifesta, não apenas na maneira mais ou
menos tosca de fazer ou de interpretar os modelos europeus usuais, como é o
caso de Belém do Pará, ou mesmo, em parte, os de Voturuna, São Roque,

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Reis Magos e Geru, mas no próprio risco e na invenção do promenor, senão


mesmo até na técnica da talha (COSTA, 1997, p.138).

O arco cruzeiro (ou arco triunfal) é decorado com sete caras de anjo, simbolizando
o amor divino. Para o cristianismo a perfeição é representada pelo número sete, assim como
Deus criou o mundo em sete dias. Os rostinhos estão distribuídos em sincronia com os
detalhes localizados em cima deles, dois dos anjos estão ligados aos altares laterais por uma
decoração fitomórfica. O arco cruzeiro também apresenta como motivo de decoração flores
emaranhadas de espinhos. Os emaranhados ásperos lembravam a consciência da dor e do
pecado .
Depois da passagem pelo arco triunfal nos deparamos com o ápice do cenário do
palco, a capela-mor. Lúcio Costa evidencia que no final do século XVII ocorreu uma
mudança na antiga trama regular dos retábulos para dá lugar a uma ornamentação opulenta.
Há o afastamento das colunas que cedem o espaço para a inserção de imagens, os arcos dão
passagem para o dossel. Nota-se um aumento na “densidade demográfica da população
celestial” que povoa o altar e junto a isso se multiplicam os florões.
O frontal do altar central é muito parecido com o dos retábulos laterais. A
distribuição do arco é semelhante, o que difere é a decoração do centro. Enquanto nos
retábulos há uma flor centralizando as folhas, no altar mor existe um ponto vazio. Percebe-se
que os adornos apresentam também o rocaille, os ornatos fitomórficos, bem como a figura dos
atlantes. No altar central são encontrados seis atlantes, dois deles atrás do capitel.
O dossel é arrematado com uma ornamentação de madeira folheada recoberta de
tapeçaria sobre tronos, que resguarda o altar. Na verdade parece uma cortina que se abre para
apresentar a personagem principal, nesse caso a imagem de Nossa Senhora do Socorro. O
dossel é segurado, em cada lado, por uma figura que apóia seu pé na cabeça de um anjo.
Apresentam-se vestindo uma saia na cor goiaba, uma blusa amarela e na cabeça um adorno
dourado, eles lembram à postura dos soldados das legiões do Império romano. Entretanto, é
possível imaginar que o saiote seja feito de penas e apesar da postura rígida a representação se
assemelha à figura do indígena. Dessa forma, ao inserir elementos da realidade local na
decoração do templo, os padres estavam promovendo a aproximação dos símbolos presentes
na cultura do gentio mesclados aos dogmas cristãos, para dessa forma facilitar a catequese. A
imagem localizada a direita apresenta um defeito na perna direita que já estava prsente antes
da restauração da Igreja no período de 1989 a 1991.

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Observa-se que atrás do dossel existem dois atlantes que seguram a ornamentação
interna. Atrás do dossel tem um arco decorado com o rosto de quatro anjos. O forro do
camarim tem a ornamentação semelhante ao forro da capela-mor, composto também com seis
folhas acantos. No camarim está localizado o trono. Trono sim, digno de uma rainha, a
soberana do templo, Nossa Senhora do Socorro. O trono tem três andares, no primeiro se
percebe uma semelhança com o adorno do culs-de-lampe. Já no segundo andar, o motivo
adotado é o fitomórfico e no último o rosto de um anjo.
O corpo de cristo se encontra num lindo sacrário de ouro, onde está esculpido o
Agnus Dei . O sacrário é um pequeno cofre colocado sobre o altar para guardar a custódia. A
sua decoração muito se assemelha ao adorno utilizados nos culs-de-lampe, com dois anjinhos
que representam o amor divino segurando uma cortina, sobre ramos de flores.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período colonial brasileiro é marcado pelas concepções européias tanto no


campo político, econômico e religioso. Após a conquista do Novo Mundo houve a
necessidade de “construir” uma sociedade civilizada, pautada nos dogmas cristãos. Desse
modo, esbarrando com a forma de organização dos gentios, para tentar solucionar o problema
Roma estrutura um plano de catequese para diversas ordens religiosas. Dentre esses
missionários, uma nova ordem com caráter militante são os principais representantes dos
ideais propostos no Concílio de Trento, os irmãos de Jesus popularmente conhecidos como
jesuítas.
Nessa nova empreitada de construção de uma civilização no “paraíso”
mergulhado no pecado, os padres necessitam edificar sua moradia, bem como os templos.
Como o ser humano produz o que está de acordo com seus interesses e suas concepções
ideológicas, muito se pode identificar da mentalidade presente na sociedade colonial através
do legado arquitetônico. Fundamentado nessa tese o presente trabalho buscou os elementos de
difusão da fé incorporados aos interesses da Igreja difundidos após o Concílio de Trento.
Apesar da manutenção do templo que registra a presença dos jesuítas no
município de Tomar do Geru, há a necessidade de um estudo arqueológico na região. O
trabalho de arqueologia histórica poderia apresentar os limites da antiga aldeia e a localização
de outras construções. Poucos estudos têm sido feitos sobre esse aldeamento o que dificulta

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uma analise mais detalhada devido a falta de fontes escritas. E os trabalhos que tinham como
objetivo de fazer um estudo de arqueologia histórica não o fizeram.
A igreja é um bem cultural inserida nos livros de Tombo Federal, no Livro
Histórico em 20 de março de 1943 com a inscrição nº 196 e no Livro Belas Artes no mesmo
dia com a inscrição 262-A. O tombamento inclui todo o seu acervo. Desde o tombamento em
1943, a Igreja só passou por uma restauração no período de 1989 a 1991, época em que foi
produzido um catálogo sobre a obra de restauração realizada no templo de devoção a Nossa
Senhora do Socorro. Entretanto, o monumento não está passando por uma vistoria e apresenta
algumas infiltrações, velas foram colocadas no lavabo, toalhas de TNT são coladas sob as
credências. A população precisa contar com um programa com a finalidade de despertar o
interesse e a responsabilidade pela manutenção do templo.

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“EM COSME E DAMIÃO EU POSSO CONFIAR”: REPRESENTAÇÕES


DO CATOLICISMO POPULAR NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS.
GOVERNADOR MANGABEIRA– RECÔNCAVO SUL DA BAHIA (1950-
1970)

Alaíze dos Santos Conceição - UNEB


alaizesantos@yahoo.com.br;alaizesantos@hotmail.com.

A comunicação presente visa refletir sobre alguns elementos que permeiam o universo
religioso das Rezadeiras do município de Governador Mangabeira, levando em consideração
a presença do catolicismo (re) significado, tido como popular, um misto das contribuições do
catolicismo europeu associado a contribuições das populações afro-brasileiras. Assim,
pretende-se investigar de que maneira o apego religioso pôde contribuir para pensarmos na
formação identitária das Rezadeiras.

Palavras-chave: Rezadeiras; Catolicismo popular; religiosidade.

.
INTRODUÇÃO:

1104
Pesquisadores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Gilberto Freyre, desde
o início do século XX já investigavam a formação cultural brasileira e mais tarde chegaram a
conclusão que esta descendia especialmente da influência de três povos: brancos, índios e
negros. Tais populações experimentaram um mesmo “espaço” territorial, desde o Brasil
colonial, e puderam a partir daí externalizar práticas culturais provenientes de suas diferentes
concepções de mundo.
Os portugueses logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos elementos
culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia. Contudo, na prática, o que se verificou foram outros

1104
Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”, Roger Bastide em “As religiões Africanas no Brasil” e
Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala já se dispunham a historiar as raízes culturais brasileiras.

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acontecimentos, os portugueses se depararam com demonstrações de resistência indígena e


posteriormente resistência africana ao ignorar as diversas concepções culturais já existentes.
Os ameríndios e africanos possuíam concepções culturais que zelavam o mundo
natural e as diversas entidades sobrenaturais, o que se contrapunha ao mundo pré-moldado e
ortodoxo ao qual os lusitanos faziam parte. A importância que diversos elementos advindos
da natureza possuíam, sobretudo nas religiões tradicionais africanas, recebiam interpretações
depreciativas na concepção portuguesa acarretando diversos conflitos. O sociólogo francês,
pesquisador das religiões africanas, Roger Bastide assinalou com bastante precisão tal
fenômeno: “O branco não podendo compreender uma religião tão diferente da sua, julgava-a ‘
demoníaca’ já que não era cristã”. (BASTIDE, 1985, p.128).
Em meio às tentativas de sufocar as celebrações do mundo africano, os
portugueses elaboraram estratégias para manter o controle daqueles cultos, inclusive em
diversos momentos os africanos percebendo tal intencionalidade também se faziam de
“rogados” e tiravam bom proveito da situação. O processo de adoração aos santos católicos e
virgens negras e a (re) significação implantada pelos africanos, podem ser considerados como
nítido exemplo da (re) interpretação da população afro-brasileira na tentativa de manter vivo
elementos integrantes de suas práticas culturais.

Esses fatores bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens negras
foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da cristianização,
e que foi considerado pelo senhor branco como meio de controle social, um
instrumento de submissão para o escravo. (BASTIDE, 1985, p.163).

Os portugueses acreditavam que podiam controlar os passos dos africanos, e estes


– por sua vez – se utilizavam dessas brechas para preservar as diversas celebrações de seus
guias e orixás que de maneira inteligente puderam servir nas “associações” aos santos
católicos, através das trocas culturais, servindo para manter a ordem e as aparências cobradas
pelos portugueses.
O apego ao mundo natural e as divindades sobrenaturais, faziam as populações
negras não aceitarem o catolicismo da forma ortodoxa e pré-moldada que os portugueses
insistiam em representar, mas em meio a presença marcante desses diversos elementos
culturais poderia ter nascido um catolicismo mais “popular” ligado às camadas afro-
brasileiras da população. Um misto do mundo indígena, negro e português.
Em se tratando de Recôncavo sul baiano, podemos identificar à presença marcante
desse “emaranhado de crenças, saberes e práticas em que ritos originários dos índios, dos

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negros se interpenetraram ao catolicismo e às tradições mágicas religiosas européias,


aumentando a riqueza e a complexidade de tais práticas” (LESSA SANTOS, 2005, p.75). Este
é o caso, por exemplo, das rezadeiras, curandeiros, raizeiros, mandigeiros, dentre outros que
ainda hoje habitam o Recôncavo e colocam em prática o exercício das benzeções, curas ou
receituários provenientes dessa longa tradição.
É considerando justamente essa heterogeneidade cultural que se faz presente em
diversos espaços do país, que o artigo pretende se debruçar, para tanto se faz necessário levar
em consideração as diversas contribuições desses povos e pensar de que forma diversas
práticas culturais puderam contribuir na formação identitária das rezadeiras do Recôncavo sul
baiano.

Catolicismo Popular

Desde a colonização brasileira o catolicismo foi declarado religião oficial, não


admitindo, portanto, a existência, de qualquer outra prática religiosa. O catolicismo que se
implantaria no Brasil procuraria se caracterizar como o catolicismo presente no mundo
europeu, uma religião ortodoxa sem grandes flexibilidades.
Contudo, a presença dos elementos religiosos dos ameríndios, juntamente com as
concepções religiosas dos africanos, proporcionaram a formação de um outro catolicismo
paralelo aquele desenvolvido na Europa: o catolicismo popular. Entende-se por catolicismo
popular:

O conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não


dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiés. Concretamente chamamos provisoriamente ‘catolicismo popular’
as representações e práticas relativas ao culto dos santos e à transação com a
natureza e não os sacramentos e a catequese formal (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985, p.113).

As celebrações vindas do catolicismo popular admitem a intercessão de outros


indivíduos que não precisam ser necessariamente padres ou representantes da igreja e
apresenta grande aproximação com os elementos da natureza como a utilização de plantas,
banhos e chás. Tais práticas, muito tem em comum com a religiosidade indígena e afro-
brasileira.
No catolicismo popular, existe um apego muito grande aos santos, cujas
representações transcendem ao mundo material. São seres dotados de poderes sobrenaturais,

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capazes de exercer influências sobre o mundo natural e espiritual (RIBEIRO OLIVEIRA,


1985). O catolicismo popular possibilita a veneração de diversos santos: os canonizados
oficialmente, os santos populares e os santos locais que possuem relativa significância em
espaços limitados, haja vista o não reconhecimento da igreja.

O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito
menos suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa
o possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a
necessidade de intercessão de um membro religioso. Os santos são
acessíveis a todos os fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).

As rezadeiras demonstraram uma grande afeição a figura dos santos, fazendo


questão de demonstrar de forma prática sua eficácia e revelaram possíveis intervenções que
determinados santos puderam fazer em suas vidas.
Elas são consideradas sujeitas históricas que estão inseridas no âmbito do
catolicismo popular e pratica diversos ensinamentos herdados desse catolicismo alternativo,
ajudando a preservá-lo. A realização de uma súplica religiosa, por exemplo, intercedida pela
figura da rezadeira, tende a possibilitar novos vínculos de propagação da fé quebrando a visão
conservadora dos pedidos serem sempre intercedidos por membros eclesiásticos, a saber, do
padre. Veja o depoimento: Eu tô viva abaixo de Deus , com a força e a fé, eu já sofri! Já cuidei de
tanta gente... Nossa alegria é nossa oração, vai pra igreja, tudo na igreja, mas a gente pode fazer
nossas oração dentro de casa 1105.
A srª Celina1106 embora tenha tido uma vida muito ativa ao freqüentar a igreja
católica, mesmo assim reconheceu a importância e eficácia da reza, independente do espaço
que é executada.
Ainda hoje, a rezadeira Celina possui um altar em sua casa com diversos santos:
Cosme & Damião, Rita de Cássia, São Pedro, Santo Antônio, São José, Nossa Senhora
Aparecida, Santo Expedito etc e ela insiste em dizer que faz suas orações para todos eles e por
isso se sente muito abençoada e protegida, mesmo que não possa freqüentar a igreja como
fazia antes. Segundo ele, mais importante que está sempre presente nas celebrações da igreja,
é estar em dias com as orações.
As rezadeiras que vivenciam esta atmosfera de crença parecem não atentar para a
existência dessas duas modalidades de catolicismo, o popular e o oficial, simplesmente

1105
Srª Celina Neris, charuteira aposentada e rezadeira. Apelidada de Dona Celininha.
1106
Depoimento da srª Celininha.

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comungam desses dois universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das
concepções de mundo presentes entre elas. A rezadeira Neném1107 contribuiu sobre o assunto
com o depoimento:

Sou católica. Credito em tudo que é passado em minha igreja eu credito.


Quando não vou lá em baixo, eu vou aqui ó (fazendo menção a igreja de
São Benedito). Tanta igreja, eu vou no Gravatá , vou no Bonsucesso. Dia de
Domingo quando não tô com as pernas cansadas vou lá fazer visita dele.
Quando to em Salvador, eu vou no Bonfim, aquele do Cristo Redentor é
perto. Aquela que tem junto da praia,... Conceição da Praia é tudo perto da
casa de meus filhos 1108.

Ao mencionar tão enfaticamente sua atuação enquanto católica, a srª Neném se


demonstrou bastante orgulhosa pela escolha feita, fazendo questão de elencar os diversos
espaços religiosos que costuma freqüentar.
Contudo, nesse campo de crenças religiosas (re) significadas por negros, índios e
europeus, as rezadeiras, trazem em seu cotidiano amostras desses imbricamentos e elementos
presentes na natureza como as ervas, banhos e chás, que foram utilizados também no intuito
de levar tranqüilidade àqueles que precisavam. Pensar no encontro de culturas diferenciadas,
requer que consideremos as trocas culturais existentes no processo, ao tempo em que devemos
atentar para esses empréstimos recíprocos como possibilidade de enriquecer as práticas
culturais dos povos, muitas vezes contribuindo para o surgimento de concepções culturais
híbridas, como bem assinalou o historiador Peter Burke (2003).
Quando levado em consideração o imbricamento cultural religioso, a rezadeira
Merú1109 assim que perguntada acerca de sua formação religiosa relatou:Sou católica, tenho
devoção a santo, Santo Antônio. Sete flecha, D. Oxum, a princesa do mar, todos orixá 1110.
O depoimento deixa evidente essa interpenetração cultural, pois a rezadeira se
autodenomina católica, justamente pelo caráter flexível que concebe a religião, fruto,
sobretudo da incorporação das diversas concepções culturais. A fluidez a qual a srª Merú
assinala com relação aos seus devotos “Santo Antônio”, santo reconhecido pela igreja
católica, Sete flecha, o caboclo e Oxum, orixá das religiões tradicionais africanas ou do
Candomblé brasileiro, nos leva a acreditar que o “sincretismo é fluído e móvel, não é rígido e

1107
Srª Francisca Santos Oliveira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de Dona Neném.
1108
Depoimento da srª Neném.
1109
Srª Aumerinda Conceição Rodrigues, lavradora e charuteira em exercício da profissão. Apelidada na
comunidade como dona Merú.
1110
Depoimento da srª. Merú já citado.

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nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural defendida por Bastide
(1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do
orixá do Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões
tradicionais africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário
da cultura ocidental, não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando
novos símbolos e ritos. Portanto, nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser
católica e ao mesmo tempo resguardar práticas dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum
problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São
Benedito. Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos
seus filhos. As súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de
angústia, tornou-se de fundamental importância para alcançar a graça:

Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher
,...e tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha
amiga ai disse: Isso não foi a toa( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá
em Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que
me valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito
qui quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São
Benedito que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda
pra fora , pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto
vida eu tiver. Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou
lá e disse: Seu Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui
mais não. O senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a
fazenda quem vai tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz,
quem quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem
quem me faça sair!1111

A narrativa de srª Neném assinala com precisão a eficácia da intervenção dos


santos protetores, devoção esta de suma importância para o retorno do marido para casa.
Segundo ela, as súplicas associadas à fé de alcançar o pedido desejado bastaram para ser
atendida. Nesse caso, insinua que resistiu ao apelo da vizinha que queria levá-la para uma
casa de candomblé e resolver o problema na cidade de Cachoeira, cidade esta bastante
conhecida pela quantidade de terreiros existentes. O depoimento também nos possibilita

1111
Depoimento da srª. Neném já citado.

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compreender a veneração aos santos e virgens negras ao qual Bastide faz alusão em seu livro:
As religiões Africanas no Brasil (1985).
Desse modo, nota-se que uma vida intercedida por santos protetores tende a
assegurar a estabilidade cotidiana das rezadeiras, nesse caso, os santos equivalem a
personificação das forças sagradas entre os seres humanos.

Devoção aos Santos Gêmeos: São Cosme e Damião.

São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”1112, os santos
foram “associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo
oficial venerar a figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a
praticar a medicina caridosa, os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos
cultos afro-brasileiros, e é justamente dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela
maior parte de seus devotos: os santos meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam
doces, balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional
caruru de sete meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século
XVI, sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se
tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e
aos poucos se identificando com os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo
nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de
uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a
forma pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos
cultos afro-brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das
trocas culturais. As rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função
da presença marcante dos elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram
certo menosprezo em reconhecer as possíveis origens da benzeção, bem como se

1112
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada
em relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil,
desde a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões,
sobretudo por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico,
tendo em vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos
africanos.

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demonstraram um tanto quanto taxativas ao relegar as religiões que descendem dos africanos.
Nesse sentido, a srª Celina disse que:

Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do Candomblé!
Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente tem que escolher
um caminho só!1113

A fala deixa transparecer uma ligeira recusa da rezadeira Celininha a manter


relações de aproximações com o Candomblé, o que segundo ela desvia por completo da opção
religiosa que faz parte: o mundo católico. Ela admite relativas aproximações com os
freqüentadores dos cultos afro-brasileiros, entretanto está segura do “caminho” que escolheu.
Assim como Celininha, outras rezadeiras se demonstraram reticentes aos cultos
afro-brasileiros, sobretudo quando interrogadas se conheciam ou acreditavam na sua eficácia.
A rezadeira Teka1114 demonstrou opinião parecida com a da srª Celininha acerca dos cultos
afro-brasileiros:

Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a
frente. O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e
não essas coisas!1115

Nota-se a repulsa da srª Teka ao falar do Candomblé, entretanto não devemos


esquecer que essa visão preconceituosa acerca dos cultos afro-brasileiros foi historicamente
construída como mais uma estratégia do mundo europeu em sempre associar a cultura negra a
atributos pejorativos. Prova desse processo é justamente o repúdio que determinadas pessoas
atribuem ao Candomblé sem ao menos visualizar alguns elementos básicos que o compõe.
Trata-se de estereótipos erguidos e que sobrevivem até hoje.
Ora, apesar de algumas rezadeiras possuírem concepções conservadoras acerca
dos cultos afro-brasileiros, todas elas demonstraram grande afinidade ao São Cosme e Damião
e os festejos existentes nas celebrações dos santos gêmeos. É justamente esta “harmonia” e
devoção que passaremos a analisar. São Cosme e Damião são tão presentes na vida das
rezadeiras que careceram de atenção especial, os santos gêmeos conseguiram adentrar nesses
espaços da cultura popular com relativa facilidade: O São Cosme era de meu pai, mas eu era uma

1113
Depoimento da srª. Celininha.
1114
Srª Maria Custódia Cerqueira, lavradora aposentada e rezadeira. Apelidada na comunidade de dona Teka.
1115
Depoimento da srª. Teka.

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filha tão amada de pai que ele já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,...1116
A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo
de seu nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o
santo era de cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e
proteção entre eles, membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos
gêmeos existiam de maneira incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de
favores. O São Cosme deveria proteger a família da srª Celininha independente das
solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos
e razões. A rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela
saúde de suas netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança
com os santos. No caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de
“abrir seus caminhos” e ter mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira
Neném:

O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete ano
eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos, morreu
também,... a vida miorou, miorou sim!1117

Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram
obtidas, assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que
logo eles puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª
Neném mencionou a srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que
dava orientações espirituais.
As rezadeiras concebiam a existência de um vínculo eterno entre elas, devotas e o
santo, não podendo haver o rompimento da aliança firmada, pois se caso viesse a acontecer,
as mesmas estariam sujeitas a possíveis cobranças.
Nessa atmosfera de devoção, a rezadeira Merú narrou uma determinada situação
em sua vida que a remeteu a identificar como possível “castigo” do santo, ao ter sido
momentaneamente ignorado:

1116
Depoimento da srª. Celininha.
1117
Depoimento da srª. Neném.

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Eu adoeci, ai o médico Dr. Valdi mandou buscar uma moça em Conceição


de Feira que não sarava a doença de jeito nenhum. Fiquei cega e alejada, ai a
doença não sarava de jeito nenhum, o braço não saia, ficou alejado! Ai
vortou , ai ele mandou buscar essa, essa mandigueira quando ela chegou
passou os banhos. Com esses banhos fiquei boa, ai acorde, ai pronto acordê!
Disso pra cá, eu não queria cuidar peguei sofrendo muito, cuido! Agora só
deixo quando morrer! E digo a minhas irmã se tiver qualquer... vá pro
médico não dá jeito porque tem muito médico de espiritismo que já avisa
logo: procure uma folhinha pra tomar um banho porque sua doença não é
aqui. Pois é peguei a dá o caruru com 17 ano, quando parei adoeci!1118

A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São
Cosme e Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo
firmado. Segundo ela, só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença,
seguida da interferência de outras pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a
curiosa situação em que um médico dá orientações à paciente para que se sirva dos serviços
de uma mandingueira no combate da doença. Tal situação nos remete a pensar que o Dr.
Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-brasileiros, inclusive reconhecendo
as limitações que a medicina oficial possui em determinadas “doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os
maus fluídos que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não
conseguia encontrar no plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou
explicações científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por
fim recorreu a uma explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam
dado nos últimos tempos acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú,
relembrou possíveis falhas em suas condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação
firmada entre ela e São Cosme e Damião: a oferta do caruru todos os anos. Assim, o
firmamento do vínculo entre os santos gêmeos e a rezadeira e o possível rompimento,
acarretou uma situação catastrófica na qual ela perdeu os movimentos do corpo.
Nesse sentido, acreditando que o Recôncavo apresenta traços das diversas
concepções culturais do mundo africano, é possível entender a situação de instabilidade que
fez parte da vida da srª Merú a partir da visão de mundo de alguns povos africanos. Na África,
acredita-se que a estabilidade da vida é regida por um equilíbrio de forças, seria a ação
constante do indivíduo com o mundo terreno que irá ser fator determinante para manter o
equilíbrio nas relações que executam. (HAMPATÈ BÂ, 1982).

1118
Depoimento da srª. Merú já citado.

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Uma vez violando as forças que regem o universo através das relações de doação
e devoção, haveria a perturbação da organização do indivíduo. Nesse caso, a srª Merú quebrou
o equilíbrio existente entre ela e os santos gêmeos, o qual possuía um vínculo de oferta e
proteção, acarretando a desordem e o desequilíbrio na saúde.
No imaginário das populações afro-brasileiras, Cosme e Damião são entendidos
como santos, cuja impulsividade e vaidade rememoram as crianças, portanto os santos
meninos não gostam de serem contrariados e se caso alguém prometer algo para eles devem
cumprir o mais rápido possível, pois não admite interrupções nas ofertas. Notamos que apesar
de serem enxergados como santos católicos, São Cosme e Damião são agradados e venerados
como os Ibejís do Candomblé.
Ora, Cosme e Damião santos católicos em nada tem a ver com os Ibejís do
Candomblé que gostam de doces, balas e caruru, afinal tratou-se de médicos nascidos na
Arábia, cristãos, portanto seus agrados no mínimo se distanciariam de todos esses adorados
pelos Ibejís. Na verdade, sabe-se que tais práticas de agrado ao Cosme e Damião católico, da
mesma maneira que os orixás do Candomblé, tiveram seu surgimento a partir da
interpenetração cultural advinda do Brasil colonial. (LIMA, 2005).
Assim, os orixás africanos foram associados aos santos católicos havendo a
“correspondência” dos Ibejís ao santos Cosme e Damião. Contudo, os agrados costumeiros
ofertados aos Ibejís eram direcionados da mesma forma aos santos católicos, prática esta que
passou a ser executada pelos diversos grupos sociais e que perdura na atualidade.
Nesse contexto, há quem acredite fielmente que a forma de agradar o Cosme e
Damião seja ofertando doces e o caruru. Mas, se formos tomar como ponto de partida a
distribuição do caruru, por exemplo, de nada mantêm aproximações com a cultura européia,
muito menos é um prato típico da Arábia, onde nasceram os santos católicos. Do mesmo
modo, pensar na simbologia do caruru e os elementos que o compõe, a saber, do azeite-de-
dendê encontraremos marcas do “mundo africano”, que por hora encontra-se imbricado nos
festejos aos santos gêmeos.a
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos
preocupar em não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e
complexo, podendo abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo
participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos
defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não
devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada,

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pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos
gêmeos trazem elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma
empreitada difícil de se resolver, contudo dentro desse universo é possível identificar
elementos presentes nessas duas tendências culturais. Ora a rezadeira tida como católica
recorre a uma médium – denominação mais amena, para muitas depoentes, que curandeira –
ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.

FONTES ORAIS:

Aumerinda Conceição Rodrigues. Apelido D. Merú. 59 anos de idade. Lavradora e charuteira


em exercício da profissão. Rezadeira, nascida no Município de Governador Mangabeira,
atualmente reside nesse mesmo município. Data de nascimento: 20/07/1946. Entrevista em
11/07/2007.

Celina de Jesus Neris. Apelido D. Celininha. 84 anos de idade. Charuteira aposentada.


Rezadeira, nascida na cidade de Bonfim de Feira de Santana. Atualmente reside no Município
de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 15/05/1923. Entrevista em 06/12/2006 e
10/07/2007.

Francisca Santos Oliveira. Apelido D. Neném. 73 anos de idade. Lavradora aposentada.


Rezadeira, nascida em Laranjeiras, zona rural do Município de Governador Mangabeira.
Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 08/02/1934.
Entrevista em 26/04/2007 e 14/07/2007.

Maria Custódia Cerqueira da Silva. Apelido D. Teka. 73 anos de idade. Lavradora


aposentada. Rezadeira, nascida em Queimadas, zona rural do Município de Governador
Mangabeira. Atualmente reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento:
24/07/1934.Entrevista em 29/04/2007.

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SOBRAL: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE NA DÉCADA DE TRINTA

Luciana de Moura Ferreira – UCE


luci_ana_moura@hotmail.com

Pensar a cidade é remeter-se ao homem e seus desejos de transformação e controle da


natureza. Reconhecendo que a cidade é fruto do orgulho dos homens pensamos ser as
fotografias uma forma de compreender a transformação de Sobral na década de trinta do
século passado, entendendo como estas eram representadas por meio das fotografias e quais o
ideal de cidade que nelas estava inscrito. Neste sentido as fotografias serão o fio condutor do
desenvolvimento desta pesquisa a qual irá suprir um “certo” silencio historiográfico sobre os
sentimentos que moviam estas transformações na cidade e perceber os poderes que a elas
estavam ligados, afinal estas fotografias são frutos de uma necessidade de divulgação destas
transformações que elevariam a cidade ao titulo de “A princesa do Norte”.

Palavras-chave: Representação, Fotografias, Cidade.

Cidade é uma palavra usual em nosso cotidiano, nós a utilizamos de diversas


formas, ora como loccus de saber e progresso e em outras para apontar as ausências, ou seja
rememorar com saudosismo um tempo em que não havia na cidade tantos perigos e injustiças.
Em meio a estas idéias sobre a relação cidade das lembranças e cidade de antigamente, nos
deparamos com a idéia de ser a cidade fruto do desejo do homem, loccus de experiências que
absorvem e refletem em suas transformações e permanências nossos pensamentos, ritmos e
afetos. Moramos na cidade e nela resignificamos cada um de seus aspectos no intuito de
controlar os sentimentos que ela nos incita, enfim como afirma Silva Filho 1119: “Moramos na
cidade, ao mesmo tempo ela habita em nós”.
Vivemos na cidade, ocupamos seus espaços é lá que a nossa vida acontece,
interferimos na cidade e ela interfere em nossas vidas através de nossas escolhas que refletem
sobre a transformação da cidade afinal a cidade é o que dela fazem os que nela habitam, e o
habitat nada mais é que o reflexo de seus moradores.
Pensando a cidade como um emaranhado de emoções que refletem o cotidiano e
as atitudes de seus habitantes acreditamos ser possível entender a cidade de Sobral na década

1119
Imagens De Fortaleza. Editora Museu do Ceará, 2006.

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de trinta do século passado como um espaço em transformação onde os homens irão fazer uso
de seus poderes e desejos para “dar” a Sobral o titulo de a Princesinha do Norte.
Neste sentido faremos uso de uma serie de vinte fotografias do período, década de
trinta do século passado, que se encontram sob a guarda da Secretaria de cultura de Sobral,
digitalizadas em CD sob o titulo acervo arquitetônico de Sobral. As fotografias utilizadas
nesta pesquisa apresentam os espaços da cidade que eram transformados ou construídos neste
período, entre estes espaços podemos destacar o Mercado Público, Igreja da Sé, Escolas e
praças, além de tantos outros por onde a transformação e o olho do homem pudessem chegar.
As fotografias aqui utilizadas associadas a documentos e jornais da época poderão
nos apresentar uma das diversas possibilidades de reconstituição da cidade, no entanto no
desenrolar desta pesquisa pensamos ainda utilizá-las como objeto de memória, afinal se as
pensarmos como reflexo do momento acontecido e como a interpretação daquele momento
por seu produtor damos a ela um sentido atemporal e produtora de memória , afinal quando
compreendemos fotografia como representação pensamos como Pesavento1120, quando a
mesma considera que representação é trazer de volta um ausente, é reimaginar o já imaginado,
afinal o ato de lembrar é imbuído de sentimentos e memórias que são desvelados a partir de
um objeto desencadeador destas memória, nesta pesquisa este objeto serão as fotografias.
Pensando as fotografias como representação acreditamos serem elas portadoras de
conhecimentos latentes, conhecimentos estes que podem ser diversos daqueles do memento
da sua produção afinal pensar uma fotografia produzida na década de trinta e a mesma
fotografia olhada no século vinte é perceber um espaço temporal que irá ocasionar novas
interpretações diferentes daquelas do período de sua produção.
Para Koury1121, “a fotografia provoca no olhar uma síntese da memória pessoal”,
ora quando observamos uma fotografia a memória sobre o objeto representado vem a tona
desencadeando redes de significados que resignificam o ato de observar o objeto
representado.
Seguindo por este raciocínio iremos estudar a cidade de Sobral e a transformação
que sofreu procurando compreender o processo de urbanização e progresso que passou
entendendo as causas e conseqüências deste processo inclusive a constituição do imaginário
local sobre Dom José. Sabemos dos desafios de trabalhar com imagens ainda mais quando
estas trazem silêncios sobre si e sua produção, no entanto apresentaremos aqui uma das

1120
VER: PESAVENTO. Sandra Jathay. O imaginário da cidade: Visões literárias do Urbano – Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre. 2ª edição. Porto Alegre: Ed.:Universidade UFRGS,2002.
1121
KOURY. Mauro G. Pinheiro, Fotografia como objeto de memória: Produto técnico e suporte ideológico na
conformação do homem ocidental. In: Domínios da Imagem. Londrina, anoI, n.2 maio de 2008. pg.101 -106.

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diversas possibilidades de leitura de imagens como fonte e produtora de conhecimento


histórica, para tanto iremos tratar estas fotografias através do cruzamento com outras fontes,
jornais, documentos oficiais e memórias, além de uma análise sobre a luz, enquadramento e
objetos privilegiados pela fotografia, entendemos desde já que estas foram produzidas com o
intuito de divulgar o processo de transformação pelo qual a cidade passava. Apesar destes
obstáculos sobre o trabalho com imagens preferimos pensar como Burke:1122”independente de
sua qualidade estética, qualquer imagem podem servir como evidencia histórica”.
`Pensamos que hoje os historiadores ou grande numero deles hoje faz uso de
imagens em suas pesquisas não mais como forma de comprovação de suas idéias ou anexo e
sim como objeto capaz de propiciar novas possibilidades de estudar o passado. A verdade é
que hoje muito do que se pensa entender por fotografia histórica não foi produzida com este
sentido e sim com o intuito de divulgar a vaidade ou o poder de grupos ou governos
representados nestas fotografias. Entendemos assim que muitas destas imagens aqui
analisadas tiveram seu sentido alterado na atualidade afinal o contexto de quem olha para
estas hoje é bem diferente do período em que foram produzidas.
Sobre esta perspectiva compreendemos serem as fotografias o objeto central para
compreendermos a transformação que aconteceu em Sobral na primeira metade do século
passado, principalmente na década de trinta, afinal este vai ser o período de maior
transformação da cidade. A razão desta pesquisa parte da necessidade de entender as razões
que estavam ocultas neste processo de transformação, sabendo que hoje ainda se encontram
silenciosas estas razões, pois a historiografia produzida pelo período tende sempre a exaltar a
ação particular e desinteressada de Dom José1123, sem pensar que atrás destas ações poderia
haver algum interesse particular ou ideal católico.
Neste sentido o uso das imagens nos permitirá não só compreender o que se se
desejava mostrar com estas transformações, mais também perceber seus significados para
aqueles que as observam fora do seu contexto de produção, mas que sobre elas tem memórias.

Entre o Canto dos Aboiadores Nasce uma Cidade: Sobral

No meio da mata virgem dos sertões cearenses ecoava um canto forte e choroso, o
canto dos aboiadores, que partiam de suas casas sem saber o que o sertão guardava para eles,
1122
BURKE. Peter, Testemunha Ocular, Historia e Imagem. Bauru, SP; EDUSC,2004.
1123
José Tupinambá da Frota, estudou em Roma e retorna a Sobral como prelado e mais tarde bispo, no total seu
apostalado na cidade durou mais de cinqüenta anos, foi responsável pela criação de escolas, jornais, rádios,
hospitais, museus entre outros.

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um misto de medo e aventura movia estes homens que partiam das suas casas rumo ao
desconhecido sujeitos ao vento frio das noites de lua e os dias quentes em meio a caatinga
cearense. É em meio a estes homens e ao berro das boiadas que eles transportavam que a
colonização do Ceará inicia-se principalmente na região norte, que foi esquecida pela coroa
até 1700, quando por lá começam a chegar os primeiros habitantes, esta povoação tardia não
será privilegio apenas da zona norte afinal a coroa só irá iniciá-la a partir da necessidade de
expansão das terras para a plantação da cana o que irá “expulsar” o gado na direção do Ceará.
Somente em 1757 a coroa portuguesa irá esforçar-se para povoar a colônia, até então o
processo de povoamento ia dando-se meio sem querer, ou seja, iam surgindo no meio dos
caminhos por onde passavam os comboios. É neste contexto que a coroa irá traçar um plano
urbanístico de desenvolvimento. O plano inicial da coroa não era tão complexo quanto o
elaborado pelo Marquês de Pombal, que para a instalação de uma Vila sempre deveria ser
preceder a elaboração de uma planta que preconizasse o traçado xadrez o mesmo utilizado
para a reconstrução de Lisboa.
Sobral iniciou seu povoamento a partir da fazenda Caiçara1124 sem adotar nem um
plano urbanístico, devido ao crescimento da Fazenda esta foi transformada em Vila no ano de
1773, quando ai irá passar a adotar o plano pombalino, no entanto a mesma irá adaptar este a
já, precária porem existente, estrutura urbana da cidade construindo assim com
individualidade um traçado próprio para o desenvolvimento. Devido a sua proximidade do
porto de Camocim e das oficinas de charque no Acaraú, irá desenvolver-se economicamente
tornando-se destaque na região, devido a este desenvolvimento econômico e cultural irá surgir
uma disputa silenciosa entre a cidade e a capital, Fortaleza, esta disputa é fortalecida pela
“independência” que Sobral mantém da capital tanto para realizar contatos com a Europa
quanto economicamente.
Este orgulho e independência irá declinar a partir do ano de 1935 quando será
construída a ponte sobre o Rio Acaraú o que irá facilitar as relações da cidade com a Capital.
“O declínio sócio econômico e político sobralense acentuou-se na segunda metade do século XX.
A partir da década de sessenta apresentou a problemática urbana características das cidades brasileiras no
período”.1125
A cidade desenvolveu-se a partir do gado e da carne de charque, com a crise
gerada em fins do século XIX, irá reverter seus investimentos para o comercio e o cultivo de

1124
Sesmaria de propriedade de Quitéria Marques de Jesus e de seu marido Antonio Rodrigues Magalhães, lá foi
erigida uma capela em homenagem e devoção a Nossa Senhora da Conçeição, onde mais tarde surgirá a cidade
de Sobral.
1125
COSTA, Antonio c. Campelo. Sobral da Origem dos Distritos. Sobral. Sobral Grafica e editora Ltda., 2008

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algodão, o que proporciona o crescimento do núcleo urbano são desse período, os sobrados
que se erguiam majestosos pelo centro da cidade, comumente nas esquinas, principalmente na
Rua Nova do Rosário e Rua da Vitória. Estes tinham dois pavimentos no térreo funcionava a
venda e depósitos e na parte superior a residência. Imaginemos Sobral como uma cidade em
pleno desenvolvimento econômico no inicio do século XX. Juntemos a isso o poder e
influencia que a igreja mantinha sobre a cidade então brindemos esta imagem com o retorno
de Dom José de Roma, que agora retorna a sua cidade natal como religioso, trazendo idéias
progressistas e um plano ousado de ocupação do espaço urbano pela igreja, neste caso não
apenas no sentido religioso do termo mais também sociocultural. Neste sentido a primeira
metade do século vinte envolve a cidade em uma aura de superioridade e orgulho, os quais
serão sabiamente alimentados pela igreja e pelo imaginário popular que irá constituir-se ao
redor de Dom José, como “o segundo pai fundador” da cidade.
Enfim o declínio econômico de Sobral, assim como seu sentimento de
superioridade e destaque na região só irá realmente surgir com o fim da segunda guerra
mundial, neste momento a cidade será duplamente abalada, pois além do enfraquecimento
econômico irá perder seu grande benfeitor, Dom José.

A Igreja Resignifica os Espaços da Cidade

De inicio surge uma fazenda, as margens do Rio Acaraú, a fazenda cresce e não
mais pode ser apenas uma fazenda torna-se um povoado que com fé ergue o culto a Nossa
Senhora da Conceição, inicia-se a construção da capela, e a seu redor surgem os primeiros
sinais de urbanização. Apesar do discurso de amor ao próximo os irmãos de cor não podem ir
à capela para ajoelhar e agradecer a deus por seu cotidiano e condição, então surge à criação
de uma pequena capela, afastada do frágil centro que se desenvolvia, ela surge em meio ao
suor e ao desejo de liberdade, a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretinhos, tão
humilde quanto seus fieis, é em meio a esta distancia que separa os templos de adoração que
irá surgir a primeira grande obra da cidade quiçá a mais importante, o mercado publico o
responsável pela demarcação do centro comercial da cidade, ao seu redor foi referencia para o
traçado urbano até que na década de trinta do século passado foi colocado sob terra afinal o
progresso não combina com a desordem urbana gerada pelos cavalos e carroças que
transportavam os viveres alimentício, nem tão pouco, a ausência de higienização nos seus
espaços, enfim no lugar que antes era referência para a cidade surge uma praça. A destruição

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do mercado1126 não foi tão calma e bem aceita como diz a historiografia ou o imaginário local,
pois um grupo de comerciantes recusavam-se a sair daquele espaço, no entanto suas opiniões
não foram levadas em consideração pois o que estava em jogo eram os interesses dos
administradores da cidade e não as razões dos comerciantes. É perceptível a força que o
discurso utilizado pela igreja tinha, pois a memória local não considera a idéia de Dom José
ser movido por interesses da igreja, quiçá, pessoais;
A igreja como bem já colocamos aqui será o ponto de aglutinação e gerador do
desenvolvimento da cidade, afinal em cada igreja sempre haverá um largo onde irão acontecer
as quermesses ou simples aglutinação do povo. Sua presença será fortalecida pelo retorno de
Dom José a Sobral, afinal irá iniciar uma ocupação espacial da cidade através de serviços que
sempre irão levar o nome da igreja, como é o caso da instalação do Seminário Diocesano e da
Santa Casa que estavam diametralmente opostos e localizados em locais periféricos da cidade,
ou seja, cada um ao lado das vilas operárias, a logística de Dom José era forte e bem
articulada, afinal ocupar o imaginário do povo sobre a igreja era iniciar a consolidação de um
discurso que na década de trinta ainda dava seus primeiros passos. Foi em meio a estes dois
prédios que irão desenvolver-se outras obras, todas sugerindo a idéia de um espaço de
comunhão entre cidade e a igreja.
A influência religiosa sobre a cidade era intensa chegando até ser questionado o
poder de decisão do poder publico, neste sentido, eram constantes os atritos entre o Bispo e o
Magistrado, José de Sabóia, ambos disputavam a hegemonia do poder local, donos de
personalidades fortes e marcante, desejavam transformar a cidade e elevá-la ao progresso.

“Dom José gostava de ter tudo sobre seu controle, era um homem de visão,
muito bondoso e brincalhão, mais não gostava de ser contrariado, por causa
disso ele e o José de Sabóia viviam brigando! Cada um queria mandar mais
que o outro”. 1127

A cidade crescia e desenvolvia-se em meio aos poderes públicos e religiosos, no


entanto o progresso que a cidade experimentava só era associado à pessoa de Dom José, fato
que incentivava o imaginário sobre seu poder e sua influência na cidade, afinal em todos os
espaços da cidade o Bispo implantava algum serviço ou prédio que sugerisse o papel da igreja
na cidade. José de Sabóia1128 em contrapartida irá por meio da Câmara, destacar suas
preocupações com o desenvolvimento urbano da cidade. Nesse período será lançado o código

1126
Para saber mais sobre o mercado e o processo de destruição e ocupação pela nova praça, Coluna da Hora,
Ver: José Tupinambá da Frota, Historia de Sobral.
1127
Depoimento de José Teunes de Andrade Moura, em julho de 2008.
1128
Magistrado de Sobral, possuía grande influencia política na região.

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de posturas do município de 1930, o qual fugindo as características dos códigos do período


não seguirá o modelo proposto pelo Rio de Janeiro e sim mantendo os mesmos parâmetros
arquitetônicos do código de1919, o que irá manter a harmonia do conjunto arquitetônico.
Pensamos ser esta uma das razões para a preservação da arquitetura colonial de
Sobral, como bem afirma Castro1129:

Considerados como conjunto, os espaços urbanos de Sobral são os mais


ricos do Ceará já que ali se dispõem em harmonia, tardiamente por meio de
arcaísmo de implantação, os velhos traçados medievais lusitanos, misturados
com formas novas difundidas sistematicamente a partir da época do Marques
de Pombal, da cidade em xadrez, formas das quais tanto se serviriam no
império os aglomerados urbanos ande influência política na nacionais.

De fato Sobral é termos urbanísticos impar quanto aos núcleos de Icó e Aracati
que seguiram o modelo pombalino, afinal ela surgiu em meio a passagem do gado, como
pouso de descanso para os viajantes cansados, uma fazenda no século XVII e no século XX
uma cidade que auto denomina-se como “A Princesinha do Norte”.

Visões da Cidade

“No entanto minha velha Caiçara,


Nem sempre foste tu quem hoje, és,
Somente o amor que tudo pode e vence
Fez de ti uma princesa, te osculando os pés.
(...)
Este príncipe da igreja, soberano,
Que na fronte te pôs coroa real,
O teu nome ilustrou, e deu-te um cetro,
- É Dom José – o bispo de Sobral”.

A poetisa Dinorha Ramos1130 representa um pouco do que seria Dom José para o
povo de Sobral, pode-se perceber um certo sentido de exaltação e até adoração, o mesmo pode
ser inserido como reflexo do imaginário que naquele período já constituía-se em torno deste
personagem da cidade. “Um grande príncipe, de ti se enamorou perdidamente...”, O verso
traduz o simbolismo que pairava sobre o bispo, o de um ser superior, um príncipe que

1129
CASTRO. L. de, Pequena informação relativa à arquitetura antiga no Ceará. Ed. Imprensa universitária da
UFC, 2ª Ed. Fortaleza, 1977.
1130
Poema da autoria de Dinorha Tomaz ramos, Ave, sobral. In: Soares, Maria Norma Soares. Sobral: Historia e
Vida. Sobral: Edições UVA, 1997.

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precisava ser exaltado e adorado afinal ele é a causa da transformação da cidade, apenas ele é
o responsável por esta transformação.
A cidade deve a ele devoção e adoração, afinal foram dele que a cidade recebeu o
cetro e a coroa. Segundo Soares:1131

Rica pela pecuária e pelo comercio, culta pelo intercambio com os centros
europeus e, ainda abençoada pela igreja, Sobral cresceu e tornou-se
portentosa e progressista, gerando um sentimento que não é um simples
bairrismo, identificado pelo intelectual e político Parcifal Barroso como a
sobralidade”.

Para o autor, Sobral é uma cidade abençoada, pois alem de ter uma economia forte
e vigorosa que proporciona uma situação de contato direto com a Europa, recebendo de lá
influencias de comportamento e cultura, ainda será a menina dos olhos do Bispo Dom José
que não medirá esforços para dá a Sobral o caráter de cidade moderna e desenvolvida, este
contexto proporcionará em seus cidadãos o sentimento de orgulho e amor pela cidade,
sentimentos gerados pelo imaginário que será alimentado pela igreja, de superioridade
regional.
“Pensamos o imaginário social de Sobral como Pesavento1132: “...Representação
do mundo, que se legitima pela crença e não pela autenticidade ou comprovação”. Estas são
as razões que consolidam em Sobral a idéia de uma cidade progressista e em constante
transformação, graças a abnegação e o desprendimento material de um bispo que abre mão de
qualquer interesse pessoal ou favorecimento em troca do crescimento da sua terra natal, idéia
que irá desenvolver o orgulho natural de seus habitantes, ou melhor a sobralidade.
Dom José retorna de Roma no ano de 1918, como prelado local,no entanto logo
torna-se Bispo e irá realiza uma verdadeira obra de reconstrução e aparelhamento da cidade
de serviços e prédios públicos de grande relevância para a cidade, sua influencia se estenderá
bem além destes serviços e igreja, pois o mesmo terá papel decisivo sobre as obras realizadas
pela administração pública local. Ainda em 1915 a diocese irá realizar a compra do antigo
sobrado do Senador Paula Pessoa, com o intuito deste servir de residência para Dom José, o
qual realizará uma reforma ampliando o prédio para dois andares, dando a ele o estilo
neoclássico. A reforma foi concluída em 1927, no entanto Dom José resolve doar o prédio
para a instalação de um colégio para moças, que seria dirigido pelas irmãs Santana, o

1131
Ibd.
1132
Ibd.

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estabelecimento será o primeiro da região a oferecer ensino secundário para moças, desta
forma atrairá as moças da região afim de completarem seus estudos.

As moças de famílias abastadas do Acaraú e das cidades vizinhas iam todas


estudar em Sobral, no colegio Santana, poucas iam para Fortaleza. Eu fui
para Fortaleza, mais umas primas foram pra Sobral, o que lembro é que as
pessoas sempre andavam bem vestidas, cheias de jóias. Uma vez elas foram
passear em Fortaleza, na casa do Tio Claudio e fiquei com vergonha, pois
elas eram arrumadas e cheirosas e eu bem simples. Elas nem falavam direito
com a gente. Eram orgulhosas como os sobralenses. Não sei mais delas, só
sei que casaram com alguns homens ricos de lá!1133

A fala da depoente sugere que as pessoas que estudavam lá eram todas de famílias
abastadas, as que podiam pagar pelo estudo, logo entendemos que esta era obra não
beneficiava a todos e sim a uma pequena parcela da população e não a toda a população como
sugere a historiografia local. Questionada sobre Dom José a entrevistada afirmou que “Ele era
um homem forte, gostava de contar piadas, uma vez foi visitar o Acaraú, lá eu o conheci, a
cidade toda foi enfeitada com bandeiras coloridas, era uma festa só! Ele pediu para conversar
com a gente antes da celebração e começou a contar anedotas! Era um homem decidido. Não
lembro se no colégio havia vaga para as moças de famílias pobres, sei que havia o orfanato,
mais não tenho certeza disso”
As tentativas de desenvolver a educação secundaria em Sobral, não ocorreram
apenas com o colégio para moças, desde seu retorno de Roma que o Bispo tentava instalar na
cidade um colégio para homens, que somente haverá êxito no ano de 1934, O colégio
Sobralense, que irá entrar em funcionamento ao lado do Seminário Diocesano, porem os
alunos do colégio e do seminário eram tratados de forma diversa, afinal os meninos do
seminário eram em sua grande maioria oriundos de famílias pobres que não podiam pagar
pelo estudo e hospedagem, estes eram mantidos pela obras por doações e ações das dioceses
do interior. Segundo o depoente Edson1134, a rotina de internos era diferente pois haviam os
que podiam pagar e aqueles que vinham pelo desejo de estudar, e não podiam pagar, estes
viviam da caridade e de doações.
“Durante a missa eles ficavam de um lado e nós do outro! Eles dormiam em um
prédio diferente do nosso, e também não comiam com a gente! Não sei onde assistiam aula,
mais não era nas mesmas salas que a gente!”

1133
Depoimento de Maria helena de Andrade Moura, julho de 2008.
1134
Depoimento de José Edson Magalhães, Janeiro de 2008.

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Enfim, Podemos dizer que ainda há muito a ser reconstruído e compreendido


nesta pesquisa, ainda há muitos espaços a serem esmiuçados pelos veios da memória, como
ainda existem muitas arestas a serem aparadas nesta pesquisa, no entanto podemos concluir
desde já que o mito da superioridade de Sobral e da influencia de Dom José, foram
discursos1135 que foram sendo construídos pelos discursos da igreja e da classe que se
beneficiava diretamente deste imaginário e destas idéias. Neste primeiro momento podemos
perceber que as transformações ocorridas na cidade sempre beneficiavam a um pequeno
grupo, grupo este que incentivava este ideário. Enfim, Sobral é uma cidade como tantas outras
que teve seus mitos para justificar e responder seu crescimento e suas desigualdades, questões
estas comuns em toda cidade em desenvolvimento, neste sentido acreditamos ser esta
pesquisa importante por ser uma possibilidade de compreensão deste período, década de
trinta, e da constituição deste imaginário.

11351135
Adotamos para esta pesquisa o conceito de discurso empregado por Michel Foucault, em “A ordem do
Discurso”, segundo o qual: “O discurso (...) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é
também, aquilo que é o objeto de desejo; e visto que – (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.

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MODERNIDADE E COTIDIANO EM FEIRA DE SANTANA NAS


DÉCADAS DE 50 E 60 DO SÉCULO XX

Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira – UNEB

O cotidiano vivenciado em Feira de Santana, em meados do século XX e o processo de


consolidação da identidade de cidade civilizada, comercial e moderna compõem a análise que
apresentamos sobre a modernidade na “Princesa do Sertão” no simpósio História Sujeito e
Práticas Culturais. Objetivamos apontar as representações construídas sobre a mencionada
cidade, indicando os hábitos que, sob o olhar das elites, comprometiam a visibilidade da pólis
ordeira e progressista que se queria firmar. Por fim, são identificados sujeitos e espaços que se
tornaram alvo de um processo de exclusão diante da consolidação comercial e da redefinição
dos territórios situados no centro da cidade. O Jornal Folha do Norte, os Processos Crimes, as
Atas da Câmara Municipal, o Plano de Desenvolvimento Local Integrado se constituíram nas
principais fontes utilizadas na construção da análise.

Palavras-chave: Feira de Santana, Modernidade, Cotidiano.

Situada no interior do Nordeste brasileiro, construída sob “raízes/imagens


sertanejas”, a cidade de Feira de Santana vivenciara a experiência da modernidade e a
construção de sua identidade sob diversas formas. Do final do século XIX às primeiras
décadas do século XX, as elites feirenses construíram estratégias para estabelecer identidades
associadas ao clima saudável, ao comércio e aos códigos de civilidade. Nas últimas décadas
do século XX, através do processo de instalação do CIS, buscou-se consolidar uma vocação
industrial. Esta conferiria à cidade uma outra identidade, a de cidade grande, modernizada,
tecnologicamente avançada.
Nos anos 50 e 60 do século XX, assiste-se no Brasil ao processo de consolidação da
interiorização da modernização e da modernidade. A inauguração de Brasília foi o seu ápice e ela
tornou-se um símbolo maior daquele contexto. Ainda na construção de Brasília, o presidente
Juscelino Kubitschek argumentava que a construção da capital daria origem tanto à integração

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nacional (“integração pela interiorização” era um de seus slogans) como ao desenvolvimento


regional, levando o mercado nacional às economias de subsistência1136.
Feira de Santana foi inserida no processo ao se tornar um entroncamento
rodoviário ligando o Norte e o Sul do País. Tal fato contribuiu para a expansão do mercado
dos bens de consumo e duráveis oriundos do Sudeste do País e impulsionou a vocação
comercial da cidade1137. Embora, desde o século XIX, os agentes do desenvolvimento da
Bahia defendessem a tese de que a acessibilidade ao interior do Estado e sua vinculação com
outros Estados do Brasil eram fatores estratégicos para o desenvolvimento das atividades
comerciais, tal vinculação só se concretizou em meados do século XX, período no qual
cresceram as cidades de Vitória da Conquista, Jequié e Feira de Santana 1138.
Durante os anos supracitados, registrou-se um crescimento populacional
considerável na “Princesa do Sertão” e esta foi constantemente identificada como uma
“cidade progresso”. Constituía-se no pólo de atração regional pelos signos do moderno que
possuía e que almejava alcançar. Para tanto, havia um projeto nacional interessado em reduzir
os desequilíbrios interestaduais e regionais, além de dotar as principais cidades de uma
moderna infra-estrutura inserindo-as no mundo moderno e civilizado, permeado pelos fluxos
da economia de mercado e seus valores1139.
A inserção de Feira de Santana no cenário nacional implicou, para a sociedade
feirense, reorganizar a cidade e o seu cotidiano, alterando hábitos e construindo
representações associadas a uma urbe comercial, progressista e moderna.

“Celeiro do Progresso”, “Terra da Promissão”: Representações da “Princesa do Sertão”

A modernização de uma cidade traz consigo a elaboração de um conjunto de


imagens e representações sobre a urbe e seus habitantes. Estas representações, além de
expressar interesses e os atores envolvidos, podem conferir legitimidade ao processo ou, ao

1136
Sobre a construção de Brasília e o processo de interiorização da modernização ver: HOLSTON, J. A cidade
modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ARRUDA, Márcia
Bomfim. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do século XX.
Dissertação (Mestrado em História) - Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2002.
1137
Sobre a vocação comercial de Feira de Santana ver: NASCIMENTO, Carla Janira Souza do. A inserção de
Feira de Santana na Região Econômica do Paraguaçu. In: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS
ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Desenvolvimento Regional: análises do Nordeste da Bahia. Salvador:
SEI, 2006. p. 167-186.
1138
Sobre o desenvolvimento, estradas e comércio na Bahia ver: PORTO Edgard. Desenvolvimento e território
na Bahia. Salvador: SEI. 2003.
1139
Sobre a redução dos desequilíbrios regionais, ver CRUZ, Rossine Cerqueira da. A inserção de Feira de
Santana (Ba.) nos processos de integração produtiva e de desconcentração nacional. Tese (Doutorado em
Economia) - Instituto de Economia. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.

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contrário, levantar questionamentos sobre elas mesmas apontando falhas, indicando limites e
excessos. As representações e/ou imagens construídas sofrem alterações em decorrência do
transcurso do tempo e a depender do olhar ou da perspectiva daqueles que constroem tais
representações.
O comércio representava, em sentido amplo, a própria razão do existir de Feira de
Santana1140. Um dos motivos estava em sua localização no entroncamento das principais
estradas entre a costa e o sertão, o que fizera progredir como centro comercial líder do
interior.
O percurso realizado pela sociedade local na constituição e manutenção de uma
identidade comercial, antes de compor um processo pacífico, construiu-se como um campo de
embates que se desdobraram em diversos momentos, desde as primeiras décadas republicanas,
quando o comércio adquiriu papel central no discurso das elites como elemento articulador da
construção de um ideal de progresso e civilidade, até as últimas décadas do século XX,
quando se ensaiou definir uma vocação e uma identidade industrial para Feira de Santana1141.
Em meados do referido século, operacionalizou-se a consolidação da representação e da
identidade de cidade comercial, e este feito não se produziu sem conflitos. Ao longo da trama,
foram-se estabelecendo imagens, práticas e estratégias para possibilitar o reconhecimento da
urbe enquanto cidade moderna e comercial e, ao mesmo tempo, controlar os elementos que se
mostravam destoantes com a urbe desejada.
A modernidade tem suas ligações intrínsecas com a modernização. O espaço
físico da modernização, sua concretude acelera a modernidade, alarga os sentimentos ditos
progressistas1142. O comércio feirense era um dos veículos, senão o principal, da concretude
da modernização da urbe, expressava não apenas a sua vinculação com o capitalismo e sua
dinâmica bem como o progresso alcançado, constituindo-se em uma das representações da
cidade. O mundo da mercadoria e do valor de troca é fundamental para que a cidade assuma

1140
POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. Salvador: Itapoã, 1968. p. 306-307.
1141
Sobre o discurso das elites nas primeiras décadas republicanas, ver: OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana
Moraes. De empório a Princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937). Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. SILVA, Aldo José Morais. Natureza
sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o estudo da construção de identidade social no
interior da Bahia, 1833-1937. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2000.
1142
Sobre as ligações intrínsecas entre modernidade e modernização e o alargamento dos sentimentos
progressistas, ver: REZENDE, Antonio Paulo. Desencantos modernos: histórias da cidade do Recife na década
de XX. Recife: Fundarpe, 1997. p. 25.

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seu papel de agente da modernidade, para que se produza o contraponto entre o urbano e o
rural, com suas mitificações1143.
Em Feira de Santana, ambicionava-se a consolidação das práticas urbanas, e a
cidade era então identificada pela variedade das trocas comerciais realizadas. Estas
colaboravam para a construção de uma imagem da urbe que contrastava com as
representações do mundo rural sertanejo no qual estava inserida1144. Cidade comercial por
excelência, onde negociar, comerciar e arrematar eram, sob o ponto de vista de Pedro
Jacobina - um personagem do romance de Juarez Bahia - uma espécie de vocação feirense,
Feira de Santana era considerada muito mais, era o lugar do progresso, da realização de
utopias, era a terra da promissão1145. Lugar para o qual as velhinhas de uma localidade no
interior do norte, ao abençoar as crianças desejavam-lhes que Deus as levasse1146. Local para
onde se dirigiram alagoanos, piauienses, sergipanos, pernambucanos, capixabas, rio-
grandenses-do-norte, ipiraenses, iraraenses e outros.
Feira de Santana era também uma cidade-ímã1147 e atraía por reunir aspectos
como:

Beleza urbana, imponência dos prédios públicos e das casas residenciais,


movimento e vulto comercial, grau de instrução, visto haver duas escolas
normais, dois colégios, dois ginásios, escolas de comércio e de
contabilidade, seminário, escolas de datilografia, corte e costura, arte
culinária, cursos de admissão, de línguas, de música, órgãos de imprensa,
estação de rádio, clube social, três filarmônicas, moderno hospital, serviço
de águas, um excelente orfanato que era o Asilo Nossa Senhora de
Lourdes. 1148

Segundo a descrição do Inspetor Educacional, Clóvis Mota, Feira de Santana era


identificada como uma urbe moderna, dinâmica, próspera, capaz de realizar os desejos
daqueles que a procuravam na tentativa de ampliar os horizontes, pois oferecia serviços que,
reunidos, a singularizavam perante outros municípios. A imagem delineada da cidade

1143
Sobre as mitificações e arquétipos do campo e da cidade, ver: WILLIAMS, Raymond. O Campo e a cidade:
na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
1144
Sobre as representações do sertanejo, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do
Nordeste e outras artes. Recife: FJN: Massananga; São Paulo: Cortez, 1999.
1145
Sobre Feira como a terra da promissão, ver: BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.p. 66.
1146
BOAVENTURA, Eurico Alves. A velha e a nova cidade. apud, DÓREA, Juraci. Eurico Alves e a Feira de
Santana. In: GODET-OLIVIERI, Rita (Org.). A poesia de Eurico Alves: imagens da cidade e do sertão.
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: Fundação Cultural: EGBA, 1999. p.77.
1147
De acordo a concepção de Raquel Rolnik, a cidade-ímã é como um campo magnético que atrai, reúne e
concentra os homens. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.12.
1148
MOTA, Clóvis. Memorial do Inspetor Educacional responsável pela 5ª Região da Circunscrição Escolar
sediada em Feira de Santana. Folha do Norte. Ano 48. n. 2532. 18 jan. 1958.p.2.

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apontava para a estética urbana e assinalava a presença de equipamentos característicos da


modernização em curso.
O olhar e o sentir dos visitantes de Feira de Santana conduziram a representações
favoráveis sobre a cidade e colaboraram para o processo de consolidação da identidade de
cidade comercial e progressista. No artigo intitulado “Feira de Santana, Celeiro do Progresso”
1149
, a representação elaborada sobre a urbe a colocava numa condição de metrópole, e esta se
sobrepunha ao perfil de cidade sertaneja, que seria constantemente negado, enquanto a
categoria de metrópole tornar-se ia ambicionada e salientada de forma pertinaz, ajudando na
composição da trama identitária da cidade. O autor de “Feira de Santana, Celeiro do
Progresso” exaltava o progresso da cidade em face da estética e das instituições urbanas que
ele ressaltava e que se traduziam como desenvolvimento.
Os discursos sobre Feira de Santana não se restringiram àqueles que enfatizavam
os traços comercial e progressista da urbe. Outras imagens discursivas também foram
elaboradas e conduziram-nos à multiplicidade do cotidiano citadino e de sua identidade. Em
carta/crônica dedicada a Aloísio Resende em 1951,1150 Hugo Navarro Silva, advogado e
cronista do JFN, descreveu aspectos do cotidiano de Feira de Santana no início dos anos 50.
Um tom de desencantamento com a urbe e com seus habitantes se fez predominante na
descrição de Navarro. O autor construiu uma imagem carregada de ironia, apontando
elementos que, sob a sua perspectiva, colaboravam para dar à cidade um ar incerto. As
misérias em prosa e verso, a pobreza intelectual da mocidade, o jogo do bicho, as facadas e
peixeiras atribuídas aos “nortistas” e paraibanos recém-chegados, formavam um conjunto de
presença incômoda aos olhos do cronista.
A representação de Feira de Santana por ele elaborada correspondia a uma cidade
bizarra. O seu discurso não apontava elementos atrativos; ao contrário, distinguia práticas
sociais que lhe pareciam artificiais, estranhas, vícios, condutas que, paradoxalmente,
comprometiam a imagem de uma urbe idealizada como civilizada e moderna. Enquanto
cronista, ele acompanhava minuciosamente as transformações na vida da cidade e se tornava
um leitor especial, pois, utilizando-se das páginas do JFN, demonstrava suas impressões sobre
o cotidiano da urbe e, enquanto formador de opinião apresentava elementos que auxiliavam
na configuração de uma identidade cujas práticas estavam em contraposição à almejada urbe
comercial e de habitantes bem-educados. Por meio de sua construção discursiva, Navarro dá a

1149
FEIRA de Santana – Celeiro do Progresso Revista Fiscal da Bahia. n. 76/77. maio/jun.1952. Apud: Folha do
Norte, ano 42, n. 2247, p.1, 2 ago. 1952.
1150
SILVA. Hugo Navarro. Meu caro Aloísio. Folha do Norte, ano 41, n. 2166, p.4, 13 jan. 1951. p.4.

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ver uma Feira que, mesmo possuindo equipamentos do moderno e do progresso, como as
estações de rádio, contraditoriamente através das sociabilidades urbanas, mostrava-se
provinciana, mais que isto, problemática.
As representações do mundo social são arquitetadas em meio aos embates entre
grupos políticos e sociais, assim, cada grupo, de acordo com os seus interesses, elabora
imagens, discursos, e impõe à sociedade a sua volta os significados que se fazem
convenientes. A configuração urbana delineada por Navarro “Em Meu Caro Aloísio” é, neste
sentido, datada. Constituía-se como uma resposta àquilo que era percebido como fora da
ordem, destoante com a urbanidade, resultante, além, de uma administração pública
considerada ineficaz e desastrosa, do desenvolvimento de hábitos considerados inapropriados.
Para ele, não havia motivos dos quais a cidade se envaidecesse; ao contrário, a urbe havia-se
tornado um problema ante os indivíduos que, com suas práticas sociais e políticas,
desenhavam outro cenário.
Para as elites da cidade, aqui compreendidas como representantes da política, da
associação comercial, dos colunistas sociais e cronistas: na Feira de Santana, identificada
como grande cidade comercial, mais que bisonha, cidade progresso, paradoxalmente bizarra,
fazia imprescindível disciplinar as condutas e os hábitos dos seus habitantes. Tornara-se
imperativo adequar os costumes e práticas dos citadinos à modernidade que se ensaiava na
urbe e que se divulgava em meio às representações construídas sobre a cidade.

O Cotidiano entre Animais, Águas Servidas, Lixo e a “Fezinha” no Bicho

Animais soltos, esgotos correndo nas ruas, refeições em feiras livres, carne bovina
transportada em carroças e comercializadas em bancas de madeira, leite vendido cru e
misturado à água, entulho e lixo depositado nas ruas1151 estavam entre os “maus hábitos” a
serem extirpados mediante as políticas normatizadoras propostas e/ou implantadas pelos
administradores da cidade. Em diferentes períodos, as reclamações e as discussões para alterar
tais costumes explicitaram, ao mesmo tempo, o incômodo causado e a insistente presença
destes nos diversos espaços da urbe.
Um reclame publicado pelo JFN, em 1951, indicava como as praças ajardinadas
1152
tinham um uso imprevisto pelos seus idealizadores . No dia-a-dia citadino, a Praça

1151
LEITE com água. Folha do Norte, ano 41, n. 2170, 10 fev.1951. Coisas da cidade p. 1. LEITE apreendido.
Folha do Norte, ano 60, n. 3160, 08 nov.1969. p. 6. MAIS leite apreendido. Folha do Norte, ano 60, n. 3161, 15
nov. 1969. p. 1
1152
ENTULHO na rua. Folha do Norte, ano 41, n. 2174, 24 fev.1951. p.4.

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Bernadino Bahia, além de local de lazer ou passeio, também se tornara depósito dos restos de
construções erguidas ao seu redor. A praça que deveria exibir sinais do moderno, de ordem,
paradoxalmente tinha o seu sentido invertido pelo uso que alguns indivíduos dela faziam1153.
Aos olhos do reclamante, a fisionomia urbana ficava comprometida diante daquele velho
hábito e preocupava os que desejavam uma urbe de aparência bela e limpa. Mas o problema
não estava apenas nos entulhos jogados nas praças.
Em sessão ordinária da Câmara Municipal, realizada em 30 de maio de 1955, o Sr
Mário Porto apresentou um requerimento no qual solicitava a quem de direito, providências
no sentido de coibir os constantes despejos que saíam dos canos para as sarjetas das casas de
“mulheres de vida airosa”, situadas no antigo Beco do Cinema Santana1154. A aprovação do
mencionado requerimento ocorreu na sessão seguinte da Câmara, tendo o Sr. Jorge Watt
afirmado que a sua aprovação “[...] viria satisfazer as exigências da saúde pública e
contribuiria para o melhor asseio da cidade”1155.
Entretanto, jogar águas servidas em vias públicas, mesmo proibido pelo Código
de Posturas, em seu artigo 219 1156, não era costume exclusivo das “mulheres de vida airosa”.
O conjunto da população que não dispunha de local para a construção de fossas ou do serviço
de uma rede de esgotos, também realizava tal prática. Destarte, a ausência de uma rede de
esgotos se constituía noutro motivo de queixas relativo à falta de higiene na urbe1157.
Apelos do Executivo e da Câmara Municipal, da Associação Comercial e de
outros setores foram dirigidos aos governantes estaduais e federais para a construção de uma
rede de esgotos na cidade, desde o início dos anos 50 1158. Para a classe empresarial, não havia
justificativa para que uma cidade do porte de Feira de Santana continuasse a sofrer com os
odores fétidos e outros incômodos resultantes da falta de saneamento básico. A inexistência
da rede de esgotos não era simplesmente uma questão de saúde pública. Tornara-se uma
questão associada ao desenvolvimento e ao progresso, a consolidação da cidade comercial era
ameaçada pela ausência do sistema de esgotamento sanitário, que permitia a construção de

1153
Sobre as praças como um signo do moderno e um testemunho de civilização ver: ARRAIS, Raimundo. O
pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas: FFLCH:
USP, 2004. p.229.
1154
RESUMO da Ata da 28ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal. Folha do Norte, ano 46. n. 2410. 17 set.
1955. p.4. Ver também: CMFS. Arquivo Altamir Alves Lopes. Livro de Atas nº.03. Ata da 28ª Sessão Ordinária
da Câmara Municipal em 30 de maio de 1955. p. 176.
1155
CMFS. Arquivo Altamir Alves Lopes. Livro de Atas nº. 03. Ata da 29ª Sessão Ordinária da Câmara
Municipal em 31 de maio de 1955. p.180.
1156
PREFEITURA MUNICIPAL DE FEIRA DE SANTANA. Código de Posturas. Lei nº 1 de 29 de dezembro de 1937. e
Lei nº 364 de 18 de janeiro de 1963. Feira de Santana. 1965. (Art. 219. p. 51.)
1157
Folha do Norte, ano 60, n. 3132, 26 abr.1969. p.1
1158
COLETÂNEA de Correspondências Expedidas e Recebidas. 1945 – 1960. Telegrama ao Getúlio Vargas.
Feira de Santana. Acfs.

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imagens negativas acerca da urbe. A preocupação voltava-se para o olhar daqueles que
visitavam a cidade e eram potenciais consumidores.
A falta de assepsia da cidade, entretanto, não se restringia à questão da rede de
esgoto e não era motivo de queixa apenas dos vereadores e de outros setores da elite. Também
era vivenciada pela população, que demonstrava o seu desagrado através das colunas
“Queixas e Reclamações” e “Coisas da Cidade” do JFN. Apesar dos reclamos dos moradores
quanto à sujeira das vias públicas, a colocação de detritos nas ruas persistia como um
comportamento rotineiro da população, enquanto expressão da inabilidade administrativa do
poder público municipal. Em 1953, a não realização da limpeza diária tinha como justificativa
o abandono do trabalho pelos varredores cujos salários estavam atrasados1159.
Apresentar-se de modo mais higiênico continuou como um objetivo de difícil
alcance. O hábito de depositar os detritos nas ruas persistiu e, em 1968, mediante o PDLI foi
proposta a implantação de um sistema organizado de coleta de lixo. Na justificativa da
proposta, foram colocados em relevo o tamanho e a importância da cidade que requeria um
sistema de coleta de lixo modernizado. Contudo, a falta de higiene era expressada no acúmulo
de lixo depositado nas vias públicas e, também, nos maus-cheiros que pairavam sobre a
cidade, entre eles, o das fábricas de sabão localizadas em áreas residenciais.
Devido ao crescimento espontâneo da cidade, no centro urbano encontravam-se
habitações destinadas à moradia, ao comércio e à produção de artigos. Tal situação era
comum, considerando-se que, até o final dos anos 60, não havia uma definição quanto às
áreas residenciais, comerciais e industriais. Assim, as fábricas situadas na área central da urbe
causavam inconvenientes como a emissão de gases e ruídos, além do lançamento de resíduos
nos passeios e vias públicas, etc.
Os odores fétidos, porém, não eram emanados apenas do abate do gado bovino e
do manuseamento de determinados produtos nas fábricas. Os chiqueiros, também localizados
em áreas do centro, a exemplo da Rua Visconde do Rio Branco (trecho conhecido por Rua do
Sol), desagradavam à vizinhança pelo péssimo odor1160. Além disso, os porcos incomodavam
pela facilidade com que circulavam nas ruas. Uma parcela dos moradores considerava que,
diante do progresso alcançado pela cidade, não era mais viável a permanência de tais hábitos,
tornando-se indispensável alterar o cotidiano e ordenamento da cidade.

1159
COISAS da cidade. Folha do Norte, ano 41, n. 2165, 6 jan. 1951. p. 4. WATT, Jorge. Fatos da Semana. Folha
do Norte, ano 44, n. 2319,19 dez. 1953. p. 6.
1160
CRIATÓRIO de porcos. Folha do Norte, ano 46, n. 2459, 25 ago.1956.p 4. CRIATÓRIO de Porcos. Folha
do Norte, ano 42, n. 2467, 20 out. 1956. p. 6.

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Ao discurso de saneamento, juntava-se a preocupação com a visibilidade da urbe


diante da posição estratégica que esta ocupava. A pólis deveria apresentar-se de maneira
atrativa, com espaços estriados, afastando os animais dos cidadãos para não ferir os brios de
civilização que possuía. Deveria, portanto, ter horários e locais definidos para a circulação dos
bichos. Entendia-se que a cidade deveria ser organizada de forma que demonstrasse os sinais
de urbanidade e não o inverso.
Na trama que se constituía para a consolidação da identidade de cidade comercial,
modernizada, a preocupação centrava-se na impressão que o passante levaria da cidade. A
questão era o que seria transmitido, qual imagem seria veiculada? Qual representação seria
construída? Destarte, os animais não deveriam estar inseridos no cotidiano da cidade, pois isto
soava como uma afronta.
Reclamava-se, na coluna “Coisas da Cidade”, que a cidade estava abandonada,
pois, além dos porcos e jumentos, haviam surgido as vacas com os respectivos bezerros
andando pelas ruas, e ironizava-se: “O pior é que os adeptos do jogo do bicho estão sendo
prejudicados. Quando topam nas ruas com porcos, jumentos e vacas, jogam no outro dia,
respectivamente em porco, burro e vaca, e no entanto dá urso”1161. Afirmava-se ainda que
Feira de Santana merecia melhor cuidado com a sua aparência e que cabia a alguém tomar
providências sobre o assunto, pois a Feira não era nenhuma jumentolândia1162.

Os animais estavam inseridos no cotidiano e não apenas causando-lhe situações


embaraçosas; alguns, como os jumentos e burros, se tornavam, fundamentais para o
andamento de determinadas atividades, a exemplo do abastecimento da água. O precioso
líquido era vendido pelos aguadeiros. Através de cargas transportadas em burros e/ou
jumentos, eles ofereciam seus préstimos para terceiros, utilizando-se de animais de sua
propriedade ou alugando-os. Inaugurado em 1957, o serviço de água encanada, considerado
como um equipamento da modernização estava presente apenas nos lares dos moradores que
residiam na zona central, saindo muito pouco dos seus limites. O alcance da modernização da
cidade mostrava-se excludente, pois na segunda metade da década de 60 o benefício da rede
de distribuição de água tratada se restringia aos moradores residentes no centro e nas áreas
próximas a ele.
Para Berman, um movimento que parece ser endêmico à modernização é aquele
que possui o sentido de criar um ambiente homogêneo, um espaço totalmente

1161
ANIMAIS à solta. Folha do Norte, ano 41, n. 2168, p.4. 27 jan.1951. Coisas da Cidade. p.4.
1162
Folha do Norte. ano 41. n 2170. 10 fev. 1951. p. 1.

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modernizado1163. Na Feira de Santana dos anos 50 e 60, já se buscava o estabelecimento de


um ambiente moderno, sem rugas e, para tanto, se objetivava exterminar os sinais de atraso.
Contudo, nos hábitos e condutas cotidianas dos moradores eles teimavam em aparecer, para o
desespero das elites que ambicionavam uma cidade ordeira e de linhas fisionômicas
modernas.
Jogar no bicho era mais uma conduta associada ao atraso e à desordem. Coibir a
sua prática se constituiu em mais um desafio para as autoridades e os responsáveis pela
divulgação das imagens de Feira de Santana enquanto cidade progressista e civilizada. Na
terra da promissão, fazer uma fezinha no bicho estava entre os hábitos mais combatidos e, ao
mesmo tempo, mais praticados.
Disciplinar o comportamento dos habitantes de Feira de Santana não se fazia uma
tarefa fácil. Os discursos dos colunistas do JFN, dos edis da Câmara Municipal, dos
advogados e juristas do período indicavam problemas que versavam sobre a infra-estrutura e
melhoramentos do ambiente citadino, quanto a questões relativas a posturas e condutas dos
moradores no cotidiano da urbe. Assim, hábitos como jogar no bicho, lançar águas servidas
nas vias públicas, permitir o perambular de animais nas ruas de cidade, entre outros, foram
considerados inadequados pelos gestores do viver urbano. As práticas mencionadas se, por
um lado, comprometiam a visibilidade de pólis civilizada, progressista, e a identidade de
cidade comercial que se queria fortalecer para Feira de Santana, por outro, tornou explícita a
multiplicidade que havia e a mistura de elementos antigos e novos no dia-a-dia da cidade.
Além dos hábitos, alguns espaços localizados no centro da cidade também sofreram tentativas
de modificação e/ ou exclusão em face do processo da consolidação comercial da cidade.

Desassossego na Zona Central: a Exclusão das “Pensões Alegres” do Sítio Comercial

Na segunda metade do século XX, a definição de lugares e territórios constituiu


um desafio às autoridades da Princesa do Sertão. Além de reivindicar a retirada das barracas
dos ambulantes do centro da cidade, as elites reclamavam da presença dita incômoda das
“casas alegres” e das prostitutas nas vias públicas da área central da urbe. Em 1951, na coluna
“Coisas da Cidade”, o JFN publicou um reclame no qual atribuía ao mulheril residente na

1163
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 2 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p.78.

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Travessa Leonardo Borges às desordens que retiravam o sossego daquela artéria1164. O JFN
não somente tornava pública a insatisfação das pessoas contrariadas com o barulho e o
reboliço no local, como sugeria que as reclamações fossem encaminhadas ao delegado de
polícia. Atribuía-se a esta o poder de disciplinar os espaços e controlar os comportamentos.
Buscava-se, assim, a imposição de uma ordem urbana básica ou de um “padrão básico” de
comportamento1165.
Quase seis meses após a reclamação anterior, o colunista do JFN assumia a
posição de porta-voz das famílias feirenses que alardeavam a presença das “pensões alegres”
nos locais que deveriam ser territórios exclusivos das nobres famílias da Princesa do
Sertão1166. Explicitava-se o desejo de controlar os espaços da urbe, definindo os locais para a
atuação de cada classe. Buscava-se estriar a cidade, determinar quais os sujeitos que deveriam
estar neste ou naquele local. Procurava-se evitar o convívio dos diferentes segmentos nas ruas
e bairros eliminando-se, sob o ponto de vista das elites, os incômodos e os conflitos aos quais
elas estavam sujeitas em conseqüência de tal convivência.
Atribuir à polícia competência para intervir em ambientes “duvidosos” e controlar
os comportamentos desviantes e / ou inadequados em um determinado território se constituiu
em um discurso comum aos magistrados e aos editorialistas do JFN. Eles almejavam
estabelecer um comportamento padronizado e a demarcação de territórios apropriados para o
conviver das elites. As estratégias de definição de um território não são neutras, comportam
tensões políticas, sociais e econômicas manifestadas no viver citadino por diferentes meios.
Assevera Foucault que o território é, antes de tudo, uma noção jurídico-política:
aquilo que é controlado por um certo tipo de poder1167. Neste sentido, mediante as críticas e
reclamações sobre as boites e o circular das prostitutas no perímetro comercial e arredores,
exercitava-se o poder de influenciar no ordenamento social da urbe, ou seja, na redefinição
dos territórios da cidade nas décadas de 50 e 60.
Afastar os meretrícios da área central da cidade não se constituía somente numa
atitude em defesa dos bons costumes e da moral. Tratava-se de ordenar as categorias e os
grupos sociais em suas mútuas relações e de determinar quem deveria ou não permanecer nos
territórios em que a expansão comercial ganhava terreno.

1164
DESORDENS. Folha do Norte, ano 41, n. 2166, 13 jan.1951. Coisas da Cidade p.1.
1165
Sobre a imposição de um padrão básico de comportamento no espaço urbano, ver: STORCH, Robert D. O
Policiamento do Cotidiano na Cidade Vitoriana. Cultura e Cidade. Revista Brasileira de História. São Paulo:
Anpuh, Marco Zero, v. 5. nº 8/9. set.1984/ abr.1985. p.19.
1166
PENSÕES alegres entre as famílias. Folha do Norte, ano 41. n.2191, 07 de julho de 1951. Coisas da Cidade
p.1.
1167
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1992. p.157.

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Em meados do século XX, não obstante a expansão urbana já apresentasse um


desenvolvimento acentuado, as áreas de habitação, consideradas de luxo, de acordo com o
PDLI, situavam-se na própria zona central ou na sua imediata proximidade1168. As residências
de tipo médio envolviam as primeiras, e as habitações populares circunscreviam as demais,
acentuando sua concentração ou incidência quantitativa na periferia do sítio urbano.
Entretanto as ruas e becos localizados no centro da urbe não mais se constituíam em
espaço exclusivo para a moradia das elites. O comércio, com suas variadas lojas e serviços, não mais
ensaiava, mas consolidava a sua presença, inclusive na disputa por estes territórios. Destarte, os
conflitos envolvendo as “mulheres de vida fácil”, as “casas de tolerância” e cabarés, de um lado, e as
“famílias honradas”, os comerciantes, e os delegados, de outro, configuraram-se como mais um
elemento da reorganização do espaço urbano em decorrência da modernização e do processo
de consolidação da identidade de cidade comercial.
Na perspectiva das autoridades, defensores das famílias feirenses de “bem” e do
comércio que se ampliava, conviver ao lado e/ou com as moradoras das “casas de tolerância”
já não se fazia possível. Não lhes era conveniente, pois não havia benefícios simbólicos a ser
adquiridos. O progresso tinha como sua tradução a expansão das atividades comerciais. Estas
se constituíam como um elemento fundamental na redefinição daquele território e de outros
espaços, implicando a exclusão dos indivíduos que não se coadunavam com o processo
modernizador em curso.

1168
BAHIA. Governo Estadual. Plano de Desenvolvimento Local Integrado de Feira de Santana. Salvador:
Coplan, 1968.p. 101.

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NOS CAMINHOS DA LEMBRNAÇA: ALAGOINHAS NAS MEMÓRIAS


DE JOANITA DA CUNHA

Carlos Nassaro Araujo Da Paixão – UNEB


nassaro_batera@yahoo.com.br

O ato de rememoração de uma pessoa não é natural e muito menos espontâneo, ele é sempre
carregado de sentidos e traz consigo uma serie de características de operações. Destaca-se,
nesse caso, o trabalho de composição da memória, onde ela é minuciosamente trabalhada pra
se criar um passado que faça sentido para a pessoa que lembra, além disso, esse fenômeno é
marcado por operações como a projeção, a transferência, e a seleção, o que faz com que a
memória não seja algo tão natural e evidente quanto possa parecer. É tendo estas
considerações em vista, que este texto propõe – se a analisar que visão de cidade e que
memória Joanita da Cunha construiu para a cidade de Alagoinhas no período compreendido
entre as décadas de 1930 e 1940. Joanita viveu na cidade de Alagoinhas até o ano de 1948,
quando se mudou com seu marido e filho para a cidade de Propriá – SE. Passados
aproximadamente 40 anos desse fato, já na cidade de Belo Horizonte – MG, ela escreve um
livro de memórias intitulado Traços de ontem, no qual ela narra suas memórias pessoais
vividas em Alagoinhas. A partir das imagens criadas pela autora em suas memórias procuro
identificar que leituras e representações ela cria para a cidade e procuro interrogar que cidade
Joanita cria para si e por quê? E que fatores a levaram a produzir esta e não aquela imagem
de cidade?

Palavras-chave: Alagoinhas, Cidade, Memória.

Joanita da Cunha escreveu dois livros de memórias, Meu Tempo de Criança em


1983 e quatro anos mais tarde publicou Traços de Ontem, em 1987. Neste que surge como
uma espécie de continuação da narração de sua vida, ela relata fatos e situações vividas por
ela na sua infância, adolescência e juventude, na cidade de Alagoinhas entre as décadas de
1930 e 1940, mais precisamente entre os anos de 1931 e 1948, este último, ano de sua partida
em companhia de seu marido e de sua primeira filha em direção à cidade de Propriá no Estado
de Sergipe.

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Como livro de memórias, Traços de Ontem, diz respeito a eventos ocorridos em


sua vida particular, em sua casa e na de parentes e amigos e em outros lugares de seu
cotidiano, como a escola, igrejas e clubes da cidade, assim como também deu destaque aos
eventos ocorridos na cidade, sejam eles de natureza política, religiosa, social ou econômica.
Em sua narrativa, a cidade de Alagoinhas aparece como um foco fundamental de atenção da
memorialista. Mesmo articulando fatos que seriam muito íntimos e pessoais, o ambiente
citadino não foi deixado de lado, como uma viagem que ela fez a Salvador. Nesse relato que
abriu o seu livro, Joanita compartilhou com seus possíveis leitores suas expectativas e
experiências na sua primeira viagem de trem à capital do Estado e passou então a apresentar
variadas características e imagens que ela produziu sobre a cidade de Alagoinhas.
A cidade de Alagoinhas está inteiramente presente no processo de rememoração
de Joanita. É nesse espaço privilegiado de memória que as coisas aconteciam, a cidade era
apresentada como uma espécie de pano de fundo para quase todos os eventos lembrados pela
autora, sejam suas brincadeiras e, depois, namoros na praça, bailes de carnaval, de final de
ano nos clubes, festas religiosas nas igrejas e populares nas praças.
A cada passo dado por sua memória ela nos apresenta um pedaço e uma faceta da
cidade. No momento em que nos apresenta um personagem deixa brechas para que se avaliem
alguns aspectos das relações sociais, quais eram seus códigos sociais de conduta, como
estavam organizados os seus grupos, as relações entre os diferentes grupos e de que maneira
ela estava inserida nesta realidade e principalmente como isto influenciava no seu
comportamento e na sua memória. As suas operações de memória estão extremamente
vinculadas à sua visão construída de cidade e não se pode analisar qualquer um dos aspectos
sem que se tenha prejuízo na avaliação do outro.
Em outro momento do seu livro, Joanita articula informações variadas sobre
alguns fatos ocorridos ainda no século XIX e que foram muito importantes para a formação de
Alagoinhas enquanto cidade1169. Trata-se do episódio da transferência da feira e da sede da
vila para próximo da estrada de ferro e da estação ferroviária, quando da aparição dessas
situadas a aproximadamente três quilômetros de distância da vila de Alagoinhas.
A elevação de Alagoinhas à categoria de vila se deu em dezesseis de junho de
18521170, em 1863, no dia 13 de fevereiro foi inaugurado o trecho da Estrada de Ferro Bahia
ao São Francisco e uma estação terminal1171. A partir desse momento um pequeno grupo de

1169
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. pp. 27-29.
1170
BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu município. Alagoinhas, Typographia Popular, 1902. P. 32
1171
Idem. p. 39.

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pessoas, principalmente comerciantes, passou a se estabelecer nas proximidades da estação e


junto a trabalhadores que trabalharam na construção da ferrovia começaram a formar um
pequeno núcleo populacional1172.
Após cinco anos da chegada da ferrovia a “estação”, como era chamada o novo
núcleo populacional, foi transformado em sede do município depois da Resolução Provincial
nº 1013 de 16 de Abril de 18681173. Do ponto de vista legal e daqueles que já estavam
estabelecidos no local a transferência da cidade se deu sem maiores problemas. A questão é
que nem todos estavam satisfeitos com a situação como, por exemplo, os feirantes não
aceitaram o decreto e se mantiveram no antigo local, sendo necessário o reforço policial que
enfrentou a resistência de parte da população que decidiu não contribuir com os planos do
poder público municipal e estadual. Eles deixaram o local somente cinco meses após o
decreto local e com enfrentamentos com a polícia1174.
Independentemente da veracidade e do rigor cronológico dos acontecimentos
narrados, o que interessa aqui é a maneira pela qual Joanita relembra os fatos relacionados a
ele. Em primeiro lugar ela não marcou os fatos com datas concretas, em nenhum momento da
narrativa dos acontecimentos ocorreu uma única menção a um tempo devidamente controlado
e fracionado, salvo uma referencia de modo efêmero ao fato de que as ferrovias chegaram no
Brasil na época do Segundo Império 1175. Segundo, como conseqüência do primeiro fator,
Joanita não se preocupou em seguir uma seqüência baseada na cronologia. Ela mencionou
fatos relacionados à instalação da ferrovia na segunda metade do sec. XIX e da transferência
da sede da cidade, depois parte para descrever como foram os “primórdios da cidade” e
novamente retornou para descrever e, mais que isso, deu a sua opinião, o seu juízo de valor
sobre os acontecimentos que envolveram todo o processo de transferência da cidade.
Joanita narrou o nascimento da cidade da seguinte maneira: “Uma minoria da
população começou a se transferir para a ‘estação’, [...]. Depois houve a transferência oficial
da cidade, decisão esta que revoltou a população, precisando de reforço policial [...]”1176. Mais
adiante ela falou que as transferências “eram feitas debaixo de apupos, pedradas, ao som de
versinhos que insultavam...”1177. A partir daí começou a justificar as reações daqueles que se
colocaram contra o processo de mudança da sede da vila. Primeiro afirma que as pessoas
tinham medo de que a sua vila desaparecesse diante de outra que aparecia próxima e que

1172
BARREIRA, Americo. Op. Cit. pp. 39-40.
1173
Idem. pp. 41-42.
1174
Idem.
1175
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 27.
1176
SANTOS, Joanita. Op. Cit. p. 27.
1177
Idem. p. 28.

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apresentava mais vantagens, como localização e terreno. Além disso, Joanita diz que a antiga
vila estava destinada “à estagnação e decadência”1178, porque com a facilidade de transporte
para Salvador, a nova vila tinha tudo para alcançar rapidamente o progresso e o
desenvolvimento em detrimento do antigo núcleo populacional e ainda decreta no final:
“decaiu”1179. Ou seja, para Joanita a revolta daquela população se explicava por uma espécie
de despeito e, pior que isso, estava fadada ao fracasso como ela mesma afirma com todas as
letras. No entender dela uma população não poderia lutar contra as forças do progresso, que,
no caso de Alagoinhas, se apresentava puxado pela locomotiva de um trem. Ela opõe uma
cidade destituída de canais de comunicações com outras localidades, com dificuldade de
acesso a outras cidades e que estaria condenada ao isolamento a uma cidade nova, crescente,
que se desenvolvia graças à presença do trem em sua realidade no qual sua população, “até
então condenada ao isolamento começou a viajar, a se comunicar, a viver melhor,
comportamentos que elevaram a mentalidade do povo, refletindo, sobremaneira, na vida
sociocultural do lugar”.1180
A partir daí Joanita atrelou o desenvolvimento e progresso da cidade à presença da
estrada de ferro na vida do lugar. Assim tanto o desenvolvimento das lavouras de fumo e de
laranja e a atividade comercial da cidade tornam-se devedores da ferrovia, pelo fato de que a
proximidade desta possibilitava obviamente a facilidade de transporte, tanto para o
escoamento da produção, quanto para o acesso a novos produtos1181.
Além do aspecto econômico, a autora chamou a atenção para o aspecto cultural
que foi possibilitado pela imagem do trem1182. A regularidade do transporte para centros
urbanos maiores e mais desenvolvidos, como Salvador, possibilitou o contato com uma série
de novidades e avanços na área cultural e tecnológica, inclusive o acesso ao cinema, pois, de
acordo com Joanita, muitas pessoas da cidade iam até a capital para resolver os mais diversos
negócios e aproveitava para conferir as ultimas fitas produzidas por Hollywood.
De Salvador, através do trem, os alagoinhenses mantinham contato com as últimas
novidades da moda, os últimos modelos de calça, vestidos, saias, acessórios, assim também
como das revistas femininas da época. De certo o modo o trem atuava nas mentes das pessoas
muito além da sua materialidade e da sua função concreta. Na representação produzida por
Joanita e por muitos dos seus contemporâneos, o trem simbolizava, principalmente, até as

1178
Idem. p. 29.
1179
Idem.
1180
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit.. p. 29
1181
Idem. pp. 29-30.
1182
Idem. pp. 23-24.

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duas primeiras décadas do século XX, o ápice daquilo que era considerado civilizado e
progressista para cidade de Alagoinhas.
Esta narrativa sobre o nascimento da cidade, construída no texto de Joanita, não
era de modo algum, algo desconhecido pelos alagoinhenses. Havia, e ainda há, em Alagoinhas
uma repetição incessante de uma série encadeada de fatos relativos aos “primeiros tempos” de
existência do município. Era algo produzido e reproduzido através das narrativas de pais para
filhos, de uma geração para a sua sucessora, em uma “seqüência histórica de tradição
oral”1183.
Os escritos também contribuíram para esta cristalização de uma dada memória
para a cidade. Além do próprio texto de Joanita, que contribuiu para a manutenção e o reforço
de um modelo narrativo1184 sobre Alagoinhas, outros texto anteriores ao dela, inclusive
podemos situá-la como devedora destas construções, já haviam lançado as bases para uma
esquematização e uma convenção1185 na escrita da história de Alagoinhas.
Entre estes, podemos citar dois, que são mencionados por Joanita, que apresentam
uma série repetida de fórmulas e modelos na descrição dos dados relativos à cidade. O
primeiro foi Alagoinhas e seu Município1186, de Américo Barreira, publicado em 1902. O
autor era um médico cearense que foi designado para Alagoinhas, em 1897, onde seria o
responsável pelo atendimento médico daqueles vindos de Canudos em decorrência da guerra e
também pela instalação de um hospital para tratamento de variolosos. O texto foi dividido em
três partes. Primeiramente o autor descreveu aspectos físicos, populacionais, políticos e
urbanos; em seguida houve a apresentação de fatos relacionados à história da cidade,
inclusive com a apresentação de alguns documentos oficiais, juntamente com uma sessão
onde arrolava os nomes e os dados biográficos de homens considerados de destaque em
diversos setores da vida citadina, os chamados vultos municipais; finalizando, apresentou uma
coletânea com uma série de relatórios nosográficos, onde constavam descrições minuciosas
acerca das doenças e epidemias que atingiam o município naquele momento1187.
O outro texto foi Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas1188, de Salomão
Barros, publicado em 1979. Neste, seu autor se declara devedor e incentivado pelo trabalho do
Dr. Américo Barreira e se propôs a continuar e melhorar o trabalho de escrita da história do
1183
Idem. p. 29.
1184
BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, nº 19, 1997.
1185
Idem.
1186
BARREIRA, Américo. Op. Cit.
1187
ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O Poder Legislativo em Alagoinhas: 1920 a 1923. Monografia de
Especialização. UNEB, Alagoinhas, 2006. p. 15.
1188
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979.

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município: “assim corrijam-se as falhas, por certo anotadas, e atualizem-se, quanto possível,
suas motivações, complementando-se os fatos já descritos”1189. Seguindo as trilhas do seu
antecessor, ele dividiu o texto diversos tópicos de descrição, a saber, aspectos administrativos,
políticos, judiciais, religiosos, associativos, históricos, econômicos e uma sessão especial para
a atualização das biografias e realizações dos “grandes homens” da terra, os “vultos” da
cidade seguidos dos seus “grandes feitos”.
Este tipo de convenção para a escrita da história da cidade segue o modelo onde
“alguém se dispõe a reunir dados sobre uma urbe e a ordená-los, dando a ver um tempo de
origens, um acontecimento fundador, (...), uma saga ocorrida nas épocas mais recuadas,
realizada pelo povo fundador guiado por sua liderança”1190, e que “nessa linha ascensional
desde o passado até o presente da cidade, constrói-se o desfile ou a evolução cronológica”1191,
dos fatos e personagens considerados marcantes e fundamentais para o entendimento de sua
história. Nesse sentido justifica-se a repetição sempre dos mesmos fatos e personagens para
escrever e expressar a historia da cidade. Estes dados apontam para a criação e reprodução de
um passado mítico, onde a chegada de um padre jesuíta em um local de tabuleiros com
abundancia de águas, toda a saga de construção da Igreja que não foi concluída, a chegada da
estrada de ferro apontando para o progresso citadino, a luta para a transferência da sede para
próximo da linha de ferro levada adiante por homens de visão, “a liderança esclarecida do
povo fundador”, são como fases interligadas na montagem do poema épico constantemente
recitado, para que o alagoinhense não se esqueça de sua origem.
Para Joanita, pensando neste esquema de narrativa de cidade, o ritmo de
Alagoinhas de alguma forma era também regido pelas partidas e chegadas dos trens na
estação localizada na Praça J. J. Seabra. Joanita afirmou que quando o trem apitava na
Estação São Francisco, localizada no entroncamento ferroviário, quem tinha negócios a tratar
e dependia do trem ficava alerta e sabia o tempo necessário para chegar àquela estação. Foi
assim na sua chegada de Salvador, quando no momento do apito, seu pai saiu de sua casa e no
momento exato estava à sua espera e era assim toda vez que ele aguardava a chegada de
alguém via transporte ferroviário 1192. Não foi por acaso que ela iniciou e encerrou o livro com
uma viagem de trem. No inicio com onze anos de idade narrou as aventuras, expectativas e
surpresas de quem havia feito a sua primeira viagem de trem à Salvador. No final, em tom de

1189
Idem. p. 4.
1190
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades invisíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, jan. – jun. de 2007. p. 12.
1191
Idem. Ibdem.
1192
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 19.

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despedida, dos leitores e da cidade, ela narrou sua partida em direção ao estado de Sergipe, na
presença do esposo e de sua primeira filha, contado a idade de vinte e oito anos.
Neste meio tempo foram inúmeras as viagens à Salvador de férias em da família e
a estudo, como foram comuns as viagens também a passeio para Santa Luz no sertão baiano e
Esplanada, cidade próxima à Alagoinhas. Na cidade sertaneja ela acompanhou sua madastra
para tratamento de saúde e passou alguns dias de férias na fazenda de uma colega de escola.
Outro tempo presente no texto de Joanita era o da religiosidade. Segundo ela, “o
alagoinhense [era] um religioso. Freqüenta[va] as igrejas e compare[cia] às procissões, sendo
que as festividades mais animadas eram as trezenas de Santo Antonio - o padroeiro da
cidade...”1193. A Igreja Matriz, a Capela de Santa Terezinha e a de Nossa Senhora das
Candeias eram bastante freqüentadas pela população.
O mês de maio era dedicado à devoção à Maria, no qual as mulheres da cidade, de
todas as idades, levavam todas as noites, a partir das dezoito horas, flores para o altar-mor,
para serem colocadas aos pés da imagem da santa. Essas missas especiais eram organizadas, a
cada noite, por uma senhora da comunidade local. Desde a infância até a mais experiente
idade as mulheres alagoinhenses sentiam-se na obrigação de participar desse momento de
emoção, nas palavras de Joanita e de Maria Feijó 1194.
Inaugurando o mês das festas juninas, aconteciam os festejos de Santo Antonio no
dia treze de junho. Neste dia ocorriam missas festivas, procissão e o encerramento da trezena
que se iniciava todo dia primeiro de junho. Além destas festas oficiais organizadas pela igreja,
eram comuns as noites de rezas em casas de particulares que sempre acabavam em danças e
em chance para que as jovens moças casadoiras arranjassem um casamento1195.
As reformas e construções de igrejas costumavam movimentar um número
considerável de fiéis que lançavam mão de diversas maneiras de angariar fundos para tal
finalidade. Seja a feira-chic1196 para ajudar na reforma da Matriz ou a venda de guloseimas
para ajudar na construção da Igreja de São Francisco, Joanita fez questão de enfatizar o
quanto os habitantes da cidade se mobilizavam quando o assunto era a Igreja e a religião1197.

1193
SANTOS, Joanita da Cunha. Op, Cit. p. 39.
1194
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 36 e FEIJÓ, Maria. Op. Cit. p. 106.
1195
FEIJÓ, Maria. Op. Cit. p. 58
1196
Esse foi um evento ocorrido em Alagoinhas com o objetivo de angariar recursos para a reforma da Igreja
Matriz. Consistia em uma reunião de mulheres concentradas na Praça J. J. Seabra que ficavam à espera de alguns
“cavalheiros”. Quando estes apareciam eram “capturados” e para adquirirem sua liberdade eram obrigados a
comprarem alguns produtos colocados à venda no coreto localizado no centro da Praça. SANTOS, Joanita da
Cunha. pp. 38.
1197
Idem. pp. 37-39.

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Além disso, falava que os dobres dos sinos da Matriz, de alguma forma, também
contribuíam para moldar certos comportamentos dos fieis, como o anúncio de falecimento de
moradores, pois os alagoinhenses deveriam ser treinados e estar atentos para o significado de
cada toque, pois “se o primeiro toque fosse agudo e o seguinte, grave, era uma mulher que
havia falecido. Ao contrario, era um homem.”1198. E, mais, se o morto pertencesse a uma
família de posses ainda teria direito a alguns dobres extras no Dia de Finados. Os fiéis sabiam
diferenciar os toques do Dia de Finados e de falecimento do repicar diário do chamado para as
missas realizadas nas diversas Igrejas da cidade, sem contar com o fato que os badalares
regulares às seis horas da manhã, ao meio-dia e ás seis horas da tarde marcavam e dividiam o
tempo na cidade1199, indicando o horário em que cada cidadão acordava para a realização de
sua rotina diária, marcava o tempo do intervalo das refeições e por fim o encerramento da
jornada e o momento para a reflexão e para a devoção de cada dia.
A partir da leitura das memórias de Joanita podemos indicar o modelo de cidade e
de sociedade construídos em sua narrativa. Ao reforçar a idéia de que o povo alagoinhense era
religioso, quando destaca que, “houve uma serie de festinhas para aquisição de donativos para
a reforma da Matriz”1200, ou ainda que, “esta belíssima igreja [a de São Francisco] foi
construída com a ajuda e cooperação da sociedade”1201, e que, “com o espírito de luta dos
irmãos da Ordem Terceira de São Francisco e ‘todos se dando as mãos’, foi possível construir
tão bonita e suntuosa obra sacra”1202. Ou, ainda, quando faz questão de lembrar que as
compras em sua casa eram feitas através de bilhetinhos para a farmácia, a padaria, o açougue
e etc., “da farmácia chegavam as garrafas de ‘óleo de rícino’[..], atendendo a bilhetes de que
meu pai fazia a Pedro Dória, seu amigo compadre”1203, Joanita tentou fixar como imagem de
uma cidade que era marcada pela idéia de determinado tipo de tradição – aquela da
religiosidade, da amizade mútua e da idéia de uma grande e una comunidade.
Era uma tradição inventada para marcar uma determinada posição no conjunto da
sociedade. No momento que ela exaltou dados e características de uma determinada época,
isso pode ser encarado como uma luta contra o tipo de sociedade e do tempo em que se vive
e/ou ainda certo receio diante de uma nova realidade. Nesse caso uma estratégia para lidar
com todos esses sentimentos foi o apego e a exaltação do “seu tempo”, com isso ela congelou

1198
Idem. p. 36.
1199
Idem.
1200
Idem. p. 37.
1201
Idem. p. 38.
1202
SANTOS, Joanita da Cunha. pp. 38-39.
1203
Idem. p. 59.

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o passado construído para sí. Uma imagem, por vezes, estática e que atendia aos seus
interesses de valorização de determinada época, cidade e sociedade1204.
Vivendo em um tempo, em uma sociedade e em uma cidade diferente daquela
sobre a qual escreveu, Joanita reforçou o caráter tradicional da sociedade na qual nasceu,
cresceu, se formou e aprendeu a compreender o mundo à sua maneira. Em uma estrofe do
poema A Serra do Ouro ela afirmou:

A cidade de Alagoinhas
vive da tradição
daqueles pomos dourados
brilhando nos laranjais1205.

No seu texto sobre a Alagoinhas das décadas de 1930 e 1940, época em que a
cidade detinha uma das maiores produções de fumo do estado da Bahia e alcançou o posto de
maior produtora de laranja da Bahia1206, era o tempo em que os sítios e chácaras da cidade
estavam lotados de pés de laranja, onde, “as laranjeiras carregavam tanto que era preciso
colocar escoras. [...]. Nos quintais das residências, nos jardins, em qualquer lugar onde
houvesse um pedacinho de chão, surgia uma laranjeira”1207 e “a fama dos saborosos frutos
extrapolou as fronteiras da cidade. [...]. Os trens de carga saiam superlotados de engradados
de laranja. Na capital, teriam de concorrer com as afamadas e tradicionais ‘laranjas do
cabula’”1208. Para completar o seu poema ela rematou com o seguinte:

Ouro, nos laranjais


existia ‘de montão’
ouro, da ‘Serra do Ouro’,
jamais!1209.

Utilizando uma metáfora para caracterizar a riqueza da cidade no período


apresentado em sua narrativa, Joanita afirma com todas as letras que o “ouro” produzido por
Alagoinhas era representado pelos laranjais e fez questão de ressaltar mais de uma vez que
“os frutos tinham uma coloração dourada”. Na sua leitura , o Eldorado e a idade do ouro
vivido pela cidade, sua fase de glória e fama correspondiam ao período em que Alagoinhas
respondia por grande parte da laranja produzida pela Bahia. E ela se mostrou saudosa desse

1204
BOSI, Eclea. Op. Cit. pp. 418-422.
1205
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 32
1206
Questões referentes à economia da cidade foram discutidas no primeiro capitulo desta dissertação.
1207
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p.29.
1208
Idem. p. 30.
1209
Idem. p. 32.

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tempo e mostrou o quanto esse sua época era melhor do que aquela atual, do momento da
escrita1210.
Joanita manteve-se reticente quanto às mudanças e atacou a ação destrutiva do
tempo sobre recursos naturais e as manifestações culturais da cidade, os exaltou e tentou
imortalizá-los através de sua escrita com poemas, como, o dedicado às mangueiras da praça
Ruy Barbosa, que são “Testemunha da historia de Alagoinhas e sua gente/ tradição
viva.[...]”1211; O cachorro magro,

era assim o ‘cachorro magro’:


uma duna que lembrava
mar/ magia/ encantamento/ alegria/ brincadeira...
era tapete macio/ era escorregadeira/ era chão...1212

E, ainda assim, com todo esse significado e beleza ela demonstrou um sentimento
de perda, “o homem destruiu/ sumiu/ acabou”. Esse mesmo sentimento foi identificado em
relação às filarmônicas da cidade1213 em um poema homônimo, depois de exaltar as
características das duas filarmônicas da cidade, a Euterpe e a Ceciliana, ela lamenta a situação
das duas bandas:

Maestros competentes, geniais


músicos e professores/ diretores sociais
escreveram numa pauta entre bemóis e sustenidos
uma Página de Ouro/ em termos bem definidos:
arte – cultura - tradição,

Após uma pausa como que para um longo suspiro finaliza, “e a cidade
abandonou...”1214. A construção de uma imagem de valorização para o passado de Alagoinhas
é fruto do longo tempo percorrido entre o tempo vivido e o tempo do escrito e a ação
produzida por esse tempo na vida e na memória da autora. Sua condição no momento da
produção do texto entrou em jogo e alterou, ou mesmo pode ter motivado o processo de
rememoração e narração1215. No momento da escrita do texto Joanita morava na cidade de
Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, na década de 1980. Vivendo em uma das

1210
BOSI, Eclea. Op. Cit. p. 421.
1211
SANTOS, Joanita da Cunha. Op. Cit. p. 31.
1212
Idem. p. 33.
1213
A Sociedade Beneficente Filarmônica União Ceciliana, foi fundada em 1883 e a Sociedade Filarmônica
Euterpe Alagoinhense foi fundada em dezembro de 1893.
1214
Idem. p. 41.
1215
MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 29.

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maiores cidades do Brasil, tendo que lidar com um ritmo muito mais intenso e acelerado, onde
as transformações ocorriam com uma velocidade muito maior, convivendo com uma
desagregação cada vez maior de uma série de valores insistentemente defendidos por ela em
sua escrita, distante de seus familiares e seu esposo (ela já estava viúva, no momento da
escrita). Além disso, na grande metrópole era apenas mais uma senhora que estava entrando
na terceira idade, viúva de um ex-bancário. Em Alagoinhas ela era filha de um homem
conhecido e bem relacionado na sociedade que, inclusive, chegou a ser prefeito, neta de um
dos chamados pioneiros, freqüentava os clubes e bares da elite, era amiga e se relacionava
com as moças das “melhores” famílias da cidade. Ela sentia que esse tempo, essa sociedade
não lhe pertencia mais, vide o sentimento e a valorização empregados nas lembranças do “seu
tempo”. Ou seja, nem ela nem a cidade que ela narrou não eram mais as mesmas, ambas
haviam passado por um amplo processo de transformação e suas lembranças são
condicionadas pelo presente do individuo que relembra1216.
O livro nos relata fatos de um tempo que passou e não voltaria mais. O tempo das
memórias foi reconstruído quarenta anos depois aproximadamente e mostra a reconstrução e a
re-significação de uma historia que não mais pode ser vivida, a não ser através da
rememoração, mas neste será outra época. Saudades e nostalgias marcadas pela desagregação
de uma vida social e familiar, marcada pela separação, pela perda de espaço e prestigio social.
Uma lembrança gerada para marcar um lugar na história e na cidade, objeto e principal
personagem desta rememoração.
O ato de escrever apresentou-se como um trabalho de composição1217 da memória,
nele, as reminiscências foram construídas com o intuito de reorganizar o passado (mítico,
representado pela idade de ouro da laranja, altamente valorizado) em função do presente, para
dar sentido a este e torná-lo agradável. A memória está em permanente processo de
construção, pois nossas experiências presentes e o ambiente social em que vivemos exigem de
nós a criação de um passado com o qual possamos conviver com um mínimo de satisfação1218.

1216
Idem. p. 31.
1217
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a Historia Oral e as memórias.
Ética e Historia Oral. Projeto historia nº 15, Revista do Programa de estudos Pós-Graduados em Historia e do
Departamento de Historia - PUC/SP. São Paulo: fevereiro de 1997, p. 51-84.
1218
MALUF, Marina. Op. Cit. p. 31.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu Município. Alagoinhas: Typographia do Popular,


1902.

BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes


Gráficas, 1979.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista. In: Estudos


Históricos, Rio de Janeiro, nº 19, 1997.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


1990.

FEIJÓ, Maria. Alecrim do tabuleiro: ...crônicas evocativas de Alagoinhas. Rio de Janeiro:


Editora Max, 1972.

MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995.

PESAVENTO, Sandra Jatahy Cidades invisíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias.


In: Revista Brasileira de História. São Paulo, jan. – jun. de 2007.

ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O Poder Legislativo em Alagoinhas: 1920 a 1923.
Monografia de Especialização. UNEB, Alagoinhas, 2006.

ROCHA, Jeane Angélica M. Saturnino da Silva Ribeiro: um homem de seu tempo. In:
Alagoinhas em Revista. Ano I nº I. Set/Out/Nov. de 2005.p. 3.

SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987.

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A FAMÍLIA CORRÊA DANTAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE


CULTURAL DE SERGIPE

Joceli Nascimento S. Sales


Especialista em Patrimônio Cultural de Sergipe
E-mail: josydegeraldo@hotmail.com
Magna Cecília Sobral Silva
Especialista em Patrimônio Cultural de Sergipe
E-mail: lia_classicos@hotmail.com
Solimar Guindo M. Bonjardim
Mestranda em Geografia NPGEO/UFS
E-mail: solmessias@yahoo.com.br

O presente estudo tem por objetivo promover o estudo e a construção da memória, ressaltando
para isso a importância da família Corrêa Dantas, como também o mobiliário que se encontra
sob seus cuidados, que são verdadeiras amostras do patrimônio cultural sergipano. Para tanto,
a base metodológica será calcada numa revisão bibliográfica sobre a formação do Estado e
sobre a construção do patrimônio acima citado, ainda não reconhecido como tal. Os móveis
que hoje pertencem aos atuais herdeiros do antigo Engenho São Francisco de Vassouras e
Engenho Mouco traduzem um capítulo da história da sociedade colonial do Estado de
Sergipe. Sua mostra, de considerável relevância documental, é ponte real que liga o antigo
mundo açucareiro dos engenhos a uma nova realidade social e econômica vivida na
atualidade. Refletindo, é correto afirmar que é de extrema importância o uso do documento
como ferramenta ao tratar da história de uma sociedade. Portanto, esse trabalho se conclui
buscando atingir seu objetivo primordial, que é instituir uma forma de salvaguardar a
memória histórica de um povo, através de um documentário bastante significativo, para uma
sociedade que vive as transformações do tempo moderno.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Memória, Bens Móveis, Família Corrêa Dantas.

1 - INTRODUÇÃO

A idéia de elaboração desse trabalho surgiu a partir do momento que se percebeu


a necessidade de salvaguardar e divulgar o acervo cultural que hoje pertence aos atuais

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herdeiros da família Corrêa Dantas. O documento no qual o trabalho está sendo baseado é
composto de diversos mobiliários, utensílios de uso cotidiano e objetos pessoais originados
dos antigos proprietários dos Engenhos São Francisco de Vassouras e Mouco, situados nos
municípios de Divina Pastora e Santa Rosa de Lima respectivamente, desde o início do século
XVII.
Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo promover o estudo e a construção da
memória, ressaltando para isso a importância da família Corrêa Dantas, como também o
mobiliário que se encontra sob seus cuidados, que são verdadeiras amostras do patrimônio
cultural sergipano. Desse modo, é importante ressaltar que para a realização deste trabalho foi
realizada uma revisão bibliográfica sobre a formação do Estado e sobre a construção do
patrimônio acima citado, ainda não reconhecido como tal.

2-A Família Dantas na Construção da Identidade Cultural de Sergipe

2.1 – Os Móveis e a História

O povo sergipano, como todo Brasil, é formado por uma miscigenação de


culturas, europeus, africanos e nativos. Devido a essa mistura de povos, temos também uma
diversidade de materiais, costumes, hábitos que constituem o povo em questão. Quando
estudada a memória de uma localidade, existem várias formas de fazê-la, sendo a Família
Corrêa mais um dentre tantos meios.
A família supracitada chegou ao território sergipano juntamente com os primeiros
portugueses e aqui construiu toda sua fortuna, transformou modos de vida, adquiriu hábitos,
influenciou na formação do povo sergipano. Na construção de seu patrimônio adquiriu
inúmeras peças de mobiliário doméstico, hoje utilizadas como peças de decoração na sua
atual residencial rural
É importante ressaltar que por ter sido os atuais componentes da família Dantas os
adquirentes dos citados móveis, isso os faz sentir como que proprietários únicos e exclusivos
de tais peças. Na verdade elas estão sendo cuidadosamente guardadas, porém às vezes por
necessidade de conservação, perdendo partes da sua originalidade o que significa grande
perda para a memória do povo sergipano.
Contudo, é necessário esclarecer que esse acervo se constitui, de acordo com o
significado de patrimônio, em um Patrimônio Histórico Cultural ainda não reconhecido pelos
órgãos competentes. Porém, segundo Dias (2006), é importante a utilização do patrimônio

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como ferramenta ao tratar da História de uma sociedade (do povo em questão), e assim criar
uma nova visão onde ele seja considerado parte integrante e fundamental da memória. Sendo
assim, não é conveniente que esteja limitado a uma pequena parcela da sociedade a qual o
patrimônio traz referências.
O tombamento e registro são instrumentos legais de preservação e proteção dos
bens patrimoniais de natureza material e imaterial, aplicados pelo poder público. Tombar ou
registrar um determinado bem significa proteger, conservar e reconhecer a sua importância
cultural para a região que o abriga ou para o Brasil, por seu valor histórico, artístico,
arqueológico, etnográfico, paisagístico e/ou bibliográfico.
O tombamento não retira a propriedade do imóvel e nem implica em seu
congelamento, permitindo transações comerciais e eventuais modificações, previamente
autorizadas e acompanhadas, além do auxílio técnico do órgão competente e sob supervisão.
Entretanto, para Camargo (2002), a preservação, a classificação ou o tombamento
de objetos móvel ou imóvel decorre do significado simbólico que se atribuí a eles. Todo e
qualquer produto material das culturas humanas é dotado de uma funcionalidade, um fim para
o qual é executado. Logo o valor que é atribuído aos objetos ou artefatos é decorrente da
importância que lhes atribui à memória coletiva. É essa memória que nos impele a desvendar
seu significado histórico-social, refazendo o passado em relação ao presente, e a inventar o
patrimônio dentro de limites possíveis, estabelecidos pelo conhecimento.
Chauí (2006) discute que o importante, no entanto, é entender que se recua ao
passado para tentar compreendê-lo, e depois poder entender o presente. Desta maneira, a
história funciona como um instrumento para viver, ao menos, mais conscientemente o
presente. E é o presente que coloca indagações ao passado.
É baseado nessa definição de Chauí que se faz importante o estudo e exposição do
acervo da família Dantas, que hoje se encontra guardado, mas não salvaguardado como seria
preciso. São peças que retratam a forma de viver e o cotidiano de uma geração de séculos
passados, gerações essas que marcam a história da formação de um estado.
Os mobiliários e demais objetos do acervo dos atuais proprietários da fazenda
Lourdes, ainda que não tombados como patrimônio histórico cultural do povo sergipano, é
parte da memória que não pode ser ignorada. É resposta para um diálogo do passado com o
presente, onde este poderá ser explicitado através daquele.
Existe nesse acervo a história de uma evolução social, econômica e cultural de
grande relevância no que se refere não somente à sociedade sergipana, mas também ao povo
brasileiro.

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Todavia, o resgate da obra na tentativa de preservação da memória pode


facilmente ser confundido com apropriação de um bem. Logo, o espaço urbano precisa ser
utilizado como espaço expositivo, e assim, poder levar as demais classes à reflexão das
possíveis contradições da vida moderna. A arte deve ser partilhada por diversas classes e por
órgãos responsáveis pela administração dos estados, devendo promover a aproximação.
No entanto a maioria da população desconhece essa norma e assume como bem
particular aquilo que na verdade é um patrimônio sócio-cultural. O acervo pesquisado neste
trabalho é um exemplo da problemática citada. Desconhecendo o significado do bem que hoje
encontra-se sob poder dos atuais Dantas, esses, inconscientemente ou não, negam aos seus
conterrâneos, o direito de parte da sua memória cultural.
Os objetos que são documentos palpáveis do passado foram transformados em
peças obsoletas, objetos de decoração de fazendas e cantos de sala num isolamento a que
foram submetidos legado possivelmente ao desaparecimento.

2.2 – A Família Dantas.

O território que hoje constitui o Estado de Sergipe permaneceu fora da área de


domínio do colonizador até 1590. Contudo, Sergipe é conhecido de Portugal desde a chegada
dos portugueses ao Brasil, segundo Nunes (1989). A conquista aconteceu em 1590, com a
vinda de um grande exército sob o comando de Cristóvão de Barros, transformado o novo
território em Sergipe Del Rei pertencente à Bahia.
Desse modo, o Rei de Portugal da época Felipe II doou as terras conquistados para
Cristóvão de Barros, com a condição de reparti-las com os melhores soldados que o ajudaram.
De acordo com Oliva e Santos (1998, p.34-35) as terras além de serem distribuídas para
soldados, foram cedidas, grande parte, a membros da família Garcia d’Ávila, ricos
proprietários baianos, para criação de gado e plantação da cana-de-açúcar. Enquanto a maioria
dos sesmeiros recebia pequenos lotes, aqueles que demonstravam possuir fortuna eram
contemplados com extensas áreas. A pecuária, assim, surgiu como a principal atividade dos
colonizadores sergipanos. O gado, nessa época, era imprescindível, quer na força motora das
moendas e no transporte das canas para os engenhos, quer na produção do açúcar para os
portos de embarque da Bahia.
Já o desenvolvimento dos engenhos de açúcar aconteceu tardiamente, alguns
fatores contribuíram para o retardamento do desenvolvimento da indústria canavieira em

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Sergipe. Dentre eles, podem-se citar o sistema de transportes precário, a dependência


comercial da Bahia, a falta de capital dos sesmeiros.
Freire (1995) destaca que as doações iniciais de sesmarias evidenciam que os
peticionários, em grande parte, visavam à criação do gado e o plantio de culturas de
subsistência, poucos afirmavam ser homens de posses que iriam investir no açúcar. A
indústria açucareira somente vai se desenvolver a partir da segunda metade do século XVIII e
início do século XIX. Assim sendo, as regiões ocupadas pelas culturas de subsistência passam
a dar espaço à monocultura canavieira, que empurraria tais culturas e o gado para as regiões
agrestes.
Nessa época (séculos XVIII e XIX) a economia de Sergipe pode ser classificada
como exclusivamente agrícola, sua principal indústria é a lavoura, predominando a de cana-
de-açúcar, que foi a origem da riqueza pública e particular. Ela tem por sede os importantes
terrenos de massapé, nos vales dos principais rios, como já exposto.
Nos séculos XVIII e XIX, veio o “boom” do açúcar na província, os engenhos se
espalharam por todo o vale do Contiguiba, tendo o número de 140 no fim do século XVIII
(Nunes, 1989, p. 137).
Desse modo, conforme Dantas (1980, p. 29), a região do Cotinguiba foi escolhida
para a instalação da maioria dos engenhos de açúcar, dos mais variados tipos, desde as
bolandeiras de água, a cavalos e a bois, à máquina de vapor. Construíam a casa-grande para o
senhor branco, a senzala para o escravo, reunia-se os animais (trabalho, cria, carro de bois),
dispunham os instrumentos de trabalho, e os instrumentos da casa (móveis em geral: cama,
cadeira, mesa, guarda roupa, oratório) estava montado o engenho e começava-se o
desmatamento.
Assim, o açúcar começou a construir as fortunas da província, com uma grande
riqueza cultural e arquitetônica. As famílias vinham de Portugal, via Bahia e Pernambuco,
para disputar uma sesmaria. Descobriram as terras de Sergipe Del Rey e aqui construíram os
troncos das principais famílias da Província.

Egas Muniz Barreto e Rosa Maria de Sá plantaram o seu ninho no engenho


Dranga, na Vila de Itabaiana, enquanto Estácio Muniz Barreto e Francisco
Xavier de San José instalaram-se no engenho Porteira, na Vila de Santo
Amaro das Brotas. Aí estão os dois grandes troncos que se espalhariam nos
engenhos da Cotinguiba, multiplicando-os em propriedades de 400 e 700
tarefas, de acordo com o número de filhos. Aparecem assim os Muniz
Barreto, os Teles Barreto, os Cardosos, os Corrêas Dantas, os Vieiras
Dantas, os Vieiras de Melo, os Vieiras de Andrade, os Gomes de Melo, os
Prados Barreto, os Prados Pimentel, os Azevedos Sás, os Faros, os Aciolys,

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os Meneses Barretos, os Meneses, os Meneses Sobral e os Prados Trindades,


que fazem os grandes ramos das famílias da Porteira e do Dranga.
(DANTAS, 1980, p. 30)

Desse modo, entre essas fortunas se encontra a família Corrêa Dantas, que tinha
sua atividade açucareira concentrada nos Engenhos: Vassouras e Mouco (antigas partes dos
engenhos supracitados que foram divididos aos filhos) e um vasto patrimônio cultural.
O primeiro membro da família Corrêa Dantas nascido em Sergipe foi Theotônio
Corrêa Dantas filho de Antônio Coelho Barreto (Português) e D. Quitéria Gomes de Sá. Os
pais querendo fazer uma homenagem a seus antepassados colocaram os sobrenomes desses
em seus filhos, assim cada filho ficou com um sobrenome diferente. Theotônio Corrêa Dantas
ficou com o sobrenome do avô materno de D. Quitéria (Bernardo Corrêa Dantas). A partir
desse a família criou uma tradição como senhores de engenho, sempre mantendo o
sobrenome.
Theotônio Corrêa Dantas era proprietário do Engenho Santa Bárbara, que acabou
sendo herdado por seus filhos do segundo casamento. Esse teve cinco filhos com sua primeira
esposa D. Clara Angélica de Menezes. Entre esses filhos se destaca Antônio Corrêa Dantas
(herdeiro do Engenho Tingui), que se casa com D. Maria Natividade Barreto Dantas (herdeira
dos engenhos Vassouras e Santa Rosa). Devido a esse casamento, o Engenho Vassouras entra
para a família Corrêa Dantas e também o Engenho Santa Rosa, que desmembrado, seria o
Engenho Mouco. Entre os filhos de Antônio e D. Maria destaca-se o Comendador Francisco
Corrêa Dantas herdeiro do Engenho Vassouras e Mouco (Dantas, 1980, p. 137-138).
O Comendador Francisco casa-se com D. Maria Victoria de Menezes Barreto,
essa será a família que irá morar no engenho Vassouras e Mouco. Os primeiros filhos nascem
no Engenho Mouco. Dentro desse, com a divisão de terras, ficou localizada, além da casa
grande, a Igreja do antigo Engenho Santa Rosa, onde está enterrado a maioria dos Corrêa
Dantas, menos Theotônio e suas esposas.
Entre os filhos do Comendador se destaca o Ex-presidente da província Manoel
Corrêa Dantas casado com D. Adelina Vieira de Andrade. Com a morte do Comendador e sua
esposa, o Engenho Mouco irá ficar de herança para sua filha Olívia Dantas Acioly e o
Engenho Vassouras para Manoel Corrêa Dantas.
Porém, Olívia irá falecer alguns anos depois, deixando o Engenho para seu
marido. Este, casando de novo, divide o engenho em dois: de um lado o Engenho Mouco
(com a antiga casa-grande e a Igreja), do outro lado o engenho Lourdes (totalmente novo). O
Sr. Acioly irá passar o controle do Engenho Lourdes para seus filhos com Olívia e o Engenho

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Mouco para seus filhos do segundo casamento. Assim, retira o Engenho da família Corrêa
Dantas (Informação concedida pelo Sr. Waldemar Dantas).
O presidente Manoel Corrêa Dantas, herdeiro do Engenho Vassouras, é o último
morador desse, pois, com sua morte os filhos dele irão vender as terras do engenho, que era
localizado em Divina Pastora, para um primo distante. O engenho, como Usina, mudou-se
para a cidade de Capela. Nessa cidade irá funcionar até ser fechado por seus netos na década
de oitenta (Informação concedida pelo Sr. Augusto Dantas).
Portanto, em todos os anos que habitaram o Engenho Vassouras e Mouco,
construíram um Patrimônio Cultural muito importante (essas pessoas acumularam artefatos
vindos de diversos lugares da Europa, que hoje podem ser vistos como peças que retratam a
memória de um período marcante da cultura sergipana).
Do antigo fausto restam ainda móveis, louças do cotidiano, que hoje são peças
decorativas, a casa-grande do Engenho Lourdes, que sofreu considerável reforma na sua
estrutura, e a Igreja do antigo Engenho Mouco (esse último não mais pertencente aos atuais
herdeiros da família). Encontra-se ainda peças de uso pessoal, como armas e bengala, e
algumas quinquilharias encontradas soterradas no terreno da casa grande do engenho Lourdes.

2.3 – Os Móveis e a Memória

Lampadário de vários braços suspenso do teto.


Confeccionado em cristal jateado com cinco
lâmpadas, sendo que cada uma tem uma proteção
superior em louça e gotas de cristal penduradas ao
redor da corrente. De estilo Português, era peça
comum nas salas de famílias abastadas, hoje esse
se encontra em uma das salas da atual fazenda
Lourdes. Segundo o proprietário foi o primeiro do
Estado de Sergipe que utilizava o sistema de
iluminação a querosene. Hoje ainda em
funcionamento, foi transformado em energia pelo
irmão de Orlando Dantas há trinta anos.

Foto 01: Lustre de Cristal, acervo Família


Dantas – Fazenda Lourdes.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales.
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Bengala de madeira oca por dentro onde se


abriga uma faca escondida que sai pela parte
superior. Peça muito usado pelos coronéis do
nordeste para se defender. Hoje somente usado
como enfeite. A bengala aqui exposta pertenceu
a Ex-presidente da província Manuel Corrêa
Dantas. Segundo familiares onde quer que fosse
ele estava sempre acompanhado de tal aparato.
Isso se justifica devido às inúmeras emboscadas
que existiam naquela época, ora organizada por
escravos, ora por inimigos políticos. Na verdade
esse aparato era uma arma de defesa disfarçada
por uma bengala.
Foto 02: Bengala com faca, acervo Família
Dantas – Fazenda Lourdes.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales.

Espécie de móvel como o consolo, mais


usado nas salas da casa-grande das
fazendas, no Brasil Colônia e Império, para
guardar louça em geral. Fabricado em
jacarandá com base de mármore branco.
Contendo uma gaveta arredondada sem
puxadores e duas portas com espelhos
ovais, em Estilo Neoclássico Francês.
Atualmente esse móvel caiu em desuso.
Utilizava-se um conjunto de três
dunquerques nas salas de jantares, hoje
somente enfeite de sala. Atualmente essa
peça tomou um estilo mais contemporâneo,
Foto 03: Dunquerque de Jacarandá, acervo com linhas retas, sem muitos detalhes e
Família Dantas – Casa da Família.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales. recebe o nome de aparador.

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Foto 04: Conjunto de Louça de Porcelana, acervo Família Dantas –


Fazenda Lourdes, Santa Rosa de Lima / SE.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales.

Conjunto de louça de porcelana Inglesa da marca Creampetal, da cor marfim com detalhes em
vermelho e dourado. Era um conjunto com mais de cinqüenta peças, restando agora somente
dez, em ótimo estado de conservação. Esse conjunto demonstra o poder aquisitivo ao qual
desfrutava a família Corrêa Dantas. É justo se afirmar que a louça das famílias abastadas
daquela época, era símbolo da sua nobreza, utilizado nos jantares e festas.

Foto 05: Baú de madeira, ferro e couro de boi cru, acervo Família
Dantas – Fazenda Lourdes.
Fonte: M. Sobral, S. Bonjardim e J. Sales.

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Baú retangular de pele de boi rajado (marrom, preto e bege claro) com armação de ferro e
madeira, de três fechos (central e lateral), com tampa convexa. Outra peça que remonta a
tempos muitos antigos. Utilizado mais intensamente nos séc. XVII a XIX, em todo Brasil
Colônia e Império. O baú hoje foi substituído pelas malas de rodinha. É uma boa amostra de
poder e relação social. Hoje é utilizado como objeto de decoração. Esses objetos eram
carregados pelos escravos e serviam pra transportar peças do vestuário de homens e mulheres
da fina camada social do tempo a que o texto se refere.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o trabalho de pesquisa e investigação bibliográfica é justo afirmar que o


acervo em questão é um documento de valorosa importância quando se refere a preservação
da memória cultural de uma determinada sociedade.
Os móveis que hoje pertencem aos atuais herdeiros do antigo Engenho São
Francisco de Vassouras e Engenho Mouco traduzem um capítulo da história da sociedade
colonial do Estado de Sergipe. Sua mostra, de considerável relevância documental, é ponte
real que liga o antigo mundo açucareiro dos engenhos à uma nova realidade social e
econômica vivida na atualidade.
Refletindo sobre as palavras de Dias (2006) quando esse afirma ser importante o
uso do patrimônio como ferramenta ao tratar da história de uma sociedade, é que esse trabalho
se conclui buscando atingir seu objetivo primeiro, de salvaguardar a memória histórica de um
povo retida, atualmente em mãos de uma minoria.
Vale ainda ressaltar que a Família Corrêa Dantas ajudou a construir a história do
Estado de Sergipe. Esses lutaram ao lado de Cristóvão de Barros na conquista da antiga terra
dos Tupinambás, atual Estado da Federação. Como recompensa da batalha, receberam
sesmaria situada nas atuais cidades de Divina Pastora e Santa Rosa de Lima, onde estão
localizados os Engenhos aqui estudados.
Enfim, quanto aos atuais herdeiros da família, apesar de parecer, talvez, não ter
conhecimento do valor histórico que mantém em sua “decoração”, foram na verdade os
instrumentos para que esse documento chegasse ao seu final.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMARGO, Haroldo Leitão. Patrimônio histórico e cultural. São Paulo: Aleph, 2002, -
(Coleção ABC do turismo).

CHAUI, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

DANTAS, Orlando Vieira. A Vida Patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

DIAS, Reinaldo. Turismo e patrimônio cultural: recursos que acompanham o crescimento


das cidades. - São Paulo: Saraiva, 2006.

FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1977.

NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

OLIVA, Terezinha Alves de; SANTOS, Lenalda Andrade. Para conhecer a história de
Sergipe. Aracaju - SE: Opção Gráfica, 1998.

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HISTÓRIA E CULTURA CASAS E IGREJAS JESUÍTICAS EM


SERGIPE: O EXEMPLO DE TEJUPEBA

Maria Helena de Oliveira - UNIT


olivehelen2@yahoo.com.br

Este trabalho tem como tema: Arquitetura Jesuítica em Sergipe. Ele objetiva traçar um perfil
geral da Arquitetura Jesuítica em Sergipe quanto à localização, função, material e técnicas de
construção. E, especificamente apresentar o valor das construções do Colégio Tejupeba, da
Missão de Tomar do Geru e de Japoatã, todas erigidas no século XVII. As casas e igrejas
jesuíticas de Sergipe estão levantadas em lugares altos e próximos a rios, localizações que
tinham como razões: a proteção territorial, o aproveitamento dos recursos naturais, a
facilidade de transportes e a manifestação da posição simbólica da igreja. Todas elas
testemunham uma rede de relações existentes entre religiosos, sesmeiros, índios e a
administração colonial, apresentando-se como núcleos em torno dos quais giram a vida da
aldeia e da comunidade circunvizinha. Elas retratam o processo de ocupação territorial de
Sergipe, os processos sócio-histórico e tecnológico das populações pré-existentes. Neste
sentido podemos pesá-las como Sistema Cultural, entendido como uma noção que agrega
elementos tecnológicos, sociais e ideológicos. Tais elementos devem ser interpretados de
acordo com as novas tendências, colocando-se a “ênfase no caráter único e diverso de cada
sociedade e cultura”.

Palavras-chave: História, cultura, igreja.

HISTÓRICO

O sítio Colégio foi fundado no início do século XVII pelos padres da Companhia
de Jesus. Em 1602, o inaciano Fernão Guerreiro (1550-1617) inclui Tejupeba na lista dos
colégios, residências e missões jesuítas da Bahia. Precisamente sobre Tejupeba o documento
seiscentista diz: “ Tejupeba, residência do colégio da Bahia”.1219 Outro documento afirma as
constantes desavenças entre os jesuítas e os seus vizinhos, os fazendeiros do Vasa Barris.

1219
GUERREIRO, Fernão. Relação Anual da Cousas que fizeram os padres da Companhia de Jesus. Lisboa: Gorge
Rodrigues, 1605, v. 1 p. 142.

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Uma delas alude à doação de meia légua de terras feita pelo Capitão-Mor Manoel Miranda
Barbosa, ao pernambucano Francisco da Silveira. As terras estavam localizadas à margem do
Vasa Barris e eram confrontante com as dos jesuítas. Isto provocou conflitos entre as partes,
resultando na vitória dos padres que obtiveram o ganho das terras.1220 Outros dados sobre o
Colégio Tejupeba datam de meados do século XVII até meados do século XVIII quando os
jesuítas são expulsos da região. Basicamente temos informações sobre a cultura material e as
atividades desenvolvidas pelos padres naquela região. Sobre o assunto alguns fatos devem ser
destacados.
Em 1631 é construída a residência dos padres, também chamada de Colégio, onde
neste período residiam o Pe. Sebastião Vaz, superior, e o Pe. Simão de Almeida. No local
foram edificadas: uma casa para os jesuítas, uma igreja conventual, além de algumas casas
para os escravos. A partir de então o sítio foi ocupado por diversos períodos recebendo
inúmeras denominações. A missão aparece num catálogo de 1692, com o nome de
“Residência de Sergipe no Tejupeba”. 1221 Na época era habitada pelo Pe. João Nogueira
procurador das fazendas de Sergipe pelo irmão Francisco Simões e pelo carpinteiro José
Torres de Milão. Após a expulsão dos holandeses a fazenda ficou em poder dos padres Inácio
Teixeira, Francisco Barbosa e Inácio de Carvalho. No século XIX, a fazenda pertenceu ao
coronel Domingos Dias Coelho e Melo, Barão de Itaporanga1222. Em 1943 a igreja e a casa
foram tombadas pelo IPHAN.

DESCRIÇÃO

O sítio está localizado no município de Itaporanga D'Ajuda, nas proximidades do


rio Vasa Barris, a 29 Km de Aracaju, ao lado esquerdo da rodovia estadual que liga a praia
Caueira às margens do rio Tejupeba, afluente do Vasa Barris.
No tocante a arquitetura, o sítio corresponde a um espaço “quadrado” delimitado
pela casa dos jesuítas e outras estruturas arquitetônicas contemporâneas. No meio da praça
fica a igreja, edificada pelos jesuítas. Informações orais falam da existência de um túnel
ligando a casa ao porto.

1220
LIMA Júnior, Francisco Carvalho. Uma Página sobre a Companhia de Jesus em Sergipe: 1575 a 1759 (Crônicas dos
tempos coloniais). Aracaju Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 31, p. 175-194, 1992.
1221
A fazenda Tejupeba tornou-se a mais numerosa residência em relação a outras da Baia.
1222
LEITE., Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portúgalia, 1945, v. 5 p. 321.

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A casa possui dois pavimentos com compartimentos médios e irregulares (Plantas


1, 2).1223 O pavimento térreo possui uma sala retangular com duas portas, que se abrem para
exterior ou terreiro e com uma escada que dá acesso ao pavimento superior (Setor T1). Há
mais duas salas pequenas interligadas por uma espécie de muro baixo ou mureta (Setores T2 e
T3). A casa tem ainda no primeiro pavimento um compartimento, tipo “cubículo” (Setor T4).
E dois salões grandes (Setores T5 e T 6). Ao fundo há um outro compartimento, usado
atualmente como estábulo (Setor T 7). O setor T8 tem abertura externa e passagem para o
setor T4. O setor T9 tem grande dimensão, possivelmente tenha sido utilizado como oficina
para a fabricação de barcos ou outros usos. Há ainda o setor T10, com passagens para o
exterior da casa. No pavimento superior há vários compartimentos que são enumerados da
seguinte forma: quartos (Setores: S 1, 2, 3, 4 e 5), salas (Setores: S 6-1 ), provável salão (S 6-
2), sótão (Setores S7 e S8), corredor largo (S 9), provável sala (Setor S10), provável deposito
(Setor S11).
No tocante a fachada da residência há um alpendre com balcão corrido no piso
superior. Esta característica era típica das residências do início do século XVII (Fotos 1 e 2).
Quanto ao material de construção empregado na residência jesuítica de Tejupeba
temos: paredes centrais de taipa e pau-a-pique, enquanto as laterais são de adobe e tijolinhos.
1224
O pau-a-pique é usado nas paredes centrais, já o adobe e o tijolinho são usados nas
pareces laterais. Esta é uma forma comum nas construções brasileiras do final do século
XVII-XVIII. Muito provavelmente a aplicação da técnica do tijolinho numa das paredes do
pavimento térreo é recente. O piso deste pavimento possui alguns níveis. Neles são
perceptíveis variados elementos de formas de construção, tais como tijolos quadrados e
retangulares na primeira camada do piso. Na segunda há terra batida. As paredes do
pavimento superior são em sua maioria de adobe1225e tijolinhos. Nota-se diversas intervenções
nas paredes, indicadas pelas diferentes colorações do material construtivo. Mesmo assim é
possível verificar que a Casa Tejupeba tem como material e técnica predominante o pau-a
pique e o adobe. As dimensões das paredes da residência são diversificadas: as paredes
exteriores tem 50 cm e as interiores 15 a 30 cm. A igreja de Tejupeba evidenciou marcas de

1223
Plantas baixas dos pavimentos térreo e superior da casa Tejupeba, feitas por Genolice técnica em edificações e Maria
Helena de Oliveira, 2004.
1224
A casa do Colégio Tejupeba faz parte de um tipo de Arquitetura Espontânea como a taipa que é, em geral, material
precário e durável ao longo dos séculos. “A casa de então era erguida com paredes de barro adicionado a enxaiméis e
franquias de madeira, sendo a argamassa misturada, segundo as possibilidades com palha e cascalhos”. (BARDI, P. M.
História da Arte no Brasil. São Paulo: Melhores Momentos, 1976 v. 2. p.25)
1225
Adobe é um tijolo de barro secado ao sol, de grandes dimensões geralmente medindo- 20x20x40.

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intervenções “recentes”. É o caso da base de uma torre de antena de rádio local instalada
próxima à entrada principal da igreja.
Quanto ao traçado da igreja de Tejupeba há uma semelhança quanto aos das
demais igrejas jesuíticas do Brasil colonial. A planta é constituída por dois pavimentos,
(térreo e superior). O pavimento térreo é formado por nave única, capela–mor, sacristia
transversal e dois corredores laterais. A nave, em sua entrada, possui duas passagens que
levam aos corredores laterais, em seguida vem a capela-mor. Esta apresenta duas portas
laterais, que dão acesso aos corredores com aberturas e semi aberturas, em pórtico,
incorporadas ao volume da igreja. Não se sabe se estas semi-aberturas ou aberturas fazem
parte do projeto arquitetônico original ou se foram intervenções posteriores. Um dos
1226
corredores, o esquerdo, dá acesso ao piso superior. (Planta 3). O pavimento superior
possui um coro logo à entrada, e na parte correspondente ao piso da sacristia há um sala.
A fachada possui três portadas, cinco janelas, duas torres, frontão e sobreposição
de elementos esculturais como: pilares, colunas e pilastras. (Foto 5) Sua lateral tem aberturas
em pórticos incorporadas ao corpo da igreja. Provavelmente esta parte foi feita
posteriormente. Cornija divide portadas e janelas do frontão e torres. Nestas últimas há a
presença de frisos circulares entrelaçados. ( Foto 6). As torres grandes com sinos tem
características do rococó com cúpulas muito decoradas, meias colunas e colunas inteiras com
janelas com frontões ondulados.1227 O frontão possui duas volutas e um óculo encimado por
uma cruz. Na nave e na capela-mor encontramos vestígios de retábulo em talha. Nele são
evidentes elementos floridos com fundo branco. (Fotos 9, 10). Quanto ao material e técnicas
construtivas, Tejupeba mostra o uso do adobe, do tijolinho e da alvenaria de pedra calcária.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

As construções de Tejupeba(1602) localizadas em Itaporanga D’Ajuda atendiam


aos propósitos dos religiosos inacianos (expansão da fé cristã, imposição da cultura branca
transmitida através da arte, da religião e da arquitetura) e da coroa portuguesa (conquistar e
dominar o território), possuindo papel administrativo, econômico e religioso.
O papel administrativo fica evidente nas residências jesuíticas. Estas eram
responsáveis pela gerência de igrejas e aldeamentos. Nestes últimos eram fundadas igrejas,

1226
Planta baixa – térreo da igreja do Colégio Tejupeba. Levantamento feito pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico,
Artístico e Nacional)- 8º Regional. Aracaju, circa 2001-2004
1227
KOCH, Wilfried. Estilos Arquitetônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 2ºed.

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com o propósito de evangelizar os nativos, de realização dos trabalhos agrícolas, artesanal e


agropecuários. Em Sergipe todas estas atividades foram realizadas principalmente pela
residência Tejupeba. Ela funcionou, entre 1631 a 1704, como pólo centralizador das
atividades políticas e administrativas dos padres em Sergipe. E ainda foi “escola de ler e
escrever”.1228
Sobre as funções econômicas exercidas neste sítio destacam-se, a construção
naval e as atividades agropecuárias. A primeira foi desenvolvida na residência do Tejupeba,
entre 1662 e 1704. Durante este período, funcionou neste local uma oficina para a construção
de embarcações de pequeno e médio porte. Os barcos eram produzidos de maneira artesanal
por carpinteiros da casa. Um deles, o Irmão José Torres de Milão, veio de Portugal para o
Brasil, chegando a Salvador no dia 4 de novembro de 1662. Entre 1692 e 1704, em Teiupeba,
foi responsável por esta atividade. 1229
Segundo Serafim Leite, a construção naval neste local foi possível devido à boa
qualidade da madeira das redondezas. Isto tornou possível a criação de uma “indústria” naval
dentro da Companhia. Vale citar que são citadas apenas dois locais para a construção de
embarcações jesuíticas no Brasil: Tejupeba e o Rio de Janeiro.1230 Neste último local
fabricavam-se embarcações de médio e grande porte.
As atividades agropecuárias eram desenvolvidas em volta do Sítio Tejupeba.
Conforme Serafim Leite, nas residências jesuíticas “mantinha-se farta criação de suínos e
galináceos, (...) que abastecia o colégio da Bahia”. 1231 A criação de gado era uma outra
atividade econômica desenvolvida pelos padres em suas fazendas.
Quanto as funções religiosas, as construções jesuíticas de Sergipe realizaram em
geral, atividades de evangelização.
No tocante aos estilos arquitetônicos, há uma diversidade deles nas construções
jesuíticas de Sergipe. Esta pluralidade faz das construções jesuíticas de Sergipe importantes
documentos históricos do processo de desenvolvimento da sociedade local. De fato, a
arquitetura religiosa é a que melhor expressa as características dos estilos. Segundo Lúcio
Costa “Apesar das mudanças de forma, das mudanças de material e das mudanças de

1228
“Em todas as casas jesuíticas há sempre escolas de ler, escrever e algarismos para os moços”. ANCHIETA.
Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões IN: FRANZEN, Beatriz, 1999.
1229
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1949, v. 7 p.249-
250
1230
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1949, v. 7 p.249-
250
1231
LEITE, Serafim. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália,
1949, v. 7 p. 41)

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técnica, a personalidade inconfundível dos padres, o espírito jesuítico, vem sempre à tona - é
a marca, o Cachet que identifica, todas elas e as diferencia, a primeira vista das demais”.1232
No plano arquitetônico “mais amplo” as construções jesuíticas de tejupeba
encontram–se ladeadas por casas formando “praças ou terreiros”de formato “quadrado” ou
retangular. Tal organização tem origem de aldeamentos jesuíticos “a igreja ladeada pelas
residências comunais dos índios formando uma praça”.1233
Já as plantas de casas e igrejas jesuíticas de Sergipe constituem-se documentos
importantes para interpretar suas finalidades e usos. A análise delas detecta modelos de
plantas bem elaboradas datadas do século XVII.
A maioria das igrejas jesuíticas de Sergipe possuem capelas laterais ladeando o
altar mor. De acordo com Lúcio Costa este é um exemplo antigo de planta jesuíta.1234 Em
relação aos corredores, sabe-se que têm origem provavelmente no século XVII. Dada a
presença do corredor a nave diminui de largura. Alguns destes corredores têm passagem para
o exterior, em aberturas arqueadas. Este é o caso da igreja de Tejupeba.
As igreja jesuítica de Tejupeba tem plantas retangular. De acordo com os estudos
sobre arquitetura este modelo foi difundido por ser o que melhor se adaptava às carências e
recursos locais. Esta é uma especificidade das igrejas brasileiras com relação a outros países
europeus. 1235
A planta da residência jesuíticas de Tejupeba apresenta a seguinte característica: o
pavimento térreo desta casa possui vãos largos e compridos. Quanto ao pavimento superior é
distribuído em possíveis: salas corredor e quarto. ( Planta 1, 2 do sítio 2) De acordo com a
caracterização de tais espaços e a documentação histórica sobre o sítio, a casa, muito
provavelmente, teve funções laborativas e educacionais.
No tocante ao exterior e interior, as construções jesuíticas sergipanas manifestam
variedade de elementos estilísticos.
No que se refere à casa Tejupeba, ela apresenta alpendres com balcões corridos
nos pisos: térreo e superior. Esta característica é típica do início do século XVII.

1232
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional.
Rio de Janeiro: IPHAN, nº 26, 1997, p. 121.
1233
BARROS, Clara Emilia Monteiro de. Aldeamento de São Feidelis: o sentido de espaço na iconografia.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. p. 113.
1234
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional.
Rio de Janeiro: IPHAN, nº 26, 1997, p. 121.
1235
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Artístico Histórico nacional. Rio
de Janeiro: Revista do IPHAN, nº 26, 1997

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Características da arquitetura rococó estão nas torres bastante decoradas da da


igreja do Colégio Tejupeba. Quanto à estrutura interna do monumento verifica-se a presença
constante do uso da talha, em púlpitos, altares e coro. Nela a talha não é apenas um elemento
de decoração. É um componente da estrutura que define o espaço. Neste sentido, o volume
interior resultante da construção em alvenaria serve apenas de suporte para a aplicação deste
tipo de estrutura.
A talha faz parte da composição final da igreja, embora em muitos casos não
integra a concepção inicial do monumento. Neste caso, pode se ter a planta e a fachada de um
estilo e a talha de outro.
A talha da Igreja do Tejupeba traz o estilo rococó com elementos de “aspectos
mais leves e graciosos com ornatos menores que deixam mais visível a estrutura das
composições”.
Dado o exposto as construções jesuíticas de Sergipe edificadas no século XVII,
como fazendas, casas e igrejas são testemunhos do processo de ocupação territorial de
Sergipe, do processos sócio-histórico e tecnológico das populações pré-existentes. Elas
constituem- se em programas de afirmação das frentes expansionistas como a catequese e a
colonização de Sergipe. E ainda possuem uma rede de relações estreitas com a administração
central da ordem na Bahia e com os moradores locais, no caso dos sesmeiros e dos grupos
indígenas e não indígenas constituindo-se em núcleos em torno dos quais giram a vida da
aldeia e da comunidade circunvizinha.

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“INFÂNCIA E ASSOLDADAMENTO”: AÇÕES, SABERES E SUJEITOS.

Nelly Monteiro Santos Silva - UFS


nellymssilva@hotmail.com

O presente trabalho traz como tema a prática do assoldadamento: medida educativa adotada
com a infância desvalida na Província de Sergipe; tendo a mesma como finalidade evitar que
órfãos, ao receberem uma boa educação e aprenderem um ofício, permanecessem ou
adentrassem numa vida de vagabundagem e delinqüência. Sobre esse pretexto, todavia, o que
se pôde observar foi que tomar menores a soldo representou uma alternativa viável e mais
barata para aqueles que não desejavam ou não tinham condições de investir em mão-de-obra
escrava que se apresentou mais cara após a Lei Eusébio de Queirós, situação que se estenderia
até os últimos dias de vida do sistema servil. Diante do exposto, essa comunicação apresenta
como objetivo corroborar na compreensão dessa temática e como a mesma se configurou na
segunda metade do século XIX na cidade de Estância. Para tanto, utilizamos como fontes os
processos judiciais sobre tutela e assoldadamento datados do período em questão,
interpretados à luz de teóricos que promovem reflexões seguindo a linha da história cultural.

Palavras-chave: Assoldadamento, Infância Desvalida, Sistema Servil.

Na Província de Sergipe, na segunda metade dos oitocentos, uma redução na


confiança dos proprietários da região quanto ao futuro do regime servil, seguida de uma
redução na compra de novos escravos, retratava a realidade daquele momento. Embora, um
comportamento diferente se verificasse na Mata-Sul, onde se situava a cidade de Estância e,
aparentemente, os proprietários de escravos fizeram uma aposta na sobrevida da escravidão, a
realidade do fim do sistema escravista teimava em se fazer presente, sendo praticamente
impossível de ignorá-la nos últimos anos do século XIX.

De tal modo, mesmo que destoasse cada vez mais do quadro histórico do momento,
homens e mulheres de profissões não definidas, continuaram a utilizar a mão-de-obra escrava,
fosse para sobrevivência econômica (alugando-os ou pondo-os ao ganho) ou para executar a
inúmera gama de serviços pessoais: dar recados, fazer compras nos mercados públicos,
cozinhar, lavar roupas e demais atividades domésticas. Segundo Silva (2002), para as famílias
ricas, uma criadagem numerosa servia como sinal de elevado status, para as famílias menos

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abonadas uma ou duas criadas no máximo livrariam seus senhores e patrões de todo o
trabalho manual.1236 Como podemos observar, extinguir toda a estrutura social da família
patriarcal, juntamente com suas conseqüências político-econômicas, não seria algo que
ocorreria de uma hora para outra, afinal tratava-se de uma estrutura dominante no Brasil desde
a sua época colonial.

Dizia respeito a um momento em que os senhores eram os donos de escravos, das


minas ou das terras, e esses meios de produção lhes conferiam o exercício dos domínios
econômicos, político e social. Já os escravos eram classificados como coisas, mercadorias,
peças que podiam ser submetidas a todas as relações decorrentes de propriedade, como a
compra, a venda, a troca, o aluguel, o empréstimo, entre outras. Essas duas ‘personagens’
vigorariam durante muito tempo, embora o contexto fosse eliminando alguns desses adjetivos
aos poucos, através de leis e decretos; os mesmos que contribuiriam para o crescimento de um
segmento intermediário, existente entre a composição das camadas sociais de senhores e de
escravos; composto por trabalhadores que não eram nem esses, nem aqueles. Nas palavras de
Marin (2005):

Formavam uma camada de trabalhadores livres e pobres que se dedicavam à


agricultura e à pecuária, em pequena escala, ou exerciam atividades
autônomas e artesanais em fazendas, arraiais e cidades das Províncias
brasileiras. Esse estrato compunha-se de homens e mulheres brancos, negros
alforriados, índios catequizados e mestiços, cuja condição social era
trabalhar para prover os meios de subsistência necessários a si próprios e à
sua família.1237

Dentro desse contexto, Oliveira (2005) ainda chama atenção para o fato da posse de
escravos por pessoas pobres e remediadas no decorrer do século XIX, ser algo razoavelmente
comum1238, “atuando como um importante complemento na renda ao serem alugados, como
reforço de mão-de-obra das quitandeiras, ou no trabalho doméstico1239”. O Brasil, conforme já
foi visto no capítulo anterior, estava passando por um reordenamento do trabalho escravo.

1236
SILVA, Maciel Henrique. As Múltiplas Identidades Femininas e o uso do Espaço Urbano do Recife no
Século XIX. História e Perspectivas, Uberlândia-MG, v. 25-26, 2002, p.171.
1237
MARIN, Joel Orlando Bevilaqua. Crianças do Trabalho. – Goiânia: Editora UFG, Brasília: Plano,2005,
p.81.
1238
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888). Tradução: Fernando de Castro
Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.13.
1239
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da
urbanização: São Paulo, 1850-1900. – São Paulo: Alameda, 2005, p. 104.

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Frente a essa realidade, as transformações ocorridas nos modos de produção – cada


vez mais evidentes na segunda metade do período oitocentista – apontavam para o fato de que
a população local, independentemente da camada a que pertencesse, teria que se adaptar ou,
‘se deixarem’ adaptar, ao novo contexto social, político e econômico, o que não excluía a
população infantil daquele momento, principalmente, se esta havia nascido “desvalida da
sorte”, a que poucos menores haviam sido agraciados.

Embora fosse numerosa a quantidade de pobres, pessoas consideradas livres, que


viviam em péssimas condições de vida e que não encontrariam dificuldades para se tornarem
força de trabalho, a “preguiça exacerbada”, segundo políticos da época, impedia que esses,
assim, o fizessem. Dessa forma:

Não foi obra do acaso esta população infanto-juvenil nas ruas ser notada
pelos homens e mulheres da virada do Império para a República. Motivado
pelo capital acumulado por uma ascendente economia agrário-exportadora,
pelas populações de escravos libertos expulsos do campo e pelos imigrantes
vindos para o Brasil, o aumento dos contingentes humanos agravou as
diferenças sociais dentro do espaço da cidade. No andamento desse processo
de acumulação de capital aumenta a distância entre os beneficiados pelas
riquezas e aqueles que recebem a menor parte dos lucros. Na hierarquia dos
excluídos urbanos estão homens, mulheres, velhos e no extremo as crianças.
Ocupando o ‘posto’ de excluídos, estas crianças e jovens elaboram formas
de continuar existindo diante das privações impostas pelo tipo de sociedade
em que nasceram. 1240

Uma estrutura social em que a configuração familiar apresentou significativas


transformações, principalmente, no que confere ao tratamento dispensado aos menores. Sobre
esse aspecto, Cordeiro & Coelho (2006) nos informam que:

Com a consolidação do protótipo de família em fins do século XIX, a


responsabilidade dos genitores passou a assegurar mais responsabilidades
com o bem-estar das crianças, garantindo os direitos que lhes assistem e
maiores cuidados físicos. A noção de infância, agora, passa pelo crivo dos
conceitos técnicos e científicos. Essa análise é respaldada e analisada à luz
da Psicologia, da Sociologia, da Medicina, dentre outros campos do saber,
passando a emitir um parecer científico a respeito dessa fase da vida
humana, adquirindo estas constatações uma maior respeitabilidade frente à
sociedade. 1241

1240
FONSECA, S. C. “Infância, disciplina e conflito com a lei”: o caso do Instituto Disciplinar na cidade de São
Paulo (1890-1927). Memória e Vida Social. Assis, v. 2. 2002, p. 138.
1241
CORDEIRO, Sandro da Silva Cordeiro; COELHO, Maria das Graças Pinto. “Descortinando o conceito de
Infância na História”: do passado à contemporaneidade. In: Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História da Educação. Uberlândia/MG,
Sociedade Brasileira de História da Educação, 2006. (Cd-rom).

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Assim sendo, numa época em que a infância se consolidava como tal, e os menores
desvalidos se tornavam um problema na ótica burguesa nascente, essa passa a ver no trabalho
desenvolvido por aqueles, uma saída para essa situação. As crianças representariam mais
vantagens em relação ao trabalho desempenhado por adultos, pois, além de se submeterem
com mais facilidade às determinações e condições de vida das mais adversas, recebiam
salários menores. Ao empregarem crianças pobres, os patrões acreditavam estar praticando
benemerência social e proporcionavam como pagamento, aquilo que considerassem
necessário, o que, normalmente, era muito pouco e este valor aceito pelas famílias dos
menores que necessitavam da pequena quantia, julgando natural que suas crianças
trabalhassem.

Dessa maneira, acopla-se à condição da infância a necessidade de ser trabalhador;


condição que ganha força à medida que ocorre a implantação da República e a consolidação
de seus ideais. Em meio a essa trama, a escola tornou-se ambiente ideal de inculcação de
hábitos necessários para que aquela sociedade aprimorasse os costumes de higiene e
civilização. Nas palavras de Kuhlmann Jr:

O conceito de civilização passou a impor o critério da necessidade das novas


instituições sociais. As instituições de educação popular, para os membros
das classes subalternas, compondo um quadro muito mais amplo do que o do
sistema escolar, portavam signos de estigmatização social.1242

Em verdade, sobre as propostas educacionais brasileiras, embora a historiografia


clássica sobre o período oitocentista tenha considerado que apenas no final do século, já com
o advento da República, se tivessem gestado propostas verdadeiramente modernas para a
educação no nosso país1243; pesquisas mais recentes vêm insistindo na fecundidade de
períodos anteriores para a compreensão da constituição da modernidade pedagógica. De
acordo Faria Filho (2000), “o período colonial deixou como herança uma diversidade de
modelos de escolas: escolas régias, a escola doméstica, educação privada, cadeiras públicas de

1242
KUHLMANN JR, Moysés & FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In: FARIA FILHO, L.
M. de. A infância e sua educação. Materiais, práticas e suas representações (Portugal e Brasil). Belo
Horizonte: Autêntica, 2004, p. 27.
1243
Autores como Fernando de Azevedo, por exemplo, que afirmou que “a educação teria se arrastado, através de
todo o século XIX, inorganizada, anárquica, incessantemente desagregada”.Cf. AZEVEDO, Fernando de. “As
origens das instituições escolares”. In: A cultura brasileira. Parte III – A transmissão da cultura. 6ª Ed.
Brasília: Editora UNB. 1996, p. 556.

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instrução elementar”.1244 Assim, já inícios do século XIX eram visíveis os intensos debates
em torno da reforma da instrução pública brasileira, tendo estes sido intensificados no último
quartel dessa ocasião.

Nesse momento, nas palavras de Costa (2006):

A educação, e especialmente a educação popular, passou a ser vista pelas


elites como imprescindível para civilizar, moralizar, além de proporcionar a
participação política por intermédio do voto, um direito apenas das pessoas
alfabetizadas. Portanto, para os republicanos, a educação ligava-se aos
procedimentos voltados à evolução da sociedade, objetivando progressos nas
áreas: econômica, tecnológica, científica, social, moral e política,
constituindo-se num fator essencial para essa evolução.1245

Por isso que, como ocorriam com os demais indivíduos dos estratos sociais inferiores,
as crianças pertencentes a estes eram representadas como possuindo faculdades mentais e
qualidades morais diferenciadas daquelas que compunham os estratos superiores, produto de
sua pertinência social, a serem aperfeiçoadas pela educação escolar. Assim, definiu-se um
projeto de escolarização voltada para essa fração da população, estando esta fundamentada na
instrução circunscrita ao ler, escrever e contar, bem como na educação moral – condição que
passou a ser concebida como fundamental na formação de um adulto civilizado. Em Gouvêa
& Jinzenji (2006):

Percebe-se que a infância pobre era representada como contraposta a uma


referência nitidamente baseada na da elite, sendo, portanto, vista como o
negativo de uma infância modelo. A comparação com um modelo ideal de
infância e a afirmação da inferioridade dos alunos pobres a partir desse
padrão reforçava, por conseqüência, a necessidade da educação escolar para
suprir tais deficiências, originadas de uma vivência precária.1246

Em Sergipe, essas mudanças educacionais não passariam despercebidas. A partir desse


momento, tornou-se mais evidente nos discursos dos seus administradores, a precariedade
apresentada pelas escolas na segunda metade do século XIX. Deste modo, influenciados pelos
ideais higienistas, os dirigentes da Província passaram a defender a construção de escolas em
locais apropriados, onde os alunos pudessem aprender, em condições asseadas, os conteúdos

1244
FARIA Filho, Luciano Mendes de. “Instrução elementar no século XIX”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;
FARIA FILHO, Luciano Mendes de e VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educação no Brasil. Belo
Horizonte. Autêntica. 2000. p.144-145.
1245
COSTA, A. D. M. “Os processos-crime, a educação e a normalização da infância desvalida”. In: Anais do VI
Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História
da Educação. Uberlândia/MG, Sociedade Brasileira de História da Educação, 2006. (Cd-rom).
1246
GOUVEA, Maria Cristina Soares de; JINZENJI, Mônica Yumi. “Escolarizar para moralizar”: discursos
sobre a educabilidade da criança pobre (1820-1850). Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n.
31, 2006, p. 123.

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escolares, bem como as práticas de higiene. Esperava-se assim, que os alunos veiculassem
para fora do ambiente escolar, aquilo que haviam aprendido no interior destas.

Em meio a esse contexto, o adulto era tido como modelo na formação da infância, fato
que chamou a atenção dos dirigentes para o papel da instrução escolar das camadas sociais
inferiores, em vista o prejuízo acrescido da sua inserção em meios constituídos por adultos
que, do ponto de vista dos gerenciadores, não eram dotados de qualidades morais e de
erudição que possibilitassem a formação de um indivíduo citadino. A educação escolar
firmou-se então como contraveneno aos males do meio familiar das classes populares.

Logo, é possível percebermos que as representações da infância pobre e os discursos


em defesa da instrução desta, reforçavam o movimento de edificação e asseveração da
educação escolar como centro privilegiado de formação de cidadãos civilizados. Para os
necessitados, a formação do sujeito ressaltava o preparo para o trabalho, pois este assumia um
caráter moralizador e dignificante, canalizando todos os esforços para o bem e para edificação
social. Gouvêa e Jinzenji (2006) acrescentam ainda que:

Tal educação deveria dar-se em condições restritas, tendo em vista a


necessidade de preparar essa infância para o lugar social, quando adulto, de
trabalhador em ofícios socialmente desvalorizados. Verifica-se a tensão na
afirmação dessa educação escolar, por um lado, destacando sua importância,
por outro, estabelecendo limites claros à sua efetivação. 1247

Percebemos, então, que reconhecer um problema e tecer comentários sobre ele, não
significava que o mesmo viesse a se tornar um assunto de ordem pública. Numa sociedade
patriarcalista, na qual a socialização se dava por meio do trabalho e dos castigos físicos, o que
ocorreu, de fato, foi que muitas crianças viveram constrangidas nos limites circunscritos pelas
famílias, sendo privilégio para poucos menores aprender nas escolas. O Estado quase não
interferiu no processo formativo dos infantes que, em sua maioria, nasciam e se desenvolviam
no mundo do trabalho desde a mais tenra idade, fazendo por merecerem o conceito que lhes
atribuíam de adultos em miniatura. Assim, dificilmente, as teorias dos governantes tomavam
forma prática. Para Kuhlmann Jr. & Fernandes (2004), “nesse momento, é possível encontrar
representações que invertem o significado da escolarização para os alunos, ela não seria um

1247
Id. Ibidem, p.124.

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afastamento do mundo dos adultos, pois a escola espelharia a sociedade”.1248 Dentro desse
contexto, encontramos a prática do assoldadamento.

O assoldadamento imputado somente as crianças pobres, tinha por objetivo prestar


assistência a menores órfãos – assim considerados aqueles que não contavam com a figura
paterna no núcleo familiar, fosse por motivo de falecimento ou desconhecimento de onde este
se encontrava – por meio do qual seriam designados tutores, assim como ocorria com os
órfãos providos de posses, todavia, uma prática de tutoria acompanhada da técnica do soldo,
na qual os infantes desvalidos seriam necessariamente submetidos ao aprendizado de uma
atividade laborial que assegurasse a estes a sobrevivência quando atingissem a maioridade –
momento em que não mais poderiam ser submetidos ao sistema de soldadas.

De acordo com a legislação corrente na época, os menores designados à prática do


assoldadamento seriam anunciados pelo Juiz de Órfãos da localidade após as audiências por
ele presididas, não podendo o mesmo mencionar o nome das crianças a serem assoldadadas e
dados concernentes a sua filiação. De tal modo, aquele que se mostrasse interessado em tomar
um menor a soldo, deveria dirigir-se à residência do Juiz, onde, possivelmente, seriam
fornecidas mais informações sobre o órfão (idade, os atributos físicos, etc.), apregoado em
hasta pública para o indivíduo que apresentasse a melhor proposta financeira como
pagamento das soldadas. A quantia estabelecida como valor do soldo – acordado entre o juiz e
o responsável pelo assoldadamento – deveria ser depositada no Cofre dos Órfãos, num espaço
de tempo (mensalmente, de seis em seis meses, ao final de um ano, etc.) estabelecido pelo
magistrado, cuja importância só poderia ser recolhida pelo órfão quando este completasse a
maioridade, normalmente comprovada por meio da certidão de batismo.

Consoante aquilo que era proposto nas Ordenações Filipinas, o assoldadador deveria,
além de assumir os encargos concernentes à tutoria, responsabilizar-se pelo aprendizado de
um ofício pelo órfão, objetivo principal da prática do assoldadamento que, embora
reconhecesse a importância do menor tomado a soldo aprender a ler e a escrever, não
estabelecia o ensino primário como obrigatório, ao passo que a aprendizagem de uma
atividade laborial foi estabelecida como sendo imprescindível. Essa concepção refletia, pois, a
mentalidade preconceituosa da época que correlacionava as tarefas manuais e mecânicas aos
afazeres realizados pelos escravos e pela classe mais humilde, instituindo, assim, fortes
barreiras ao ensino técnico-profissionalizante acompanhado da instrução escolar, uma vez

1248
KUHLMANN Jr. & FERNANDES, op. cit., p. 23.

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que, até mesmo o povo, acreditava que para trabalhar nas oficinas, no comércio, ou na
agricultura, não era necessário ir à escola – pensamento que colaborou para a baixa freqüência
dos alunos das camadas populares nas instituições públicas de primeiras letras e os altos
índices de evasão desses recintos.

Igualmente, a pesquisa efetuada nos processos referentes à pratica do assoldadamento


realizados na cidade de Estância, na segunda metade do século XIX, permitiu-nos constatar
que os empreendimentos oficiais em relação ao ensino elementar e secundário apresentaram-
se de forma precária e, mesmo, inexistente quanto à educação profissional estabelecida aos
órfãos tomados a soldo. Reconhecer a importância desses menores aprenderem os rudimentos
da escrita e da leitura, não significou, pois, que as autoridades do Estado cobrassem dos
tutores o encaminhamento dos assoldadados às instituições onde eram ministradas as
primeiras letras. De tal modo, a quantidade de processos relativos a soldo que mencionam
órfãos freqüentando o ensino primário foi mínima, se comparada aos demais documentos que
focavam a educação dos infantes, exclusivamente, na prática do ofício designado pelo Juiz de
Órfãos a ser transmitido para o menor assoldadado.

A pequena freqüência de crianças tomadas a soldo nas escolas primárias estancianas


durante o Brasil Império, encontra sua explicação também na preferência dos assoldadadores
em escolher órfãos entre doze e quatorze anos para serem assoldadados, idade em que o
sujeito, naquele período, era considerado apto a prática de ofícios, como também representava
a faixa etária limite avaliada como ideal para o acesso dos menores às escolas públicas
primárias, visto que, em relação às idades, as normas vigentes determinavam que os alunos do
ensino de primeiras letras deveriam estar compreendidos em uma faixa etária, limitada
rigidamente conforme os graus de ensino. Assim, para freqüentar as escolas primárias, os
infantes deveriam ter entre 05 e 14 anos e, entre 14 e 21 anos para cursar o ensino secundário.
Fora desses padrões etários, o acesso à instrução primária e secundária não era permitido.
Como a Instrução Pública entendia que a instrução popular, por excelência, destinada a toda a
população pobre deveria limitar-se ao ensino primário – considerando ser suficiente a estes
aprender os rudimentos do saber ler, escrever e contar –, o ensino secundário e superior
continuou a ser privilégio de poucos; restando às classes desprovidas de bens materiais o
"privilégio" de exercer o trabalho manual na sociedade.

Na análise da documentação referente a prática do soldo na comarca de Estância entre


1865 e 1895, a preferência por menores entre 11 e 14 anos de idade, nos permitiu observar

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ainda que, um contingente considerável daqueles interessados em assoldadar menores,


estavam mais preocupados em fazer do assoldadamento um meio de adquirir mão-de-obra
menos onerosa do que em desempenhar suas incumbências de tutor e assoldadador desses
pobres meninos e meninas. Interesses reais maquiados de um caráter filantrópico, mas
verdadeiramente explorador da força de trabalho infantil e desvalida dos oitocentos.

Porquanto, dentro desses parâmetros, assoldadar menores lhes pareceu ser uma saída
mais viável e menos dispendiosa, posto que, o valor pago nas soldadas do menor, não
representava gastos tão elevados quanto o que se gastava, naquele instante, na criação de
cativos que, quando morriam ou evadiam do cativeiro, representavam prejuízo aos
proprietários. Já no caso de menores assoldadados, ao sinal de qualquer problema, bastava-
lhes suspender as soldadas e providenciar outro menor assoldadado para pôr no lugar.

Dentro desse contexto, foi verificado na documentação que homens e mulheres


eram aptos a ser considerados assoldadadores, sendo, contudo, exigido à figura feminina que
esta contratasse um procurador para cuidar dos procedimentos necessários a efetuação da
prática. Pudemos constatar também que, na cidade de Estância, uma pequena minoria dos
responsáveis por tomarem menores a soldo era de mulheres, tendo sido a figura masculina
responsável pela maioria dos menores assoldadados nesta localidade.

Quanto a origem dos órfãos, mesmo que os documentos não informassem quais
assoldadados provinham ou não das casas de assistência aos expostos, o fato dos processos,
em sua maioria, mencionar a filiação paterna e/ou materna, leva-nos a crer que as crianças
assoldadadas emanaram em número elevado do setor menos abastado da população, algumas
numa situação de vida tão miserável que algumas mães se viram compelidas a colocar seus
filhos no sistema de soldadas, uma vez que viam nesta prática a melhor alternativa de propor
aos seus pequenos melhores condições de vida, por meio da aprendizagem de ofícios, aos
quais eram compelidas as crianças assoldadadas.

Desse modo, a educação teria atuado enquanto uma estrutura que foi utilizada pelo
aparelho estatal na tentativa de estabelecer uma linha de continuidade com a sociedade
escravista. A este ideal, as camadas populares anuíram sem que percebessem, uma vez que,
através de sofisticadas estratégias de dominação, foram levadas a assimilar a instrução
enquanto mecanismo capaz de promovê-los socialmente numa coletividade livre e envolvida
por discursos higienistas e transformadores – uma das razões pela quais encontramos

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processos judiciais onde algumas mães aparecem entregando seus filhos para serem
submetidos ao assoldadamento. Entretanto, contrariamente ao que estas e outros cidadãos
daquela sociedade imaginavam, a instrução popular da forma como se propagava naquele
instante, sobremaneira, na prática de tomar menores a soldo, serviu, sobretudo, enquanto
estrutura tática de tentativa de perpetuação do sistema escravista.

Diante do exposto – tendo por base a análise dos processos judiciais referentes a soldo
de menores ocorridos na Cidade de Estância, no período de 1865 a 1895 –, concluímos que a
prática do assoldadamento configurou-se numa estratégia utilizada, principalmente pela classe
intermediária daquela configuração social, para suprir a falta de mão-de-obra, característica
daquele período, através das atividades desenvolvidas por menores órfãos e pobres,
provenientes ou não do cativeiro, sob alegação de estar munindo essas crianças da
aprendizagem de um ofício. Essa educação a que os infantes tomados a soldo tinha acesso,
porquanto, adotou parâmetros da escravidão, pois tinha como escopo real, abrandar o
processo de reordenamento do trabalho servil, ou seja, a transição do trabalho escravo para o
livre pela qual passava aquela sociedade. Assim, ao tentar cultivar a ordem herdada do
período escravocrata, a instrução designada aos assoldadados baseou-se na prática do ofício
ministrado, voltada “para” e “pelo” trabalho, de maneira a constituir indivíduos úteis à
sociedade, entendendo-se por isso, bons trabalhadores, pacientes, humildes, resignados e
submissos.

Todavia, ainda que empregada como uma alternativa viável para adquirir força de
trabalho barata e acessível, a prática de assoldadamento, fez parte de um conjunto de práticas
educativas que corroborou para a redefinição da noção de infância que, a partir daquele
instante, passava pelo crivo dos conceitos técnicos e científicos. Além disso, ajudou a
consolidar a idéia da necessidade de instruir a população livre, cogitada, naquele instante, por
parte dos dirigentes do Estado Imperial.

Destarte, concluímos afirmando que os resultados deste estudo nos leva a crer sobre
sua importância para a História da instrução da Infância em Sergipe, podendo o mesmo
elucidar ainda mais os aspectos pouco conhecidos da educação da criança no século XIX, de
modo que as reflexões levantadas incentivem outros pesquisadores a adentrar nesse campo e
estimular novas discussões na área da História da Educação. Outrossim, o ingresso ao
universo complexo e significativo da interconexão entre “Educação” e “Infância” é capaz de

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proporcionar outras e novas possibilidades de se conhecer o ensino-aprendizagem delineado


nas práticas de assoldadamento; assim como suas representações e contradições.

Referências Bibliográficas

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Parte III – A transmissão da cultura. 6ª Ed. Brasília: Editora UNB. 1996.

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Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

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conceito de Infância na História”: do passado à contemporaneidade. In: Anais do VI
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discursos sobre a educabilidade da criança pobre (1820-1850). Revista Brasileira de
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MARIN, Joel Orlando Bevilaqua. Crianças do Trabalho. – Goiânia: Editora UFG, Brasília:
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OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e
experiência da urbanização: São Paulo, 1850-1900. – São Paulo: Alameda, 2005.

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DE VIOLÊNCIA FAMILIAR NA ESTÂNCIA OITOCENTISTA

Sheyla Farias Silva/UFBA


sheylafarias@yahoo.com.br

Ao descortinar o passado brasileiro, percebemos que a sociedade Oitocentista estava


fortemente impregnada de valores patriarcais que imprimiram nas relações cotidianas o uso da
violência para controlar os corpos escravos e submeter os homens pobres livres. O uso
corrente da violência não se restringiu ao foro público, adentrando-se nas relações privadas,
em especial nas de cunho familiar. Destarte, essa pesquisa tem por objetivo analisar o uso da
violência nas relações familiares dos residentes na Comarca de Estância/SE. Para tanto
utilizamos documentos judiciais, tais como: Apelação de Crime; Corpo de delito; Denúncia
crime; Sedução e estupro e Processos Crimes referentes à Comarca de Estância/SE no período
de 1840 a 1890, nos quais procuramos interpretar os significados da violência e sua
racionalidade enquanto forma legitimada de expressão de valores sociais, tais como honra e
dignidade, e manutenção de prerrogativas sociais em contextos competitivos.

Palavras-chave: Família, Violência, Oitocentos, Sergipe

Era para ser uma típica noite de sábado, entretanto o dia 29 de março do ano de
dois mil e oito marcou profundamente as mentes de brasileiros e brasileiras, que ao ligarem
seus televisores no dia seguinte foram assombrados com a notícia do assassinato da menina
Isabela Nardoni, de apenas cinco anos de idade. Ao retornar de um passeio familiar com seu
pai, a madrasta e seus irmãozinhos, pequena Isabella - filha de jovens pais separados da classe
média paulistana foi lançada do 9º andar pela janela do apartamento do seu pai. Desde então,
a tragédia de Isabela virou manchete nacional; o grande público, como telespectadores de
novelas, esperavam diariamente por notícias que saciassem a fome de justiça e sede por
novidades. Mas o que anunciava esse bárbaro episódio? As cenas dos próximos capítulos,
elaboradas tendo por base as investigações policiais, convergiam para responsabilizar
Alexandre Nardoni (pai) e Ana Carolina Jatobá (madrasta) como autores desse crime. E mais
uma vez, o grande público pergunta, quais seriam as razões para que aquele do qual se
esperava todas as provas de amor cometesse tal atrocidade?

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Ao descortinar o passado brasileiro, percebemos que a sociedade Oitocentista


estava fortemente impregnada de valores patriarcais que imprimiram nas relações cotidianas o
uso da violência para controlar os corpos escravos e submeter os homens pobres livres. O uso
corrente da violência não se restringiu ao foro público, adentrando-se nas relações privadas,
em especial nas de cunho familiar. Destarte, essa pesquisa tem por objetivo estudar o uso da
violência nas relações familiares dos residentes na Comarca de Estância/SE. Para
desenvolvermos essa pesquisa analisaremos documentos judiciais1249, tais como: Apelação de
Crime; Corpo de delito; Denúncia crime; Sedução e estupro e Processos Crimes referentes à
Comarca de Estância/SE no período de 1840 a 1890, nos quais procuraremos interpretar os
significados da violência e sua racionalidade enquanto forma legitimada de expressão de
valores sociais, tais como honra e dignidade, e manutenção de prerrogativas sociais em
contextos competitivos.
A história da família tem suscitado interesses entre pesquisadores desde a segunda
metade do século XIX, cujos estudos, buscavam identificar, tipificar e analisar os
diferenciados tipo de famílias existente nas sociedades antanho.1250 Os novos estudos
históricos sobre a família renasceram sobre a influência da chamada Escola dos Annales, em
especial, com a terceira geração, a qual preocupada com o modo de pensar, de viver e de
sentir das massas anônimas, adotou novos métodos de abordagem histórica, bem como novos
objetos, entre estes, estão a família, a sexualidade, o casamento, a mulher e a criança.1251
Desde então, os temas concernentes a família conquistaram predileção entre os
historiadores e estes passaram a estudá-la sob a perspectiva da demografia, dos sentimentos e
da economia doméstica.
As principais contribuições sobre a história da família foram dadas por autores
que avançaram nas análises quantitativas e preocuparam-se com as questões relativas às
vivências familiares, abordando os sentimentos, o significado das relações, as mudanças dos

1249
O uso de processos criminais permite ao historiador compreender o cotidiano de homens e mulheres pobres,
mestiços e escravos que se fazem presentes nas redes da Justiça Oitocentista, não somente como réus, mas como
vítimas e queixantes. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da Ordem: Violência, criminalidade e
administração da justiça: Minas Gerais, século 19. Bauru: EDUSC/ANPOCS, 2004, p. 21.
1250
Podemos destacar as obras de Joan Jacob Bachofen que publicou O direito materno (1861); Charles Morgan
com A sociedade antiga (1877) e Friedrich Engels com A origem da família, da propriedade privada e do Estado
(1884). Vide SAMARA, Eni de Mesquita. “A história da família no Brasil”. In: Revista Brasileira de História,
São Paulo, ANPUH/Marco Zero, Vol. 9 nº 17, setembro de 1988/fevereiro de 1989.
1251
FARIA, Sheila de Castro. “História da família e demografia histórica”. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS,
Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-
258.

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padrões normativos, possíveis motivações para as uniões matrimoniais, a escolha dos


cônjuges, a sexualidade etc.1252
No Brasil, os primeiros estudos sobre a história da família enfatizaram sua
importância enquanto uma instituição que moldou os padrões da colonização e ditou as
normas de conduta e de relações sociais desde o período colonial. O modelo de família
destacada por essa produção historiográfica atribuía ao pai uma excessiva autoridade sobre os
membros da família que também era extensa aos parentes, a família patriarcal. O modelo da
família patriarcal foi aplicado para todo Brasil, sem considerar as peculiaridades regionais,
temporais e tampouco os grupos sociais. 1253
O desenvolvimento das pós-graduações nos anos 70 do século passado e a criação
de diversos programas de mestrado em História possibilitaram que inúmeras pesquisas fossem
realizadas, ampliando o horizonte historiográfico brasileiro.
Neste contexto, a história da família brasileira ganhou um novo enfoque social e
novos temas foram estudados. O uso de fontes primárias, tais como os documentos cartorários
e eclesiásticos revelaram que o tipo de família patriarcal, preconizado pelos clássicos, a
exemplo de Freyre, não poderia ser aplicado para todo Brasil, tornando-se essenciais para a
compreensão da vida social do Brasil Colônia e Império, os estudos sobre a organização
familiar em diversos grupos sociais1254.
A sagrada família oitocentista vista romanticamente, sob a envolta do espectro
do sagrado, mediadora entre o indivíduo e a sociedade, revela-se a partir das nossas
investigações estruturada sob a égide do patriarcalismo 1255, marcada por uma cultura da
violência1256, a qual se fez necessária para submeter os corpos escravizados, uma vez que a
sociedade brasileira tinha como pilar a escravidão. Nesse cenário, os castigos corporais
impostos aos cativos aliavam-se ao excesso de autoridade do patriarca, resultando numa
brutalidade exacerbada entre homens e mulheres. Portanto, faz-se necessário destacar a

1252
Entre estes estão: Philippe Áries, Jean Louis Flandrin, L. Stone, Edward Shorter. (BRUGGER: 1995).
1253
Ver Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos; Oliveira Vianna, Instituições políticas
brasileiras e Populações meridionais do Brasil.
1254
Estudos como os de Eni de Mesquita Samara, Iraci del Nero da Costa, José Flávio Motta, Kátia de Queirós
Matoso, Maria Beatriz Nizza da Silva, Mary Del Priore, Miriam Moreira Leite, Paulo Eduardo Teixeira, Sheila
de Castro Faria e Sílvia Maria Jardim Brugger, apontam para uma diversidade na organização da família
brasileira.
1255
Domínio masculino sobre a família, podendo ser manifesto no âmbito do espaço doméstico (laços
sangüíneos, escravos e agregados) e na esfera política. (VAINFAS, 2000:470).
1256
Entendemos violência como intervenção física, psíquica, sexual e moral de um indivíduo contra outro ou
mesmo um grupo, com a finalidade de ofender e destruir a vítima. (GUIMARÃES, 2006: 22 e SAFFIOTTI,
2004:8).

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agressividade como moeda corrente das relações sociais e a valentia como premissa da honra
no Brasil Oitocentista.1257
A historiadora Maria Sylvia de Carvalho Franco ao pesquisar a sociedade paulista
do século XIX constatou que entre os homens e mulheres livres e pobres a violência insurgia
nas situações de convivência, nas questões cotidianas, relacionadas a trabalho, vizinhos,
parentes, família etc.

[...] o recurso à violência surge como necessário, ao desvendar-se a


identidade dos conteúdos de oposição e concórdia presentes na relação
comunitária. Essa mesma implicação aparece no caráter transitório da quebra
violenta de laços conjugais que passado à crise, recompõem-se nos mesmos
termos em que anteriormente existiram. (Maria S. C. Franco, 1997, p. 48).

Desse modo, podemos perceber como nessa sociedade, marcada pela escravidão
dos corpos e pelo patriarcado, a violência foi largamente justificada como forma necessária e
naturalizada das interações sociais, que definiam as situações de poder e de submissão.
A partir dos dados coletados percebemos que essa nódoa social estava presente no
cotidiano dos moradores da Comarca de Estância/SE, região agro-exportadora de açúcar e
fortemente marcada pela efervescência comercial. Dentre o corpo documental iremos nos
deter a analisar os crimes cometidos entre parentes, amásios e enamorados no período
proposto, os quais foram classificados de acordo com a tipologia apresentada nos documentos
analisados, a saber: ofensas físicas, ofensas verbais, sedução e estupro, homicídios e
infanticídios.
Tipologia dos crimes Estância – Sergipe (1850-1900)

Fonte: Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (Série Penal: Estância 1850 - 1900)

1257
VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes - Minas
Gerais Século XIX. Tempo, Jan./June 2005, vol.9, no.18, p.171-195.

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A idéia de submissão da mulher ao esposo era difundia pela Igreja Católica, ao


interpretar a partir do trecho da Carta de Paulo aos Efésios (5:22) "As mulheres casadas
estejam sujeitas a seus maridos como ao Senhor. Porque o marido é a cabeça da mulher,
como Cristo é cabeça da Igreja (...). Assim, a submissão foi confundida como domínio
ilimitado sobre a mulher, visto que muitos esposos utilizavam-se de sua autoridade para
inputar sevícias às suas esposas ou amásias.
Por vezes, as graves sevícias experimentadas pela esposa eram encaradas como
próprias das sendas matrimoniais, só levadas em consideração tardiamente. Foi o que
aconteceu no caso do falecimento de D. Margarida Vieira de Morais, segundo acusações de
irmãos e sobrinhos, sua morte está associada os inúmeros mal-tratos dados por seu esposo, o
alferes Antônio Pinto de Azevedo1258.
A partir dos relatos podemos inferir que era público que o dito alferes chicoteava
e privava sua esposa de alimentos e vestimentas próprias do seu sexo, além de fazer de sua
escrava, concubina e rainha do lar. Ainda segundo as testemunhas, o réu obrigou sua esposa a
fazer um testamento reservando a ele o direito a todos os bens e que devido as frequentes
pancadas D. Magarida ficou com problemas mentais, ficando reclusa em casa.
Ao ser convocado a depor, o alferes Antônio Pinto de Azevedo não negou as
denúncias e justificou que as pancadas eram dadas porque sua esposa queixava-se da presença
da concubina em seu lar. O inquérito policial não apresenta conclusão, o que nos leva a crer
que foi arquivado devido a influência do réu nas redes jurídicas.
Em alguns casos, o desefecho de um relacionamento amoroso poderia acabar em
feridas que não se restringiam apenas à alma, mas deixavam marcas pelo corpo. Assim, ao
lermos o corpo de delito feito pelos péritos Dr. Antônio Ribeiro Lima e Dr. Manoel Francisco
Costa Caneco, em Maria Correia, podemos constatar as “marcas de paixão” deixadas no
pescoço e perna esquerda da vítima. 1259
Segundo as testemunhas, por volta da meia-noite, os moradores da rua do
Botequim foram acordados com gritos e palavras indecentes, seguida de grande pancadaria.
Entretanto, já estavam acostumados com esses “barulhos” oriundos da casa de Maria Correia,
que sempre estava por querelar com seu amásio e vizinho, Pedro José Machado, 40 anos,
casado que vivia de roça e de pescaria.
Após anos de convívio ilícito, Maria Correa estava disposta a terminar o
relacionamento com Pedro José, entretanto este se recusava em aceitar. Ao comparecer a casa

1258
Inquérito Policial n.º 08 cx.683 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1840.
1259
Corpo de Delito n.º 03 cx.671 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1858.

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de sua amásia e desejando saciar sua volúpia, Pedro não aceitou a recusa e tratou de imputar
cacetes em Maria Correia, a qual foi acudia por vizinhas e no dia seguinte o inspector do
quarteirão compareceu para visitá-la constatando o estado deplorável no qual se encontrava
sua perna.
Ao tomar por base o artigo 201 do Código Criminal do Império 1260, o promotor
público da cidade de Estância denunciou Pedro José à Justiça por ofensas físicas, sendo o réu
condenado a pagar a quantia de 50$000 à vítima.
A violência imputada aos membros das famílias estancianas não se restringiam
apenas à ofensas físicas, em nossa pesquisa constatamos que muitas esposas, amantes e filhas
recorriam à justiça por terem sido alvo de graves injúrias daqueles que deveriam as tratar com
zelo e carinho. Vejamos o caso de D. Leonísia da Silva Costa1261, que teve sua reputação
comparada a de prostitutas.
Ao adentrar na Igreja matriz da freguesia de Arauá, tributada a Nossa Senhora da
Conceição, na manhã do dia dez dias do mês de novembro do ano de mil oitocentos e setenta,
conduzida pelo braço do pai, o pequeno negociante Antônio Francisco da Costa, a jovem
Leonísia, educada nos princípios da religião católica, certamente imaginava que ao declarar
publicamente que recebia como seu legítimo esposo, o viúvo afortunado Manuel Inácio
Pereira de Magalhães, estaria inaugurando uma nova etapa de sua vida, regada por respeito,
carinho e ostentação material, entretanto o que estava por vim seria uma vida sortida de
sevícias, injúrias, traições e humilhações.
Após a pomposa cerimônia, o casal passou a residir na cidade de Estância, local
onde o consorte desempenhava atividades agroexportadoras e mercantis. Passados alguns
anos, os jornais da cidade de Estância, bem como os da cidade de Salvador passaram a
noticiar as querelas vivenciadas pelo casal1262. A grosso modo, os jornais questionavam a
conduta moral de D. Leonísia, acusando-a de manter relações amorosas com vários homens
da cidade, inclusive com o seu compadre, o alferes Pedro Federico Ribeiro de Aboim.
A primeira nota concernente aos boatos foi divulgada no jornal de circulação
local, 1263 a qual insinua o caso extraconjugal de D. Leonísia com o comprador de escravos.

1260
Art. 201 Ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano, ou fazer qualquer outra ofensa física, com que se
causa dor ao ofendido. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brasil anotado. Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
1261
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Libelo Cível de Ação de Divórcio nº 01, Caixa 529 DI-47, 1878.
1262
Jornais: O Rabudo (1875), Eco Estanciano (1877), Diário de Sergipe (1877) e Diário da Bahia (1877).
1263
Rabudo, Estância, ano 2, nº 27 , 8 de abril de 1875.

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Pergunta simples
Pergunta-se ao Sr. Domingos Cardoso de Meneses Sobrinho,
taverneiro nesta cidade, qual a razão de ter brigado com Olímpio Jardim?
Ioiô Cardoso, eu ouvi esse Jardim dizer que tinha sido por causa
do seu namoro com uma senhora casada?
Será verdade Ioiô Cardoso?! Pela bolsinha dos seus cigarros,
responda do contrário...
A preta de casa

Na mesma edição, temos outra nota sobre o caso:

Pergunta-se ao Sr. Domingos Cardoso de Menezes se sua mercê moço de tão


bom conceito no comércio, não sentiu algum pejo de ter coadjuvado e
achado-se junto a súcia da noite de 28? Pois foi somente o mais notado pelo
público, e sentimos sua mc. ter coadjuvado para um ato tão ridículo.
O Abelhudo.

Segundo Manoel Inácio foi a partir da circulação de tais notas anônimas que sua
vida conjugal passou experimentar conflitos, visto que ele passou a inquirir sua esposa sobre
veracidade das acusações. “Outro agravante foi a pressão de alguns membros da sociedade
estanciana, que se apresentando como um amigo-secreto e pessoa preocupada com sua honra
enviou-lhe a dita nota com um bilhete anexo, o qual afirmava que “O Rabudo não mente”.
Além desse amigo-secreto e do abelhudo declarado no “O Rabudo” – preocupados
com a honra do esposo, percebemos o envolvimento de outros agentes da sociedade
estanciana oitocentista nessa trama de foro privado. O envolvimento de outros agentes foi
motivado pelo crescimento das publicações em jornais sobre essa querela familiar.
Destarte, essa sociedade passou a acompanhar o desenrolar dessa estória através
dos jornais como O Rabudo1264 e Echo Estanciano1265, bem como pelo Diário da Bahia. Os
moradores da cidade de Estância aguardavam ansiosos por tais publicações, respondendo
semelhantemente aos telespectadores das telenovelas e leitores das revistas de entretenimento
contemporâneas. Manchetes como “O termômetro da moralidade muito tem baixado nesta
cidade” e “A pirâmide com o vértice para o chão”, além de cartas do esposo, instigavam a
curiosidade dos estancianos, que certamente não se consolavam com a leitura das notas, mas
conforme apontado nos testemunhos concedidos ao Tribunal Eclesiástico passaram a circular
com maior atenção na frente do sobrado onde residia o casal.

1264
Periódico critico, chistoso, anedótico e noticioso, e segundo alguns “O Rabudo costumava atacar a vida
íntima e honra de famílias desta cidade”.
1265
Com o lema “Órgão do comércio, da lavoura e da indústria”.

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Voltemos às querelas conjugais. Segundo a autora, D. Leonísia, seu esposo


sempre a tratou com maus-tratos e palavras injuriosas, sendo esse tratamento agravado após
da divulgação das notas nos jornais. Além desse tratamento, que em nada lembra as
recomendações de D. Sebastião da Vide atestadas nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, o Sr. Magalhães, como era conhecido na cidade de Estância, mantinha
um relacionamento extraconjugal com mulher viúva, a trazendo para viver sob o mesmo que
sua esposa.
Na petição de divórcio foi apresentado como principal motivo da não
possibilidade coabitação dos cônjuges “as injúrias insuladas a sua honra pelo julgado” feitas
na presença de qualquer pessoa. As testemunhas, ao que parece passaram a acompanhar o
cotidiano do casal – seja por meio da imprensa ou pela cuidadosa observação ao passar na rua
em que o casal residia.1266, foram essenciais para o esclarecimento das denúncias, já que o réu
acusava a sua esposa de ser uma “puta e de manter uma casa de prostituição na cidade de
Arauá” (onde residia sua família). A autora por sua vez se defendia dessas injúrias, afirmando
que seu esposo era um “homem de gênio malvado, adúltero e que a tratava como uma
escrava”
Diante de tantos escândalos, maus-tratos e humilhações, o pai de D. Leonísia
resolveu retirá-la da companhia desse esposo nefário. Após a saída da autora da casa de Sr.
Magalhães, seguida da abertura do processo de divórcio, foi acompanhada por um duelo de
versões sobre as reais causas da separação.
Enquanto a sociedade estanciana esperava o desfecho desse pedido de divórcio, o
Tribunal Eclesiástico ouvia as testemunhas arroladas pela acusação e defesa, sendo encerrado
o processo depois de dois longos anos (1879). Para o cônego Basílio Ferreira “o escândalo de
uma vida entre os concubinários que atraiu a atenção de vizinhos e transientes”, foi
elaborado pelo cônjuge, o qual nutria um grande rancor pelo pai da autora.
Comprovada a inocência de D. Leonísia e sendo impossível em tempo algum a
reconciliação, foi concedida a separação dos corpos pela Igreja, assim como a separação
igualitária dos bens.
Um dos motivos que mais incitavam o uso da violência no âmbito familiar estava
relacionado a agravos contra a honra. No caso dos homens, alguns crimes eram cometidos

1266
Em seu depoimento o Sr. Felisberto Francisco Correia disse que ao passar em frente da casa onde o casal
morava ouvi o réu (esposo) gritar para a autora “Eu te mato diaba”; já outro depoente também disse que ouviu o
réu chamar a esposa de “puta e outros nomes injuriosos”

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devido à descoberta da infidelidade feminina e, no caso da mulher, referem-se à defesa frente


à tentativa abusiva dos homens em atentar contra a sua castidade.
Entre os processos criminais analisados, verificamos a prática dos pais em queixa-
se à justiça sobre o desvirginamento das filhas menores de idade. Em muitos casos o
defloramento tivera sido feito pelo namorado da jovem e a denúncia era uma maneira de
pressionar o deflorador a contrair o matrimônio, assim não contribuindo para a má fama da
jovem. Talvez, esse pensamento motivou a viúva Mariana Joaquina de Macedo a denunciar
João Borges da Rocha por sedução e rapto de sua filha Francisca Rosa de Araújo, menor de
17 anos, virgem e pobre1267.
Segundo testemunhas, João Borges da Rocha vivia a rodear a casa da menor e a
conversar com ela, sendo de conhecimento da mãe. Entretanto, na noite de 05 de julho de
1858, a menor fora raptada da companhia de sua mãe para a casa do deflorador,
permanecendo lá por sua livre e espontânea vontade.
Após o rapto, a mãe denunciou o raptor à justiça que foi obrigado a devolver a
menor e assumir o compromisso de casar com a ofendida.
Devemos atentar que para a sociedade oitocentista ferir a integridade moral
masculina através de uma traição conjugal era como se o expusesse a uma situação
conflitante, na qual não se permitiria outra atitude, se não o homicídio contra a esposa, visto
que seria inadmissível nada fazer para “lavar” sua honra.
No mesmo aspecto, a honra feminina que neste caso está ligado à sexualidade,
diretamente a sua virgindade, através da “ausência do homem” antes do casamento. As
providências ofensivas e defensivas para a salvaguarda dos interesses materiais da vida ou da
honra continuaram definidas como prerrogativas e obrigações pessoais. (Maria S. C. Franco,
1997, p. 153).
Nota-se, por tanto, uma tolerância em relação aos réus que tiveram à integridade
moral agredida, visto que a justiça tendia a considerar a justificativa da privação moral, ou
seja, “lavar a honra com sangue” como legítima.1268

Se a defesa da honra constitui dirimente de responsabilidade dos delitos


praticados nas circunstâncias definidas no artigo 34 do código penal, mais
acentuada deve ser justificativa quando essa defesa se refere ao sentimento

1267
Sedução e estupro n.º 01 cx.699 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1858.
1268
SOIHET, Rachel. “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano” IN: PRIORE, Mary Del. (Org.) História
das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 394.

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de fidelidade conjugal, fundamentado de toda organização social e base


primordial da moral publica e privada. (trad. de Direito Penal III-88) 1269

As denúncias sobre violência familiar que chegavam ao tribunal não se


restringiam as praticadas entre os amantes, mas estendia-se à conflitos entre pai/mãe/filho.
No ano de 1857 Marcolina Maria de Jesus apresentou na delegacia da cidade de
Estância uma queixa contra seu pai, Francisco José de Santa Ana, que tivera lhe dado umas
pancadas com paus, ocasionando além de diversos ferimentos, hemorragia bucal. Vimos, no
entanto, que mesmo com a denúncia apresentada, o processo não teve prosseguimento, em
virtude de ser o réu parente do subdelegado da cidade1270.
Outros delitos por sua vez, ganham notoriedade e repúdio da sociedade
estanciana. Sentimento semelhante ao que muitos brasileiros experimentaram ao desenrolar
das investigações sobre o caso Isabella Nardoni apossou-se dos moradores de Estância. Na
noite de 09 de maio de mil oitocentos e oitenta e dois, a viúva Maria Vitória ao dar início ao
processo de parto, mandou seu filho legítimo Manuel (11 anos), chamar em secreto a parteira
Perpétua da Silva Portela. Ao atender o chamado, a africana Perpétua, espantou-se com o que
vira, visto que, assim como os demais vizinhos, desconhecia o estado de gravidez de D. Maria
Vitória. Após dar a luz ao um vistoso menino, D. Maria Vitória não hesitou em pedir para que
Perpétua amordaçasse a boca da criança a fim de sufocar seu choro para que não chamasse a
atenção dos vizinhos e em seguida o matasse, porém, a parteira recusou-se em praticar tal
atrocidade. Segundo D. Perpétua da Silva Portela, a mãe da criança alegava que era viúva e
vista como mulher honesta e não desejava que esse incidente (a gravidez) se tornasse domínio
público. Por isso, no dia seguinte ao parto, a mãe tratou de recolher os vestígios desse
procedimento em baixo da cama, lavar as roupas utilizadas e esconder a criança, sendo o fato
descoberto e denunciado pela parteira.
Ao ser convocada pela justiça para prestar conta da criança, D. Maria Vitória
confirmou que deu a luz a um menino, mas que este estava aos cuidados de parentes fora da
cidade e que dentro de um mês iria apresentá-lo, no entanto, essa foi a última vez que a viúva
do negociante Sr. Vintém foi vista pelos moradores de Estância. Sua fuga foi tão repentina
que abandonou Manuel, seu filho de apenas 11 anos na casa onde residia.1271
A partir do desenvolvimento do processo e inquirição das testemunhas,
verificamos que os moradores da Rua do Açougue desconheciam a gravidez de D. Maria

1269
Idem p.395
1270
Corpo de Delito n.º 01 cx.671 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1857.
1271
Homicídio n.º 01 cx.678 – Cartório do 2º Ofício de Estância – 1882.

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Vitória. Contudo, ao serem perguntados sobre quem poderia ser o pai da criança, apontaram o
negociante João Damasceno Pimentel, que freqüentava a residência da autora, sendo notório
que tinham relações ilícitas. Ao ser inquirido sobre o estado de gravidez de sua amásia, João
Damasceno disse desconhecer e alegou que tinha terminado há dois meses a relação.
O processo foi concluído a revelia da ré, a qual foi condenada no grau máximo do
artigo 1981272 do Código Criminal do Império por ter sido o crime acompanhado da
circunstância agravante do artigo 16§91273 do citado código.
Ao investigar a vida familiar dos residentes em Estância, percebemos que as teias
dessas relações eram deveras muito conflituosas, envolvendo amor, dissabores, lágrimas,
dramas e crimes. Nos processos-crimes observados, verificamos que agentes de diversas
camadas sociais envolveram-se em conflitos com seus parentes, sendo o crime mais freqüente
o relacionado à honra que poderia resultar em ofensas verbais, físicas ou mesmo na morte de
um dos envolvidos. Segundo a legislação da época perquirida, se os argumentos do
delinqüente fossem convincentes – defesa da honra, ele seria beneficiado com a redução da
pena, mesmo sendo uma agressão seguida de morte, este delito seria julgado como homicídio,
já os demais crimes seriam julgados como ofensas físicas. Foram também verificados no Rol
de Culpados as penas impostas aos réus, sendo constatado que havia uma tolerância em
relação aos réus que tivessem sua integridade moral agredida, visto que a justiça tendia a
considerar a justificativa da privação moral, ou seja, “lavar a honra com sangue” como
legítima.
Podemos perceber que nessa sociedade, marcada pela escravidão dos corpos e
pelo patriarcado, a violência foi largamente justificada como forma necessária e naturalizada
nas interações sociais, que definiam as situações de poder e de submissão.

REFERÊNCIAS

Fontes

1. Fontes Primárias

1272
Art. 198 Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar a sua desonra. Pena Máxima: Três anos
de prisão com trabalho. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brasil anotado. Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
1273
Art. 16§9 Ter o delinqüente procedido com fraude. TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do
Brasil anotado. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

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1.1. Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe - AJUS


Cartório de Estância 2º ofício
Corpo de delito (1857) Cx. 671
Homicídio (1882) Cx. 678
Inquérito Policial (1840) Cx. 683
Sedução e Estupro (1858) Cx. 699

1.2. Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de Andrade Veiga


(LEV) / Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador
Libelo Cível de Ação de Divórcio CX. 529

Fontes Impressas

BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português


por João Ferreira de Almeida. 2 ed. rev. e atual. No Brasil. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil,1993.
TINÔCO, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brasil anotado. Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

Jornais
O Rabudo (1875)
Eco Estanciano (1877)
Diário de Sergipe (1877)
Diário da Bahia (1877)

2. Bibliografia

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UFF.

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de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-258.

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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Introdução à História da sociedade patriarcal
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________________. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1951.

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________________________. As seduções da Ordem: Violência, criminalidade e
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HERDEIRAS E SENHORAS DE SEU DESTINO: MULHERES DE


JUAZEIRO – 1850/1891

Mônica Sepúlveda Fonseca – UFBA/UNEB


monicamonic@ig.com.br

O município de Juazeiro está localizado à margem direita do Rio São Francisco e a 500 km de
Salvador-Ba. Desde 1850, apresenta intensa vocação comercial, uma vez que, era parada
obrigatória das boiadas e tropas de carga que cruzavam o Rio São Francisco. Dentro desse
contexto de desenvolvimento econômico e social, observa-se um número considerável de
inventários, testamentos, arrolamentos e partilhas amigáveis favorecendo mulheres, o que
constitui objeto de pesquisa. A presente comunicação objetiva discutir, através dos
documentos e em torno das relações de gênero, o perfil dessas mulheres herdeiras, o papel
econômico, social e político que exerceram no município a partir do recebimento do espólio,
seu nível de instrução e a influência do patriarcado e da Igreja em suas vidas.

Palavras-chave: Mulher, Juazeiro, Inventários.

A historiografia tradicional, construída a partir da ótica masculina, vem


privilegiando as relações do homem do sertão nordestino, proprietário de terras, agricultor,
ocultando e por vezes deformando a atuação da mulher, presença silenciosa, mas não omissa
naquele cenário. Atualmente a partir de estudos de gênero, a figura feminina vem sendo
trazida à tona através de trabalhos inovadores e preocupados com a “recuperação” da
mulher do século XIX. A mulher do sertão nordestino, desbravadora, líder, pioneira,
desempenhou papéis que saíram das normas e tornaram-se práticas recorrentes, como a
gerência das fazendas, administração de bens, cuidado com os filhos, o trato com criados e
escravos, atuação política.
Mulheres que romperam com padrões usuais, durante a ausência temporária ou
definitiva da figura masculina, dedicavam-se a administração dos bens, roças e propriedades,
criação de gado, eram obrigadas a constantemente improvisar papéis masculinos, acabaram
por se tornarem senhoras do seu destino.
Segundo Dias “o fenômeno de mulheres solteiras, chefes de família é vasto e
enredado na sociedade colonial e império. Trata-se de um fenômeno peculiar à urbanização

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como um todo, presente em estudos sobre Vila Rica, Salvador e Rio de Janeiro (DIAS, 1995.
p 30).
Estudos das últimas décadas favorecem a história social das mulheres, com novas
abordagens e métodos, abrindo segundo Dias, “espaço para a história microsocial do
quotidiano, diversificando os focos de atenção dos historiadores “antes restritos ao processo
de acumulação de riqueza, do poder e à história política institucional” (Idem, Ibdem, p.14)
Scott afirma que o campo da história das mulheres evoluiu, ganhando energia
própria ao ampliar o seu campo de questionamento, documentando todos os aspectos da vida
das mulheres no passado, passando do campo político para a história especializada e daí para
a análise. A inserção da mulher como sujeito da história e objeto de estudo ampliou as
perspectivas e questionamentos (CARDOSO e VAINFAS, 1997).
Para falar das mulheres de Juazeiro faz-se necessário contar um pouco da história
desse município baiano. Juazeiro está situado à margem direita do Rio São Francisco, a 500
km de Salvador, limita-se ao norte com o estado de Pernambuco, a nordeste com o município
de Curaçá, a sudeste com Jaguararí, ao sul com Campo Formoso, a sudoeste com Sento Sé e a
noroeste com Casa Nova. O município de Juazeiro está localizado na bacia hidrográfica do
São Francisco e possui, ainda, um rio perene1274, o Rio Salitre, um curso d’água de pequeno
porte, além de outros rios temporários e afluentes do Rio São Francisco. O nome do
município se deve a árvore muito comum na região, o Juá, ou Juazeiro, que significa fruto
espinhoso, cuja árvore resiste aos rigores da seca e suas folhas servem de alimento para o
gado (GARCEZ, SENA, 1992, p. 19).
Antes de ser elevada a categoria de município, Juazeiro era a Vila de N. Srª das
Grotas de Juazeiro. Era parada obrigatória das boiadas e das tropas de carga que atravessavam
a Capitania da Bahia em direção a outras terras e que cruzavam o Rio São Francisco – uma
rota natural de integração, que já era utilizado pelos índios antes mesmo da colonização
portuguesa atingir a região, por ser o aglomerado populacional mais importante da região e
atrair bandoleiros, gerando clima de intranqüilidade permanente nas fronteiras com
Pernambuco.
A ocupação do interior da Bahia ocorreu principalmente a partir da instalação das
fazendas de gado, do cultivo de algodão e alimentos, e, também resultou da procura de metais
preciosos, levando bandeirantes e sertanistas a enfrentarem os perigos, penetrarem nos sertões
desconhecidos, e atenderem aos anseios da Coroa Portuguesa de encontrar e explorar minas

1274
Rio perene - Rio que corre o ano inteiro. Tem água em época de chuva e no período de seca, pois possui
água subterrânea. Fonte: http://www.cprh.pe.gov.br/sec-glossario/ctudo-glossa.asp. Acesso em 30.05.2008.

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de ouro e prata. As primeiras atividades econômicas foram de troca de mercadorias entre os


habitantes do povoado e boiadeiros que passavam para descansar das longas jornadas.
O povoado foi elevado à categoria de Vila em 1833 e instalada a Câmara
Municipal, a Guarda Nacional de Juazeiro, a agência dos Correios e dois anos depois o
Juizado de Direito. A Vila tinha apenas um juiz de paz encarregado de assegurar a ordem e
administrar a justiça. Somente 10 anos após a elevação do povoado à categoria de vila é que
foi iniciada a construção de uma cadeia pública. A Vila de Juazeiro passou a ser Termo da
Comarca de Sento Sé. A Vila de Nossa Senhora das Grotas de Juazeiro foi elevada à categoria
de cidade através da Lei nº 1814 de 15 de julho de 1878, assinada pelo Presidente da
Província da Bahia, Barão Homem de Melo (Idem, ibdem p. 84).
Garcez e Sena afirmam que cidade de Juazeiro está situada num ponto de
comunicação entre duas estradas com o Rio São Francisco à sua margem direita, então
denominada Passagem de Juazeiro e era porta de entrada para os sertões do Piauí, Maranhão,
Alagoas, Sergipe, Goiás e Minas Gerais, além de estabelecer ligação com outras regiões da
Bahia, inclusive o Recôncavo açucareiro. A cidade era ponto estratégico de rotas de boiadas,
e, por seus caminhos, havia intensa circulação de gado e de mercadorias para abastecer os
núcleos de população que foram surgindo (Idem, ibdem. p. 18).
Em 1845, ocorreu na cidade um surto de bexiga, 1275cujos mortos eram enterrados
na Igreja. As condições de saúde complicaram, mas o cemitério da cidade só foi construído no
final do século XIX. Alguns registros sobre a Vila apresentam algumas contradições, pois em
1857, o Presidente da Câmara informou que a sede do município contava com “2 a 3 mil
almas”. Em 15 de julho do mesmo ano, o Juiz de Direito da Comarca informou ao Presidente
da Província que “Juazeiro tem vila bastante populosa e comercial e que seu progresso
aumenta a olhos vistos”. O primeiro censo oficial do Brasil ocorreu em 1871/1872 e o
município contava com 7.863 habitantes. (Idem, ibdem. p. 206).
Desde a primeira metade do século XIX a vila cresceu muito lentamente. A
vocação comercial do local, contudo, sempre foi muito forte. Garcez e Sena citam os viajantes

1275
Bexiga era o nome que se dava à varíola. Transmitida pelas vias respiratórias, a bexiga tem duas formas
distintas. Na maioria dos casos, as mortes são sendo causada por sua variedade mais agressiva, a chamada
confluente, que, por conta do aspecto das infecções cutâneas que provoca, é conhecida como “pele de lixa” - a
outra forma, mais branda, é chamada benigna.Fonte:
http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=47473&edicao=9916&anterior=1. Acesso em 30.05.08.

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estrangeiros Spix e Martius 1276, que registraram a existência de “um pequeno arraial com
50 casas e 200 habitantes” na segunda década do século XIX, onde:

as esperanças dos sertanejos são destruídas pela seca prolongada ou pela


inundação inesperada. A pobreza é incrível, na maior parte da população.
Alguns fazendeiros, aqui estabelecidos, provêem por meio de cisternas as
suas necessidades e as das tropas que passam; mas, apesar disso, não é nada
raro morrer de sede ou de fome a metade das boiadas e manadas de cavalos,
que vêm do Piauí, antes de chegarem ao rio São Francisco. (Idem, ibdem. p.
206).

1277
Teodoro Sampaio, que visitando a região em 1879, integrou uma comissão de
engenheiros constituída pelo Governo da Província, para estudar a navegação dos grandes rios
que desembocavam no litoral e a melhoria dos portos fluviais. Comentou que a cidade de
Juazeiro “era uma população alegre e ativa de mais ou menos 3.000 habitantes que davam a
impressão de favorável progresso, de riqueza, de atividade”, o que lhe fez mudar o conceito
que tinha do sertão:

As suas construções, em que se procura observar certo gosto arquitetônico, a


sua nova e boa Igreja Matriz, o teatro, uma grande praça arborizada, ruas
extensas, comércio animado, porto profundo e amplo” (...) tudo isso,
oferecia ao observador que vinha de percorrer “uma região áspera, atrasada e
pouco favorecida pela natureza, o aspecto de uma Corte do Sertão (Idem,
ibdem. p. 207).

No final do século XIX, Juazeiro era uma cidade encantadora, plantada à margem
do rio, com ponto de linha férrea que ligava o São Francisco à capital do estado. Com intensa
atividade mercantil, graças à linha férrea e fluvial, com o Vapor Saldanha Marinho, ganhou o
título de Entreposto Comercial da Região.
Freitas chama a atenção para o fato de que entre o final do século XIX e meados
do século XX, o Oeste da Bahia assim como toda a região banhada pelo Rio São Francisco e
seus afluentes constituíam um espaço único. Para ele não se podia falar do ponto de vista
regional em Oeste, em Além São Francisco, ou qualquer outro conceito. Nesta época, a

1276
A convite da Arquiduquesa Leopoldina da Áustria, primeira Imperatriz do Brasil, os dois naturalistas
alemães da Academia de Ciências da Baviera, Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius,
exploraram entre 1817 e 1820, o enorme país do Brasil, até então interdito aos não-portugueses.
1277
Teodoro Sampaio. Theodoro Fernandes Sampaio nasceu em Santo Amaro, Bahia, em 7 de janeiro de 1855.
Engenheiro formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro trabalhou no Porto de Santos, na construção da
Estrada de Ferro da Bahia. Foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia e fundador do Instituto
Histórico Geográfico de São Paulo.

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unidade existente se dava através da exploração da navegação a vapor nos cursos dos rios
(FREITAS, 2ª parte, 1999, p.100).
Freitas afirma ainda que “se hoje é difícil compreender o oeste baiano como um
prolongamento da Bahia, pelas transformações econômicas, sociais e culturais, por que
1278
passou mais difícil era no século XIX”. A “Bahia” para os moradores de diferentes
regiões do interior era quase uma abstração, um local para onde se ia. Tratava-se segundo o
autor, de uma regionalidade a ser consolidada, através de relações políticas, onde
despontavam valores como subordinação e autoritarismo (FREITAS, 1ª parte, 1999, p. 64).
Para traçar o perfil das mulheres de Juazeiro no século XIX, é também necessário
conhecer a família nordestina do século XIX, suas organização e estrutura. Segundo Mattoso,
“compreender o fato familiar” e o papel que esta família representou e ainda representa, é
levantar o véu de uma explicação do que a autora chama de “realidade brasileira”, uma
realidade que para a autora possui laços indestrutíveis que foram estabelecidos, e que estão no
centro desta realidade (MATTOSO, 1988, p.16).
Para Mattoso são numerosos no Brasil, os estudos sobre a família, com
abordagens clássicas como nas obras de Gilberto Freyre, que se refere ao patriarcado como
modelo familiar de organização único, principalmente no nordeste. Contudo, para a autora,
esses estudos sofreram um “certo envelhecimento”, e faz-se necessário retomar as estruturas
familiares de forma ampla e restrita (Idem, Ibdem. p.16).
Ao analisar as estruturas familiares no século XIX, Mattoso afirma que, “a família
é sem dúvida a chave-mestra e base fundamental da organização social da província, sendo
que, cada uma com especificidades regionais. Para ela, o século XIX é ao mesmo tempo
arcaico e moderno por que:

(...) É arcaico em certos planos da vida familiar, como por exemplo, no


domínio das relações sociais, por ser herdeiro de um rico passado colonial
fundado sobre a evangelização de terras novas a explorar num regime
escravista e patriarcal, baseado no comércio de produtos pouco
diversificados. A “sociedade-mãe” portuguesa marcou de modo duradouro a
instituição familiar em suas bases legais, mas o século XIX baiano, é mais
moderno do que parece, pois o modelo português soube adaptar-se às
condições novas encontradas neste ultramar tropical tão diferente da
metrópole européia (...). (Idem, Ibdem, 19)

1278
Segundo o autor, era comum moradores de cidades do interior do estado se referirem à capital, como sendo
Bahia e não Salvador.

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O estereótipo do sistema patriarcal caracteriza a “personalidade” feminina como


emotiva, conservadora, passiva e consumista. Tais estereótipos permitem à mulher
desenvolver satisfatoriamente seu papel nas esferas domésticas, onde as relações sociais se
ampliam de forma afetiva/emocional e não a prepara para a atividade política, essência da
esfera pública, onde as relações se dão à imagem e semelhança do mundo masculino, muito
menos conferem a mulher o direito de ser vista como agente produtor da história (SOIHET,
1997).
Dias analisa de forma mais atual a chamada sociedade patriarcal do século XIX e
afirma que, encontrar mulheres como chefe de família ocorria, embora tal século fosse
marcado pelas relações patriarcais Considerando aspectos regionais, a economia local, a
estrutura social e familiar, pretende-se estabelecer um diálogo entre história, patriarcado,
relações de gênero e o papel das mulheres que sozinhas ou não, administraram os bens
herdados de seus familiares ou maridos. Relegadas a invisibilidade e objeto de crítica, ainda
não foi reconhecida à mulher a grande dimensão de sua efetiva contribuição para a História.
(DIAS, 1995. p. 14).
Para Dias, a condição feminina, empurrou as mulheres do passado para espaços
“míticos sacralizados, onde exerceram misteres apropriados, à margem dos fatos e ausentes da
história. A reconstrução de papéis sociais femininos possibilitam sua integração no processo
histórico de seu tempo, lutando contra o plano dos mitos, normas e estereótipos” (Idem,
Ibdem.p. 13).
Luz e Bussab, no entanto, afirmam que, muito antes de toda a complexa estrutura
social que se organiza em torno da idéia de cidade ter-se estabelecido, havia outro núcleo
social, a família, cuja formação deu diretrizes básicas para o surgimento da cidade. O
patriarcado estava intimamente relacionado às outras instituições como a Igreja Católica e o
Estado, garantindo a submissão da mulher à figura do pai, marido, tutor e, até mesmo, dos
filhos varões (LUZ e BUSSAB, 2004, p. 210-226).
Como exemplo dessa prática vê-se no inventário de Maria da Purificação, datado
de 16 de julho de 1870, a força que a figura masculina exercia. Nele encontramos como
inventariante seu filho mais velho, José Amaro da Silva. Tal fato era bastante comum, uma
vez que a mulher poderia ser representada por um homem, seja ele seu pai, marido ou filho.
Mais tarde Maria da Purificação veio a falecer e consta na seção judiciária
também seu testamento. Maria deixou filhas, herdeiras, casadas, e seus maridos assumiram a

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condução do processo. No documento é possível ler a expressão “marido de fulana de tal”,


“cabeça de sua mulher”. Tal expressão é recorrente em vários inventários observados. 1279
No inventário de Cândida Maria dos Anjos há referência ao fato da mesma não ser
alfabetizada. O juiz nomeou então um homem para assumir a função de inventariante o que
nos leva a questionar se essas mulheres realmente sabiam o que de fato estava sendo feito
com suas posses, o que de fato estava escrito ali. 1280 Aranha afirma que no Império:

A maioria das mulheres vivia em situação de dependência e inferioridade,


com pequena possibilidade de instrução. Nas famílias abastadas, às vezes,
recebiam noções de leitura, mas se dedicavam, sobretudo, às prendas
domésticas, à aprendizagem de boas maneiras e à formação moral e
religiosa. O objetivo era a preparação para o casamento e quando muito,
procurava-se dar um “verniz” para o convívio social, daí o empenho no
ensino de piano e línguas estrangeiras, sobretudo o francês (ARANHA,
2006, p. 229-230).

Em 1825, D. Pedro I autorizou o funcionamento do Seminário de Educandas de


São Paulo e em 1827, pela primeira vez uma lei determinava aulas regulares para meninas,
embora houvesse a ênfase que sua educação tinha por objetivo o melhor exercício das
“funções maternais” que elas um dia iriam exercer. Aranha diz ainda que em 1832, em todo
Império, o número de escolas para meninas “não chegava a vinte”. Tais números ajudam a
compreender o analfabetismo das mulheres nos inventários em Juazeiro (Idem, ibdem, p229).
Dias afirma que pela constituição de 1824, as mulheres não eram eleitoras, “nem
sequer no primeiro escrutínio, e mesmo que fosse, uma minoria dentre elas teria a renda
mínima de 100$, que era requisito essencial para ser eleitor. (DIAS, 1995. p. 28)
A autora também chama a atenção para o grande número de mulheres analfabetas
em seu estudo, reforçando estereótipos e convenções. Eram mulheres que nunca se
manifestavam de forma direta e objetiva. Suas vontades, depoimentos e desejos eram colhidos
por terceiros, distorcidos por valores normativos e institucionais através do procurador, além
do preconceito limitando o acesso de mulheres ao mundo da cultura: “Menina que sabe muito,
é mulher atrapalhada. Para ser mãe de família, saiba pouco ou saiba nada” ( LUÍS, 1939.
p.296 In: DIAS, 1995. p 38)
Nos inventários trabalhados há a descrição dos bens, as contas do inventário, as
custas com deslocamentos do inventariante. Acredita-se que quando o montante do inventário

1279
APEB: Inventário 7/3044/0/4. Essa expressão parece-nos fazer referência ao fato da mulher não poder
assumir sozinha a gestão de seus bens, precisando portanto de um homem que fosse responsável por ela.
1280
APEB: Inventário 7/3183/11; Arrolamento 6/2648/1;Testamento 7/3206/1

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não era grande e lucrativo, havia uma necessidade de postergar a sua conclusão. No inventário
de Maria da Purificação, vários escrivãos nomeados pelo Juiz, alegaram problemas de saúde
para realizar visitas aos demais herdeiros que moravam fora de Juazeiro, o que retardou o
prazo de conclusão do inventário e levou Maria da Purificação a contrair vários empréstimos
em dinheiro aos sobrinhos para manter sua família. Tais recibos constam do inventário, e
neles constam a observação ao fato de Maria ser analfabeta.
O uso do conceito de gênero também foi utilizado para designar relações
sociais entre os sexos, rejeitando as justificativas biológicas utilizadas para explicar a
subordinação entre homens e mulheres, tomando por base a força muscular do homem.
Entretanto, ao utilizar o termo gênero no sentido que Scott define como “apenas em seu
caráter descritivo”, as novas pesquisas históricas se deparam com a limitação de que o
conceito de gênero não tem ainda a força de análise suficiente para interrogar e mudar os
paradigmas históricos existentes. A definição de gênero utilizada por Scott abarca o elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e como
forma primeira de significar as relações de poder, relacionando-se quatro elementos: primeiro
símbolos culturalmente disponíveis; segundo conceitos normativos expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas; terceiro são as instituições e
organizações sociais e, o quarto aspecto é a identidade subjetiva ( SCOTT, 1990).
Para Saffioti “a organização social de gênero constrói duas visões de mundo,
donde se pode concluir que a perspectiva da mulher e, portanto, seus interesses, divergem do
ponto de vista do homem, e, por conseguinte dos interesses deste”. Entendemos que homens e
mulheres podem vivenciar o mesmo fato de maneiras diferentes e é nesta perspectiva que
trabalharemos a experiência das mulheres, utilizando os conceitos de gênero e patriarcado
aqui referidos ( SAFFIOTI, S. l, p 84).
Tais questões levam-nos a crer que as exceções existiam, haja vista que as
mulheres foram beneficiadas com heranças deixadas por seus maridos, pais e parentes,
embora nem sempre ficassem na administração dos bens, seja por que não eram alfabetizadas,
seja por que era de praxe deixar essa “tarefa” a cargo do filho mais velho ou de um “tutor”
nomeado pela autoridade. Essa ascendência do homem sobre a mulher ainda que seja o filho
pode ser explicada quando Narvaz e Koller citam que o patriarcado rural se desintegrou, mas
a mentalidade permaneceu na vida e na política brasileira através do coronelismo, do
clientelismo e do protecionismo (NARVAZ e KOLLER, 2006).
Para Freitas, o interior da Bahia, especificamente Juazeiro era dominada pela
grande propriedade, onde os donos sequer sabiam precisar seu real tamanho, mas isto não

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significava, contudo desinteresse. Essa terra tinha dono, respeitado na figura do “coronel”,
que costumava demarcar um conjunto de relações, que o tornavam proprietários do público,
mas também do privado. Por privado entendem-se aí as pessoas, o cotidiano dessas pessoas, a
vida econômica, social, tudo muito bem controlado. Os coronéis eram senhores, poderosos
sozinhos ou em alianças, e influenciavam e decidiam a vida dos cidadãos da Bahia e de sua
família, sempre através de regras rígidas, que invadiam seu mundo particular e contava
sempre com o apoio decisivo de muitos outros atores, como o juiz, o delegado e o padre
(FREITAS, 1ª parte, 1999, p. 61).
A população feminina durante muito tempo não conseguiu fazer mudanças
significativas em suas vidas, como garantia de acesso à educação, à saúde, o direito de
jurídico sobre a chefia de sua família, deixando-as subjugadas e excluídas das esferas de
decisão. Para Scott gênero significa o saber a respeito das diferenças sociais e esse saber não é
absoluto e sim relativo, sobre as relações entre homens e mulheres. “Seus usos e significados
nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder-de dominação
e subordinação – são construídas.” Daí que gênero é a “organização social da diferença
sexual” sem refletir ou programar diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres,
mas é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais (SCOTT, 1994, p.12-
13).
A história figura como registro das mudanças da organização social dos sexos e
como participante da produção do saber sobre a diferença sexual. Scott diz que as
representações históricas do passado ajudam a construir o gênero no presente e para ela a
história pode documentar fielmente a realidade vivida, já que os arquivos são repositórios de
fatos e categorias como homem e mulher são transparentes ( Idem, ibdem, p.12-13).
Sem a pretensão de levantar questões inéditas, pretende-se abordar o papel
desempenhado pelas mulheres na cidade de Juazeiro, na província da Bahia de 1850 a 1891,
tomando como referência 224 documentos entre Inventários, Partilhas Amigáveis e
Arrolamentos, guardados na Seção Judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia, onde
essas mulheres, após a morte de seus maridos ou pais, tornaram-se herdeiras e senhoras de seu
destino. O objetivo, portanto, é analisar os níveis de riqueza, o papel que essas mulheres
exerceram no município, a instrução feminina no século XIX e como se deu o exercício de
poder nessa sociedade, como início de uma pesquisa de maior amplitude que se encontra em
curso.

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1- FONTES DOCUMENTAIS

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Seção Judiciária: Inventários e Testamentos – Juazeiro

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CANUDOS: UMA GUERRA, MUITAS MULHERES.

Udineia Braga – UFBA


udibraga@yahoo.com.br

História de Canudos ainda hoje desperta a atenção de historiadores, pesquisadores e cientistas


de diversas áreas, dado a dimensão e a complexidade daquele arraial messiânico, liderado por
Antonio Conselheiro, que se estabeleceu no semi-árido baiano no final do século XIX. Para lá
segue uma multidão de pessoas: Trabalhadores, sem terra, ex-escravos, velhos, mulheres e
crianças que com ele chega a Canudos e lá se estabelecem. Quem eram estas mulheres? Qual
o papel delas naquela comunidade? Porque buscavam o caminho de Canudos? Trabalhava na
criação de animais, no plantio? Que outras funções desenvolviam? A vasta literatura
existente sobre Canudos ignora estas mulheres. Estudá-las neste acontecimento histórico nos
fará conhecer, não apenas as mulheres sobreviventes, mas aquelas que abriram mão de suas
casas, famílias, trabalho ou de nada, e buscaram o Belo Monte para lá encontrar alento para
sua vida. Esta pesquisa pretende, portanto reconhecer a importância das mulheres de Canudos
como agente histórico e as relações de gênero vivenciadas por elas, que influenciaram no
desfeche daquele fato histórico.

Palavras-chave: Mulheres, Canudos, Sertão

A História de Canudos ainda hoje desperta a atenção de historiadores,


pesquisadores e cientistas de diversas áreas, dado a dimensão e a complexidade daquele
arraial messiânico, que se estabeleceu no semi-árido baiano no final do século XIX.
Canudos se constitui motivo de pesquisas e de publicações acadêmicas, por que ainda não se
esgotaram os assuntos que envolvem aquela epopéia humana, que conseguiu colocar-se à
margem da lei republicana recém implantada, concentrando em seus limites cerca de vinte e
seis mil pessoas chamadas de conselheristas, como também as novas abordagens
historiográficas permitem a ampliação do tema para além da epopéia da guerra.1281

1281
Boa parte da bibliografia sobre Canudos se detém a detalhar o combate e a guerra que tornou-se na ocasião
noticia em todo o país e no mundo. Hoje é possível olhar para Canudos e observar outros aspectos até então não
abordados para melhor se entender o que acontecia dentro dos limites do Belo Monte.

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Antônio Conselheiro peregrinou pelo sertão, construindo igrejas e cemitérios,


ensinou a palavra de Deus e o caminho para o céu, e se transformou em uma esperança para
“o sertanejo” pobre, ignorado, oprimido e marginalizado. Começa a ser seguido por uma
multidão, composta por trabalhadores rurais, sem posses, ex-escravos, velhos, mulheres e
crianças. (NETO, 2007) “A grande massa humana provinha de pontos próximos ou
distanciados dos sertões nordestinos”(CALASANS,1973, p.468).
O sertão significou muito mais do que o espaço e a região dos acontecimentos que
compreende o Ciclo do Bom Conselheiro. É deste sertão, desta terra inculta e árida, deste
sertão seco, embrutecido e inóspito, que milhares de pessoas em busca de alento para suas
dores, desilusões, alimentando esperanças singulares, começaram a segui-lo. Antonio
Conselheiro não chamava os seus fies, eles chegavam:

“espontâneos, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de


provações e miséria. Eram no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao
trabalho, farândola de vencidos da vida, vezada à mandria e a rapina. Um
dos adeptos carregavam o templo único, então da religião minúscula e
nascente...Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos e
povoados, num coro de ladainhas” (CUNHA,2000,p. 167).

Andando pelos sertões, O Bom Conselheiro liga-se a Joana Imaginária, escultora de


imagens em barro e madeira com quem tem um filho e os deixa em 1865(NETO, 2007),
dando continuidade a sua peregrinação. Viu a República e se declara contra as novas leis. Em
certa ocasião estava em Bom Conselho, onde reuniu o povo em dia de feira e, entre gritos
sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas com as leis da República numa
fogueira. Começava então a sua trajetória política, pois dispersara uma patrulha de soldados
republicanos que tenta prendê-lo pelo ocorrido em Bom Conselho. A partir deste momento
será sempre perseguido como um perigo social.
Chegou as margens do Rio Váza-Barris numa fazenda que posteriormente, seria
chamada de Belo Monte. O crescimento de Canudos foi vertiginoso para lá partia pessoas de
várias localidades, sobretudo de locais onde Conselheiro havia peregrinado mais de vinte
anos. “Pessoas de recursos que vendiam sua terra e gado. Homens e mulheres paupérrimos.
Índios do aldeamento...; pretos libertos pela lei áurea,... doentes mentais, aleijados,
incapacitados que viviam das esmolas do Bom Jesus e esperavam seus milagres”
(CALASANS, 1973, p.466).
Notadamente encontramos detalhes sobre os facínoras, que encontravam em Canudos
as condições favoráveis para se esconderem da justiça e terem uma vida tranqüila.

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Conhecidos pela História como Jagunço, naquela paragem lendária poderiam viver a margem
da lei e prestar os serviços de que precisava o Bom Conselheiro. Mas não apenas estes
tomavam o caminho de Canudos.

...os grupos de adeptos que surgiam todos os dias, procedentes de diversos


lugares por onde peregrinara durante mais de 20 anos, o Santo Conselheiro...
. Pessoas de recursos, que vendiam sua terra e seu gado. Homens e mulheres
paupérrimos. Índios do aldeamento de Miranda e Rodelas..., pretos libertos
pela lei áurea... . Doentes mentais, aleijados, incapacitados que viviam de
esmolas do Bom Jesus e esperavam seus milagres... (CALASANS, 1973,
p.465-466).

O arraial de Canudos surpreendia por causa do seu crescimento. Após iniciada a


guerra, em três semanas este aumentara de modo extraordinário. Como nos primeiros tempos
da fundação a todo o momento apontavam grupos de peregrinos em demanda de paragens
lendárias. Dentre os que o seguiam para Canudos em busca do alento das prédicas do Bom
Conselheiro, registrava um grande número de mulheres. “O mulherio constituía então, a
parte mais numerosa do pessoal fanático, podendo ser calculado em dois terços do bando
que acompanhava o Conselheiro...” (DANTAS, 1922, p.146).
Quem eram as mulheres que fizeram parte deste movimento histórico, de repercussão
mundial, ainda hoje é objeto de interesse de vários segmentos da sociedade científica?

...Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as


beatas - êmulas das bruxas das igrejas – revestidas da capona preta
lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos
sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e desejadas, soltas na
gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas recatadas e
tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas...
Faces murchas de velhas... rostos austeros de matronas simples; fisionomia
ingênuas de raparigas crédulas...Grenhas maltratadas de crioulas retintas...
(CUNHA, 2000, p.165)

Segundo José Calasans, Euclides da Cunha, em sua clássica obra “Os Sertões”,
costuma referir-se as estas mulheres de forma duramente estigmatizada. Diz que as
mulheres eram repugnantes (CALASANS, 2001, p.3), praticamente negando assim a
presença feminina em seu livro. As poucas referências que faz, trata de mostrar a sua feiúra e
as mazelas que carregavam sobre si. Nega ainda mais a participação destas como membros
daquele episódio que marcaria significativamente a História da Bahia e do Brasil. Devolver
a elas o “...exigindo reconhecimento do seu papel de mulher como participantes ativos (e

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iguais) nos movimentos políticos para a mudança social”(SCOTT,1992,p.69), motiva o tema


deste trabalho.

Sem dúvida, os próprios historiadores das mulheres acharam difícil


inscrever as mulheres na história e a tarefa de reescrever a história exigia
reconceituações que eles não estavam inicialmente preparados ou trinados
para realizar.Era necessário um modo de pensar sobre a diferença e como
sua construção definiria as relações dos indivíduos e os grupos sociais.
(SCOTT, 1992, p.86)

As muitas publicações sobre o Arraial de Canudos e sua guerra pouco refere-se a


estas mulheres. E quando se refere, é com relatos da forma desumana como elas foram
encontradas no momento em que foram presas, geralmente de forma discriminatória.

Em narrativas como as do consagrado Euclides da Cunha (1973), mas


também em texto de jornalistas como Lulú Parola e do próprio Lélis
Piedade, encontramos a descrição das jagunças como seres horrendos de
aparência, de caráter matreiro, violentas, ignorantes. Verdadeiras “bruxas”
ou “harpias”, como chegaram a ser nominadas, careciam agora de resgate...
(OLIVEIRA, 2002, p.313).

Quem eram essas mulheres? Porque buscavam o caminho de Canudos? Que papel
desempenhavam na estrutura social daquela comunidade? Quais as funções desempenhadas
por elas? Trabalhava na criação de animais, no plantio, apenas como mãe e mulheres dos
conselheiristas, eram mulheres dos jagunços, daí o termo jagunças. Ou que outras funções
desenvolviam? E as que viviam nos acampamentos? Eram apenas amantes? Como
sobreviviam? Quem as sustentava? E as viúvas dos militares, como viveram após a morte de
seus maridos?
As que acompanhavam os militares nos acampamentos eram tidas como prostitutas.
“Algumas mulheres, amantes de soldados, vivandeiras - bruxas, de rosto escaveirado e
envelhecido...”(CUNHA, 2000, p.467). Mas, de fato, quem eram elas? De onde viam? Por
que estavam ali? E as viúvas dos militares? Como viveram após o combate e a perda de seus
maridos? Pouco ou quase nada se refere a elas na literatura existente.

Ao lermos este depoimento de Euclides da Cunha em sua obra clássica sobre


Canudos, nos reportamos às várias leituras que trata destas mulheres no pós-guerra. Elas
sempre são definidas como mulheres de aparência grotescas, sem polidez, sem beleza
alguma, além de serem denominadas como “jagunça” o que está sempre associado ao
comportamento dos jagunços e facínoras que buscavam em Canudos como um “homizio”.

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Estas definições de caráter discriminatório, nos impede de uma releitura da identidade das
mulheres do arraial.
Relatos como os publicados pelo coordenador do Histórico e Relatório do Comitê
Patriótico da Bahia, Lélis Piedade, registram que várias mulheres após a guerra voltaram para
suas famílias abastadas, e que algumas, ainda em ocasião de morte, cederam quantias em
dinheiro para ajudar outras em condição menos favorecida, o que contradiz as definições não
correspondem fatos, quando não relatam o perfil destas mulheres, igualando-as, influenciados
apenas nas publicações recorrentes da época.

As estratégias de identificação que se prestam ao estabelecimento do


nós/outros manifestam-se em passagem que constroem monstros e beldades,
bruxas e princesas, conforme os atributos valorizados pelos olhos do
observador, caracterizando em agrupamentos de mulheres de mesma
procedência, antes rotuladas sobre uma mesma hetero-identidade, agora
vistas e diferenciadas de formas completamente distinta (OLIVEIRA, 2002,
p.316).

Mulheres e crianças sobreviveram a Guerra de Canudos. Muitos dessas listadas no


Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia com depoimentos sobre a guerra e o que
sofreram após a queda de Belo Monte. No entanto existe uma escassez de estudo a respeito
da origem destas mulheres. “A escassa de produção acadêmica encontrada que abrangem
todo território nacional confirma que no Brasil, a mulher costuma ser ignorada enquanto
sujeito histórico...” (ALMEIDA, 1998, p.51).
Outras obras relatam algumas das situações que envolveram as relações de gênero
durante a guerra descrevendo que “em meio à violência do combate, registram-se episódios
relacionados com os conflitos de gêneros, no qual a resistência ante a interferência das
autoridades militares numa questão de casal denuncia as tentativas de manutenção das
relações cotidianas durante a guerra. (OLIVEIRA, 2002, p.67).
Quem de fato são essas mulheres? Possuem posses, bens, famílias abastadas? Por que
foram para Canudos? O que buscavam ali? A que tipo de poder estavam expostas?
Não encontramos informações de quem foi a primeira mulher de Conselheiro. E a
segunda Joana Imaginária, com a qual teve um filho. Cabe destacar a importância destas, e na
formação deste acontecimento histórico, tentando levantar que destino estes tiveram. Ainda
interessa-nos levantar o perfil das mulheres prostitutas que acompanhavam as expedições.
Quando lemos as obras, artigos e publicações sobre Canudos vêem informações de
jagunços, personagens indispensáveis ao cenário do nordestino. Temos informações vastas,
definições de suas origens, se facínora ou se homem de bem sofredor da seca nordestina e da

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fome do sertão, mas se nega a origem das mulheres. As publicações disponíveis carecem de
informações sobre o papel delas naquela comunidade e as relações que estas mantiam com
suas famílias se as tivesse, não se sabendo ainda a que relações de “poder” estavam
submetidas exposta.

Amplia o foco da história das mulheres, cuidando dos relacionamentos


macho/fêmea e de questões sobre como o gênero é percebido, que processos
são esses que estabelecem as instituições geradas, e das diferenças que a
raça, a classe, a etnia e sexualidade produzem nas experiências históricas
das mulheres. (SCOTT, 1992, p.88).

Calasans afirma que o mulherio constituía a parte mais numerosa dos fanáticos que
seguiam para Canudos, chegando a cerca de dois terços dos vinte e seis mil habitantes que
compunham o arraial. Se estas mulheres eram em número tão expressivo como afirma
Calasans, nas inúmeras obras que escreveu sobre Canudos, não se compreende a omissão na
literatura e na própria História a respeito dos papéis desenvolvidos por estas mulheres.
Estes grupos eram formados em maioria por mulheres. Mas, quem eram estas
mulheres? Negras libertas; pobres miseráveis; doentes; por que buscaram a Canudos...? Não
se encontra referências que venham esclarecer sobre elas.
Encontramos informações de que também muitas mulheres acompanhavam os
militares que marchavam para canudos. Algumas acompanhando seus maridos. Outras eram
prostitutas. Que destino estas tiveram? E sabido que costuma-se omitir a importância da
mulher nos movimentos e processos históricos. Estas mulheres apesar de em grande número
não tiveram suas identidades e origens reveladas. Lélis Piedade, ao abrigar os sobreviventes
prisioneiras da saga de Canudos, declara que estas apresentam sentimentos de honra e recato,
bons costumes, hábitos de trabalho, que buscavam posições para esconder a nudez da pele
com os andrajos além de testemunha a nobreza de algumas destas mulheres que distribuía
pequenas quantias que traziam consigo, no sentido de melhorar a vida das mais indigentes.
A este respeito Wálney Oliveira em sua tese de mestrado faz as seguintes
considerações:
“Aos agregados dos militares era garantida a manutenção e sobrevivência.
Diversas mulheres – esposas, viúvas, filhas, irmãs, avós e mães, fizeram
requerimentos aos oficiais de serviço, solicitando pagamento de pensões.
Alegando não poder garantir seu sustentar, visto que os seus provedores
estavam afastados (temporária ou definitivamente) no serviço patriótico,
buscava amparo no Estado, que devia assumir o lugar do homem ausente”
(OLIVEIRA, 2002, p.136).

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Muitas petições foram realmente atendidas. Muitas daquelas mulheres que


acompanhavam seus maridos até as áreas de movimentação das tropas com seus filhos e
agregados, e devido aos conflitos teriam perdido seus maridos, e careciam retornar as suas
residências.
O Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia (1897 – 1901), que teve como
Coordenador Lélis Piedade, jornalista e farmacêutico, será de grande relevância, pois traz
relatos dos últimos acontecimentos da Campanha de Canudos, além de registros sobre as
mulheres sobreviventes, como foram recebidas e encaminhadas a outras instituições, além de
citar algumas viúvas de militares e o que aconteceu com elas. Lélis Piedade em uma
linguagem simples expõe sobre a quarta expedição da qual participou, onde relata a grande
diversidade social ali encontrada: doentes, feridos, órfãos, viúvas e mulheres.

“ ...Merece uma leitura especial pelo caráter técnico,..., que apresenta, as


descrições desses sujeitos , excluídos da história, que aos poucos vão
adquirindo nome, origem geográfica e étnica, além de parentesco e outras
características fímbrias dos relatos genéricos de fanáticos e lhes devolvendo
as suas subjetividades ...”(GUERRA, 1897-1901, p.216-217).

O citado Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia faz inúmeros relatos


sobre as prisioneiras da guerra. São depoimentos das que foram acolhidas por suas famílias.
Outras que se uniram em matrimônio com soldados. Outras que chamavam a atenção por sua
beleza, ou por sua feiúra. Mas de todo dos os relatos um nos chamou maior atenção o da
prisioneira Maria Leandra dos Santos que, trazendo de Canudos perto de conto de réis, gastou
quase metade dessa quantia procurando minorar a condição às suas companheiras de
infelicidade até Alagoinhas. (PIEDADE, 1897-1901, p.216).
A História de Canudos, mesmo ampla, omite o papel da mulher como agente
histórico, e a necessidade de pensar em uma Nova História em que seja devolvido a mulher
o seu direito de participante nas construções sociais e históricas. Portanto voltamos o nosso
olhar aos acontecimentos vivenciados por estas mulheres antes, durante e após a grande
epopéia da “Troia de Taipa” “Canudos”.“As mulheres..... São elas que fazem os homens bons
e maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes bem; os homens moldam a
sua conduta aos sentimentos delas.”(LOURO,1997, p.678).
Assim, “a relação entre Gênero e História constitui-se uma categoria de análise
que se impõe na revisão da História oficial e da História da humanidade”(ALMEIDA,1998,
p.50). Partindo desse princípio se faz necessário rever a História, e retirar desta as

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informações sobre as mulheres que, acompanharam o Antonio Conselheiro e que com ele se
estabeleceram em Canudos, e as outras que, de forma, diferente também fizeram parte
daquela página da nossa História naquele momento.
Canudos apresenta, portanto uma complexidade tamanha, com variantes sociais e
históricas que apontam questões ainda não estudadas, em pormenores, e que não serão
esgotadas. Analisar Canudos sob uma perspectiva de gênero retomará dados não observados
sobre estas mulheres que viviam na “Canaã Terrestre”, no Belo Monte, que por ocasião de
sua queda, sofreu toda sorte de violência.

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- ANPUH/SE e IHGSE - 960

SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” In. Educação e Realidade.
Porto Alegre. 1992.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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VIVER PRA PARIR, LABUTAR E NÃO MORRER: PARTO, DOENÇAS


E MORTALIDADE NO COTIDIANO DE TRABALHADORAS RURAIS
DO SERTÃO BAIANO, VILA DE UIBAÍ, XIQUE-XIQUE, DÉCADA DE
1950.

Taiane Dantas Martins- UNEB.


taiuibai@bol.com.br

Esta pesquisa buscou levantar aspectos significativos do cotidiano de trabalhadoras rurais da


Vila de Uibaí, município de Xique-Xique, na década de 1950, dando ênfase a elementos como
doenças e mortalidade através da metodologia de História Oral e da análise dos atestados de
óbito dos trabalhadores na época abordada. Foram analisados 193 óbitos, dos quais 146 são de
adultos e 47 de crianças. Dentre os adultos, 70 são homens e 76 mulheres. Algo que chamou a
atenção foi que dentre as 76 mulheres adultas falecidas 20 tiveram o parto como causa mortis,
o que equivale a 26,31%. Além do aprofundamento da análise das causas mortis, buscamos
perceber aspectos mais específicos acerca de elementos do cotidiano das trabalhadoras como
o parto, a vida dos recém-nascidos, a quantidade de filhos e as doenças que marcaram
profundamente este cotidiano.

Palavras-chave: Trabalhadores Rurais, Vila de Uibaí, Relações de Gênero.

Este artigo aborda uma temática específica da pesquisa realizada em minha


Especialização em História: cultura urbana e memória realizada na Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, campus IV. O principal problema tratado nesta foi a forma como se
estruturavam as relações de trabalho estabelecidas no ambiente rural do sertão baiano, cidade
Uibaí, na década de 1950, procurando detectar a atuação das mulheres no campo, bem como
as relações existentes nos aspectos étnicos, de classe e de gênero. Uma temática como esta se
justifica pelo fato de que vislumbrar uma “reconstrução dos papéis sociais femininos, como
mediações que possibilitem a sua integração na globalidade do processo histórico do seu
tempo, parece um modo promissor de lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos”
(DIAS, 1995, p.13).

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O tema abordado aqui busca levantar aspectos significativos do cotidiano dessas


trabalhadoras, dando ênfase a elementos como doenças e mortalidade através da metodologia
de História Oral concebendo a memória “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta
de fato uma representação seletiva do passado” (ROUSSO,1996, p.94-95) e da análise dos
atestados de óbito dos trabalhadores na época abordada. Nosso referencial teórico esteve
apoiado na História Social, dentro da qual se obteve subsídio do historiador inglês Edward
Thompson, pelas diversas contribuições fundamentais se considerarmos a temática e o tipo de
abordagem propostos neste trabalho. Primeiro, por ter sido um dos fundadores do valor da
história “vista a partir de baixo”, principalmente por privilegiar as visões de mundo
elaboradas por estes sujeitos, priorizando as relações de conflito de classe para além do plano
estritamente institucional, com desdobramentos na cultura, no costume, no direito, enfim, em
todas as atividades humanas, como também por ser um autor que inaugura a escrita de uma
história do trabalho que vê os trabalhadores enquanto sujeitos da formação de sua própria
classe, rompendo com determinismos econômicos. Fundamental também para o
desenvolvimento desta temática foi o avanço nos estudos de gênero, aqui concebido como o
“aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensão de
qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em
separado” (SOIHET, 1997, p. 270).
A Vila de Uibaí está localizada no sertão baiano. Seus riachos são afluentes do rio
Verde, afluente do rio São Francisco, atualmente município homônimo situado na Chapada
Diamantina Setentrional, incluso no chamado Polígono das Secas, situado a cerca de 500
quilômetros da capital do Estado, contando cerca de 13. 723 habitantes, com área geográfica
de 515,67 Km², base econômica na agricultura e grau de urbanização de 57,88%1282. A
Vila1283 estava situada no município de Xique-Xique, porto fluvial de destaque,
estrategicamente ocupado à época da colonização às margens do Rio São Francisco, sendo
inicialmente denominado Fazenda Praia e ocupado em 1700 (MACHADO NETO, 1997,
p.27), o qual se tornaria o centro de um vasto território situado em seus arredores, onde se
desenvolvia a policultura, criação de gado e garimpo. Foi denominada Vila em 1831 e
município de Xique-Xique em 6 de julho de 1832. (MACHADO NETO, 1997, p.42).

1282
Dados do Instituto brasileiro de geografia e Estatística, de acordo com o censo 2000 e estimativas.
Disponível em <http://www.ibge.br>. Acessado em 02 de maio de 2006.
1283
Não pudemos encontrar dados específicos acerca da Vila na década de 1950, mas Pedro da Rocha Machado,
vereador representante da Vila no final da década abordada, ao relatar o processo que visava a emancipação local
em 1958 afirma que isso não foi possível pois seria necessária a existência de 10.000 moradores e a Vila contava
apenas com pouco mais de 6.000 habitantes.

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Conforme já foi dito, trataremos aqui de parto, mortalidade e doenças, temáticas


que ganharam destaque na análise aqui proposta. Durante o desenvolvimento da pesquisa
constatou-se que a morte era um elemento de presença constante no cotidiano das
trabalhadoras rurais abordadas pela presente pesquisa, pois, como enfatiza Silva, “O sertão
penitencial conservou uma herança que o seu quotidiano alimenta com fartura. Para essa
gente, no gosto do seu viver há um travo muito acre de morte” (SILVA, 1982, p.68). A
análise dos atestados de óbito da Vila, na década de 1950, revela e existência de 193 óbitos,
dos quais 146 são de adultos e 47 de crianças. Dentre os adultos, 70 são homens e 76
mulheres. Ao contrário do que acontece numa outra comunidade sertaneja analisada por
Erivaldo Fagundes Neves em que os homens apresentam maior taxa de falecimento e “o
menor índice de óbitos entre mulheres e crianças talvez se explique pelo fato dos homens,
debilitados pela desnutrição, submeterem-se a maiores desgastes físicos nos trabalhos pesados
das lavouras”. (NEVES, 1998, p.199), aqui as mulheres faleceram em maior número, talvez
pela grande quantidade de óbitos por parto o que pode ser derivado da pesada carga de
trabalho que estas assimilavam desde a infância num processo informal de aprendizagem e
que continuavam a executar por toda a vida. Martins; Martins (2005) nos relatam este
processo:

[...] as meninas mais velhas ajudavam as mães a cuidar dos irmãos mais
novos que, na maioria das vezes, não eram poucos [...]; à medida que
cresciam, ajudavam as mães a alimentar os animais (suínos, caprinos e aves),
as acompanhavam às lagoas, fontes ou outros riachos para lavarem roupas,
aprendiam a cozinhar. Realizavam ainda outros trabalhos domésticos. Iam à
casa de farinha “rapar mandioca e tirar tapioca”, para fabricar juntamente
com os homens a farinha e a tapioca. Algumas aprendiam ainda a costurar,
bordar, fazer renda, fiar e tecer – os dois últimos eram mais restritos - para
fabricar seu enxoval ou para vender. (MARTINS; MARTINS, 2005, p. 14-
15).

Dentre as 76 mulheres adultas falecidas 20 tiveram o parto como causa mortis, o


que equivale a 26,31%.Tal qual constata Ferreira Filho (1994) na cidade de Salvador no início
do século XX, na qual

[...] a causa dos óbitos nos permite vislumbrar o estado de saúde das
mulheres baianas. Desnutridas, fisicamente debilitadas, portadora em
quantidade considerável de doenças transmissíveis e congênitas, a gestação e
o parto sinalizavam como um grande perigo à vida de muitas mulheres, que
numa dimensão biológica reproduzia e intensificava os limites sociais da
pobreza. (FERREIRA FILHO, 1994, p.193).

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Na Vila de Uibaí, um dos elementos fundamentais que influenciavam essa


mortalidade em partos, além destes citados por Ferreira Filho, era a falta de assistência
médica. Não havia nenhum serviço institucionalizado de saúde. Dentre os atestados de óbito,
são raros os casos em que um médico dá a causa da morte, que é em muitos casos declarada
ignorada. Os partos eram realizados por parteiras, sem nenhuma possibilidade de intervenção
cirúrgica e sempre que houvesse maiores complicações no parto a mulher – e em grande parte
das vezes a criança – morria.
As parteiras eram elementos fundamentais nas comunidades rurais. Edimário
Machado (2006), ao traçar a biografia de Osvaldo Alencar Rocha, nos traz a descrição de um
parto realizado na Vila em 1938:

Num quarto da casa, a matula de um candeeiro produzia uma chama


luminosa que se movia lentamente de um lado para outro, alterando o seu
bailar ao sabor dos movimentos nervosos de D. Sancha Machado, conhecida
como Xanxa de Nezinho, parteira chamada às pressas para a execução dos
trabalhos. D. Rita se contorcia com as dores, mas a família, reunida na sala,
não estava totalmente intranqüila. A parteira, que era uma das mais
experientes da região, chegou disposta, trazendo toda a parafernália
tecnológica disponível naqueles sertões distantes, composta por uma tesoura
velha não esterilizada e um modesto cordão de algodão trançado à mão.
(MACHADO, 2006, p.25).

Esta referência à tesoura não esterilizada é importante, visto que a causa mortis de
irmãos e filhos mais apontada dentre as entrevistadas era o “mal de sete dias” – tétano –
resultante provavelmente dessas tesouras e de outros materiais como os descritos abaixo, na
ritualística do parto. É curioso, porém, que esta doença não pôde ser detectada nos atestados
de recém-nascidos. Terá sido dada outra nomenclatura que não pudemos identificar?
Chama a atenção toda uma ritualística que acompanhava o parto descrito pelo
autor, certamente relatado por contemporâneos que lhe rememoraram o fato:

Os pedidos e ordens se seguiram: cuias com água quente, mel de fumo, rapé,
óleo de mamona, aguardente, cinzas de cigarro e cascas, raízes e sementes
diversas. O ritual não tinha sofisticação: primeiro, um bom chá de quitoco,
uma planta rasteira existente na região, que tinha o caráter de fazer aumentar
o ritmo das contrações; em seguida, ovos quentes com muita pimenta, para
aumentar as dores do parto; massagens na barriga, lubrificada com azeite
doce quente, complementavam os recursos disponíveis. No mais, muita reza.
Imediatamente após o parto, o menino mole recebia os primeiros cuidados:
mel de fumo, azeite de mamona e cinza de cigarro no umbigo. (MACHADO,
2006, p.25).

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Havia ainda prescrições que as mulheres deveriam seguir rigorosamente após o


parto:

Para a mãe, que escapara da morte, cachaça quente com muito cominho. As
recomendações para o resguardo eram rigorosas: comer, durante 30 dias,
carne de capão gordo com muito pirão de farinha de mandioca; tomar
banhos completos só após um mês, e com água acompanhada de cascas de
cajueiro ou outras plantas e, para completar, ficar um bom período sem lavar
a cabeça. (MACHADO, 2006, p.25).

Chamamos atenção no texto acima para o trecho: “para a mãe, que escapara da
morte”, destacando que não se trata apenas de figura de retórica. A vida das mulheres na Vila
de Uibaí, pelo menos até a década de 1950, na fase reprodutiva, estava sempre por um fio. O
parto é a causa de morte mais recorrente dentre os atestados de óbito analisados. Maria Sofia
falece aos vinte e dois anos, dois dias após sua primeira e única filha. Guiomar falece também
aos vinte e dois e deixa dois filhos. Zulmira, aos vinte e dois, deixa cinco filhos. Jovanina,
com vinte e cinco, deixa dois filhos. Claunita, de vinte e cinco, deixa cinco crianças. Maria
José, de dezoito anos, falece quase dois meses após o nascimento de Inez, que morreu com
um mês de vida, a mãe – de acordo com o atestado – de parto – e a filha, de cólica das
crianças. Maria, de trinta e sete anos, deixa três crianças. Alvani, vinte e um anos, dois filhos.
Atanásia, quarenta e dois anos de idade e onze filhos órfãos. Cleonice, vinte e dois anos e uma
filha de quatro dias. Leondina, trinta e quatro anos e quatro filhos. Elisa, aos trinta e um, deixa
um filho. Maria, aos trinta e sete, deixa dois filhos e Germana, aos quarenta, deixa quatro.
Além de Eni, Dejanira, Carlota, Dulce e Ana, respectivamente na idade de dezenove, vinte,
vinte e quatro, trinta e trinta e três, sendo que não se depreende dos atestados se as crianças
sobreviveram ou mesmo se estas deixaram outros filhos1284.
Essas são algumas das mulheres que sofreram até o fim da vida naquilo que
muitas viam como sua missão: reproduzir. Sertanejas que lutaram até o último instante pela
sua vida e a de seus filhos, mas que não sobreviveram à falta de assistência médica e
alimentação adequada e que sequer tinham a oportunidade de escolher se queriam ou não
correr o risco de vida que significava reproduzir naquela localidade e momento histórico
específicos.
Mas o que era feito dos filhos dessas mulheres? Os dados nos indicam que não era
pequeno o número de órfãos na Vila, mas os documentos escritos não nos permitem

1284
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.

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vislumbrar o destino destes, porém algumas entrevistas nos dão pistas do paradeiro de
crianças que perdiam, por um ou outro motivo, o convívio com a mãe. É o caso de Dona
Petronília e os irmãos que “moravam tudo assim espalhado com os padrinho criando, que
minha mãe era doente, num pôde criar filho, só pôde arrumar, adoeceu, ela dava esse mal que
caía né? Aí os padrinho tomou conta”1285. Isso nos revela a importância das relações de
compadrio nessa sociedade onde os padrinhos muitas vezes atuavam, de fato, como
substitutos dos pais no caso da impossibilidade destes. Os avós também atuavam como
substitutos dos pais no caso da falta destes. Dona Ulda revela que “às vezes passava tempo
com minha vó quando minha mãe tinha resguardo ou alguma doença que toda vida as
mulheres sempre, minha vó levava a gente pra lá ne e a gente passava um tempo lá com
ela”1286. É importante destacar que na ausência da mãe, seja para trabalhar, por doença ou
morte, a substituição deveria ser feita sempre por outra mulher, fosse esta irmã, avó ou
madrinha, o que mostra uma relativa imobilidade nos papéis atribuídos a mulheres nesta
sociedade.
Mesmo quando sobreviviam ao parto, as mulheres tinham que conviver com o
risco constante de perder os seus filhos nos primeiros anos de vida. 25% dos falecidos na Vila
são crianças com até doze anos de idade, das quais mais de 90% morreram antes do primeiro
ano de vida. Castro (1967) afirma que “morre tanta criança no Nordeste que chega a parecer
que morre mais gente do que nasce” (CASTRO, 1967, p.22).
Uma das causas de óbito infantil apontada nos atestados de óbito com maior
freqüência é a cólica das crianças ou cólica infantil que vitimou na Vila de Uibaí, durante esse
período: José e Epaminondas de 3 meses; João, com 60 dias de vida; Roberto aos 9 meses;
Clarivaldo de 3 meses e 24 dias; Rubson, 8 dias; Inez, 1 mês; Pedro de 6 meses; Maria, 3
meses; José, 2 dias; Wilson, 5 meses; José, 16 dias e Eva de 1 mês1287.
Como em outras áreas do sertão baiano, “a paisagem está impregnada da presença
constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal promiscuidade dessa gente com a
morte, de que o enterro é um dos traços mais vivos e presentes”. (SILVA, 1982, p.62). A
febre também é apontada como causa freqüente de morte tendo vitimado Maria, aos quinze
dias de vida; Janete, de dois meses; Amélia, aos dez meses; Amália, aos trinta dias; Oziel, aos
treze meses; Domingos, aos dezoito meses e Carlos, com dois anos e cinco meses de vida1288.

1285
Depoimento de Petronília Rosa de Miranda Martins.
1286
Depoimento de Ulda Dourado Bastos.
1287
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1288
Idem.

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As outras causas apontadas para a morte de crianças até o terceiro ano de vida são
a “desenteria” que mata uma criança de cinco meses cujo nome não está indicado no atestado
de óbito, doença denominada em outro caso de “diarrheia infantil”, causa do falecimento de
Eládio, com um mês de vida. Temos também o sarampo que vitimou Francisco, de oito
meses, Ariano, de quinze e Gildásio, de treze. A denominada “conseqüência da dentição” ou
“moléstia da dentição” é a causa da morte de Genário, nove meses e Odilon, de três. Algumas
crianças falecem e a causa apontada é nada mais do que “conseqüências de parto”. É o caso
de Adalgisa, dois dias e Idelvan, sete dias. A paralisia infantil mata Floraci, de três meses; a
pneumonia leva Gileno aos dois meses. Jaime falece aos cinco meses com “feridas na boca e
retenção de urina”. Francelino, quatorze dias, filho de Maria, falecida no parto, morre
simplesmente da “moléstia dos recém-nascidos”. Ocorre também a “moléstia ignorada”, como
foi o caso de Pedro, dezenove meses1289.
Percebemos, através dos dados, que era bastante frágil a saúde dos recém-
nascidos, sendo que sequer havia médicos na Vila para atestar as mortes. Nenhuma das
crianças ou mães que faleceram de parto teve o atestado de um médico para o seu
falecimento. Esses aparecem raramente, apenas em casos de pessoas que foram se tratar em
outros lugares, por terem dinheiro para pagar as despesas. Algumas denominações nos
parecem insuficientes para detectar a causa morte dos bebês, como é o caso da “moléstia dos
recém-nascidos”, que pode ser o conhecido “mal de sete dias”, ou mais especificamente,
tétano.
As crianças maiores, apesar de já terem passado pela “loteria” do parto e dos
primeiros anos de vida, ainda passam em seu cotidiano por situações que podem vir a dar
cabo de sua vida, seja por um acidente nas brincadeiras na Serra Azul ou das Laranjeiras –
Lurdes falece aos cinco anos de morte violenta “caída de cima de um talhado na grota da serra
de Laranjeira” – ou por doenças como sarampo – Maria, nove anos. Febre – Aides, onze.
Anemia – Geraldina, oito. Crupe - Terezinha, quatro. Ou até mesmo de “causa ignorada”
como foi o caso de Eli, três anos e Darci, cinco anos1290.
As jovens e mulheres adultas, há apenas cinco décadas de distância de nós,
faleciam de doenças que hoje, apesar de todos os problemas pelos quais passa a saúde pública
no Brasil, são inaceitáveis. É o caso da jovem Messias, dezessete anos, que falece de
disenteria – diarréia – ou de Juvília, vinte e cinco e Rosentina, trinta e quatro, vitimadas pela

1289
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1290
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.

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gripe. A segunda deixou nove filhos. Nada elimina a hipótese de que se tratem de doenças
outras nos aparelhos excretor ou respiratório, não identificadas por falta de assistência
especializada.
Doença denominada infecção, desenvolvida provavelmente na área ginecológica –
só atinge mulheres – também vitima mulheres adultas no cotidiano da Vila de Uibaí. É o caso
de Donária, 33 e Laura 29, ambas sem filhos. As doenças respiratórias são freqüentes nos
atestados de óbito. A bronquite é causa da morte de Maria, solteira, 42 anos, que deixa oito
filhos; de Adelina, 48, seis filhos e Idalita, 34, cinco filhos. A asma vitima Jovelina, 40, que
deixa onze filhos. A pneumonia atinge Efigênia, 47, cinco filhos. Eulina, 21, falece fraqueza
pulmonar. Idalina, 42, de “moléstia ignorada por falta de médico”, deixando cinco filhos. O
Câncer inespecificado leva Josefa, 39, que deixa um filho e o de mama leva Hilda, de 46, seis
filhos1291.
É curioso que doenças como sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis e
lepra – hanseníase – que acreditamos serem prováveis causas de morte na época e período
abordados, não aparecem nos atestados de óbito, o que nos leva a crer que a moral da
sociedade local levava as pessoas a “encobrir” ou manipular determinadas causas mortis.
As mulheres idosas apresentam uma diversidade de causas mortis. A causa mais
freqüente é denominada fraqueza geral. Esta denominação acompanha os atestados de
Emerenciana, 90; Virgilina, 58; Edeltrudes, 69; Maria, 83; Antonia, 90 e Febrônia, 86. A
paralisia aparece nos atestados de Cândida, 68 e Apolônia, 50. A pneumonia vitima Maria, 50
e Umbelina, 75. Duas senhoras falecem de “moléstia ignorada”: Maria Rita, 60 e Marcionília,
51. As outras causas são diversas: Ana Maria, 72, moléstia do intestino; Laurinda, 80,
coração; Emília, 72, moléstia do estômago; Messias, 69, congestão; Josefa, 82, conseqüência
de hemorragia; Delmira, 86, diarréia; Francisca, 90, disinteria; Joana 80, asma; Maria, 63,
congestão; Judite, 57, colapso; Oracina, 52, febre; Marcionília falece aos 62 de
“enfraquecimento da horta”, referência provável a aorta, artéria do coração. Não aparecem as
causas mortis de Francisca, 71; Bernardina, 73 e Virgínea, 801292.
A vida dos homens, apesar de estarem livres do risco constante de morte por
parto, no que se refere à saúde, era bastante instável e a possibilidade de ficar viúva também
era iminente para mulheres casadas. É o caso das esposas de José Francisco, 20 anos, que
morre de desastre de caminhão. Omésio, lavrador, que faleceu aos 24 anos de “amigdalites

1291
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.
1292
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cancerosas”, deixando um filho. Cecílio falece aos 38 de “moléstia ignorada por falta de
médico”, deixando a esposa com onze filhos e José que aos 27 anos falece de congestão,
deixando dois filhos. Alcenou falece aos 27 de inflamação, deixando um filho. Carlota,
analfabeta, declara que o marido, Jeremias, 42, lavrador, foi assassinado deixando quatro
filhos. Isso reflete a violência constante no decorrer da história da Vila desde a sua
fundação1293.
Algumas mulheres, por motivos ignorados por nós, resolveram dar fim às próprias
vidas. São Eremita, 30 anos, que “suicidou-se voluntariamente tomando formicida tatu” e
deixou uma casa de residência, uma propriedade com uma cacimba de beber, sete tarefas de
terras mais ou menos, três vacas paridas e uma novilha de um ano. E Terolina, 60 anos, que
acabou “suicidando-se voluntariamente tomando soda”1294. Será que reflexões existenciais das
trabalhadoras as levaram por vezes a, como forma de resistência, utilizar-se do suicídio para
abster-se de determinados sofrimentos?
A quantidade de filhos de trabalhadoras, considerando as mais idosas, nos dá uma
imagem da vida que cada uma delas levava. Nos atestados de óbito, consideradas as mulheres
de mais de 50 anos – presumindo-se que já haviam parado de reproduzir – encontramos
sessenta por cento com sete filhos ou mais, havendo inclusive uma delas com dez filhos, uma
com onze e uma com treze. Dentre os entrevistados, observa-se a mesma freqüência: sessenta
por cento tem sete filhos ou mais. Uma prole de sete filhos ou mais como possibilidade maior
de vida para as trabalhadoras rurais da Vila de Uibaí, associadas a pesada carga de trabalho
que tinham que assumir em casa, na roça, no chiqueiro, na fonte, no fogão, na feira ou no
garimpo nos levam a refletir acerca das dificuldades encontradas por elas para elaborar seu
cotidiano, tendo que associar tudo isso ao risco constante de morte sua e dos seus. É a vida no
cotidiano das trabalhadoras rurais da Vila de Uibaí, ligada ao trabalho do começo ao fim.

FONTES

Fontes Orais

Cantionília Gomes Bastos. 86 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em 10-02-


2007, 21 min.

1293
A esse respeito ver Rocha; Machado (1988), em especial no período denominado Influença da Maniçoba e
na Guerra de Jove e Beija.
1294
Dados obtidos a partir da análise dos atestados de óbito do município de Uibaí no Fórum Jóvito Machado,
Livro de óbito número 03. F.25, nº 174, 07-01-1950 a F.159, nº 363, 28-12-1959.

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Glicéria Pereira da Rocha, 82 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em 10-01-2007,


36 min.

Joaquina Alves de Miranda, 87 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevistas em 28-02-


2004, 56 min. e 12-12-2006 e 10 min.

Julieta Moreira da Silva. 66 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em 10-01-2007,


22 min.

Maria Dantas Machado, 73 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em 06-02-2007,


58 min.

Olga Machado Levi. 87 anos. Escrivã aposentada. Entrevista em 17-04-2004, 73 min.


Pedro da Rocha Machado. Falecido aos 89 anos. Trabalhador rural aposentado e ex-vereador.
Entrevista realizada dia 04-06-2004, 35 min.

Petronília Rosa de Miranda Martins, 89 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em


06-01-2007, 16 min.

Ulda Dourado Bastos, 84 anos. Trabalhadora rural aposentada. Entrevista em 10-02-2007, 65


min.

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REVIRANDO AREIAS: O VIVER DAS MARISQUEIRAS DE SALINAS


DA MARGARIDA (1960-1990).

Rosana Costa Gomes – UNEB


zanacgomes@hotmail.com

Esta pesquisa se refere ao cotidiano das marisqueiras de Salinas da Margarida, município


localizado no Recôncavo Sul da Bahia, situado na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu, na
Baía de Todos os Santos. A mariscagem feita por estas mulheres é uma pratica que consiste
no processo de catar nas areias das praias pequenas cochas, das quais são retirados os
mariscos, conhecidos no local como chumbinho ou sarnabitinga. Esta atividade envolve
relações de trabalho em grupo, que perpetua uma tradição marcada por aspectos próprios,
referenciando a luta pela sobrevivência das marisqueiras e suas famílias. A exploração de
fontes orais é um importante suporte na pesquisa, pois permite a compreensão do viver das
marisqueiras, dos seus costumes, os mecanismos de socialização, como a prática da
mariscagem é passada de geração para geração, as formas utilizadas na superação das
dificuldades, seus sonhos, desilusões e as mudanças sócio-geográficas ocorridas na cidade que
interferiram na mariscagem. As marisqueiras inseridas na abordagem da história regional,
com suas histórias de vida que retratam o concreto do cotidiano e a especificidade da
singularidade de suas práticas de vida, contribuem para a totalidade da história local. É no
espaço das areias das praias embebidas pelas lamas dos manguezais, que elas se lançam
vivificando uma tradição que lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço
tecnológico no campo da ciência moderna, e diante da evolução urbana pela qual Salinas da
Margarida tem atingido no contexto da globalização, a arte de mariscar, não perdeu
importância na vida dessas mulheres que se engajam com vigor na sedenta peleja em prol da
sustentação de suas vidas.

Palavras-chave: Mulher, Trabalho, Ambiente.

O crescimento da conscientização do seu valor e a necessidade do trabalho


impulsionaram as mulheres a irem à luta por sua sobrevivência, em muitos momentos, isso
também significava a sobrevivência do seu lar. “Mulheres pobres, sós, chefes de família,
viviam precariamente de trabalho temporário, antes como autônomas do que como

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assalariadas”1295. Esta reflexão que Maria Odila aborda da sociedade paulista no século XIX,
mostra como marginalizada desse processo produtivo brasileiro, a mulher sofreu por um
longo período a ausência de condições favoráveis ao seu desempenho em atividades que lhes
rendessem um salário digno, de reconhecimento social e igualdade no mercado de trabalho.
Assim, “multiplicavam-se mulheres pobres que o sistema social era incapaz de
absorver e que apenas tangencialmente se inseriam na sociedade escravista”1296. No decorrer
dos séculos, a participação da mulher no processo produtivo é cada vez mais marcante. São
elas que respondem sozinhas em muitas localidades pelos sustentos de seus lares.
Na conjuntura social brasileira em que cresce largamente a participação feminina
no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da Margarida são também retratos dessa
realidade. A marcação cronológica do briquitar dessas mulheres é regida pelo vai-e-vem das
marés: “[...] a padronização do tempo social no porto marítimo observa os ritmos do mar; e
isso parece natural e compreensível para os pescadores ou navegantes: a compulsão é própria
da natureza”.1297. Essa noção de tempo é vivenciada pelas marisqueiras em Salinas da
Margarida, pois quando as águas apresentam um menor volume nas areias das praias e nas
áreas dos manguezais é que elas se dirigem para os locais que podem ser considerados a sua
oficina de trabalho. Lá, elas permanecem por horas a fio independente de chuva ou sol,
extraindo das areias pequenas conchas onde estão os moluscos, denominados no local de
chumbinhos os quais representam o ganha pão para muitas famílias em Salinas da Margarida,
município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu,
na Baia de Todos os Santos, a 280 Km da capital Salvador via BA-001 BR-324.1298
As marisqueiras desempenham um papel importante para o desenvolvimento
histórico-cultural local. Essa atividade envolve relações de trabalho em grupo e perpetua uma
tradição vivida por várias gerações e que é marcada por aspectos próprios, referenciando a
luta pela sobrevivência dessas mulheres e de seus familiares.
A mariscagem se apresenta como uma cultura que é fruto do desafio e peleja de
um segmento popular que tem ficado à margem de outras atividades em Salinas da Margarida.
É estimulante buscar compreender as reinvenções articuladas por essas mulheres, em sua

1295
DIAS, Maria Odila Leite Da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1995. P.15.
1296
Idem. P.111.
1297
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras.
São Paulo. 1998. P. 271.
1298
Centro de Estatísticas e Informações – CEI. Informações básicas dos municípios baianos: Recôncavo Sul.
Salvador, 1994. P. 523,535.

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grande maioria negras, que se encontram agrupadas nessa tradição: de buscar nas margens de
Salinas da Margarida a sobrevivência.
Apesar deste estudo não ter como foco central a questão étnica, é importante
ressaltar que grande parcela das marisqueiras se identificava como negras. Quanto a essa
particularidade, Rose, ex-marisqueira com a idade de 34 anos, quando foi entrevistada, falou
sobre o seu trabalho. Ela trouxe em suas palavras, elementos que é possível observar o quanto
se identificava e se orgulhava do trabalho que fazia. Surgiram em sua fala, o significado do
ser marisqueira e ser negra.

Nunca, nunca [...] me senti discriminada por mariscar. Nem nunca fui contra,
e nem senti revolta de ninguém dizer nada. Sempre nós fomos criadas
valorizando aquilo que nos favorecia. Por ser chamada de marisqueira?
Somos mesmo! Suas negrinhas marisqueiras! Somos mesmo! E temos prazer
de viver mariscando. 1299

Rose e suas irmãs não admitiam discriminações por serem marisqueiras e negras.
Ouvir frases que tinham como intuito marginalizarem as pessoas de sua profissão e origem
étnica, não abatia a certeza do que eram e do trabalho que desenvolviam. Eva Alterman Blay
fez analises da mulher no mercado de trabalho paulista e esclarece que “A forma como a
mulher assume o trabalho reflete pois a maneira como ela se autodefine socialmente.”1300 Para
Blay, a mulher passa a se considerar uma profissional quando o trabalho pode vir a ter um
sentido inseparável na sua vida. É possível observar que, a criação que Rose e suas irmãs
receberam de seus pais, era imbuída de valores que sublimava o trabalho que desenvolviam.
Tanto na fala de Rose, como de outras marisqueiras, foi observado a maneira como elas se
identificavam como mulheres negras, bem como profissionais da maré.
A mariscagem é marcada por aspectos próprios e uma de suas características é ser
desenvolvida de maneira difícil e estafante. Cleide fala desse cotidiano:

É cansativo, é difícil pra caramba! Cavar de um em um ali no sol quente,


pegar o peso. Pra você pegar um quilo de marisco, você passa horas ali
mariscando, raspando aquela areia todinha. Lava o marisco, coloca na
vasilha e leva na cabeça o peso. À distância de casa é sempre muito, muito
quilômetro, muito mesmo. E você vai lá no sol, na areia quente [...] No
inverno não se fala... A chuva é chuva demais aqui chove demais. Aí, tem
que ir para a maré debaixo de chuva, trovoada1301.

1299
Rosangela Áurea Caetano. Entrevistada em15 de Fevereiro de2003.
1300
BLAY, Eva Alterman. Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Paulista. São Paulo. Ática. 1978. P.
269.
1301
Cleide França Silva. Entrevistada em 1 Maio de 2002.

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Cleide tinha 22 anos de idade quando foi entrevistada. Ela é filha e neta de
marisqueiras. Começou a mariscar com a idade de 12 anos. Tem duas filhas e não mora com
nenhum dos pais das crianças. Quando começou a mariscar era apenas para ajudar na renda
familiar. Hoje, por não receber nenhuma ajuda dos pais das filhas, responde sozinha pelo
sustento familiar. Trabalha temporariamente em uma das pousadas de Salinas. Segundo ela,
esse trabalho não lhe oferece nenhum vínculo empregatício e o salário que recebe é pouco.
Assim, continua mariscando para ajudar no orçamento familiar.
Pode-se notar no depoimento a dificuldade em desenvolver este trabalho. A
quantidade sempre depende do peso que se agüenta transportar. A denominação que é dada ao
marisco chumbinho, parece fazer sentido, pois eles são pequenos, não tão pequenos quanto à
esfera do chumbo industrializado para arma de fogo, mas mesmo assim pequenos e pesados, e
quando fervidos pela segunda vez - a primeira vez é para poder tirá-los das conchas - sai um
caldo da cor de chumbo. A necessidade de fervê-los pela segunda vez é para que seja tirada
uma substância que às vezes provoca mal estar nas pessoas.
Porém, toda a dificuldade é relativamente deixada de lado quando, possivelmente
por conformidade pelo fato de não possuírem outra forma de sobrevivência, agradecem a
Deus por dar-lhes a maré e terem através dela o sustento. É o que Cleide expõe:

É muito difícil mesmo, é péssimo mariscar. Mas... É bom! Eu agradeço


muito a Deus de ter a maré, como muitas pessoas, porque é um meio de
sustento. Porque se não tivesse a maré... Eu já chorei várias vezes porque
não tinha o que dar às minhas filhas, e naquele dia eu amanhecia aí, ia
mariscar. Voltava, e de noite já tinha o leite, a farinha de mingau, coisas que
se fosse em Salvador, ou em outro lugar não tinha, né? Porque aqui, apesar
de ser pequena, pouco conhecida, tem o recurso que é a maré1302.

O depoimento de Cleide é caracterizado por sentimentos ambíguos, que marcam a


sua relação com o trabalho da mariscagem. O difícil, o péssimo e o bom se mesclam durante
todo o período em que ela se refere ao seu trabalho. Ela aponta Salinas como uma cidade
pequena que apesar de não oferecer muitas outras possibilidades de trabalho, tem a maré que
permite a conquista do pão diário. Cita a capital Salvador que, apesar de possuir muitas outras
possibilidades de trabalhos, ela acredita que se morasse lá passaria dificuldades ainda maiores
do que aquelas que passa em Salinas. Faz questão de ressaltar que gosta de mariscar, apenas
não gostaria que fosse esse o único meio de sustento, pois sem essa preocupação, a maré se

1302
Idem. Entrevistada em 1 de Maio de 2002.

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tornaria um lugar de lazer, onde é possível brincar, tomar banho, e não apenas pegar frutos do
mar.
A simplicidade dos instrumentos necessários à pescaria é uma característica
geralmente presente na pesca artesanal. Na coleta do chumbinho é necessário o uso de
qualquer instrumento que sirva para cavar as areias da praia em uma rasa profundidade. Elas o
fazem de cócoras ou debruçadas sobre as areias, cavam e catam as pequenas conchas com
grande maestria.

A mariscagem de catar chumbinho tem como mais uma de suas características, ser
desenvolvida com a participação de membros familiares, sendo saliente a importância desse
meio de trabalho para a própria família. No cotidiano de Salinas as crianças eram educadas
durante o convívio com suas mães, e com as colegas de suas mães, elas presenciavam as
conversas dos adultos enquanto trabalhavam e brincavam. Segundo Agnes Heller, “O homem
nasce já inserido em sua cotidianidade.”1303 Nesse sentido, o tempo da convivência entre os
filhos das marisqueiras e suas mães se repetia todos os dias por longas horas. O lazer e o
trabalho infantil estavam imbricados no mesmo espaço.

A contribuição infantil no trabalho representava uma quantidade maior de


mariscos catados e ajuda no transporte. Dessa forma é assegurada a transmissão da tradição.
Esses adultos que faziam este trabalho quando crianças, dizem que não o faziam obrigadas,
colocavam-se a disposição para ajudar e lançavam-se em direção da maré com risos e
brincadeiras. Lá, ao contrário dos adultos, não sentiam tanto o peso da responsabilidade de
mariscar e acabavam se divertindo com a criatividade própria da infância.

Porém, é bom ressaltar que é nessa fase que ocorre o desenvolvimento da


formação do caráter humano, quando as crianças são imbuídas de conceitos positivos e
negativos que recebem do meio social em que vivem. O caráter é fator adquirido pelo ser
humano. Portanto para um desenvolvimento sadio do caráter, é preciso um cuidado especial
com as crianças e uma minuciosa análise para saber até que ponto uma criança pode ou não
ouvir conversas entre adultos; as conversas que essas crianças compartilhavam com os adultos
é possível, que as influenciavam em muitas situações de suas vidas, tanto de forma positiva e
negativa.

As marisqueiras precisavam se desdobrar para atuarem em suas atividades como


mãe, pescadora, ganhadeira, estudante, namorada e esposa. Como ressalta Agnes Heller: “O

1303
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo. Paz e Terra. 1992. P. 18.

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fato de se nascer já lançado na cotidianidade continua significando que os homens assumem


como dadas às funções da vida cotidiana e as exercem paralelamente.”1304 No entanto,
segundo esta autora, isso não significa dizer que “a estrutura da vida cotidiana, embora
constitua indubitavelmente um terreno propicio à alienação, não é de nenhum modo
necessariamente alienada.”1305 Desde que o individuo participe de forma consciente, no
processo do desenvolvimento da produção humana.

Maria Izilda de Matos em seus estudos assevera que ocorre no cotidiano “formas
peculiares de resistência/luta, integração/diferenciação, permanência/transformação, onde a
mudança não esta excluída, mas sim vivenciada de diferentes formas.”1306 A história do
cotidiano esta longe de ser uma história de comodidade, do pacato, pois, é um estudo que trata
da trajetória de vidas que tem como referência central, o que é vivido no particular, em
associação com outros e com o ambiente.
Assim, no momento em que se eleva o nível da maré, as marisqueiras se dirigem
para suas casas onde outra etapa do seu trabalho é desenvolvida. Dando continuidade, elas
percorrem as matas em busca de madeira seca para fazer o fogo e escaldarem o chumbinho,
para assim poderem tirá-los das conchas, se alimentarem ou empacotá-los e vendê-los.
Junto com o trato com os mariscos essas mulheres se desdobram para
desenvolverem outras tarefas: São mães, estudantes, namoradas, esposas, ganhadeiras entre
outras atividades. Com tais funções, há a necessidade de se pluralizarem para darem
continuidade e conta de sua lida diária: “As relações sociais e o trabalho são misturados – o
dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa – e não há grande senso de conflito
entre o trabalho e “passar do dia”.”1307 E assim, as marisqueiras marcam a sua existência ao
atuar com destreza para conciliar o seu trabalho a outras ocupações associadas ao seu dia-a-
dia, criam mecanismos para se harmonizarem num relacionamento equilibrado com a
sociedade que a cerca e a natureza das marés que demarca o seu tempo de trabalho, sem
negligenciar com outras referências de tempo que confrontam com os cultivados por elas nas
marés. de utilização do espaço natural em espaço social não é percebida apenas em Salinas.
No processo

1304
HELLER. P.23.
1305
HELLER, P. 38.
1306
MATOS, Maria Izilda de Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. São Paulo. EDUSC. 2002.
P. 26.
1307
THOMPSON. P. 271,272.

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No Recôncavo baiano, a forma de implantações dos interesses imobiliários,


muitos foram os espaços que se transformaram em palco de investidas financeiras, ações que
alteraram de forma determinante as paisagens.
As empresas que foram se instalando em Salinas utilizaram espaços da marinha,
com interesses comerciais voltados para a criação do camarão, empreendimentos para o
turismo e veranistas, comércio de produtos para pesca e outros. Esses investimentos geraram
lucros para essas empresas e empregos para uma pequena parte da população. Paralelo a
existências dessas construções houve em Salinas da Margarida uma profunda transformação
do meio ambiente.
A presença dos manguezais é de grande relevância para as marisqueiras que tiram
desses espaços o necessário para a sua alimentação e a comercialização dos mariscos. A falta
dos manguezais para o homem que vive do pescado, significa desventuras em suas vidas, e
para o ambiente, perdas irreversíveis como argumenta Samuel Murgel Branco:

Alterar a paisagem típica de nossas regiões costeiras; por eliminar grandes


reservatórios de águas de enchentes e grandes marés que, de outra forma,
poderiam causar inundações; por acelerar o assoreamento dos portos e
regiões costeiras e, finalmente, por eliminar uma das maiores fontes de
alimento de que dispõe o homem, com uma produção vegetal quase duas
vezes superior à da agricultura mecanizada e que é responsável pela riqueza
em pescados que caracteriza as regiões costeiras bem como pela produção de
alguns alimentos típicos, como o caranguejo. 1308

A sobrevivência humana está intimamente ligada a outros ciclos de vida. Os


manguezais representam uma fonte rica na cadeia alimentar de imensa fauna, e que tem sua
vida constantemente alimentada através da manutenção de nutrientes que normalmente são
trazidos pelos rios, pois têm em suas águas substâncias essências para a vida dos manguezais.
Quando há quebra em algum desses ciclos ocorre uma desestrutura nos ecossistemas o que
provoca uma desarmonia para o processo vital dos seres que dependem dos manguezais. Nos
aterros desses espaços são construídos pontes, portos, praças, enfim, é investido um grande
capital para dar lugar a áreas urbanizadas, e assim atender aos princípios civilizatórios. No
entanto, é interessante ressaltar como o patrimônio cultural e natural tem ganhado
reconhecimento como instrumento que ajuda a sustentar e fundamentar a personalidade do
homem quanto ser social. “A atitude de proteger o patrimônio local tem sido incentivada, de
modo a conservar as raízes plurais dos povos e suas tradições culturais, uma vez que estas

1308
BRANCO, Samuel Murgel. ROCHA, Aristides Almeida Elementos de ciências do ambiente.
CETESB/ASCETESB. São Paulo. 1987. P.142,143.

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expressam as origens étnicas e implicam a manutenção de suas identidades.”1309 Segundo


Pelegrini, desde a década de 1990, existe essa preocupação com os povos latino-americanos.
Nesse sentido, pode-se notar que em Salinas da Margarida a utilização dos recursos naturais
por essa população consiste em preservar o mar como patrimônio natural, uma vez que esse é
campo de manutenção dessas famílias que vivem dos mariscos. É no espaço das areias das
praias embebidas pelas lamas dos manguezais, que elas se lançam vivificando uma tradição
que lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço tecnológico no campo da
ciência moderna e diante da evolução urbana que têm atingido Salinas da Margarida,
inserindo-a no contexto da globalização, a arte de mariscar não perdeu importância na vida
dessas mulheres que se engajam com vigor na exigente peleja em prol da sustentação de suas
vidas. Não obstante, os avanços contemporâneos, o mar ainda é a referência central da
sobrevivência de muitas famílias salinenses.
Um exemplo de transformação ambiental em Salinas é trazido através das
lembranças de Dona Sofia, em que ela aponta uma profunda transformação da flora:

O Araça! Quem era o Araçá? O Araçá era mato puro. Hoje em dia eu passei
ali na caminhada... cada casa linda! [risos] O Araçá era mato, só tinha mato.
Já botaram o nome Araçá porque só tinha araçá, araçazinho, cajueiro, essas
coisas... Agora cada casa bonita mesmo, passei lá no dia da caminhada e vi o
Araçá. Quem era o Araçá?! 1310.

Dona Sofia tinha 82 anos de idade no período em que foi entrevistada, é viúva,
teve 10 filhos e com risos no momento da entrevista, disse não saber quantos netos e bisnetos
têm. Com alegria diz que aguarda os tataranetos. Gostava muito de estudar, estudou a
primeira, segunda, terceira e a quarta série do curso primário; seu grande sonho era se tornar
professora, sonho que ela não conseguiu realizar pelo motivo de seu pai não ter tido condições
de patrocinar os seus estudos e também por ter tido sérios problemas de saúde. Este lugar que
Dona Sofia traz em suas lembranças está localizado nos arredores próximo do centro de
Salinas. Como ela observa, lá existia uma vasta flora com a presença de variadas espécies de
árvores frutíferas, que com o tempo desapareceram para dar lugar a muitas casas. “... Os
valores, tanto quanto as necessidades materiais, serão sempre um terreno de contradição, de

1309
PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio
cultural e ambiental. In; Natureza e cultura. Revista brasileira de história. Órgão ficial da Associação Nacional
de História. São Paulo, ANPUH, vol.26, nº 51, jan.-jun., 2006. P. 122,125.
1310
Sofia Lima Pinheiro. Entrevista em 13 de Fevereiro de 2003.

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luta entre valores e visões-de-vida alternativos”.1311 A interação do homem na natureza


provoca uma constante mutação de conceitos em conflitos, entre o que é fundamental para o
nosso bem estar pessoal e social como sendo o homem parte singular de um todo, e o que é
movido baseado apenas no interesse do crescimento urbano capitalista.
Na incessante busca pelo lucro capitalista, o valor concreto durável dos espaços
naturais é sucumbido e suplantado pela ganância que não tem em si, a visão prudente e dual
de um benefício humano que respeite também o ciclo natural da vida. A grande maioria da
população fica à mercê dos interesses do pequeno grupo que monopoliza para si a gratuidade
da natureza. O lucro parece ser o motivo das ações que, ao mesmo tempo levam à apropriação
de bens que não lhes pertencem e são nocivos ao meio ambiente.
Em Salinas, tudo indica que as mudanças ocorridas no meio ambiente sintonizam-
se com as reflexões de Williams. As áreas que foram desmatadas correspondiam a espaços
necessários à implantação de empresas. A cidade obteve ascensão econômica no âmbito
estadual, já que contribuiu economicamente com impostos, sem esquecer que “o modo de
produção capitalista continua a ser, em termos de história do mundo, o agente mais eficiente e
poderoso de todos estes tipos de transformação física e social.”1312 Esses empreendimentos
foram sinônimos, de “progresso” e “desenvolvimento” e, para muitas famílias, empregos.
Nesse contexto, serve como um alerta um dos princípios da corrente chamada de economia
ecológica, que Ademar Ribeiro Romeiro apresenta.

A existência de limites absolutos e o risco de perdas irreversíveis que podem


ser catastróficas em um contexto de incertezas científicas irredutíveis tornam
absolutamente necessário que se defina coletivamente, e numa atitude de
precaução, os limites (escala) para o consumo total de bens e serviços
ambientais.1313

O emprego de atitudes coletivas poderá regular e direcionar a forma como os bens


e serviços ambientais estão sendo explorados; no entanto, tais atitudes entram em oposição a
uma realidade de uma sociedade que tem como característica marcante o consumo. A
sustentabilidade seria, para Romeiro, transformar a mentalidade do ter em uma mentalidade
de ser, sem, no entanto, abrir mão da dinâmica cientifica e tecnológica que caracteriza o

1311
THOMPSON, E.P. O Termo Ausente. In: A Miséria da Teoria; ou um planetário de erros, uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, 1981. P.194.
1312
WILLIAMS, Raymond. “Cidades e Campos”. In. O Campo e a Cidade na História e na Literatura, 1ª
reimpressão. São Paulo. Cia das Letras, 1990. P. 393.
1313
ROMEIRO, Ademar Ribeiro. Economia ou economia política da sustentabilidade. In: MAY, Peter H.
LUSTOSA, Maria Cecília. VINHA, Valéria da (Orgs) Economia do Meio Ambiente. Teoria e Prática. Rio de
Janeiro: Campus, 2003. P. 25.

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processo civilizatório. As restrições à acumulação de capital são para que se evitem perdas
irreversíveis ambientais e sociais.
Esses princípios se associam com as medidas do processo de gestão ambiental que
Aracéli Cristina de Sousa Ferreira traz: “O estabelecimento de políticas, planejamento, um
plano de ação, alocação de recursos, determinação de responsabilidades, decisão,
coordenação, controle.”1314 Essas são algumas das formas que visam fundamentalmente o
desenvolvimento sustentável. Ferreira explica que a intensidade com que os empreendedores
capitalistas vêm agindo no meio natural é uma demonstração de que pouco se está levando em
conta a degradação dos mesmos.
Nessa perspectiva, as universidades entram nos centros das discussões e surgem
como possibilidades de criarem condições para resolverem ou amenizarem essas situações,
contudo encontram-se em uma cruzilhada, pois são centros formadores de tecnologia,
opiniões e concentram uma gama de valores humanistas ao mesmo tempo em que são
representantes do Estado.1315 Assim, como núcleo tecnológico que busca atender a um
chamado cada vez mais exigente de um mercado consumidor, os profissionais que são
formados por essas universidades, em muitos momentos devem ponderar as suas ações na
possível utilização desenfreada dos recursos ambientais, pois elas podem gerar a ignorância
do conhecimento, onde se sabe as conseqüências nocivas de suas ações e ainda assim, alguns
as praticam na cegueira egoísta do capitalismo. Em contraposição a mentalidade desse uso
descomedido, as universidades hospedam, desenvolve e propaga idéias de conscientização,
preservação e sustentabilidade. E como Moraes aponta, o desenvolvimento tecnológico
representa de um lado a salvação e do outro o perigo para a humanidade. Ao que tudo indica,
a questão ambiental é bem evidente, e deve ser bem cuidada.
Salinas da Margarida é abastecida de recursos naturais, os quais são em grande
escala provenientes do mar, o que propicia há bastante tempo um meio estável de
sobrevivência à população carente. Nesta localidade, muitas são as mulheres que assumem o
papel de desempenharem com sucesso a liderança de um tipo de mariscagem que é catar uma
espécie de molusco conhecido na região como chumbinho. Estas mulheres têm uma
participação ativa e efetiva na renda familiar, provocando um maior envolvimento na
comunidade no aspecto do desenvolvimento econômico, cultural e social.

1314
FERREIRA, Aracéli Cristina de Sousa. Contabilidade Ambiental. Uma informação para o desenvolvimento
sustentável. São Paulo. Atlas, 2003. P. 33.
1315
MORAES, Antonio Carlos Robert. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo. Hucitec. 1997. P. 60.

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Uma das características básicas da atividade pesqueira é a noção de não


apropriação do mar, pois ele é concebido pelas pessoas que vivem usufruindo os seus frutos,
como uma dádiva da natureza. Como diz Simone Maldonado “A condição de patrimônio
comum do mar, implica a sua indivisibilidade sistemática e a ausência de apropriação formal
e contínua do meio.”1316 Nesse contexto, a indivisibilidade dos espaços em que são realizadas
as mariscagens, flui “naturalmente” na consciência coletiva das marisqueiras. É deste espaço
que se favorecem, centenas delas se fazem presentes nas faixas litorâneas de Salinas há muito
tempo, mas nenhuma delas se diz dona da maré. Lembrando o que Dona Francisca disse que
“O costeiro está sempre cheio de chumbinho para quem precisa e não tem preguiça [... ] A
maré taí!”1317 Estas expressões pintam o quadro do caminho da vida das marisqueiras de
Salinas da Margarida, pois essa é a leitura que é feita do mar, tendo-o como bem comum e
fonte de sustentação para aqueles que assim quiserem. O Senhor Raimundo Nonato Ferreira,
aponta as terras salinenses como espaços sagrados, como terras que foram pisadas por Deus, o
qual cuidou de nunca deixar faltar o pão de cada dia para a população carente.1318

FONTES
Orais:
Cleide França Silva. 22 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da Margarida.
Entrevista em 01 de maio de 2002.

Francisca de Jesus Santos. (D.Elza), 58 anos de idade, ex-marisqueira, residente no Porto da


Telha. Salinas da Margarida. Entrevista em 31 de maio de 2002.

Raimundo Nonato Ferreira. 84 anos de idade, residente em Salinas da Margarida. Entrevista


em 07 de junho de 2003.

Rosangela Áurea Caetano, 34 anos de idade, ex-marisqueira, comerciante, residente em


Salvador. Entrevista em15 de fevereiro de 2003.

1316
MALDONADO, Simone C. A caminho das pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In;
DÍEGUES, Antônio Carlos (Org.) Imagem das águas: São Paulo: Hucitec. 2000. P. 60.
1317
Francisca de Jesus Santos (D.Elza). Entrevistada em 31 de Maio de 2002.
1318
Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 07 de Junho de 2003.

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Sofia Lima Pinheiro. 82 anos de idade, ex-marisqueira, residente em Salinas da Margarida.


Entrevista em 13 de fevereiro de 2003.

Escritas:
Centro de Estatísticas e Informações – CEI. Informações básicas dos municípios baianos:
Recôncavo Sul. Salvador, 1994.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ática. 1978.

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ambiente. CETESB/ASCETESB. São Paulo. 1987.

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Paulo: Brasiliense, 1995.

FERREIRA, Aracéli Cristina de Sousa. Contabilidade Ambiental. Uma informação para o


desenvolvimento sustentável. São Paulo. Atlas, 2003.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo. Paz e Terra. 1992.

MATOS, Maria Izilda de Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. São
Paulo. EDUSC. 2002.

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MORAES, Antonio Carlos Robert. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo. Hucitec.
1997.

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PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera


do patrimônio cultural e ambiental. In; Natureza e cultura. Revista brasileira de história.
Órgão ficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH, vol.26, nº 51, jan.-jun.,
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Peter H. LUSTOSA, Maria Cecília. VINHA, Valéria da (Orgs) Economia do Meio
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THOMPSON, E.P. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional.


Companhia das Letras. São Paulo. 1998.

______ O Termo Ausente. In: A Miséria da Teoria; ou um planetário de erros, uma crítica
ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, 1981. P.194.

WILLIAMS, Raymond. “Cidades e Campos”. In. O Campo e a Cidade na História e na


Literatura, 1ª reimpressão. São Paulo. Cia das Letras, 1990.

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PENSANDO A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MASCULINIDADE E A


INSERÇÃO DAS MULHERES NA HISTÓRIA

Jeruza Jesus do Rosário – UNEB


jeruzarosario@hotmail.com

O presente texto foi elaborado no intuito de refletirmos sobre a construção histórica/simbólica


da masculinidade e a inserção das mulheres na história. O instrumental de gênero é trazido
aqui como um referencial teórico importante para pensarmos relações de poder que são
estabelecidas entre os mais variados indivíduos. Para isto, se faz particularmente importante
neste estudo percebermos categorias de análises como: sujeitos, masculinidade,
representações, identidades, práticas culturais e história, como processos interseccionais,
estruturas dialógicas que se operam, estruturando processos de representações simbólicas,
sociais e culturais, que em muitos momentos subalternizam e estereotipam determinados
sujeitos sociais.

Palavras-chave: História, Gênero, Práticas Culturais.

Transformações variadas estão sendo estabelecidas no campo da pesquisa


historiografia, deste modo, uma crescente pluralidade temática e de abordagens têm
possibilitado as/os historiadoras/es melhores condições para o entendimento sobre as
sociedades. Nesta perspectiva, entendemos que os estudos sobre gênero pode ser concebido
enquanto possibilidade de compreender o universo das relações de poder entre indivíduos.
Pensar em representação e mesmo construções sociais em termos de
masculinidade e feminilidade requer pensarmos em novas estratégias para os estudos
históricos. A emergência do gênero enquanto instrumental teórico se estabelece no Brasil a
partir da década de 80. Entretanto, a categoria “gênero” enfrentou uma trajetória difícil dentro
do campo historiográfico, especialmente pelo contundente aporte androcêntrico que os
estudos históricos sempre representaram. “A trajetória, costumeiramente ‘cautelosa’, desta

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disciplina, e o domínio do campo por determinadas perspectivas de abordagens, retardaram


significamente o avanço das discussões”. 1319
A difícil empreitada da inclusão das mulheres na história, ao passo do retardo do
instrumental de gênero como um referencial teórico importante para os estudos
historiográficos pode ser pensado também a partir do caráter homogeneizador da construção
histórica e sua universalidade discursiva do sujeito único, igual e universal, este, o “homem”.
A história positivista pensada enquanto científica e verdadeira foi predominante
no século XIX e inicio do XX. Essa escola histórica concentrava seus estudos sobre o espaço
público, nos processos econômicos e nos registros dos “grandes acontecimentos” e em seus
“grandes heróis”. Heróis estes, sempre pensados na esfera masculina.
Experiências humanas eram globalizadas e uniformizadas, ao passo que, a história
construída pelos teóricos positivistas não apresentavam as mulheres enquanto sujeitos
políticos e históricos. No modelo interpretativo conduzido pelos positivistas o sujeito é
1320
neutro. Há um afastamento abrupto do pesquisador com seu objeto de pesquisa para se
buscar a “verdade histórica”. A hierarquização dos/as sujeitos é evidenciada, pois, o sujeito
histórico é o masculino. “Acreditava-se que, ao falar dos homens, a mulheres estaria sendo
igualmente contempladas, o que não corresponderia à realidade”. 1321
O modelo positivista era herdeiro do pensamento Iluminista reinante durante todo
século XVIII. Argumentações filosóficas e cientificistas eram utilizadas para pensar as
mulheres enquanto objeto, enquanto indivíduos que deve ser tratados enquanto inferior, a -
histórico e que deve ser veementemente subalternizado. Pensamentos discursivos de
estereotipias e inferiorização das mulheres foram reforçados pelos discursos religiosos.
Segundo Rachel Soihet, “... discurso vinculado pela igreja católica, não provocava nenhum
espanto, já que esta se apresentava como uma instituição célebre pela defesa da submissão
feminina”. (SOIHET, 1997: 9).
As ciências, a formação educacional, as construções sociais acabaram por forjar
um enraizamento de concepções e construto de desigualdade e violência em torno das
mulheres. Nesta perspectiva, a formação de uma mentalidade sexista e violenta embasa
estratégias de poder em torno das relações entre os indivíduos em sociedade, sejam eles/elas
homens, mulheres, gays, lésbicas, etc.

1319
SOIHET, Raquel. PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações
de gênero. Texto a ser publicado na revista brasileira de história.
1320
Na perspectiva positivista o sujeito histórico é o idêntico, é o mesmo, é o homem branco e ocidental.
1321
Idem, nota 2.

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A elaboração deste trabalho busca refletir sobre as construções/representações


simbólicas em torno da idéia de feminilidade e masculinidade como um pensamento
hegemônico que forjam e estereotipam as mais variadas experiências humanas.
Orientamos nosso trabalho pela História Social que se apresenta como um campo
diversificado para o desenvolvimento do trabalho do/a historiador/a ao se colocar como “...
um nexo básico de constituição, enquanto forma de abordagem que prioriza a experiência
humana e os processos de diferenciações e individualização dos comportamentos e
identidades coletivas – sociais - na experiência histórica”. (CASTRO, 1997: 88). Frente à
multiplicidade de perspectivas propostas pela história nova e pela história social, em torno de
novos objetos e fontes, refletimos sobre o estudo das ralações de gênero enquanto um
conceito político, enquanto ralações de poder.
Desse modo, contrapondo-se a pressupostos positivistas, cientificistas e
hierarquizadores, pensamos o conhecimento histórico enquanto um referencial relativo,
diverso e dialético, pois “...tal panorama tornou mais factível à integração da experiência
social das mulheres na história, já que sua trama é tecida basicamente a partir do cotidiano, e
não a partir de pressupostos rígidos e de grandes marcos”. 1322
Transformações ocorridas no campo historiográfico, articulado ao movimento
feminista foram fundamentais para a emergência da História das Mulheres. Na contracorrente
da invisibilidade, “...existe uma larga historia de feministas que escriben la historia de lãs
mujeres a fin de establecer um argumento para el trato igual de mujeres y hombres”. (SCOTT,
1997:9).
As mais variadas contribuições das feministas em torno da crítica e desconstrução
da idéia de sujeito universal foram de fundamental importância para se pensar às
ambigüidades, diferenciações e experiências por parte das mulheres a longo da história.
“Neste processo, foram fundamentais as contribuições recíprocas entre a história das mulheres
e o movimento feminista. Os historiadores saciais, por exemplo, superaram as “mulheres”
como categoria homogênea”. (SOIHET, PEDRO, 2008, 6).

Segundo Maria Izilda S. Matos, “é em função dessas críticas e das próprias


transformações nas reivindicações dos movimentos feministas que surge o
gênero enquanto categoria de análise histórica”. (MATOS, 1997: 96-97). A
introdução da categoria gênero se constitui assim, a possibilidade de
evitarmos as posições binárias, dicotomizadas nas relações entre homens e
mulheres.

1322
Idem, nota 2.

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O feminismo tem buscado, tanto na teoria quanto na prática, a modificação das


relações sociais e de poder estabelecidas na sociedade, que hierarquizam os sexos, atribuindo
um valor superior ao masculino. “Como as desigualdades de gênero penetram em todas as
esferas da vida, as estratégias feministas envolvem um enfrentamento da posição subordinada
das mulheres dentro de instituições do estado como da sociedade civil”. (BRAH, 2006, p.80).
Pensar o feminismo brasileiro, de modo geral, é atentar para a diversidade de
abordagens propostas, multiplicidades dos sujeitos e de suas identidades. Pois, “na
epistemologia feminista sujeito e objeto estão diluído um no outro”. (DIAS, 1994: 373). Ao
passo que as mais diversas experiências são estabelecidas fora de estruturas rígidas.

Pensando a Construção da Masculinidade Hegemônica

Após o breve histórico proposto acima sobre a inserção das mulheres na história, a
introdução dos estudos de gênero como uma categoria de análise histórica e a importância do
feminismo nestas resoluções, propomos pensar sobre a construção simbólica e social da
masculinidade compulsória. Para Maria Izilda Matos,

... apesar da ampla produção na área de estudo de gênero e dessas instigantes


contribuições... ainda são raros os estudos na produção historiográfica
brasileira sobre masculinidade, deixando a impressão de que os homens
existem em um lugar além, constituindo-se um parâmetro extra-histórico e
universalizante. 1323

A construção hegemônica da masculinidade vem sendo estabelecida


enfaticamente ao longo dos séculos. Nossa sociedade, a exemplo, tem como pressuposto
nítido a idéia de um espaço/universo pensado no masculino e para o masculino. “Por isto
sabermos como se pensa o masculino, como este se define é fundamental para entendermos a
própria sociedade deste tempo e do espaço que vivemos. Que implicações sociais políticas ou
culturais o fato da centralidade do masculino trás para a nossa sociedade?”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007: 2).
O questionamento levantado por Durval Muniz Albuquerque é significativo na
medida em que questiona a centralidade e mormatização masculina enquanto pensamento
hegemônico. Refletir sobre o universo da masculinidade é estabelecer uma relação que
tematiza a subjetividade. “... os estudos sobre a subjetividade apresenta-se como uma nova

1323
MATOS, Maria Izilda S. Por uma História das sensibilidades: Em Foco – A Masculinidade. História –
Questões e Debates. Ano 18, nº. 34, jan/junho 2001. Curitiba: APAH/UFPR. p. 45-63.

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fronteira para a historiografia na medida que tematiza a subjetividade, justamente,


problematiza a noção de sujeito universal, unitário, insolúvel...” (MATOS, 2001: 48).
Como já foi aqui dito, a tradição iluminista estabeleceu um pensamento centrado
na idéia de individuo único, idêntico, este atrelado ao sustentáculo da razão. 1324 Durante este
momento histórico serão desenvolvidas representações em torno das mulheres que
representará a base de pensamento e construção de uma mentalidade sexista e androcêntrica.
“A inferioridade feminina que encontra suas raízes na diferença sexual estender-se-à a todo
seu ser, em particular às suas faculdades intelectuais. (SOIHET, 1997: 8). Ao passo que
justificará substancialmente o domínio de homens sobre as mulheres. Esta é uma construção
simbólica violenta e excludente e que é colocada para nós historiadoras que tematiza os
estudos de gênero como um desafio a ser superado.
Assim, “... fazendo a história crítica das subjetividades, pensando os processos de
subjetividades aliados a uma crítica no conceito de identidade de gênero, de universalidade,
de unidade...”, nos conduz para a construção de uma história de sujeitos plurais, heterogêneos,
dialéticos. (MATOS, 2001: 08). Durante todo processo de construção histórica as mulheres
resistiram, elas foram participantes ativas dos mais variados processo históricos, ao passo que
esta representativa história não é registrada pelos escritos oficiais.
Há uma evidente apropriação social das mulheres pelos homens, “... da religião à
psicanálise, da história à biologia, o sexo e a sexualidade adquiriram foros de fundamento, de
marcas hierárquicas, o selo que distingue e ordena segundo uma pré-classificação do humano
em feminino e em masculino, em função de sua genitália”. (SWAIN, 1998: 1).
Desde pelo menos os anos sessenta do século passado os movimentos feministas,
e com eles suas teóricas que fundaram os estudos sobre gênero, vêm buscando a
desnaturalização das categorias do feminino e do masculino. Segundo Durval Muniz
Albuquerque:

O masculino, o macho, se define, justamente, por uma relação de profundo


controle, de censura, de apagamento do corpo. (...) É um corpo clamado,
enrijecido, construído como uma carapaça muscular, que visa protegê-lo do
mundo exterior. (...) O corpo masculino pensado e modelizado pela cultura
judaico-cristã, pela cultura burguesa, é um corpo censurado e instrumental
... . 1325

1324
O pensamento iluminista estava respaldado na idéia de cientificidade e se representavam enquanto ‘Verdade
das Luzes’. Pressupostos de igualdade, liberdade e fraternidade eram lemas propagados pelos seus filósofos.
Entretanto, as mulheres não poderiam de forma alguma gozar dos mesmos direitos dos homens.
1325
ALBURQUEQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de Fazer Machos: gênero e práticas culturais,
desafios para o encontro das diferenças. Texto apresentado no seminário: Gênero, Saúde e Direitos Sexuais e
Reprodutivos. Evento realizado em Fortaleza, Ceará no período de 04, 05 e 06 de maio de 2007.

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O combate à idéia construída da masculinidade enquanto esfera padrão, real e


ideal se colocam como um sustentáculo primordial para pensarmos em termos de identidades
múltiplas e para refletirmos em torno das subjetivações. Os feminismos foram fundamentais
nas elaborações de novos referenciais teóricos que descentralizaram a esfera masculina
pensada enquanto padrão hegemônico.
Para Joan Scott, “... si la subordinación de lãs mujeres – pasado y presente – fue
establecida al menos em parte por su invisibilidad, entonces su emancipación podia ser
anticipada haciéndolas visibles em narraciones de la lucha social y de la realización política”.
(SCOTT, 1997: 110-111). Nenhuma hierarquia é imutável, os processos históricos são dados
no tempo e no espaço em que as mais diversas representações são forjadas. Nesse
dimensionamento as relações de poder são estabelecidas.
Atentar para o fato de que a produção discursiva contida nos conhecimentos
históricos pode ser definida como instrumental de poder e em que na maioria das vezes é
manipulado por grupos dominantes, de acordo com seus interesses políticos, culturais e
ideológicos. Este é um seguimento interpretativo que deve ser conduzido por nós
pesquisadoras/es. Segundo Chartier, “a representação do mundo social é sempre
determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam”. (CHARTIER, 1990: 17).
Assim, as formas de significações históricas estabelecidas pelo pensamento
masculino hegemônico são em muitos momentos reforçados por mulheres que acabam
reproduzindo modelos que representam os homens como símbolo de poder, força e prestígio.
Ao passo quê:

São essas preocupações que nos levam às reflexões sobre a masculinidade


hegemônica. (...) A masculinidade hegemônica é sustentada e mantida por
grande parte do vasto segmento dos homens que se sentem gratificados,
usufrui seus benefícios e, dependendo das situações estabelecidas, pode
adicionar diferentes atribuições de masculinidade, mas é também mantida
por boa parte das mulheres que concedem a tal hegemonia. 1326

Devemos trabalhar a linguagem a partir de observações de seus discursos, pois,


este discurso ativa o social e cria significações. Michel Foucault chama a atenção para esta
perspectiva interpretativa quando este autor focaliza a análise do discurso como busca da
exterioridade, aquilo o que não é obvio.

1326
Idem, nota 8

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As contribuições de Foucault no campo das complexidades e nas relações de


poder, destacando os macro e micro poderes, ampliam novas possibilidades de investigações
teóricas, metodológicas e históricas. Hoje, é consensual o tratamento que inclua as dimensões
das variáveis de identidades, e mesmo as diversas dimensões das experiências históricas a
qual passaram/passam as mulheres. Com isto, precisamos pensar sobre este campo discursivo
como um estudo dinâmico na política de produção do conhecimento, onde as variáveis de
identidades sejam devidamente observadas, compreendidas e interpretadas.
Nas novas perspectivas históricas não devemos tomar o fazer-se da histórica
enquanto referenciais de verdade, ao passo que, os processos de identidades, representações
e/ou valores são condições dinâmicas e dialéticas. A história tradicional nos impede de pensar
as possibilidades. Neste sentido, devemos pensar em novos processos epistemológicos para
melhor incorporar as variáveis de sujeitos.

Impasses e Perspectivas para Inserção da História das Mulheres

A temática escolhida para o desenvolvimento deste trabalho nos possibilita


observar representações, construções sociais e de identidades, que são estabelecidas
cotidianamente em nossa sociedade. “A construção do modelo de feminilidade transmitida
historicamente, gerações após gerações, impunha às mulheres um sentimento de inferioridade
e acomodação”. (COSTA, 1999: 281).
Seguindo o pensamento de Albuquerque Filho (2007, p. 3), durante todo século
XVIII e XIX as mulheres eram definidas enquanto o corpo sensível, sedutor, erótico, móvel,
insinuante, que arrastaria o homem para a perdição, para a perda de si mesmo. Este
dimensionamento serviu para construir um campo das mentalidades que incorporam e pensa
as mulheres como atributo de inferioridade, da incapacidade física e mental. As mulheres são
reduzidas a bases biológicas, são interpretadas enquanto corpo.
O feminino é criado para ser interpretado como instinto, reprodução, intuição
domesticidade, etc. Todos esses arquétipos são concebidos como inferiores quando são
comparados com faculdades tidas como masculina. O debatem levantado nesta pesquisa não
pretende levantar definições fixas sobre o “verdadeiro homem” e/ou “verdadeira mulher”. As
identidades são múltiplas, porém, o campo das mentalidades inscreve representações sociais
que inferiorizam e/ou dão atributos de superioridade á alguns sujeitos sociais.
O discurso biológico e da natureza são “comprados” diariamente pelas pessoas, e
esses são incorporados pelas representações sociais e simbólicas. O discurso da natureza vai

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ser utilizado para justificar a pseudo-inferiorização por parte das mulheres. Homens “têm” um
sexo, as mulheres “são” o sexo. Este é o pensamento enveredado pelas interpretações sexistas.
Nessas interpretações a heterossexualidade compulsória se coloca como instituição política.
Segundo Maria Milagros Rivera, “... los hombres ostentan el poder em todas lãs instituiciones
importantes de la sociedad y que lãs mujeres son privadas de accesso a ese poder”. (RIVERA,
1993: 27). A pesquisadora Maria M. Rivera prossegue argumentando quê:

A la base de la categoria ‘patriarcado’ hay dos conceptos y dos instituiciones


muy importartes para la historia de lãs mujeres. Uno es el de
heterosexualidade obligatorio; el outro, el de contrato sexual. Dos conceptos
estrechamente vinculados entre si, das instituições necesarias para la
continuidade misma del patriarcado. 1327

O sujeito é historicamente construído. As bases da documentação sobre a


historiografia das mulheres estão fragmentadas, neste sentido, “... os estudos históricos com a
abordagem de gênero trouxeram à luz uma diversidade de documentações, um mosaico de
pequenas referencias esparsas, as dificuldades estão mais na fragmentação do que na ausência
da documentação, o que requer uma paciente busca de indivíduos, sinais e sintomas...”
(MATOS, 1998: 72).
Através da preservação da memória, articulada à História Oral, podemos resgatar
as tensões, antagonismos, ambigüidades, conquistas, aprendizagens e experiências das
mulheres. Podemos utilizar o dimensionamento da história oral, ou seja, como “(...) um
espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e
regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que permitem, através da oralidade, oferecer
interpretações dos processos históricos” 1328.
Procuramos perseguir a orientação metodológica de Lozano no tratamento com a
fonte oral, pois ela não pode ser transformada em um viés meramente ilustrativo, “ela é mais
do que uma descrição técnica ou um procedimento; que não é a depuração técnica da
entrevista gravada; nem pretende exclusivamente formar arquivos orais”. (2001, p. 16)
A história oral como metodologia e fonte de pesquisa se ocupam em conhecer e
aprofundar conhecimentos sobre determinadas realidades, tais quais: processos históricos,
estruturas sociais, padrões culturais obtidos a partir de depoimentos orais, entrevistas,
1327
RIVERA, Maria Milagros. Uma aproximación a la metodologia de la história de lãs mujeres. In. OZIEBLO,
Bárbara (org). Conceptos y metodologia em los estúdios sobre la mujer. Málaga: Universidade de Málaga, 1993.
1328
LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na História oral contemporânea. In.
AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & a Abusos da História Oral. – 4ª ed. – Rio de
Janeiro: FGV, 2001.

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conversas com pessoas etc. O trabalho com a fonte oral possibilita a escrita da história das
mais diversas experiências de mulheres sob uma ótica não androcêntrica, uma vez que “(...) o
predomínio secular da linguagem ‘masculinizada’ tem provocado reações nos discursos
feministas. A inclusão social nas várias manifestações ligadas à afirmação da mulher é uma
das virtudes proporcionadas pela história oral”. (MEIHY, 1996: 67-68).
Para Joan Scott em seu texto – El problema de la invisibilidad – a autora nos
aponta quê: “...seria difícil imaginar uma historia escrita em esta época que no incluyera uma
mención al surgimiento de las mujeres como agentes del cambio histórico y como objeto de
consideraciones políticas”. (SCOTT, 1992: 38). Nesse sentido, a inserção de mulheres na
escrita da história1329 é de importância primordial para documentar as diferenças e mesmos as
mais diversas experiências de identidades femininas ao longo da história. É o que nos propõe
Maria Odila da Silva, segundo a pesquisadora:

... impõe-se a necessidade de documentar a experiência vivida como


possibilidade de abrir caminhos novos. Outras interpretações de identidades
femininas somente virão à luz na medida em que experiências vividas em
diferentes conjunturas do passado forem gradativamente documentadas, a
fim de que possa emergir não apenas a história da dominação masculina,
mas, sobretudo os papéis informais, as improvisações, a resistência das
mulheres. 1330

Desconstruir as evidências. Esta estratégia metodológica se coloca como


instrumento primordial para pesquisa no campo das relações de gênero. Este é nosso papel
enquanto pesquisadoras engajadas com as desconstruções de identidades fixas, e/ou
homogênea. Não podemos ser reduzidas ao nosso corpo, à condição biológica, ao passo que, a
descaracterização da masculinidade compulsória instaura novos significados no fazer-se da
história.
“A importância de se pensar os processos de diferenciações está na
desnaturalização da evidência, abrindo espaço para se refletir sobre os pressupostos que
constituem as práticas e representações sociais, entre as quais a própria noção de natural”.
(SWAIN, 2006: 1). Além de desnaturalizar a idéia de biológico como uma condição inerente
às mulheres, pensar, sobretudo nos mecanismos simbólicos, imaginários e subjetivos que
forjam e criam representações sociais sobre o humano, em especial contra as mulheres.

1329
Não só a existência de mulheres na escrita da história, mas, sobretudo mulheres preocupadas com o trabalho
das variáveis de interpretações desta história.
1330
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica
das diferenças. In. Estudos Feministas. Vol. 2, nº 2, 1994.

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Desse modo, “... se suas diferenças devem ser contempladas, os aspectos que as
aproximam, as semelhanças, também devem estar presentes na análise” (BERNARDO, 2003:
174). Estes são referenciais que envolvem complexidades, diversidades e contrapontos, e
pontua as multiplicidades desses indivíduos. É no espaço do cotidiano, repletos destas
interfases, que se forjam as lutas para a conquistas de direitos sociais das mais variadas
mulheres. E o processo de luta dessas mulheres vem se desenvolvendo a partir das
desigualdades que tem suas origens nas relações sociais, nas relações históricas.
Contrapondo-se às abordagens reducionistas que busca unificar as explicações
sobre as relações entre os sexos, “aquelas da dominação, opressão, configuradas na
supremacia masculina, sem considerar a complexidade da questão ou as formas de poder
1331
exclusivamente femininos” , significa atentar para alguns importantes componentes da
esfera cultural, tais como, cotidiano, violência - física e simbólica -, representações,
experiências, diversidades, dentre outras dimensões.
A inserção feminina na esfera publica e a valorização de sua participação política
se coloca como um aspecto significativo para a história das mulheres. As relações de gênero
se constituem com relações de poder. Nelas são estabelecidas experiências diversas, ao passo
quê, “... o desafio à história normativa tem sido descrita, nos ternos de compreensão histórica
convencional e evidente, (...) uma correção da visão incompleta ou infiel, e tem buscado
legitimidade na autoridade da experiência, a experiência direta dos outros, assim como a do/a
historiador/a a que aprende a ver e a desvendar as vidas desses outros em seus textos”. 1332
Documentar as relações de gênero enquanto relações de poder é método
significativo para o registro teórico das diversas experiências e estratégias construídas pelos
indivíduos ao longo da história. Buscar um distanciamento da história ortodoxo que em
muitos escritos contemporâneos ainda pode ser observadas, se coloca como ponto importante
dentro das novas concepções epistemológicas. Nesta perspectiva:

Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e


mulheres, mas homens e mulheres de varias classes, raças, religiões, idades,
etc. e suas solidariedades e antagonismo podem provocar os arranjos mais
diversos, perturbando a noção simplista e reduzida de ‘homens dominante
versus mulher dominada. 1333

1331
FACINA, Adriana e SOIHET, Rachel. Gênero e Memória: algumas reflexões. Revista Gênero, Niterói, v. 5,
n. 1, p. 9-19, sem. 2004.
1332
SCOOT, Joan W. Experiência. In. SILVA, Alcione Leite da. Et allii. Falas de Gênero. Ed. Mulheres, 1999.
1333
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, ed. Vozes, 1997.

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Tratei aqui da inserção dos estudos de gênero como um instrumental importante


para a apreensão das experiências, o construto da idéia de masculinidade hegemônica –
representação social - e a inclusão da história das mulheres na historiografia.
Este trabalho não pretendeu fixar categorias analíticas e/ou identitárias, buscou-se
sim perceber as diferenciações e discursos construídos ao longo dos séculos de nossa história
que serviram e servem para enraizar representações estereotipadas em tornos de sujeitos
sociais.
As mulheres das mais diversas sociedades não deixaram de criar formas de
articulações e de colocar-se enquanto formadoras de ações, projetos políticos e de atuação
plurais. E isto a base epistemológicas da historiografia deve perceber, deve ser incluída nas
pesquisas historiográficas que ainda infelizmente respiram referenciais androcêntricos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAH, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciações. Cadernos Pagu, nº 26, Campinas


Jan./Jun. de 2006.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989.

CASTRO, Hebe. História Social. In. FLAMARION, Cardoso & VAINFAS, Ronaldo.
Domínios da História: ensaios e metodologias. Ed. 5º; Campos: Rio de janeiro, 1997.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1990.

COSTA, Ana Alice Alcântara. Lili Tosta e os fundamentos do feminismo baiano. In.
SILVA, Maria Dulce e NERY, Inez. (org). Cenários e personagens. Teresina: REDOR / O
povo, 1999.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2004.

MATOS, Maria Izilda S. de Estudos de gênero: percursos e possibilidades na


historiografia contemporânea. Cadernos Pagu. Nº 11, 1998. Campinas, 1998.

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MEIHY, José Carlos Sabe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: LOYOLA, 1996.

SARDA, Amparo Moreno. Em torno al androcentrismo em la história. Cuadernos


inacabados. El arquétipo viril protagonista de la história. Exercícios de lecturas no
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SCOTT, Joan Wallach. A Cidadã Paradoxal. As feministas francesas e os direitos dos


homens. (Cap. I – Relendo a história do feminismo). Florianópolis: Mulheres, 2002. p. 23 –
48.
_________________. Préfacio a “Gender and Polítics of History”. Cadernos Pagu, nº 3.
Campinas / SP, 1994.

SHOIHET, Rachel. Violência simbólica, saberes masculinos e representações femininas.


Revista Estudos Feministas. Vol. 5, nº. 1 / 1997. RJ, IFCS – UFRJ.

SOIHET, Raquel. PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das


mulheres e das relações de gênero. Texto a ser publicado na revista brasileira de história no
ano corrente de 2008.

SWAIN, Tânia Navarro. Corpos construídos, superfícies de significação, processos de


subjetivação. In: Maria Luisa Feminias. (Org.). Perfiles del feminismo iberoamericano.
Buenos Aires: 2006.

___________________. A Construção Imaginária da História e dos Gêneros: O Brasil


No Seculo Xvi. Textos de História, v. 4, n. 2, p. 130-153, 1996

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O ESTUDO BIOGÁFICO COMO FONTE DE PESQUISA


Mariângela Dias Santos – UFS/NPGED
mariangela.dias@uol.com.br

As biografias são instrumentos valiosos de pesquisa histórica, na medida certa da


contextualização dos fatos. A partir de biografias, pesquisadores recuperam informações de
interesse da história e da cultura, ampliando o conhecimento e compreendendo melhor as
relações sociais fixadas ao longo do tempo. Nesse sentido, o estudo tem por objetivo
demonstrar as contribuições dos estudos biográficos para o entendimento das facetas
ocorridas no âmbito educacional, social, político e cultural através do viés da biografia. Como
também mostrando o avanço das pesquisas sob a perspectiva da História Cultural, levando em
consideração a teoria de alguns autores como: Norbert Elias, Roger Chartier, Pierre Bourdieu
e Pacheco Borges. A história da educação como campo de pesquisa tem aumentado as
possibilidades, noção e a utilização de estudo a partir da definição de novos temas/problemas
e da utilização das fontes não tradicionais, para compreender os estudos biográficos. Assim, o
estudo conclui que, é necessário a problematização das fontes e de tudo que pode nos dar
indícios ao passado ou o que diz respeito ao que o homem produziu, uma vez que são
resultados de uma variedade de acontecimentos que fazem parte de um determinado tempo e
sociedade.

Palavras-chave: Biografia, História Cultural, Sujeitos.

INTRODUÇÃO

A pesquisa em História da Educação, a partir da abordagem biográfica traz


contribuições importantes para o entendimento de fatos e momentos sociais de épocas
passadas. Tais considerações evidenciam a relevância desse método para as pesquisas
educacionais, pois permite uma compreensão da relação entre a história individual e a história
social. Este estudo pretende discutir os pressupostos da pesquisa biográfica e suas inter-
relações com os estudos de História da Educação, principalmente às contribuições da História
Cultural. Foram utilizados como categorias de análise, os conceitos de representação e apropriação
de Roger Chartier e de configuração de Norbert Elias, legitimação de Bourdieu, bem como estudos
de pesquisadores da História da Educação sobre biografias.

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A NECESSIDADE DE HISTORIAR

A humanidade tem passado por diversas fases em seu processo de evolução.


Enquanto o homem conquistava o espaço terrestre, aprendia conviver em sociedade e
estabelecia a cultura, talvez tenha pensado em contar seus feitos para a geração futura.
Historiadores narram que era costume de muitos povos expor seu passado aos mais jovens.
Em cavernas, encontram-se o que poderia ser entendido como registro de acontecimentos.
Papiros, pergaminhos, pedras e muitos artefatos arqueológicos apontam para essa necessidade
de não esquecer os feitos e as conquistas. Com o passar do tempo, essa forma de registrar os
fatos ficou conhecida como História.
Até bem pouco tempo, acreditavam-se que a história era feita por uma elite
composta por reis, imperadores, soldados de alta patente, ricos, estadistas de renome,
acadêmicos das ciências, das letras, das artes e todos eles eram referenciados nos livros e na
mídia de seu tempo. O povo, em geral, não tinha sua participação reconhecida no processo
civilizatório; negavam-lhe a condição de ator social.
Mas a história é construída a partir das experiências de todos. Conforme Le Gooff
(1996), “A idéia da história como história do homem foi substituída pela idéia da história dos
homens em sociedade”. Uma pessoa, a proporção em que vai vivendo, constrói sua história e
a de outras pessoas, num entrelace de fatos visível ou não.
Com o advento da escrita, os acontecimentos que costumavam ser resguardados
por pessoas treinadas para memorizar, em algumas culturas, passaram a ser protegidos em
materiais gráficos. Alguns eventos figuravam como importantes, outros eram deixados de
lado. É certo que uma classe hegemônica fazia a eleição do que passaria aos registros.
Entretanto, por trás de cada fato historiado há centenas de pontos ocultos.
A vida da gente simples, de certo, não seria considerada algo a ser protegido no
cânone da história oficial. Um casal de pessoas humildes, que saísse da cidade onde nasceu,
para morar na capital, sonhando que seus filhos tivessem um futuro melhor, se estudassem,
não teria relevância. Acontecimentos dessa natureza, também, constituem-se em história,
entretanto, não estão registrados; repousam na memória daqueles que viveram esses fatos, de
seus descendentes e, possivelmente, estão fadados ao esquecimento.
Nomeamos aqui neste trabalho, pautados na linha da História dos Annales e Nova
História Cultural, emprestar de Roger Chartier o conceito de representações para o

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embasamento teórico metodológico de nosso estudo. De acordo com Chartier, representações


são:

As percepções coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do


mundo social e organizam esquemas de percepção a partir dos quais eles
classificam, julgam e agem; as formas de exibição e de estilização da
identidade que pretendem ver reconhecida: enfim, a delegação a
representantes (indivíduos particulares, instituições, instâncias abstratas), da
coerência e da estabilidade assim afirmada. (CHARTIER, 2002)
.
Assim, abordagem biográfica tem sido uma importante linha de pesquisa que
ajuda a compreender fatos, histórias de vida, momentos sociais de épocas passadas, a partir de
uma vida. Isso porque, todos os biografados estão inseridos em uma rede social, possuem uma
profissão ou ocupação, uma mania e tabus, que revelam características, valores e
comportamentos de uma época.

O USO DA PESQUISA BIOGRÁFICA NOS ESTUDOS DE HISTÓRIA DA


EDUCAÇÃO

A pesquisa acerca das trajetórias e histórias de vida de intelectuais tem interessado


os estudiosos do campo da História da Educação. Isto porque, através dela, é possível
entender algumas práticas e saberes dos sujeitos e a cultura que os rodeava, além de contribuir
para perceber as relações existentes em determinados contextos, permitindo o diálogo entre
diferentes áreas de pesquisa.
Segundo Nascimento (2007), “As abordagens sobre intelectuais são importantes
contribuições que servem para reafirmar a condição do indivíduo como sujeito da história,
colocando em destaque as personalidades, no processo da vida social” (p.7). Os estudos
biográficos de intelectuais que se dedicaram ao magistério, geralmente têm como objetivo a
tentativa de recuperar suas trajetórias e compreender, por meio delas, aquilo que foi
efetivamente vivido e realizado (AMORIM, 2006, p.1).
A abordagem biográfica é uma ferramenta que serve para o entendimento das
práticas e saberes dos sujeitos que marcaram as sociedades. Segundo Borges (2006),

“[...] a biografia tem sido considerada uma fonte de conhecimento do ser


humano: não há nada melhor para se saber como é o ser humano do que se
dar conta de sua grande variedade, em espaços e tempos diferentes” (p.215).

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Le Goff (2001), ao estudar a vida de São Francisco, afirma que ele só pode ser
entendido, a partir dos valores de sua sociedade, de seu tempo. Segundo ele,

(...) se São Francisco foi moderno, é porque seu século o era. E isso não é de
diminuir nem sua originalidade nem sua importância, mas constatar, que ele
não surgiu como uma árvore mágica no meio de um deserto, mas que é
produto de um lugar e de um momento [...]. (LE GOFF, 2001, p.105).

Isso porque, os valores, as crenças e atitudes dos indivíduos, são permeados pela
cultura que o rodeia. Ele sempre será produto do seu tempo. Nobert Elias (1995), na obra
“Mozart: sociologia de um gênio”, afirma que

Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são
considerados no contexto do seu tempo [...]. O destino individual de Mozart,
sua sina como ser humano único e, portanto como artista único, foi muito
influenciado por sua situação social, pela dependência do músico de sua
época com relação à aristocracia da corte (ELIAS, 1995, p.15,18).

O uso da abordagem biográfica, portanto, contribui para perceber as relações


existentes em determinados contextos, permitindo o diálogo entre diferentes áreas de
pesquisa. Nobert Elias (2001), ao abordar as possibilidades dos estudos relacionou a História
com a Sociologia. Este autor aponta reflexões que permitem buscar o entendimento das
figurações (configurações), em que estiveram inseridos os sujeitos investigados e as relações
de interdependências que construíram, uma vez que os homens apesar de serem singulares,

[...] não aparecem mais como indivíduos isolados, cada um totalmente


independente dos demais, existindo por si mesmo [...]. Na análise das
figurações, os indivíduos singulares são apresentados da maneira como
podem ser observados: como sistemas próprios, abertos, orientados para a
reciprocidade, ligados por interdependências dos mais variados tipos e que
formam entre si figurações específicas, em virtude de suas interdependências
(ELIAS, 2001, p. 50-51).

Nesse sentido, verifica-se que todos os biografados estão inseridos em uma rede
social, possuem uma profissão ou ocupação, manias, que revelam características, valores e
comportamentos de uma época. Isso amplia a possibilidade de interpretação do historiador e
permite o uso de aportes teóricos tanto da História, como da Sociologia e Psicologia, na
construção de uma trajetória de vida.
Moita (1995) considera que a pesquisa biográfica possui uma metodologia com
potencialidades de diálogo entre o individual e o sociocultural, uma vez que “põe em

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evidência o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas
energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos” (p.113).
Assim, o método biográfico como um dos estudos recentes tem motivado grande
adesão dos pesquisadores porque,

(...) se inicia pela consideração dos dois tipos de materiais que podem ser
utilizados nessa abordagem: os materiais biográficos primários, isto é, as
narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em
geral através de entrevistas realizadas em situação face a face, e os
materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda
espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas,
documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não
tiveram por objetivo servir a fins de pesquisa (FERRAROTTI apud
BUENO, 2002, p.18).

Embora existam limites na pesquisa biográfica, ela é capaz de rememorar


intelectuais do passado, promovendo o estudo de suas vidas, captando a interseção entre
educação e valores culturais, entre escola e sociedade. Segundo Le Goff (2001), “situar, fazer
compreender, elucidar as palavras dos homens do passado é uma das tarefas primordiais do
historiador”(p.12). A pesquisa que se baseia sob os aspectos da abordagem biográfica, tem
sido na opinião de Morais e Malta:

“uma importante linha de pesquisa que ajuda a compreender fatos, histórias


de vida, momentos sociais de épocas passadas, a partir de uma vida. Isso,
porque, todos biografados estão inseridos em uma rede social, possuem uma
profissião ou ocupação, uma mania e tabus, que revelam características,
valores e comportamentos de uma época.”

Dessa forma, percebe-se a importância de resgatar a história dos personagens e sua


singularidade. A partir das considerações realizadas por Nobert Elias, acerca do sujeito
histórico e suas inter-relações, o autor nos mostra, que:

“(...) os homens singulares não perdem, como às vezes tendemos a


considerar, o seu caráter e valor enquanto homens singulares. Porém eles não
aparecem mais como indivíduos isolados, cada um totalmente independente
dos demais, existindo por si mesmo (...).”

Norbert Elias (1994), na sua obra “O Processo Civilizador” demonstra que o


indivíduo e a sociedade são inter-relacionados, os quais estão sempre em processo de
evolução e de mudanças. Elias (1994) explica que tanto a sociedade como os indivíduos
passam por um processo civilizador. Neste sentido, os processos educativos serão um dos

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mecanismos para a civilização dos sujeitos, com o intuito de atender aos padrões de
civilidade.
Na sociedade as mudanças ocorrem durante um longo período da história, assim
também é com a educação, isto é, as transformações ocorridas no meio educacional
acontecem no decorrer dos anos e não de maneira repentina. A educação forma os indivíduos
de acordo com os padrões de civilidade de uma determinada sociedade. É importante destacar
que se o meio social vive por um processo de civilização (mudanças ou transformações), isto
pode ocasionar mudanças significativas na educação dos sujeitos, adequando o
comportamento dos indivíduos, segundo os critérios de uma sociedade civilizada.
Os estudos realizados sobre a história de vida de professores têm revelado
trajetórias educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o
conhecimento de vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas que esclarecem situações
contemporâneas, evidenciando as vantagens e as limitações da utilização desse recurso
historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas educacionais que marcaram
determinado período histórico. São investigações que estabelecem conexões e coerências
entre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais, orientando a interpretação de
problemas educacionais contemporâneos em sua articulação com o passado.
O interesse por essa abordagem histórica vem sendo construído faz algum tempo,
tendo origem na interpretação de que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua
época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo a
história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa
articulação traria explicações sobre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais.
Outro aspecto motivador é a consciência da necessidade de explorar novas
perspectivas do passado, proporcionadas por outras fontes documentais, como
correspondências, diários, o que aponta para o aprofundamento do paradigma da história vista
de baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas freqüentemente ignoradas ou que
aparentemente não ocuparam um lugar especial na história. A história das pessoas comuns é
um campo especial de estudo que possibilita “uma síntese mais rica da compreensão histórica,
de uma fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos
mais tradicionais de história” (SHARPE,1995, p. 54).
Além dos pontos indicados, existe uma questão e talvez a mais instigante: a
grande lacuna a ser preenchida por estudos empíricos sobre a atuação dos sujeitos e agentes
da educação envolvidos no processo educativo, como a experiência dos professores primários
no desempenho de suas funções, compreendendo então o processo educativo de determinado

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período e contexto a partir da história de vida de seus agentes, trazendo fatos e elementos que
revelam papéis ocupados e a renovação/continuidade das práticas sociais do seu tempo.
Investigar o passado implica em refletir uma perspectiva de entender o processo histórico de
configuração e consolidação das instituições e práticas sociais modernas, bem como entender
que as intervenções dos sujeitos que fizeram a sua história carregada de sentidos, significados
e intencionalidades que refletem explícita ou implicitamente o todo social.
As dificuldades que se colocam, ao se propor escrever a história de um
personagem, segundo Vavy Pacheco Borges (2001), em nada são diferentes dos que se
enfrenta em qualquer trabalho de pesquisa histórica. Por esse motivo, “ao escrever a história
de uma vida, nos perguntamos se essa tem um sentido; esse sentido seria (ou será) aquele que
nós, conscientemente ou não, atribuímos ao nosso personagem”.
historiador corre “o risco de construir para seu personagem ‘um percurso
orientado’, muitas vezes disfarçado atrás das idéias de ‘destino incontornável’, ‘vocação
irresistível’, etc.” (Idem, BORGES, p. 06-07).
De acordo com Le Goff (2002), toda história é narrativa porque, situando-se por
definição no tempo, na sucessividade, é obrigatoriamente associada à narrativa. Nesse
“sentido, “a biografia de uma personagem é entendia como um modo particular de fazer a
história”. O indivíduo “não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas, e
essa diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo”. No entanto, “o historiador deve
ser capaz, em função da familiaridade com as fontes e com o tempo em que vive seu
personagem, de pôr nos próprios documentos, graças a uma ‘desmontagem apropriada’,
‘efeitos do real’ com a verdade dos quais se possa chegar a conclusões.” (Idem, LE GOFF, p.
26 e 22). Dessa forma, entende-se que “toda história é uma construção e os problemas de
descobrir ‘uma’ ou ‘a verdade’ surgem até para leigos que percebem que, para um fato, cabe
mais de uma versão. (Cf. BORGES, Op. cit. p. 6).”.
Ainda, sob a perspectiva da Escola Nova no Brasil, as pesquisadoras Eliane Lopes
e Ana Maria Galvão, afirmam que o século XX traz novos debates acerca da educação
(auxiliada por ciências novas como a Psicologia e a Sociologia) (Cf. LOPES & GALVÃO,
2001. p. 23). Assim, a escola passa a ser vista sob outros olhares, outra visão. É nesse
contexto que se buscam e encontram novos objetos para se fazer outras histórias.
Assim, o método biográfico como um dos estudos recentes tem motivado grande
adesão dos pesquisadores porque,

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(...) se inicia pela consideração dos dois tipos de materiais que podem ser
utilizados nessa abordagem: os materiais biográficos primários, isto é, as
narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em
geral através de entrevistas realizadas em situação face a face, e os
materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda
espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas,
documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não
tiveram por objetivo servir a fins de pesquisa (FERRAROTTI apud
BUENO, 2002, p.18).

O uso de memórias, diários, cartas, biografias, fotografias, literatura, música,


pintura, histórias de vida, depoimentos, anúncios e relatos de festas escolares publicados em
jornais e revistas, entre outros, permitem acessar as práticas e os saberes difundidos, assim
como, os discursos e os dispositivos produzidos em torno do objeto de estudo a ser
investigado e considerando as suas particularidades existentes no espaço e no tempo
configurado.
Além de permitir a observação do habitus que, segundo Pierre Bourdieu (1996),
“(...) é um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou as estruturas
imanentes de um mundo ou de um setor particular desse mundo, de um campo, e que estrutura
tanto a percepção desse mundo como a ação nesse mundo” (p. 144).
Tem-se utilizado as memórias, visando compreender um determinado processo ou
forma de educação familiar, escolar e social de uma geração ou grupo. Porém, segundo
Amorim (2006),

(...) é preciso estar atento ao fato de que a memória não é um


espelho, mas um filtro, e como tal o que sai através dele não é
nunca a realidade. Essa passa a ser uma realidade recriada,
reinterpretada e, por muitas vezes, imaginada a tal ponto que a
mente do que recorda pode chegar a substituir, com vantagem, o
que realmente aconteceu (AMORIM, 2006, p.13).

No campo das pesquisas educacionais, a partir da década de 1980, instauraram-se


mudanças no fazer histórico, com o advento da Nova História Cultural que trouxe consigo
uma ampliação das fontes utilizadas pelos historiadores e que, de acordo com Oliveira (2002),

(...) se instala numa linha multidisciplinar de estudos e pesquisas que têm


como objetos desde instituições, tais como escola, imprensa e censura, até
as práticas relacionadas à produção, difusão e apropriação dos textos nos
seus mais variados suportes (OLIVEIRA, 2002, p.106).

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Nesse período, a biografia renasceu como gênero historiográfico, tendo como


característica permitir a compreensão de processos formativos aproximados de uma geração,
possibilitando uma interpretação das trajetórias, destacando elementos diferenciados do
processo de socialização familiar. Segundo Avancini (2006),

Buscou-se uma nova compreensão para o lugar do indivíduo na


história, não só como resultado de estruturas de longa duração que
formam e direcionam as sociedades, mas também como atores dos
processos sociais e culturais, produzidos em diferentes tempos e
lugares. (AVANCINI, 2006, p.119).

A História da Educação como campo de pesquisa vem ampliando a noção e a


utilização de fontes e documentos sobre um objeto de estudo. Dessa forma, aumentaram as
possibilidades de estudo a partir da definição de novos temas/ problemas e da utilização de
documentos e fontes não tradicionais.
A proposta de apresentar o método biográfico como opção e alternativa para fazer
mediações entre as ações e a estrutura, ou seja, entra a história individual e a história social
torna-o legítimo, “não apenas pela sua especificidade na narrativa do trabalho, mas, também
porque a biografia é uma micro-relação social” (BUENO, 2002, p.20).
Assim essa abordagem pode revelar as relações existentes entre o indivíduo e a
sociedade em que se está inserido, para além de seus valores culturais e morais imediatos. Por
isso, é necessário ao pesquisador estar atento no cruzamento e na verificação das várias
fontes, para não retirá-las de seus contextos.

CONCLUSÃO

Dessa forma, é possível entender que é serviço do historiador ler o passado e


interpretar os diferentes registros deixados pelo homem. Ao escolher cumprir esta missão
através da investigação de trajetórias, da analise de percursos biobibliográficos, da pesquisa
sobre vivências profissionais, do estado de registros de viagens e outras fontes, produzidos
por diferentes personagens ou sobre eles, o historiador escolhe um caminho que exige mais do
que faro investigativo, como também sensibilidade, criatividade, persistência e dedicação
exaustiva.
O conjunto de estudos sobre intelectuais leva a reflexão a respeito do papel que o
indivíduo exerce na história. Como lembra Vavy Pacheco Borges,

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“ os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos


defrontam com tudo que constitui nossa própria vida e as dos que nos
cercam. Num circulo vicioso, exigem de nós auto conhecimento e
preocupação com a compreensão dos outros seres humanos; mas, ao mesmo
tempo, podem acabar por reforçar em nós tudo isso. (2001, p. 2)

Ao estudar a trajetória dos intelectuais é necessário compreender as pressões sociais


que atuam sobre o individuo. Não basta apenas produzir uma narrativa histórica, precisa-se
buscar compreender na estrutura os modos através dos quais a sociedade atua sobre o
individuo, uma vez que, como entende, mesmo sendo autônomo o intelectual esta
subordinado a tal estrutura, posto ser “ simplesmente impossível para uma pessoa ter uma
propensão natural geneticamente enraizada de fazer algo”. (ELIAS, 1995, p. 58)

REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Simone. Silveira. A trajetória de Alfredo Montes (1848-1906): representações


da configuração do trabalho docente em Sergipe. São Cristóvão: Núcleo de Pós-graduação em
Educação, Universidade Federal de Sergipe, 2006. (Dissertação de Mestrado).
AVANCINI, José Augusto. Rembrandt e a invenção de si: seus auto-retratos são um percurso
autobiográfico. In: SOUZA, Elizeu Clementino de (org). Tempos, narrativas e ficções: a
invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus Editora.
1996.
BUENO, Belmira Oliveira. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de
professores: a questão da subjetividade. In: Revista Educação e Pesquisa. v. 28. São Paulo,
n. 1. Jan/Jun. 2002. p.11 – 30.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção
Sérgio Micelli. São Paulo: Perspectiva, 1974 apud FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de.
Op. Cit. p. 35.
BORGES, Vavy Pacheco. 2001. O historiador e seu personagem: algumas reflexões em
torno da biografia. In: Revista Horizontes. V. 19. Bragança Paulista: jan/dez. p. 05.
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (org.) 2
ed. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. p.203-233.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: A História entre incertezas e inquietude, Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

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ELIAS, Nobert. A sociedade da corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da


aristocracia de corte. Rio de Janeiro.Jorge Zahar Editor, 2001. SHARPE, Jim. A história vista
de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas.São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1994.
________. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos
emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras.
LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001.(Coleção: O que você precisa saber sobre...).
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OLIVEIRA de, Luiz Eduardo Meneses. Considerações sobre as figuras dos professores régios
de línguas clássicas e modernas: notas para o estudo das origens da profissão docente no
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UFS/NPGED, 2002. p. 106-121.
MIGNOT, Ana C. V. Baú de memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro de
Armanda Álvaro Alberto. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002.
MORAIS, Roselusia Tereza Pereira de e MALTA, Marina de Oliveira. Pressupostos da
pesquisa (auto) biográfica e as inter-relaçõescom a História da Educação. Artigo.
NASCIMENTO, Jorge C. do. Intelectuais da Educação: José Calasans, Sílvio Romero e
outros professores. Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas, 2007.

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PRECEPTORAS ALEMÃS NA BAHIA E EM SERGIPE (1860-1920)

Samuel Barros De Medeiros E Albuquerque UFBA


opreceptor@hotmail.com

Este trabalho consiste na divulgação da pesquisa Preceptoras alemãs na Bahia e em Sergipe


(1860-1920), que está sendo desenvolvida no curso de doutorado do Programa de Pós-
Graduação em História da UFBA, sob a orientação da Profª Drª Lina Maria Brandão de Aras.
Inspirado em procedimentos teórico-metodológicos na Nova História Cultural e explorando
uma abundante e variada documentação dispersa em acervos públicos e privados, o referido
estudo analisa as representações e práticas de preceptoras alemãs que atuaram na Bahia e em
Sergipe, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Dessa
forma, além da compreensão de uma prática educativa que marcou a formação das elites
brasileiras, esta pesquisa tenciona ampliar o debate acerca da história da docência, lançando
luzes sobre períodos e objetos pouco focalizados pelos holofotes da historiografia
educacional.

Palavras-chave: Preceptoria, Educação Doméstica, Historiografia Educacional.

Num passado não muito distante, entre a segunda metade do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, educadoras estrangeiras estiveram a cultivar a fina-flor da
juventude brasileira. Eram preceptoras alemãs, inglesas, francesas e suíças que cruzavam o
Atlântico, seduzidas por boas propostas de emprego.
O ofício de preceptora começou a ser delineado na segunda metade do século
XVIII, consolidando-se em princípios do século seguinte1334. Representando um ramo
específico da docência, dedicado à educação no âmbito doméstico, a preceptoria era a forma
mais individualizada de instrução. Distantes dos modelos tradicionais de escola, muitos
jovens eram instruídos em seus próprios lares, onde passavam a conviver com as preceptoras.

1334
A difusão da preceptoria, dentro e fora da Europa, foi atestada pela proliferação de escolas dedicadas à
formação de preceptoras. Segundo Ritzkat, mesmo antes da unificação alemã, o Reino da Prússia já tinha escolas
preparatórias que recebiam as moças que, posteriormente, seguiriam em jornada pedagógica pelo mundo
[RITZKAT, Marly B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES. Eliana Marta T.; FARIA FILHO, Luciano M.
de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. pp. 269-290
(Coleção Historial, 6)].

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No Brasil, essa prática tornou-se comum entre as famílias abastadas do século XIX,
persistindo durante as primeiras décadas do século XX.1335
Entretanto, o que podemos observar é que a historiografia educacional brasileira
privilegiou o estudo das instituições formais de educação. A raridade de estudos sobre a
preceptoria, contudo, pode remeter a uma questão importante: apesar da constatação e
reconhecimento enquanto prática instituída, a educação realizada na esfera privada, foi alijada
dos registros oficiais, deixando poucos vestígios em arquivos públicos. Assim, estudar a
preceptoria é se debruçar sobre uma prática educativa parcamente estudada1336, além de
contribuir para os debates acerca da história da docência no Brasil1337.
A trilha que percorri até chegar ao universo das preceptoras foi, apesar de alguns
percalços, excitante. Corria o ano de 2003 e eu, ainda aluno de graduação, estudava um
manuscrito revelador da condição feminina nos oitocentos: as memórias de Aurélia Dias
Rollemberg (Dona Sinhá), mulher da elite sergipana que viveu entre 1863 e 19521338. Aquela
narrativa autobiográfica conduzia-me à antiga província de Sergipe, desvendando aspectos da
vida privada da aristocracia brasileira. 1339

1335
No Brasil, as preceptoras começam a perder terreno em meados do século XX, quando se proliferaram os
colégios fundados por congregações religiosas, nos quais o público alvo era, sobretudo, as jovens da elite. Além
disso, no século XX o mercado europeu ampliou as possibilidades de trabalho para mulheres, apresentando
alternativas além do magistério.
1336
Na historiografia educacional brasileira, as contribuições mais significativas são: RITZKAT, Marly G B. A
vida privada no Segundo Império: pelas cartas de Ina von Binzer (1881-1883). São Paulo: Atual, 1999 (Coleção
O olhar estrangeiro); RITZKAT, Marly G. B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES Eliana Marta T.;
FARIAS FILHO, Luciano M. de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. pp. 269-290 (Coleção Historial, 6); CANEN, Ana; XAVIER, Libânia Nacif. Multiculturalismo,
memória e história: reflexões a partir do olhar de uma educadora alemã no Brasil. In: MIGNOT, Ana Chrystina
V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria Tereza S. (Orgs). Refúgios do eu: educação, história e escrita
autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. pp. 63-79; VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus
mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.
1337
A esse respeito é de fundamental importância os contínuos estudos realizados pelo GEDOMGE (Grupo de
Estudos Docência, Memória e Gênero), que, sob a coordenação de professores da Faculdade de Educação de São
Paulo (FEUSP) — Denice Barbara Catani, Belmira Oliveira Bueno, Cynthia Pereira de Sousa e Maria Cecília
Cortez C. de Souza — reúne professores da rede pública do Estado de São Paulo e alunos da FEUSP. Esse
grupo, desde o início da década de 1990, tem se dedicado a discutir e propor modos de análise e intervenção no
domínio da produção em História da Educação brasileira e da pesquisa acerca da formação de professores.
Temas relacionados à memória e a história da profissão docente vêm sendo constantemente explorados em
seminários e publicações patrocinados pelo GEDOMGE, do ponto de vista de suas considerações individuais e
coletivas, que se constituem em pontos de referência para os estudos da área. Sobre a contribuição do grupo,
consultar: SOUSA, Cynthia Pereira de; CATANI, Denice Bárbara; BUENO, Belmira Oliveira; CHAMLIAN,
Helena Coharik. A atuação do grupo de estudos docência, memória e gênero GEDOMGE – FEUSP (1994-
2006). In: SOUZA, Elizeu Clementino de (Org.). Autobiografia, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino.
Porto Alegre: EDIPURS, 2006. pp. 21-30.
1338
ROLLEMBERG, Aurélia Dias. Manuscrito. Aracaju, [19—]. Acervo da família Fonseca Porto. Aracaju-SE.
1339
Entre março de 2003 e junho de 2004, produzi a monografia As memórias de Dona Sinhá, orientada pela
Profª Drª Terezinha Alves de Oliva [ALBUQUERQUE, Samuel B. de Medeiros. As Memórias de Dona Sinhá.
São Cristóvão: 2004. 135 p. TCC (Licenciatura em História) – DHI/UFS]. O estudo consistiu na análise e na
edição paleográfica da autobiografia de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952). Para tanto, revisei uma
interessante bibliografia sobre narrativas autobiográficas e edição de documentos manuscritos.

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Entre as personagens que povoam as reminiscências de Aurélia Rollemberg,


uma especialmente chamou minha atenção: Marie Lassius, preceptora alemã que atuou em
Sergipe durante quase duas décadas (1861-1879), educando crianças e jovens de duas das
principais famílias da açucarocracia local — os Dias Coelho e Mello, do Engenho Escurial
(São Cristóvão), e os Faro Rollemberg, do Engenho Topo (Japaratuba). A jovem Aurélia,
filha de Antônio Dias Coelho e Mello (Barão da Estância) e Lourença de Almeida Dias, foi
uma das pupilas de Fräulein Lassius que, conferindo ao universo educacional status
privilegiado em sua narrativa autobiográfica, notabilizou-se ao conceder fragmentos da
trajetória da mestra.
Seguindo os rastros dessa preceptora alemã, iniciei na historiografia sergipana os
estudos sobre a preceptoria, fenômeno que passou despercebido pelos historiadores que
estudaram as práticas educativas desenvolvidas na Província/Estado de Sergipe até as
primeiras décadas do século XX1340. Nesse sentido, no primeiro número do Cadernos UFS –
História da Educação, publiquei o artigo Marie Lassius, uma preceptora alemã em Sergipe
(1861-1879)1341. Em julho de 2003, circulou no jornal Cinform o artigo A missão de uma
educadora alemã em Sergipe (1861-1879)1342, uma versão sintética do texto anterior,
adaptada ao grande público.
Nesse percurso, menciono também o lançamento do livro Memórias de Dona
Sinhá1343, em janeiro de 2005, durante o XI Encontro Sergipano de História1344. Ao incorporar
a história de Fräulein Lassius, no capítulo intitulado Educando as filhas do Barão1345, o livro
passou a representar um importante veículo de preservação e divulgação do mencionado
estudo sobre a preceptoria. 1346

1340
Sobre os estudos de História da educação em Sergipe ler: NASCIMENTO, Jorge C. do. Historiografia
educacional sergipana: uma crítica aos estudos de História da Educação. São Cristóvão: Grupo de Estudos e
Pesquisas em História da Educação/NPGED, 2003 (Coleção Educação é História, 1).
1341
ALBUQUERQUE, Samuel B. de Medeiros. Marie Lassius, uma preceptora alemã em Sergipe (1861-1879).
Cadernos UFS: História da Educação. São Cristóvão, v. 5, n. 1, pp. 67-78, 2003.
1342
ALBUQUERQUE, Samuel B. de M. A missão de uma educadora alemã em Sergipe (1861-1879). Jornal
Cinform, Aracaju, 14 a 21 jul. 2003. Caderno de Cultura & Variedades (Pensamento Acadêmico), p. 4.
1343
ALBUQUERQUE, Samuel. Memórias de Dona Sinhá. Aracaju: Typografia, 2005.
1344
Desdobramento do meu trabalho de conclusão de curso, a publicação foi patrocinada pelos descendentes da
memorialista que, sensibilizadas com a pesquisa desenvolvida na universidade acerca da matriarca do clã,
decidiram unir esforços e viabilizar sua publicação. Também tive o apoio da UFS, responsável pela editoração
eletrônica do trabalho, e do Departamento de História (DHI/UFS), na divulgação e festa de lançamento.
1345
ALBUQUERQUE, Samuel. Educando as filhas do Barão. In: _____. Memórias de Dona Sinhá. Aracaju:
Typografia, 2005. pp. 147-159.
1346
Nesse sentido, a obra foi relançada na Universidade de São Paulo, durante o “Autobiografia 2005”,
simpósio internacional sobre questões relacionadas aos discursos autobiográficos, realizado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, entre 20 e 22 de setembro de 2005. Além disso, muitas têm sido
as apropriações do texto, transitando desde trabalhos de conclusão de curso até obras de autores como Mary Del
Priore, que, na obra História do Amor no Brasil, utiliza-se do Memórias de Dona Sinhá ao tratar das práticas

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Meu ingresso no Mestrado em Educação da UFS, em março de 2005, foi o início


de uma nova e frutífera etapa desta pesquisa. Ao final do curso de mestrado, defendi a
dissertação A preceptora: representações em Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade,
onde estudei as representações da figura histórico-literária da preceptora no romance
modernista Amar, verbo intransitivo (1927). Inicialmente, busquei reconstituir aspectos
ligados a produção e circulação da referida obra, bem como peculiaridades da edição sobre a
qual me debrucei. Em seguida, enveredei pelas representações construídas por Mário de
Andrade acerca da preceptora européia, materializada na figura literária de Fräulein Elza.
Finalmente, voltei-me para um dos aspectos que mais singulariza a preceptora de Amar, verbo
intransitivo, a fusão entre os papéis de educadora e prostituta (“professora de amor”). Ao
longo do trabalho, promovo o cotejo entre as representações literárias e historiográficas acerca
da preceptora alemã e da prática da preceptoria, observando os pontos de encontro e
distanciamento.1347
Muito recentemente, em dezembro de 2007, tive o projeto de pesquisa
Preceptoras alemãs na Bahia e em Sergipe (1860-1920) aprovado na seleção para o ingresso
no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA1348. Nesta nova
etapa, além da prática educativa, tenciono investigar as práticas e representações de
preceptoras alemãs que atuaram na Bahia e em Sergipe, entre a segunda metade do século
XIX e as primeiras décadas do século XX.
Para realização da pesquisa, estou tomando como norte os procedimentos teórico-
metodológicos da Nova História Cultural1349. O principal conceito empregado tem sido é o de
representação, partindo das leituras e interpretações que fiz de escritos do historiador francês

amorosas no oitocentos brasileiro (DEL PRIORE, Mary. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto,
2005).
1347
ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. A preceptora: representações em Amar, verbo intransitivo
de Mário de Andrade. São Cristóvão/SE, 2007, 94 p. Dissertação (Mestrado em Educação), Núcleo de Pós-
Graduação em Educação/Universidade Federal de Sergipe.
1348
ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. Preceptoras alemãs na Bahia e em Sergipe. Salvador, 2007,
20 p. Projeto de Pesquisa (Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em História /Universidade
Federal da Bahia.
1349
Corrente historiográfica que, a partir da década de 1970, fez com que os historiadores deslocassem seus
olhares para as práticas culturais. Foi, sobretudo, a partir da década de 1990 que, guiados pela Nova História
Cultural, os estudos de História da Educação no Brasil ampliaram seu conceito de fonte, os objetos focalizados, e
os períodos recortados. A influência da Nova História Cultural sobre os historiadores da educação fez com que o
interesse se deslocasse da investigação das normas para o estudo das práticas escolares. Sobre estas questões,
consultar: LOPES, Eliane Marta Teixeira e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2001; e VIDAL, Diana Gonçalves e FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da Educação
no Brasil: a constituição histórica do campo (1880-1970). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45,
pp. 37-70, 2003.

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Roger Chartier1350. Para ele, ao criarem representações seus artífices descrevem a realidade
tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse, deixando entrever interesses
pessoais e de grupo. A análise das fontes tomará esse conceito como lente, percebendo ser
fundamental no ofício do historiador a identificação do “modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”.1351
Muitos são os nomes da Sociologia que podem contribuir para minha pesquisa.
Contudo, considerando o risco de incompatibilidade teórica, optarei pela utilização de
conceitos apanhados na obra do alemão Norbert Elias. Para compreender o modelo de
civilização no qual as elites brasileiras que aderiam à prática da preceptoria se espelhavam
farei uso de um conceito clássico de Elias, o de civilização. Segundo o sociólogo, a
civilização é um processo que teve início no Ocidente do século XII, caracterizando-se pelo
refinamento dos costumes. Essa modificação dos padrões de sensibilidade e comportamento é
atribuída à monopolização da violência pelo Estado e à extensão das redes de
interdependência social. O modelo civilizacional dos europeus é aspirado pelos demais países
do Ocidente1352. Dessa forma, a contratação de preceptoras pode ser interpretada como um
dos instrumentos legitimadores do processo de expansão da Europa para além de seus limites
físicos.
Na historiografia educacional luso-brasileira, sobretudo dos estudos
desenvolvidos por Rogério Fernandes, apanharei alguns conceitos que serão amplamente
empregados neste estudo, como educação doméstica, preceptoria e preceptora. 1353 A
educação doméstica constitui-se no conjunto das práticas educativas realizadas no âmbito do
espaço privado ou da “Casa”1354, que antecede e se desenvolve paralelamente à construção,
aceitação e afirmação da escola formal. Tais práticas ocorriam na casa dos aprendizes sob a
responsabilidade de seus pais que se encarregavam eles mesmos de exercê-las ou
contratavam, para esse fim, mestres, professores particulares ou preceptores. Esse conceito irá
figurar no quadro das modalidades de educação que eram aceitas e reconhecidas como

1350
Esse conceito foi (re)elaborado em diversas obras do historiador Roger Chartier, entre as quais:
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Difel,
1990; CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1998;
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
2 ed. Brasília: Editora da UNB, 1998; CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e
inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
1351
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro:
Difel, 1990. p. 16.
1352
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. vol. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
1353
FERNANDES, Rogério. Os caminhos do ABC. Sociedade portuguesa e ensino das primeiras letras. Porto:
Porto Editora, p. 126.
1354
MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, p. 27-28.

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diferentes maneiras de educar crianças e jovens no Brasil de antanho: o ensino público, aquele
oferecido nas escolas mantidas pelo Estado ou por “associações subordinadas a este”; o
ensino particular, aquele oferecido em colégios particulares ou nas casas dos mestres1355;
além da educação doméstica.
Nos últimos anos, surgiram no Brasil algumas contribuições que ampliaram o
conhecimento acerca da educação doméstica. Em 1999, a professora Marly Bicalho Ritzkat,
tendo como base documental às cartas de Ina von Binzer, publicou o estudo intitulado A vida
privada no Segundo Império1356. No ano seguinte, a mesma autora publicou o texto que,
efetivamente, inaugurou o tema no âmbito acadêmico. A grande vitrine para o artigo
Preceptoras alemã no Brasil foi à obra 500 anos de educação Brasil, que reúne textos de
destacados pesquisadores da nossa historiografia educacional1357. Também em 2000, apareceu
a obra Refúgios do eu, reunindo textos de importantes estudiosos sobre escritos
autobiográficos femininos, entre eles figura o artigo de Ana Canen e Libânia Nacif Xavier no
qual empreendem uma substancial análise das cartas Ina von Binzer1358. Em 2004, veio a
público a obra da professora Maria Celi Chaves Vasconcelos, tese desenvolvida na Faculdade
de Educação da PUC-Rio 1359 e publicada pela editora Gryphus1360. Também em 2004, um
TCC foi desenvolvido no curso de graduação em pedagogia, da Faculdade de Educação da

1355
Nessa modalidade, destacam-se: 1- Colégios particulares, constituíam-se, em sua maioria, em “escolas
domésticas”, ou seja, escolas localizadas em espaços adaptados, onde por vezes, residiam seus diretores e
mestres (casas, seminários ou conventos, quando os mestres costumavam ser os próprios eclesiásticos), cujo
modelo é o que mais se aproxima da escola estatal. Os mestres eram contratados pelos diretores dos
estabelecimentos, denominados como professores e ministravam aulas a crianças e jovens de idades e famílias
diferentes, em horários que poderiam ser parciais ou integrais. As famílias atendidas pagavam pela educação
recebida. Apesar de atender às crianças e jovens coletivamente, o método utilizado até as últimas décadas de
Oitocentos aproximava-se do método individual característico das outras formas de educação doméstica, com
alunos sendo atendidos e avaliados detalhadamente, de maneira individual, pelo professor [O título colégio se
aplica indistintamente, no Brasil, a toda espécie de escola, mesmo as mais elementares. Cf. ALMEIDA, José
Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). História e legislação. 2 ed. São Paulo: EDUC, 2000,
p. 95]; 2- Mestre-escola, enquanto educadores atuavam em sua própria casa, atendendo crianças e jovens de
diversas famílias e, na maioria das vezes, de faixas etárias diferentes. Eram ensinados diversos conhecimentos e
habilidades como primeiras letras, português, latim, inglês, francês, gramática portuguesa, latina, inglesa e
francesa, caligrafia, música, canto, entre outras. Podiam ser contratadas apenas as aulas que interessassem aos
alunos. O pagamento do mestre-escola era feito pelos pais de cada criança atendida.
1356
RITZKAT, Marly G B. A vida privada no Segundo Império: pelas cartas de Ina von Binzer (1881-1883). São
Paulo: Atual, 1999 (Coleção O olhar estrangeiro).
1357
RITZKAT, Marly G. B. Preceptoras alemãs no Brasil. In: LOPES Eliana Marta T.; FARIAS FILHO,
Luciano M. de; VEIGA, Cynthia G. (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
pp. 269-290 (Coleção Historial, 6).
1358
CANEN, Ana; XAVIER, Libânia Nacif. Multiculturalismo, memória e história: reflexões a partir do olhar de
uma educadora alemã no Brasil. In: MIGNOT, Ana Chrystina V.; BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria
Tereza S. (orgs). Refúgios do eu: educação, história e escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. pp.
63-79.
1359
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação doméstica como uma prática das
elites no Brasil de oitocentos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em Educação) – PUC-Rio.
1360
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2005, 247 p.

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UERJ. Roberta Dias dos Santos buscou o elo entre as preceptoras do Brasil oitocentista e as
atuais professoras “explicadoras” (professoras de aulas de reforço escolar).1361
No que confere às fontes históricas da pesquisa, além do já mencionado texto de
memórias de Aurélia Rollemberg e do romance Amar, verbo intransitivo de Mário de
Andrade1362, uma variada documentação coligida em acervos públicos e, sobretudo, privados
da Bahia e de Sergipe será utilizada. Optarei por relacionar e referenciar essas fontes no
espaço e momento adequados – tese que será defendida até março de 2012. Contudo, posso
fazer algumas breves considerações sobre do plano de redação da tese. O primeiro capítulo
analisará as representações construídas e difundidas pela literatura e pela historiografia
educacional brasileira acerca das preceptoras alemãs. O segundo capítulo apresentará
narrativas com perfis biográficos de preceptoras que atuaram na Bahia e em Sergipe.
Finalmente, no terceiro capítulo analisarei as características mais significativas da prática da
preceptoria ao longo do período estudado, partindo do diálogo entre fontes e bibliografia.
Dessa forma, lançar um olhar retrospectivo sobre a prática da preceptoria, como
tem feito, ainda que timidamente, a historiografia educacional brasileira, ou, ainda, perceber
como as representações acerca dos seus agentes (as preceptoras) vêm sendo (re)construídas
não é uma empresa movida exclusivamente pela curiosidade, desprovida de vínculos com as
práticas educativas do presente. Nesse sentido, o professor Rogério Fernandes considera
significativo o caso dos Estados Unidos, onde os problemas das políticas públicas de
educação parecem conduzir à revalorização de modalidades de ensino que tinham perdido a
sua vigência histórica. A demanda de muitas famílias norte-americanas por modelos dotados
de eficiência pedagógica, manutenção de valores e segurança física, tem reavivado a instrução
no âmbito doméstico, o que é reforçado pela disposição atual das novas tecnologias
educacionais. Dessa forma, percebemos como a pertinência desse tema não pode ser
mensurada, exclusivamente, por seu caráter de reconstituição de uma prática educativa
perdida num passado distante.

1361
SANTOS, Roberta Dias dos. Professora ensina em casa: das preceptoras às explicadoras. 2004. 50 p. TCC
(Graduação em Pedagogia) – UERJ.
1362
ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo. Idílio. São Paulo: Antonio Tisi, 1927.

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PROFISSÃO DOCENTE: PRÁTICA ESCOLAR E A TRANSMISSÃO


CULTURAL

Carmen Regina de Carvalho Pimentel. UFS-(GEPHED).


carmencp2@yahoo.com.br

A sociedade certamente condiciona o valor social do professor de acordo com as chamadas


práticas docentes, levando em consideração as suas necessidades e interesses,
contextualizados numa determinada época, local e situação histórica. Por outro lado, a cultura
escolar deve ser vista como elemento que não pode ser estudado sem o exame preciso das
relações conflituosas ou pacíficas que ele mantém ao longo da história. Assim, este artigo tem
o objetivo de realizar uma reflexão sobre o saber docente e sua relação com a prática escolar e
a transmissão da cultura, porque, ao se analisar as normas e práticas pedagógicas, o corpo
docente, o corpo estudantil e o espaço escolar, deve-se observar a cultura escolar e o saber
docente como elementos essenciais para a transmissão cultural. Com essa perspectiva, fontes
históricas e bibliográficas foram utilizadas, as quais nos deram subsídios para conduzir o
trabalho em evidência e nos permitir o alcance de aspectos diferenciadores pelos quais
operam os sujeitos responsáveis pela transmissão dessa cultura. Desse modo, com os dados
obtidos, chegou-se à conclusão que, os profissionais da educação ao transmitir os
conhecimentos que fazem parte da escola, disseminam também a cultura escolar que nela está
inserida.

Palavras-chave: Trabalho Docente, Cultura Escolar, Ensino.

INTRODUÇÃO

A constituição do campo pedagógico transformou-se, na recente historiografia,


num objeto fértil de análise, movendo diferentes correntes na operação de investigação de
uma problemática absolutamente contemporânea. Trata-se de identificar a ação de uma
heterogeneidade de sujeitos em diferentes momentos históricos.
Neste aspecto, a Nova História Cultural contribuiu decisivamente com a mudança
de foco. Mendonça (1994, p. 68-69) aponta as decisivas mudanças metodológicas que

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impactaram o campo da história da educação brasileira nos últimos anos. Segundo a autora
em questão, houve uma ampliação do campo de estudo, até então restrito ao sócio-político; a
desmistificação do fato histórico possibilitou a construção de um novo itinerário
metodológico: de uma história basicamente factual, para uma história de cunho interpretativo.
A sociedade atual exige, necessariamente, uma educação comprometida com
mudanças e transformações sociais. No bojo dessa sociedade encontra-se uma educação que
por ser social e historicamente construída pelo homem, requer como essência no seu
desenvolvimento uma linguagem múltipla, capaz de abarcar toda uma diversidade e,
compreendendo dessa forma, os desafios que fazem parte do tecido de formação profissional
do professor. Esta formação constitui um processo que implica em uma reflexão permanente
sobre a natureza, os objetivos e as lógicas que presidem a sua concepção de educador
enquanto sujeito que transforma e ao mesmo tempo é transformado pelas próprias
contingências da profissão.
Nesse sentido, Pimenta (2005) coloca que a educação, não só retrata e reproduz a
sociedade, mas também projeta a sociedade desejada. Por isso, vincula-se profundamente no
processo civilizatório e humano. A autora complementa seu pensamento com a seguinte
afirmação: “enquanto prática pedagógica, a educação tem, historicamente, o desafio de
responder às demandas que os contextos lhes colocam”.
Por outro lado, não podemos esquecer a escola, responsável por transmitir a
cultura considerada válida. A instituição escolar produz, ela própria, uma cultura escolar, a
qual no entender da historiadora Dominique Julia (1993, p. 34)

constitui-se num conjunto de normas que estabelecem os saberes a serem


ensinados e as condutas a serem inculcadas bem como um conjunto de
práticas que deverão possibilitar a transmissão desses saberes e a
incorporação desses comportamentos, tendo em vista finalidades específicas.

Assim, a instituição escolar pode ser vista como fator fundamental de


determinados consensos culturais, na medida também que pode ser vista como expressão e
produção de bens simbólicos. A cultura é o lócus privilegiado, eixo de formatação da escola e
de outras instituições sociais.
Pensar a escola no seio da modernidade, não somente como produto, mas
fundamentalmente como uma das mais importantes instituições constituidoras da
modernidade capitalista, eis a tarefa daqueles que têm por objetivo a compreensão da
constituição do campo pedagógico na história da educação brasileira.

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A modernidade é fruto de diferentes práticas inseridas numa ambiência cultural


ampla, que privilegia a urbanização, a indústria, a cidade, a escola, a família etc. Esse
processo diz respeito à gestação de posturas racionalizadoras, burocráticas e disciplinadoras,
possibilitando mudanças radicais na organização do tempo e do espaço dos sujeitos.
Como diria Bourdieu (1999, p. 214) a escola “não fornece apenas indicações, mas
também define itinerários”, ou seja, a escola é capaz de fornecer um método, um programa
de pensamento possível de assegurar a produção de sentidos e de formas de inteligibilidade
específicas. Assim, mais do que transmitir saberes a escola assegura a modificação do
habitus, ou seja, dos esquemas que guiam o nosso pensamento e as nossas condutas, as
disposições para agirmos e pensarmos de determinada forma, por estarem fortemente
entranhadas em nós parecem-nos consubstanciais à nossa consciência mas certamente não o
são - elas são ensinadas e aprendidas. O habitus, com efeito, constitui-se no lócus de um
sistema de pensamento e para ser compreendido precisa, segundo Bourdieu ser relacionado
especialmente ao sistema escolar, “o único capaz de consagrá-lo e constituí-lo, pelo exercício,
como hábitos de pensamentos comuns a toda uma geração” ( BOURDIEU, 1999, p. 208). É
a instituição escolar que, por meio de um programa específico de pensamento e de ação,
assegura formas de pensar e de agir também específicas e, conseqüentemente, discursos,
linguagens e problemas comuns, bem como maneiras comuns de abordá-los. Através dos
elementos simbólicos que produz, a escola estabelece um tipo específico de relação com a
cultura, o qual, por sua vez, poderá assegurar um conjunto de esquemas fundamentais que,
devidamente automatizados, servirão de princípio de seleção para as aquisições posteriores,
regendo e regulando as operações intelectuais, fazendo com que "aquilo que o indivíduo
pensa seja pensável para ele como tal e na forma particular pela qual é pensado".
(BOURDIEU, 1999:, p. 212).
Com esta perspectiva, este artigo fará uma reflexão sobre o saber docente e sua
relação com a prática escolar e a transmissão da cultura, porque, ao se analisar as normas e
práticas pedagógicas, o corpo docente, o corpo estudantil e o espaço escolar, deve-se observar
a cultura escolar e o saber docente como elementos essenciais para a transmissão cultural.

A Escola Como Espaço Sócio-Cultural

Analisar a escola como espaço sócio-cultural significa compreendê-la na ótica


da cultura, sob um olhar mais denso, que leva em conta a dimensão do dinamismo, do fazer-se
cotidiano, levado a efeito por homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e

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brancos, adultos e adolescentes, enfim, alunos e professores, seres humanos concretos,


sujeitos sociais e históricos, presentes na história, atores na história. Falar da escola como
espaço sócio-cultural implica, assim, resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a
constitui, enquanto instituição.
A escola, como espaço sócio-cultural, é entendida como um espaço social próprio,
ordenado em dupla dimensão. Institucionalmente, por um conjunto de normas e regras, que
buscam unificar e delimitar a ação dos seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa
trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianças e conflitos,
imposição de normas e estratégias individuais ou coletivas, de transgressão e de acordos. Um
processo de apropriação constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que
dão forma à vida escolar. Fruto da ação recíproca entre o sujeito e a instituição, esse processo,
como tal, é heterogêneo. Nessa perspectiva, a realidade escolar aparece mediada, no
cotidiano, pela apropriação, elaboração, reelaboração ou repulsa expressas pelos sujeitos
sociais (EZPELETA & ROCKWELL,1986, p. 58).
Desta forma, o processo educativo escolar recoloca a cada instante a reprodução
do velho e a possibilidade da construção do novo, e nenhum dos lados pode antecipar uma
vitória completa e definitiva. Esta abordagem permite ampliar a análise educacional, na
medida em que busca apreender os processos reais, cotidianos, que ocorrem no interior da
escola, ao mesmo tempo que, resgata o papel ativo dos sujeitos, na vida social e escolar.
Assim, a cultura escolar se efetiva quando os sujeitos se apropriam desse ambiente
cultural e o reelaboraram no seu cotidiano. Nesse processo é de fundamental importância a
participação nos seus ritos de iniciação ou de instituição, como os denominou Bourdieu
(1982), e podemos elencar entre eles a matrícula escolar, as provas bimestrais, a formatura,
que são momentos que estabelecem as distinções entre os que participam ou pertencem a essa
instituição e os que permanecem ou permanecerão fora dela por não terem, por exemplo,
alcançado a necessária competência.
Essas considerações permitem entender o espaço escolar como prioritariamente
reservado à transmissão de uma base comum de idéias, sentimentos e práticas, como
asseverou Durkheim (1973). Ou seja, a escola foi histórica e tradicionalmente concebida para
criar consensos, homogeneizar ritmos, valores e condutas, de acordo com uma certa
visão/concepção de mundo. A convivência e a socialização nesse espaço deve propiciar aos
alunos/as a apropriação de um certo modus vivendi, que é constituidor de identidades e está
presente nos recortes de espaços, na avaliação de determinados aspectos, na cobrança de
resultados, nas expectativas que se generalizaram e nos padrões que se impregnaram

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fortemente no imaginário popular, referendando posições, legitimando segmentações,


conferindo poder a certas denominações e fazendo prevalecer um determinado habitus. A
situação de homogeneização de significados, que a cultura mundializada tende a imprimir
atualmente apenas corrobora essa tendência, que é própria do ethos pedagógico.
Compreender o docente neste contexto, sua profissão e os modos como exerceu
seu ofício de educador, ora mobilizando ora produzindo saberes e práticas necessárias ao
processo de ensinar e aprender, são de extrema relevância para a consolidação dos estudos
educacionais, ou seja, escolares. Sabemos que a forma como cada sociedade representa e se
relaciona com o passado está intimamente ligado a fatores sociais, político e ideológicos da
mesma forma, os saberes docentes se constroem e reconstroem nos contextos históricos,
sociais e culturais. Tais saberes são permanentemente reelaborados pelos professores de
acordo com as contingências da prática, do contexto real e complexo do ensino ao qual estão
inseridos.

Profissão Docente, Prática Escolar e Cultural

Toda prática educativa é expressão de determinada concepção ou teoria do


conhecimento, e está relacionada a um momento histórico. Nesse sentido, observa-se que a
sociedade enfrenta hoje uma crise de paradigmas e exige cada vez mais da educação uma
reflexão sobre os aspectos sociais, culturais e políticos que sejam relevantes para o processo
de ensino e aprendizagem.
Assim torna-se necessário que ponderemos tendências epistemológicas presentes
no processo de ensino e aprendizagem desenvolvidos nas práticas docentes. Desta forma
consideramos importante investigar as referências teóricas das práticas pedagógicas utilizadas
pelos professores/as.
A sociedade certamente condiciona o valor social do professor de acordo com as
chamadas práticas docentes, levando em consideração as suas necessidades e interesses,
contextualizados numa determinada época, local e situação histórica. Segundo a crítica de
Bourdieu & Passeron (1975) a escola é a principal instituição responsável pela reprodução e
legitimação do capital cultural dominante, pois é ela que estabelece normas de conhecimento,
comportamento e linguagem.
Como meio vinculador entre docência e discentes, teoria e prática, tal
estabelecimento calcou-se por muito tempo em uma busca constante pela forma ideal de
ensinar, procurando fixar-se a paradigmas que mais facilmente conduzissem à aprendizagem.

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Para que isto aconteça de fato é preciso que vários fatores, tais como escola, professores,
propostas pedagógicas e currículos estejam adequados às necessidades de um corpo discente
visto como “...ser educável, sujeito ativo do próprio conhecimento, mas também ser social,
historicamente determinado, indivíduo concreto (síntese de múltiplas determinações), inserido
no movimento coletivo de emancipação humana” (LIBÂNEO,1994, p.128).
Essa emancipação deve refletir a postura docente, não apenas como um mero
profissional que desempenha com destreza todas as atividades que há muito foram tachadas
como “as mais adequadas”, mas como um profissional crítico, reflexiva possuidor de um
aporte científico e capaz de transformá-lo em recortes adaptados à prática didática, ou como
diria Perrenoud capaz de “fabricar artesanalmente os saberes tornando-os ensináveis,
exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de um sistema de
comunicação e trabalho.” (1997,p.25).
A partir dessa busca para propiciar uma real aprendizagem cabe ao professor
analisar o fato de que o sujeito precisa entender que aprender não é estar em contato com
acontecimentos, regras e posturas inflexíveis, e levar em consideração o que Brandão (1982,
p.140) et alii classifica de “revalorização dos fatores intra-escolares, mas já agora numa nova
perspectiva, uma perspectiva contextualizada, que busca a especificidade do pedagógico sem
ignorar a realidade sócio-econômica e política mais ampla e complexa na qual se acha
inserido”.
Por outro lado, compreender-se a cultura escolar não como produção separada da
vida cotidiana, nem da escola, nem do professor, mas ao contrário, ao nos propormos a
focalizar a investigação das práticas docentes, estamos imbuídos de uma concepção de cultura
como produção comum à experiência de todos os sujeitos (WILLIAMS.2000) inseridos nesse
complexo social, a escola, cujo domínio não se constitui em privilégio.
O fundamento ontológico dessas práticas sociais no trabalho nos permite captar o
movimento contraditório de sua constituição histórica na escola, pois objetivam o fim
teleologicamente posto pelos docentes nos diferentes momentos históricos. As práticas
escolares realizadas na particularidade da instituição escolar revelam as finalidades que os
docentes se colocam orientadas pelas alternativas que constituem na situação concreta em que
atuam.
Na tradição das práticas escolares do passado pode-se encontrar um horizonte para
o seu trabalho, referenciando-se a algo já conhecido e praticado. Nos parece que as
alternativas realizadas pelos sujeitos na escola se constituem, mediadas pela cultura escolar,
não diante dos postulados da legislação e programas em vigor, mas do desafio de formar as

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futuras gerações num mundo onde o emprego é restrito a poucos, restando para maioria, o
trabalho incerto e precário além de longos períodos de “ócio”.
Nesse contexto, ao nos perguntarmos quanto às finalidades que as práticas
profissionais acontecem nos indagamos sobre a relação dos sujeitos, individual ou
coletivamente considerados, com a cultura escolar; sobre a apropriação e objetivação que
os sujeitos realizam desta cultura e que revelam a constituição contraditória da profissão.
Desenvolveu-se a temática da constituição da profissão docente, considerando a
relação contraditória entre as práticas e a cultura que as orienta e que ao mesmo tempo é
reorientada pelas práticas destes sujeitos, numa sociedade que produz e reproduz a vida no
modo capitalista, ou seja, que se realiza sob a necessidade de reprodução do capital
trabalhado. A cultura e o sujeito na sua generalidade constituem-se inseridos nas relações
sociais fetichizadas das relações de troca sob a “ameaça” constante do impedimento de sua
realização propriamente humana, ao mesmo tempo em que a essência humana no trabalho
reafirma, contraditoriamente, a possibilidade de sua realização.
Assim, compreender o docente, sua profissão e os modos como exerceu seu ofício
de educador, ora mobilizando ora produzindo saberes e práticas necessárias ao processo de
ensinar e aprender, são de extrema relevância para a consolidação dos estudos dessa área.
Sabemos que a forma como cada sociedade representa e se relaciona com o
passado está intimamente ligados a fatores sociais, político e ideológicos, da mesma forma
que os saberes docentes se constroem e reconstroem nos contextos históricos, sociais e
culturais. Tais saberes são permanentemente reelaborados pelos professores de acordo com as
contingências da prática, do contexto real e complexo do ensino ao qual estão inseridos.
Finalmente, para que a possibilidade de que tal proposta de formação se efetive,
faz-se necessário que esta, esteja ligada a necessidade de compreensão da escassez do
processo de formação inicial e a necessidade prioritária da implementação da formação
continuada. Assim, entendo que a formação docente possa contribuir para a construção de
uma educação com qualidade que vislumbre como meta final o sucesso do aluno e a
transmissão da cultura.
Segundo Kemmis (1987), citado por Garcia (1998) isto não dependerá apenas de
uma instância ou do próprio docente, mas de um todo e da necessidade de:

[...] adotar uma perspectiva dialética que reconheça que as escolas não podem
mudar sem o compromisso dos professores, que os professores não podem
mudar sem o compromisso das instituições em que trabalham, que as escolas e
os sistemas são interdependentes e interativos no processo de reforma e que a

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educação só pode reformar-se transformando as práticas que a constituem”


(KEMMIS, 1987 ,p. 74. apud GARCIA, 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ter clareza acerca do papel cultural da escola é algo importante e necessário. No


entanto, é preciso, além disso, definir a maneira como esse papel é apontado nos programas
escolares e nas práticas dos professores. Mais do que definir o conteúdo cultural que integrará
os programas curriculares, é preciso sinalizar as orientações ou os princípios que guiarão as
escolhas culturais dos professores. Como serão desenvolvidas as práticas culturais e como
será encaminhado o processo de avaliação? Quais são as abordagens pedagógicas apropriadas
para favorecer o desenvolvimento cultura no meio escolar? Quais os espaços e tempos
apropriados para práticas dessa natureza? Questões desse tipo precisam integrar os programas
de reformas curriculares. Estas, por sua vez, não podem ser encaminhadas por um grupo
seleto e distante do contexto onde a prática pedagógica se desenvolve. Os professores, como
intérpretes e críticos da cultura, possuem conhecimentos que lhes permitem participar de um
processo de definição do papel e da perspectiva cultural do ensino que ministram.
Diferentemente disso, a onda de reformas nos últimos anos não tem deixado
muito tempo para que os professores assimilem as modificações introduzidas pelas propostas
oficiais. As mudanças encaminhadas, justamente por não contarem com a participação direta
dos professores no seu processo de elaboração, encontram neles próprios típicos obstáculos à
sua implementação. Se, por um lado, existem alterações na dinâmica curricular que agradam
aos professores, por outro existem modificações que não são bem aceitas. Principalmente
aquelas que interferem diretamente nas suas rotinas de trabalho.
Vivemos sob as expectativas de propostas que buscam alterar a estrutura escolar,
tais como: ciclos em lugar de série; avaliação continuada em lugar de aprovação ou
reprovação; classes de aceleração e/ou reorientação da aprendizagem buscando atacar a
distorção série/idade e as dificuldades generalizadas de aprendizagem; o ensino por
competências; o ensino com temas transversais; o trabalho com projetos educativos, e assim
por diante.
Nem todas as propostas são nocivas e buscam atravancar o trabalho pedagógico,
cuja especificidade reside na aprendizagem do aluno. Pelo contrário, algumas delas apontam
para direções bem interessantes. Todavia, o distanciamento entre a sua concepção e o

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envolvimento do professor acaba se constituindo em um elemento crucial para determinar seu


sucesso ou fracasso.
Como diz Arroyo (2000), é preciso “repor os mestres no lugar de destaque que
lhes cabe”. O professor, que mais parece um cata-vento que gira à mercê da última vontade
política e da última demanda tecnológica, precisa ser visto como sujeito central em qualquer
processo de reformulação curricular. Isto porque a atuação do professor implica na articulação
de uma gama de saberes construídos no cotidiano do seu exercício profissional, a partir dos
quais ele interpreta, compreende e orienta qualquer investida curricular no contexto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

BRANDÃO, Zaia et alii. O estado da arte da pesquisa sobre evasão e repetência no ensino de 1º
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Alegre: Artmed, 1998, p.54-76.

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paradigmas”. In: BRANDÃO, Zaia (org.) A crise dos paradigmas e a educação. São Paulo:
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perspectivas sociológicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997, p. 25.

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gênese e crítica de um conceito. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

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ARTE E ARQUITETURA RELIGIOSA POPULAR DO ANTÔNIO


VICENTE MENDES MACIEL, O ANTÔNIO CONSELHEIRO

Jadilson Pimentel dos Santos - UFBA

Antônio Vicente Mendes Maciel era obcecado pela edificação e restauração de igrejas,
capelas, cruzeiros e cemitérios. No início da carreira de pregador e guia espiritual, ele
estabeleceu como meta construir cerca de vinte e cinco igrejas pelo sertão do nordeste do
Brasil. Mesmo não tendo alcançado esse ideal, algumas de suas obras ainda subsistem.
Pautado em informações adquiridas em documentos, livros e imagens fotográficas, o presente
artigo tem como objetivo analisar quatro exemplares de igrejas construídas na Bahia, na
segunda metade do século XIX, pelo Conselheiro. Duas dessas igrejas desapareceram em
virtude da guerra de Canudos: Igreja de Santo Antônio e Igreja do Bom Jesus. As demais
encontram-se intactas: Igreja do Senhor do Bonfim, situada em Chorrochó e Igreja do Bom
Jesus, localizada em Crisópolis. Por último, serão interpretadas as soluções adotadas nessas
construções religiosas populares, bem como as influências de estilos, uso de materiais,
soluções decorativas, etc., a fim de resgatar a memória do patrimônio artístico popular do
sertão de Canudos, há muito tempo esquecida.

Palavras-chaves: Cultura Popular, Arquitetura Religiosa, Igrejas de Canudos.

INTRODUÇÃO

O acervo da cultura popular e da arte brasileira é um dos mais ricos das Américas.
Muito se tem discutido e estudado acerca de alguns de seus aspectos. Na década de 30, no
Brasil, houve especificamente, uma supervalorização do legado do sudeste, que via de forma
exacerbada a arte colonial mineira como a mais autêntica, e, portanto, merecedora de estudos
mais aprofundados.
Nesse ínterim de nacionalismo e patriotismo, os pesquisadores do patrimônio
brasileiro inclinaram-se para os estudos do período colonial e, desde então, ocupam-se com a
preservação, divulgação e conservação do legado barroco e rococó dos grandes espaços
urbanos do litoral, e das regiões mais abastadas.

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Sendo assim, pode-se constatar que na Bahia esse pensamento pode ser
confirmado. Fala-se muito nos debates e estudos da História da Arte em “Escola Baiana de
Pintura” e “Barroco Baiano”. Já o estilo neoclássico, nestas terras, sofreu o preconceito que se
configurou nas décadas de 40, 50 e 60 do século XX, preconceito esse que engrandecia o
barroco e impossibilitava os estudiosos de maiores aprofundamentos acerca da estética
oitocentista.
A imagem da Bahia barroca tem provocado uma atmosfera de idealização,
encantamento e de misticismo em torno da cidade do Salvador e região do recôncavo.
Segundo Freire (2006, p.11), “os baianos do interior possuem uma visão mística
da cidade da Bahia em razão da sua antiguidade, topografia, patrimônio edificado, maneira de
viver, culinária, demais marcas étnicas e capacidade de emanar novidades”. Para ele, a visão
mística da Bahia foi moldada a partir do conjunto patrimonial sacro da igreja católica,
sobretudo, o do barroco deslumbrante do interior da igreja do convento franciscano tão
difundido e propagado entre essa gente.
A cultura proveniente do barroco no Brasil, especificamente na Bahia, é uma
temática bastante explorada pelos estudiosos da história da arte. Já o interior e seus sertões
padecem pela falta de um estudo mais aprofundado no que concerne à arte, arquitetura
religiosa e cultura popular.
A região de Canudos é um exemplo típico desse alheamento. Embora se conheça
bastante a região devido ao flagelo da seca e da guerra, em termos de produção artística,
muito pouco, ou quase nada se conhece.
A história de Canudos, do Conselheiro e sua gente, é um tema por demais
discutido e analisado pela historiografia local, nacional e internacional. Prosadores, poetas,
pintores, historiadores, dentre outros, tem se ocupado em retratar e propagar a memória de
Canudos, mesmo que em determinados momentos da história tenham ocorrido movimentos
contrários à essa propagação.
Temas como: religiosidade, messianismo, milenarismo, sebastianismo,
socialismo, monarquia, república etc., tem sido a tônica desse episódio, ocorrido no interior
da Bahia no final do século XIX. Já a memória do patrimônio artístico material do Sertão de
Canudos encontra-se ofuscada em meio aos vários preconceitos e esquecimentos.
Tendo em vista essas abordagens, é nesse ambiente religioso, artístico e histórico
que, pretende-se estudar o acervo da arte e arquitetura sacra do sertão de Canudos construído
pelo beato Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro e sua gente.

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Pouco ou nada se disse acerca dessa arte. No livro Os Sertões (1902), escrito por
Euclides da Cunha, enviado pelo Jornal O Estado de São Paulo, percebe-se um fragmento do
capítulo cinco onde ele aborda sobre um dos templos da cidade de Canudos. Sua análise e
discurso, talvez, pelo fato de ser este, um escritor forjado na esteira do pensamento positivista
e determinista, é de incoerências e preconceitos com relação ao templo sacro erguido naquele
cenário. Também, horroriza-se com a arquitetura e o urbanismo do arraial, uma vez que
chama de “urbs monstruosa”, e “civitas sinistra do erro”.
Já as demais construções, erigidas nos confins do sertão da Bahia, pelo beato
Conselheiro, quando esporadicamente aparecem em alguns estudos, é apenas como pano de
fundo para ilustrar as andanças desse beato pelo sertão, ou o episodio brutal da guerra.
Portanto, um estudo apurado acerca das igrejas construídas pelo Antonio Vicente Mendes
Maciel, contando com estilos e influências, uso de materiais, soluções decorativas, é de vital
importância para se configurar como um capítulo novo na memória do patrimônio artístico
brasileiro.

Religião, Arte e História do Antônio Conselheiro

Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu em Quixeramobim, no Ceará em 1830.


Segundo Ornellas (2001), “este tinha o hábito de construir casas, e este hábito esteve presente
na vida do Conselheiro, quando tentou reconstruir a imagem do pai para poder reconciliar-se
com ela através das construções”.
Por seu repúdio à violência, amor à terra e ao trabalho, religiosidade e
solidariedade aos mais fracos, Antônio, atraiu uma vasta população. Segundo Barros (1988),
sendo um autodidata, limitado politicamente pelas fronteiras de seu mundo, este carregava
perplexo a dor das injustiças de sua vida , o genocídio de um povo que, em suas esperanças,
apenas tentava viver a palavra de Deus na terra: rezar, trabalhar e fazer o bem.
Antônio Conselheiro era fascinado pela construção ou reparo de igrejas e
cemitérios. Sendo o pai mestre de obras, Antônio possuía, também, noções de construção.
No começo de suas perigrinações pelas terras do sertão, tinha uma promessa de
construir longe das terras do Ceará, vinte e cinco igrejas. Muitas dessas igrejas ainda se
encontram intactas como as dos municípios de Crisópolis e Chorrochó.
Possivelmente foi influenciado pelo padre Ibiapina, lendário missionário que
construiu templos e casas de caridades em vários Estados nordestinos. Antes de se fixar em

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Canudos, sua vida era feita de constantes andanças pelo sertão. Sempre seguindo pelas
estradas, e sempre se oferecendo para construir e reformar igrejas, cemitérios e açudes em
muitos lugares esquecidos e abandonados por onde passava. Entre os fiéis não faltavam
voluntários para ajudá-lo nesse mister.
No que concerne às suas construções, seu universo circunscrevia-se a lugares
longínquos do interior do nordeste, basicamente o sertão da Bahia, com algumas incursões a
Sergipe.
Dentre as localidades nas quais Conselheiro edificou e reformou igrejas podemos
destacar: Aporá, Biritinga, Canudos, Chorrochó, Crisópolis, Esplanada, Itapicuru, Nova
Soure, Olindina e Rainha dos Anjos na Bahia, e Tobias Barreto e Simão Dias em Sergipe.
De acordo com Hoornaert (1998), o beato Antônio Conselheiro andava com a
edificação de igrejas em seu pensamento, sendo que nelas enxergava possibilidades muito
mais amplas que a imensidão dos sertões que percorria. Embora tivesse o dom especial de
reunir pessoas e construir açudes, muros de cemitérios, canais de irrigação e cacimbas, o que
gostava mesmo era de construir igrejas.
Em algumas de suas prédicas, editada por Nogueira (1978), Conselheiro fala com
entusiasmo sobre a construção e edificação do templo de Salomão: “70.000 operários
carregadores de material e 80.000 a cortar pedra nos montes e 3.6000 feitores a inspecionar as
obras, e 2.000 israelitas a andar pelo Líbano, cortando cedro e faias”.
Como se pode notar, este era o sonho que alimentava e enchia de esperança a
todos: trabalhar com muita gente na construção da igreja.
Hoorneart (1998, p.16) comenta que:

A igreja é um reflexo terrestre do mundo divino. Torna esse conturbado


mundo inteligível e até certo ponto aceitável, pois é lugar de real presença
divina, o centro do mundo, onde tudo nasce. Suas pedras são cristalizadas de
atividades celestes, sua torre eleva-se até a habitação de Deus. Antônio
Vicente sonha com imensos espaços sagrados, imagina-se marchando em
direção ao indizível através de uma geometria traçada por suas próprias
mãos. O templo de Salomão é modelo de um mundo geométrico que o Beato
atravessa em seus sonhos. A tosca igreja de pedra é a “cidade de Deus” da
qual os cristãos são as pedras. É o horizonte de sua própria compreensão do
mundo. A igreja define o mundo.

Nesse sentido, as imprecações moralizantes de Antônio Vicente devem ser


corretamente entendidas em relação ao fascínio religioso diante do qual todo o resto é apenas
vaidade. Efetivamente, depois de anos de indecisão, a vida de Antônio Vicente, a partir de
1874, toma um rumo seguro através da construção de igrejas.

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Igrejas de Belo Monte (Canudos)

Na Canudos velha, ou Belo Monte, existiam duas igrejas erguidas pelo


Conselheiro e seu povo. Localizada no centro de Belo Monte, essas igrejas marcava o espaço
da cidade mais sagrado. Ao cair da tarde todos se dirigiam para esses santuários para
professar seus credos, e dirigir suas preces aos céus.
As duas igrejas, nesse cenário, estavam situadas uma de frente para a outra. Tal
resultado, segundo Toledo (1999) chega a ser emocionante. Pra ele, a praça de Belo Monte é
a Teotihuacan sertaneja. O paralelo com as ruínas do México é justificado pela disposição
geométrica em que as duas igrejas se encontravam, pela amplidão da praça entre elas, longa,
de 100 metros, contados entre uma fachada e outra, e pelo teor sagrado que um dia revestiu o
local.
Dessas igrejas abordadas, existem apenas ruínas submersas no açude Cocorobó,
concluído no final dos anos 60, e, que por sinal, inundou uma área extensa, cobrindo toda
Canudos. A análise desses templos será feita, contudo, através de algumas imagens feitas pelo
fotógrafo Flávio de Barros enviado em 1897 a Canudos, e que viveu o privilegio de
documentar com uma câmera fotográfica, o episódio da guerra, e pela escrita de Euclides da
Cunha em seu célebre livro Os Sertões.
Foi, também, nas igrejas, que concentrou-se a resistência conselheirista, em
particular nos últimos dias de combate, quando, enfim, despencou o campanário da igreja
velha. Extinto o último foco de resistência do arraial, as igrejas apresentavam-se furadas de
balas, de tiros de canhão e com raras paredes em pé.

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Igreja de Santo Ântonio, A Velha

Foto 1: Fachada da Igreja de Santo Antônio, em Belo Monte


Fonte: Arquivo Histórico do da República – RJ

A respeito da Igreja de Santo Antônio, há, contudo, controvérsias acerca do ano


de seu término. Sendo a primeira erigida naquele cenário, esse santuário foi edificado no lugar
onde existia uma pequena igrejinha quase em ruínas, erguida por gente da Torre de Garcia
D’Ávila.
Segundo Fontes (2007), os freis Evangelista Do Monte Marciano e o padre
Vicente Sabino, testemunharam o trabalho de conselheiristas na construção do templo do
Bom Jesus, na praça das igrejas. Sendo assim, Canudos possuía ,em 1896, quando foi
deflagrada a guerra, um santuário e as Igrejas de Santo Antônio e do Bom Jesus, esta, não
concluída.. O templo cujo oráculo era Santo Antônio, fora concluída nos primeiros meses de
1993, idealizada pelo Conselheiro e sagrado pelo padre do Cumbe, Vicente Sabino dos
Santos.
Já Pinheiro (2007) assevera que através da análise minuciosa da fotografia de Flávio
de Barros, e devido a ampliação da referida fotografia, pode-se constatar através da inscrição
que localizava-se na fachada, que o ano ali registrado, tratava-se de 1896. Sendo este o ano,

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resulta que a Igreja de Santo Antônio não estava pronta em 1993, como afirmam diversos
estudiosos.
Apresentando uma fachada com três portadas, esse templo, lembra a estrutura
simples de outra igrejinha do sertão: Igreja do Bom Jesus de Crisópolis edificada
anteriormente.
Nela percebe-se uma estrutura frágil e delicada. Sua planta compacta apresentava-
se direcionada para um pedestal encimado por uma cruz. Nesse pedestal lia-se a seguinte
inscrição: “A.M.M.C.”, que significava, Antônio Mendes Maciel Conselheiro.
O uso recorrente do cruzeiro na frente da igreja, muito comum no interior, era
comum nos templos da ordem franciscana.
Segundo Bazin (1983, p.151), “o culto franciscano pela paixão levou-os a colocar,
diante do frontispício, uma grande cruz que servia às procissões da via-sacra, especialmente
durante a Semana Santa”, segundo esse autor o tema da cruz, possibilitava todo um
desenvolvimento arquitetônico.
A fachada desse templo apresenta decoração em volutas graciosas que nos remete
ao décor Barroco/Rococó. No eixo do frontispício, ergue se sobre o topo da construção uma
cruz de madeira.
No lado esquerdo, elevava-se uma compacta e graciosa torre-campanário, donde
soavam as melodias do sino atraindo os fiéis para os momentos das preces. Contrapondo o
pensamento e visão equivocada de Cunha (2002, p.) que afirmava que a edificação de Santo
Antônio era frágil, pequena, de aspecto modestíssimo, podemos constatar que tais idéias não
se confirmam. Pelo contrário, erguida e talhada naqueles confins do sertão, levando em
consideração as adversidades, pode-se concluir que esse templo, configura-se como um
milagre da arquitetura dos sertanejos.

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Igreja do Bom Jesus, A Nova

Foto 2: Fachada da Igreja do Bom Jesus, em Belo Monte


Fonte: Arquivo Histórico do da República – RJ

Pelos relatos e documentos encontrados, esse templo não chegou a ser concluído.
A igreja nova em cujas torres incompletas e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para
alvejar os inimigos, e que por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do
canhoneiro dos soldados. Quando caiu enfim a igreja nova, no finzinho da guerra, houve
grande manifestação de júbilo entre os soldados, Aproximava-se do desfecho da bizarra
guerra que teve por centro essa igreja.
Talhada no centro da cidade, esse templo foi vítima de muitas discussões. Muitas
pessoas que por Belo Monte passavam, diziam que a Igreja do Bom Jesus era uma construção
de grande proporção e imponência.
A escrita de um dos grandes escritores do Pré–Modernismo, quando trata desse
templo, é tomada de equívocos e preconceitos. Em sua obra Os Sertões, Cunha (2002, p. 184)
afirma que;

Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo


da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras , espessas,
recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria essa feição
anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadia de um gótico
rude e imperfeito, o transfigurassem.

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É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos
edifícios de que fala Busset...
Decia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema
fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços
débeis das mulheres e das crianças. Cabia a forma dúbia de santuário e de
antro, de fortaleza e de templo, irmanado no mesmo âmbito, onde ressoariam
mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos
rancores...
Delineara-a o próprio velho conselheiro. Velho arquiteto de igrejas,
requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida
para o levante , aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções,
sem regras: de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas
impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas: rasgada de ogivas
horrorosas, esburacadas de torneiras; informe e brutal, feito a testada de um
hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e a cal, a própria
desordem do espírito delirante.

Igreja do Senhor do Bonfim em Chorrochó e Igreja do Bom Jesus em


Crisópolis

Foto 3: Igreja do Senhor do Bomfim em Ccorrochó


Fonte: Antônio Olavo

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Foto 4: igreja do Bom Jesus em Crisópolis


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cris%C3%B3polis

A Igreja de Chorochó foi erguida, tendo em sua frente, também um cruzeiro encimado
em uma base murada. Construída em 1855 pelo Antônio Conselheiro, que fazia suas
pregações no cruzeiro.
A fachada dessa igreja lembra a de Santo Antônio de Canudos. Apresenta três
portadas e frontispício decorado com volutas em s, ladeadas por duas pequenas torres
pontiagudas. No lado esquerdo, uma parede funciona como torre-campanário. No alto das
portadas três janelas estão dispostas em simetria. O estilo da fachada lembra, contudo, o estilo
rococó.
A cidade que hoje leva o nome de Crisópolis, fundada por ele próprio, no ano de
1880, com o nome de Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seus seguidores, tem a sua
praça central, uma igreja de sua lavra. Do séqüito do Conselheiro faziam parte pelo menos
dois mestres de obras, Manuel Fustino e Manuel Feitosa. A igreja de Crisópolis obedece a um
desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa de suas paredes
internas, pendura-se um medalhão com a inscrição “só Deus é grande”, o dístico favorito do
Antônio Conselheiro.
O frontispício dessa construção apresenta uma única portada encimada por três
janelas. No alto, três torres triangulares apontadas para o céu lembram o estilo gótico. Sua
portada e janelas apresentam o arco ogiva, típico desse estilo. Também possui em sua frente
um cruzeiro encimado em uma base decorada e murada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Pesquisar as igrejas do Conselheiro suscitou alguns pontos que ainda não tinham
sido notados pelos historiadores da arte. A partir do momento em que se estudou essas
construções, pode-se abarcar mais deduções a respeito do patrimônio histórico e artístico do
sertão por onde andou Conselheiro e edificou obras.
Resgatar o patrimônio do sertão de Canudos é vital para a história do nosso país,
pois aquele lugar não era um refúgio de fanáticos, malfeitores e preguiçosos, imagem que
muitos tentaram difundir. Pelo contrário, ali progredia uma cidade tranqüila e labutadora, de
habitantes que se dedicavam a todo tipo de oficio, inclusive o artesanato. Ali era o lugar e o
refúgio de muitos camponeses que eram expulsos de suas terras e perseguidos. Canudos
acreditava numa cidade ideal, numa existência feliz e próspera.

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A BENEFICENTE DOS “ARTISTAS” SANTANTONIENSES

Eliane Menezes – UNEB


elianemenezes_saj@yahoo.com.br

Enfocando a história local e fazendo uso, sobretudo, da metodologia da história oral como
uma fonte que possibilita ressignificar e valorizar as experiências e memórias de sujeitos
“excluídos da história”, o mutualismo praticado na Sociedade Beneficente dos Artistas
Santantonienses, fundada, em 1928, na cidade de Santo Antonio de Jesus-BA, - Recôncavo
Sul baiano - tornou-se assunto digno de ser historicizado. Intento apresentar esta Instituição
que surge da união de 73 trabalhadores “por conta própria” ao firmarem entre si um sólido
pacto de assistência mútua e defesa comum, visando se precaver das adversidades que
envolviam luta cotidiana pela sobrevivência, num período em que trabalho/emprego e
incertezas caminhavam paralelamente. A análise evidencia o cotidiano da Associação e as
ações dos sujeitos sociais que souberam criar e recriar comportamentos e atitudes, elaborar e
reelaborar símbolo que traduziam suas identidades, suas crenças, seus valores ao compor
uma Agremiação que assegurava aos participantes e familiares condições de sobrevivência,
principalmente quando, por circunstâncias independentes de sua vontade, perdiam seus
meios de subsistências.

Palavras chave: Ajuda Mútua, Precaução, Sociabilidades

com a palavra o Snr. Antonio Augusto dos Santos, tratou sobre o estado de
saúde do consórcio Augusto Dias e opinou que a casa devia estipular uma
importância mensal para o mesmo, submetendo a discussão, resolveu-se
nomear uma comissão para no dia seguinte ir a casa do referido Sr. afim de
explicar os direitos que lhe assiste nos estatutos, para de acordo com o
mesmo, lhe ser feito a entrega de certa quantia mensal ou semanal. 1363

A epígrafe acima é um trecho extraído do livro de atas da Sociedade Beneficente


dos Artistas Santantoniense. Trata-se de temores como a invalidez por trabalho ou velhice, a
indigência, a morte, o ter que viver da caridade alheia que no passado levaram milhares de

1363
Livro de Atas da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Ano 1955. p. 198. Arquivo da SBAS.

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trabalhadores, por conta própria, em diversas partes do mundo, a criarem entidades com
funções previdenciárias. Particularmente em relação aos trabalhadores contemporâneos
europeus, eles buscaram formas coletivas de relacionamento ao formarem sociedades para
proteger seus interesses e para proporcionar auxílio social uns aos outros em uma época em
que os direitos humanos eram desconsiderados.1364 Surgiram, assim, as sociedades
mutualistas, por predominante iniciativa de trabalhadores autônomos sob um “sistema por
meio do qual várias pessoas se associavam e iam cotizando-se para a cobertura de certos
riscos, mediante a repartição dos encargos com todo o grupo”.1365 Na visão de Foot Hardman
e Victor Leonardi, o objetivo dessas Associações era a sobrevivência, “o que se tentava fazer
organizando o socorro mútuo em caso de doenças e de acidentes ou a ajuda pecuniária nos
anos de velhice e em caso de enterro de parentes próximos, etc.”.1366

No Brasil faltava uma legislação que protegesse o trabalhador, sobretudo, o


trabalhador “por conta própria”. Durante o período Colonial e Imperial, assim como em toda a
República Velha (1889-1930) em que vigorou a Constituição de 1891, pouco houve inclusão
de direitos ou justiça social aos trabalhadores. Adoecer, envelhecer, morrer são etapas na vida
humana que pesa muito financeiramente para pessoas desprotegidas – sem assistência alguma.
Trabalhadores que não puderam contribuir participando de uma associação beneficente
viveram, permanentemente, a insegurança do presente e a incerteza do futuro.

Um número significativo de trabalhadores no Recôncavo Sul da Bahia, na década


de 20 do século XX, assim como em outras regiões do País, não dispunha de mecanismos de
proteção social por parte das esferas públicas nem de setores privados, o que se traduzia em
uma vida de temor e insegurança. Então, em Santo Antonio de Jesus, um grupo composto por
73 trabalhadores fundaram uma Agremiação autônoma e a organizaram de forma que, através
da partilha de todos, fosse possível prestar a seus membros vários serviços de caráter social
que a então municipalidade era incapaz ou não queria fazê-lo. Segundo Tânia Regina de
Lucca, nesse tipo de Agremiação o associado sabia de antemão “que tipo de direitos estava
adquirindo ao filiar-se à entidade e em que circunstâncias poderia requerê-los”.1367

1364
Para uma discussão sobre o assunto ver HOBSBAWM, E. J. Os Trabalhadores: estudos sobre a história do
operariado. Rio de Janeiro: 1981 e Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. Rio de
Janeiro: 1987; PERROT, M. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio de
Janeiro: 1982; THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: 1987.
1365
MARTINS, S. P. Direito da seguridade Social. 16ª ed., São Paulo: 2001. p. 29.
1366
HARDMAN, F. F. e LEONARDI, V. História da Indústria e do Trabalho no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
1991. p. 100.
1367
DE LUCCA, T. R. O sonho do futuro assegurado: o mutualismo em São Paulo (1920-1934). São Paulo:
Brasília: 1990. p. 165.

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Com objetivo especificamente assistencialista, pois nunca saiu do marco do


mutualismo, esses trabalhadores, temerosos em ficar vulneráveis e sucumbir na miséria,
firmaram entre si um pacto solidário de assistência mútua e de defesa coletiva fundando em
09 de setembro de 1928, sob a proteção de Santa Luzia, a Sociedade Beneficente dos Artistas
Santantonienses, congregando, inclusive, “artistas e profissionais que não têm arte”.1368 Esse
grupo tomou para si a incumbência de cuidar da saúde do mutuário, garantir seu sustento
quando impossibilitado de executar sua atividade laboral, zelar pela família daquele que
falecesse, encarregar-se do funeral dos membros, assistir juridicamente e organizar a
solidariedade a sócio preso, prestar assistência a pessoas carentes não pertencentes ao seu
quadro social e, ainda, extra Estatutos, proporcionar instrução aos sócios e seus filhos e
possibilitar oportunidades de recreação aos sócios e à comunidade em geral, num momento
em que a “maioria da população Santantoniense vivia de expedientes temporários num
mercado de emprego instável”.1369
Evidenciando a heterogeneidade do mundo do trabalho, na “Beneficente dos
Artistas”, marceneiros, ferreiros, alfaiates estivadores, tipógrafos, músicos, homeopáticos,
comerciantes, carpinteiros, pintores, pedreiros, ajudante de pedreiros, funileiros, mestre-de-
obras, ouriveres, enfermeiros, cabeleireiros, ambulantes, comerciários, sapateiros, chapeleiros,
professores, barbeiros, empresários e condutores de veículo de tração animal foram os
primeiros profissionais a compor a Entidade que surgiu abrangente por conter, já no seu
primeiro Estatuto, permissão à participação em seus quadros sociais de profissionais de
diversos ofícios e categorias profissionais sem distinção de cor, gênero, estado civil,
naturalidade, condição social ou correntes filosóficas apesar da nomenclatura “Sociedade dos
Artistas”.
Em Santo Antonio de Jesus, com exceção da Sociedade União Caixeiral, fundada
em 11 de junho de 1920, como um instrumento de defesa e de amparo mútuo dos seus
membros1370 e que se findou 04 anos depois, inexistia entidade mutual com o mesmo caráter.
A Sociedade Beneficente União das Artes, fundada em 11 de maio de 1904, funcionava como
Grêmio Literário. A Sociedade São Vicente de Paulo, instalada em 18 de julho de 1915,
assumia o compromisso de assistir caritativamente a pessoas com dificuldades de ordem
econômica. E a Santa Casa de Misericórdia de Santo Antonio de Jesus assinou compromisso,
em 02 de maio de 1918, com a pretensão de minimizar problemas de saúde da população

1368
Estatuto da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Ano 1928. Impresso em 1932. p. 5. Arquivo
da SBAS.
1369
Jornal O Paládio. Santo Antonio de Jesus – BA, 23 de maio de 1947. p. 2. AP.
1370
Jornal O Conservador. Nazaré – BA, 19 de setembro de 1920. p. 2. Arquivo da BPEB.

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carente que até então vivia a mercê da própria sorte prestando serviços hospitalares.1371
Portanto, creio que os “artistas santantonienses” inspiraram-se no modelo secular de entidades
mutuais existentes ou que existiram na Bahia e no Brasil como um todo, além das “confrarias
e irmandades que embora de origem religiosa, cumpriam um papel assistencial entre os
associados que se ajudavam mutuamente em caso de dificuldade de origem material”.1372 As
corporações de ofícios se reuniam em torno da defesa de interesses profissionais, e as
confrarias e irmandades tinham objetivos religiosos.1373
Com esse perfil, “as ‘associações mutualistas e de socorro mútuo’ foram as
primeiras formas de organização de classe e surgiram na primeira metade do século XIX”.1374
Assim, é curioso o surgimento de uma associação com propósitos mutualistas e/ou
beneficente em Santo Antonio de Jesus, na terceira década do século passado, quando as
associações com o mesmo caráter, no Brasil, começaram a fechar suas portas ou cederam
espaço para outros tipos de organizações. Nesse período surgiram as ligas operárias e os
sindicatos. Os sindicatos “além do tradicional e distintivo fundo de greve tinham uma caixa de
auxílio mútuo, posto que a mesma, era, via de regra, uma atividade secundária neste tipo de
organização, destinada fundamentalmente à luta econômica”. 1375
Na conjuntura de 1928, a previdência social em terras do Recôncavo Sul era
praticamente ausente. Na época, não era de abrangência à maioria dos trabalhadores da cidade
da Capela benefícios como aposentadoria, pensão para os familiares, férias ou descanso
semanal remunerado, indenização por doenças ou acidente de trabalho, isto para os poucos
que tinham vínculo empregatício. Para os artesãos – trabalhadores livres – restou, àqueles que
podiam, a participação na associação que tinha como objetivos fixados pelos associados a
ajuda mútua e o auxílio aos necessitados. Essas preocupações mantêm-se na memória como
justificadora da fundação da “Beneficente dos Artistas” no entendimento do associado Valdir
Manoel Moreira de Araújo. Dida, como é apelidado, é comerciário, tem 48 anos de idade e
cresceu freqüentando o espaço social da Entidade. Aos 18 anos, dela começou a fazer parte na

1371
Sobre a efervescência nas artes cênicas, recreativa e a beneficência em Santo Antonio de Jesus do início do
século XX, consultar A serviço do Brasil: a trajetória de Rômulo Almeida de autoria de SOUZA, Aristeu e
ASSIS, J. Carlos de. Rio de Janeiro, 2006. p. 35.
1372
HARDMAN, F. F. e LEONARDI, V.Op. cit., p. 100.
1373
Segundo Kátia Maria Queiroz Mattoso, “as confrarias religiosas eram associações leigas. Destacavam-se,
entre elas, as irmandades (no Brasil, reminiscências das antigas corporações portuguesas de arte e ofícios) e as
ordens terceiras ligadas às ordens religiosas tradicionais, especialmente aos franciscanos, carmelitas e
dominicanos”. Ver: MATTOSO, K. M. Q. Bahia, Século XIX: uma Província no Império. Rio de Janeiro. 1992.
p. 397.
1374
SEGATTO, J. A formação da classe operária no Brasil. Porto Alegre: 1987. p 35.
1375
CASTELLUCCI, A. A. S. Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921).
Salvador: FIEB, 2004. p. 323.

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categoria de sócio Contribuinte. Ininterruptamente prestou serviço por 20 anos à Entidade e


conquistou o título de sócio Remido. Ele assim narra: “… beneficiar o trabalhador. De que
forma? Um amparo médico, né? Era colher fundos para amparar na necessidade do artista e
de outros trabalhadores da cidade que dela tivesse interesse em fazer parte”.1376
Ao ser questionado sobre quais motivos teria levado um grupo de trabalhadores a
fundarem uma associação visando ajuda mútua em Santo Antonio de Jesus, no ano de 1928,
Seu Amarílio Monteiro Orrico, ex-alfaiate, freqüentador assíduo da Entidade, sem, contudo,
nunca ter buscado vinculação, aos 93 anos e falando como memorialista local, construiu uma
narrativa marcada por fortes indícios para se pensar a Instituição como espaço de convivência
mútua e proteção coletiva:

A imperiosa necessidade de uma garantia de vida, quando na velhice, para


que aqueles que desprovidos de bens materiais não fossem obrigados a
estender a mão à caridade pública... Não existia previdência social. Daí a
idéia da criação da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses com
fins beneficentes...1377

Vê-se como ambas as narrativas, de Seu Valdir e de Seu Amarílio, justificam o


surgimento da Associação pela ausência de Leis protegendo o trabalhador no Brasil nas
primeiras décadas do século XX, e como a preocupação com o destino da própria vida e dos
familiares dos associados era tema constante.
Na mesma perspectiva, Seu Félix José do Sacramento, atuando profissionalmente
na área da música e da marcenaria, buscou vinculação na Entidade na década de 30 do século
passado na categoria de sócio Efetivo. Inválido e acometido por problemas de saúde, antes de
deixar de viver aos 96 anos, em outubro de 2005, rememorou ter recorrido a uma associação
beneficente por visar proteção caso se achasse impossibilitado de prover os meios de
subsistência pessoal e familiar. Assim estaria protegido de algum “apuro” em caso de
necessidade por ser um cidadão sem acesso a leis protecionistas, mesmo após a instituição de
algumas Leis sociais no Brasil. Assim ele conta:

Eu sempre gostei de ter participação nestas coisa. Participei da Amantes da


Lyra porque gosto muito de música. Decidi participar da Sociedade dos
Artistas lá pela década de 1930, eu não me lembro o ano, eu não me
lembro... Mas foi porque sempre fui um homem de trabalhar livre e ali
estava a garantia de me proteger e proteger a minha família porque ela é
beneficente. Eu entrei num tempo em que nem tava vigorando a Lei do

1376
Depoimento de Valdir Manoel Moreira de Araújo. 10/02/03.
1377
Depoimento de Amarílio Monteiro Orrico. 08/07/02.

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Trabalho de Vargas. Depois dessa Lei, ela não me garantia nada porque
como marceneiro, eu era profissional por conta própria, sabe? Não tinha
nenhuma Lei que me protegesse. Aí, essa Associação podia me tirar de
algum apuro.1378

A doença, a invalidez e a velhice eram sinônimos de desemprego e miséria,


sobretudo, para o empregado do setor privado e do autônomo de uma urbe que enfrentava as
marcas físicas da pobreza que era constantemente publicizada pela imprensa.

O número de mendigos que perambulam pelas ruas santantonienses e ficam


a esmolar o pão de cada dia vem se tornando, nos últimos tempos,
volumosos. As autoridades devem olhar para essa calamidade. O povo
precisa de emprego. Com emprego qualquer pai de família pode ter o fio de
esperança de viver dignamente sem ter que passar pela humilhação de ser
um pedinte. Isso requer uma forte intervenção das autoridades
responsáveis. 1379

A figura do mendigo é sempre definida de forma bastante difusa, podendo


significar o pobre, o desempregado temporário, o trabalhador enfermo, o menor abandonado,
o velho, enfim, as parcelas pobres, desocupadas e desamparadas da força de trabalho. A
situação de mendigos, pedintes, maltrapilhos detectada na Terra das Palmeiras e publicizada
pela imprensa é cobrada como uma responsabilidade dos poderes públicos. De fato, a
assistência aos desamparados é uma obrigação da Administração pública que arrecada
impostos para as obras sociais. A ela compete, sem dúvida, fazer asilos, fornecer alimentos,
médicos e medicamentos aos necessitados, oferecendo um ambiente de bem-estar e conforto
moral. Possivelmente, por força de recursos orçamentários insuficientes, o poder municipal
mostrava-se impotente sem saber organizar uma assistência social capaz de evitar a miséria
humana exposta nas ruas e nem viabilizar mecanismos para majorar a oferta de emprego
atraindo fábricas, indústrias, o que, de certo, minimizaria a situação da pobreza.
Habituados ao quadro tétrico de infelizes irmãos percorrendo as portas dos lares e
das lojas implorando a caridade, os sócios fundadores da “Beneficente dos Artistas” se
preocuparam, principalmente, com a defesa dos membros participantes, na doença, na
invalidez e na morte. No plano de ação da Agremiação Santantoniense consta: “prestar
socorro aos associados; defendê-los quando lesados nos seus direitos; protegê-los e socorrê-

1378
Depoimento de Félix José do Sacramento. 18/02/03
1379
Jornal O Paládio. Santo Antonio de Jesus – BA, 14 de junho de 1925. p. 3. AP.

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los pecuniariamente no caso de moléstia; prestar auxílio farmacêutico, funerário e


invalidez”.1380
O custo para o atendimento às diversas necessidades apontadas acima foram
provenientes das contribuições mensais, jóias, mensalidades, investimentos, bingos, rifas,
quermesses, doações, subvenções municipais, estaduais e federais etc.
O rumo que foi tomando a Entidade no transcurso do tempo, com a diminuição na
procura de interessados em associar-se e a conseqüente dificuldade financeira pode ser a
causa da supressão do compromisso de “prestar benefícios até mesmo a pessoas carentes fora
do seu quadro”1381 dos Estatutos reformulados e aprovados em Assembléia Geral, realizada
em 30 de dezembro de 1964. Seu José Elias Silva Santos, 89 anos de idade, sócio ingresso na
categoria de Contribuinte desde o ano de 1952, atualmente aposentado após ter atuado na
função de auxiliar de escritório de uma empresa privada e gerenciado a empresa de Luz e
Força e o Centro de Abastecimento da Prefeitura Municipal, justificou o ato num tom
explicativo carregado de preocupação com o rumo da Entidade:

Bom, ela só pode se preocupar com os associados porque com a comunidade


em si ela não tem condições de se preocupar porque as despesas são muito
amplas... Quer dizer, a sociedade em si fica de fora. A Sociedade que se diz
Sociedade é aquele grupo que está fazendo parte dentro da Sociedade dos
Artistas. A Sociedade em si é um grupo fora da Sociedade. Tudo é sociedade
e a gente não pode atender essa área. Foi por isso que se achou por bem
mudar o Estatuto nesse sentido. Como assumir responsabilidade com os
problemas externo a ela? Não dava mais.1382

A Instituição era de cunho social e foi fundada com esse propósito. A disposição
estatutária meritória de abarcar sócio/sociedade, que sem dúvida a engrandecia, tornava-a
abrangente e com a ampla incumbência de assumir resolução de problemas de pessoas
carentes, extrapolando o conjunto de associados. As dificuldades financeiras e o desinteresse
da própria comunidade em buscar vinculação (isso em função de mudanças lentas, mas
significativas, no panorama da seguridade social por parte das esferas públicas e de setores
privados), afloram na memória de Seu José Elias, remetendo-o ao tempo em que precisou
fazer mudanças no Estatuto: “Como assumir responsabilidade com os problemas externo a
ela? Não dava mais”. Nesse caso os serviços prestados dirigiram-se exclusivamente àqueles
que contribuíam de maneira efetiva e pontual com o cofre da Sociedade.

1380
1° Estatuto da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Impresso no ano de 1932. Capítulo I.
Art. 3°. p. 2. Arquivo da SBAS.
1381
Idem.
1382
Depoimento de José Elias Silva Santos. 08/02/03.

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Quando a Beneficente de Santo Antonio de Jesus foi fundada já havia inúmeras


Sociedades com a mesma finalidade na Bahia, inclusive muitas delas extintas. No Recôncavo
baiano são conhecidas as de Cachoeira, Cruz das Almas, Muritiba, São Félix e Nazaré. Em
Salvador, Mª Conceição B. da C. e Silva afirma que entre 1832 e os primeiros anos do século
XX apareceram “pelo menos dezoito entidades com objetivos mutualistas, reunindo diversas
categorias de trabalhadores”. Todas, segundo a autora, “buscavam assistir os associados na
doença temporária, na invalidez e até na prisão, em que pesem os limites impostos a esse
último caso, e ainda a ajuda ou pensão aos familiares sobreviventes”. 1383
Em trabalho publicado no ano de 2004, o historiador Aldrin A. S. Castellucci,
embora chame atenção para a não existência de um estudo completo para o período (1832-
1930), catalogou um número superior a 130 associações com fins cooperativos, mutualistas
e/ou beneficentes no Estado da Bahia,1384 sendo que a maioria encontrava-se na capital,
Salvador. O elevado índice de associações mutuais, que ofereciam algum tipo de auxílio para
associados impossibilitados do exercício laboral temporário ou definitivamente, traduz a
situação de penúria a que estava submetida a classe trabalhadora baiana. Para esse autor,

… o socorro mútuo foi uma prática que surgiu por volta de 1832 na Bahia e
se manteve enquanto fenômeno social significativo até o pós – 1930,
convivendo e se desenvolvendo de modo distinto e paralelamente aos
sindicatos de resistência criados durante a Primeira República, não mantendo
nenhuma relação de anterioridade com estes sindicatos mesmo porque os
dois modelos de organizações possuíam objetivos diferentes. 1385

De Lucca, ao estudar o auxílio mútuo em São Paulo e na cidade de Santos,


afirmou que o mutualismo não deu origem nem se confunde com o sindicalismo. Pelo
contrário, houve uma coexistência no tempo e no espaço dessas formas de organização. E
revela:

Sindicalismo e mutualismo são, portanto, fenômenos contemporâneos e não


excludentes, ainda que nem sempre seja possível demarcar fronteiras claras
entre eles. Se, de fato, podem-se encontrar casos de sindicatos originados a
partir de antigas sociedades de auxílio, isso não subordina todo um
movimento a outro. Em contrapartida existem exemplos de sindicatos que

1383
SILVA, M. C. B. da C. e. O Montepio dos Artistas: elo dos trabalhadores em Salvador. Salvador: 1998. p.
23 e 38.
1384
Ver os anexos da obra Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921).
CASTELLUCCI, A. A. S. Op. cit., p. 323 a 329.
1385
Idem. p. 163-164.

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passaram a se dedicar exclusivamente a atividades beneficentes, não se


concluindo daí que a beneficência teria suplantado o sindicalismo. 1386

O panorama do mutualismo no Brasil indicado por esses estudos sustenta a


curiosidade anteriormente apontada: enquanto em alguns pontos do Brasil as iniciativas desse
tipo entram em crise e fecham suas portas ou se adéquam à nova realidade, surge em 1928
uma associação fundamentalmente assistencial em Santo Antonio de Jesus. Tal iniciativa é
passível de explicação: a cidade não foi atingida pelas transformações industriais ocorridas
em algumas localidades do Brasil nas primeiras décadas do século anterior.
Os homens que tomaram a decisão de criar a Agremiação santantoniense, –
“visando um auxílio numa hora de necessidade”,1387 – e a normatizaram com regras e leis
registradas em Estatutos, podem ter ido buscar inspiração nos regulamentos de entidades
similares que existiram ou permaneciam existindo no País e em especial nos arredores
baianos. O sócio Benfeitor da Entidade, Seu José Reis Filho, Advogado, 50 anos de idade,
sorrindo, – provavelmente por ser conduzido a narrar sobre um período em que não havia nem
nascido, – diz que Santo Antonio de Jesus, nos anos vinte do século XX, não era uma
província isolada do restante do mundo. Ele conta que

… naquele tempo antigo, a gente não tinha Internet, mas, mesmo vindo de
navio e de carroça, as informações chegavam. O pessoal entendeu, com as
notícias que chegavam, (ne?) de que era importante haver essa união e
também pessoas daqui que iam, por algum motivo superior, à capital,
quando voltavam, voltavam com essas idéias de que lá estava existindo
Montepio, que lá estava existindo Sociedades, Associações e a partir daí
gerou todo um movimento e Santo Antonio de Jesus não ficou imune a
isso. 1388

A cidade de Santo Antonio de Jesus não se encontrava isolada do mundo quando


do surgimento da Sociedade Beneficente dos Artistas Santantonienses. Podem os “homens de
bem” que decidiram fundar a Agremiação ter buscado orientação em outras instituições e, ao
observar os seus fundamentos e os seus raios de abrangências, instalaram a “Beneficente dos
Artistas” adaptando-a ao contexto sócio-econômico da cidade. A atuação dos mutuários
sintoniza com a observação de Roger Chartier sobre a necessidade de “práticas de apropriação
cultural com forma diferenciada de interpretação”1389 que revelam matizes das especificidades
locais. A Agremiação não estava sujeita a leis de nenhuma autoridade estatal. Era de âmbito

1386
DE LUCCA, T. R. Op. cit., p. 11.
1387
José Elias Silva Santos, depoimento citado.
1388
Depoimento de José Reis Filho. 20/02/03.
1389
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, 1998. p. 28.

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totalmente privado e tinha seu Estatuto regido segundo as aspirações dos fundadores. Foi o
bastante para adquirir personalidade jurídica, o depósito no Cartório de Registro da cópia do
Estatuto, da Ata de instalação e listagem nominal dos encarregados pela sua administração.
Adaptar a Agremiação Santantoniense à condição do seu tempo foi uma
alternativa encontrada pelos sócios iniciadores, visando, muito provavelmente, absorver para
o quadro trabalhador de um modo geral, desprovido de qualquer tipo de proteção, já que na
sua singularidade, além de agregar diversos ofícios, abriu espaço para pessoas sem profissão
exigida. As palavras diretas de Seu José explicam a dificuldade que seria fundar, em Santo
Antonio de Jesus, por exemplo, uma associação de artistas nos moldes de outras seculares que
floreceram desde o século XIII na Europa e se disseminaram para outros cantos do mundo e,
como também afirma Silva, foram transplantadas para o mundo hispano-lusitano, na época da
expansão européia conhecida como período dos descobrimentos.1390 A explicação de Seu José
contempla esses aspectos:

… nas cidades do interior como você não tinha uma quantidade, digamos
assim, de alfaiate, nós devíamos ter aqui, o quê? Quatro ou cinco alfaiates.
Você não tinha uma quantidade para criar uma Sociedade de alfaiates. Você
tinha pedreiro, você não tinha uma quantidade, naquele momento histórico
que desse para ter uma Sociedade de pedreiros. Esse pessoal se reuniu e
resolveu criar essa Sociedade com o princípio, (né?) primordial de promover
benefício para os seus associados. (...) mas o fator primordial, para mim,
dessa criação foi justamente esse aspecto histórico da pouca quantidade de
representantes de uma mesma classe. Então, fizeram uma micelânia,
digamos assim, né? Misturando todos os artistas de todas as diversas classes
e outros profissionais fora da arte para compor essa Sociedade que o nome já
diz, né? Sociedade beneficente que era pra amparar. O que tivesse
desempregado ela asseguraria o salário desemprego, né? Um auxílio funeral,
àquele que morresse e não tivesse como financiar o sepultamento, a família
tivesse sem condições, a Sociedade assumiria.1391

Esse depoimento é carregado de elementos que esclarecem detalhadamente que a


Sociedade surgiu com a incumbência de prestar auxílio aos que por doença, acidente,
invalidez, velhice ou outra adversidade deixassem de trabalhar, sem distinção da profissão.
Entretanto, nos registros de absorção de sócios consta uma maior predominância de
profissionais que se denominavam “artistas”.

1390
SILVA, M. C. B. da C. e. Op. cit., p. 20.
1391
José Reis Filho, depoimento citado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOBSBAWM, Eric J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.

__________, Os Trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Paz


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NESTOR DUARTE: REFORMA SOCIAL E CRIAÇÃO CULTURAL NA


BAHIA DA DÉCADA DE 1930

Rogério dos Santos França1392- UFPE.


seanpoo2000@yahoo.com.br

Nestor Duarte foi figura de relevância no cenário político e intelectual da Bahia na década de
1930. Sua produção que abrangeu as áreas do direito, da história e da literatura mostra,
especialmente nestas duas últimas dimensões, um esforço por identificar os problemas que
emperram o desenvolvimento e a construção da nação, como observamos no ensaio A ordem
Privada e a organização política nacional e no romance Gado humano. Desta forma, este
trabalho busca compreender o sentido da construção de suas representações histórico e
literária, observando o complexo social no qual o autor está inserido, a rede de interesses a
que esta produção esta vinculada e o impacto desta produção no cenário político e cultural da
Bahia nos anos 1930.

Palavras-chave: História, intelectual, Nestor Duarte.

Mostrar como vivem certos punhados de homens, ou melhor, de creaturas


espalhadas nos ermos de nossa vida rural1393. Desta maneira no mínimo bastante precisa
sinaliza Nestor Duarte, em nota introdutória, qual o propósito de sua obra, publicada em 1936
e a qual ele mesmo observa talvez não comportar os qualificativos que garantam a tal empresa
o designativo de romance.
Com efeito, a observação de que tal ou qual obra literária aferrava-se à tarefa de
descrever uma dada realidade é recurso até certo ponto comum em romances da década de
1930, como podemos observar, só para ficarmos com uma obra bastante conhecida, o caso de
Jorge Amado em Cacau, onde o autor diz que usará o mínimo de literatura e o máximo de
honestidade para contar a história dos trabalhadores no sul da Bahia. Tal disposição para

1392
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE com o projeto Representações da Condição
sertaneja no romance Gado Humano – Bahia: 1930-1937. Que conta com o financiamento do CNPq.
1393
Nestor Duarte. Gado Humano. p. 7.

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retratar o real acabou por marcar a década de 1930 como o tempo do romance social,
reforçando a tradição de divisão da literatura brasileira entre o romance popular social,
vinculado a uma problemática do país e o romance psicológico, ocupado em tratar dos
dilemas da vida interior do homem, dos problemas individuais. Esta divisão pouco ajuda no
entendimento do percurso da literatura brasileira e, pode levar a alguns equívocos, como
supor que este romance social tenha uma relação de correspondência com a realidade a que se
reporta ou mesmo que o romance psicológico é produto de uma alienação, posto não tomar
como referência suas supostas raízes. A questão que se põe, a nosso ver, é de pensar esse
romance social e a relação entre literatura e sociedade na produção de 1930 do ponto de vista
de que, esta literatura, participou de uma mudança de perspectiva na apreensão da
configuração social do país naquele período, que foi justamente a emergência – ou o
aprofundamento - da consciência de que o país é atrasado, como veremos adiante.
Gado Humano é a primeira experiência literária de Nestor Duarte que a altura de
sua publicação era deputado estadual pela segunda oportunidade e integrava as fileiras de
oposição ao governo de interventoria de Juracy Magalhães. A critica quando da publicação da
obra dividiu-se em ver no romance uma obra original, primeiro pela forma, segundo pela
1394
substância ou, em vê-lo como um documentário em raros momentos transfigurado pela
ficção1395. Original certamente não o era, nem pela forma nem pela substância, uma vez que
obras buscando retratar as agruras do interior do país eram uma constante desde as últimas
décadas do século XIX, e o que se vê é ainda a presença de elementos da tradição naturalista
misturados a uma preocupação social mais aguda, que vai apontar para uma mudança
fundamental de percepção acerca do país. Sem querer aprofundar o juízo em torno do valor
estético da obra, o que se pretende sinalizar aqui é justamente que nesta se encontrar – com
anterioridade do romance em relação a produções de outra natureza do autor – temas que vão
orientar todo o seu pensamento e, que vão demonstrar sua visão da organização social
brasileira, qual seja estes temas a problemática da terra, o caráter privado do poder político no
país e a condição de massa populacional e não de povo dos brasileiros. Retornaremos a isto.
Como colocamos acima, a obra emerge dentro do chamado regionalismo de 1930,
e, neste sentido, sua condição de documentário ou denuncia deve ser entendida do ponto de
vista daquela mudança fundamental de percepção do país, que seria a tomada da consciência
de subdesenvolvimento de que fala Antonio Candido. De acordo com este autor, retomando
um argumento de Mario Vieira de Mello, até mais ou menos a década de 1930 grassava entre

1394
Carlos Chiacchio. Homens & Obras. In. A Tarde, 9 de dezembro de 1936.
1395
Adonias Filho.Ciclo baiano. In. A Literatura no Brasil. p. 269.

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nós uma visão de que o Brasil era um país novo, ou seja, havia uma grandiosidade potencial
que estaria por se realizar. O que se vai observar após trinta no país é, precisamente, a noção
de que o Brasil é subdesenvolvido. Como coloca Antonio Candido, conforme a primeira
perspectiva salientava-se a pujança virtual, e, portanto, a grandeza ainda não realizada.
Conforme a segunda, destaca-se a pobreza atual, a atrofia, o que falta, não o que sobra1396.
Passamos da consciência amena do atraso para uma consciência catastrófica do atraso.
Abandonam-se as aspirações utópicas que projetavam o futuro do país a partir do seu presente
e, mergulha-se neste mesmo presente esmiuçando-o, documentando-o, denunciando-o.
Este parece ser o espírito que irá animar a produção literária dos anos trinta e,
ainda demonstrar certa anterioridade do romance nesta tomada de consciência em relação a
outras formas de problematização da realidade, como faz questão de frisar Antonio Candido.
Poderíamos observar esta anterioridade também em Nestor Duarte, como sugerimos acima.
Gado Humano seria então a obra do autor onde primeiro se verifica essa consciência de
subdesenvolvimento. É um romance onde talvez apareça mais o reformador social – como
costumava se apresentar – do que o ficcionista, mas pode também ser um documento de seu
tempo, se pensarmos que o trabalho do historiador caracteriza-se pela mudança de natureza do
material com o qual opera em sua representação do passado1397 e, que no caso da literatura,
implica observar tanto a dimensão de documento quanto de obra de arte.
O cenário no qual o romance desenrola-se é Santo Afonso, uma fazenda nos
sertões da Bahia, e conta a saga dos trabalhadores que realizam uma existência que é trágica
pela falta de sentido e pela inexpressão mesma, correndo, embora, o perigo de todos os
imprevistos sem saber o que são e para onde se orientam1398, sentencia Nestor Duarte em sua
nota introdutória. Analisando esta disposição espaço-temporal na qual transcorre a obra ou,
justamente sua pouca precisão, o critico David Salles vai sugerir que a experiência literária
em Gado Humano é menos sobre a realidade a ser reformada do que sobre a disputa entre a
cosmovisão do intelectual e os meios de ação1399. Seria acerca dos impasses entre o
estabelecimento de uma ordem pública, da fundação do povo brasileiro que esbarra na
tradição privada do poder político no país e no arcaísmo das relações no campo. Isto acabaria

1396
Antonio Candido. Literatura e Subdesenvolvimento. Argumento I. In A Educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo, Atica, 1989. p. 140-162.
1397
Como coloca Michel de Certeau “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar
em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro
trabalho”. A operação historiográfica. In. A escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1982. p. 81.
1398
Nestor Duarte. Op.cit. p. 7-8.
1399
David Salles.Gado Humano ou estréia nos anos trinta. In. O romancista Nestor Duarte. Tribuna da Bahia,
Salvador, 24 de janeiro de 1971.

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por dar uma dimensão mais ampla ao romance1400. A realidade é rural, mas rural onde?1401
Pergunta-se Salles. A obra divide-se em duas partes: No eito e no ermo, onde o autor situa a
paisagem da fazenda, os tipos que compõe o enredo, os hábitos; e Invasão ou evasão? onde
narra tempos de agitação onde o sertão levanta-se contra as cidades.
Na primeira parte tem-se a impressão mesmo de um depoimento, uma narrativa
em terceira pessoa entrecortada por pouquíssimos diálogos ou situações. Santo Afonso –
localiza o narrador - era bem uma ilha. Abria-se no mato, entre divisas incertas que se
perdiam distantes. Dali a vila eram seis léguas1402. Como fará em seu ensaio A Ordem
Privada e a Organização Política Nacional, Nestor Duarte aponta para a descontinua e
problemática ocupação do solo brasileiro desde a colonização. Seguindo os passos de Sergio
Buarque de Holanda o autor vai colocar que o português, diferente do espanhol, procedeu a
uma colonização que pelo seu caráter disperso acabou por formar núcleos habitacionais
isolados, ilhas dentro do ermo como Santo Afonso. No capítulo O senhor, meu amo quando o
administrador da fazenda vai proceder ao intermédio entre os agregados e Ângelo, o bacharel
que retorna da capital para assumir a decadente herança que seu pai lhe legara, Pereira – o
administrador - não faz uma apresentação, mas sim conta o gado humano da fazenda, reforça.
Soma-se a este gado humano o poder de mando do patrão e a irregular ocupação do solo que
não propicia uma aproximação com as cidades – lugar para o autor propício para o
desenvolvimento do sentido da coisa pública – compondo o quadro de subdesenvolvimento
político e social que se encontra o país.
Nestor Duarte encara o processo de organização da sociedade brasileira enquanto
um desdobramento das características sociais e políticas do povo português. Para ele é fora de
duvida que a história do Brasil, com a interpretação conseqüente de sua organização social,
deve começar antes do descobrimento1403, observa em A Ordem Privada e a Organização
Política Nacional. Neste sentido, apontando o caráter privado da organização social e política
portuguesa e observando seu desdobramento em terras brasileiras com a colonização, o autor
vai concluir que nossa formação histórica é marcada por este privatismo e ausência do senso
da coisa pública, tanto por conta da cultura política de herança portuguesa – o que teríamos
seria uma massa populacional e não um povo no sentido político – quanto pela forma que se

1400
Godofredo Filho em seu discurso de recepção a Nestor Duarte na Academia de letra da Bahia considerou
Gado Humano menos um romance do ciclo nordestino do que “uma contribuição baiana à tomada de consciência
dos problemas da luta do homem com a terra”. In. Discurso de Posse de Nestor Duarte e Saudação de Godofredo
Filho. Revista da Academia de Letras da Bahia. Salvador, Bahia, 1966.
1401
David Salles. Idem.
1402
Nestor Duarte. Op. Cit. p.15.
1403
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. p.1.

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processou a ocupação das terras durante a colonização a partir de grandes propriedades rurais
onde, para o autor, as relações que se estabeleceram nunca foram de outra ordem senão
pessoais e privadas. São estes ecos do passado colonial que o autor visualizara ainda no Brasil
do anos 1930. Santo Afonso era uma ilha cercada do ermo. Vivia-se em paz e segurança.
Ângelo não inventara nada, não criara aquelas leis. Seguias por tradição1404, complementa o
narrador.
É a força desta tradição que emperra o processo de modernização do país1405.
Como em Nestor Duarte o sentido de modernização é eminentemente político, com noções
como Estado, coletividade, público representando as formas avançadas de estruturação social,
é precisamente a ausência do Estado, o espírito individual, a falta de senso público que vão
configurar o quadro de subdesenvolvimento apresentado no transcurso do romance, e que dão
o sentido da organização social que persiste.
Estas oposições representam em outros termos ou em gradações diferentes a
oposição litoral x sertão tão aludida já em estudos sobre a formação da sociedade brasileira.
Tal antinomia vai orientar toda a segunda parte do romance Invasão ou evasão? Em tempos
de certa inquietude quando da ocasião de uma campanha eleitoral uma das personagens
sentencia: o sertão também quer falar nesta questão1406. No encontro tentava-se chegar a
termos a respeito da cooperação dos proprietários rurais no sentido de garantir uma suposta
candidatura popular. Waldir Freitas Oliveira, responsável pela reedição da obra em 1998 viu
nesta passagem uma alusão aos episódios ocorridos na Bahia entre os anos de 1919 e
19201407. Se a referência é pertinente ou não o que cabe é ver os termos desta oposição em
Nestor Duarte. Para o autor os pontos em que se ancora a sociedade brasileira são justamente
os pontos a serem superados. O projeto de nação deve incluir o sertão na medida em que este
representa os traços da organização arcaica que tanto impossibilitam o desenvolvimento do
país. Para ele a vida política do Brasil, como sua força econômica veio do interior1408, diz em
A ordem privada e a organização política nacional e prossegue, saindo de sua base para
alcançar o resto do país pelo litoral mais político e independente dela, essa ordem, com o

1404
Nestor Duarte. Gado Humano. p.31.
1405
Luiz Guilherme Piva vai sublinhar que a visão que Nestor Duarte tem do país no final dos anos trinta é a
de um país predominantemente rural, o que lhe acentuaria sua visão pessimista e o seu determinismo privado.
Cf. Luis Guilherme Piva. Nestor Duarte: Determinismo privado e Razão Pública. In. Ladrilhadores e
semeadores: A modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sergio Buarque de Holanda,
Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940). São Paulo: Departamento de Ciência Política da Universidade de
São Paulo: Ed. 34, 2000.
1406
Nestor Duarte. Gado Humano. p.121.
1407
Waldir Freitas Oliveira. Apresentação. In. Gado Humano. 2 ed. EGBA. Salvador, 1998.
1408
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. p104.

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domínio político e apesar do exercício político, prolonga o seu espírito institucional na


comunidade política.1409 Espírito este que não é outra coisa para o autor senão o espírito da
coisa privada. Ainda sobre a campanha sertaneja frente às cidades, somos informados que
aquela era a única força organizada que o sertão possuía em sua luta contra o governo e que
nenhuma excedia a outra em primitivismo1410. Embora perpasse em seu romance a oposição
litoral x sertão o autor não vê neste segundo os elementos que apontariam o reduto de uma
pureza nacional, o sertanejo antes de ser o tipo nacional é antes aquele que precisa ser
convertido em povo, inserido numa lógica política da coisa publica para que deixe sua
condição de massa populacional, de gado humano.
Analisando o pensamento de Nestor Duarte exposto na obra A ordem privada e a
organização política nacional Luiz Guilherme Piva verá um pessimismo que deságua em um
determinismo privado, levado pelo impasse que se defronta o autor em sua perspectiva de via
criadora do Estado e a determinação da realidade ainda adversa a esta ordem. 1411Realidade
que ao fim da campanha sertaneja impõe uma duvida: e o que iria acontecer agora?1412
deixando em aberto o já impreciso destino das personagens em seu retorno ao cotidiano de
trabalho na fazenda.
O autor talvez tenha sentido a necessidade de deslizar da literatura para outras
formas de representação da realidade para tentar entender e mesmo explicar o que ele chamou
de irredutibilidades do meio brasileiro. 1413 Talvez buscasse forma que comportasse melhor
suas reflexões sociológicas. Onde o reformador social sobressaísse. No entanto a questão é
que o autor plasmou uma imagem do que ele entendia como sendo uma forma de organização
social a qual deveria ser superada. Se a imprecisão temporal ou espacial é presente, é
precisamente para dar uma dimensão geral do problema. Aqui a literatura se apresenta como
representação do real e não como sua imitação. A literatura se constitui enquanto tal na
medida em que problematiza o real na linguagem. Mas este real sobre o qual a literatura se
debruça não um dado acabado, a própria representação literária, que mantém com o real uma
relação contraditória, imprevisível, é componente desta realidade, construtora das percepções
acerca dela. A literatura só é documento para o historiador na medida em que é este quem
propõe os questionamentos e opera aquela mudança de natureza do material preservando
ainda sua condição de arte. Em um texto bastante conhecido Roland Barthes faz algumas

1409
Idem. 112.
1410
Nestor Duarte. Gado Humano. p.159.
1411
Luis Guilherme Piva. Op.cit. 245.
1412
Nestor Duarte. Gado Humano. p 201.
1413
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. p.120.

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considerações sobre como entende a literatura. Para ele a relação da literatura com o real não
pode ser índice de depreciação do fazer literário e afirma de forma precisa que desde os
tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representação de
uma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real.1414 Tarefa parecida com a da História, se
seguem por caminhos diferentes, se encontram em um objetivo comum.

1414
Roland Barthes. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988. p.

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3.7 – SIMPÓSIO 7:
HITÓRIA DOS ÍNDIOS NO NORDESTE
Coordenação:
Profª Drª. Maria Hilda Baqueiro Paraíso (UFBA)
Prof. Msc. Francisco Cancela (Doutorando em História
Social/UFBA)

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RELIGIÃO, PODER E MUNDO AGRÁRIO NOS ALDEAMENTOS


SERGIPANOS,1650-1802

Pedro Abelardo de Santana - UNIT


pedroabelardo@ig.com.br

Este estudo propõe algumas questões, tais como: é possível rever a atuação de índios e
colonizadores na estruturação do espaço sergipano colonial e destacar as paisagens indígenas?
A revisão das fontes e dos estudos existentes a partir do olhar da geografia cultural nos
permite nuançar os possíveis conflitos entre índios e colonos, como apontam investigações
similares em outras partes do Brasil? A conquista do espaço geográfico sergipano e a
formação do mundo agrário significaram uma luta apenas contra a natureza, ou foi feita à
custa da desestruturação das paisagens indígenas ao seu redor? A colonização significou a
formação de um mundo agrário, para tanto foram imprescindíveis à atuação do poder
religioso e do político. De que forma a sua analise ajuda a entendermos a estruturação do
território? No Brasil alguns estudos apontam que algumas áreas foram colonizadas
aproveitando antigas ocupações indígenas, esta constatação vale para Sergipe?

Palavras-chave: Aldeamento, Sergipe, Colônia.

Ao tratar da colonização portuguesa do Brasil, a história e a geografia têm


desprezado a paisagem indígena que existia antes da ocupação dos colonos, é o que diz Dora
Shellard Correa, em Historiadores e cronistas e a paisagem da Colônia Brasil. Os estudos
fixam a imagem do sertão como um vazio, por trás deles estão teorias e ideologias. A imagem
até recentemente cristalizada de que os índios entre a Colônia e a República sofreram um
processo contínuo de genocídio, desvia a atenção da luta deles pela soberania sobre um
espaço, isto é, terra, paisagem e recursos naturais. A luta pretérita dos índios, talvez seja
simbolizada pela atual dos índios da região amazônica. Conforme a autora, “Recuperar as
populações indígenas na história significa rediscutir o processo de invasão e ocupação do
território brasileiro”. 1415

1415
CORRÊA, Dora Shellard. Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil. Revista Brasileira de
História. São paulo, v. 26, nº 51, p. 63-87 – 2006. p. 64-5.

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A autora mostra que os historiadores, especialmente Capistrano de Abreu e Caio


Prado Junior, consolidaram a idéia de que o Brasil do século XVI era formado por pequenos
espaços litorâneos, enquanto o continente continuava virgem, esquecendo que os índios
estavam lá. O seu estudo analisa a forma como os dois clássicos descrevem a costa brasileira,
revisita as fontes por eles utilizadas e informa desejar levantar dados para reconstruir a
memória, substituindo a visão de uma terra virgem por um espaço vivo culturalmente. A
imagem que norteia a sua pesquisa é a de uma costa brasileira como zona de fronteira, onde
conviviam formas variadas de ocupação e uso da terra. 1416
Nossa pesquisa é similar ao estudo de Dora Corrêa. Visa estudar o processo
colonizador em Sergipe, mas olhando também para os índios, procurando ver nas entrelinhas
da documentação pistas sobre a sua existência e relação com os conquistadores. Estudar a
relação entre os aldeamentos coloniais e a formação do mundo agrário em revela uma
preocupação em compreender a organização do espaço e como foram criadas novas paisagens
culturais. Como ocorre a organização espacial? É a partir das necessidades do homem em
termos de sobrevivência que ocorre uma intervenção na natureza, tal intervenção envolve o
trabalho organizado coletivamente em busca de uma produção e de sua repartição, assim os
homens estabelecem relações entre si e, a partir destas com a natureza. 1417
Ao transformar a natureza, o homem cultiva os campos, faz caminhos, casas etc.
Neste sentido, é pertinente estudar a configuração espacial de Sergipe logo após a conquista
para entendermos a nossa realidade atual. Dizemos isto, considerando que a organização
espacial envolve a criação de objetos pelo homem e a sua disposição na superfície da Terra,
que possibilita a vida no presente e a reprodução para o futuro. Assim, a configuração do
espaço geográfico na Colônia é a chave para entendermos o homem sergipano de hoje,
habitando em diferentes áreas. 1418
Procuramos inserir esta temática dentro da geografia cultural, levando em conta
que a geografia cultural “é a aplicação da idéia de cultura aos problemas geográficos”. 1419
É uma área do conhecimento que estuda os aspectos da Terra produzidos ou modificados pela
ação humana. Assim, é necessário classificar as comunidades humanas que as criaram,
considerando o modo de vida de cada uma como cultura. A geografia cultural preocupa-se em
ver os aspectos ambientais característicos de uma determinada cultura, demonstrar a função

1416
CORRÊA, Dora Shellard. Obra citada. p. 65-66.
1417
CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2007. p.54.
1418
CORRÊA, Roberto Lobato. Obra citada. p. 55.
1419
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. “Os temas da geografia cultural”. IN: CORRÊA, R. L.;
ROSENDAHL, Z. (orgs.). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 27.

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da ação humana desempenhada na criação e manutenção de certos aspectos geográficos.


Assim, vemos que estudar a ação dos homens coloniais na transformação do espaço
geográfico sergipano, requer que se faça uma comparação com o que ocorreu em outras partes
do Brasil, diferenciando os aspectos peculiares a nossa gente. 1420
Sintetizando o tema, esclarecemos que os aldeamentos indígenas sergipanos
foram criados entre os séculos XVI e XIX, época em que os índios passaram por um longo
processo de redução em aldeamentos. Este trabalho busca estudar a relação entre índios e
colonizadores, relacionando religião e poder político na consolidação da expansão portuguesa
no espaço geográfico sergipano. Para isso, revisaremos as visões sobre o processo
consolidadas nas obras de Maria Thétis Nunes e Felisbelo Freire. 1421
O estudo enfocará as missões religiosas em Sergipe Colonial, administradas por
várias ordens religiosas. Destacaremos a política dos aldeamentos, espaços onde as relações
entre jesuítas e índios deram-se de forma mais intensa e onde o projeto de transformar o índio
em aliado teve melhores condições de se processar. O objetivo é demonstrar que os
aldeamentos, enquanto resultado de uma organização espacial oriunda de práticas religiosas,
serviram não somente aos interesses missionários, como também aos interesses da Coroa,
sobretudo no que se refere à conquista e domínio efetivo do espaço geográfico, o que se
exprime em condições plenas de sua exploração.
A conquista das almas e a conquista do espaço geográfico constituem-se em ações
convergentes, o que possibilita demonstrar a partir de uma experiência concreta, as profundas
relações entre religião, poder e mundo agrário. A cristianização da terra e da gente foi um
mecanismo privilegiado da colonização, e a hipótese direcionadora é que a conquista do
território sergipano e a transformação dos índios bravios em cristãos dóceis, afeitos ao
trabalho, cultivadores de produtos de subsistência, teve na religião a base fundadora de
adequação ao mundo agrário que se desenvolvia em Sergipe e ao domínio português
implantado no território de Sergipe Dei Rey.

1420
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 27-8.
1421
FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1977;
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989; NUNES, Maria Thétis.
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

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A Legitimidade da Pesquisa e o Caminho a ser Percorrido

A temática dos aldeamentos e mundo agrário já nos é familiar decorrente de


1422
estudos anteriores de caráter histórico, arqueológico e geográfico. Neste momento, a
nossa proposta é aprofundar o olhar geográfico, enfatizando mais a discussão sobre a
organização espacial, a partir dos teóricos da geografia e de estudos similares.
Pensar este tema a partir da geografia demonstra a conclusão de que as visões
anteriores, principalmente a dos historiadores, precisa ser revista. Assim, vemos que o tema é
relevante por serem inexistentes estudos locais sobre o assunto. É uma nova visão da
formação do nosso espaço geográfico que se pretende trazer a luz que, além de servir para
compreender o ser sergipano, é um estudo que tem grandes possibilidades de acontecer pelo
numeroso número de fontes existentes e pela sua acessibilidade e pouca investigação.
O tema insere-se dentro da geografia cultural por enfocar as transformações feitas
na superfície da Terra a partir da cultura. O período escolhido, 1652 a 1802, é a época da
formação das aldeias sergipanas, um longo período, mas a sua investigação é exeqüível pela
existência de fontes e pela pequenez do espaço sergipano, onde apenas sete aldeamentos se
formaram nesta época. Não estavam muito distantes uns dos outros, mas certamente existem
peculiaridades que os diferenciam.
Nossa intenção de retornar às fontes e de examinar a historiografia é motivada
pelo desejo de responder as seguintes questões: é possível rever a atuação de índios e
colonizadores na estruturação do espaço sergipano colonial e destacar as paisagens indígenas?
A revisão das fontes e dos estudos existentes a partir do olhar da geografia cultural nos
permite nuançar os possíveis conflitos entre índios e colonos, como apontam investigações
similares em outras partes do Brasil? A conquista do espaço geográfico sergipano e a
formação do mundo agrário significaram uma luta apenas contra a natureza, ou foi feita a
custa da desestruturação das paisagens indígenas ao seu redor? A colonização significou a
formação de um mundo agrário, para tanto foram imprescindíveis à atuação do poder
religioso e do político. De que forma a sua analise ajuda a entendermos a estruturação do
território? No Brasil alguns estudos apontam que algumas áreas foram colonizadas
aproveitando antigas ocupações indígenas, esta constatação vale para Sergipe?

1422
SANTANA, Pedro Abelardo de. Da Bahia a Pernambuco no século 16: viagens entre os dois pólos da
colonização do Brasil. Aracaju: SESC; UFS, 2003; SANTANA, Pedro Abelardo de. Aldeamentos indígenas
Sergipe Colonial: subsídios para a investigação de Arqueologia Histórica. São Cristóvão: UFS, 2004.
(Dissertação de Mestrado).

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Novas Possibilidades Interpretativas da Conquista do Espaço Sergipano

A noção de espaço e tempo que usamos para entender a transformação agrária,


por exemplo, nos conduz a uma visão longa de tempo, espaço e escala geográfica. Logo,
analisar as transformações das utilizações do espaço agrário requer o estudo de um tempo
mais longo. Neste sentido, para entender a formação do espaço agrário sergipano é necessário
relacioná-lo com uma escala maior envolvendo o Brasil e o Império Marítimo Português e,
um tempo longo que abrange cerca de três séculos. Este estudo pode enveredar num caminho
a fim de descobrir se existe uma relação nas escalas espaciais e geográficas e das temporais e
históricas. 1423
A colonização de Sergipe deve ser entendida como conquista e ordenação do
espaço, formação do território e a subjugação de outros (os indígenas). O conceito de
território envolve um caráter político, pois o espaço lhe é anterior, portanto, o território se
forma a partir do espaço. Apropriar-se do espaço é territorializar do espaço. A conquista de
Sergipe significou a territorialização do espaço. 1424
Não se deve confundir território e espaço segundo Milton Santos. Território é a
extensão apropriada e usada. Uma nação pode existir sem um território, mas um Estado só
existe com um território. Discutir o uso do território requer observar a implantação de infra-
estruturas e o dinamismo da economia e da sociedade. 1425 No caso de Sergipe, urge discutir a
formação do espaço agrário atrelado ao povoamento e as transformações econômicas, sociais,
culturais e outras.
Voltando a discutir a inserção do tema na geografia cultural, utilizamos o conceito
de cultura de Wagner e Mikesell, sendo cultura “comunidades de pessoas ocupando um
espaço determinado, amplo e geralmente contínuo”, acrescentem-se as crenças e os
comportamentos comuns a tal comunidade. Cultura é um meio de classificar seres humanos
em grupos e áreas com as características destes grupos, também está assentada numa base
geográfica em decorrência da comunicação regular e compartilhada entre pessoas que ocupam

1423
HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.110 e 114.
1424
BORDO, A. A.; SILVA, C. H. P.; NUNES, M.; BARBOSA, T.; MIRALHA, W. Diferentes Abordagens do
Conceito de Território. São Paulo, FCT/UNESP, 2004. p.1. Disponível em:
<http://www.temasemdebate.cnpm.embrapa.br/textos/051018_TERRITORIO_ESPACO_quarta.pdf>. Acesso
em 21/10/2007.
1425
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record,
2006. p. 19-22.

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uma área. 1426


As comunidades que compartilham uma área comum vivenciam uma difusão
cultural decorrente da locomoção das pessoas. O olhar geográfico sobre a cultura deve levar
em consideração temas como tabus, abstenção de certas técnicas, proibições sobre
determinados trabalhos, falta de certos tipos de instrumentos e limitações organizacionais ao
desenvolvimento. Desta forma, o geógrafo cultural está preocupado em “avaliar o potencial
técnico de comunidades humanas para usar e modificar seus habitats”, seus estudos devem
1427
dar conta da distribuição, no tempo e no espaço, de culturas e elementos das culturas.
Sergipe Colonial e Imperial se encaixam neste conceito de cultura, tendo em vista que se trata
de um espaço bem delimitado, o Rio Real fazendo a divisa com a Bahia e o Rio São Francisco
separando-o de Pernambuco. Nele, conviviam índios, colonos portugueses e pequena parcela
de escravos negros.
Religião, poder e mundo agrário nos aldeamentos sergipanos, 1650-1802, se
propõe investigar, em concordância com Wagner e Mikesell, características da cultura sobre a
distribuição passada e presente. Portanto, trata-se do estudo do espaço sob a influência da
cultura, cujo objetivo é “a compreensão dos processos que criaram e estão criando novos
ambientes para o homem”. 1428
Parece-nos inspirador o ponto de vista do geógrafo paulistano Pasquale Petrone,
segundo o qual “formas atuais de organização do espaço, na aparência inteiramente novas,
1429
não podem ser dissociadas, in totum, de formas anteriores”. Em sua obra Aldeamentos
paulistas discute a organização do espaço no Sudeste e trata dos aldeamentos paulistas com o
intuito de compreender o processo de criação de paisagens culturais. Das aldeias do Planalto
Paulistano, apresentou a sua formação histórica e a evolução destes, aspectos demográficos,
as terras e das atividades agrícolas e a função dos aldeamentos para o povoamento do
planalto. Para este intento utilizou fontes e literatura históricas, mapas, cartas e plantas.
Especificamente sobre Sergipe existem as obras de Maria Thétis Nunes. Sergipe
Colonial I estuda a conquista do território, as atividades econômicas, os povos formadores e a
política. Sergipe Colonial II investiga a ocupação do território, as fronteiras, as câmaras
municipais e a atuação da igreja. 1430

1426
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. “Os temas da geografia cultural”. IN: CORRÊA, R. L.;
ROSENDAHL, Z. (orgs.). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 28-29.
1427
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 30-31.
1428
WAGNER, P. L.; MIKESELL, M. W. Obra citada. p. 32 e 50-52.
1429
PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995. p. 13.
1430
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989; NUNES, Maria Thétis.
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

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Deve-se entender a formação colonial como conquista de espaço. Segundo


Antonio Carlos R. Moraes, o processo de colonização tem por origem a expansão territorial
de um dado grupo humano, que avança sobre um espaço novo com o interesse de incorporá-lo
à sua área de habitação. A colonização só ocorre com a ocupação do espaço. Na Colônia, esta
expansão foi realizada pelos portugueses estabelecidos na Bahia e em Pernambuco há quase
um século e, em 1590 passaram a ocupar e colonizar Sergipe. 1431
A colonização promove a criação de uma nova estrutura nas terras incorporadas,
esta estrutura se articula com os interesses da expansão localizados no centro difusor original.
1432
Em relação a Sergipe, os centros difusores eram Salvador e Olinda, de onde vieram as
populações para sergipano. Por outro lado, existia a metrópole portuguesa como o centro
irradiador principal. A economia implantada aqui, pecuária e produção de alimentos, serviam
para abastecer a Bahia e Pernambuco que, por sua vez, geravam renda para a Metrópole
através da plantation de cana-de-açúcar. O Brasil era um anexo territorial para atender aos
interesses econômicos de Portugal e Sergipe exercia a mesma função para as duas capitanias
vizinhas.
A ocupação de Sergipe foi um empreendimento misto combinando a ação privada
e estatal. Houve também a necessidade de implantação de estruturas militares de apoio à
colonização. Assim, a violência esteve ligada a apropriação das novas terras, com a submissão
dos autóctones ao novo poder que se instalou. O controle dos territórios colônias normalmente
se dá pelo Estado, através das ações militares, jurídicas e administrativas. Ocorreu em Sergipe
a conquista, a apropriação dos lugares. Foi imposta uma nova dominação política, resultando
na destruição das estruturas produtivas preexistentes e criação de novas estruturas
econômicas. No nosso caso o retorno econômico inicialmente se deu pela pecuária e a
produção de alimentos. 1433
Na ótica de Antonio Carlos R. Moraes, há uma relação sociedade e espaço na
colonização. Uma sociedade que se expande e os lugares onde se realiza tal expansão, nesse
contexto os nativos são tidos como atributos do espaço. As riquezas visíveis atraem para a
instalação inicial e os espaços desconhecidos permanecem no imaginário colonial,
promovendo uma expansão progressiva. Por fim, colonizar é um processo de valorização do
espaço, com a apropriação dos meios naturais, transformação destes meios numa segunda
natureza, apropriação destes meios naturais transformados, produção de formas espaciais e

1431
MORAES, Antonio C. R. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005. p. 63.
1432
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 63.
1433
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 64-65.

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apropriação do espaço produzido. 1434 É desta forma que pretendemos compreender e explicar
a formação do espaço geográfico sergipano.

CONCLUSÃO

Concluímos falando da necessidade de rever e reinterpretar as nem tanto


numerosas e variadas fontes existentes. São relatos de cronistas, que falam geralmente da
Bahia, e, por conseguinte de Sergipe. Em geral, dão notícias do povoamento e da ocupação do
espaço com as lavouras, os engenhos, os pastos e as povoações. Outro tipo de documento
importante é a correspondência oficial das autoridades que era enviada para Portugal, além de
outras existentes em quantidade relevante.
Por fim, lançamos a pergunta se é possível olhar para o espaço sergipano e
visualizá-lo não como área desabitada ou fracamente desabitada, mas como cenário marcado
por instabilidade como sugere Dora Shellard Correa e se é possível reavaliar as relações entre
colonizadores e índios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2007.

CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. (orgs.). Introdução à geografia cultural.


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

CORRÊA, Dora Shellard. Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil. Revista


Brasileira de História. São paulo, v. 26, nº 51, p. 63-87 – 2006.

FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de


Sergipe, 1977.

HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006.

1434
MORAES, Antonio C. R. Obra citada. p. 69-70.

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MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume,
2005.

NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995.


SANTOS, Milton. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 2006.

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ADMINISTRAÇÃO DO DIRETOR GERAL DE ÍNDIOS DA


PROVÍNCIA DA BAHIA

Antonietta d´Aguiar Nunes - FACED/UFBA


Historiógrafa Arquivo Público da Bahia
antoniettaan@terra.com.br
Aline Santos Oliveira
Iniciação Científica FACED/UFBA/CNPQ
lineoliveira123@hotmail.com

O Diretor Geral de Índios

O cargo de Diretor Geral de Índios de cada Província, de nomeação do imperador, foi


criado pelo art. 1º do Decreto Imperial nº. 426, de 24 de julho de 1845, que continha o
Regulamento sobre as Missões de catequese e civilização dos índios, assinado pelo então
Ministro dos Negócios do Império, José Carlos Pereira d´Almeida Torres, e rubricado pelo
Imperador.
Suas competências, arroladas nos 38 §§ do art. 1º, eram: de início diagnosticar a
situação das aldeias então estabelecidas verificando sua localização, população, ocupações
habituais dos índios, recursos que oferecem para a lavoura e comércio, relacionar os índios
aldeados por origem, língua, idades e profissões, arrolamento este que deveria ser renovado a
cada 4 anos. Em função deste diagnóstico preliminar, informar ao governo sobre a conveniência
da conservação, remoção, ou reunião de duas ou mais aldeias em uma, indicando também o
destino que se deve dar às terras das Aldeias que tenham sido abandonadas pelos índios ou que
ficarem em função da remoção ou fusão de aldeias.
A questão da terra, portanto foi logo de início considerada. O Governo precisava
saber como os índios cuidavam das terras que lhes haviam sido dadas, se as estavam ocupando,
ou se estavam ocupada por outrem e a que título. O Diretor Geral dos índios deveria propor ao
presidente da Província a demarcação dos distritos das aldeias e fazê-las demarcar, tanto as terras
reservadas para as plantações em comum, como as que devem ficar para as plantações
particulares dos índios e as que possam ser arrendadas. Havendo índios que por seu bom
comportamento e desenvolvimento industrial mereçam terras separadas das da Aldeia, ser-lhe-ão
concedidas de acordo com a sugestão do Diretor Geral, mas eles só adquirirão a propriedade
destas terras depois de doze anos não interrompidos de boa cultura, ao fim dos quais poderão
obter Carta de Sesmaria. Também deveriam arrendar por 3 anos as terras para isto destinadas.

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Além disso, havia a preocupação de identificar onde havia ainda índios que viviam
em hordas errantes, suas línguas e solicitar ao presidente da respectiva província, missionários
que lhes vão evangelizar e socializar; também indicar se convirá fazê-los descer para as aldeias
então existentes ou estabelecê-los em separado, caso em que deve indicar o local onde se deve
assentar a nova aldeia. Dever-se-iam empregar todos os meios lícitos, brandos e suaves para
atrair os índios às aldeias, e promover casamento entre eles e eles e pessoas de outra raça.
Explicar-lhe as máximas da Igreja Católica e ensinar a doutrina cristã, sem empregar força ou
violência.
E também cuidava da infra estrutura para funcionamento das aldeias, estabelecendo
que o Diretor de Índios deveria diligenciar a edificação de igrejas e casas para a habitação dos
empregados das aldeias e dos índios e distribuir pelos diretores de aldeias e missionários os
objetos que o Governo Imperial destinar aos índios para a agricultura ou para o pessoal dos
mesmos, como mantimentos, roupas, medicamentos que deverão ser solicitados ao presidente da
Província, segundo instruções do Governo Imperial.
O Diretor deveria informar-se das produções de mais fácil cultura no lugar, adotando
aquelas de maior facilidade e a que os índios mais prontamente se acostumem; saber dos meios
de subsistência das aldeias, e providenciar que nenhuma venha a sofrer fome pela fuga dos índios
para os matos ou pelas demais fazendas e povoações. Cabia também aos Diretores Gerais
fiscalizar as rendas das aldeias, quaisquer que fossem suas fontes e exercer vigilante inspeção
sobre as produções das lavouras, pescas e extrações de drogas e outro qualquer ramo de indústria
e sobre todos os objetos destinados para o uso e consumo das aldeias. Deveria ainda aplicar os
dinheiros e outros objetos segundo as necessidades das aldeias e conforme as ordens imperiais,
dando anualmente conta circunstanciada das despesas.
Como parte do cuidado para com os índios aldeados, o diretor geral deveria solicitar,
quando necessário, ao Presidente da Província alguma força militar para proteger as aldeias e
propor à Assembléia Provincial a criação de escolas de primeiras letras nos locais onde os
missionários não bastem para este ensino. Introduzir também a vacina nas aldeias e facilitar-lhes
todos os socorros nas epidemias, corresponder-se com os missionários de cada aldeia, recebendo
esclarecimento do que for necessário para a catequese e civilização dos índios, providenciando
no que couber em suas faculdades.
O Diretor Geral ainda deveria organizar tabelas de vencimento dos empregados que
estiverem a serviço das aldeias e submetê-las para aprovação do Governo Imperial. Aprovar e
mandar por em execução provisória as tabelas organizadas pelos diretores das aldeias, dos jornais

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que devem ganhar os índios que forem chamados para o serviço das mesmas ou qualquer outro
serviço público, dando conhecimento ao governo Imperial para sua final aprovação.
Por fim, o Diretor Geral deveria anualmente apresentar ao governo Imperial o
orçamento da receita e despesa das aldeias e um relatório circunstanciado do seu estado e
população, instrução, indústria, expondo como foram executadas as disposições deste
Regulamento e falando sobre o progresso ou decadência das aldeias e as causas que para isso
concorreram, bem como as providências que fosse conveniente adotar. Também exporiam os
inconvenientes encontrados na execução deste Regulamento, indicando as medidas que julgar
apropriadas para se conseguir o grande fim da catequese e civilização dos índios.

Diretores e Demais Funcionários de Cada Aldeia

O art. 2º do Regulamento das Missões indígenas determinava que em cada uma das
Aldeias haveria um Diretor, nomeado pelo Presidente da Província sob proposta do Diretor
Geral, com suas competências específicas arroladas nos 18 §§ deste artigo.
O art. 3º determinava competir ao Tesoureiro o recebimento dos dinheiros
pertencentes à aldeia, qualquer que seja a origem, recolhendo-os numa caixa a que terá acesso o
Diretor da Aldeia, assim como receber todos os objetos que forem destinados ao serviço e uso da
aldeia. Ter a seu cargo a escrituração e contabilidade das aldeias, e ajudar o diretor de cada aldeia
na confecção de mapas estatísticos. Fazer os pagamentos e entregar os objetos sob sua guarda
segundo ordens do Diretor Geral e determinações do Diretor da Aldeia. Prestar anualmente conta
ao Diretor Geral dos Índios de todos os dinheiros e objetos que houver recebido, dos empregos
que fez e das ordens que os autorizaram. Escrever os atos que deverem ser remetidos à Justiça e
os termos de demarcações das porções de terras procedidas pelo Diretor da Aldeia dentro dos
limites das terras da aldeia. Por fim, substituiria o diretor da aldeia em seus impedimentos
imprevistos, dando parte imediata ao Diretor Geral para prover interinamente.
O art. 4º dizia que, quando o estado da Aldeia não exigisse um Tesoureiro, um
Almoxarife receberia os objetos destinados para a Aldeia e os entregaria segundo ordens do
Diretor da mesma dando anualmente conta ao Diretor Geral e o Diretor da aldeia receberia os
dinheiros que á mesma pertencerem.
O art. 5º estabelecia a existência de um Cirurgião, que deveria ter a seu cargo a botica
(farmácia) e os instrumentos cirúrgicos; cuidaria da enfermaria com um Enfermeiro que seria um
dos funcionários propostos pelo Diretor da Aldeia.

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No art. 6º assegurava-se a existência de um Missionário nas Aldeias novamente


criadas e nas que se achassem em lugares remotos ou onde constasse que havia índios errantes.
Cabia aos missionários instruir os índios na religião católica e ensinar-lhes a doutrina cristã;
servir de pároco na aldeia enquanto não se criasse paróquia; arrolar todos os índios pertencentes à
aldeia e seu distrito, dizendo os que moram na aldeia e fora dela; relacionar as idades e
profissões, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos, devendo para isto ter livros
apropriados fornecido pelo Bispo Diocesano. Também deveria informar ao bispo o estado
espiritual da aldeia e suas necessidades, apontando as providências que lhe parecerem
apropriadas, solicitar ao Diretor Geral outro missionário para lhe ajudar em caso de necessidade,
sobretudo quando houvesse nas vizinhanças índios errantes precisando ser chamados à Religião e
à sociedade. Cabia-lhe também ensinar a ler, escrever e contar aos meninos e também aos adultos
que, sem violência, se dispusessem a receber essa instrução. Substituiria o Diretor da Aldeia no
impedimento do Tesoureiro.
O art. 7º rezava que a criação dos cargos de Tesoureiro, Almoxarife e Cirurgião
dependia do estado em que se achasse cada aldeia, sua importância e local onde estivesse
colocada, o que seria informado pelo Diretor Geral ao Governo Imperial para resolver, sendo
seus vencimentos e os dos missionários fixados segundo informações do Diretor Geral. O art. 8º
dizia que também a criação do cargo de Pedestres e oficiais de ofícios, seu número, salário,
organização e natureza dos ofícios dependeriam de circunstâncias locais, segundo informações
dos Diretores gerais.
As várias informações que precisavam ser transmitidas ao Governo Imperial o seriam
pelo Presidente da Província, acompanhando-as das convenientes observações, rezava o art. 9º. O
art. 10 estipulava que nos impedimentos do Diretor Geral o Presidente da Província nomearia
substituto, e no dos diretores da Aldeia que não fosse imprevisto, isto seria feito pelo Diretor
Geral.
Ficava determinado no art. 11º que, enquanto servissem, teriam Graduações
Honorárias: o Diretor Geral, de Brigadeiro; o Diretor da Aldeia, de Tenente Coronel e o
Tesoureiro, de Capitão, usando o uniforme estabelecido para o Estado Maior do Exército.

O Diretor Geral dos Índios na província da Bahia

O primeiro Diretor Geral dos Índios conhecido para a província da Bahia foi,
coincidentemente, a mesma pessoa que já ocupava o cargo de Diretor Geral de Estudos: Casimiro

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de Sena Madureira, mas ele menciona um antecessor no cargo de Diretor de Índios que não
conservara cópias de seus relatórios que ele pudesse consultar ao preparar o seu.
O primeiro Relatório de Casimiro Madureira, datado de 10 de janeiro de 1851, veio
publicado em anexo à Fala do Presidente da Província Francisco Gonçalves Martins de 1851. Na
ocasião ele não se encontrava em bom estado de saúde, o que chega a explicitar no ofício de
apresentação do Relatório, e logo na introdução ao mesmo refere-se ao fato de que os diretores
das diversas aldeias não apresentaram orçamentos de receita e despesa e por esta razão ele
também não o faz. Afirma que só algumas aldeias tinham rendas, provenientes das terras que os
índios, já civilizados, não ocupavam nem cultivavam: Espírito Santo de Abrantes, Santo Antonio
da Glória ou Curral dos Bois, N.Sra. dos Prazeres em Nazaré e S. Fidelis, na comarca de
Valença. Julgava ainda que os diretores das aldeias arrecadavam mal as rendas. Também as terras
das Aldeias de Pedra Branca, Itapicurú, Mirandela, Rodela e Saí estavam ocupadas por rendeiros,
sem que os diretores dessem notícia das rendas. Pensava ser conveniente que o governo Imperia l
suprimisse:

[...] as Diretorias de todas as aldeias de todas as províncias, a exceção das que


existem à margem do Rio Pardo [4], e das que se puder em estabelecem de novo
nas comarcas de Ilhéus, Porto S eguro e Caravelas, onde há muitas hordas de
Botocudos, Mongóios, e Camacans que pr ecisa m de catequese, consignando-se
no Orçamento Geral alguma quantia para Côngrua de Missionários e outros
mister es da catequese. (Relatório, p.2)

A única informação financeira que fornece no Relatório se refere ao valor da côngrua


paga pelos cofres provinciais aos missionários das aldeias:

Pelo cofre provincial recebem os missionários de P edra Branca, Rodelas, Santo


Antônio da Cruz, S. Pedr o de Alcâ ntara, e Catulé 300$ réis de Côngrua; o de
Pedra Branca acumula a gratificação anual de 300$ réis como dir etor interino, e
a de Santo Antônio da Cruz percebe a de 200$ rs. por dirigir duas aldeias
próximas uma da outra uma milha à margem do Rio Pardo. Não há
missionários para as missões de Mucuri , Prado e outros lugares da comarca de
Caravelas, onde os indígenas selvagens ma is de uma vez no ano sa em das
matas, e as vezes fazem hostilida des (Relatório, p.3).

Em anexo aos Relatórios de 1851 e 1852, Casimiro de Sena Madureira descreve cada
uma das aldeias da província, de que foi feita uma tabela, anexa ao presente trabalho, para se
facilitar visualização do conjunto.
Relacionando pontos destacados pelo Diretor Geral de índios, Casimiro de Sena
Madureira, mesmo com todas as eventualidades que dificultaram sua administração e descrição

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mais precisa de detalhes, notamos uma abordagem diferenciada ao relatório do seu sucessor, o
Visconde de Sergimirim, que assinou o relatório de 1872, documento anexo a Fala do
desembargador João Antonio de Araújo Freitas Henriques em 1º de Março do mesmo ano.
No seu relatório, o Visconde de Sergimirim, apesar de todo o descontentamento e
mostrando-se impotente devido às condições precárias, foi um grande crítico às condições que se
encontravam as aldeias. Destacou a importância da reestruturação das aldeias, se preocupou com
a organização de novos aldeamentos desde quando existisse uma apreensão ao modo de provê-
los, sobretudo na falta do processo civilizatório através da catequese devido a não existência de
uma verba posta nos orçamentos gerais e provinciais que contemplasse a construção de edifícios
para missionários, para escolas e moradas do professor. Interpretava as aldeias administradas
como um meio importante, um viveiro de operários agrícolas que, no futuro, se distribuiriam
pelos estabelecimentos rurais. E, se o governo não tivesse um olhar mais preocupado muitos
esforços se perderiam.

A Necessidade de Missionários

Uma questão que permeou todos os relatórios dos Diretores Gerais de índios
analisados (1851; 1852 e 1872), vista como um dos alicerces mais importantes, a necessidade de
missionários estava intimamente relacionada ao êxito administrativo das aldeias.
Os missionários foram elemento chave na mediação e descaracterização dos indígenas,
principalmente, através da religião. Impondo modos que favoreciam a permanência dos nativos nas
aldeias por meio de festas, cantos, doação de objetos, controle do idioma, batizados e casamentos
tornando-os dóceis e gentis evitando, sobretudo, possíveis levantes contrários as ordens
administrativas.
Era generalizada a preocupação com a falta de missionários nas aldeias administradas,
principalmente, após a proibição da admissão de noviços das ordens religiosas nacionais, em 1855,
para este fim. Tornando-se uma das reclamações mais constantes dos Diretores Gerais de índios ao
governo imperial, esses apelavam para que houvesse a consignação no orçamento geral e, como
solicitado pelo Visconde de Sergimirim em 1872, também no orçamento da província alguma
quantia para a côngrua de missionários e outros misteres da catequese nas diversas aldeias
pertencentes às comarcas da Bahia. Sem a atuação dos missionários, a ordem nos aldeamentos seria
complicada e quase impossível podendo resultar na extinção e/ou inviabilidade de novas aldeias.

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A Questão das Terras Indígenas

Está clarividente que a existência dos indígenas no território brasileiro se constituiu


numa problemática ao objetivo dos colonizadores portugueses que era de explorar as riquezas da
terra “descoberta”.
Segundo CUNHA (1992, p. 136), o sec. XIX foi um século heterogêneo e que
disputas políticas direcionaram seus interesses a questão indígena não mais como foco a mão-de-
obra, mas sim a questão da terra. Esse decreto visava à especulação territorial em troca de demais
interesses não só econômicos, mas precisamente políticos. E muitas das aldeias foram
caracterizadas como não produtivas e sua jurisdição foi incorporada a região vizinha, e/ou
posteriormente transformadas em vilas. Portanto, a lógica que estava por trás de sua aprovação
era manter “a ‘domesticação’ dos índios [...] como em séculos anteriores, sua sedentarização era
aldeamentos, sob o ‘suave julgo das leis’.”
É interessante destacar que esse processo provocou uma grande mancha de sangue na
história da civilização brasileira, pois, ao resistir tal processo os nativos eram dizimados através
de ações violentas, como também, infectados por doenças adquiridas na relação com os
exploradores que nunca conceberam os índios como reais donos da terra, mas sim, como
bárbaros e selvagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Faz-se necessário descrever a forte influência desse processo impetuoso sobre a


cultura indígena, a qual ainda hoje sofre reflexos do processo colonizador sendo pouco
disseminada, principalmente nas instituições educacionais, as quais ressumem a história dos
índios às vestimentas e culinária.
No momento que vivemos hoje, é extremamente importante resgatarmos as
histórias de povos, etnias que, ao longo dos tempos, tiveram seus ideais e identidades
suprimidas pelo processo de silenciamento. Repensando nossas práticas ante a alteridade e
corroborando para a concretização de ações políticas, socioculturais inclusivas.

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Tabela das Aldeias dos indígenas da Província da Bahia em 1851, segundo informações
de Casimiro de Sena Madureira – Diretor Geral dos Índios.

Aldeia Atividade Nº. de habitantes Diretor de índios


econômica
Aldeia de Agricultura e pesca. Há 221 indígenas; (aa maior A aldeia possui diretor,
Abrantes 22 rendeiros com casa de parte deles planta em mas não precisa dele, logo
Comarca da Matta

palhas e 9 que tem terras, que lhe foram que o governo mande
(elevada a vila) lavouras, além de outros doados, e alguns pescam demarcar o terreno. As
que tem engenhos nas na costa). rendas que o diretor
mesmas terras. arrecada são orçadas em
158$280 rs.
Aldeia de - 115 famílias além de 204 Não carece de diretor-
Massarandupió filhos menores desses
pais de famílias (não
especifica se esse número
corresponde a índios
somente, ou se a
rendeiros também).
Aldeia de Pedra - Tem 104 famílias de Esta aldeia tem
Branca índios com 380 missionários que dirigem
indivíduos; outros índios os índios, substituindo o
Comarca de Cachoeira

tem abandonado a aldeia, diretor, sendo suficiente


indo estabelecer-se uns para o bom regime da
20 a 30 no ribeirão do aldeia o Missionário
distrito de Nazaré e capuchinho Fr. Serafim.
outros em nº quase igual à
margem do Rio de
Contas, distrito de
Jequiriçá, comarca de
Valença. Possui também
40 famílias de rendeiros
com 300 pessoas.
Bom Jesus da Alguns se empregam em Tem de resto 12 famílias Não tem diretor, nem
Glória vigiar por salários, de índios com 50 carece. Tiveram uma
outros em plantações. indivíduos. légua de terra, mas só
possuem os pedaços que
podem cultivar, outros
estão de posse de maior
Comarca de Jacobina

parte das terras de que não


precisam, e devem ser
incorporadas à nação,
salvo os sítios que el es
ocupam.
Aldeia de Nossa - Tem poucos índios. Não carece de diretor.
Senhora das
Neves do Sahy

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Aldeia do Saco - Tem 82 familiares, e mais Não carece de Diretor. A


dos Tapuios 90 filhos menores dessas terra que os índios
Comarca de Inhambupe
famílias (não especifica ocupavam foi tomada pelo
se é somente índios ou Capitão José Carneiro,
também famílias de comprador das terras do
rendeiros). Conde da Ponte. onde os
Índios se estabeleceram
sem título de domínio,
porque o atual comprador
alega que eles as
ocupavam por título
precário.
Aldeia Atividade Nº. de habitantes Diretor de índios
econômica
Aldeia de Nossa Poucos índios cultivam: Tem 131 índios. Não precisa de Diretor.
Senhora da os mais deles trabalham A doação é de meia légua
por salário, alguns de terra em quadro, pouco
Saúde Itapicuru plantam milho e feijão. ocupada, por n ão
quererem os índios dar-se
ao trabalho da lavoura.
Convém apropriar à
Nação a maior parte deste
terreno, ocupado por
Comarca de Itapicuru

particulares á titulo de
renda que não pagam,
salvos os pequenos sítios,
que poucos índios
cultivam:
Aldeia de Soure Os índios são ativos, Tem 227 índios. Não precisa de Diretor.
alguns plantavam, outros A meia légua de terra que
pescam, ou viajam por lhe foi doada merece as
salário. mesmas providencias que
a de Itapicurú
Aldeia de Poucos lavradores, quase Tem 300 índios. Tem meia légua de terra
Mirandela todos servem de em quadro
vaqueiros.
Aldeia de Tem 400 índios. Estão debaixo de um só
Pombal Diretor, mas não carecem.
Tem meia légua de terra
em quadro -
Aldeia de - Tem 32 famílias com 132 ---
Rodelas no individuos, deduzidos 15
que faleceram em 1849.
Comarca de Monte Santo

termo de Pambú No ano anterior haviam


40 famílias, e se vê sua
decadência
Aldeia de S. - Aldeia extinta, no Brejo ---
Antônio da dos Frades, onde há
vários índios
Glória, ou Curral desapossados das terras.
dos Bois.
Aldeia de 48 trabalham em Tem 444 indivíduos ---
Massacará, lavoura, 4 em criação de
gado, e 2 em ofícios
termo de Monte necessários.
Santo
Aldeia de Nossa Alguns lavram Tem 27 famílias com 98 Tem 2 léguas de terras
Comar
ca de

Senhora dos mandioca, e os mais indivíduos ocupados por 10 rendeiros


conduzem madeiras de As rendas são orçadas em
Prazeres construção pelo rio para 170$000.

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a vila de Jequiriçá, a 1 Não precisa de diretor,


légua de distância. logo que o governo mande
demarcar o terreno
Aldeia de S. Há na povoação 111 Tem 54 famílias com 124 Não precisa de Diretor
Antônio casas de rendeiros da indivíduos. logo que se vendam as
Aldeia; nas terras há 136 terras que os Índios não
rendeiros que se cultivam, nem ocupam.
empregam em lavoura, As rendas são orçadas em
inclusive 4 engenhos e 751$560.
algumas pequenas
engenhocas e
alambiques.

Aldeia Atividade Nº. de habitantes Diretor de índios


econômica
Aldeia de S. Alguns se empregam em Tem 59 famílias; 3 Tem uma légua de terras
Fidelis, termo de lavoura de mandioca, e a viúvos, 16 solteiros, 41 próxima à cidade de
maior parte em condução casados; 41 mulheres Valença, da qual apenas
Comarca de Valença

Valença de madeiras, pelo rio casadas, e 1 viúva, e 105 ocupam a quarta parte; ¾
Una. menores, ao todo 207 devem ser vendidas para
indivíduos. a Nação. As rendas são
orçadas em 58$000.
Aldeia de Empregam-se em Tem 68 índios; não A Câmara, que hoje não
Santarém lavoura de mandioca, consta quantas índias tem. tem índios por vereadores,
arroz e café. está com tudo na posse do
(Elevada a vila) arrendar as terras.
Não carece de Diretor, e
acha-se no caso da Aldeia
de Abrantes.
Aldeia de Lugar muito pobre. Tem 200 índios. Não carece de diretor. As
Comarca de
Camamu

Barcelos Outros indivíduos de terras são arrendadas pela


diversas raças moram na Câmara.
(Elevada a vila) mesma povoação da
aldeia
Aldeia de S. Plantação de mandioca. Índios Botocudos ---
Antônio da Há 32 famílias com 140 e Missionário Fr. Francisco
tantos indivíduos; os Antonio de Falerno
Cruz, no termo da menores sabem doutrina
Vitória á margem Cristã.
do Rio Pardo
A outra Aldeia, a Todos plantam mandioca Índios Mongoiós, aí Mesmo missionário
meia légua da e mais legumes para estabelecidos em 1848 acima. Estão mais
anterior, onde sustentar-se. Vai com Há 14 famílias civilizados entre eles tem
Comarca dos Ilhéus.

existia a Capela de algum aumento esta o Missi onário casa de


S. Antônio da Cruz, Aldeia. residência: quase todas as
outrora ocupada famílias tem a sua
pelos Botocudos. choupana própria. A
Capela tem ornamentos
para a celebração da
Missa.
S. Pedro de Tem 300 individuos, no Os Índios desta Comarca,
Alcântara, no sitio que há muito progresso, a exceção dos de
das Ferradas a por que há 2 anos não Barcelos, estão no caso de
margem do Rio haviam nem 200. terem Diretores, e com
freqüência Missionários.
Pardo, no Termo
Era misson. Fr. Luduvico
de Ilhéus. de Liorne; depois que
siau, é dirigida pelo
Missionário Fr. Vicente.

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Aldeia de 150 índios Camacans, dirigidos pelo Missionário


Catulé, a quase todos ainda Capuchinho Fr. Ruggero
selvagens. Próxima a esta
margem do Rio Aldeia há uma horda de
Pardo indígenas ainda mais
selvagens, que vai-se
acostumando a Catequese
empregada pelo dito
Missionário.

Olivença, termo Índios há muito Não carece de diretor


de Ilhéus comesticados
(elevada a vila)
Aldeia Atividade Nº. de habitantes Diretor de índios
econômica
Vila de Trancoso Tem 104 famílias com Há muitos lavradores de
500 indivíduos. Há outra raça à margem do
Comarca de Porto

(foi Aldeia de
indivíduos de outra raça. Rio dos Frades, por ser o
índios) terreno muito produtivo.
Seguro

Vila Verde (foi - É pouco populosa. Os indígenas bravos


Aldeia de índios) aparecem neste termo com
ânimo pacifico, e voltam
para as matas à falta de
missionários que os
chame a sociedade.
Vila do Prado - Habitada por indígenas e Nas matas desta vila há
brasileiros de outra raça. hordas de indígenas
bravos, fazem
hostilidades, e raras vezes
saem sem fazer mal.
Aqui há grande urgência
de um Missionário
Vila de S. José Tem muita população Nas matas há hordas de
de Mucuri indígenas bravos, e neste
lugar há grande
Comarca de Caravelas

(foi aldeia de necessidade de


índios) Missionário que os chame
à civilização. O
Missionário Capuchinho
Fr. Caetano de Troina
subiu pelo Rio de Mucuri
em 1846 no intento de
catequizar os indígenas, e
teve encontro com alguns.
Por causa das febres que
sofreu por duas vezes, e
por ser necessário ao seu
Hospício estabelecido em
Salvador, pediu demissão
em 1847, e não se achou
outro religioso, que se
encarregasse desta
Missão.
Fonte: BAHIA, Fala do Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins, na abertura da Assembléia
Provincial em 01 de março de 1851. Bahia: Tipografia de Vicente Ribeiro Moreira(Rua do Tijolo, casa nº. 10)
1851. 38 p. s/ instrução pública da p. 9/13, anexos-artigos da força policial e relatório sobre aldeias indígenas 6
p. (microfilmado)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAHIA, Fala do Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins, na abertura da


Assembléia Provincial em 01 de março de 1851. Bahia: Tipografia de Vicente Ribeiro Moreira
(Rua do Tijolo, casa nº. 10) 1851. 38 p. Anexo: Relatório sobre aldeias indígenas, 6 p.
(microfilmado)

______. Fala que recitou o presidente da Província da Bahia, o dezor consº Francisco
Gonçalves Martins, na abertura da Assembléia Legislativa da mesma província, no 1º de
Março de 1852. Bahia. Tipografia Const. de Vicente Ribeiro Moreira, (Rua do Tijolo, casa nº.
10). 1852. 68 p.

______. Fala com que o dr.º João Antônio de Araújo Freitas Henriques abriu a 1º sessão
da 19º Legislatura da Assembléia Provincial da Bahia em 1º de marco de 1872. Bahia:
Tipografia do Correio da Bahia. Rua da Alfândega n.º 29. 168 p.

______. Relatório do Diretor Geral dos Estudos Casemiro de Sena Madureira sobre
instrução publica apresentado ao Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins
no ano de 1851, 15 p. (microfilmado)

CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Política indigenista no século XIX. In: História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/FAPESB, 1992, p.133-154.

MADUREIRA, Casimiro de Sena. Relatório da Diretoria Geral dos Índios. Anexo à Fala do
Presidente Francisco Gonçalves Martins, 1852. 8 p + 3 mapas.

SERGIMIRIM, Visconde de. Relatório da Diretoria geral dos Índios.Anexo à Fala do


Presidente João Antonio de Araújo Freitas Henriques, 1872. 9 p.

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VILAS DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO: UM


ESPAÇO MULTICULTURAL DE TRABALHO, RESISTÊNCIAS E
REELABORAÇÃO DE IDENTIDADES.

Francisco Cancela – UFBA


franciscocancela@yahoo.com.br

Este trabalho pretende discutir aspectos históricos e culturais relevantes das vilas de índios da
Capitania de Porto Seguro. Criadas no contexto das reformas pombalinas, as vilas de índios se
constituíram em espaços privilegiados de expropriação da mão-de-obra indígena, de
elaboração de políticas indígenas e de reelaboração de identidades, uma vez que possibilitou o
convívio interétnico mais sistemático e intenso, vivenciado através da obrigatoriedade da
presença de não-índios nas vilas, do incentivo de casamento com brancos e da
compulsoriedade do trabalho agrícola. O texto se organizada em três partes: na primeira,
busca-se analisar o contexto histórico da criação das vilas, identificando como as reformas
pombalinas chegaram a Porto Seguro; na segunda, faz-se uma reflexão sobre a natureza das
vilas de índios; na última, pretende-se apresentar conclusões iniciais, tomando determinadas
experiências indígenas como referência.

Palavras-Chaves: Capitania de Porto Seguro, Vila de Índio, Identidades Indígenas

Contextualização Histórica da Criação das Vilas de Índios

As vilas de índios foram criadas no reinado de dom José I, que teve na figura de
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o representante autêntico da
política ilustrada do despotismo esclarecido1435. Neste período, um estado de instabilidade
econômica rondava Portugal, cujas causas estavam na perda da arrecadação tributária nas
colônias, no déficit demográfico metropolitano e na crise da produção agrícola. Além disso,
no cenário político, a questão da delimitação das fronteiras entre as Américas espanholas e

1435
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo, Ática, 1982; FALCON, Francisco.
Iluminismo. São Paulo: Ática, 1984.

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portuguesas criou certa turbulência institucional. Nestas circunstâncias, mudanças nas


estruturas econômica, administrativa e cultural foram necessárias tanto na própria metrópole
portuguesa, quanto nos seus domínios de além-mar1436.
Na colônia portuguesa da América, as reformas econômicas mais relevantes foram
o fomento à ampliação do comércio e o estímulo à máquina tributária. Do ponto de vista
comercial, a criação das Companhias do Pará e Maranhão e de Pernambuco e Paraíba tentou
recuperar o controle luso sobre o comércio de exportação e também intensificar o intercâmbio
entre metrópole e colônia. Do ponto de vista tributário, a Coroa tentou superar seu déficit,
ampliando a cobrança de impostos e radicalizando no combate ao contrabando1437. A
metrópole tentou também ampliar e diversificar a pauta de produção e de exportação, além de
racionalizar as técnicas agrícolas usadas, principalmente a expansão produtiva pelo processo
de derrubada e queima das matas, que passou a ser bastante criticado por intelectuais da
época1438.
As medidas mais importantes que integraram as reformas administrativas sofridas
na colônia da América foram: a transferência da sede do Governo Geral do Estado do Brasil,
de Salvador para o Rio de Janeiro (1763); a extinção do Estado do Grão-Pará e Maranhão e
sua incorporação ao do Brasil (1772) e a incorporação das antigas Capitanias de Ilhéus, Porto
Seguro e Espírito Santos à da Bahia (1750). Todavia, o mais importante a ser destacado nesta
reestruturação do Estado foi a tendência de modernizar política e burocraticamente a
administração colonial, entendendo-se como modernização a construção de uma máquina
administrativa renovada que desse respostas às exigências conjunturais de Portugal.

A política indigenista não passou incólume a este contexto de crise e reformas. O


Marquês de Pombal re-elaborou a legislação indigenista, adaptando-a à conjuntura política,
social e econômica do Império Português. Em 6 de junho de 1755, Pombal decretou a
liberdade dos índios do Estado do Grão Pará e Maranhão e de seus bens e comércio, além de
incentivar o desenvolvimento agrícola e comercial daquele povo. No dia seguinte, apresentou
um Alvará que determinava uma mudança na forma de administração dos índios, retirando

1436
ARRUDA, José Jobson de Andrade. O sentido da Colônia: revisitando a crise do antigo sistema colonial no
Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2.
ed., ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.
1437
FALCON, Francisco. Pombal e o Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão
técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2. ed., ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP;
Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.
1438
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil
escravista, 1786-1888. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

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poderes civis e administrativos dos padres regulares e determinando que fossem governados
por principais, governadores e pela justiça secular.

Em 3 de maio de 1757, através do diálogo com Francisco Xavier de Mendonça


Furtado, governador e capitão-geral do Maranhão e irmão de Pombal, foi publicado o
Diretório, que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto Sua
Majestade não mandar o contrário1439. Este documento tinha como objetivo regulamentar as
novas regras de convivência interétnicas apresentadas com as leis de 6 e 7 de junho de 1755.
Segundo Mauro Cezar Coelho, a Lei do Diretório

Emergiu da necessidade de conciliar dois interesses distintos: por um lado,


o metropolitano, o qual pretendia incorporar os índios em sua política de
ocupação e defesa do território colonial conquistado aos espanhóis; por
outro, o dos colonos, cuja intenção era manter as populações indígenas
submetidas, cristalizando a sua condição de mão-de-obra preferencial no
Vale Amazônico.1440

Composto por 95 parágrafos, o Diretório apresentava regras de convivência entre


brancos e indígenas no Estado do Grão Pará e Maranhão. Dentre as medidas mais
importantes, destacavam-se: a extensão da vassalagem aos índios; a substituição dos
missionários por párocos; a introdução de administradores temporais; a obrigação do uso da
Língua Portuguesa; a transformação dos indígenas em pagadores de impostos; o incentivo ao
casamento interétnico; a transformação das chefias indígenas em autoridades coloniais e a
introdução do governador como mediador na distribuição da mão-de-obra indígena. Todas
essas novas experiências se dariam em um novo espaço, pois o Diretório exigia que as antigas
aldeias indígenas fossem transformadas em vilas de índios1441.

Maria Regina Celestino de Almeida, ao analisar as chamadas reformas


pombalinas e seus impactos na vida das populações indígenas, destacou aspectos de ruptura e

1439
Diretório, que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não
mandar o contrário. In: ALMEIDA, Rita. O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do século
XVIII. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
1440
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese de Doutorado – USP, 2005, p.
246.
1441
Segundo o Diccionário da Língua Portuguesa, as Vilas eram unidades urbanas menores que as cidades, mas
que contavam com juizes, câmaras e pelourinho. SILVA, Antonio Moraes da. Diccionario da Língua
Portuguesa, composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva.
Lisboa: Officina de Simão Thadeo Ferreira, 1798.

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de continuidade no que tange à política indigenista. A partir da comparação entre o Diretório


dos Índios de 1757 e o Regimento das Missões de 1686, a autora evidenciou que
preocupações como a repartição do trabalho, os cuidados para com as fugas dos índios, a
relação com as lideranças indígenas e a necessidade de descimentos eram comuns entre uma e
outra legislação. Entretanto, apontou que a “grande diferença estava nos parágrafos relativos
aos costumes indígenas, que deveriam ser extirpados, e no forte incentivo à miscigenação e à
presença de brancos nas aldeias”1442.

Com a implantação do Diretório dos Índios no Estado do Grão Pará e Maranhão,


várias transformações políticas, econômicas e sociais se materializaram no Vale Amazônico.
Para Mauro Cezar Coelho, as transformações mais importantes foram: primeiro, a elevação
das antigas aldeias missionárias à categoria de vilas e lugares, que passaram a se constituir na
base sócio-econômica da Colônia, pois funcionavam como espaço de arregimentação de mão-
de-obra e, também, de socialização e civilização de uma nova sociedade mestiça; a segunda
grande transformação foi a de garantir um programa de inserção das populações indígenas na
esfera política da colônia, através da cooptação de lideranças, da distribuição de cargos e
funções, da nomeação para cargos de chefias e da concessão de honras e privilégios; a
terceira, possibilitou a emergência de novas relações sociais a partir do convívio entre brancos
e índios num mesmo espaço; e, por fim, promoveu a emergência de relações diversas entre
índios e brancos, que oscilavam da aliança ao conflito e da negociação à adaptação.1443

Através do Alvará de 8 de maio de 1758, as leis do Diretório se estenderam para


toda colônia americana. Com esta medida, o movimento de transformação dos aldeamentos
indígenas em vilas indígenas se espalhou para toda América portuguesa, permitindo a
construção de uma administração civil, a formação de um novo contingente de vassalos
indígenas pagadores de impostos e a disponibilidade de mais mão-de-obra para os serviços do
Estado e dos colonos.

Na Capitania de Porto Seguro, as vilas de índios foram criadas em dois momentos


diferentes. O primeiro aconteceu em 1758, quando a Coroa portuguesa estendeu as Leis de
1755 para o Estado do Brasil. A partir deste momento, um conjunto de medidas foi tomado
pelo Vice-Reinado para afastar os padres jesuítas da administração dos aldeamentos e para

1442
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses Indígenas: cultura e identidade nos aldeamentos
indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 169.
1443
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese de Doutorado – USP, 2005, p. 35.

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transformar aqueles antigos núcleos de catequização em novas vilas. Neste contexto, os dois
únicos aldeamentos jesuíticos existentes em Porto Seguro, a aldeia São João Batista dos
Índios e a aldeia Espírito Santo dos Índios, transformaram-se em vilas, recebendo,
respectivamente, a denominação de Vila de Trancoso e Vila Verde.1444

O segundo momento começou em 1763, quando o Rei D. José I publicou um


Decreto que criava uma nova Ouvidoria na Capitania de Porto Seguro, pautada na máxima de
que “sem governo civil não poderão fazer grandes progressos com que desejo beneficiar os
vassalos da mesma capitania”.1445 Criada sob as inspirações do Marquês de Pombal, a
Ouvidoria de Porto Seguro se constituía numa instância jurídico-administrativa mais
sofisticada do que a simples organização das capitanias hereditárias, permitindo melhores
mecanismos de fiscalização e de centralização de poder. Seus limites geográficos
reproduziam a mesma divisão da Capitania, sendo assim desenhado: ao sul fazia fronteira
com o Rio Doce – limite extremo com o Espírito Santo; ao norte, com o Rio Jequitinhonha –
separando-se de Ilhéus; ao leste, com o Oceano Atlântico; e, ao oeste, com a Capitania de
Minas Gerais.

Em 30 de abril de 1763, o Marquês de Pombal elaborou um documento composto


de 18 instruções que continha as diretrizes fundamentais para a criação e gestão da nova
Ouvidoria. Nos seus aspectos gerais, os objetivos da Ouvidoria estavam baseados numa certa
representação de uma sociedade ideal, segundo a qual “sem homens sociáveis e civis não
1446
pode[ria] haver Estabelecimento [que fosse] útil” . Assim, para fazer de Porto Seguro um
território civilizado, seria necessário converter seus moradores indígenas ao catolicismo,
organizá-los política, econômica e juridicamente de acordo com os modelos europeus,
transformando-os em produtores inseridos no mercado e em súditos geradores de impostos.
Desta forma, entrava em cena o pressuposto da “civilização dos índios de Porto Seguro”,
caracterizado pela introdução de uma série de mudanças na forma de organização do espaço,

1444
APEB - Carta de Aplicação da Provisão Real que mandou criar a Vila de Trancoso – Colonial e Provincial,
Dossiê sobre aldeamentos e missões indígenas – n. 603.
1445
Decreto por que sua majestade há por bem nomear ao Bacharel Thomé Couceiro de Abreu para hir criar a
Ouvidoria de Porto Seguro por tempo de três annos. APEB – Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço
7065, p. 9.
1446
Instruções dadas pelo Marques de Pombal a Thomé Couceiro de Abreu, quando mandou por este magistrado
criar a Ouvidoria de Porto Seguro. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador, v. 42, 1916,
p. 63.

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no funcionamento da política e administração dos índios, na estrutura e dinâmica da economia


e nas regras de convivência interétnicas1447.
A instrução de número 17 tratava da necessidade de transformar as aldeias em
vilas e, também, de estimular o descimento de novos contingentes de índios dos sertões para a
fundação de novas vilas, que deveriam adotar nomes de cidades e vilas de Portugal.

17. Ordena também S. Magestade que assim naquellas povoaçoens


chamadas Aldeyas que já estão domesticadas, como nas que de novo se
estabelecerem com índios descidos; logo que estes se descerem no
competente numero, se vão estabelecendo novas Villas e se vão abolindo
nellas os bárbaros e antigos nomes que tiverem; e se lhes vão impondo
alguns outros novos de cidades e villas deste Reino1448.

Como resultado da ação da nova Ouvidoria foram criadas outras seis vilas de
índios em Porto Seguro: Belmonte (1764), São Mateus (1764), Prado (1764), Viçosa (1768),
Porto Alegre (1769) e Alcobaça (1772).

O processo de criação das vilas de índios na Capitania de Porto Seguro foi


bastante diversificado. Existiram, pelo menos, três tipos diferentes de fundação destas
povoações. O primeiro foi vivido pelos antigos aldeamentos jesuíticos, que mudaram seu
estatuto jurídico, passando da condição de aldeia para a de vila. Esses antigos aldeamentos
jesuíticos eram habitados por índios Tupinikin aldeados desde o século XVI, que haviam se
especializado na lavoura da mandioca e na pesca costeira, tendo uma longa experiência de
contato e até mistura com a sociedade colonial. O segundo tipo foi decorrente de aldeamentos
particulares, criados no século XVII por algumas famílias proprietárias de terra, que
investiram na atividade de descimento de índios que estavam sendo ameaçados no interior do
continente pelos grupos de bandeirantes, propondo para estes índios abrigo e segurança na
condição de trabalharem alguns dias em suas lavouras. Este foi o caso de Belmonte, Viçosa e
São Mateus, que foram formadas por índios do troco lingüístico Macro-Jê, que habitavam a
região em pequenos povoados, servindo de mão-de-obra para os proprietários que haviam
garantido sua proteção dos escravizadores de índios no século anterior. O último tipo de
povoamento foi realizado na criação das vilas de Prado e São José de Porto Alegre, que foi

1447
CANCELA, Francisco. Um novo instrumento para uma velha prática: a criação da nova ouvidoria de Porto
Seguro e seu “projeto de civilização” dos índios (1763). Salvador: Universidade Católica do Salvador
(monografia de graduação), 2005.
1448
Idem.

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formado por índios Pataxó, Maxacali, Malali e Krenak, que desde o final do século XVI,
mantiveram relações intermitentes com a sociedade colonial, sendo que alguns construíram
relações de aliança e realizavam algumas trocas esporádicas com os brancos e outros, por sua
vez, preferiram a busca da autonomia e se embrenharam nos matos, fugindo das constantes
bandeiras ou expedições de aprisionamento de índios para a escravização.

As Vilas de Índios em Questão

A categoria “vila de índios” foi uma criação da própria colonização portuguesa na


América. Este tipo de vila surgiu na legislação colonial a partir da publicação e aplicação da
Lei de 6 de junho de 1755. Em geral, a classificação de uma povoação como “vila de índio”
estava diretamente relacionada a sua origem (se tinha sido antigo aldeamento jesuítico) e/ou a
composição étnica de seus moradores (se eram majoritariamente índios descidos dos sertões).
Como parte integrante do projeto laico e assimilacionista elaborado pelo Marquês
de Pombal, as vilas de índios foram criadas para funcionar como um mecanismo de inserção
dos povos indígenas na sociedade colonial. Para alcançar este objetivo, a Coroa desenvolveu
estratégias de integração (forçada) dos índios ao mundo português. O Diretório dos Índios
estabelecia as regras sociais no interior das vilas. Os indígenas estavam obrigados a participar
do governo das povoações, a casar com os brancos, a freqüentar as escolas para aprender a
língua portuguesa, a cumprir as leis portuguesas, a extirpar seus hábitos e costumes, a
desenvolver atividades agrícolas próprias e a freqüentar a igreja.
Em Porto Seguro, após 1766, além do Diretório, o Ouvidor José Xavier Machado
Monteiro elaborou um conjunto de Instruções para o Governo dos Índios da Capitania. Este
documento regulamentava as relações entre indígenas e não-indígenas, principalmente nas
áreas do trabalho, da educação e do comércio. Estabelecia, por exemplo, que as mulheres
indígenas eram obrigadas a trabalhar “de portas a dentro” nas casas de famílias brancas, para
aprender a falar português, a cozinha, a fiar e a costurar. As crianças tinham que ir a escola
imediatamente após desenvolver a fala, sendo obrigado a assistir seis horas diárias de aulas de
cristianismo, português e matemática. Outra medida interessante era a obrigatoriedade do
plantio de mandioca e a proibição do plantio de cana, pois temiam o uso da cana para produzir
o cauim, bebida acoolica indígena.
Como pôde ser percebido, as vilas de índios foram pensadas como um novo
espaço para transformar a natureza cultural dos povos indígenas. O espaço, o cotidiano, o

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trabalho, o lazer e a vida privada entraram no conteúdo da legislação indigenista, ganhando


destaque fundamental na moldagem de novos hábitos e comportamentos. Contudo, os projetos
coloniais não foram transformados imediatamente em realidade. Vários fatores contribuíram
para forjar diferentes processos históricos de aplicação da política indigenista pombalina. As
leis antes de serem aplicadas tinham que passar pela peneira das relações de poder local, pelo
nível de organização das comunidades indígenas, pelos interesses dos diversos sujeitos
existentes e pelas conjunturas políticas e sociais.

Experiências Indígenas nas Vilas

Com a política de criação das vilas de índios no meado do século XVIII, os índios
da Capitania de Porto Seguro passaram a interagir de modo mais constante com a sociedade
colonial e construíram diversas estratégias de adaptação e resistência àquele novo mundo.
Entre 1758 e 1820, as vilas de índios se transformaram no principal palco das experiências de
contato entre povos indígenas e europeus em Porto Seguro.
Maria Regina Celestino de Almeida, ao estudar os aldeamentos indígenas da
Capitania de Rio de Janeiro, classificou estas povoações como um “espaço de ressocialização
dos povos indígenas, espaço esse que, além de cristão e português, foi também dos índios, e
que tornou possível a recriação de suas identidades”1449. Esta perspectiva trouxe uma
mudança paradigmática na abordagem da história dos índios, pois possibilitou observar a
influência das relações de contato nas transformações culturais, abandonando o dualismo
simplista entre “índio puro” e “índio aculturado”, além de destacar o papel dos índios como
sujeitos de sua própria história. Incorporando esta visão, é possível perceber as vilas de índios
como um espaço de ressocialização dos indígenas, que possibilitou o contato intercultural
aberto, porém contraditório.
Outra proposição importante foi de Isabelle Braz Peixoto da Silva, que investigou
as vilas de índios do Ceará, durante a vigência do Diretório Pombalino, concebendo-as como
“espaço fundamental de reconfiguração social e elaboração étnica”. A partir da análise das
dinâmicas locais, observou que as vilas de índios formavam “sistemas abertos, que permitiam
relações horizontais entre estas unidades, formando um sistema integrado mais amplo”1450.
Neste sentido, é possível pensar estas vilas integradas na sociedade colonial, mantendo
1449
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metarmofoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 26.
1450
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 18.

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relações políticas, econômicas e culturais com outras povoações, poderes e culturas. Na


Capitania de Porto Seguro, por exemplo, encontramos evidências de intensa interação entre as
vilas de índios e o comércio de farinha na colônia.
Algumas experiências vivenciadas na vila do Prado possibilitam visualizar o
processo de ressignificação cultural vivido pelos índios nestas povoações. Em 1775, por
exemplo, o segundo Ouvidor de Porto Seguro, o Dr. José Xavier Machado, enviou uma carta
ao Rei de Portugal, dando informações sobre sua intervenção naquela Capitania. Ao tratar da
Vila do Prado, explicitou um comportamento interessante dos seus moradores indígenas: A
respeito dos índios não tem sido possível refreá-los no uso em particular da sua bárbara
linguagem, ainda que no público a vão acautelando e abstendo-se dos vícios da ebriedade e
ociosidade1451.
Como indica o Ouvidor, os índios do Prado conseguiram fazer uma leitura própria
sobre o público e o privado. Tiveram a percepção de que o controle e a opressão se fazem
mais presentes nos espaços públicos da vila, ou seja, nas ruas, praças, mercados e largos. E
estão ausentes ou pouco freqüentes nos espaços privados, ou seja, dentro das casas ou nas
roças. Em decorrência disso, souberam usar o espaço privado como um reduto de manutenção
da sua língua, traduzindo aquilo que era uma imposição (habitações unifamiliares com
formato predefinido)1452 em uma forma de resistência.
Ainda tratando dos índios moradores da Vila do Prado, levantamos outra

experiência descrita em 1803. Segundo os vereadores brancos da vila, Prado possuía pouco

mais que 70 casais de índios, principalmente das etnias Pataxó e Maxacali. A Câmara se

esforçava para “extirpar” dos índios os “vícios bárbaros”, encaminhando à prisão aqueles que

insistiam em praticar os costumes indígenas. Dentre os crimes mais comuns estavam a

realização de “festas”, a “bebida de vinho de mandioca” (cauim) e os “distúrbios” urbanos.1453

1451
AHU – Projeto Resgate. Carta do Ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, dirigida ao
Rei, na qual relata o sucessivo desenvolvimento desta Capitania. Documento nº. 8787.
1452
Segundo o auto de creação da Vila do Prado, as habitações deveriam se organizar da seguinte forma: “cada
morada de casa de cada um dos moradores deve ter de frente 50 palmos, de fundo 35 e que se há de compor de
uma sala, com sua porta e duas janelas para a rua, um quarto para os pais dormirem, outro para os filhos, uma
casa de dispensa e outra para cozinha e o quintal há de ter de cumprimento 80 palmos e de largo os 50 de
fronteira das casas, os quais todas hão de ter a mesma frente, altura, portas e janelas” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29)
1453
AHU – Projeto Resgate. Ofício do Ouvidor de Porto Seguro Tomé Couceiro de Abreu (para o Ministro dos
Negócios do Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado), no qual transmite muitas e interessantes
informações, sobre as povoações, rios, população e madeiras da sua Capitania. Coleção Castro e Almeida -
Documento nº 6.508.

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As instituições coloniais encarregadas pela coerção e controle das populações

indígenas não conseguiram deter a prática regular de rituais indígenas. A estratégia de inserir

índios nas Câmaras como forma de legitimar suas ações políticas e jurídicas também não

surtiu muito efeito, pois os vereadores índios optavam pelo silêncio ao invés da denúncia a

um semelhante. Desta forma, os índios da Vila do Prado continuaram a praticar seus

costumes, mesmo sabendo dos perigos decorrentes desta ousadia.

Outra experiência dos índios que destacamos foi descrita por Maximiliano, no

final da década de 1810. O relato apresenta a chegada de “um bando selvagem” na Vila do

Prado, que para lá se deslocou com a finalidade de estabelecer trocas comerciais. O viajante

registrou que

Eram da tribo Patachós, da qual eu não tinha visto nenhum até então, e
haviam chegado poucos dias antes das florestas, para as plantações.
Entraram na vila completamente nus, sopesando armas, e foram
imediatamente envolvidos por um magote de gente. Traziam para vender
grandes bolas de cera, tendo nós conseguido uma porção de arcos e flexas
em troca de lenços vermelhos. (...) Queriam, sobretudo, facas e
machadinhas..1454

Ao realizar um confronto de fontes, tanto as do início do século XIX quanto as do


final do XVIII, percebemos que a entrada de índios dos sertões na Vila do Prado era bastante
comum. A orientação que a Coroa portuguesa dava aos colonos era de tratar os índios com
“brandura”, proibindo o uso da violência e incentivando a realização de alianças para que os
índios deixassem o interior do continente para habitar na vila. Contudo, muitos colonos já
desconfiavam de alguns grupos de índios que apareciam na vila, recebiam alimentação
gratuita, realizavam trocas comerciais e prometiam voltar com mais índios para residir na
povoação, porém desapareciam nos matos e só retornavam após alguns meses fingindo ser
outro grupo. Este fenômeno, portanto, além de ser uma forma de resistência, pode ser

1454
WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar S. de Mendonça e Flávio P. de
Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, p. 214, 1989

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entendido como um momento de encontro comercial e cultural entre o mundo colonial e o


mundo indígena.

Com a exposição destas experiências, podemos perceber que a Vila do Prado


passou por um processo de re-significação de sua função. Para além de servir como defesa da
Estrada da Costa do mar, também atuou como espaço de resistência, de acomodação, de
negociação e de troca.

CONCLUSÃO

As vilas de índios da Capitania de Porto Seguro se constituíram em espaços de


contato singulares para os povos indígenas no período colonial. Diferentemente dos
aldeamentos (jesuíticos, particulares ou da Coroa), as vilas de índios possibilitaram o
encontro sistemático dos indígenas com não-índios, destacando-se os colonos brancos,
pardos e mulatos, os escravos negros e mestiços e os degredados das mais diversas etnias.
Ao mesmo tempo, a nova legislação indigenista obrigava a inserção dos indígenas no
governo das vilas, fazendo que estes entrassem em contato direto com o jogo de poder
(político, social e cultural) presente nas Câmaras Municipais. Os índios também estavam
condicionados a um conjunto de regras sociais pautadas na idéia de civilização por meio do
trabalho agrícola e da imposição de hábitos comportamentais europeizantes, tais como a
vestimenta, a língua portuguesa, a habitação unifamiliar, etc. Nestas condições, podemos
levantar a hipótese de que as vilas de índios se constituíram em um espaço multicultural,
em que se materializaram vários encontros interculturais que contribuíram para a
reelaboração identitária dos povos indígenas, tendo como contexto geral as próprias
condições da situação colonial caracterizada por desigualdades e contradições.

REFERÊNCIAS

Fontes Manuscritas

AHU – Projeto Resgate. Ofício do Ouvidor de Porto Seguro Tomé Couceiro de Abreu (para o
Ministro dos Negócios do Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado), no qual

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transmite muitas e interessantes informações, sobre as povoações, rios, população e


madeiras da sua Capitania. Coleção Castro e Almeida - Documento nº 6.508.
AHU – Projeto Resgate. Relação sobre as Vilas e Rios da Capitania de Porto Seguro, pelo
Ouvidor Tomé Couceiro de Abreu. Coleção Castro e Almeida - Documento nº 6.430.
AHU – Projeto Resgate. Carta do Ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro,
dirigida ao Rei, na qual relata o sucessivo desenvolvimento desta Capitania. Coleção Castro
e Almeida – Documento nº 8787.
BNRJ – Manuscritos. Relação dos autos da creação da Villa Nova do Prado que mandou
fazer o Doutor desembargador Geral desta Comarca e Capitania de Porto Seguro, Tomé
Couceiro de Abreu, doc. I-5, 2, 29.

Fontes Impressas

FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Directório que se deve observar nas povoações
dos índios do Pará, e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa:
Oficina de Miguel Rodrigues, 1758.

INSTRUÇÕES dadas pelo Marques de Pombal a Thomé Couceiro de Abreu, quando mandou
por este magistrado criar a Ouvidoria de Porto Seguro. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia. Salvador, v. 42, 1916, p. 63-68.

SILVA, Antonio Moraes da. Diccionario da Língua Portuguesa, composto pelo padre D.
Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de
Simão Thadeo Ferreira, 1798.

VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Vol. 2. Salvador: Editora Itapuã: 1969,
p. 526.

WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar S. de Mendonça e


Flávio P. de Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, p. 213, 1989.

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BIBLIOGRAFIA

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TUPINAÊS, TUPINAMBÁS, FRANCESES E PORTUGUESES EM


KIRIMURÉ: ALIANÇAS, CONFLITOS E MORTES

Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraíso1455 - UFBA


mhparaiso@terra.com.br

Nas primeiras 40 décadas de 1500, a Baía de Todos os Santos (Kirimuré na língua dos
Tupinambás) foi o centro de complexas relações entre grupos indígenas, franceses e
portugueses. As disputas pelo controle da área, pelo corte e comércio do pau-brasil e pelo uso
da mão-de-obra indígena resultaram em conflitos, alianças, casamentos, fugas, resistências,
revoltas e na morte do Capitão Donatário da Capitania da Bahia, Francisco Pereira Coutinho,
o Rusticão. Os desdobramentos dessa disputa terminaram, juntamente com outros, na
reversão da capitania para o domínio da Coroa Portuguesa, na fundação da Cidade do
Salvador, na instituição do Governo Geral e na edição da primeira legislação indigenista para
a América Portuguesa. O que se pretende neste trabalho é analisar essa trajetória histórica à
luz da chamada “Nova História Indígena.”

Palavras-chave: História, índios.

Ao pensarmos as relações estabelecidas entre Portugal e os povos que habitavam


sua colônia na América temos que considerar o conjunto e a diversidade de estratégias e
conflitos estabelecidos entre os vários segmentos sociais. Nesse sentido, conquistar, dominar,
colonizar e ressocializar são etapas estabelecidas pelo projeto metropolitano para impor a
dominação e subordinação ao grupo nativo. Porém, convém ressaltar que essas estratégias não
ocorrem necessariamente nessa ordem e que nem todas foram implantadas ao longo do
processo colonial.
Da mesma forma, foram múltiplas as posturas adotadas pelos indígenas ante a
nova realidade e os conflitos delas decorrentes. O que não podemos ignorar é que a postura
adotada nunca foi passiva e desvinculada das tradições de cada grupo e da avaliação da

Notas Bibliográficas

1455
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Federal da Bahia.

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situação enfrentada. Assim, podemos elencar as várias formas de posicionamento adotadas


pelos grupos indígenas que variavam da resistência, às fugas, enfrentamentos, busca de
alianças com portugueses ou franceses e à tentativa de, através da aceitação do aldeamento
compulsório, construir um espaço no mundo colonial que se lhes apresentava.
Logo, o processo colonial não se estabeleceu, apenas, a partir da conquista militar,
mas também através de uma gama variada de relações econômicas, sociais e políticas
resultantes das tensões, conflitos e soluções encontradas por cada um dos grupos sociais
envolvidos. O fato inegável é que a efetivação da conquista exigia íntima associação entre o
Estado e particulares portugueses ou não e pressupunha soluções rápidas e criativas ante o
desconhecido, além de uma grande capacidade de manipular o oponente da forma mais
adequada aos interesses do empreendimento.
No caso dos indígenas sob domínio lusitano, a superioridade do armamento bélico
foi um fator relevante, porém há, ainda, que atentar para a perplexidade e o terror que
provocava em decorrência do seu desconhecimento Os combates, por sua vez, assumiam
outras formas que não as tradicionalmente praticadas pelas sociedades indígenas. As grandes
transformações introduzidas na arte da guerra referem-se não só às táticas utilizadas – a
prática do cerco, queima das aldeias e destruição de roças - mas também à destinação dada
aos vencidos. Essa destinação, no caso das sociedades Tupi do litoral no século XVI, deixava
de ser orientada para os rituais antropofágicos, razão de glória e valorização social do
vencedor e de dignidade para o vencido, e passava a ser a de compor os lotes de escravos
usados como trabalhadores nos empreendimentos e propriedades dos conquistadores. 1456
Elementos de fundamental importância no processo de solidificação da conquista
foram, também, os traumas psicológicos sofridos por esses povos decorrentes das práticas de
dominação exercidas pelos agentes colonizadores. Entre os grupos atingidos, passavam a
predominar sentimentos de perplexidade e de despossessão. Tratava-se da destruição do seu
universo tradicional e da sua auto-imagem positiva a partir do momento em que se
estabeleciam relações hierarquizadas e dominadoras.
A desestruturação econômica, social e política, imposta a partir do ordenamento
das novas relações, que levavam em consideração os interesses dos conquistadores e seu
modo de produção em detrimento das que predominavam nas sociedades indígenas, também
teve seu papel no processo de conquista/dominação. A ruptura do modo de produção

1456
FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de
conhecimento etno-histórico In CUNHA, Maria Manuela C. da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992 . p. 381-396.

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dominante naquelas sociedades, baseado em relações de reciprocidade, com trocas simétricas


voltadas para a consolidação da solidariedade, foi desastrosa no âmbito da produção e da
circulação de bens, tendo graves reflexos no ordenamento social. As relações sociais e as
expectativas comportamentais tiveram de ser repensadas e ajustadas a uma nova realidade. Os
objetivos econômicos passaram a se centrar na competição nas esferas da produção e do
consumo, agora regidas por leis de um mercado que os nativos ainda não conheciam e do qual
não dominavam as regras de funcionamento.
Esse tipo de desarranjo econômico-social tanto pode ser identificado nas formas
de exploração do ecossistema como também no conjunto de relações estabelecidas nos níveis
interno e externo. Com relação ao ecossistema, a competição pela caça, com o aumento da
população, a derrubada das matas, a introdução de atividades voltadas para o mercado e o fato
de as terras de melhor qualidade deixaram de ser parte do patrimônio desses povos exigiram
ajustamentos nas formas de explorar os recursos naturais.
Em termos das relações internas, ao se instalar a competição em detrimento da
solidariedade, os vínculos sociais ordenadores da estrutura social se esgarçaram. Assim,
desarticularam-se as interações provocando a ruptura de alianças e a acentuação do estado de
guerra em muitas áreas, particularmente naquelas em que eram comuns os saltos e razias
realizados pelos colonos para obtenção de mão-de-obra escrava.
O desrespeito à lógica interna da sociedade indígena - como nos casos da divisão
de trabalho; do preterimento de atividades produtivas que lhes garantiam a subsistência pelas
voltadas para a produção de mercadorias destinadas à troca e ao comércio; do desvio dos
prisioneiros para a formação de grupos negociados ou entregues como escravos; das regras de
solidariedade e a exigência, cada vez maior, da entrega de excedentes para a troca - gerou tal
desorientação social e em níveis tão profundos, que inviabilizou a reprodução da sociedade
indígena a partir do seu modelo tradicional.
Era preciso repensar, adaptar, encontrar brechas, formular estratégias de inserção
e preservação, fazendo surgir uma nova sociedade indígena mais operante ante a nova
realidade. E esta realidade tornou-se crescentemente dinâmica a partir do momento em a
conquista se transformou em colonização e esta se expandiu e passou a “consumir” novos
segmentos populacionais indígenas. Os descimentos forçados ou estimulados promoviam a
destribalização e o desenraizamento sócio-cultural desses povos e os fazia conviver com
grande diversidade de componentes da sociedade colonial.
Em termos de ordenamento sócio-político, há que destacar os efeitos negativos
provocados pela mudança do eixo de poder, o que acentuava a dependência e a incapacidade

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de uma reação de maiores proporções e mais efetiva dos indígenas ante as imposições que
lhes eram feitas. Nesse sentido, a morte e a destituição das lideranças indígenas ou sua
cooptação acentuavam-lhes o sentimento de abandono, ausência de proteção e de perspectivas
ante a violência imposta. No entanto, algumas dessas sociedades encontraram formas de se
ajustarem a essa nova realidade e, até mesmo, de criarem regras hereditárias de sucessão para
os cargos de chefia. Criaram, à moda européia, uma casta de governantes indígenas ativa no
seu diálogo, capaz de apresentar suas exigências e reivindicar seus direitos através do uso de
mecanismos políticos próprios do mundo colonial.
Ante a plasticidade dos grupos indígenas e a necessidade de consolidar a
conquista, o Estado português passou a implantar estruturas político-administrativas que
fossem capazes de promover a passagem do estágio de pilhagem para o de exploração das
riquezas naturais e da mão-de-obra ali existentes. Esta deveria se conformar às exigências do
novo modo de produção, à implantação de relações de trabalho de cunho escravagista e à
imposição de deslocamentos compulsórios para áreas consideradas importantes na estratégia
de ocupação, exploração, defesa e expansão dos territórios.
Independente das relações de poder serem expressas através de mecanismos de
violência explícita ou da criação de alianças, suas bases estavam fincadas no projeto estatal de
programar a conquista, a colonização e a integração forçada das populações a um modelo
estabelecidos pelo Estado conquistador de acordo com seus interesses e os dos segmentos
sociais tornados parceiros e executores daqueles projetos. E isso implicava a negação do
direito à autonomia das populações nativas, gerando várias instâncias de antagonismo,
oposição e resistência, o que só fortalecia a adoção de medidas e os argumentos voltados para
garantir a dominação e o controle sobre os revoltosos. Essa realidade nos permite afirmar que,
a longo prazo, o domínio imposto por uma minoria, em nome de uma superioridade racial e
cultural, promoveu relações pautadas pela hierarquização e dominação, apesar dos
argumentos de caráter humanitário alardeados para justificar essas ações.
Para compreendermos essas relações de poder é preciso considerar o objetivo
maior dos colonos de concretizarem empreendimentos econômicos rentáveis através do livre
acesso à terra e à mão-de-obra indígena. Com isso, pretendiam garantir o rápido retorno do
capital investido e promover seu enriquecimento e ascensão social. Mas, também, considerar
que os povos indígenas eram agentes históricos ativos que estabeleceram suas relações a partir
de suas vivências e experiências, expectativas e possibilidades de solução permitidas e
pensadas pelo seu referencial e sua organização sociocultural. Porém, é fundamental destacar
que as relações coloniais eram constantemente atualizadas a partir das interações

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estabelecidas entre os dois segmentos sociais, o que atribui peculiaridades aos vários
momentos e conjunturas historicamente constituídos, pois em nenhum momento, o aparente
equilíbrio social identificado no conjunto das relações teve um caráter estático. Essa dimensão
dinâmica resultou em vários modelos de interação entre colonizadores e colonizados e nos
constantes reordenamentos da organização social dos indígenas através da incorporação
seletiva de novos elementos culturais impostos pela convivência com os colonizadores.

Vivendo novas experiências em Kirimuré.

Quando da chegada dos portugueses à Kirimuré, a qual batizaram com o nome de


Baía de Todos os Santos, os conflitos já eram antigos. Os Tupinambás haviam se apossado da
região, após terem expulsado os Tupinaê para o interior das matas do Rio Paraguaçu. Pela
documentação produzida pelos missionários jesuítas a partir de 1549, por administradores
coloniais e cronistas, é possível inferir que os falantes da língua tupi compunham uma
população numericamente expressiva e que as várias tribos se subdividiam ao longo do litoral
em territórios definidos a partir do processo de conquista e ocupação. Os dados relativos a sua
organização social não indicam a existência de qualquer forma de articulação social e política
mais ampla do que as unidades locais ou aldeias, a não ser por uma rede de alianças entre as
tribos que se apresentava com grande mutabilidade em sua composição.
A fluidez e a precariedade dessas alianças, exploradas pelos colonos em proveito
de seu projeto de conquista, inviabilizaram a resistência aos mecanismos de conquista e
dominação, apesar da superioridade numérica dos indígenas com relação à quantidade de
colonos estabelecidos na colônia. Também souberam usar com competência as regras de
cunhadismo de forma a construírem alianças temporárias com os Tupi.
Os íncolas viam, nas suas relações com os europeus, a possibilidade de obterem
aliados poderosos contra seus inimigos tradicionais e de se preservarem dos saltos realizados
pelos colonos em busca de mão-de-obra, desviando seus ataques para as aldeias dos seus
opositores. Entretanto, esse quadro de alianças também era altamente fluido, compondo-se,
rompendo-se e recompondo-se de acordo com a dinâmica das relações estabelecidas entre os
vários segmentos sociais.
É nesse contexto de encontro de perspectivas e projetos distintos que vamos poder
compreender as relações estabelecidas entre colonizadores, ansiosos por efetivar a conquista e
enriquecer, e os Tupi que viam nos colonos os aliados externos que lhes permitiram manter as

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guerras a seus inimigos tradicionais e ter acesso aos novos e desejados equipamentos
manufaturados europeus.
O entendimento das relações de casamento estabelecidas entre colonos e
indígenas também deve ser pensado como uma das manifestações dessas intenções opostas,
mas complementares. Para os silvícolas, era a consagração da aliança tradicional expressa nas
regras do cunhadismo. Para os colonos, era o uso de uma instituição social daquele povo para
obter mão-de-obra, alimentos e permissão para viver nas aldeias como um dos seus membros.
Porém, aos poucos, os Tupi passaram a perceber os antagonismos nas relações
que estabeleciam e viviam cotidianamente fazendo-os reavaliar as alianças estabelecidas com
os colonos. Para os índios, as alianças baseavam-se em suas formas tradicionais de
organização social, ou seja, deveriam estar calcadas no princípio da reciprocidade e não,
como passou a ocorrer após os primeiros anos de contacto, instrumentos que garantiam os
direitos aos colonos e os deveres a eles, dominados. A constatação dessa realidade acentuou-
se quando a dependência dos indígenas para com os colonizadores se ampliou e a autonomia
destes com relação aos produtos de subsistência fornecidos pelos Tupi tornou-se uma
realidade.
A insatisfação dos indígenas acentuou-se a partir de 1532, quando da implantação
do sistema de Capitanias Hereditárias e das novas exigências que lhes eram apresentadas: o
trabalho compulsório, a produção voltada para o mercado externo e a imposição de novos
padrões culturais voltados para sua transformação em trabalhadores adequados às novas
atividades produtivas. Esses se tornaram os grandes vetores das constantes revoltas indígenas
nas várias capitanias.1457
Considerando-se os casamentos interétnicos como resultado de uma estratégia
política, econômica e social estabelecida entre os indígenas e os colonos no conjunto das
relações constituídas ao longo dos anos de convivência, podemos analisar o caso de Caramuru
e Catarina Álvares, depois conhecida como Paraguaçu, como o exemplo de um modelo e não
uma exceção no conjunto de relações sociais.

As uniões matrimoniais entre um homem e uma mulher fazem parte de um


contexto social e é a partir do conjunto de relações sociais estabelecidas por essas uniões que
se define a qualidade de um membro numa comunidade, a quem ele deve obedecer e por
quem deve ser obedecido, quem são seus amigos e seus inimigos, com quem pode e não pode
se casar, de quem pode herdar e a quem deixa sua herança. São, portanto, as uniões
1457
LINHARES, M Y. Introdução. In: LINHARES, M. Y. (Org.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1990. p. 2-3.

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matrimoniais que definem as teias de relações sociais, isto é, as relações de autoridade, as


econômicas, as de cooperação e as de ritual. Os Tupi não eram exceção quanto à importância
dos matrimônios como ordenadores da sua sociedade.

Inicialmente, deve-se ressaltar que o número de uniões interétnicas era tão


significativo que, ao consultarmos as Cartas Jesuítas, observam-se constantes acusações aos
colonos quanto à adoção de práticas gentílicas, particularmente no que se referia à poligamia.
Poder-se-ia dizer simplesmente que, nesse campo social, os lusitanos teriam se tupinizado se
não considerarmos tal opção também pelo ângulo das estratégias de conquista e dominação
implantadas na nova colônia.

Na concepção dos Tupi, as regras de solidariedade, indicativas do estabelecimento


de aliança calcavam-se na consangüinidade e incluíam os filhos e genros. A relação entre
sogros e genros era geradora de poder porque quanto mais elevado fosse o número de homens
(filhos e genros) vinculados a um chefe de família, maior seria o prestígio do seu “principal”.
Daí porque sempre eram desenvolvidos esforços familiares para atrair novos elementos do
sexo masculino, transformando, neste caso, as temericô, as índias que viviam com os
portugueses, em símbolo do estabelecimento dessa aliança, sendo as uniões reconhecidas
independentemente do colono ser ou não casado de acordo com as regras da sociedade
portuguesa.

As uniões, ao pressuporem o cumprimento das regras de solidariedade que dela


decorriam, representavam no contexto colonial a possibilidade para os indígenas de obterem
aliados para suas guerras e esperavam, em contrapartida, que os interesses e os inimigos dos
novos genros e cunhados fossem os interesses e os inimigos da tribo. Para os colonos esta
aliança significava mão-de-obra garantida para empreendimentos guerreiros de defesa da
colônia e para a incorporação de escravos conquistados em aldeias inimigas. Usando o mesmo
mecanismo social, obtinham trabalhadores para suas atividades agrícolas, fossem de
subsistência ou voltadas para o mercado e para corte e transporte de madeiras, além de
parceiros com os quais estabeleciam trocas preferências de mercadorias. Não devemos
esquecer, ainda, que o respeito às regras decorrentes das relações familiares foi fundamental
para a formação de tropas que permitiram o movimento entradista e bandeirante.

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Por que o destaque para Caramuru e Paraguaçu ?

Várias razões podem ser arroladas. Inicialmente o fato de ambos serem


personagens históricos, cuja existência e trajetória de vidas podem ser comprovadas. A
relevância de Caramuru como agente intermediador entre colonos e índios no período da
instalação da Capitania da Bahia e do Governo Geral em Salvador é outro ponto a ser
considerado. Há ainda que se observar a aceitação dos novos padrões comportamentais,
inclusive do batismo, ainda que na França, por Catarina.

Mas, acima de tudo, deve-se considerar a relevância dada ao casal pela


historiografia oficial quando lhe atribuiu características comportamentais e ações
justificadoras da fábula das três raças formadoras da nova nacionalidade. Da mesma forma, a
narrativa romantizada reforçaria o mito da cordialidade das relações sociais primevas,
elemento fundamental da ideologia implantada pelos sócios do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro para a construção da imagem do país nascente.

Caramuru e Catarina tornaram-se, assim, um casal paradigmático cuja imagem foi


divulgada pela intelectualidade brasileira usando como modelo e referência a imagem
formada a partir do poema – Caramuru - do frei Agostinho José de Santa Rita Durão, elevado
pelos românticos à condição de ancestral do movimento indianista.

Na visão assim construída, Diogo Álvares não é definido como um herói


conquistador, mas como herói civilizador, um fundador, o responsável pela primeira ação
colonizadora na Bahia. Misto de missionário e de colono que não se desvinculou de suas
raízes pátrias e atuou como um facilitador da conquista e da colonização, um símbolo de
civilidade e de pacificador capaz de usar expedientes mágicos – o tiro de espingarda, apesar
da pólvora molhada – para implantar formas duradouras de dominação.

Já Paraguaçu, nome, aliás criado pelo frade-poeta1458 e do qual não há registro


documental até a publicação do referido poema, é uma índia que aceita a superioridade da
cultura ocidental e a ela se submete, transformando-se, também, num agente de dominação. E,
apesar deste papel, a ela não é atribuída a pecha de traidora de seu povo, como ocorreu à
companheira de Cortés – Malintzin, la Malinche, conhecida, posteriormente, por Marina.

1458
O nome Paraguaçu assim como o atribuído a seu pai, Itaparica, foram criados usando a toponímia
de acidentes geográficos da Bahia de Todos os Santos.

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No entanto, cabe a pergunta: qual a trajetória histórica conhecida desses


personagens ?

Do primeiro, sabe-se que sempre disse ser um naufrago. Sempre apontado como
português, há, no entanto, suspeita de que fosse um galego1459 descendente de judeus, o que
não é impossível devido dado o constante circular de portugueses e espanhóis entre os dois
países, particularmente na região de Viana do Castelo, onde teria nascido. Outro elemento que
torna a hipótese aceitável é a participação de estrangeiros nos navios portugueses durante o
período de conquista e colonização da América. Para Teodoro Sampaio, entretanto, Caramuru
era um “tripulante contratado de algum navio francês”que permanecera na baía para organizar
e viabilizar o comércio de pau-brasil com os Tupinambá. 1460 Segundo as pesquisas de Moniz
Bandeira1461 as relações da família Álvares com comerciantes bretões eram antigas, pois
vários dos seus parentes atuavam como maerantes na pesca de bacalhau, o que explicaria essa
possível contratação do Caramuru.1462

O naufrágio teria ocorrido entre 1509 e 15111463 e, segundo consta em várias


narrativas acerca de sua aceitação pelos Tupinambá, Diogo Álvares, que provavelmente teria
sido destinado ao ritual antropofágico, os teria convencido que o poder das armas poderia ser
usado pelos indígenas contra seus inimigos tradicionais. Para comprovar sua promessa, teria
usado essas armas num ataque a uma aldeia em Passé.1464 Este armamento e a pólvora,
segundo alegava, seria proveniente de barris que conseguira salvar do navio naufragado.

A perplexidade ante a nova arma com semelhante poder destrutivo é que lhe teria
angariado prestígio, aceitação pelo grupo indígena e o transformado em genro e cunhado

1459
TOURINHO, Pero de Campo. Carta enviada ao Rei. Porto Seguro em 28/07/1546 In ACCIOLI, I. e
AMARAL. B. Memórias históricas e políticas da Bahia. Salvador. IOF, 1919. V.1.p. 199.
1460
SAMPAIO, Teodoro. História da Fundação da Cidade do Salvador, Salavador, Tipografia Beneditina,
1949, p. 119, 158-159.
1461
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões
à independência do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 59.
1462
O nome atribuído ao naufrago teve uma tradução tradicional: Caramuru – homem do fogo, filho do trovão.
Esta foi abandonada há muitos anos em decorrência de estudos mais acurados sobre a língua tupi. Segundo os
estudiosos, há duas possibilidades de nominações, sendo ambas verossímeis. Caramuru é o nome atribuído ao
peixe conhecido como moréia e que se abriga nas pedras à beira mar, situação em que os índios encontraram
Diogo Álvares após o naufrágio. Carái-muru que significa homem naufragado.
1463
As notícias sobre a presença de Caramuru na área da Baía de Todos os Santos se iniciam em 1514 quando
um português aprisionado por espanhóis, Estevão Froes, comunica por cata o fato ao rei D. Manuel. Outra
notícia data de 1526 sendo da autoria de um membro sobrevivente da tripulação da nau São Gabriel, comandada
por D. Rodrigo de Acuna, que havia aportado na Bahia. Em 1531, quem dá informações sobre Diogo Álvares é
Pero Lopes de Souza. Quando do naufrágio da nau Madre de Diós nas imediações de Boipeba, em 1535, quem
salvou os sobreviventes de serem aprisionados pelos índios, segundo Capitão da nau Juan de Mori, foi cristão
que se apresentava como Diego Alvares. MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 55-56.
1464
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 20

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desejável pelos líderes de ocas segundo os critérios tradicionais para estabelecimento de


alianças através de casamento.

Tanto interesse pela aliança e o conhecimento dos padrões dominantes nas


relações interétnicas e nas formas de casamento dos Tupi naquele momento, permite-nos
afirmar que o Caramuru dificilmente foi um monógamo, como a construção posterior de sua
imagem sugere. Assim afirmam Jaboatão1465 e Simão de Vasconcelos 1466
que afirmam ter a
fundação da Vila Velha decorrido do fato de Diogo Álvares ser o chefe de muitas famílias
indígenas e que vários maioriais estabeleceram alianças com o Caramuru, oferecendo-lhes
suas filhas e irmãs em casamento.

Também se pode intuir que a construção da Vila Velha decorreu do exercício das
formas tradicionais de atuação dos conquistadores: a substituição das antigas choupanas
indígenas por novas casas, supostamente de modelo lusitano, e o uso do trabalho indígena na
fundação de uma vila colonial e no corte e transporte de pau-brasil no entorno da baía de
Todos os Santos. Segundo Oviedo1467, a povoação compunha-se de mais de trezentas casas
espalhadas, onde além de Caramuru, mulher, filhos, noras e genros, viviam mais de mil índios
e náufragos europeus, inclusive franceses.

Sua atuação também se faz notar na transformação da sua outra residência em


Tatuapara (atual praia do Forte) num centro produtor de farinha e de criação de porcos,
produtos vendidos à nascente Salvador no governo de Tomé de Souza,.1468

A aliança de Caramuru com os franceses, descritos sempre como invasores da


colônia lusitana na historiografia tradicional, é insinuada por Accioli e Amaral1469 e, segundo
os autores, resultara do interesse pessoal do colono em rever a Europa. No entanto, como
interpretar o fato de ter sido conduzido por um navegante francês a Saint Malô e o que estaria
fazendo aqui este navegante senão contrabando de pau-brasil? Seria este contacto comercial
ocasional ou permanente?

Neiva (op.cit. p.186-9), analisando essa questão, chama a atenção para a presença
francesa na baía de Todos os Santos, Porto Seguro e Fernando de Noronha antes de 1503,
conforme os registros apresentados por Paulmier de Gonneville na França. Segundo este

1465
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 179.
1466
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 65.
1467
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 57
1468
NEIVA, Artur. Diogo Álvares Caramuru e os franceses. Existência do Pau-Brasil na capitania de Francisco
Pereira Coutinho (um livro em preparação) In Revista Brasileira (publicada pela Academia Brasileira de
Letras), Rio de Janeiro, número 03, ano 1.p.185-210. dezembro de 1941.
1469
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 156-157.

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comerciante de pau-brasil, navios da Normandia e Saint Malo mantinham comércio regular


com os indígenas da baía de Todos os Santos, que aceitavam de bom grado a presença de
estranhos devido à familiaridade do contacto e às relações de escambo estabelecidas que não
interferiam nas formas de organização social predominantes. Além do mais, os franceses não
se instalavam nas terras americanas, o que os resguardava de constantes conflitos com os
Tupinambá. Era, portanto, uma relação com características bem distintas das impostas pelos
portugueses decorrentes dos seus projetos de conquistar e colonizar.

Também os registros de Pero Lopes de Souza em 1531, dos jesuítas e de Gabriel


Soares de Souza1470 apontam para a constância da presença francesa nessa região, afirmando
que esta somente se interrompera após a instalação do governador Tomé de Souza e a
fundação de Salvador. A presença francesa seria confirmada, ainda, pela toponímia na área da
Grande Salvador incluir localidades como Ilha dos Franceses, Aldeia dos Franceses (termo
que aparece na sesmaria de Itapuã concedida por Tomé de Souza), Porto dos Franceses (Praia
do Forte), onde, ainda em 1561, o padre Rui Pereira1471 encontrou navios franceses na
proximidade de onde vivia Caramuru, e a sempre controvertida Mariquita, nos baixios do Rio
Vermelho.

Artur Neiva concorda com Francisco Vicente Viana1472 que, em 1893, proclamara
estar Caramuru a serviço dos franceses e ser o seu intermediário no comércio de pau-brasil
com os Tupinambá. Para esses autores, o espanto dos portugueses ao encontrá-lo em 1531 e
dos espanhóis em 1535 indicava o desinteresse de Diogo Álvares em manter relações com os
portugueses e em retornar a seu país de origem. A Neiva não passa despercebido o apedido de
Francês atribuído a Caramuru, o que sugere que, ao invés de simples naufrago, o nosso
personagem, na verdade, teria sido deixado aqui para administrar os interesses dos
comerciantes franceses de pau-brasil no Novo Mundo.

Autores como Frei Vicente de Salvador1473 e Simão de Vasconcelos1474 também


admitiam a vinculação contratual de Caramuru com os franceses, particularmente, como
afirmara José de Anchieta, no corte de pau-brasil nas matas da embocadura do rio Paraguaçu

1470
SOUZA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. São Paulo Martins Fontes, 1943.
1471
PEREIRA, Ruy. Carta que escreveu para os Padres e Irmãos da Companhia em Portugal no ano de 1561, a 6
de abril, que foi dia da Páscoa In Cartas Avulsas, Aspilcueta Navarro e outros, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São
Paulo, Edusp, 1988. p 307-320.
1472
VIANA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia, Bahia, Tipografia e Encadernação do Diário
da Bahia, 1893.
1473
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil – 1500 –1627; Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São Paulo,
Edusp, 1982. p 112-4; 143-4.
1474
VASCONCELOS, S de. Crônica da Companhia de Jesus no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977: 190-5.

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e Tatuapara. A mesma atividade também seria exercida por nossa personagem em Tinharé e
Boipeba, conforme a narrativa de Navarrete acerca do ataque sofrido pela frota de Acuňa em
1526 naquele local. Foi Diogo Álvares que negociou com os indígenas daquela localidade a
liberação dos sobreviventes da esquadra espanhola (vide Neiva, op.cit.p. 193-7; 204).

Outra demonstração do forte vínculo entre Diogo Álvares e os franceses é, sem


dúvida, a já referida viagem a Saint Malo. Além da viagem, o casal foi recepcionado com o
carinho dispensado aos aliados, recebido pelo rei Francisco I e a índia que acompanhava
Caramuru foi batizada solenemente, sendo-lhe atribuído o mesmo nome da esposa do
comerciante Jacques Cartier, Catarina de Granches1475. Também chama a atenção o fato de
Álvares ter estabelecido um acordo com os franceses de devolver os dois navios que os
transportariam de volta a Vila Velha carregados de pau-brasil e outros gêneros da terra.1476

Outras perguntas que surgem na análise dos dados referem-se à suposta oposição
entre Francisco Pereira Coutinho e Caramuru. A rivalidade entre os dois decorria da disputa
de mão-de-obra indígena ou o comércio com os franceses era outra razão de discórdia? Para
alguns autores, esta poderia ser a razão do conflito. Para Accioli e Amaral1477, vários outros
europeus, além de Diogo Álvares, se instalaram na área que viria a se constituir na Capitania
da Bahia no período que antecedeu sua criação. Seriam, na sua concepção, marinheiros
fugidos dos navios que navegavam para as Índias ou dos que se dedicavam ao tráfico de pau-
brasil. Esses moradores é que teriam sido os principais responsáveis pelo incitamento dos
índios contra o donatário, pois não estariam satisfeitos com as novas ordens que restringiam o
tráfico de madeira com os franceses. Essa opinião também era a de Varnhagen.1478

Para que não se perca a perspectiva de compreender as relações de forma mais


complexa, há que se recuperar as informações relativas aos transtornos impostos aos índios
pelas novas relações impostas pelos colonos. A disputa pelos alimentos, a destruição do
ecossistema, a imposição de uma convivência regida pela hierarquia social e política e de
novos padrões comportamentais e de formas de produção, introdução de doenças infecto
contagiosas e a apropriação das terras, mulheres e das riquezas naturais. Uma nova forma de
viver que contrariava frontalmente as sociedades indígenas e sua liberdade de ser e viver.

1475
Nos documentos encontrados nos arquivo de Saint Malo, Ille ET Villaine e nos Arquivos Federais de
Ottawa, o nome de batismo da acompanhante de Caramuru era Katherine Du Brèzil. Cartier teria estado na Baía
nos anos de 1523 e 1527, oportunidade em que teria levado o casal para a França. MONIZ BANDEIRA, Luís
Alberto, op. cit. p. 71-72.
1476
NEIVA, Artur. op. cit, p. 193.
1477
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit, 1919. V.1.p. 199-200.
1478
VARNHAGEN, F. A História geral do Brasil. Notas de Rodolfo Garcia. São Paulo,
Melhoramentos/INL/MEC. 1975

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As terras que antes ocupavam e exploravam transformaram-se em áreas proibidas


por terem sido entregues sob a forma de sesmarias a novos senhores. Ali se implantaram
canaviais e construíram engenhos que consumiam terras e homens. Na tentativa de atrair
Caramuru para suas hostes, o donatário também lhe concedeu uma pequena sesmaria, o que,
na verdade, significava, na prática, uma redução da área que poderia explorar
economicamente.

Os conflitos com os Tupinambá se ampliaram e, segundo afirmativa de Thevet,


várias roças foram queimadas e muitos colonos que aqui aportaram com Coutinho foram
mortos pelos índios insatisfeitos. Porém, acredito que aos índios estavam associados os
antigos moradores de Vila Velha e o próprio Caramuru, todos insatisfeitos com a convivência,
a escravidão e as novas regras que dificultavam ou impossibilitavam a continuidade do
comércio de pau-brasil. Para Jaboatão, conforme transcrição feita por Accioli e Amaral1479, a
morte do filho de um dos “principais” de uma aldeia Tupinambá teria sido o estopim da
revolta. O donatário, em 1545, estava sitiado e com dificuldades de ter acesso a água potável e
alimentos. 1480 Ante a inviabilidade de faze frente às contestações, o donatário buscou refúgio
em Porto Seguro.

Accioli e Amaral, no entanto, atribuem um papel essencial a Catarina Álvares.


Chegam mesmo a afirmar que Catarina Álvares teria sido a grande articuladora da aliança
entre várias aldeias Tupinambá contra o donatário quando da prisão de Caramuru por
Coutinho num navio ancorado no porto. De acordo com esta versão, a índia comandara a
insurreição, o que resultou na fuga do capitão para Ilhéus e sua morte em Itaparica, quando ali
naufragou. Segundo esses autores, 1481 a cabeça do sacrificado teria sido levada em triunfo em
canoas para Vila Velha e entregue aos vitoriosos Diogo e Catarina Álvares.

Já Neiva1482 considera que Caramuru e Coutinho eram associados no contrabando


de pau-brasil e teria sido o próprio Álvares que fora a Porto Seguro interceder junto a seu
donatário para acolher Coutinho e recolhera seus despojos em Itaparica. É, porém,
significativo que Caramuru não tenha acompanhado o Donatário em seu exílio em Porto
Seguro e que, só após a morte de Coutinho, tenha comunicado a Pero de Campo Tourinho a
presença de franceses na baía de Todos os Santos e o ataque à Vila do Pereira, de onde

1479
JABOATÃO, Frei Antônio de Novo Orbe Seráfico Brasileiro In ACCIOLI, I. e AMARAL. B. op. cit., 1919.
V.1.p. 188.
1480
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 92 – 93..
1481
ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. 1919. V.1.p. 158-160.
1482
NEIVA, Artur. op. cit, p. 199.

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1483
retiraram os canhões e demais armas de defesa ali existentes. Sua decisão de retornar a
Vila do Pereira teria ocorrido após terem sido negociada a paz com os Tupinambá. Essa outra
versão aponta para a possibilidade do donatário da Bahia também estar envolvido na venda de
escravos indígenas, o que, aliás, era legalmente permitido desde que respeitados determinados
limites numéricos. Na verdade, consideramos que as diversas versões acerca da revolta, ao
invés de serem vistas como excludentes, podem ser consideradas como complementares.

A importância de Caramuru como intermediário entre os Tupinambá e os


administradores portugueses parecer ter sido reconhecida pelo rei D. João III quando através
de missiva lhe solicitou o apoio para a instalação do governo geral e a construção da Cidade
1484
do Salvador. Segundo os relatos de Manuel da Nóbrega, Caramuru foi essencial na
intermediação entre o governador, os missionários e os índios, sendo o intérprete mais
qualificado e o orientador das medidas mais adequadas a serem adotadas. Além do mais,
tornou-se um fornecedor constante de alimentos, principalmente de farinha de mandioca, além
de frutas, verduras e porcos para os habitantes da nascente capital.

No entanto, estabeleceu-se certo mal estar entre Tomé de Souza e Diogo Álvares.
As razões a serem apontadas podem ser várias. Uma delas são as constantes e severas
punições impostas pelo governador aos índios que se rebelavam ou resistiam a suas ordens.
Essas medidas não só fragilizavam a posição de Caramuru perante seus aliados como também
representavam a desconsideração da autoridade para com sugestões por ele apresentadas.
Outra razão a ser considerada era a decisão dos índios e de Álvares em manterem o comércio
regular de pau-brasil com os franceses. Este fato está referido pelo inaciano Rui Pereira,
quando de sua visita às propriedades que Caramuru mantinha em Tatuapara. Para Thales de
Azevedo1485 Diogo Álvares, na sua velhice e, após tantos anos de convivência e aliança com
os Tupinambá, era um caso típico de híbrido cultural dividido entre dois mundos e tendo que
atender a dois senhores por se sentir devedor de lealdade a ambos. Marginalizado das decisões
e impotente à destruição das sociedades, faleceu em outubro de 1557, provavelmente com
mais de 70 anos. Catarina sobreviveu ao companheiro Faleceu em 1587. Profundamente
vinculada ao cristianismo, doou a Capela de Nossa Senhora da Graça e as terras em volta e a
prataria de seu uso pessoal à Ordem de São Bento

1483
NEIVA, Artur. op. cit, p. 201.
1484
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 101.
1485
AZEVEDO, Thales, Povoamento da Cidade de Salvador, Salvador, Editora Itapuã, 1969, p 112.

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Há, finalmente, que destacar o fato de Catarina Álvares, uma eficaz agente
cultural no processo de transformação do seu povo e facilitadora da implantação dos
mecanismos de dominação, ter cumprido o seu papel de fundadora de uma nova sociedade
mestiça e cristã. Essa perspectiva compõe o imaginário baiano sobre essa mulher. Alega-se
que, após várias visões de Nossa Senhora, Catarina deliberou por construir uma capela na
Vila Velha, atual Bairro da Graça, em Salvador, onde está um quadro que imortaliza suas
visões e seu túmulo e de alguns dos filhos. Segundo Moniz Bandeira, 1486 a imagem entronada
na capela foi encontrada pelos índios Tupinambá aliados de Caramuru entre os despojos da
nau Madre de Diós que naufragou em Boipeba.

Sua prole é identificada como totalmente integrada, em termos sociais, ao novo


mundo colonial. Segundo Jorge Couto1487, suas filhas – Ana, Genebra, Apolônia e Gracia -
casaram-se com os chamados “europeus de posição“ - Paulo Dias Adorno, Afonso Rodrigues,
Custódio Rodrigues Correia e João de Figueiredo – e seus três filhos – Gaspar, Gabriel1488 e
Jorge Álvares – foram sagrados cavaleiros por Tomé de Souza. Era a ascensão dos mestiços
ao poder econômico e político e com livre trânsito nos dois mundos ainda no século XVI.
Bastante paradigmático é o casamento de Isabel d’Ávila, filha do primeiro senhor da Casa da
Torre e de uma índia, a herdeira única de todos os bens da família e Diogo Dias, filho de
Genebra Álvares e Vicente Dias, neto, portanto, de Caramuru. Casamentos e alianças, como
nas sociedades Tupi e européia, persistiam, assim, como elementos chaves no processo de
construção do Novo Mundo reproduzindo os velhos mundos nos dois continentes.

Apesar dessa realidade tão controvertida, o mito de Caramuru e Paraguaçu está


presente ainda de maneira muito forte no cotidiano dos baianos, particularmente dos
soteropolitanos. Não deixa de ser emblemático que a cabocla do desfile de 2 de Julho seja
Paraguaçu, que nas comemorações em torno dos 450 anos de Salvador o casal fosse usado
como referência de uma cidade mestiça resultante de felizes uniões interétnicas e, finalmente,
que a Reserva Indígena destinada aos índios Pataxó Hãhãhãi dos municípios de Pau Brasil,
Itajú do Colônia e Camacã, tenha sido denominada de Caramuru – Paraguaçu, talvez na
expectativa de que ali se estabelecessem relações harmônicas entre índios e brasileiros, o que
nunca ocorreu.

1486
MONIZ BANDEIRA, Luís Alberto, op. cit. p. 67
1487
COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a
finais de quinhentos. Lisboa : Cosmos, 1995.
1488
Gabriel Álvares fez parte da expedição punitiva enviada por Mem de Sá ao Rio São Mateus para combater
índios em revolta e comandada pelo filho do governador. Ambos faleceram nesse combate.

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OS “ATORES COADJUVANTES” DA HISTÓRIA DA CAPITANIA DA


PARAÍBA: OS RELATOS E A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA
ACERCA DOS POVOS INDÍGENAS.

Jean Paul Gouveia Meira - UFCG


(jeanpaulgm86@gmail.com)1489
Juciene Ricarte Apolinário - UFCG
(apolinarioju@hotmail.com)1490

Nessa pesquisa temos por objetivo analisar os discursos oficiais e as construções


historiográficas acerca dos povos indígenas encontrados no território paraibano, durante o
processo de conquista e expansão dos limites territoriais da Capitania Real da Paraíba fundada
em agosto de 1585, a partir de procedimentos teóricos e metodológicos da historiografia
colonial brasileira e paraibana. Ao longo do nosso estudo enunciamos o papel de “atores
coadjuvantes” designados a indivíduos de tais povos, desvalorizando suas ações e práticas de
resistência. Para efetivação dessa pesquisa, dialogamos com Beatriz G. Dantas, José Augusto
L. Sampaio, Juciene Ricarte Apolinária, Horácio de Almeida, Maria Rosário G. de Carvalho,
Pedro Puntoni, dentre outros que compartilham de conhecimentos em torno da temática
História Indígena no Brasil Colônia.

Palavras-chave: Resistência, Povos Indígenas, Capitania Real da Paraíba.

“O país era totalmente deserto e inculto. Não havia nem casas nem tetos
nem quaisquer acomodações de campanha. Ao contrário, havia gente arisca
e selvagem, sem nenhuma cortesia nem humanidade, muito diferente de nós
em seus costumes e instrução; sem religião, nem conhecimento algum da
honestidade ou da virtude, do justo, e do injusto, a ponto de me vir à mente a
idéia de termos caído entre animais com figura de homens. Fazia-se
necessário prover a tudo como toda diligência e tudo resolver enquanto
nossos navios aparelhavam para o regresso, de modo que, invejosos do que
havíamos trazido, não nos surpreendessem os selvagens e nos matassem.”
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1980. p. 39.

1489
Aluno do VI semestre da graduação em História (licenciarura e bacharelado) da UFCG. Bolsista do
PIBIC/CNPq.
1490
Professora da Unidade Acadêmica da Universidade Federal de Campina Grande.
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Em alguns documentos, como o relato da viagem que fez ao Brasil o francês Jean
de Léry no século XVI, os povos indígenas foram caracterizados como bárbaros, selvagens e
indomáveis. No entanto, desde o início da colonização, os indígenas, para além de sua utilidade
como força de trabalho, apareciam como aquele substrato mínimo de povoadores necessários
para a manutenção do domínio, ante as tentativas de conquista e invasão de outras potências
européias, ou mesmo de resistência de grupos nativos de caráter mais hostis na visão do
colonizador. A percepção desta funcionalidade específica dos povos indígenas no processo
colonizador já havia sido pensada por Caio Prado Júnior, para quem é certo que os portugueses
procuraram aproveitar-se deles como elemento participante da colonização. E que os homens e
mulheres indígenas, sob o domínio da política indigenista, integraram-se, de forma submissa, à
sociedade envolvente, transformando-se de elementos perturbadores a indivíduos
colaboradores do processo de ocupação portuguesa no território paraibano. Daí o papel de
“atores coadjuvantes” designados a indivíduos de tais povos, desvalorizando suas ações e
práticas de resistência.
Sendo assim, nessa pesquisa temos por objetivo analisar os discursos oficiais e as
construções historiográficas acerca dos povos indígenas encontrados no território paraibano,
durante o processo de conquista e expansão dos limites territoriais da Capitania Real da
Paraíba fundada em agosto de 1585, a partir de procedimentos teóricos e metodológicos da
historiografia colonial brasileira e paraibana. Ao longo do nosso estudo, enunciaremos,
primeiramente, um esboço histórico sobre as discussões teóricas em torno da temática História
Indígena, presentes nos documentos e relatos oficiais, e na historiografia tradicional ligada ao
Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba; em seguida, analisaremos a contribuição dos povos
indígenas, no olhar longe do “outro” em análise, nas guerras de conquista e fundação da
Capitania Real da Paraíba, além de sua expansão territorial ao “país dos Tapuias”, como diria o
Pedro Puntoni; por fim, estudaremos as novas abordagens em torno das ações e práticas de
resistência dos indígenas apresentadas pela nova historigrafia desenvolvida nos cursos de
História de algumas universidades nordestinas, em referência ao período colonial da História
do Brasil. Para efetivação dessa pesquisa, dialogamos com Beatriz G. Dantas, José Augusto L.
Sampaio, Juciene Ricarte Apolinário, Horácio de Almeida, Maria Rosário G. de Carvalho,
Pedro Puntoni, dentre outros que compartilham de conhecimentos em torno da temática
História Indígena no Brasil Colônia.
Nesse contexto, tomemos como ponto de partida Frei Vicente do Salvador:
“Estava conquistada a Paraíba, no entender do ouvidor geral Fernão da Silva. Mas os índios
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espreitavam os seus passos e como nada entendessem de termos judiciais, nem estavam por
isso, acharam azado o momento para fazer uma surtida em cima da expedição, agravados que
se sentiam com a destruição dos seus roçados e aldeias.”1491 Nessa passagem, podemos notar
os estereótipos do religioso para com os indígenas, os quais não teriam uma idéia de justiça, da
virtude, e amedontrava todos com suas práticas de violência, e selvageria. Apenas com a
intervenção do padre superior da Companhia de Jesus, seria pacificado tais “gentios” hostis.
Ademais, o valoroso documento de época conhecido como “Sumário das
Armadas”, escrito por um padre da Companhia de Jesus, não identificado, nos fins do século
XVI, a mando do padre Christovam de Gouveia, o visitador da Companhia de Jesus no Brasil;
nos revela a forte postura indígena para as práticas sexuais: a nudez, a poligamia, o adultério,
dentre outros fatores, indignavam o caráter religioso do jesuíta. Além disso, ele descreve tais
indígenas, habitante dos sertões nordestino, como imundos, comedores de ratos, passaros,
bichos e plantas “venenosas”, além de exóticas; feiticeiros, tendo comunicações com o
demônio; “gentios” inocentes, amigo das mulheres e brandos com elas, servindo e obedecendo
aos sogros como a seus pais; invejosos, tudo que vêem nos brancos eles desejam; preguiçosos,
brutos, desonestos, folgados, comilões, todos esses aspectos descritos nos mostram os vários
estereótipos forjados no encontro de “eu”, culto e civilizado, para com o “outro”, distorcendo
as múltiplas imagens. Sendo assim:

Este ardil nos não val com os pitiguares, (9) que, sendo o maior e mais
guerreiro gentio do Brasil, que occupa do Parahyba até o Maranhão (600 leg.),
tão unidos e conformes estão uns com os outros, que, de indústrias,
assentaram, entre si, intregarem-nos a nós os seos delinquentes, para nós os-
castigarmos, sem elles brigarem nem se desavirem nunca por isso: e assim o-
dizem sempre, nas pulhas aos brancos, quando na guerra vêm á fala.1492

Para tanto, quem muita confusão criou sobre a fundação da Paraíba foi Frei
Antônio de Santa Maria Jaboatão, no seu “Orbe Seráfico”. Os escritores paraibanos parece que
escreveram com Jaboatão à vista, principalmente Maximiano Machado, o autor da “História da
Província da Paraíba”. Daí o cuidado que é preciso ter em apurar certas “verdades” que
chegaram aos nossos dias amparadas pela tradição. Maximiano, por sua vez, também levou de
arrastão escritores sérios como Coriolano de Medeiros, Celso Mariz, Manoel Tavares
Cavalcante, Alcides Bezerra, José Américo de Almeida, e outros mais:

1491
ALMEIDA, Horácio. História da Paraíba. Vol. 1. João Pessoa: EDUFPB, 1997. p. 62.
1492
Sumário das armadas. Campina Grande: FURNE/UFPB, 1983. p. 26.
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Disse Maximiano que João Tavares, juiz de órfãos e escrivão da Câmara de


Olinda, esteve na Paraíba em 1579, onde levantou um forte na ilha da Camboa
e ‘sem fazer mais que isso, foi pelos índios tolerado’. Largando esse forte, foi
mais acima, no lugar onde depois teve assento a cidade de Nossa Senhora das
Neves e aí construiu ´algumas casas para o abrigo seu e de sua gente, local
que ficou conhecido pela denominação de Porto da Casaria’ ...1493

O que espanta em Horácio de Almeida é entender João Tavares gozando de tanta


tolerância dos índios, a ponto de construir um forte na Camboa e, em seguida, o Porto da
Casaria, às margens do Sanhauá, exatamente numa época em que os indígenas andavam
levantados, fazendo guerra ao longe contra os moradores de Itamaracá e de Igaraçu.
No tempo da invasão e colonização holandesa no Nordeste do Brasil (século XVII),
Elias Herckmans integrou o grupo de artistas e sábios trazido por Maurício de
Nassau.Governou a Capitania da Paraíba nesse meio tempo, e elaborou um primoroso
documento relatando as paisagens, rios e riquezas naturais da Paraíba, a formação de suas
elites, e um pouco dos costumes do “gentio bárbaro” do sertão dessa capitania, conhecido de
uma maneira generalizada por índios tapuias, em sua “Descrição Geral da Capitania da
Paraíba”. Sobre os tapuias, segundo Heckmans, eles se dividem em várias nações: cariris,
carijós, icós, icozinhos, tarairiús, coremas, janduís, dentre outros; não têm lugares fixos ou
aldeias onde morem, regulando-se pelas estações do ano para procurarem o seu alimento; não
cortam os cabelos como os holandeses; andam inteiramente nus; não usam barba nem tem
cabelo em alguma parte do corpo; são homens e mulheres incultos e ignorantes, sem nenhum
conhecimento do verdadeiro Deus; servem ao diabo ou quaisquer espíritos maus; levam uma
vida bestial e descuidosa; não semeiam, não plantam nem se esforçam por fazer alguma
provisão de víveres; praticam a antropofagia; enfim, trata-se, portanto, de inúmeras distorções
sobre tais costumes dos “tapuias”, além de generalizá-los para todos os povos habitantes do
sertão da Capitania Real da Paraíba. Mais uma vez, também presente no colonizador holandês,
o “eu” civilizado vai de encontro ao “outro”, e não falam desse “outro” como os tais se
representam:

Quando os soldados ao serviço da Companhia das Índias Ocidentais foram


sob o comando do chefe Artszoski, conquistar a barra de Cunhaú no Rio
Grande, auxiliados pelos Tapuias do rio Jan Duwy, vários capitães
neerlandeses viram e testemunharam que eles faziam vir a sua presença o
diabo sob a figura de um tapuia, mas tendo uma perna somente e falando com
uma voz muito fina, como de mulher, e não podia, aliás, ser conhecido por

1493
ALMEIDA, Horácio de. op. cit., p. 95.
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eles. Quando o espírito desapareceu ou esvaeceu-se ante os seus olhos,


começaram todas as mulheres a chorar e a gritar, como o que parecia honrá-
lo; porquanto, quando querem dar sinais ou contentamento, o fazem por meio
do pranto e berreiro das mulheres.1494

Ademais, é necessário mencionar a importância de João Capistrano de Abreu no


quadro mais geral da historiografia brasileira. Identificado com o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, junto com Francisco Adolfo de Varnhagen, propunham uma história que
poderíamos chamar de “acontecimental”, ou seja, preocupada antes de tudo com a legitimação
de uma ordem baseada nos grandes acontecimentos e nos grandes heróis do Brasil. No entanto,
Capistrano pode ser considerado o primeiro esforço no sentido de se fazer uma nova história
colonial, elegendo novos objetos de estudo, e novas perspectivas. Trabalha com a diversidade
cultural, e não vai enxergar um Brasil no período colonial, mas verá Brasis, onde há diferenças
às vezes inconciliáveis e há pessoas e grupos se organizando e vivendo de formas
absolutamente variadas. Sendo assim, na concepção de Capistrano, ainda que este reproduza
certos estereótipos, principalmente em relação aos povos indígenas, há janelas entre as diversas
culturas que permitem que ele faça a análise sócio-cultural, em um determinado tempo e
espaço.
Nesse contexto, o IHGB inaugura suas filiais na maioria, se não todos, dos estados
do território brasileiro. Em 1907 foi criado o Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba,
herdando toda a historiografia “acontecimental” nos moldes dos trabalhos realizados por
Capistrano de Abreu e Varnhagen. Aliás, vale salientar que tais autores mencionaram a
Capitania Real da Paraíba, e descreveram, de uma forma indireta e restrita, sobre os povos
indígenas tanto do litoral quanto do sertão, fortalecendo a idéia de que tais indígenas seriam
mais úteis para o colonizador atuando como colaborados, e não pertubadores da ordem; além
de mostrarem o “índio” como submisso e facilmente incorporado à cultura europeizada. No
IHGP, as normas de produção historiográfica não seriam diferentes de tais aspectos. Em outras
palavras, tal instituição manteve, ao longo dos anos, sua tradição privilegiando estudos sobre
os grandes personagens e acontecimentos, ao lado da abordagem de temas polêmicos ou
objetos de controvérsias. José Octávio de Arruda Melo destaca três linhas na historiografia
paraibana: a factual e documental; a capistraneana; e a varnhageniana. Já Rosa Maria Godoy

1494
HERCKMANS, Elias. Descrição Geral da Capitania da Paraíba. João Pessoa: A União, 1982. p. 40.

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Silveira aponta para duas outras vertentes: a oligárquica, de caráter conservadora; e a crítica,
capaz de articulações mais amplas.
Para tanto, o historiador Horácio de Almeida, vinculou-se desde muito jovem ao
Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, contribuindo para uma produção historiográfica na
qual colocava o indígena como sujeitos fortemente submissos, e colaboradores com o projeto
de expansão territorial adotado pela metrópole portuguesa na época colonial. Foi assim, que ele
em sua primorosa obra “História da Paraíba”, indiretamente, descreveu a importância da
colaboração dos indígenas para a conquista e fundação da Capitania Real da Paraíba.
Tentaremos nas páginas que se seguem, elaborarmos um esboço histórico das guerras e da
participação dos povos indígenas no processo, segundo os relatos oficiais e a historiografia
tradicional, de tal conquista para o Império luso, e suas investidas para o sertão dos “tapuias”,
contribuindo com a política de expansão das fronteiras adotadas pelos burocratas da metrópole,
mas também pelos jesuítas da Companhia de Jesus, sob a forma de aldeamentos catequizantes.
Sendo assim, mais uma vez atentamos para o fato de que o papel de povoador,
destinado ao indígena, desempenhava uma função estratégica na contrução do domínio
colonial. Os indígenas do litoral, eram, talvez, os únicos capazes de dar conhecimento das
terras e riquezas no sertão adentro; e contribuir para as tropas de conquista com os homens
necessários às diversas guerras contra os “indíos bravios” do sertão. Tais indígenas favoráveis
eram isolados da sociedade litorânea, e submetidos aos trabalhos pedagógicos de conversão das
almas nos aldeamentos estratégicos das missões dos padres jesuítas da Companhia de Jesus,
desde fins do século XVI. Entretanto,

a política de alianças e aproximação relativamente pacífica com alguns


povos indígenas será seguida à risca pelos holandeses, quando de posse
do Nordeste brasileiro, entre os anos de 1630 e 1654. Os comerciantes
batavos aprenderam gradualmente as regras da colonização, entre as
quais estava a urgência de encontrar aliados, em número e força, para a
manutenção do domínio. (...)1495

Assim, tão logo os holandeses empreenderam uma viagem ao “país dos tapuias”
em busca de aliança vingadora com os indígenas do sertão paraibano; isto porque os do litoral
já eram aliados dos portugueses.

1495
PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 2002. p. 54.
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Entretanto, antes de passarmos ao novo contexto, em que a criação do gado


requerida pela expansão da economia açucareira, se transformará em fator prepoderante de
penetração e conquista do sertão da Paraíba, examinemos sucintamente as contribuições e
participações indígenas no processo de fundação da Capitania Real da Paraíba, segundo a visão
de relatos oficiais e da historiografia tradicional. Convocado o povo às armas e arregimentada
as tropas, podemos averiguar a presença de “índios mansos” no combate de forças com os
indígenas “bravios” em seus territórios. Os portugueses tiveram que se aliar com outros povos
indígenas do litoral para combater os franceses, os quais firmaram pactos com as “tribos
hostis” do território litorâneo da Paraíba. Em cada conquista, narrada por Horácio de Almeida,
os lusitanos foram construindo fortes, e se adaptando com a cultura indígena de comer farinha
de mandioca, alimento básico e alternativo durante as necessidades geradas pelas guerras,
como o cerco, e por conseguinte, a fome generalizada. Em tais conflitos, era essencial a
presença de indígenas convertidos ao catolicismo, os quais teria a missão de negociar a paz e
realizar acordos com os demais indígenas, por conhecer os dialetos e línguas faladas. A
conquista da Paraíba frente as tropas dos “indios” potiguares, só foi concretizada por
intermédio de um pacto ou aliança com o chefe da nação tabajara, Piragibe, grande rival dos
potiguares, no dia 5 de agosto de 1585: “Estava conquistada a Paraíba graças aos esforços do
licenciado Martim Leitão, ouvidor geral do Brasil. No primeiro ano após a conquista, pouco
se cuidou da cidade, porque havia uma tarefa muito mais árdua a tratar, a eliminação do
perigo que ameaçava a fundação.”1496
Nesse contexto, as guerras com os “indios hostis” pareciam não mais cessar. O
processo histórico de conquista do sertão da Paraíba também foi acompanhada de muito
derramamento de sangue. Valeu-se o colonizador dos conhecimentos indígenas sobre as áreas
sertanejas, a superação dos limites impostos pela natureza “selvagem e penetrada”, as técnicas
de guerra indígenas, inclusive a alimentação durante o período conflitoso. Mas, sem maiores
dúvidas, o elemento principal de penetração no sertão paraibano foi a atividade pecuária. Esta
desenvolvida pelo trabalho braçal dos vaqueiros, muitos deles caboclos de origem, grandes
conhecedores da paisagem, do clima, e das dificuldades do sertão na Paraíba durante o século
XVII. Pouco a pouco, as fazendas de gado foram aumentando em contraposição aos terrenos
perdidos pelas “tribos hostis dos tapuias”, facilitado pela presença de aliados indígenas nas
lutas com as “tribos” rivais. “(...) O precário conhecimento dos ‘Tapuias’ não é expandido de

1496
ALMEIDA, Horácio de. op. cit. p. 88.
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modo siginificativo com sua efetiva conquista, aliando-se para tanto a voracidade da frente
pastoril e as compulsões culturais da ação missionária que se lhe seguiu – forçando inclusive
a sedentarização e concentração em seus redutos de grupos diversos – ao presumivelmente
baixo contigente demográfico de cada etnia ou unidade política original.”1497
Ademais, uma outra questão de fundamental importância trata-se do novo olhar
historiográfico para os estudos realizados sobre História Indígena nas universidades do
nordeste, inclusive na Paraíba. Tal produção acadêmica apresenta uma maior diversidade
devido ao leque de correntes teóricas que norteiam os trabalhos. Para tanto, a partir dos anos
1980, acontece uma grande viragem na historiografia brasileira. A nova história cultural teria
uma de suas primeiras representantes no Brasil em Laura de Mello e Souza. Ocorre uma
ressignificação da história, trazendo consigo algumas orientações inovadoras e fundamentais;
novos objetos de estudo, novas abordagens, novos sujeitos históricos, novas perspectivas. O
retorno ao político significou repensar a História Indígena valorizando as dimensões políticas e
históricas construídas pelos mais diversos grupos indígenas no processo de contato com a
sociedade circundante portuguesa. Na documentação oficial, que dota de sentido o “outro”,
como diria Michel de Certeau, foi preciso rastrear as etnias indígenas abordadas, suas
localizações, suas ações de resistência diante do projeto assimilacionista do colonizador. Essa
metodologia permite visualizar as variadas práticas políticas indígenas. Assim,

o historiador, ao entrar em contato com a documentação histórica, não deve


carregar consigo um filtro teórico-metodológico que o impeça de vizualizar,
nas entrelinhas documentais, os espaços intermediários das práticas políticas
indígenas por onde passa a ‘resistência’. Repensar as formas de resistência
indígena na história do Brasil Colônia, enquanto prática política, é não aceitar
as afirmações historiográficas simplistas de ‘desaparecimento’ e
‘extinção’.1498

Sendo assim, a nova história paraibana vem sendo elaborada essencialmente pelos
quadros das universidades presentes no estado, mas também influênciada pelas produções
acadêmicas de outras universidades do nordeste brasileiro; a partir de trabalhos monográficos,
dissertações de mestrado, teses de doutorado e pesquisas. Alguns temas já bastante trabalhados
são revisitados sob nova abordagem, como no que se refere à História Indígena. Só a título de

1497
DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L., CARVALHO, Maria Rosário G. de. “Os Povos
Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um esboço histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneira da (org.). História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 432.
1498
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá nas fronteiras do Sertão. Políticas indígena e indigenista no
antigo norte de Goiás, atual Tocantins. Goiânia: Kelps, 2006. p. 37.
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exemplo, as produções acadêmicas, na área de História, na Paraíba em torno dos estudos


etnográficos dos povos indígenas, e como eles representam a si mesmos, tem sofrido
influências da maciça produção da Universidade Federal de Pernambuco, através dos
professores Ricardo Pinto Medeiros, também arqueólogo, e Edson Hely Silva. Na Paraíba tais
estudos de História Indígena ainda precisam ser desenvolvidos. Um grande nome que surge em
tal cenário é o da professora Juciene Ricarte Apolinário da Universidade Federal de Campina
Grande, a qual, trouxe consigo toda sua experiência com questão indígena e resistência, através
dos trabalhos realizados na Universidade Federal do Tocantins, abordando os mais diversos
povos indígenas habitantes desse atual território, no período colonial da História do Brasil, e
suas inúmeras práticas de resistência diante do progresso da colonização lusa e a conquista de
novas terras, outrora pertencente aos povos indígenas, por intermédio de guerras e acordos de
paz.
Contudo, ao longo desse nosso estudo extraímos dos relatos oficiais e das
produções historiográficas tradicionais, a prepoderância do “eu” em análise do mundo do
“outro”, e podemos, sem maiores dúvidas, deduzir o quão importante nos são um melhor
estudo etnográfico, na maneira do antropólogo, para não apenas estudar a cultura desse
“outro”, mas tentar abordar realmente o retrato dessa cultura, fornecido com as representações
que os indivíduos possuem de si mesmos. Portanto, a historiografia tradicional muito ligada a
história “acontecimental”, de certa maneira, renegou as ações e práticas de resistência
indígenas durante o processo histórico de conquista e fundação da Capitania Real da Paraíba, e
sua posterior expansão no sertão adentro. No entanto, mostramos o quanto está presente na
historiografia tradicional o indígena como “ator coadjuvante” na política de colonização
adotada pelos europeus no Brasil. Tais estudos se mostram pouco eficázes, por causa dos
estereótipos produzidos nas análises. Sendo assim, nos dias atuais prevalece uma
ressignificação de tais análises presente nos quadros mais tradicional, e nos revela de extrema
importância para a representação sucinta da cultura do “outro”, deixando espaços para que tal
indíviduo em estudo mostre a si mesmo, e suas práticas de resistências contra as adiversidades.

Fontes:

HERCKMANS, Elias. Descrição Geral da Capitania da Paraíba. João Pessoa: A União,


1982.

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LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1980.

Sumário das armadas. Campina Grande: FURNE/UFPB, 1983.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, Horácio. História da Paraíba. Vol. 1. João Pessoa: EDUFPB, 1997.

APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá nas fronteiras do Sertão. Políticas indígena e


indigenista no antigo norte de Goiás, atual Tocantins. Goiânia: Kelps, 2006.

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L., CARVALHO, Maria Rosário G. de. “Os
Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um esboço histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneira
da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 2002.

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IV– PAINÉIS

Coordenação:
Profª . Emanuele Tourinho Almeida (UNIT)
Prof. José Roberto dos Santos (UNIT/UFRN)
Profª. Maria Fernanda dos Santos (IHGSE/FSLF)

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HISTÓRIA DAS EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS E PEDAGÓGICAS DOS


ANARQUISTAS: A EDUCAÇÃO E O TEATRO ANARQUISTAS

Ana Luiza dos Santos Rodrigues Paulo – UNIRIO


anarodrigues84@hotmail.com
Luiz Renato Dias Gomes Padilha – UNIRIO
luizrenatodgp@yahoo.com.br

Pesquisamos as experiências das escolas libertárias e o papel pedagógico do teatro anarquista,


no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Nossa pesquisa faz parte de um núcleo de
estudos históricos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (NEB -UNIRIO) que
investiga as experiências educativas libertárias no Brasil, no início do século XX. Buscamos
por meio deste trabalho falar sobre a relação existente entre as escolas libertárias e o teatro
anarquista, para mostrar como estas experiências colaboraram para a formação da classe
trabalhadora e a divulgação dos ideais anarquistas. Falaremos especificamente sobre as
experiências das escolas livres, do teatro anarquista e de sua proposta pedagógica. O nosso
núcleo de pesquisa mapeou diferentes lugares no Brasil onde ocorreram experiências teatrais
e festivais artísticos anarquistas; as experiências das escolas libertárias e os métodos
utilizados para divulgar este ideal. Detectamos por meio da imprensa, do início do século XX,
a importância do teatro como processo educativo.

Palavras-Chaves: Educação Libertária; Teatro Anarquista; Pedagogia Libertária.

INTRODUÇÃO:

No final do século XIX até as primeiras décadas do século XX houve uma forte
contribuição dos imigrantes no Brasil. Uma delas foram as experiências anarquistas,
principalmente entre italianos, portugueses e espanhóis, que deixaram o seu legado de
vivências sobre a liberdade na luta contra as injustiças sociais, a favor do ideal libertário
contra o estado e qualquer forma de repressão.
A pedagogia libertária foi um meio de luta pela emancipação dos operários e
sublimação das injustiças sociais, de propagação das idéias anarquistas, assim como o teatro
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que, vinculado ao caráter pedagógico de tal proposta, contribuiu para a expressão dos
operários, para a criação coletiva e solidária.
Nessa relação com a arte e a educação sociais, encontramos vivências de liberdade
e contestação das injustiças como tentativas de estender ao mundo uma pedagogia que
entendia que todos os seres humanos eram detentores de um potencial de emancipação e
merecedores de vida social e moral mais justa.

Experiências Educacionais no Brasil nas Primeiras Décadas do Século XX:

Os anarquistas fizeram fortes críticas ao ensino oficial, principalmente ao seu


caráter conservador, no qual somente a elite tinha acesso á educação enquanto os filhos dos
operários não tinham espaço na educação formal ficando clara a utilização da educação como
segregação social, tratando a escola como um artigo de luxo.
Na educação oficial, tanto como na clerical, se via uma imposição de ideais às
crianças para que estas não fomentassem uma mudança nas estruturas sociais quando se
tornassem adultas, esse é o motivo principal dos anarquistas terem buscado cada vez mais
discutir a questão educacional, pois não confiavam seus filhos ao sistema educacional vigente.
A crítica à educação oficial foi um dos pontos principais nas discussões ocorridas
no Primeiro Congresso Operário Brasileiro (COB) em 1906, na fala do militante português
Edgar Rodrigues:

O ensino oficial tem por fim incutir nos educandos idéias e


sentimentos tendentes a fortificar as instituições burguesas e, por
conseguinte, contrárias à emancipação operária, e que ninguém mais
do que o próprio operário tem interesse em formar livremente a
consciência dos seus filhos (RODRIGUES apud MORAES, 2006)

Esse congresso foi de extrema importância, pois a sua preocupação com a


temática da educação proporcionou diversas iniciativas para atividades que visavam a
construções de escolas. Com fortes influências da experiência do Orfanato de Cempuis (1880
á 1894) realizado por Paul Robin (1837 – 1912) e do racionalismo proposto por Ferrer Y
Guardia em sua experiência com a Escola Moderna de Barcelona e, em meio a diversos
protestos contra o fuzilamento de Ferrer, em 1909 foi criado a Comissão pró-Escola Moderna

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a qual foi composta por pensadores anarquistas importantes para a área educacional do
movimento como João Penteado, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho entre outros.
Em meio a esse movimento pró-educação anarquista efervescente, principalmente
nas primeiras duas décadas do século XX no Brasil, houve diversas modalidades educacionais
e propostas para a construção e implementação de uma pedagogia libertária, com ajuda dos
sindicatos, dos pais, dos militantes anarquistas e dos simpatizantes da causa.
Foram pensadas modalidades de ensino diferente para suprir a demanda
educacional da classe operária da época, na qual a grande maioria era constituída de
analfabetos. Foram criados os Centros de Estudos Sociais, para dar acesso aos estudos para os
operários anarquistas. A criação desses centros era mais simples, pois só necessitavam do
espaço físico e de assinaturas de diversas revistas e jornais e a instalação de uma biblioteca
social. A educação do trabalhador adulto se dava por intermédio dos Centros de Cultura
Social, das conferencias, das bibliotecas, dos jornais, salas de leitura e etc, era um espaço
onde os militantes tentavam também mostrar aos demais operários a importância da revolução
para se alcançar uma organização social mais igualitária e justa trazendo leituras e discussões
sobre temas libertários.
A criação desses centros era feita de forma mais versátil, pois, por ter uma
finalidade diferenciada, a mesma foi construída sem os formalismos (por mais que reduzidos)
existentes na escola anarquista destinada ao ensino elementar.
A Universidade Popular foi uma tentativa ousada ,porém, breve (com duração
apenas de março a outubro de 1904) de se tentar complementar o quadro do ensino libertário,
sua proposta era de:

Fundar um ensino metódico para o povo, organizar conferências


periódicas sobre todos os assuntos suscetíveis de interessar aos
trabalhadores, fundar um museu nacional e uma biblioteca, realizar
representações de arte social, saraus musicais, festas literárias e
excursões científicas, artísticas e expansivas, publicar um boletim
que seja órgão da associação, estabelecer, enfim, um centro popular
tendo por fim ás vezes o prazer e a instrução – e a união moral entre
os cooperadores. (KASSICK, Neiva B.,1996)

A educação básica formal para as crianças foi a luta principal, pois a necessidade
de uma educação livre do dogmatismo religioso e estatal era gritante para os anarquistas.
Foram fundadas diversas escolas, porém a manutenção das mesmas eram questões difíceis de
se administrar, pois as dificuldades financeiras e a perseguição cresciam cada vez mais.
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De acordo com o Programa Educacional divulgado em 1882, criado com a


participação de diversos nomes de respeito dentro do movimento anarquista como os de
Kropotkin, Élisée Reclus, Louise Michel entre outros muitos, as escolas brasileiras
anarquistas trabalhavam com uma perspectiva educacional que seguiam quatro preceitos
básicos como descrito no documento já mencionado:

a) Integral, isto é, favorecer ao desenvolvimento


harmonioso de todo o individuo e fornecer um conjunto
completo, coerente, sintético e paralelamente progressivo em
todos os domínios do conhecimento intelectual, físico, manual
e profissional, sendo as crianças exercitadas nesse sentido
desde os primeiros anos;
b) Racional isto é, Fundamentado na razão e conforme os
princípios da ciência atual, e não na fé;no desenvolvimento da
dignidade e da independência pessoal, e não na piedade e na
obediência; na abolição da ficção divina, causa de eterna e
absoluta servidão;
c) Misto, isto é, favorecer a co-educação sexual numa
comunhão constante, fraterna entre meninos e meninas. Essa
co-educação, ao invés de constituir um perigo, afasta do
pensamento da criança as curiosidades malsãs, e torna-se uma
ocasião para sábias condições que preservam e asseguram
uma alta moralidade;
d) Libertário, isto é, numa palavra, consagrar em proveito
da liberdade o sacrifício progressivo da autoridade, uma vez
que o objetivo final da educação é formar homens livres que
respeitem e amem a liberdade alheia. (KROPOTKIN apud
LUIZETTO,1986)

Ainda de acordo com o citado documento, os interessados a se envolver nos


assuntos educacionais, deveriam estar dispostos a abdicar de três práticas comuns dentro do
espaço escolar, essas são a disciplina, por fragmentar o conhecimento gerando assim a
dispersão e a mentira; os programas, por limitar o trabalho, anulando a iniciativa, a
responsabilidade e a originalidade dos educadores e as classificações, por trazer comparações
gerando inveja, rivalidade e mal-estar entre os estudantes.
A co-educação não se limitava apenas a questão de gênero, abrangia também
questões sócio-econômicas, nas escolas anarquistas tinham crianças das diversas classes
sociais, e as mesmas como necessitavam da ajuda dos pais para sua manutenção haveria de
ser financiada também pelos pais, sendo que devido aos baixos salários do operariado, nem

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sempre todos podiam arcar com as despesas, com consciência disso, alguns pais chegavam a
ser isentos do pagamento.
Uma pratica muito comum nas escolas libertárias era a confecção de periódicos
onde os alunos escreviam sobre diversos temas, e os quais eram usados também para a
disseminação dos ideais anarquistas, inclusive a propaganda desses ideais utilizando-se de
meio de comunicação era bastante utilizado pelos sindicatos e militantes anarquistas.
Uma das primeiras experiências de escola libertária no Brasil foi a construção da
Escola Libertária Germinal, em São Paulo, porém sofreu diversos problemas, desde os
financeiros até os de falta de qualificação técnica dos envolvidos, percebia-se essa falta de
preparo pedagógico e de embasamento teórico nos panfletos e documentos os quais
apresentavam os objetivos da escola. Em 1904 não se tem mais noticias dessa experiência.
Mais ao final da primeira década do século XX pode-se identificar novamente um
grande empenho dos militantes em busca da construção de mais uma experiência pedagógica,
dessa vez com maior organização e conteúdo teórico e ideológico, foi criado assim um
Comitê Organizador da Escola Moderna de São Paulo, o qual programou a Escola Moderna
N° 1, a qual durou de 1912 á 1919 servindo de base para as futuras atividades educacionais do
movimento em São Paulo e foi dirigida por João Penteado1499 em quase toda sua existência
(menos no ano de 1917 no qual se ausentou da cidade, dando lugar ao militante anarquista
Florentino de Carvalho) no ano de 1919 diversas escolas libertárias foram fechadas por ordem
do Diretor Geral da Instrução Publica do estado de São Paulo, Oscar Thompson , com a
justificativa de que as mesmas descumpriam o artigo 30 da lei 1.579 o qual falava sobre as
normas gerais para a concessão de funcionamento de estabelecimentos de ensino particulares,
porém ignorando os artigos 31 e 32 da mesma lei os quais definiam a aplicações de penas
mais brandas antes da proibição definitiva do funcionamento escolar.
O movimento anarquista foi fortemente perseguido e reprimido tanto por parte do
estado (fazendo uso das forças de repressão, prendendo e assassinando os militantes
anarquistas), quanto por parte da igreja e pela pressão social que eram estimuladas por essas
instituições que propagandeavam informações distorcidas sobre o referido movimento. Como
exemplo trago um escrito publicado no jornal A Gazeta do Povo no ano de 1910, retirado do

1499
João de Camargo Penteado nascido em Jaú no estado de São Paulo no ano de 1877, falecido no ano de 1965
na capital do referido estado. Associou-se ao Centro Operário na cidade de Jaú, no qual se firmou como redator
de O Operário, após se mudar para capital e estabelecer contatos com os anarquistas ajudando na luta pela
educação libertária.
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livro A Pedagogia Libertária na Historia da Educação Brasileira de Neiva Beron Kassick e


Clovis Nicanor Kassik, publicado no ano de 2004:

...todo o mundo já sabe que em São Paulo trata-se de fundar uns


institutos para a corrupção do operário, nos moldes da Escola
Moderna de Barcelona, o ninho do anarquismo de onde saíram os
piores bandidos prontos a impor suas idéias, custasse embora o que
custou. Ora uma tal casa de perversão do povo vai constituir um
perigo máximo para São Paulo. E é preciso acrescentar que não
somos só nós, os católicos, que ficaremos expostos á sanha dos
irresponsáveis que saíssem da Escola Moderna. Brasileiros e
patriotas, havemos todos de sentir o desgosto uma vez realizados os
intuitos da impiedade avançada, de ver insultada a pátria,
achincalhadas as nossas autoridades, menosprezadas as nossas
tradições de povo livre, por estrangeiros ingratos que abusam do
nosso excesso de hospitalidade e tolerância. (...) A escola Moderna
vai pregar a anarquia, estabelecer cursos de filosofia transcendental,
discutir a existência de Deus e semear a discórdia... Depois, será a
dinamite em ação.

Segue uma listagem de algumas experiências educacionais libertárias existentes


no Brasil dentre os anos de 1895 á 1920 que foram mapeadas:

• Escola União Operária – 1895 – Rio Grande do Sul;


• Escola Libertária Germinal -1903 – São Paulo;
• Escola Sociedade Internacional – 1904 – Santos (Fundada pela União dos
Operários Alfaiates);
• Universidade Popular- 1904 – Rio de janeiro (Fundada pelo Centro
Internacional dos Pintores);
• Escola Livre – 1907 – Campinas (Fundada pela Liga Operária de Campinas);
• Escola Noturna – 1907 – Santos (Fundada pela Federação Operária de Santos);
• Escola Moderna – 1909 – São Paulo
• Escola Social – 1909 – Campinas (Fundada pela Liga Operária);
• Comitê Pró-Escolas Modernas – 1909 – São Paulo;
• Escola Liga Operária de Sorocaba – 1911;
• Escola Moderna de São Paulo – 1912 – São Paulo;
• Escola Moderna do Braz – 1912;
• Escola Nova – 1912 – Moca/SP;

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• Escola União Operária de França – 1912;


• Escola Eliseu Reclus – 1913 – Porto Alegre;
• Escola Livre 1° de Maio – 1913 – São Paulo;
• Escola Moderna – 1914 – Pernambuco (Fundada pelos Operários da
Construção Civil);
• Escola Moderna n° 2 – 1918 – São Paulo;
• Escola Operária 1° de Maio – 1919 – Rio de janeiro;
• Escola Joaquim Vicente – 1920 – São Paulo;
• Escola Francisco Ferrer – 1920 – Belém/ PA;
• Escolas Profissionais – 1920 – Rio de Janeiro (Fundadas pela União Operária
em fábricas de tecido no Rio de Janeiro);
• Escola Livre – 1920 – Petrópolis (Fundada pelos operários em fábricas de
tecidos de Petrópolis);
• Escola da Liga da Construção Civil – 1921 – Niterói/ RJ;
• Escola Moderna do Sindicato da Construção Civil de Garanhuns;
• Escola Mista Primária – Franca /SP;
• Escola Noturna Horácio Hora – Sergipe;
• Escola Acadêmica do Comércio – São Paulo;
• Escola Martins Júnior;
• Escola Centro Operário de Corumbá;
• Escola Operária – Petrópolis;
• Escola Operária – Rio de Janeiro (fundada pelo Centro de Resistência dos
Cocheiros);
• Escola Noturna de Artes e Ofícios – Rio de janeiro;
• Escola Renascença – Ceará (Fundada pela União Geral dos Trabalhadores);
• Escola de Esperanto- Rio de Janeiro (Fundada pelo Grupo Renovação);
• Biblioteca social: Renovadora – Rio de Janeiro;
• Biblioteca Social: A inovadora – São Paulo;
• Centro Internacional de Cultura – Rio Grande do Sul;
• Centro de Estudos Sociais – Sorocaba/ Sp;
• Centro Feminino: Jovens Idealistas – São Paulo;
• Centro de Cultura Popular e Casa do Povo – Poço de Caldas;
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• Centro Cultural: Juventude Anarquista – Rio de Janeiro;


• Grupo Social Renovação – Rio de Janeiro;
• Centro de Estudos Sociais “Spartaco” – São Paulo;

A Experiência Pedagógica do Teatro Anarquista

Vimos a importância da instituição escolar para a emancipação dos operários, que


preocupou-se com uma prática escolar de liberdade, não só como “método” pedagógico ou
superação das condições socioeconômicas , mas como um ideal maior de libertação da alma,
da mente, das vontades, das potencialidades e da ação humanas.
A pedagogia anarquista não contou somente com o espaço da escola para praticar
tais ideais. O Teatro foi um importante centro de vivência da pedagogia libertária como um
espaço não formal de educação, entendendo este como qualquer lugar fora da instituição
escolar onde se desenvolve o potencial educacional, podendo estar ou não relacionado com a
educação como meio de formação profissional. Foi, então, um grande ato político como
necessariamente são todas as atividades do homem.
O Teatro Anarquista possui seus primeiros registros no Brasil no final do século
XIX, trazido pelos libertários italianos, portugueses e espanhóis, junto com a filosofia
anarquista. A influência principalmente italiana era bem marcada nas peças mais antigas e
facilmente reconhecida. Os primeiros grupos teatrais foram formados por operários de
construção, vidreiros, sapateiros, cocheiros, estivadores de docas, garçons, tipógrafos e etc.
Destacaram-se as regiões sudeste e sul nas manifestações anarquistas devido a distribuições
da imigração no país. No Rio de Janeiro destacou-se o Grupo de Teatro Social que
funcionava no então chamado Centro Galego que funcionava na Rua da Constituição, hoje
bastante conhecida no centro da cidade. No lugar era costume a apresentação de inúmeras
peças com esse mesmo caráter social.
Em São Paulo, destacaram-se o Grupo Filodramático Libertário e o Teatro
Social, que foi um dos grandes méritos do movimento anarquista. Em janeiro de 1905, esse

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realizou um espetáculo teatral em benefício das famílias das vítimas do Czar, sobre o
fuzilamento de operários russos. O dinheiro arrecadado foi enviado para a Rússia juntamente
com donativos conseguidos pelo jornal A Terra Livre, como meio de ajudar o sustento e
solidarizar com o sofrimento dessas famílias. O Teatro Social destacou também a importância
desse caráter solidário que era oferecido pelo teatro anarquista prestando apoio aos
companheiros presos na manifestação do Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
A estética libertária era bastante diferenciada. O Teatro anarquista, inicialmente,
não tinha como preocupação principal a caracterização dos seus personagens pelo seu figurino
ou pela imagem cenográfica, visto que muitas vezes as apresentações não eram feitas
freqüentemente em teatros propriamente ditos, mas em sedes das associações operárias ou em
lugares destinados à realização de conferências. Algumas vezes, sedia-se lugar em teatros
populares para a apresentação dos grupos libertários.
As peças não eram realizadas com o intuito do lucro, como em outras propostas
teatrais, e não havia a intenção em investir em roupas ou no cenário. Então, os figurinos,
muitas vezes, eram reutilizados e pouco se distinguia a roupa do patrão e do operário como
personagens. O cenário não havia grandes caracterizações também. Ao texto e à representação
dos atores é que era dada grande relevância. O conteúdo das mensagens e a clareza na
transmissão das idéias eram de vital importância no teatro anarquista devido ao seu caráter
didático e pedagógico. Eles discordavam da arte como profissão ou meio de lucro, ou a arte
pela arte. Defendiam uma estética a favor de um ideal, como forma de contestação e ato
político social, sempre passando uma mensagem intencional.
Algumas peças possuíam caráter histórico como, por exemplo, a peça 1° de Maio,
que retratou o dia em que os trabalhadores foram protestar por condições de trabalho mais
humanas e houve duro confronto com a polícia. Há algumas peças que retratam a revolta
contra o clero e a repressão da igreja, os ideais libertários femininos, os valores familiares, a
contestação das diferenças sociais e as injustiças contra o ser humano, sempre com um caráter
de ensinar alguma proposta anarquista em suas diversas temáticas.
O teatro reunia os operários e suas famílias, tornado-se um encontro social. Nas
peças os atuantes proporcionavam, freqüentemente, o diálogo com a platéia. Uma troca onde
o espetáculo mistura-se aos sentimentos e convicções dos ouvintes e estes se fazem presentes
influenciando as manifestações teatrais. Se na pedagogia libertária a relação entre professor e
aluno é linear, onde ambos aprendem mútua e coletivamente, sem hierarquias marcadas, no
teatro são retratadas com fidelidade essas propostas atuando de forma pedagógica e
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mostrando na prática esses valores embutidos. O teatro anarquista, então, mostrou que não só
o ator é possível de criação como também a sua platéia, tornando todos os seres igualmente
produtivos. Nesse ponto, o teatro social também foi um meio de valorizar a auto-estima
desses trabalhadores que não tinham voz nem autonomia na esfera social, criando um trabalho
autêntico e digno de admiração, sem relacionar status pré-definidos entre platéia-ouvinte e
atores-atuantes, tratando platéia e atores correlacionados na criação.
O teatro libertário tratava, então, das questões coletivas, das manifestações contra
as injustiças cometidas, da divulgação dos ideais anarquistas, do tratamento solidário prestado
aos que foram presos e suas famílias, ou aos que sofreram acidentes de trabalho, aos operários
que sofreram injustiças em qualquer lugar do mundo e que estivessem ligados à mesma causa.
Além disso, os fundos recolhidos eram prestados a construir escolas para os trabalhadores e
seus filhos, para sustentar periódicos e material de divulgação.
Hoje, há alguns remanescestes dessa causa, como o Teatro do Oprimido no Rio de
Janeiro, entre outros, que não se identifica diretamente com a antiga proposta da época
relatada do teatro anarquista, até mesmo por contextos históricos, mas guarda ideais
semelhantes de luta contra a opressão humana em suas diversas formas, ajuda solidária e
transformação da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2005

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REVISTA EDUCAÇÃO E SOCIEDADE, N° 24, AGO 1986 – CORTEZ , CEDEZ / SP


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ISBN - 978-85-7822-067-9
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1132
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RODRIGUES, Edgar. O Anarquismo na Escola no Teatro na Poesia. Rio de Janeiro:


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CONTINUIDADE DE SENTIDO: ARTIGOS ENQUANTO


ESTRATÉGIAS DE PROGRESSÃO REFERENCIAL NO TEXTO DOS
LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA

Ana Maria Garcia Moura1500


mouramgm24@gmail.com

Este trabalho está vinculado ao projeto “História regional para as séries inicias da
escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão” desenvolvido pelo Grupo de
Pesquisa em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe (GPEH/DED/UFS). O
livro didático pode assumir diversos papéis no contexto escolar, podendo ser utilizado como
instrumento auxiliar, como fonte de pesquisa, como caderno de leitura, etc. Mas, na maioria
das vezes, é visto como a única ferramenta eficaz para ser utilizada em momento de
aprendizagem, sendo assim, se constitui em ferramenta fundamental no processo de
escolarização, já que faz parte do cotidiano de docentes e discentes no processo de ensino-
aprendizagem. Partindo-se do pressuposto de que o livro didático é composto por textos que
auxiliam, ou podem auxiliar, no desenvolvimento da leitura e da escrita, a progressão
referencial, categoria da lingüística textual, possui estratégias textuais que contribuem para a
elaboração de encadeamentos de informações que possibilitarão ao leitor/ouvinte mecanismos
para a compreensão e produção de sentidos. Desta forma, este trabalho teve por objetivo
analisar como os artigos, estratégias de progressão referencial, aparecem em livros didáticos
de história para as séries iniciais. Com a análise percebeu-se que a progressão referencial – a
retomada de elementos – é realizada de maneira similar nas três primeiras séries do ensino
fundamental e que tais estratégias são utilizadas com freqüência e atuam na criação de elos
significativos entre as informações dadas e as novas inseridas.

Palavras-chave: Livro Didático, Texto, Progressão Referencial.

INTRODUÇÃO

1500
Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Sergipe, bolsista Pibic/FAPITEC e membro do
Grupo de Pesquisa em Ensino de História (GPEH/DE/UFS).
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Este trabalho faz parte do projeto “História regional para as séries iniciais da
escolarização básica: o texto didático em questão”, desenvolvido acerca de um ano pelo
Grupo de pesquisa em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe
(GPEH/DED/UFS). Possui como objetivo observar como as estratégias de progressão
referencial realizadas através de artigos são utilizadas pelos produtores de livros didáticos de
história.
O livro didático é considerado por muitos docentes como um instrumento
didático-pedagógico essencial no desenvolvimento de suas atividades em sala de aula, é
considerado, na maioria das vezes, como a ferramenta base para a seleção e planejamento de
conteúdos, neste caso da disciplina de história.
Desta forma, podemos dizer que o livro didático é o principal, senão o único
material de apoio às aulas. Além da sua importância enquanto ferramenta didática, este se
encontra disponível para as instituições de ensino via financiamento público. Sendo assim,
possui relevância não só como material de apoio didático, mas também enquanto mercadoria.
O livro didático pode desempenhar várias funções além das expostas acima. A
professora Circe Bittencourt costuma afirmar que o livro didático é um objeto cultural
complexo de múltiplas facetas e que possui difícil definição, porém observa que é possível
identificá-lo pela familiaridade de uso, já que é um dos instrumentos mais usados no cotidiano
escolar.

A familiaridade com o uso do livro didático faz que seja fácil identificá-lo e
estabelecer distinções entre ele e os demais livros. Entretanto, trata-se de
objeto cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se
caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação
e consumo. Possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das
condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas
diferentes situações escolares. É um objeto de “múltiplas facetas”, e para sua
elaboração e uso existem muitas interferências. (BITTENCOURT, 2004, P.
301)

A identificação do livro didático como objeto cultural complexo, é suficiente para


percebermos as diversas possibilidades de análise desse objeto essencial na vida cotidiana de
docentes e discentes do Brasil. No entanto, apesar de o livro didático possuir vários aspectos
que podem ser estudados, neste trabalho ficaremos apenas com a dimensão do texto escrito,

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ou seja, o aspecto que compreende a organização e apresentação das idéias, o conjunto de


relações de sentido que possibilitam ao aluno construir e produzir conhecimentos

Artigos como Fatores de Coesão

O sentido de um texto não está relacionado a uma junção de frases sucessivas que
o constituem, mas depende de aspectos lingüísticos que quando sistematizados contribuem
para a organização do texto, tanto para a coesão quanto para a coerência.
A coesão está ligada às relações que ocorrem entre elementos da superfície
textual, isto é, aspectos lingüísticos que dão ao texto uma organização e uma progressividade.

(...) a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um


sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido
para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de
interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de
comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste
texto. (KOCH; TRAVAGLIA:2001, p. 21)

No entanto, a maneira como os elementos lingüísticos estão estruturados na


superfície textual irá influenciar a construção do sentido, é necessário que haja uma relação
entre esses elementos no texto para que o leitor/ouvinte possa fazer associações com seu
contexto, com sua base cultural, pois, fica difícil estabelecer essas associações quando não há
uma progressão textual, quando não existe uma conexão estabelecida entre os componentes
lingüísticos necessários.
A partir desses pressupostos podemos inferir que o texto é constituído através de
fatores pragmáticos que mediam a construção dos sentidos e por fatores socioculturais que
constituem elementos determinantes de seu sentido, na produção e na recepção. Sendo assim,

a coerência e a coesão têm em comum a característica de promover a inter-


relação semântica entre os elementos do discurso, respondendo pelo que se
pode chamar de conectividade textual. A coerência diz respeito ao nexo
entre os conceitos e a coesão, à expressão desse nexo no plano lingüístico.
(COSTA VAL: 1999, p. 7)

Desta forma, coesão e coerência são processos distintos, mas ao mesmo tempo são
elementos essenciais aos dois movimentos do texto, o de retrospecção e o de prospecção, que

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são realizados em sua maioria por recursos coesivos que por sua vez são determinantes para a
construção dos sentidos, logo, para a construção da coerência (cf. KOCH:2004).
Compreendida a coerência como responsável pelo sentido do texto e a coesão
como sua expressão na superfície do texto, a continuidade, fator conseqüente da coesão e da
coerência, está ligada à necessária retomada de elementos no decorrer do texto. Diz respeito à
unidade do texto, visto que um dos aspectos que contribuem para que um texto seja percebido
em sua unicidade é a permanência em seu decorrer de referentes constantes e que possuem
papel central na construção de sentidos, uma vez que uma seqüência que trate de diferentes
assuntos a cada passo, certamente não será considerada como um texto (cf. COSTA VAL:
1999).
Essa retomada de referentes no texto, no que diz respeito à coerência, ela se
processa através da remissão de conceitos e idéias. Em relação à coesão ocorre através do
emprego de recursos lingüísticos como artigos, pronomes, expressões nominais, etc.
Os artigos são fatores de coesão referencial, ou seja, atuam na superfície textual
como elementos de remissão e fornecem ao leitor/ouvinte instruções de conexão entre os
diversos referentes presentes no texto e que constituem aspectos essenciais na construção dos
sentidos.
É preciso que o texto retome seus elementos conceituais e formais, porém, esse
procedimento não pode se limitar a simples repetição de fatores, pois, é por meio do processo
de remissão que os referentes presentes no texto são trabalhados, ou seja, é através desse ato
que novas informações são atribuídas aqueles que já se encontram presentes, são esses
acréscimos de conceitos, informações que fazem com que o texto progrida, a progressão é
percebida pela relação estabelecida entre a informação dada e a nova.
A partir do exposto, podemos dizer que os artigos se constituem em estratégias de
progressão referencial. A progressão referenciação ou referenciação é uma atividade
discursiva que se processa por meio da retomada de referentes textuais, ou seja, ocorre através
da construção e reconstrução de objetos-de-discurso. A partir dessa perspectiva, a
interpretação de uma expressão não consiste em identificar um termo lingüístico, um
antecedente, mas em estabelecer relações de sentido com as informações que já foram
expressas no texto.
Podemos, a partir do que foi exposto, entender como ocorre a reconstrução ou
manutenção no modelo textual, isto é, a progressão referencial.

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A reconstrução é a operação responsável pela manutenção em foco, no


modelo de discurso, de objetos previamente introduzidos, dando origem às
cadeias referenciais ou coesivas, responsáveis pela progressão referencial do
texto. (KOCH, 2004.p. 67)

A remissão de um objeto que se encontra ativado no texto pode ocorrer através de


recursos de natureza gramatical (pronomes, numerais, artigos, advérbios, etc.) e lexical
(sinônimos, hiperônimos, etc.). Neste trabalho, como já foi dito, focalizaremos a referenciação
realizada por meio do uso de artigos. Para analisar o modo como essa estratégia de remissão
textual é empregada, utilizaremos livros didáticos de história de 1ª a 3ª séries1501.
Os artigos fornecem ao leitor/ouvinte instruções de conexão entre os termos
através da ativação destes no desenvolvimento do texto. Logo, a utilização das estratégias de
remissão textual é importante, inclusive e principalmente, no texto didático, porque a cada
reiteração que é feita, novas informações são inseridas acerca do elemento citado
anteriormente, formando no texto, relações de sentido que não seriam possíveis se o referente
fosse citado apenas uma vez. Através do uso dessas estratégias, dessas cadeias referenciais, a
continuidade dos referentes é garantida e estes não são arquivados na memória discursiva,
uma vez que se mantêm ativados, em foco, durante o processamento textual, mesmo quando
recategorizados.
A os artigos enquanto estratégias de progressão referencial ocorrem através das
anáforas e catáforas, ou seja, ou seja, podem fazer remissão a termos que já foram expressos
no texto ou a termos que ainda virão a ser citados
Esses aspectos fazem parte da organização referencial, que é fundamental na
continuidade e equilíbrio do texto e conseqüentemente na coesão. As anáforas e catáforas
fazem parte de uma relação de sentido, na qual o termo antecedente necessita do precedente, e
vice-versa, para que haja uma compreensão do que está sendo dito. Sendo assim, a remissão
“pode ser feita para trás e para frente, constituindo uma anáfora ou uma catáfora”. (KOCH,
2005.p. 30).

Análise dos Livros

1501
A pretensão era de realizar a análise em uma coleção completa de livros didáticos de história, mas devido a
dificuldades, não foi possível conseguir o livro referente a 4ª do ensino fundamental.
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Nos textos dos livros didáticos de história analisados, percebemos que a


progressão referencial – a retomada de elementos – é realizada de maneira similar, o que se
observa são apenas alguns fatores, talvez considerados pelos produtores de livro didático,
como aspectos atribuidores de complexificação do texto. Nas primeiras séries (1ª e 2ª), a
remissão é realizada de maneira mais simples, ou seja, os elementos retomados, geralmente,
estão próximos aos seus referentes, enquanto que na 3ª série, em algumas passagens do texto,
a retomada é realizada com certa distância dos referentes.
Porém, em todos os livros observados percebeu-se que quando o texto trata de
assuntos temáticos, ou seja, quando o capítulo discute sobre um elemento específico, como
por exemplo, o índio, os portugueses, a família, etc. as remissões são realizadas, muitas vezes,
em páginas seguidas e até páginas posteriores e não em parágrafos de uma mesma página.
Podemos observar essa dado nos exemplos seguintes:

(1) Naquela época os portugueses começaram a chegar no Brasil. (...) Os


primeiros portugueses que procuraram viver nas terras da região
cultivavam cana-de-açúcar. Os conflitos entre eles e os índios eram
constantes. (...) os portugueses não desistiram de ocupar as terras. (...)
(EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 14-15) [2ª]

(2) (...) os portugueses ajudaram a formar o povo brasileiro. (...) Os


colonizadores portugueses chegaram a bordo de caravelas. (...) Os
portugueses resolveram fixar-se no território (...). Os portugueses
precisavam de muitos trabalhadores para lucrar explorando a terras
americanas. (...) Até alguns anos antes de os portugueses chegarem às
terras americanas, os europeus (...)Os navegadores portugueses (...)
(EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 10-12) [3ª]

No exemplo (1), podemos perceber como o referente “portugueses” foi mantido


na memória discursiva sendo retomado através de artigos definidos, na maioria das vezes, e
como novas informações lhe são atribuídas com o desenvolvimento do texto e com a
conseqüente progressão referencial e a continuidade de sentidos. Outro ponto que é possível
observar neste exemplo é que as retomadas foram realizadas em mais de uma página e entre
parágrafos diferentes, essa maneira de inserir novas informações e de reintroduzir e ativar os
referentes, neste caso “portugueses”, foi mais predominante nos livros de 1ª e 2ª séries.
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Já no exemplo (2), o referente “portugueses”é retomado de maneira constante,


além de lhe serem atribuídas novas informações há a inserção de expressões de apoio, como é
o caso dos adjetivos “colonizadores” e “navegadores” que são inseridos não só para atribuir
novos dados ao referente “portugueses”, mas também para que p leitor/ouvinte possa fazer
relações com o contexto no qual o referente “portugueses” geralmente está inserido, no caso o
da colonização. Outro ponto neste exemplo é que o termo “portugueses” se faz presente em
várias páginas. Talvez por se tratar de uma série em que as crianças já possuem uma faixa
etária maior em relação às séries anteriores, os produtores de livros didáticos acreditem que
sejam capazes de acompanhar a progressão do texto através de retomadas mais distantes, e
talvez por isso, esse tipo de construção tenha sido mais recorrente no livro da terceira série.
O exemplo (2) foi mais recorrente no livro de 3ª série, o que não significa que não
tenha ocorrido nos de 1ª e 2ª séries, nestas séries também foi possível observar esse tipo de
construção só que com uma freqüência menor se comparado ao da 3ª série.
Outro ponto constatado é que as estratégias de referenciação por meio de artigos
foram utilizadas em alguns momentos em conjunto com a elipse, que também se constitui em
estratégia de progressão referencial. Podemos perceber isso no exemplo seguinte:

(3) Cerca de 100 anos atrás, as famílias eram, em geral, bem mais
numerosas que as de hoje. (EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 28) [1ª]
(4) Quando os portugueses chegavam, muitos estavam maltratados, sujos
e doentes, devido à longa viagem. Inicialmente os índios os recebiam e os
alimentavam. (EDITORA MODERNA (Org): 2005, p. 18) [3ª]

Outro ponto a ser observado é que geralmente os artigos definidos são utilizados
de maneira anafórica, ou seja, faz remissão à informação que precede no texto, que já está
dada, porém, em muitos casos, nos livros analisados, os artigos definidos apareceram de
maneira catafórica, isto é, remete a informação subseqüente. Esse fator pode ser explicado
porque na maioria dos casos o texto possui um referente central, como, por exemplo, o índio,
o português, etc. e há a necessidade de que alguns novos objetos sejam inseridos para
complementar o sentido, porém, são objetos de caráter passageiro que geralmente são citados
para criar uma cadeia de sentidos, por isso, são elementos que não permanecem na memória
discursiva.

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Os artigos indefinidos são utilizados na maioria das vezes de forma catafórica,


porém, eles também apareceram nos textos analisados como anafóricos, como dito acima, os
textos possuem um referente central a partir do qual as outras informações são inseridas e
integradas, logo, este referente central é mencionado, muitas vezes, em mais de uma página
ou até em mais de um capítulo, logo, é sempre retomado de maneira anafórica visto que já foi
citado em páginas anteriores e está presente na memória discursiva.
Para observar e compreender como os artigos são utilizados enquanto estratégia
de referenciação quantificou-se quantas vezes essas estratégias apareceram em cada livro
(levando em conta catáforas e anáforas). Após a quantificação obteve-se os seguintes quadros:

Série Estratégia de referenciação Artigo definido Artigo indefinido


1ª Ocorrência - 348 309 39
2ª Ocorrência- 554 499 55
3ª Ocorrência - 777 726 51

De acordo com o quadro as estratégias de referenciação através de artigos foram


mais utilizadas na 3ª série, percebe-se uma progressão, um aumento no uso na medida em que
a série aumenta, mas esse fato pode ser justificado pela quantidade de textos, ou seja, pela
desproporção que há entre os textos da 1ª, 2ª e 3ª séries, sendo que na proporção em que a
série aumenta a quantidade de textos também.
Outro aspecto quantificado foram as anáforas e catáforas, após a quantificação
obteve-se o seguinte quadro:

Série Ocorrência (anáfora) Ocorrência (catáfora)


1ª 141 207
2ª 257 297
3ª 357 420

A partir dos dados expostos no quadro percebe-se que houve um certo equilíbrio
na utilização de anáforas e catáforas, apenas na 1ª série que existiu uma variação maior.
Com os dados apresentados nos dois quadros expostos podemos inferir que as estratégia
de referenciação, os artigos, foram utilizadas com freqüência nos textos dos livros analisados,

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no caso livros destinados as séries iniciais. É importante ressaltar que os autores dos livros
analisados não expressam em sua proposta/apresentação inicial uma preocupação com o uso
ou não das estratégias de referenciação. O que se percebe é que eles escrevem baseando-se
numa linguagem mais acessível para crianças, isto é, de acordo com um vocabulário
conhecido por elas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do uso das estratégias de progressão referencial, é possível introduzir e


reintroduzir referentes de maneira que o texto não se torne repetitivo nas expressões usadas e
inserir sempre novas informações de forma que as já colocadas possam ser ativadas e
reativadas sempre que necessário para o entendimento do texto e do conteúdo. É difícil
conceber a progressão de idéias, de expressões, sem que haja o encadeamento necessário entre
elas, sem a existência de elementos responsáveis pela criação de unidades de sentido.
Analisados os textos, percebeu-se que as estratégias de progressão referencial
realizadas através de artigos foram utilizadas com freqüência nos livros examinados. No
entanto, pode-se visualizar que a forma como essas estratégias são utilizadas é semelhante
entre uma série e outra e que essa semelhança pode estar ligada, talvez, ao empenho do
escritor em facilitar a compreensão da leitura de crianças em processo de alfabetização. É
inegável que os autores preocupam-se com o vocabulário utilizado, em construir um texto
objetivo ao público infantil. Sendo assim, durante o texto foram criados elos significativos
para que as informações postas e as inseridas posteriormente possuíssem uma
progressividade, uma continuidade de sentido. Porém, esses elos significativos não foram
criados única e exclusivamente pelos artigos, pois, no corpo do texto há outras estratégias de
referenciação e outros mecanismos coesivos que contribuíram para a continuidade de sentido.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São


Paulo: Cortez, 2004.

KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. 20 ed. São Paulo: Contexto, 2005.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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ANPUH/SE & IHGSE

_____________________Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

_____________________Desvendando os segredos do texto. 5ª ed. São Paulo: Cortez,


2006.
___________________ , TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. 12 ed. São Paulo:
Contexto, 2001.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e Textualidade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999.

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O ENSINO SUPERIOR PARA AS MULHERES: UMA


REIVINDICAÇÃO PELO PAVILHÃO FEMININO NA CASA DO
ESTUDANTE DO BRASIL – 1931

Caren Victorino Regis – UNRIO


carenvr@ig.com.br
Nailda Marinho da Costa Bonato – Orientadora – PPGED/UNIRIO
nbonato@yahoo.com.br

O trabalho visa apresentar a pesquisa monográfica, em andamento, intitulada A Casa do


Estudante do Brasil – o Pavilhão Feminino: uma reivindicação de 1931, que surgiu devido a
participação como bolsista de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq na pesquisa As concepções
da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino sobre a educação feminina coordenada
pela orientadora, quando focamos a atuação da União Universitária Feminina, surgida em
1929, tendo em vista a inserção e permanência das mulheres no ensino superior. Partindo
desse estudo descobrimos uma reivindicação de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de
Mendonça referente à instituição de um pavilhão feminino na organização da Casa do
Estudante do Brasil. Essa reivindicação que fora apresentada no II Congresso Internacional
Feminista organizado pela Federação no Rio de Janeiro, em 1931, teve total apoio da União.
Como metodologias de investigação estamos recorrendo à análise documental e bibliográfica.
Nesta perspectiva de trabalho iniciamos nossas buscas no “Fundo Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino” contido no acervo do Arquivo Nacional - considerando que na estrutura
da FBPF aparecia a UUF e que a maioria das participantes desta também eram membros
daquela. Mas também outros acervos estão sendo “vasculhados”, como: o da Fundação Casa
de Rui Barbosa, da Biblioteca Nacional, da Associação Brasileira de Educação, entre outros
acervos. Como embasamento teórico temos as obras de Hahner (2003), Pinto (2003), Canen
(2002), Nobre (1999), Portinho (1999), Bonato (2005, 2007), Nagle (1974), Fávero, Britto
(2002), entre outras. A pesquisa tem apontado para a real existência do Pavilhão Feminino na
CEB e que a Casa não se limitava somente a oferecer uma residência para as estudantes.

Palavras-chave: Ensino Superior, Congresso Internacional Feminista – 1931, Casa do


Estudante do Brasil.
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A Condição Feminina e as Lutas das Mulheres por Emancipação

A história da educação das mulheres vem nos mostrando que, inicialmente, estas
só aprendiam o entendido como “necessário” para elas, principalmente as artes domésticas,
pois o importante era cuidar do lar, dos filhos e do marido. Este pensamento permeou por
muito tempo as concepções da nossa sociedade em relação ao papel social das mulheres,
papel que veio (e ainda vem) se modificando, entre outras possibilidades, a partir das lutas
travadas pelas próprias mulheres. Logo, entendemos que:

Para se pensar a educação feminina no presente se faz necessário ir ao


passado visando compreender como as mulheres e sua forma de inserção na
instituição escolar e na sociedade foram se modificando ao longo do tempo.
Isso nos leva a buscar o lugar de sua própria participação nesse processo,
tendo em vista a sua história de luta política reivindicatória por direitos
sociais e garantias individuais. (Bonato, 2005, p.132)

Sendo as mulheres discriminadas e excluídas historicamente da educação e


instrução formal, é interessante destacar as suas lutas de forma organizada para se ter acesso e
permanência no espaço educativo de nível superior; assim como para conquistar espaço
profissional dentro da sociedade, entendido como próprio dos homens. Buscar o papel das
próprias mulheres nessa inserção e quem foram as primeiras a se aventurarem pelo caminho
universitário e que cursos ousavam fazer foi o que tentamos apresentar através da recuperação
histórica dessa entidade de luta que foi a União Universitária Feminina, tendo como ponto de
partida a memória documental ainda existente.
O fato da pesquisa sobre a Federação e a União ter apontado a escassez de fontes
e a inexistência de uma produção científica sobre a União, só veio fortalecer o nosso
entendimento sobre a importância de se resgatar esse momento de luta das mulheres através
dessa entidade, assim como os motivos de sua existência. De acordo com Portinho (1999),
uma das participantes da Federação e da União, essa associação que congregava
especificamente mulheres que cursavam o ensino superior, naquele momento tinha como
objetivos:

...apoiar as mulheres na carreira que escolhessem e defender os seus


interesses nas profissões liberais; auxiliar por todos os meios as alunas das
escolas superiores e conscientizar a mocidade feminina a adquirir preparo

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técnico superior; estimular o desenvolvimento da intelectualidade feminina,


colaborar nas questões de alcance geral, que se realcionassem com o
progresso dos povos. (p.60)

A partir de tais objetivos, ficam claras as lutas encampadas pela UUF, como a
participação ativa no II Congresso Internacional Feminista, organizado pela Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1931, evento presidido por Bertha Lutz, também
presidente da FBPF, como já dissemos, e considerada pioneira nas lutas feministas no Brasil.
Porém, é importante sinalizar que ao lado dela outras mulheres se destacaram em prol da
emancipação feminina, como Carmen Velasco Portinho, Orminda Bastos, Mirtes de Campos,
Natércia da Silveira e Anna Amélia Queiroz de Mendonça que reivindicaram não apenas
que as mulheres tivessem acesso ao ensino superior, mas que nele permanecessem, sendo
todas membros das duas entidades.
A investigação apontou que neste Congresso foi reivindicada a construção de
Pavilhão feminino na Casa do Estudante do Brasil. Assim com o término da participação na
pesquisa como bolsista e a partir dos resultados obtidos, continuamos nossa investigação,
sobre esse Pavilhão visando elaborar uma monografia como trabalho final do curso de
graduação.

O Pavilhão Feminino na Casa do Estudante do Brasil - Uma reivindicação


no II CIF: Buscando A Permanência Das Mulheres no Ensino Superior

No II Congresso Internacional Feminista, realizado em 1931, pela Federação


Brasileira pelo Progresso Feminino, a seção de Educação e Instrução ficou sob a
responsabilidade da União Universitária Feminina, composta por Carmen Velasco Portinho,
Orminda Bastos, Luiza Sapienza, Maria Luiza Doria Bittencourt e Maria Werneck de Castro.
Na referida Comissão foram destacados diversos assuntos relacionados à
educação, mas aqui nos deteremos ao item II Educação superior. Regimen universitário.
“Campus”. Neste item foi debatida a questão da casa da estudante brasileira para abrigar as
estudante do ensino superior, questão trazida por Anna Amélia Queiroz de Mendonça
membro da Comissão Central do Congresso. A congressista apresenta a necessidade da
implantação de um Pavilhão Feminino no projeto da Casa do Estudante do Brasil a partir da
seguinte tese: O problema da habilitação para moças-estudantes e o projeto de uma casa
para a estudante brasileira na organisação da casa do Estudante do Brasil.

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A tese exposta considerava o significativo aumento de mulheres já cursando o


ensino superior. Dizia ela:

A instituição da Casa do Estudante do Brasil é uma justa reivindicação da


mocidade acadêmica de nossa terra, e virá corrigir uma enorme falta,
supprimindo uma necessidade cujas conseqüências se fazem sentir cada vez
com maior premência no meio dos estudantes de ambos os sexos, em todas
as escolas superiores. Si até há alguns annos, faltava já a um número enorme
de rapazes, sem grandes recursos, afastados da família modesta, cuja
situação não permitia enviar-lhes uma mesada farta, ou mesmo sufficiente
para a vida sem sacrifícios na capital, hoje essa deficiência de amparo attinge
igualmente as moças estudantes, que começam a freqüentar, em maior
numero as escolas superiores, e que procurarão, cada vez mais, alcançar pelo
estudo e pelo trabalho, a sua definitiva emancipação social. (Fonte: Fundo
FBPF/AN)

Desde o início Anna Amélia Queiroz de Mendonça se envolveu com a criação da


Casa do Estudante do Brasil, que se destinava a apoiar alunos carentes que vinham realizar
seus estudos no Rio de Janeiro. A idéia era de compor uma Casa que servisse de moradia,
ajuda de toda natureza ao estudante e a estudante e uma formação mais ampla. Como Canen
(2002) nos informa:

...a construção da casa do Estudante não contava com quaisquer recursos


financeiros, o que por parte de Anna Amélia demandou uma campanha
incansável, que envolveu a família, os amigos e todo o seu círculo de
relações. Promoveu festas, mostras, teatro, feiras de livros e muitas outras
iniciativas dedicadas àquela finalidade. Finalmente, em 1929, como
resultado desses trabalhos, foi instituída a Casa do Estudante do Brasil,
centrada nessas três funções básicas: assistência, intercâmbio e difusão
cultural. (p.84) (Grifo nosso)

No II Congresso Internacional Feminista, de 1931, a tese de Anna Amélia recebeu


total apoio, sendo indicada como co-responsável e colaboradora para sua efetivação a UUF,
como apontado pelas fontes. Abaixo reproduzimos as resoluções do Congresso quanto à
questão:

O Segundo Congresso Internacional Feminista resolve appelar para a 1º Casa


do Estudante do Brasil afim de que se inicie simultaneamente com a
construção da sua sede e do primeiro pavilhão para rapazes, um pavilhão
feminino por menor que seja, onde as estudantes brasileiras encontrem a
moradia e o ambiente de que carecem durante os cursos superiores.
a) pedir a União Universitária Feminina e outras associações congêneres que
façam um appello aos poderes competentes dos estados da União para que
auxiliem com subvenções a iniciativa da Casa do Estudante do Brasil,

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estipulando cada um uma quantia destinada à manutenção de um quarto no


pavilhão feminino para residência gratuita de uma estudante da
Universidade.
b) que a União Universitária Feminina promova em cada estado a formação
de um Conselho Universitário Feminino, constituído de membros de varias
associações e especialmente de representantes da União Universitária
Feminina, que indicará, quando se apresentar vaga, à directoria da Casa do
Estudante do Brasil, o nome de uma moça necessitada para beneficiaria
dessa moradia gratuita mantida pelo Estado. (Fonte: Fundo FBPF/AN)

Fica claro que a proposta de um pavilhão feminino na CEB não se limitava


somente a se oferecer uma residência para as estudantes, como vemos na perspectiva da
congressista proponente. Assim idealizava Anna Amélia:

Na sede principal da Casa do Estudante será criada uma bibliotheca, onde, a


par dos livros de estudo offerecido à consulta de todos os estudantes,
encontrarão as moças leituras úteis e agradáveis, numa sessão inteiramente
dedicada à litteratura universal. E, quem sabe si com o tempo, não poderão
as estudantes conseguir a fundação de outra grande bibliotheca nos seus
futuros pavilhões? (Fonte: Fundo FBPF/AN)

Apesar de se constituir numa reivindicação naquele Congresso feminista de 1931,


ainda não sabemos exatamente quando o Pavilhão feminino foi criado, porém a investigação
vem apontando que a CEB oferecia serviços médicos e odontológicos, restaurante com
programa de reforço alimentar, birô de empregos, com registros de pedidos da indústria e do
comércio, matrículas na universidade, programas de psicologia aplicada e orientação
profissional, concessão de bolsas, e moradia. Tal Casa em relação ao intercâmbio valorizava a
correspondência entre estudantes, conferências e estágios, fazendo parte de organismos
internacionais, enviando e recebendo delegações.
Como já mencionado, a CEB também se dedicava à difusão da cultura, por
exemplo, através de uma biblioteca e patrocinando uma orquestra sinfônica universitária.
Outra iniciativa foi a criação de cursos de extensão universitária, ministrados em uma Escola
Livre de Estudos Superiores; além do Teatro do Estudante, coordenado por Paschoal Carlos
Magno. (Canen, In Fávero e Britto, 2002).
O texto de Mendonça aponta os anos de 1960 como de criação da moradia
feminina, porém estamos em busca de fontes primárias que nos dêem uma data precisa. Assim
nos informa a autora:

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Nos anos 60, a entidade ainda conseguiu ampliar sua área de atuação, ao
receber a doação de um terreno do empresário Conrado Mutzenbecker,
amigo de Anna Amélia. Ficava na Urca [bairro do Rio de Janeiro] e abrigou
a moradia feminina, que funciona até hoje. (1996:32)

A relação da União Universitária Feminina com a CEB era notória. Em um evento


realizado na Casa do Estudante do Brasil, vamos encontrar as mulheres da União
recepcionando as novas ingressantes no ensino superior do ano de 1934. Às novas alunas fora
oferecido o “Chá das Calouras”, uma prática realizada pela União, para tentar agregar a
mocidade feminina da época aos seus interesses militantes em prol da causa feminina e mais
especificamente em prol da entrada e permanência de um maior número de mulheres nesse
nível de ensino.
Da mesma forma como eram recebidas na entrada, também quando terminavam
os seus cursos, para elas era oferecido o “Chá da Vitória”. Denominações sugestivas - “Chá
das Calouras” e “Chá da Vitória” que talvez tenham relação e possam ser compreendidos a
partir da tabela visualizada neste trabalho. Nela é possível compararmos o número de
mulheres ingressantes com o número de concluintes dos cursos de ensino superior em relação
ao sexo masculino. Aquelas que concluíam o ensino superior eram consideradas vitoriosas.

ENSINO SUPERIOR GERAL - BRASIL (1929)

Cursos Matrícula Masc. Matrícula Fem. Conclusão de Conclusão de


Curso Masc. Curso Fem.
Medicina 5.787 72 609 4
Odontologia 680 71 156 13
Farmácia 816 178 167 62
Filosofia e Letras 62 3 6 1
Ciências Jurídicas 3.180 20 401 2
e Sociais
Engenheiros Civis 2.007 24 212 1
Engenheiros _____ _____ _____ _____
Geógrafos
Engenheiros 16 _____ 1 _____
Industriais
Engenheiros Especializado Superior
Agrimensores
Engenheiros Especializado Superior

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Agrônomos
Engenheiros Especializado Superior
Mecânicos
Engenheiros 282 2 42 _____
eletricistas
Engenheiros 23 1 _____ _____
Arquitetos
Químicos _____ _____ _____ _____
Industriais

ENSINO ESPECIALIZADO SUPERIOR - BRASIL (1929)


Cursos Matrícula Masc. Matrícula Fem. Conclusão de Conclusão de
Curso Masc. Curso Fem.
Agronomia e 970 10 145 2
Veterinária
Comercial 18.892 4.260 2.458 627
Arte dramática 47 53 _____ 1
Belas-Artes 1.146 133 29 _____
Música 616 4.910 31 588
(Fonte: Saffioti, 1978, p.217)

Verificamos com esses dados a importância da luta das mulheres em busca de sua
inserção e permanência nos diferentes espaços sociais, em especial, no ensino superior.
Para concluir, consideramos importante apresentar um pouco mais sobre Anna
Amélia Queiroz de Mendonça, que durante muito tempo foi presidente da Casa do Estudante
do Brasil, chegando a atuar como vice-presidente da Federação Brasileira Pelo Progresso
Feminino.

Anna Amélia Queiroz de Mendonça


Anna Amélia nasceu em 17 de agosto de 1896, no Rio de janeiro, bairro da
Tijuca, filha de Laura Machado de Queiroz e José Joaquim de Queiroz Júnior. A educação
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desta nunca se deu por intermédio da escola, e sim por cinco preceptoras: uma brasileira, duas
inglesas e duas alemãs. Foi através dessas preceptoras que as filhas mais velhas desta família
aprenderam fluentemente francês, inglês e alemão, “estudaram música e realizaram todos os
estudos primários e secundários.” Com 15 anos ela lança seu primeiro livro de poesias –
Esperanças. Desde o início se envolveu com a criação da Casa do Estudante do Brasil, que se
destinava a apoiar alunos carentes que se mudavam para o Rio de Janeiro. (SCHUMAHER e
BRAZIL, 2000, CANEN, 2002)
Por fim, a participação na pesquisa mencionada e a monografia, em andamento,
despertaram a vontade de participar desta história, como narradoras de uma memória do
movimento feminista e sua atuação na luta pelo direito à educação das mulheres, seu acesso e
permanência no ensino superior.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONATO, Nailda Marinho da Costa. Relatório Científico do projeto ‘As concepções da


Federação Brasileira pelo Progresso Feminino sobre a educação feminina’. Rio de
Janeiro: FAPERJ, 2007. (Digitado)

________.Relatório de Pesquisa do projeto ‘As concepções da Federação Brasileira pelo


Progresso Feminino sobre a educação feminina – 2004/2005’. Rio de Janeiro: Unirio,
2005. (Digitado)

_________. O Fundo Federação Brasileira pelo Progresso: uma fonte múltipla para a história
da educação das mulheres. Acervo: revista do Arquivo Nacional, v. 18, n. 1-2
(jan./dez..2005). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

CANEN, Ana. Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça. In. BRITTO, Jader de
Medeiros, FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. (Orgs). Dicionário de educadores
no Brasil. 2. ed. aum. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ/ MEC-Inep-Comped, 2002, p:83-8.

FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade e poder: análise crítica/


fundamentos históricos: 1930-1945. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.

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HAHNER, June Edith. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no
Brasil, 1850 - 1940. Tradução de Eliane Lisboa; apresentação de Joana Maria Pedro.
Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

MENDONÇA, Ana Waleska P.C. A universidade no Brasil. Revista Brasileira de


Educação. 2000.

MENDONÇA, Anna Amélia Queiroz de. Ana Amélia, alma de cristal. Belo Horizonte:
BDMG Cultural, 1996.

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU – Editora
Pedagógica e Universitária; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974.

NOBRE, Ana Luiza. Carmem Portinho: o moderno em construção. Rio de Janeiro:


Relumé – Dumará, 1999.

PINTO, Céli Regina Jardim.Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
PORTINHO, Carmem. Por toda a minha vida/ Carmem Portinho. Depoimento a Geraldo
Edson de Andrade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade.


Petrópolis: Vozes, 1979.

SCHUMAHER, Schuma, BRAZIL, Érico Vital. (Orgs.). Dicionário mulheres do Brasil: de


1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

SOIHET, Rachel. História das mulheres. In. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997. p.275-296.

ACERVO E FONTES
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ACERVO DO ARQUIVO NACIONAL. Fundo Federação Brasileira pelo Progresso


Feminino. 1902 – 1979.

ACERVO da Biblioteca Nacional.

ACERVO da Associação Brasileira de Educação

ARQUIVO NACIONAL. Inventário sumário do Fundo Federação Brasileira pelo Progresso


Feminino (1902 – 1979). Organizado em 1989 (digitado)

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ENTRE EXPECTATIVAS E DISPUTAS: A HISTÓRIA DO ENSINO


SUPERIOR PÚBLICO EM ITABAIANA/SE (1997-2007)

Antônio Teles de Lima - UNIT


Gersivalda Mendonça da Mota-UNIT
gerssyn@hotmail.com
Janilda Freitas de Almeida – UNIT

A história do ensino Superior Público em Itabaiana, cidade pólo do agreste de Sergipe reflete
o atual momento do cenário político educacional do país na ultima década. Neste contexto a
partir de 1997 tem início à implantação da experiência de Ensino Superior Público nesta
região, a partir das atividades do Projeto de Qualificação Docente – PQD, o que resultou anos
depois, na efetivação desta modalidade de ensino com inauguração e efetivação do Campus
Universitário da Universidade Federal de Sergipe em Itabaiana entre 2006 e 2007. A
expectativa de disputa relacionada a esse acontecimento cultural se converte no objetivo de
estudo desta pesquisa.

Palavras-chaves: História, Ensino, Universidade, Sergipe e Itabaiana.

As Universidades no Brasil e as Experiências de Ensino Superior Público


em Itabaiana

Segundo Simon Schwartzman (1998), as Universidades públicas são as


instituições mais antigas, com faculdades que datam do século XIX, ainda que as primeiras
Universidades só tenham se constituído formalmente nos anos 30. Caracterizada pela
pluralidade de áreas de trabalho, pós-graduação, pesquisa e extensão, apesar de que muitas
universidades ficam distantes desse modelo padrão, idealizado pela legislação para
estabelecer e sinalizar o modelo considerado ideal.
Para Maria Susana Arroso Soares (2002), no período colonial os estudantes da
elite Portuguesa, tinham que se deslocar até a metrópole (Portugal) para graduarem. O ensino
formal era cargo dos jesuítas que se dedicavam à formação e cristianização dos indígenas, ate
mesmo do clero e dos filhos da classe dominante no colégio real. Neste último, era ofertada
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uma educação medieval latina com elementos gregos, a qual preparava os estudantes para que
no futuro freqüentassem a Universidade de Coimbra em Portugal, pois a mesma acolhia os
filhos de Portugueses que nasciam na colônia.
Essa Universidade confiada à ordem Jesuítica, no século XVI, tinha como uma
das missões unificarem a cultura do Império Português. A Universidade de Coimbra em
Portugal, foi a “primeira Universidade”, tendo como graduação Teologia, Direito Canônica,
Direito Civil, Medicina e Filosofia, durante os três primeiros séculos da nossa História mais
de 2.500 jovens nascidos no Brasil.
No Período Imperial, Assim que a família real chegou ao Brasil, Dom João VI
recebeu a solicitação dos comerciantes locais para criar uma Universidade no Brasil, os
comerciantes estavam dispostos a colaborar com uma significativa ajuda financeira. Ao em
vez de Universidade, Salvador passou a sediar os cursos de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia.
Durante o período regencial, em 1827 foi criado o curso de Direito em Olinda e São Paulo.
Apesar, das várias propostas apresentadas no período Imperial e de vinte e quatro
projetos, não foi criada uma Universidade no Brasil. Talvez devido ao alto conceito da
Universidade de Coimbra, o que dificultou a substituição da mesma. Assim, os novos cursos
superiores que se estabeleceram no país eram vistos como substitutos das Universidades.
As influências positivistas dos oficias que proclamaram a República, foi um fator
que contribuiu para atrasar a criação da Universidade no Brasil, pois estes tinham uma visão
de instituição ultrapassada para as necessidades do novo mundo. Por tanto, eram a favor de
cursos técnicos profissionalizantes.
A primeira Universidade Brasileira foi criada em 1920, data próxima das
comemorações do centenário de Independência. Esta foi fruto do decreto n° 14.343. A
Universidade no Rio de Janeiro, reunia faculdades profissionais pré existentes sem oferecer
uma alternativa diversa do sistema, ela era mais voltada ao ensino do que a pesquisa elitista,
conservando a orientação profissional dos seus cursos e a autonomia das faculdades.
Comentava-se na época, que uma das razões da implantação da mesma na capital do país,
devia-se a visita que o Rei da Bélgica, faria ao país por conta do centenário de Independência.
No entanto, o Brasil necessitava de uma instituição apropriada, ou seja, uma Universidade.
O Ensino Superior em Sergipe, acontece de forma tardia se comparado a outros
Estados brasileiros, caracterizado pela disparidade regional. Nessa perspectiva durante todo o
século XIX e meados do Século XX Sergipe, ficou na dependência das Faculdades de Direito

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e Medicina do Recife e da Bahia. Entretanto, nem todos os estudantes tinham o privilégio de


estudar fora do seu Estado.
A independência de Sergipe ao ensino superior de outros Estados só seria
realidade pós- 1920 e de forma mais concreta em 1940 com a criação de algumas faculdades,
das quais se multiplicaram no decorrer da segunda metade do século XX. Nos anos vinte a
fundação das faculdades de Direito, Farmácia e Odontologia que não vingaram. A partir de
1948, as faculdades estaduais, chegaram com os cursos de Economia, depois à de Química.
Em 1951 a igreja católica funda a faculdade de Filosofia e Serviço Social. Em 1961, a de
Ciências Médicas, mantida com recursos estaduais. Finalmente a Universidade Federal de
Sergipe (UFS) criada em 28/02 de 1967, onde a festividade da instalação ocorreu apenas em
15.05.de 1968. A chegada da mesma, indicava um novo momento no ensino superior do
Estado de Sergipe. Em fevereiro de 1972, a Faculdade Pio X com o curso de Pedagogia e em
Julho do mesmo ano as Faculdades Integradas Tiradentes (FIT) com os cursos de Direito e
Administração.
Entretanto, o ensino superior em Sergipe ficou restrito a sua capital até fins do
século XX, quando passaram a surgir algumas experiências de ensino superior particular e
público nas denominadas cidades pólos do interior do Estado. Entre essas cidades destacam-se
Lagarto, Estância, Nossa Senhora da Glória, Propriá e Itabaiana.
A Educação Superior em Itabaiana, também caminhou a passos lentos se
comparado a Capital Aracaju e ao próprio Brasil. A educação superior pública só é visível
quase no final da primeira metade do século XX, especificamente em 1997 com o surgimento
do Projeto de Qualificação Docente PQD, ainda que somente para professores da rede
estadual e municipal. Enquanto a capital Aracaju estava implantando as faculdades, as
primeiras experiências de ensino superior a partir de 1920, que se consolidariam com a
chegada de uma universidade em 1968, Itabaiana ainda estava se desenvolvendo em educação
de primeiro grau.
A vila de Itabaiana permaneceu alheia à educação até as primeiras décadas do
século XX. O mesmo século registrou nos anos de 1937, 1949, 1967 e 1969 os primeiros
acontecimentos no ramo educacional. Em 1937 a criação do grupo Escolar “Guilhermino
Bezerra”, primeiro grupo de Itabaiana. Em 1949 a primeira turma da Escola Normal Rural no
“Murilo Braga” inicialmente com o curso ginasial e em seguida com o Pedagógico. Em 1969
o curso Científico ainda no “Murilo Braga”, em seguida as escolas particulares.

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Entretanto, apesar do atraso educacional fruto da interiorização, três datas são


expressivas para a Educação Superior de Itabaiana, entre elas os anos de 1997 com o
surgimento do Projeto de Qualificação Docente PQD, público ainda que somente para
professores, em 2002 com a expansão da Universidade Tiradentes UNIT particular, e em 2006
com o projeto governamental de interiorização da Universidade Federal UFS para Itabaiana, a
qual representa um marco importante para o ensino superior público do município.

O Projeto de Qualificação Docente

A partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) Nº.


9394/96, os professores de carreira do magistério deveriam obter o Curso Superior para atuar
em sua área de trabalho. A nova LDB aprovada em 1996, no governo de Fernando Henrique
Cardoso, no Título VI dedicou especial atenção à formação dos professores. O Art. 62
prioriza a formação dos docentes em nível superior. Já o artigo 87 exige que, até o final do
ano da década da educação, ano 2006, haja a formação de todos os professores em Nível
Superior.
O Projeto de Qualificação Docente PQD-realizado pela Universidade Federal de
Sergipe em parceria com a Secretaria do Estado da Educação do Desporto e Lazer – SEED,
Fundação de Apoio e Pesquisa e Extensão de Sergipe - FAPESE, e apoio das prefeituras
municipais. Visando à formação do docente da rede pública municipal e estadual, para
atuarem na Educação Básica, compreendendo o Ensino Fundamental (de 5ª a 8ª série) e o
Ensino Médio (1º ao 3º ano).
Essa iniciativa é justificada a partir do diagnóstico da realidade educacional dos
docentes da rede pública no interior do Estado, conforme levantamento realizado pelas
diretorias regionais da educação da SEED. Essas pesquisas apontaram que 90% dos
professores estavam exercendo a profissão sem formação pedagógica necessária para a função
desempenhada.
No ano de 1997, foi realizado o primeiro vestibular especial para os professores
que desejassem ingressar no PQD. Eles puderam optar por quatro cursos diferentes na área de
conhecimento científico. Entre estes cursos estavam: Letras/Português, Biologia, Matemática
e Química. O Projeto de Qualificação Docente (P.Q.D.) foi um passo importante para ampliar
as práticas pedagógicas no Estado de Sergipe, atendendo não apenas sua capital, mas
englobando os demais municípios do Estado a partir das cidades pólo.
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O Projeto de Qualificação Docente tem como objetivo qualificar os professores da


rede pública, estadual e municipal em nível superior. Essa experiência não se limitou apenas a
Itabaiana, mas se estendeu para outras cidades pólo como: Estância, Lagarto, Propriá e Nossa
Senhora da Glória.
Assim, o Projeto contribuiu para a formação dos docentes no Estado, Observa-se
nos relatórios cedidos pela coordenação do PQD, a aprovação dos alunos em 99%, ao fim de
cada curso. Não obstante o êxito do projeto, ele limitou-se aos professores da rede pública.
Restava ainda, a necessidade de tornar acessível o ensino superior aos que desejam essa
formação na região.
O Projeto de Qualificação Docente contribuiu para aumentar o nível de formação
dos professores/alunos desse projeto. O mesmo foi de grande importância para os educadores,
pois tem como objetivo aumentar o nível dos professores que já lecionaram, ou seja, se é para
melhorar a qualidade dos professores, este é sem dúvida bem vindo, pois reflete nos alunos a
sua qualificação, e desencadeia assim um bom resultado na rede de ensino.

O Projeto de Qualificação Docente no Pólo de Itabaiana

Por não possuir prédio próprio, o Projeto de Qualificação Docente, no pólo de


Itabaiana, inicialmente foi instalado no Colégio Estadual “Murilo Braga”, situado à Rua
Quintino Bocaiúva. Posteriormente suas atividades foram transferidas para o Campus
Universitário Professor “Alberto Carvalho” nas imediações do Bairro Sítio Porto em
Itabaiana.
Os professores que compõem o quadro do Projeto de Qualificação docente eram
especialistas, mestres e doutores. Nesse requisito, é importante ressaltar a qualidade da
formação dos docentes, que contribuiu para a formação dos acadêmicos.
Outro ponto citado nos relatórios da coordenação do Projeto de Qualificação
Docente refere-se, á dificuldade de compatibilizar o horário de funcionamento do projeto, em
particular no dia de sexta-feira, com os horários e dias de trabalho dos discentes que faziam
parte do projeto. Isto decorria em função de se tratar de profissionais, que atuavam nas redes
públicas estaduais e municipais, e não apenas estudantes.
Segundo o Relatório Semestral do Projeto, outros municípios foram incorporados
ao Pólo de Itabaiana, entre eles: Nossa Senhora Aparecida, Macambira, Riachuelo,

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Ribeirópolis, Carira, Moita Bonita, Santo Amaro, Frei Paulo, Pedra Mole, Campo do Brito e
São Domingos. Sendo que a maioria dos estudantes residia em Itabaiana.
Pode-se ressaltar que o PQD I foi uma experiência importante para a expansão do
Ensino Superior público em Itabaiana, contribuindo dessa forma para a democratização do
ensino superior em Itabaiana e região. O Projeto de Qualificação Docente, 2002, da turma de
Ciências Biológicas formou 17 alunos. E a turma de Matemática formou 18 alunos.
O PQD II iniciou suas práticas pedagógicas com os mesmos objetivos das
atividades do PQD I. Segundo Relatório do PQD II, esse possibilitou a oferta de novos cursos
entre eles: Educação Física, História, Inglês, Pedagogia e Geografia, ao todo foram 200 vagas
para os professores da rede municipal e estadual que ainda não tinham formação superior. O
Projeto de Qualificação Docente, 2002, da turma de História formou 30 alunos, a turma de
Letra/Português/Inglês 23 alunos, a turma de Pedagogia 39 alunos, da turma de
Letras/Português 21alunos.
Já o PQD III iniciou suas aulas no ano de 2003. O mesmo possibilitou a oferta de
145 vagas, distribuídas entre os cursos de: Português, Inglês, Ciências Biológicas, Matemática
e Educação Física. Percebe-se a retirada de três cursos incorporados no PQD II, entre eles:
História, Pedagogia e Geografia.
É importante salientar que o PQD III integrou ao Pólo de Itabaiana novos
municípios, entre eles: Areia Branca, Japaratuba, Malhador, Pedra Mole, Pinhão, Rosário do
Catete e São Domingos, entretanto, ainda a maioria das vagas preenchidas eram por alunos de
Itabaiana.
A experiência do PQD, em suas três versões, segundo relatório da equipe do Pólo
de Itabaiana, ajudou a justificar a escolha do pólo desta cidade como uma das áreas viáveis
para implantação de um Campus da Universidade Federal de Sergipe no interior do Estado,
viabilizando o processo de expansão e democratização do ensino superior na região do
Agreste de Itabaiana, além de contribuir com o desenvolvimento educacional do Estado.

O Campus Profº Alberto Carvalho: Expectativas e Disputas em Torno de


Sua Criação.

A expansão da Universidade Federal de Sergipe para Itabaiana, trouxe varias


expectativas para os jovens no segmento educacional, cultural e econômico. A implantação do
Campus Profº Alberto Carvalho, tem como objetivo abranger um número maior de estudantes

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da cidade e região circunvizinhas, além de estudantes de estados diferentes, que queiram


prestar o vestibular e ingressar na universidade. Com certeza, contribuirá, também para
melhorar os índices educacionais do Estado.
A expansão universitária de ensino superior promovido pelo Governo Federal é
muito importante para o município de Itabaiana, pois eleva a educação e possibilita a
modernização e o desenvolvimento econômico e político da cidade a médio e longo prazo.
O projeto de expansão e descentralização do ensino superior da capital sergipana
para o interior do estado possibilita uma maior oportunidade para as pessoas de Itabaiana e
regiões circunvizinhas de terem acesso ao ensino superior público.
O Campus Professor Alberto Carvalho facilitou o acesso do Ensino Superior para
os estudantes da cidade e região. Além da proximidade, a redução de gastos com transporte e
alimentação, sem contar com o desgaste da viagem para a capital.
A implantação da UFS em Itabaiana trouxe facilidades, com ela o trajeto ficou
mais rápido, agora próximo de casa. A idéia de que uma formação acadêmica garantirá um
melhor emprego incentivou muita gente a ingressar na Universidade. Durante o inicio do
curso houve algumas dificuldades pela quantidade de tarefas e de leituras, mas essa questão e
de adaptação que o tempo se encarregou de livrar afinal, ela contribuiu na questão econômica,
com a expansão ficou mais fácilo fazer um curso de graduação.
Uma das maiores expectativas da expansão universitária está associada à
qualificação dos profissionais em todos os segmentos. Outra questão refere-se a uma maior
oportunidade de melhores empregos no mercado de trabalho local. Percebe-se a necessidade
de muitos profissionais qualificados para atuar em diferentes áreas do saber.
Após a incorporação do Campus Alberto Carvalho, no que se refere ao
seguimento econômico, já se percebe na cidade maior fluxo de pessoas vindas de cidades e
estados vizinhos, o que viabiliza maiores relações comerciais em termos de venda a este novo
público consumidor.
Com a chegada da Universidade Federal de Sergipe houve um crescimento da
demanda de venda para professores e alunos de outros estados ou até mesmo municípios, com
o objetivo de montar residências ou repúblicas. É importante lembrar que este crescimento
não foi espetacular. Mais se acredita que a médio e longo prazo com reconhecimento dos
cursos pelo MEC e a incorporação de outros, essa que vem possibilitar crescimento ainda
maior, principalmente nas épocas de início de aulas. A expectativa é que com o passar do
tempo haja uma maior integração do Campus de São Cristóvão com Itabaiana, e
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comprometimento ainda maior dos professores, a perspectiva é que a cidade seja reconhecida
em outros estados, não somente pela força comercial de varejo, como também no termo
educacional.
A Universidade contribuiu para podar a distancia para formar estudantes em nível
superior, ate pela dimensão da mesma, sabemos que ela simboliza a modernidade,quando não,
ela mesmo traz essa modernidade. Sabemos que a escolha da cidade de Itabaiana para ser sede
do campus da Universidade Federal de Sergipe tem a ver com questões política a própria
prefeita de Itabaiana e outros deputados. O funcionamento do campus representa uma grande
conquista para a cidade, agora muitas pessoas que não conhecem itabaiana passaram a
conhecer, sem contar nas expectativas em termos de mudanças sociais, econômicas,
educacionais e até mesmo culturais.
A UFS em Itabaiana, que recebeu o nome de Campus Profº Alberto Carvalho, foi
inaugurada no dia 14 de agosto de 2006, um verdadeiro presente para cidade, que no dia 28 do
mês e ano completaria 118 anos de emancipação política.
O imóvel foi doado pela Prefeita Municipal Maria Mendonça, com aprovação da
Câmara Municipal de Vereadores da cidade no ano de 2006. A sede doada está situada na
Avenida Felisbelo Machado Menezes, esquina com Rua Percílio Andrade, Bairro Sítio Porto,
onde funcionava o antigo CAIC (Centro de Assistência a Infância e Adolescente).
Inicialmente o Campus ofereceu dez cursos, Letra/Português, Geografia, Ciências
Biológicas, Química, Sistema de Informação, Administração Ciências Contábeis, Física,
Matemática e Normal Superior. Acredita-se que posteriormente outros cursos poderão ser
incorporados, isso dependerá da demanda local e da UFS. Relacionado ao corpo docente
podemos perceber que todos os professores são qualificados para o exercício de suas funções.
A maioria são doutores e os demais mestres.
Qualquer universidade traz benefício para o município, é claro que a gente
entende que no caso da UNIT tem um problema, refiro-me ao pagamento da mensalidade,
talvez dificulte um pouco para os pais de família, porém se não é a vinda da Universidade
Tiradentes UNIT para Itabaiana talvez muitos pais não tivessem seus filhos formados em casa
hoje, não teríamos uma serie de professores formados que contribuíram para melhorar a
qualidade do ensino do município. A grande vantagem da Universidade Federal de Sergipe é
porque não se paga, na verdade é um caso que se pleiteia há anos e mais anos. A chegada, da
Universidade Federal de Sergipe contribuirá para crescer muito o município porque com ela
há a condição de desenvolver e até porque isso traz renda para o município porque as cidades
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circunvizinhas terão mais facilidade em ingressar em um curso de graduação, as pessoas vêm


em busca de emprego, vem gerar renda para o município, pode ser observado que, Campina
Grande na Paraíba teve crescimento por quê? Por causa da universidade no município,
Itabaiana ganha muito com isso qualquer cidade é beneficiada com a vinda de qualquer tipo
de Universidade principalmente com a expansão de Universidade de nível federal, acho que
todas elas são bem vindas.
A Implantação da UFS em Itabaiana demorou muito por conta da falta de
iniciativa de fato por parte de alguns governantes. Várias tentativas fracassadas ocorreram até
que a Prefeita Maria Vieira Mendonça tomou a iniciativa de lançar para a sociedade uma lista
de assinatura, a qual foi exitosa, contribuindo inclusive para sensibilizar o governo Lula. Más
é claro que a concretização do Campus deve-se principalmente ao desejo dos governos
Municipal, Estadual, Federal, juntos congregaram os mesmos objetivos, a efetivação da
instalação do Campus Profº Alberto de carvalho o qual contribuirá para o engrandecimento
cultural e intelectual de Itabaiana, pois peça principal para implantação do Campus em
Itabaiana foi a Prefeita Maria Vieira Mendonça, que junto ao governador Marcelo Deda,
dirigiu-se a Brasília a fim de sensibilizar os deputados e o Presidente da República.
Este objetivo de expansão do ensino superior promovido pelo Governo Federal é
muito importante, tendo em vista que foi aqui, neste município, o primeiro pólo de expansão
universitária a funcionar, ou seja, o governo estadual e municipal também merece parabéns
pelos incentivos dados por esta boa empreitada em nossa cidade, mas deve-se lembrar que
tudo começa nas redes municipais e estaduais, assim precisamos lembrar e cobrar uma melhor
rede pública básica de ensino, para que futuramente tenham um aproveitamento universitário
maior. Atribuo a vinda ou instalação de diversos pólos acadêmicos em nosso município, a
localização geográfica foi um fator importante para a instalação do ensino superior, mas não
somente isso, os representantes locais tiveram a sua parcela de contribuição.
É pertinente recordar que o primeiro passo de desenvolvimento educacional já foi
iniciado. Sabe-se que a universidade sozinha não promoverá mudanças, resta aos estudantes o
desejo do conhecimento. A universidade por se só não proporcionará mudança na mente dos
jovens, mas com certeza estimulará o jovem a ter visão mais crítica das coisas que acontecem
no mundo. A ele cabe a função de absorver da melhor forma possível às informações, e
formar as suas próprias idéias de mundo, vale lembrar que é necessário ter uma educação para
entrar no mercado de trabalho, nada vale o conhecimento sem a sábia utilização na vida
profissional.
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Essa descentralização da Universidade Federal de Sergipe para o interior do


Estado deu mais oportunidade para os estudantes não só de Itabaiana, mas também das
cidades circunvizinhas que terão um acesso mais facilitado em ingressar no ensino superior,
aumentando um pouco o nível de escolaridade do interior do estado sergipano. Apesar das
universidades públicas serem ocupadas por pessoas de classe média e alta, que passam por
escolas particulares, o campus de Itabaiana, entretanto, até o momento, tem trazido na maior
parte alunos vindos de redes públicas, ou seja, pessoas de pouca renda.
Essa implantação representa uma série de mudanças que só ocorrerão a médio e
longo prazo. O fato é que esta é uma das maiores contribuições que a cidade já ganhou, a
universidade representa a maior contribuição que a cidade de Itabaiana poderia adquirir. O
nome por si só já fala tudo, é um universo que divulga o saber, capacita cientificamente os
indivíduos para que estes sejam pessoas críticas e conhecedoras de uma visão aprofundada do
mundo. Sem contar na estrutura do Campus, inclusive os professores são de outros estados os
que auxiliam para a transmissão e divulgação de novos conhecimentos culturais, além de
favorecer a nossa cidade que ficará mais conhecida em outros Estados.
Com a universidade as primeiras mudanças já podem ser observadas, já se percebe
o fluxo maior de pessoas nas áreas comerciais e no trânsito da cidade. Porém isso é só o início
de um projeto que em torno de dez anos poderá ter mudanças em outras proporções ainda
maior, no caso a cultura local e a própria sociedade. Uma outra questão seria a qualificação da
mão-de-obra que a nossa sociedade ainda importa de outros estados. Inclusive já foi aprovada
a vinda do CEFETE para o ano 2010, que se encarregará de qualificar ainda mais os nossos
profissionais, o terreno já está comprado fica ao lado do Asilo Lar Cidade de Deus. Uma das
importâncias da Universidade para a cidade de Itabaiana refere-se às novas facilidades de
acesso encontrado, outro ponto relevante é a questão cultural visão que este povo terá a médio
e longo prazo.
Acredita-se que, com o surgimento da UFS em Itabaiana, os estudantes possam ter
a oportunidade de obter uma formação de qualidade, e que os mesmos tragam bons frutos
para cidade. É provável que com o passar dos anos novos cursos possam ser incorporados,
além dos dez já existentes. Já se esperam inclusive os cursos de especialização, inclusive
mestrado e doutorado, uma vez que a cidade já possue uma série de profissionais formados na
capital e em outras instituições, o mais difícil foi à implantação do campus, outros cursos
inclusive os de especializações é apenas uma conseqüência das necessidades local.

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UFS em Itabaiana: A Trajetória de Sua Criação

A trajetória que conduziu a inauguração e a efetivação de um ensino superior


público em Itabaiana, com a incorporação da Universidade Federal de Sergipe, se deu de
forma lenta.
O processo se fixou em torno de uma disputa política acirrada entre dois partidos
oposicionistas. Entre eles, o Partido Socialista Brasileiro PSB, do qual faz parte à prefeita
atual Maria Vieira de Mendonça, e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDB
do ex - prefeito Luciano Bispo de Lima, e o Partido Democrata DEM do qual o Deputado
Federal José Carlos Machado participa.
O projeto do Governo Federal de expandir o ensino superior público para as
demais cidades do interior do Estado se transforma em uma oportunidade para a cidade de
Itabaiana, que já havia passado por uma primeira experiência de ensino superior público,
somente para professores/alunos do PQD. Restava a iniciativa dos representantes políticos da
cidade em criar argumentos suficientes para convencer os órgãos federais de que Itabaiana
tinha suporte e estrutura adequada para esse projeto enaltecedor e audacioso.
É importante ressaltar que a efetivação da UFS em Itabaiana não foi tão fácil o
quanto parece. Isso só foi possível graças ao esforço dos políticos locais, como a então
deputada estadual e atual prefeita local, Maria Vieira de Mendonça, junto com os Deputados
Federais, entre eles: Jackson Barreto de Lima, Heleno Silva, Eduardo Amorim, que
desempenharam um papel importantíssimo para fortalecer o projeto de expansão universitário
na cidade. Segundo entrevista com a prefeita Maria Vieira de Mendonça.
O projeto que efetivou o ensino superior em Itabaiana, com a chegada da UFS,
não foi fácil, trabalhei muito para concretizar este objetivo. O primeiro passo foi marcar uma
reunião com os deputados em Brasília, para convencê-los de me apoiar. Na época quatro
cidades disputavam à expansão do campus da UFS, entre eles: Nossa Senhora da Glória,
Estância, Itabaiana e Lagarto, que já possuía um lugar apropriado para as exigências do MEC,
só era necessário adequá-lo com a ampliação. Quase perdíamos para Lagarto, pois não
tínhamos a estrutura apropriada. Pensamos no Centro Integral de Assistência a Infância e
Adolescência CAIC, mas como era um órgão municipal, e a portaria vigente não permitia a
doação para órgão federal, procurei o prefeito Marcelo Deda para que com sua amizade e
influência política me ajudasse a mudar essa portaria. Neste meio tempo ligamos para todas as

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prefeituras regionais, para fazer uma mobilização social. Em Itabaiana montamos tendas para
o recolhimento de assinaturas. Conseguimos colher entre os municípios de Itabaiana e região
vinte quatro mil assinaturas, as quais foram apresentadas em Brasília, juntamente com um
relatório, que foi exitoso para essa conquista. Outra dificuldade ainda maior foi à compra do
terreno ao lado para a ampliação da UFS. Esse pertencia a dois irmãos herdeiros e rivais,
residente no Rio de Janeiro. Tive que me dirigir ao Rio com meu assessor para convencê-los a
vender o mesmo. De início os oposicionistas, o próprio deputado federal José Carlos
Machado não se manifestou a favor do projeto. Para a oposição eu estava debochando da
sociedade Itabaianense. Quando percebeu que era inevitável, o mesmo usou a tribuna para a
aprovação da vinda da UFS para Itabaiana. Até então o mesmo estava contra.
Outra versão política aponta os nomes de outras pessoas que colaboraram para
trazer o campus da UFS para Itabaiana. Entre eles, a participação do deputado federal José
Carlos Machado, o qual elaborou uma emenda para excução do projeto de expansão do ensino
superior para as demais cidades do Estado, e o deputado federal de Minas Gerais, relator da
Lei de Diretrizes Orçamentária LDO Gilmar Machado.
José Carlos Machado foi à pedra preponderante para a vinda da UFS para
Itabaiana, ele estava no lugar certo e na hora certa. Por ser filho da terra ajudou bastante para
este fato acontecer. Claro que, sem o governo federal Luiz Inácio Lula da Silva nada teria
acontecido, é importante recordar que esse pleito aconteceu há muitos anos especialmente em
1988, pelo então deputado federal José Queiroz da Costa o qual não obteve êxito. O deputado
José Carlos Machado apresentou uma jogada de mestre que foi exitosa para a implantação do
Campus da UFS na cidade. Claro que todo mundo depois do filho feito quer ser o padrinho. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso feito na cidade, disse que não houve um
padrinho, parabenizou a todos colaboradores para a execução desse projeto. Machado está
muito satisfeito com esses resultados, caso saísse da política, sairia consciente de ter trazido
para Sergipe especificamente Itabaiana sua terra natal, um dos maiores projetos de todos os
tempos.
A corrida acirrada com o grupo partidário do ex-prefeito Luciano Bispo de Lima,
e a atual governante do município Maria Vieira de Mendonça no ano de 2005 e 2006
pleiteavam-se entre si para conseguir a efetivação do ensino superior gratuito em nossa
cidade. A presente prefeita com seu grupo de deputados federais, Jackson Barreto, Heleno
Silva e Eduardo Amorim contribuíram com a mesma. Ela com seu esforço conseguio um
levante de assinaturas entre estudantes e a população e apresentou em Brasília.
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Já o grupo do ex – prefeito Luciano Bispo de Lima teve à frente da disputa o filho


da terra, o deputado José Carlos Machado, o qual teve um papel fundamental ao elaborar a
emenda para expansão do ensino superior na cidade. De acordo com entrevista realizada com
Josué Modestos dos Passos Sobrinho, concedida por Francis de Andrade, locutor da emissora
Itabaiana FM.
Gostaria de registrar o papel do deputado federal José Carlos Machado na
implantação da UFS em Itabaiana. Eu estava em 29 de Junho, dia de São Pedro, em Brasília,
para assinar um convênio com o Ministério das Ciências e Tecnologias. O deputado ligou
para o meu celular e por coincidência eu estava em Brasília. Eu como professor fiz o
comunicado a liderança do governo que em nome do PFL nós obstruiremos a votação da lei
orçamentária comissão orçamentária se Sergipe não fosse contemplado com o plano de
expansão da Universidade Federal de Sergipe especificamente Itabaiana que é a base eleitoral
do deputado José Carlos Machado. Poucos minutos depois recebi um chamado do secretário
executivo do MEC e perguntei qual era o problema e o que estava ocorrendo, e eu esclareci, o
secretário executivo não participou da nossa audiência, mostrei qual era o problema. A
Universidade Federal não havia sido contemplada para Sergipe, não obstante, não entendemos
a bancada sergipana e o povo sergipano não entendia essa exclusão, pois bem o secretário
executivo do MEC professor Fernando Hadad me assegurou que já havia conversado com o
ministro e disse que não poderia abrir mão do conteúdo da lei de diretrizes orçamentária, que
estava sendo proposta pelo ministério e que o ministro acatava qualquer emenda que é reforço
do pleito do Ministro, com a emenda e a pretensão do deputado José Carlos Machado que
convergia absolutamente com interesse do ministério apenas especificar que Sergipe seria
contemplado e que não havia nenhum problema, retornei ao deputado José Carlos Machado a
informação e o compromisso do ministério da educação.
Visando esta disputa entre partidos distintos, podemos confirmar a participação de
ambos para a realização desse projeto de expansão do ensino superior para o interior do
Estado, especificamente Itabaiana. Todos tiveram a sua parcela de contribuição.
Referente aos grupos políticos pode-se dizer que esses são mais vantajosos para a
população quando os mesmos lutam entre se. Para qualquer sociedade, isso é bom, para a
população Itabaianense o resultado dessa disputa foi à implantação de um campus da UFS,
especificamente o campus professor Alberto Carvalho.

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Após aprovação do projeto de expansão do ensino superior público para a cidade,


outros discursos se formaram em torno da disputa para saber quem seria o homenageado com
o nome do campus da Universidade Federal de Sergipe em Itabaiana.
Dois professores naturais da própria cidade foram indicados para concorrerem ao
título de homenageados, entre eles a professora Maria Thetis Nunes e o professor Alberto
Carvalho.
A professora Maria Thétis Nunes nasceu em Itabaiana, formou–se jovem aos vinte
e dois anos na Bahia. A historiadora prestou concurso para o Atheneu e ocupou a cadeira de
história, também foi professora da UFS.
Tendo em vista a inauguração do campus universitário em Itabaiana, a Associação
Nacional de História, considera que as instalações deste campus deveriam homenagear a
professora Maria Thetis Nunes, recebendo seu nome. Gostaríamos de enfatizar que a mesma é
filha de Itabaiana possui a maior produção bibliográfica em nosso estado, contribui assim para
o ensino e pesquisa de Sergipe, como a primeira mulher catedrática e diretora do colégio
Atheneu, professora da UFS, presidente do Instituto Geográfico de Sergipe. Esta deve ser
louvada e honrada, é responsável pela formação de muitos intelectuais.
O professor Alberto Carvalho teve uma infância humilde, pois precisou trabalhar
como baleiro nas filas do cinema de Itabaiana para ajudar seus pais. O mesmo completou o
curso primário no grupo escolar Guilhermino Bezerra na cidade. Faleceu no ano de 2002 aos
70 anos. Na época residia em Aracaju, onde morava desde 1944. Foi professor da UFS de
história econômica geral e do Brasil, aposentou-se e retornou às funções como professor
substituto. Era poeta, literário, bancário concursado do Banco do Brasil, e escritor crítico,
inclusive o Hino da Associação Olímpica de Itabaiana foi autoria dele, representou muito para
a cultura sergipana pelo fato de ser crítico.
A disputa pelo nome do campus da UFS na cidade de Itabaiana, trouxe a vitória
ao professor Alberto Carvalho. A votação feita pelo conselho da universidade foi unânime o
seu favor. Em Itabaiana houve alguns segmentos expressivos que não concordaram com o
nome, provavelmente por estarem apoiando Maria Thetis Nunes. A gente que conheceu
Alberto Carvalho sabia da importância que ele era culturalmente e na terra dele ele não era
uma pessoa muito conhecida, apesar de que as pessoas da época dele, mais antiga, sabiam
quem era Alberto, até porque ele vivia na terra, ele vinha muito aqui em Itabaiana tomar a
cervejinha dele, lançar livros, o último mesmo fala de da cidade, ele tinha uma relação muito
estreita com a terra natal. O hino de Itabaiana é de autoria dele, era torcedor, acompanhava os
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jogos, então ele tinha uma relação muito estreita com a terra. Quando surge a idéia do
Campus de Itabaiana, então essa idéia começou a florir e aí que termina com a escolha do
nome dele, que teve a professora Thetis também, mas terminou que o conselho da
Universidade, de forma unânime, isso eu preciso deixar bem registrado que eu compareci no
dia da escolha, mas tenho que fazer uma referência que o nome dele foi aclamado
unanimente, todos votaram no nome dele e infelizmente eu não consegui gravar os votos
porque teve em torno de 22 conselheiros, acho que uns 6 ou 7, fizeram questão de usar da
palavra para enaltecer a escolha do nome, realmente eu não tenho isso registrado, mas
participei, de forma que o conselho da Universidade foi unânime. Infelizmente, isso precisa
ser registrado também, aqui em Itabaiana houve alguns segmentos, que não vale a pena
citarem nomes, segmentos até expressivos que não queriam o nome, lamentavelmente isso é
verdade, eu to dizendo isso porque eu participei de todo processo, mas eu acho que fez justiça
ao nome é orgulho, que não é meu, mas sim de todo itabaianense. E fica na minha visão
perpetuando o nome de uma pessoa que desde sua origem, Itabaiana, humilde, saiu daqui
criança, foi venceu na vida e chegou aonde chegou. É reconhecido em todo lugar, em todo o
campo de atuação seja na poesia, na crítica, no cinema, nas artes de um modo geral e pra mim
como genro, eu fico muito orgulhoso em saber que foi feita a maior justiça com relação ao
nome dele no Campus da Universidade de Itabaiana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho se articulou em analisar as experiências de ensino superior


público na cidade de Itabaiana. Nessa perspectiva o foco da pesquisa se inicia no ano 1997
com o surgimento do Projeto de Qualificação Docente PQD que estabelece um pólo na cidade
de itabaiana. Este se estende em três versões as quais contribuíram demasiadamente para
melhorar a qualidade de ensino do município e região circunvizinha. Durante esse projeto
tivemos a formação de professores na área de licenciatura em várias modalidades, entre elas
Português Matemática, Química, Física, História e Biologia.
Apesar de ser somente para professores da rede estadual e municipal que no
momento estavam execendo a função sem a devida qualificação, O Projeto de Qualificação
Docente apresentou com o passar dos anos resultados gratificantes para as organizações
responsáveis, a prova disso são as três versões, o PQDI, o PQDII e o PQDIII, ou seja, o
segundo e o terceiro foram frutos dos resultados positivos da primeira experiência nessa
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modalidade de ensino. Segundo Relatório Semestral fornecido pela direção os resultados do


Projeto de Qualificação Docente em Itabaiana em todos os cursos aprovaram noventa e nove
%. Isso implica em excelentes resultados positivos.
No decorrer da pesquisa há o esclarecimento da incorporação de vários
municípios no pólo de Itabaiana entre eles: Nossa Senhora Aparecida, Macambira, Riachuelo,
Ribeirópolis, Carira, Moita Bonita, Santo Amaro, Frei Paulo, Pedra Mole, Campo do Brito e
São Domingos, Areia Branca, Japaratuba, Malhador, Pedra Mole, Pinhão, Rosário do Catete e
São Domingos. É pertinente ressaltar que a maioria dos professores/estudantes era em sua
maioria de Itabaiana.
O Projeto de Qualificação Docente são experiências de ensino superior público na
cidade de itabaiana que mais tarde especificamente o ano de 2006 resultaria na expansão de
um campus avançado da Universidade Federal de Sergipe para o município de Itabaiana. O
trabalho desmistificou o processo de expansão da Universidade para o município, que não
ocorreu de uma forma simples, se fixou em torno de uma disputa política acirrada entre dois
partidos oposicionistas. È pertinente recordar que o projeto do Governo Federal de expandir o
ensino superior público para as demais cidades do interior do Estado se transforma em uma
oportunidade para a cidade de Itabaiana. No mais trouxe expectativas para os estudantes que
esperam maiores facilidades, alem dos comerciantes locais na espera do aquecimento das
vendas que já possue uma parcela expressiva do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ângelo Greyck Oliveira dos Santos, estudante do Campus Universitário Professor Alberto
Carvalho, 22.11.2007, entrevistado pelos autores.

Cristina de Carvalho Fagundes, professora do Colégio Santo Antônio e estudante do Campus


Professor Alberto Carvalho, 22.11.2007, entrevistada pelos autores.

Josefa Evangelista de Jesus Andrade, professora da rede pública. 10 de outubro de 2007,


entrevistada pelos autores.

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Luana da Paixão Gomes, estudante do Campus Professor Alberto Carvalho, 22.11.2007,


entrevistada pelos autores.

Luciano Bispo de Lima, Ex-Prefeito do Município de Itabaiana, 06.12.2007, entrevistado


pelos autores.

Maria auxiliadora S. de Jesus, professora do Colégio Municipal Vice-governador “Benedito


Figueiredo” e alunado PQD III. 07 de outubro de 2007. Entrevistada pelos autores.

Maria Vieira de Mendonça, Prefeita do Município de Itabaiana, 27.11.2007, entrevistada


pelos autores.

Kelliton Cruz Campos de Oliveira, gerente das Lojas Insinuante e estudante do Campus
Universitário Professor Alberto Carvalho, 23.11.2007, entrevistado pelos autores.

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LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA REGIONAL: ANÁLISE


HISTORIOGRÁFICA

Kléber Rodrigues Santos - UFS1502


kleberrsantos2004@hotmail.com

Esse trabalho tem o intuito de realizar uma análise historiográfica de vinte manuais didáticos
regionais avaliados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2007).
Tal apreciará concepções historiográficas, partindo do exame de alguns dos principais
elementos da narrativa: sujeitos históricos, periodização e cenários. Entre os resultados
encontrados nesse estudo, constatamos que os personagens individuais apresentam uma baixa
ocorrência, sendo superados pela coletividade e as ações coletivas. Também verificamos que
a chamada periodização tradicional é a mais freqüente. O recorte escolhido ainda é aquele que
divide o tempo em Colônia, Império e República. Em relação aos cenários escolhidos, os
dados revelam uma mescla entre História nacional e regional, com o predomínio das
experiências municipal e estadual. Esse trabalho faz parte do projeto “História regional para
crianças: o texto didático em questão”, desenvolvido com alunos de iniciação científica dos
cursos de História e Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe e financiado pelo
PIBIC/UFS/CNPq, sob a orientação do Prof. Itamar Freitas (DED/UFS).

Palavras-chave: ensino de História, livro didático, análise historiográfica

INTRODUÇÃO

No campo dos historiadores (por formação inicial) notamos diversos trabalhos que
tratam a historiografia como o estudo da produção histórica e um conjunto de obras escritas
sobre um tema histórico. Com esse sentido, a Historiografia é a realização de uma "história da
história". O termo designa o processo de redação de um texto histórico e, simultaneamente, o
produto deste processo, a saber, a narrativa histórica.
1502
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Pesquisas em Ensino de
História ─ GPEH/DED/UFS. e-mail: kleberrsantos2004@hotmail.com
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No Brasil, o primeiro trabalho reconhecido pelos estudiosos como pertencente ao


campo da historiografia foi o estudo de José Honório Rodrigues, publicado em 1949,
intitulado Teoria da História do Brasil. Esse livro tornou-se modelo de sistematização e
análise historiográfica, com grande influência nos estudos históricos no Brasil. (ARRUDA;
TENGARRINHA, 1999, p. 18-19).
A partir da década de 1970, os trabalhos de análise historiográfica começaram a
ganhar força no Brasil. Em 1976, surge a obra escrita por José Roberto Amaral Lapa, a
Historiografia brasileira contemporânea: a história em questão. Efetuando uma interação
dialógica entre o historiador e a história produzida, José Roberto Amaral Lapa alargou o
campo da abordagem historiográfica, atentando para um processo de produção do
conhecimento histórico inserido na prática social dos agentes, dos grupos articulados e da
ação das classes sociais. (ibid, 1999, p. 23-24).
A partir da segunda metade dos anos 1980 e nos anos 1990, os estudos
historiográficos tomam novo fôlego. Além de novas abordagens e uma nova conceituação no
sentido da análise, entram em cena uma nova geração de historiadores. Entre os novos
profissionais é possível destacar José Carlos Reis, que em 1999 publicou um estudo intitulado
As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Nesse trabalho, ele propõe a retomada das
interpretações de alguns historiadores em sua época, em sua data, com sua problemática e
com as suas avaliações do passado e projeção do futuro (REIS, 1999, p.13-14).
Para José Carlos Reis, historiografia seria uma síntese em que ocorre um diálogo
entre diversas interpretações históricas, que se esclarecem pela compreensão e constatação
recíprocas. Em um progresso dialético as interpretações posteriores superam conservando as
anteriores, sem desfazer as diferenças, sem eliminar o valor e a necessidade das predecessoras
(ibid, 1999, p. 13).
As análises dos historiadores citados acima têm como objeto os instrumentos
teóricos-metodológicos, escolas historiográficas e várias interpretações do passado. Nenhuma
delas pretendeu visualizar os livros didáticos como possíveis temas de suas discussões.
Apesar de negligenciados pelos bibliógrafos, pelo campo da historiografia e por outras esferas
do conhecimento histórico, os livros didáticos vêm suscitando um vivo interesse na pesquisa
há quase 15 anos.
Dentro do campo da pedagogia e da história da educação, a história dos livros e
das edições didáticas passou a constituir um domínio de pesquisa em pleno desenvolvimento
(CHOPPIN, 2007). A complexidade e o predomínio do uso do livro didático nas salas de aula
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têm despertado o interesse de muitos estudiosos, e essa tendência também começa a crescer
no Brasil.
Mesmo com tal mudança de perspectiva, vê-se que a grande maioria dos estudos
consideram os livros didáticos apenas como vetores ideológicos e culturais, sem serem
abordados como instrumentos pedagógicos e didáticos. Circe Bittencourt, por exemplo,
aponta que dentre os livros didáticos, os de História são os mais pesquisados no Brasil. Indica
também que grande parte das análises feitas sobre essas obras se refere ao exame dos
conteúdos numa perspectiva ideológica e aos discursos com a intenção de identificar a
manutenção de estereótipos sobre grupos étnicos. (cf. BITTENCOURT, 2004, p. 304-305).
Todas as informações acima citadas servem para completar nosso entendimento
sobre o ineditismo do trabalho que desenvolvemos e transmitimos aqui neste trabalho. Nas
antigas obras de história da historiografia, não se localizam trabalhos que considerem os
escritos didáticos, respeitando seus traços dominantes e os tratando como uma literatura
historiográfica específica.
Não existem pesquisas, nem mesmo no âmbito dos trabalhos mais recentes sobre
manuais didáticos, que contemplem uma análise historiográfica sobre as coleções de livros
didáticos de História regional, avaliadas e distribuídas pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD 2007).
Nossa pesquisa está inserida nas atividades desenvolvidas no âmbito do Grupo de
Pesquisas em Ensino de História (GPEH), dentro do Projeto “História regional para as séries
iniciais da educação básica no Brasil: o texto didático em questão”, sob a orientação do
professor Itamar Freitas, no período de agosto de 2007 a janeiro de 2008. Tal projeto tem por
objetivo analisar a escrita didática de livros de história regional no Brasil e as representações
de professores e alunos sergipanos sobre o livro didático de história, visando à produção de
uma coleção de livros didáticos de História de Sergipe para as séries iniciais.

Metodologia

A análise foi realizada sobre uma amostra de vinte títulos de uma população
formada por 27 coleções de livros didáticos. A escolha foi aleatória, sendo determinada pela
ordem de chegada dos livros, adquiridos nas editoras em São Paulo (o projeto prevê o exame
de todas as coleções). Os livros enfocam os estados do Rio Grande do Sul, São Paulo,
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Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Santa Catarina e foram produzdos pelas editoras Ática,
Base, FTD, Scipione e Brasil, como se pode observar no quadro abaixo.

Títulos Regiões
FERNANDES, Martha Maria Serrano. Contemplando a Bahia
Bahia: história. 3ª série. Curitiba: Base, 2004.
NASCIMENTO, Roseni R. C. São Paulo – interagindo com a São Paulo
história. São Paulo: Editora do Brasil
CABOCLO, Eliana. et al. Gente do Rio, Rio da Gente: Rio de Janeiro
História. São Paulo: Editora do Brasil, 2001.
NEVES, Luiz Guilherme Santos. O Espírito Santo. História do Espírito Santo
Estado do Espírito Santo para o Ensino Fundamental. Curitiba:
Base, 2004.
CORRÊA, Marlene. Ceará: história para a construção da Ceará
cidadania. São Paulo: FTD, 2004.
NASCIMENTO, Roseni R. C. et al. Goiás – interagindo com a Goiás
história. São Paulo: Editora do Brasil.
GARCIA, Leônidas Franco; MENEZES, Sônia Maria dos Goiás
Santos. História de Goiás para todos. Editora Scipione.
TUMA, Magda Madalena Peruzin. Viver e descobrir: História: Paraná
Paraná. São Paulo: FTD, 2001.
TEIXEIRA, Francisco M. P. História: Pernambuco. São Paulo: Pernambuco
Ática, 2004.
MACIEL, Laura Antunes. O Mato Grosso e sua história. Mato Grosso
Curitiba: Base, 2004.
SIEBERT, Célia. História do Estado do Rio de Janeiro. São Rio de Janeiro
Paulo: FTD, 2006.
PAIVA, Renata. História: Pará. São Paulo: Ática, 2004. Pará
SOUZA, Zélia Paes. et al. História do Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do
FTD. Sul
TEIXEIRA, Francisco M. P. História: Minas Gerais. São Minas Gerais
Paulo: Ática, 2004.
SOURIENT, Lílian. et al. Santa Catarina: Interagindo com a Santa Catarina

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História. São Paulo: Editorado Brasil, 2003.


DIEZ, Albani Galo. Segredos da Bahia: história. São Paulo: Bahia
FTD, 2001.
PILETTI, Filipe. História: Rio Grande do Sul. São Paulo: Rio Grande do
Ática, 2004. Sul
VASCO, Ediméri. et al. O Paraná de todas as cores: história Paraná
do Estado do Paraná para o ensino fundamental. Curitiba: Base,
2004.
SILVA, Lilian dos Santos; CHIANCA, Rosaly Braga. Bahia
História: Bahia. São Paulo: Ática, 2004.
FIORI, Neide Almeida; LUNARDON, Ivone Regina. Santa Santa Catarina
Catarina de todas as gentes: história e cultura. Curitiba: Base,
2004.

Em primeiro lugar, transcrevemos todos os textos, diferenciando (em cada livro


analisado) o texto principal dos textos complementares. Consideramos texto principal todo o
escrito produzido pelos autores do livro e que não recomenda aos alunos a realização de
algum exercício ou atividade. O texto secundário corresponde aos excertos do texto principal
ou documentos produzidos por outros autores e as atividades para o aluno.
Depois da identificação do texto principal, realizamos a transcrição integral do
mesmo, transpondo-o do editor de texto Word para o banco de dados Access.
Em seguida, dividimos o texto em “unidades de sentido” e realizamos a análise
temática. Uma “unidade de sentido” equivale à enunciação de um “pensamento completo”,
que pode se localizar em um parágrafo, uma unidade, sub-unidade, um capítulo, etc.
(SEVERINO, 1978, p.19).
A “análise temática”, propriamente dita, ocorreu em dois níveis: a identificação e
quantificação dos elementos principais da narrativa. Entres esses elementos estão: a natureza
dos personagens, das ações/fatos, motivações, formas de recortar e dar ritmo ao tempo e
cenários. Neste trabalho, entretanto, comunicaremos os resultados do exame dos indicadores:
personagem, forma de recortar o tempo e cenário.

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Ao realizar o exame do personagem, por exemplo, trabalha-se a noção de sujeitos


individuais e coletivos. Isso pode indicar uma filiação mais próxima ou mais distante de uma
História de bases do materialismo histórico, ou talvez de uma História factual.
Já a forma de recortar e de dar ritmo ao tempo, além de contribuir para chegar a
um entendimento sobre o nível de experiência, informa bastante sobre a noção de duração
adotada.
Os cenários, por fim, são elementos importantes, pois indicam concepções
teóricas, informam o lugar da fala dos atores e dão indícios da relação entre a História narrada
e a memória do ensino de História, História local e História geral.
A última parte da análise destinou-se à extração de conclusões a partir da
quantificação e tipificação e do estabelecimento de relações entre esses resultados.

Resultados e Discussões

A análise historiográfica aqui proposta inicia-se com a identificação e a


quantificação dos personagens, os atores da trama, aqueles que são vistos pelos autores dos
livros como produtores da História.
No livro didático de História regional, tanto os imperadores, os políticos, as
classes sociais, cidades, países, paisagens naturais, etnias, produtos agrícolas e minerais, entre
outros elementos, atuam como personagens da narrativa histórica.
A tabela abaixo mostra a grande quantidade e variedade de personagens presentes
no livro didático regional:
São quatro os tipos de sujeitos transformados em personagens, como se vê acima:
indivíduos, coletividades, territórios e paisagens e produtos econômicos.
Entre os sujeitos históricos, percebemos que os coletivos aparecem com maior
freqüência. Eles têm uma forte presença, somando 70% das aparições. Analisando o resultado
obtido a partir da amostra, observamos que os grupos, etnias e classes sociais são realmente
vistos como agentes históricos pelos manuais.
Os territórios (como os municípios, países, regiões, estados e continentes) e as
paisagens (rios, mares, serras, montanhas, estradas, florestas) apresentaram baixa intensidade
com uma fraca freqüência de 13%. Já os produtos agrícolas, industriais, minerais e
extrativistas (algodão, o ouro, prata, charque, pau-brasil, petróleo entre outros) apresentam
uma baixa presença, somente 3%.
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De acordo com a tabela, os personagens individuais aparecem num total de 14%,


o que podemos considerar uma fraca presença. A tabela informa ainda uma baixa ocorrência
de personagens individuais, personalidades importantes e pessoas notáveis.
Tomados em conjunto, os vinte livros analisados mostram uma medida de
amplitude alta (63%) entre os tipos de sujeitos históricos existentes. Tal taxa de amplitude
demonstra uma grande diferença entre os personagens mais vistos e os menos vistos.
Compreende-se daí que os manuais não possuem um padrão bem definido no que se refere
aos sujeitos históricos.
Com base nessa amostra, podemos afirmar que no livro didático de História
regional a figura do herói não é a que predomina entre os personagens. A constatação mais
significativa é que esses manuais não vêem mais o passado como dependente da ação de
poucos homens, das vontades individuais ou ações isoladas de heróis. Mas, é preciso entender
que os manuais regionais, não abolem o uso dos indivíduos. Ao invés de retirar os grandes
homens, os indivíduos e heróis, a estratégia escolhida é diluir os agentes individuais na
experiência coletiva.

Em relação às formas de recortar e dar ritmo ao tempo, ou seja, a forma de


periodizar, o modo como os autores recortam o tempo para dar sentido à experiência humana,
verificamos que 20% das obras divide o tempo histórico em duas partes, sendo que grande
parte dos escritos (80%) utilizam-se de três períodos para realizar o recorte.

O quadro acima exibe os marcos finais e iniciais de cada período trabalhado nos
livros didáticos regionais. Esses marcos são anos e séculos importantes, ações humanas
escolhidas para delimitar e analisar a sucessão temporal, fatos históricos significantes para a
História de cada país, cidade, estado ou região.
A identificação das datas, fatos e ações humanas importantes de cada período
possibilita distinguir periodicidades, organizar os acontecimentos no presente e no passado e
relacionar as experiências locais e regionais com as nacionais e mundiais. (BRASIL, 1997, p.
36-37).
O período compreendido entre o século XVIII e XIX tem 32% de freqüência,
enquanto o que abrange o século XIV ao XVII possui 29%.

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A periodização ±30.000 a.C/±5000 a.C é aquela menos adotada com uma


presença de 4%.
O diferencial entre os períodos mais recorrentes e os menos indicados sugere que
os livros didáticos enfatizam uma periodização específica. Comparando as porcentagens dos
períodos citados, observa-se a predominância de uma simetria na duração de cada período.
As informações obtidas com as tabelas acima identificam uma periodização
considerada tradicional dos conteúdos históricos, aquela que trabalha com a composição:
Colônia, Império, República.
Na categoria "outros" estão inseridos termos como engenhos, vilas, sambaquis,
mundo, fazenda, quilombo, aldeia, missões, povoados, capitanias, estâncias, províncias.
Depois de estabelecer os valores absolutos de cada tipo de personagem e somá-
los, consideramos a freqüência em que aparecem e a amplitude. Dentre os cenários
escolhidos, os espaços em que acontecem as ações, observamos que os municípios (23%) e os
estados (22%) apresentam o maior número de ocorrências. A terceira categoria mais
recorrente é a dos países com uma presença de 19%.
Todos os cenários apresentam uma baixa freqüência. Além disso, a amplitude
(diferença entre a maior e a menor porcentagem) é 19%, demonstrando heterogeneidade e a
falta de cenários mais recorrentes.
A ocorrência de 23% de municípios e 22% de estados informa a prioridade dada
aos estudos, conhecimentos e temas da localidade, da região. Os 19% de freqüência por parte
dos países demonstra que apesar de se intitularem regionais, os livros didáticos aqui
analisados não se limitam ao cenário jurídico-político da região, trabalhando também com a
experiência nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo dos vinte livros regionais apresentou muitos dados reveladores.


Primeiramente, compreendemos que os personagens individuais apresentam uma baixa
ocorrência, sendo superados pela coletividade e as ações coletivas.
Observamos o uso da chamada periodização tradicional. O recorte escolhido ainda
é aquele que divide o tempo em Colônia, Império e República.

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Em relação aos cenários escolhidos, os dados revelam uma mescla entre História
nacional e regional, com a prevalência das experiências municipal e estadual sobre as demais.
Os resultados obtidos ainda são parciais, mesmo assim compreendemos que o
estudo aqui desenvolvido pode auxiliar a identificar algumas singularidades da história escrita
e ensinada no Brasil.
Desejamos que esse trabalho consiga ser de grande valia não apenas no universo
acadêmico, mas também seja indispensável para os professores e alunos das séries iniciais do
ensino básico do Brasil e particularmente de Sergipe, Estado ainda tão carente em pesquisas
sobre os livros didáticos.

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IMAGENS DA ÁFRICA; UMA ANÁLISE DA COLEÇÃO PROJETO


ARARIBÁ

Lucas de Oliveira Carvalho – UNIT


lucas_visconde@hotmail.com
Raíssa Tainá Carvalho de Santana – UNIT
raihistory@yahoo.com.br
Williams Santos da Silva – UNIT
Brucewilliams22@hotmail.com
Joceneide Cunha Santos- orientadora - UNIT

A lei 10.639/03 instituiu como obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira e africana em


todas as redes escolares e níveis de ensino. Para isso se faz necessário que existam recursos
didáticos apropriados para que os conteúdos sugeridos sejam expostos e objetivos propostos
por conta da lei sejam atingidos. Ressalta-se que a lei é um reconhecimento da luta do
movimento negro na sociedade brasileira para a inclusão e devido respeito da cultura afro-
brasileira e africana nos currículos escolares das instituições públicas ou privadas. Por isso,
começamos a desenvolver um projeto de pesquisa que pretende fazer uma análise de como os
temas relacionados à história da África estão sendo tratados nos livros didáticos.
Analisaremos como estão sendo abordados os conteúdos e as imagens relacionadas a essas
temáticas. A metodologia adotada será a analise do discurso. Teremos como objeto de estudo
a coleção Projeto Araribá e nesse momento nos debruçaremos sobre o livro de história da
quinta série. Neste podemos observar que as únicas temáticas abordadas no livro mencionado
relacionado a história da África é a história do Egito e a origem do homem.

Palavras Chave: lei 10639/03, Livro didático, história da África.

O negro sempre esteve em constantes lutas durante sua história para superar as
desigualdades e preconceitos contra seus costumes, sua cultura e o seu povo. A luta contra a
escravidão foi apenas um dos marcos na sua luta contra essas adversidades e na sua busca por
uma relação de equidade com as outras vertentes étnicas, será preciso muito mais do que ser
livre para se ter esse objetivo alcançado, pois as menções racistas em aferência ao negro
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continuaram atuantes e se perpetuaram durante décadas seguintes à abolição da escravatura,


estando ainda hoje presente de forma translúcida ou como em tantas outras vezes de forma
silenciada e latente, tais fatores acabaram por ser empecilhos para o desenvolvimento desse
negro, este sendo então colocado à margem da sociedade, em uma condição inferior a outras
etnias. 1503
Foi decorrente desses fatos, que com o passar das décadas começaram a surgir
certas organizações, com a finalidade de combater esses preconceitos contra o negro,
principalmente o racismo, muita vezes encoberto pelo sentimento de existência de uma
democracia racial1504, todas essas ações desses movimentos que começaram a imergir, tem
como meta, primar para que seja recuperado todo esse tempo de desvantagens do negro e
relação ao outras etnias, para que assim se possa proporcionar um convívio mais igualitário
entre os negros e as demais etnias, onde sejam ofertadas oportunidades iguais para ambos os
lados sem qualquer tipo de distinção.
Dentre essas organizações podemos destacar a ação do movimento negro que
junto com outras forças como a frente negra na década de 30, entidade que vinha ocupar o
vazio deixado pelo estado em relação às necessidades e desejos dos negros, oferecendo-lhes
assistência na saúde, educação, etc. A criação do teatro experimental no ano de 1944, será
outro marco na luta do movimento contra as práticas racistas, será esse teatro também
responsável pela publicação do jornal Quilombo, que tinha como objetivo, proporcionar uma
leitura baseada em uma visão do negro sobre sua própria herança africana, sendo de grande
importância para o melhor entendimento do tema e consequentemente muito útil nas lutas
anti-racistas, destacamos ainda a organização do I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de
Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de setembro de 1950, este mais um feito do teatro
experimental.1505
Através da abordagem desses fatos podemos perceber as lutas do movimento
negro e de entidades relacionada a tal, nesse processo de luta contra exclusão de nossos afro-

1503
O livro Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 /
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005, abre espaço para discussões referentes ao negro e a escola, a lei 10/639/03 e a como a
educação é importante nesse processo de luta contra preconceitos.
1504
Idéia defendida por Gilberto Freyre no livro Casa Grande & Senzala, Vê em: : FREYRE, Gilberto. Casa
Grande e Senzala. 29. ed., Rio de Janeiro: Record. 1992.
1505
MUNANGA,Kabengele, GOMES,Nilma Lino.Para entender o negro no Brasil de
hoje:Histórias,Realidades,Problemas e Caminhos. São Paulo:Global, Ação educativa.2004. Esse texto desvela
as constantes lutas do movimento negro e a sua importância nesse processo de luta contra o preconceito racial.

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descendentes,principalmente por via da educação, tento em vista que nos dois períodos pós
abolição(1889-1937,1945-1964),se notará que estas instituições desenvolveram atividades
mais voltada para alfabetização e para o ensino fundamental , além da luta contra a exclusão
desse negro a ter o acesso a escola,já no período que vai de 1978 e que se segue aos nossos
dias atuais observamos a luta em favor da tomada de medidas afirmativas como por exemplo
a adoção de cotas(tema que anda muito em pauta atualmente),além de primar por políticas
públicas educacionais que estejam em favorecimento do negro1506, tendo em vista que a
educação é um ponto que é considerado chave para o movimento nessas lutas e que é um
grande aliado nesse processo de superação de preconceitos e recuperação da auto-estima e da
imagem desse negro.
Tendo em vista toda essa situação, política, econômica, social e cultural, o meio
escolar será visto para o negro não só como um ambiente de aprendizado e conhecimento,
mas como uma via para que se possa conseguir uma ascensão social, para o movimento negro
a educação além de oferecer possibilidade desse negro enlencar-se socialmente, ela se mostra
bastante importante na luta contra o racismo e outros tantos estigmas relacionados ao negro. A
escola então seria um meio pelo qual, se poderia combater a construção de toda essa visão
preconceituosa relacionada a nossos afro-brasileiros na medida em que se tinha a inclusão do
ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos dessas instituições de
ensino, adequando tais a esse processo de combate a essas diferenças raciais, para que a partir
do estudo e aprendizagem desses conteúdos se possa ir esfacelando os antigos conceitos,
muitos deles eurocentristas e preconceituosos sobre o negro incutidos em nossa cultura, com
isso objetiva-se que se possa engendrar no futuro uma relação mais harmoniosa entre as
etnias e que se inicie um processo de inclusão social onde este afrodescente passe a ter seu
espaço e a se reconhecer dentro do cerne social, esteja em total consonância e interação com o
que acontece dentro do meio.
São por todos esses fatores que o movimento negro desenvolverá uma luta
ferrenha e pungente junto aos órgãos governamentais, para que se instucionalizar-se no ensino
temas relacionados à África e a cultura afro-brasileira nas escolas de todo o país. Os
resultados dessas lutas e dessa insistência do movimento negro só seriam alcançados em
março de 2003 quando foi sancionada a lei 10.639/03, tornando assim obrigatório o ensino da

1506
DOMINGUES, Petrônio, Movimento negro e educação: alguns subsídios históricos. In: Estudos Africanos,
História e Cultura Afro-Brasileira: Olhares sobre a Lei 10.639/03. São Cristóvão: editora UFS, 2007.

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História da África e dos africanos nos currículos escolares das escolas de ensino fundamental
e médio.
No entanto, para a lei ser aplicada, requer que sejam feitas mudança, pois os
profissionais devem estar preparados e os suportes pedagógicos adequados a nova realidade,
assim os livros didáticos precisam ser readequados. No entanto, Anderson Oliva nos faz um
alerta:

Muitos professores formados ou em formação, com algumas exceções,


nunca tiveram, em suas graduações, contato com disciplinas especificas
sobre a história da África. Soma-se a esse relevante fator a constatação de
que a grande maioria dos livros didáticos de história utilizados nesses níveis
de ensino não reserva para a África espaço adequado, pouco atentando para a
produção historiográfica sobre o continente. Os alunos passam assim, a
construir apenas estereótipos sobre a áfrica e suas populações. Portanto seria
justo perguntar: como a história da África é ensinada em nossas escolas?
(OLIVA, 2003, p.428).

Diante do exposto, percebe-se que os professores não estão preparados para


trabalhar os mencionados conteúdos na sala de aula. Perguntamos-nos como estaria a situação
dos suportes pedagógicos, principalmente dos livros didáticos.
Muitos livros didáticos mesmo com a implementação da lei não modificaram seus
conteúdos continuando a transmitir uma visão europeizada da história já que dedicam suas
páginas para contar uma história européia e poucas ou nenhuma aos conhecimentos existentes
sobre a história da África e a importância dela e da cultura negra para o Brasil e para o
mundo. Esse negro na maioria das vezes só é retratado de forma preconceituosa sendo
lembrado apenas na vertente do escravismo com a imagem de homens tristes, sofridos, sem
forças ou idéias para resistir. Para atingir os objetivos da lei que é construir e/ou recuperar
uma auto-estima para a população negra deve-se abordar também outros temas como as
contribuições do negro na cultura e história do Brasil. Ressaltamos que na Academia há uma
grande quantidade de trabalhos sendo produzidos sobre a História da África e da história da
cultura afro-brasileira Brasil.
O livro didático é sem duvida um produto da interpretação e da representação da
realidade pelos seus autores, isso quer dizer que o autor ou uma equipe de autores que se
reúnem para elaborar um livro didático produzem o material a partir de seu entendimento do
momento histórico abordado, sua formação e sua ideologia. E, o público que fará uso do
material também criará suas próprias representações a partir do material trabalhado,

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construindo assim um subproduto em seu imaginário, ou seja, a absorção de uma visão na


maioria das vezes parca acerca da verdadeira realidade histórica1507, no caso dos africanos se
tem uma temática sempre vinculada a submissão aos outros povos, quando na verdade
existiram conflitos, resistência e vitórias contrapondo o que na maioria dos casos se
generaliza quando a temática aborda os povos africanos.
Mesmo diante deste contexto, os livros didáticos trabalhados na atualidade no
ensino fundamental possuem uma ausência dos conteúdos referentes ao continente africano,
raramente sendo abordados, e quando abordados estão inseridos em outros temas, quase
nunca se encontra uma obra que trate da temática em um capitulo especifico.
Por conta dessas reflexões, pretendemos fazer uma análise de uma coleção de
livro didático chamado Projeto Araribá. Assim, desejamos analisar como esta sendo abordada
a história africana no mencionado livro.
Escolhemos essa coleção porque que segundo dados coletados nas escolas, foi um
dos livros mais adotados nas escolas públicas e particulares em Aracaju no ano de 2008.
Outro motivo é que a coleção foi também elogiada pelo PNLD 2008, nessa avaliação feita
pelo Plano Nacional do Livro Didático, foram propostas cinco categorias que caracterizavam
o livro didático quanto ao seu conteúdo, (Proposta Histórica, Proposta Pedagógica, Cidadania,
Manual do Professor, e Conjunto Gráfico) no qual o material poderia se enquadrar em ótima,
boa, suficiente ou não suficiente, a coleção Araribá nas três primeiras categorias se enquadrou
como ótimo e nas duas restantes como bom.
Teoricamente teríamos então uma coleção de livros didáticos mais próximo das
determinações das diretrizes.
Metodologicamente utilizamos a análise do discurso, proposta por Fiorin1508,
atentando para o uso de imagens, metáforas, temas e narração existentes no discurso que
viabilizam a ideologia proposta de forma latente nos materiais didáticos.
Neste artigo nos debruçaremos sobre o livro 5ª série (sexto ano) da coleção.
Ressaltamos que nossa pesquisa ainda está em andamento.

1507
Diante desse contexto político, econômico, social e cultural
Anderson faz um breve comentário sobre a criação do material didático e a interpretação na sala de aula em seu
artigo: : OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na
literatura didática. P. 441-442.
1508
Ver FIORIN,José Luiz. Elementos da análise do discurso. 11.ed.- São Paulo: Contexto,2002.-(Repensando a
língua portuguesa).
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Na introdução aos estudos históricos o livro fala sobre a importância dos idosos
para a construção da história, agindo como testemunhas vivas da mesma e guardiões da
memória.

Os idosos podem ser considerados guardiões da memória, referencial cultural de todo


um povo. Basta conversar com um idoso para confirmar essa afirmação. Eles podem
contar, por exemplo, como os jovens, se divertiam 50 anos atrás ou como os espaços
urbanos se modificaram: ruas estreitas ou campos de várzea que deram lugar a
grandes avenidas e arranha-céus. (Araribá, 2006:22).

Os autores trataram de um importante tema oportunidade, a importância da


oralidade. No entanto, eles poderiam dar exemplos de sociedades que valorizam esse saber, e
os velhos como as sociedades africanas. Poderiam abordar, por exemplo, importância dos
griots como guardiões da memória1509
Na primeira unidade o livro trata da origem do ser humano, e em poucas palavras
diz que as primeiras espécies surgiram na África.
Enfatizamos que no livro há o discurso de tornar mais próximas as sociedades da
igualdade étnica, religiosa e cultural. No item construção da cidadania o PNLD diz:

Na Projeto Araribá, o desenvolvimento da prática solidária está presente nas


atividades que sensibilizam os alunos diante do drama da fome, da
exploração do trabalho infantil e do trabalho escravo, relacionando-se isso à
questão indígena, ao valor das mesquitas para os povos muçulmanos e ao
papel dos mitos e das lendas no universo simbólico de várias
sociedades.” (Grifos nossos, PNLD, 2008:53).

Sobre as lendas, no texto há algumas menções as mesmas, incluindo lendas


africanas. Nas páginas 46 e 47 o livro explica o que é uma lenda deixando explicito que é uma
narrativa que sobrevive ao tempo devido a tradição oral, e apresenta-se também uma
explicação sobre o que são os orixás e como o candomblé chegou até nós, logo em seguida é
narrada uma lenda africana para complementar a unidade da idade dos metais.
Na lenda o Orixá Ogum ensina aos homens o segredo do ferro, em Ifé os orixás e
os homens viviam em igualdade, mas o trabalho era árduo devido a falta de ferramentas
resistentes e era cada vez mais necessário plantar em uma área maior, os orixás se reuniram
para ver quem conseguia derrubar as arvores para o plantio, todos fracassaram menos Ogum
que conhecia o segredo do ferro, limpou o terreno com seu facão. Os orixás ofereceram um

1509
Ver KI-ZERBO,J.História geral da África, Metodologia e pré - história da África.Ática/Unesco.
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reino em troca do segredo do ferro a Ogum ele aceitou e também ensinou aos humanos o
segredo da forja, e todo mês de dezembro celebram a festa de Uidê Ogum, o senhor do ferro.
Saliento o uso de palavras na lenda do vocabulário yorubano e por conta disso há
no final uma espécie de vocabulário dizendo os significados das palavras. Também há uma
atividade de interpretação de texto.

(Araribá,2006: pp.46-47)

No livro Notas Sobre o Culto aos Orixás e Vodunse, no capítulo 5 (p.151), Pierre
Verger1510 diz “Ogun entre os youruba, Gu entre os fon, é o deus dos ferreiros e de todos
aqueles que utilizam o ferro: guerreiros, caçadores, lavradores, lenhadores, pescadores,
cabeleireiros etc. É a divindade do ferro e da guerra, um deus viril e protetor. No Brasil
durante as cerimônias para os deuses africanos, Ogum é o primeiro a ser invocado, após Esu.
Na Bahia ele é assimilado a Santo Antônio e no Rio de Janeiro a São Jorge. Terça-feira á o
dia a ele consagrado.” Percebe-se então a importância da lenda contada no livro didático, já
que é a lenda de um orixá bastante cultuado no Brasil. A lenda possibilita uma aproximação
dos alunos e do professor da cultura, religião e costumes africanos que até o momento eram
inexistentes ou parcamente trabalhados em outros livros didáticos.

1510
Pierre Verger faz um apanhado sobre a história de Ogum na África e no Brasil, apresentando também uma
serie de contos e cantigas em seu livro: :VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e vodunse.
Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2ed.- São Paulo: EUSP,2000.

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(Araribá,2006:p.177)

Sobre o drama da fome, os autores propõem uma reflexão sobre o texto “A


ditadura dos padrões de beleza” de Mary Del Priore. O texto fala sobre a moda da mulher
magra no início do século XX, a obsessão pelo corpo perfeito, e anorexia nervosa. Em
seguida, se faz uma denuncia da triste realidade de grande parte de seres humanos em todo
mundo que é a miséria e a fome. Usando imagens bastante divulgadas do continente africano,
mais especificamente da Somália (p.177), de pessoas com um alto grau de desnutrição. A
discussão que os atores dos livros fazem neste trecho á provocativa e reflexiva, a crítica que
fazemos é a da utilização de imagens e referências apenas do continente africano como um
local que há pessoas desnutridas.
Proporcionando aos alunos uma interpretação da realidade de forma distorcida,
como já comentamos anteriormente, contradizendo as determinações das diretrizes, que em
suas ações educativas de combate ao racismo e as discriminações apontam para que a história
da África seja tratada em uma perspectiva positiva, e não só de denuncia da miséria e
discriminações que atingem o continente, e nos tópicos pertinentes como é o caso do nosso
primeiro exemplo.
Na segunda unidade, trata das civilizações fluviais, mostrando a história do Egito.
Temática estudada no 6º ano do ensino fundamental. Ele está inserido no capítulo 3
Civilizações fluviais: Mesopotâmia e Egito. Ao tratar do Egito, os autores mencionam que se
trata de um reino africano. “O Egito antigo ocupava uma faixa de terra muito extensa,
banhada, de norte a sul, pelas águas do rio Nilo. Esse território se localizava no deserto do
Saara, no nordeste da África.” (Araribá,2006.p.84). O capítulo é aberto com a imagem de um
mapa mostrando a localização das civilizações que serão estudadas e alguns questionamentos
que levam os alunos a refletir as idéias demonstradas na imagem. Na parte destinada ao Egito
à localização geográfica fica bem destacada mostrando que se localiza na região nordeste da
África e as margens do rio Nilo. O destaque dado aos trabalhadores especializados é de muita
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relevância demonstrando que muitas profissões datam de muitos séculos, ajudando os alunos
a valorizar a importância dessas ocupações como algo necessário para a construção daquela
sociedade.
Outro ponto positivo no capítulo é a utilização de textos auxiliares Os mesmos
permitem que os alunos saibam de informações atuais e complementares. Um desses textos
narra a história de Ísis e Osíris deuses da cultura egípcia falando de como Osíris se tornou o
Deus dos mortos e de como foi vítima da traição de seu irmão Seti. Em seguida é proposto um
exercício Localize a informação que ambientaliza o texto a realidade social daquela
civilização ajudando os alunos na interpretação de lendas como uma parte da história de um
povo. Dentro desse exercício temos uma questão que sugere:

Compare o mito de Ísis e Osíris com a lenda africana do ferro, que você leu
na seção Compreender um texto da unidade 1.
Nas duas narrativas, como os deuses agiam na relação com os
humanos?(Araribá,2006:98-99).

(Araribá,2006:98)

Com essa atividade os alunos podem relacionar a África e o Egito percebendo o


tipo de idéias em comum, como a idéia de poder real, atribuindo também uma grande
diversidade cultural a esse continente e percebendo que a realidade africana não está tão longe
como alguns livros sugerem. Assim como muitas civilizações européias tiveram suas histórias
ligadas a lendas, como é caso de Roma1511, e seus reis sempre relacionados a deuses

1511
FUNARI, Pedro Paulo. Roma, In: Grécia e Roma. -4º ed-. São Paulo: Contexto, 2006. (Repensando a
História).

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mitológicos a história da África possui também essas características que devem ser exploradas
através de atividades como essa.
No entanto, no capítulo em discussão, não cita as relações comerciais com a
Núbia, nem da importância do Egito para a expansão do islamismo, servindo inclusive como
“porta de entrada”, e como o Egito se relacionava com os demais povos da África através de
intercâmbios comerciais e culturais1512.
Dando seqüência as considerações que podem ser feitas a partir da analise do livro
didático de história Projeto Araribá, podemos constatar a ausência de conteúdo, retratando
sobre a civilização Núbia na África.
Detectando essa ausência no conteúdo, é importante que se frise a importância da
Núbia dentro desse contexto histórico estudado (civilizações antigas), já que esta vai ter por
muito tempo características extremamente semelhantes aos egípcios, só passando a se
distinguir dos mesmos, a partir do momento em que o Egito se unificará politicamente e
inventará sua escrita (3200 a.C). Neste momento os egípcios passaram a ter o poder
centralizado nas mãos do faraó e a possibilidade de registrar informações úteis a seu governo
através da escrita. Já a Núbia continuaria com seu poder descentralizado e dividido entre
chefes de aldeias e o conhecimento continuaria a ser transmitido pela linguagem oral1513.
Outro ponto que deveria ser enfatizado no livro são as relações intensas
politicamente e principalmente comercialmente entre o Egito e a Núbia, já que essa que por
muito tempo uma grande fornecedora de ouro para os egípcios. Pois o solo núbio era muito
rico em metais e pedras preciosas, por isso o comercio desses produtos eram bem
movimentados, comercio esse que era feito através das rotas entre o Nilo e o Mar Vermelho.
Havia um comércio de exportação e importação de produtos. Alguns dos produtos
comercializados eram o papiro, linho, couro de boi, lentilhas, peixe seco para a Ásia e a
importação de ouro, marfim, granito e plumas da Núbia entre outras regiões que mantinham
relações comerciais com o povo egípcio.
Em suma, o livro menciona e trabalha o fato do Egito ser um reino africano, mas
não trabalha as relações do mesmo com o continente, com a Núbia, Mali dentre outros. Pois

1512
As relações entre o Egito e o Mali são notórias na historiografia africana, nas viagens a Meca são relatadas
passagens pelo Cairo onde o contato comercial era freqüente e necessários ao nível de vida das duas civilizações.
SILVA, Alberto da Costa e.Mali. In: A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. - Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, 2. ed.
1513
SILVA, Alberto da Costa e.Os Reinos Cristãos da Núbia. In: A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, 2. ed.
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se faz mister salientar que o Egito era um reino africano que estava inserido em várias
relações(econômicas, religiosas, comerciais) com os demais reinos do continente.
No capítulo referente ao Império Romano, destacamos um exercício que trata da
expansão do Império até a costa africana. Sendo que o livro reconhece a extensão do Império
até essa região então porque não tratar da influência que esse contato propiciou ou até mesmo
utilizar uma personagem que serviu como ponte para os dois continentes a afamada rainha
Cleópatra.
O Egito é mostrado com um reino mais ligado que a Mesopotâmia que a África.
Isso possibilita uma identificação da cultura ocidental como herdeira do seu legado, já que o
mesmo não faz parte de um continente classificado pelos europeus de atrasado e bárbaro1514.
Obviamente sabemos que o Egito possuía diversas relações com os povos da Mesopotâmia,
mas o que queremos enfatizar que também possuíam com os reinos africanos.

(Araribá,2006:p.90)

Para analisar os conteúdos referentes a história dos povos africanos precisamos


também observar as imagens1515. Retornando ao capítulo referente ao Egito encontramos
riquíssimas imagens ilustrando elementos da cultura e dos hábitos da época. Achamos
imperativo destacar que as imagens que tratam do ‘processo de embalsamamento’ mostram
homens com a pele escura trabalhando o que demonstra uma correção da idéia racista e
ambiciosa de tornar homens africanos em seres brancos. Ciro Flamarion Cardoso aponta para
o fato de que os egípcios eram frutos de uma miscigenação entre asiáticos e africanos de
forma que as afirmações que os apontam como brancos não podem ser verdadeiras1516.

1514
Desde a antiguidade o continente europeu faz construções depreciativas do continente e dos seus habitantes,
onde o mal e tudo que dele derivasse estavam se relacionando com a cor negra, inclusive como sinônimo de
pecado. DEL PRIORE, Mary; Venâncio, Renato Pinto. Africanos vistos da Europa. In: Ancestrais: uma
introdução da África Atlântica. Rio de janeiro: Elsevier; 2004.3ºReimpressão. pp53-69.
1515
OLIM, Bárbara Barros de. Menezes, Hermeson Alves de. A imagem do negro no livro didático de História:
um estudo das representações gráficas. VIII Semana de História da UFS. São Cristóvão, jan 2007. Disponível
em http://www.ensinodehistoria.com.br/producao.htm.
1516
CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. 5ºed. Brasiliense. São Paulo, 1986.
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A coleção possui algumas inovações no que se refere a temática analisada, como a


utilização de mapas que enfatizam o Egito no interior da África, a utilização de lendas.
Todavia, o modo como analisa o Egito é restrito, e é pequeno o espaço reservado para a
África, no volume de 232 páginas se tem apenas um capítulo dentro de uma unidade e alguns
pontos são colocados de maneira muito dispersa em outros capítulos. Ou seja,
aproximadamente 8% do livro, enquanto o espaço reservado para civilizações ocidentais
como, por exemplo, Roma, chega a quase 22% do livro.
A coleção traz avanços e inovações e possivelmente é por isso que é uma das mais
elogiadas pelo PNLD, pontos importantes como à lenda africana tornam a coleção mais
próxima do que determina a lei 10.639/03. Exemplares como esses tornam possíveis novas
possibilidades para melhoramentos e uma visão mais ampla na sala de aula acerca da temática
africana, mas para que venham à tona produções didáticas mais bem elaboradas se faz
necessário um conhecimento mais aprofundado da história do continente africano pelos
organizadores das coleções e dos professores.
Devemos ressaltar que o nosso trabalho com o livro aqui discutido, assim como
com o restante da coleção ainda está em andamento devendo no decorrer da pesquisa ser
acrescentadas e talvez alteradas muitas informações de modo a atingir os objetivos propostos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 /


Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.

KI-ZERBO, J.História geral da África, Metodologia e pré - história da


África.Ática/Unesco.

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VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e vodunse. Trad. Carlos Eugênio
Marcondes de Moura. 2ed.- São Paulo: EUSP,2000.

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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, 2. ed.

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CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. 5ºed. Brasiliense. São Paulo, 1986.

OLIM, Bárbara Barros de. Menezes, Hermeson Alves de. A imagem do negro no livro
didático de História: um estudo das representações gráficas.VIII Semana de História da
UFS,jan 2007.Disponível em http://www.ensinodehistoria.com.br/producao.htm.

DOMINGUES, Petrônio, Movimento negro e educação: alguns subsídios históricos. In:


Estudos Africanos, História e Cultura Afro-Brasileira: Olhares sobre a Lei 10.639/03.
São Cristóvão: editora UFS, 2007.

MELANI, Maria Raquel Apolinário. Projeto Araribá. 1ºed. São Paulo: Moderna, 2006.

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JONGO: SIMBOLO DE RESISTÊNCIA E VALORIZAÇÃO DA


CULTURA NEGRA

Elizabeth Ramos da Silva – PIBIC/CNPq/UNIRIO)


elizabeth.unirio@gmail.com
Ricardo Fernandez – Universidade de Aveiro, Portugal
ricfernandesrj@yahoo.com.br
Maria Amélia Gomes de Souza Reis – orientadora - UNIRIO

O trabalho é resultado de uma pesquisa de iniciação científica chamada “Danças Africanas:


um estudo sobre sua importância para a educação popular”. Tal projeto visa investigar as
performances culturais afrobrasileiras em seus contextos histórico, analisando os discursos e
os fatos que mantiveram ou transformaram a história da cultura negra no Brasil. Almeja-se
através da escavação das narrativas e de fatos históricos perceber as relações de saber e poder
que construíram uma visão negativa do negro e de seus saberes, percebendo de que forma tais
relações influenciam as práticas educativas. Para isso, traremos os resultados obtidos durante
as investigações sobre a presença do jongo no Rio de Janeiro, levantados numa pesquisa de
cunho etnográfica no Quilombo de Santana e nas escolas públicas e populares do Rio de
Janeiro. Tendo por base, ainda, uma metodologia qualitativa e bibliográfica fundamentada no
estudo arque-genealógico do filósofo Michel Foucault. Sendo assim, os objetivos, desse
artigo, são: valorizar os modos peculiares e singulares que os descendentes de escravos
possuem em relação à(s) dança(s) que trouxeram como reminiscência da África e refletir
sobre uma nova prática educativa que valorize as formas diferenciadas de ver e entender o
mundo.

Palavras-chave: Quilombo de Santana, Danças Africanas, Educação.

INTRODUÇÃO

O tema a qual o presente artigo propõe discutir, segundo Candau, durante


muitos anos foi silenciado pelos intelectuais e pela educação pelo fato dessas instituições
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estarem sentadas em discursos eurocêntricos. Com jongo, que aqui vem sendo nosso objeto de
estudo, pretende-se analisar, através da história de suas transformações e as relações de poder
presentes nos jogos sociais dessa expressão cultural. Tais manifestações de saber/poder está
intimamente relacionada em cada momento histórico, pois o modo como a corporeidade
afrobrasileira era manifestada, tinha relações diretas com os mecanismos de segregação
etnico-racil preponderante.
O objetivo desse estudo é desmistificar discursos e visões preconceituosas que
colocam em cima da cultura do negro. Sobretudo, as danças de terreiro que tiveram origem na
tentativa de ascensão espiritual e fulga dos castigos forçados realizados pelos “donos” de seus
corpos na tera. Vale dizer ainda, que desvelar discursos é uma atividade continuada, onde os
sujeitos envolvidos na investigação-ação são levados a pensar sua corporeidade e as
emergências de suas práticas sociais.
Dessa forma, utilizaremos de pesquisas realizadas em um núcleo de estudos sobre
educação diferenciada e sexualidade na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio). Tal núcleo de estudos, é responsavel pelas ações de um programa de extensão
intitulado “Menino, Menina, Kunumy, Êre: o ensino de Ciências Naturais em diferente
grupos étnicos”. Coordenado pela Professora Dra Maria Amélia de Souza Reis, o trabalho
incorpora a pesquisa, o ensino e a extensão, visando construir um educação popular de
qualidade, que respeite e reconheça as multiplicidades étnicas brasileiras.
Nesse caminho, investigamos os saberes produzidos pelas as comunidades
tradicionais e as práticas educativas existentes nas escolas do Rio de Janeiro. Para tal,
utilizamos os instrumentos da pesquisa etnográfica e análise de dados próprios dos
instrumentos da pesquisa qualitativa com base em análise de conteúdo. Nosso campo de
investigações é o Quilombo de Santana em Quatis; as comunidades indígenas da etnia
Guarani-Mybia de Angra dos Reis e algumas escolas públicas do Rio de Janeiro parceiras das
escolas de Formação que nos serve de campo de extensão.
Assim, se construiu um projeto de iniciação científica inserido dentro deste
exposto à acima, chamado “Danças Africanas: um estudo sobre sua imposrtancia para a
educação popular”. Tal pesquisa visa investigar as expressões culturais afrobrasileiras,
analisando suas transformações e as manutenções das mesmas durante a história tendo em
vista as relações de poder que as fizeram (ou não) se modificar. Assim, através do estudo
sobre as performances culturais negras, tenho como objetivo desvelar quais desses discursos
mantêm o preconceito racial e como a escola lida com esses saberes. Através desta pesquisa
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pretende-se avaliar o papel dessas expressões culturais no cotidiano escolar, de que forma ela
contribui para a formação do sujeito nas escolas públicas e populares do Rio de Janeiro.

Metodologia

Por entender que a vertente da pesquisa quantitativa reduz indivíduos tão


complexos a meros números estatísticos, acreditamos que a mesma não revela a real natureza
dos fenômenos sociais. Por isso, durante as investigações nos utilizamos de uma pesquisa
qualitativa, na medida em que temos como objetivo, nos aproximarmos mais dos indivíduos
investigados para compreender a visão de mundo e comunitária que possuem, visto que
levamos em consideração a natureza subjetiva do ser humano, onde o indivíduo é considerado
parte de um todo no seu contexto social, natural e cotidiano.
Ana Albuquerque Queiroz, através de leituras das obras de Bogdan e Taylor
(1986), diz que a metodologia qualitativa surgiu nos meados dos anos 50 só obtendo força nos
anos 60 e 70, sendo utilizada por diversas áreas de conhecimento. Segundo ela tal
metodologia exige que o pesquisador seja “envolvido na vida dos sujeitos (ou participantes)
visto que seus procedimentos de investigação se baseiam em conversar, ouvir e permitir a
expressão livre dos interlocutores” sendo esta a escolha metodológica para a colheta de dados
nas comunidades já citadas.
Com base nos estudos do filósofo M. Foucault, adotamos em nossa metodologia
uma investigação arque-genealógica, buscando observar e compreender os discursos presente
na sociedade através dos fatos históricos e das relações de saber-poder existentes. Assim,
analisamos a cultura afro-brasileira através de uma pesquisa sobre suas transformações
durante a história e os discursos que fizeram as mesmas serem modificadas.
O projeto tem uma pesquisa de cunho etnográfico, onde utilizamos as saídas ao
campo no Quilombo de Santana e nas escolas públicas do Rio de Janeiro (incluído as de
formação de professores). Sendo assim, nos utilizamos de algumas técnicas e métodos para
alcançar nossas finalidades, dentre elas destacam-se o diálogo, as gravações e análise de
vídeos e fotos.
Inicialmente realizamos visitas de cunho exploratório no quilombo, em dias
comuns, nos dias de aula e em festas especificas desse grupo para perceber o modo como eles
concebem a dança e que tipo de dança eles vivenciam. Em seguida, o foco dessa observação
se volta para as escolas populares que são atingidas pelo projeto, visando estudar a relação
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que esses alunos possuem com as danças africanas e o modo como essas danças são
percebidas dentro do cotidiano escolar.
Além disso, nosso projeto traz em sua natureza, a inter(trans)disciplinaridade e a
estratégia da educação pelos pares (peer education) por acreditar num processo de ensino-
aprendizagem para além da informação, pois valoriza a partilha dentro da comunidade e entre
grupos que se educam reciprocamente pela semelhança e pertencimento.

Jongo: Uma História e Luta e de Resistencia

A opressão de ontem forma uma cadeia no espaço, uma seqüência


ininterrupta no tempo, e das feridas em nosso corpo, das cicatrizes em
nosso espírito, nos vêm as vozes da esperança. Embalados na
esperança, os negros brasileiros não perderam a alegria e este gosto
de cantar e de dançar a vida, e assim se preparam para os momentos
da luta mais difícil que virá. Nascimento

Segundo Mary Karasch, os historiadores - que pesquisavam durante a época da


colonização – ignoraram os escravos. Tal medida era tomada pelo não interesse dos mesmos
em conhecer a cultura dos negros, achavam que este ultimo era um tema insignificante, não
merecendo estudos. Este fato fez com que tivessem poucos registros sobre a vida do negro no
Rio de Janeiro e no Brasil. Assim acontecia também com os noticiários, que registravam
apenas, e raras vezes, debates sobre a abolição, anuncio de compra e venda de escravo ou um
crime envolvendo um detento. Esta situação para Karasch o fez acreditar que os jornais da
época eram, em geral, a favor do sistema escravocrata, pois “não a questionavam [a
escravidão] e nem buscavam reformulá-la detalhando casos de tratamento de escravos”.
Além disso, em 1890, Rui Barbosa mandou queimar todas as documentações
relacionada a escravidão no Rio de Janeiro no Ministério dos Tesouros que, segundo Karasch,
teria sido feito para evitar que os antigos senhores de escravos buscassem ter novamente a
posse dos ex-escravos através de tramites legais. Isso fez com que se perdesse um grande
acervo de registros sobre a vida dos escravos no Rio de Janeiro.
O que sabemos é que durante o século XV e XVI, a Europa estava passando por
uma época de grandes avanços tecnológicos e para aumentar seu mercado iniciou uma
expansão marítima pela África e pela América. Durante esse tempo, os portugueses chegaram
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ao Brasil, onde instalaram uma economia baseada no plantation - um sistema agrícola que
tem por base a monocultura e o trabalho escravo. Assim os navios negreiros passaram a trazer
negros de varias partes da África para trabalharem no Brasil. No Rio de Janeiro,
especificamente, vieram negros principalmente do centro-oeste africano e da África oriental,
que compreende países do Congo, Benguela, Angola, Cabinda, Munjolla, Cabo-Verde,
Calabar e Mina.
Os negros, ao chegarem ao Brasil, foram submetidos ao trabalho escravo onde sua
cultura e seus saberes foram sendo aniquilados por uma elite européia, que viam em sua
cultura o ideal de civilização. Desta maneira, os colonizadores passaram a impor sua cultura
aos escravos, onde os últimos seriam vistos como pessoas sem alma e sem cultura e por isso
não civilizados, sendo assim, passíveis de subordinações e castigos.
Quanto a isso, Nascimento que diz que a elite não poupou esforços em apagar a
memória cultural do negro, proibindo que este último praticasse qualquer forma de expressão.
Além disso, os fizeram acreditar que sua cultura era inferior comparada a da européia,
fazendo com que houvesse uma perda de identidade e de memória cultural, pois na medida
em que se achavam inferiores, os negros passaram a não mais transmitir através da oralidade
seus saberes, seus valores e suas visões de mundo. Segundo o autor, os afrobrasileiros estão
em uma situação pior que os africanos pois

O negro brasileiro, ao contrário, tem de enfrentar uma teia emaranhada de


sutilezas domesticadoras que principia na já citada obliteração de sua
memória; depois vem a violação miscigenadora, o estupro aculturativo, a
imposição sincrético-religiosa, enfim, todo um elenco de máscara para
ocultar o desprezo das nossas elites que só tratam dia e noita de neutralizar
nossa integridade de ser total. (Nascimento; 2002 pg. 97).

O jongo resistiu a todas as formas de aculturação, sendo, segundo Ligiéro,“uma


manifestação cultural afrobrasileira de origem banto que mistura dança de roda, música, canto
e alguns preceitos religiosos”(2005). Esta era praticada nas senzalas, entre os africanos vindos
de diferentes paises da África, principalmente durante nos dias de festas, em dia de santos ou
para expressar todo sentimento e revolta trazida pela escravidão. Por isso, segundo Ligiéro, tal
dança é considerada por muitos pesquisadores como expressão legitima da cultura e da
diáspora africana.
O jongo era acompanhado por música e acontecia no terreiro à noite. Os
instrumentos utilizados eram os tambores de jongo, que eram geralmente instrumentos de

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percussão, compreendidos pelo Caxambu - que segundo Ligiéro é o instrumento mais


importante do Jongo -, o atabaque de timbre grave - utilizado para marcar o ritmo – e o
candogueiro. Todos esses instrumentos são sagrados por fazerem a ponte de ligação entre os
deuses e os jongueiros.

Estes instrumentos reproduzem ritmos rápidos e vigorosos; são


artesanais, confeccionados da mesma forma que o ensinado por seus
ancestrais, passando a tradição de geração a geração, como herança
familiar. Geralmente, o rufar/batucar dos atabaques incentivam os
jongueiros a buscar seus corpos espirituais, integrando terra e céu
(Ligiéro, 2005, pg. 42)

O canto, como diz Ligiéro, tem um papel importante, pois é através dela que são
passados as manifestações, os agradecimentos, as louvações aos deuses e as memórias do
passado. Assim como foi observado na performance do “Jongo da Serrinha”, Ligiéro também
coloca em sua obra que, geralmente, o jongo tem um solista, onde este é seguido pelo coro
que dança.
Durante a colonização as letras das músicas eram feitas por improviso, misturando
a língua portuguesa com os dialetos africanos, construído segundo Ligiéro, um vocabulário
próprio. Assim o jongo se tornou um instrumento de luta dos negros, pois era através das
letras que os escravos se comunicavam sem que os senhores pudessem entender o que os
mesmos diziam.
A dança é realizada em conjunto, onde os participantes – podendo ser homens e
mulheres - se concentram na roda, porém apenas um casal por vez se posiciona ao centro para
dançar e vão revezando com outros, só param quando o solista grita “machado”, podendo
terminar a dança ou começar outra música. A movimentação, segundo Ligiéro, ocorre no
sentido anti-horário, pois desta forma os jongueiros ficam mais próximos dos seus
antepassados. A ancestralidade é um ponto muito importante da cultura negra, pois os mais
velhos é que guardam todos os saberes da comunidade, sendo estes passados através da
oralidade. Sendo assim, o jongo carregou, durante muito tempo, a religiosidade e a
espiritualidade da cultura africana em sua dança.
Dessa maneira, os primeiros a irem ao centro da roda são sempre os mais velhos.
A movimentação feita entre o casal não tem um contato físico com o outro, apenas pelo toque
entre o umbigo de um com o do outro, a chamada “Umbigada”. Os que ficam na roda,
normalmente batem palmas e movimenta pernas e braços no ritmo da música.
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Com a abolição a situação do negro no país não mudou muita coisa, pois segundo
Nascimento esta liberdade dada ao negro veio com o interesse de uma elite brasileira em se
industrializar e implantar uma economia de mercado, onde os ex-escravos significariam mais
consumidores. Nesse sentido, para ele, havia lucro na derrocada do sistema escravista, o que
fez o Brasil organizar movimentos abolicionistas e imigracionista. Com isso, os fazendeiros
libertaram os negros, mas sem qualquer responsabilidade de fornecer condições necessárias
para que o mesmo pudessem ter uma vida digna, caindo em total miséria e fome, passando a
morar no interior da cidade e nos cortiços (se deslocando depois para os morros).
Sendo assim, o jongo foi levado aos morros do Rio de Janeiro, onde os negros
passaram a habitar. Porém, segundo Ligiéro, na década de 60 o jongo ficou ameaçado, pois
muitos dos antigos jongueiros foram morrendo e foi diminuindo as rodas de jongo. Além
disso, os negros não deixaram de sofrer discriminações, as escolas e a mídia continuaram a
passar uma visão eurocentrica de mundo, fazendo com que muitos negros desvalorizassem
sua própria cultura e até perdendo sua auto-identificação como negro. Isso fez com que não só
o jongo fosse ameaçado mais seus saberes, valores e crenças também.
Nesse sentido, Darcy Ribeiro nos aponta dois tipos de preconceito a do
Apartheide que apesar de separar o negro do branco, não impede que os negros conservem
sua cultura e sua identidade. No outro tipo de preconceito a qual se chamou de
assimilacionista, Darcy diz que esta “dilui a negritude numa vasta escala de degradações, que
quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é
uma ordem natural, se não sagrada” (1996), ela “dá uma imagem de maior sociabilidade,
quando, de fato, desarma para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as
condições de terrível violência a que é submetido”(1996).
Segundo Ligiero, isso fez com que Mestre Darcy do Jongo cria-se o grupo
artístico Jongo Bassan, a fim de divulgar e preservar o jongo através dos espetáculos. Além de
permitir que as crianças participassem da dança, pois esta dança era reservada apenas para os
adultos, criando junto com Vovó Maria Joana, o grupo artístico Jongo da Serrinha.

Como todas as heranças de dança Afro, a distancia entre o profano e o


sagrado, acabava sendo muito curta e a religiosidade aparecia embebida na
vida cotidiana.No caso especifico do jongo, alguns preceitos continuam a
manter a ligação da manifestação com aspectos da religiosidade como são
os casos de se benzer os tambores antes das festas, as rezas louvando os
ancestrais e suas musicas que são como a do candomblé e da
umbanda.(Ligiéro,2005, pg. 47)

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CONCLUSÃO

Desde a colonização, os negros sofrem grande discriminação. Seus saberes, seus


valores, suas danças e sua identidade negra foram sendo licenciadas por uma elite que
domina, explora e exclui o negro da sociedade. O poder colocado em cima dos negros se
impõe da maneira mais cruel, pois faz os negros perderam sua identidade cultural, seu
orgulho, sua história e até mesmo sua memória cultural, através de afirmações - com base em
preceitos religiosos e científicos – que julgavam o negro como inferior, se tornando uma
verdade na época.

A nossa formação histórica está marcada pela eliminação física do outro ou


por sua sua escravização, formas violentas de negação de sua alteridade. Os
processos de negação do outro também se dão no plano das representações e
no imaginário social. Nesse sentido, o debate multicultural na América
Latina nos coloca diante desses sujeitos históricos que foram massacrados,
que souberam resistir e continuam hoje afirmando fortemente suas
identidades na nossa sociedade, mas numa situação de poder assimétricas, de
subordinação e acentuada exclusão (Candau, 2005)

Existe uma contradição na história do negro no Brasil e no Rio Janeiro, pois ao


mesmo tempo que houve uma intensa aculturação, os povos de origem africana ou mesmo
descendentes resistiram e ainda continuam a resistir nesse sistema que o suprimi. Pode-se ver
no corpo, nos olhos, no cabelo, na forma de se movimentar, de falar, de sorrir, de brincar, de
festejar, de se expressar entre muitos outros, as características dos povos africanos, mesmo
que os mesmos não reconheçam como tal.
As práticas educativas foram se desenvolvendo de forma a corroborar para a
manutenção do sistema neoliberal que, inconscientemente ou não, valoriza a discriminação
racial e as culturas americana/européia. Assim, educandos oriundos das comunidades
quilombolas vem observando sua cultura e sua identidade serem negadas pela escola e muitas

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das vezes interiorizadas, colaborando para a formação de sujeitos com uma identidade
negativa sobre si mesmo.
Porém, a educação independente do nível em que ela se desenvolva, não deveria
reproduzir esse discurso, mas sim ser o veículo para a valorização e preservação dos saberes e
da cultura de seus educandos. Sendo fundamental a apropriação dos modos peculiares de ver e
compreender o mundo para a construção de um currículo que contemple a diversidade cultural
brasileira.

A educação, como instituição está construída tendo por base a afirmação de


conhecimentos e valores considerados universais, uma universalidade muitas
das vezes formal que, se aprofundarmos um pouco, termina por estar
assentada na cultura ocidental e européia, considerada como portadora da
universalidade (Candau, 2005)

A construção de uma educação multipluricultural se faz necessário na medida em


que nós temos um país rico em cultura, pois aqui se teve influencias de varias etnias que
colaboraram para a pluralidade cultural. Nesse contexto, podemos pensar uma educação que
contemple toda essa diversidade e que assim se desconstrua toda forma de discriminação e
que colabore por ensino com qualidade social. Porém, essa finalidade possui vários obstáculos
pela dificuldade da escola em lidar com esse tema e para entender o porque precisamos
entender a formação historico ,político, econômico e cultural do Brasil. Dessa forma, a
pesquisa aqui em questão obteve estudos sobre a formação do Brasil e os discursos presentes
desde a época da colonização. Porém pego uma questão importante ,feita por Maria Nazareth,
que nos ajudam a pensar a sobre os caminhos e as barreiras que precisamos enfrentar para
construir uma educação que valorize e reconheças as multiplicidades étnicas brasileira :

Como dialogar com uma população negra que, muitas vezes, nega a sua cor
e que no branqueamento uma espécie de solução? De que maneira lidar com
os resultados de uma pesquisa que revela que enquanto 98% da população
negam ter preconceito, 99% afirmam conhecer pessoas que tem preconceito
e, mais que isso, demonstram possuir uma relação próxima com ela?

O jongo foi e continua sendo o símbolo de resistência e afirmação da cultura


negra. Apesar de constantes ameaças, os negros conseguiram criar estratégias para que
divulgá-la e preservá-la. Assim como jongos, outras expressões culturais negras ainda
persistem, sendo de fundamentação impostação destas no contexto escolas como forma de

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valorização, afirmação e desmistificação de discursos preconceituosos. Tornando a escola um


espaço multi(pluri)cultural, reconhecendo e valorizando as diferenças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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EAGLETON, T. A idéia de Cultura. São Paulo: editora UNESP, 2005

LIGIÉRO, Zeca. Dança da terra. Rio de Janeiro: editora papel virtual,2005

CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio


de Janeiro. Rio de janeiro: Bertrand Brasil,2005;

FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, paz e terra, 1987;

____ Professora sim tia não. São Paulo: editora Olho d'Água, 2006;

____. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996;

CANDAU, Vera. Cultura e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro:


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NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Rio de Janeiro: OR Editor Produtor Editor, 2002

ZALUAR, Alba e ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora


FGV,1998

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FONSECA, Maria Nazareth Soares. Brasil Afro-Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica,


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KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). São Paulo:
Companhia das Letras, 200

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AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DAS COMUNIDADES CAENDA E


MALHADA DOS NEGROS

Igor Iury Jurubeba Santos - UNIT


Lucília Cardoso dos Santos - UNIT
José Joaquim Santos Nascimento - UNIT
Leyla Menezes Santana - UNIT
Joceneide Cunha dos Santos – orientadora - UNIT/SEED/ANPUH-SE
joceneidecunha@gmail.com

Atualmente, há alguns trabalhos que descrevem e analisam a vivência dos negros nas
comunidades rurais. Um dos temas abordados nesses trabalhos são os aspectos econômicos
das citadas comunidades. Com isso, esse estudo analisa as atividades econômicas dos
povoados Caenda e Malhada dos Negros, ambos localizados nas fronteiras dos municípios de
Ribeirópolis, São Miguel do Aleixo e Nossa Senhora da Aparecida. Pretendemos analisar as
características econômicas das localidades mencionadas em meados do século XX e as
mudanças ocorridas no final do mesmo século por conta da instalação da associação dos
moradores e da casa de farinha de mandioca comunitária. As informações coletadas e
analisadas até o momento permitem apontar que a base econômica de ambas as comunidades
era e permanece a agricultura, no entanto houve mudanças nos produtos cultivados, como
também na forma de produzir principalmente a farinha de mandioca. Boa parte da produção
era e continua voltada para a subsistência e para serem comercializados nas feiras próximas.

Palavras-chave: comunidade rural, atividades econômicas, memórias

As atividades econômicas dos povoados Caenda e Malhada dos Negros é o objeto


de estudo deste artigo. O povoado de Caenda está localizado nos municípios de São Miguel
do Aleixo, Ribeirópolis e Aparecida, no estado de Sergipe. E Malhada dos Negros está
localizada na primeira cidade citada. As cidades de Ribeirópolis e Nossa Senhora Aparecida

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estão localizadas no sertão sergipano, e São Miguel do Aleixo no agreste, de Sergipe. Estes
dois povoados em questão constituem-se de negros na sua maior parte populacional.
Mas, porque aprofundar esse assunto? O texto tem como intenção fundamental
pontuar alguns elementos referentes as atividades econômicas das duas comunidades, e as
mudanças ocorridas no decorrer do século XX.
Para isso usaremos os dados dos 47 questionários socioeconômicos aplicados nas
visitas técnicas às comunidades, as fontes orais, ou seja, as entrevistas que foram realizadas
com alguns membros da população e também os registros fotográficos durante às visitas.
Logo, a base da nossa pesquisa é fundamentada na memória de seus moradores. E esta é uma
das fontes históricas com grande utilização nos dias atuais devido a sua importância. É sobre
esta importância que Maurice Halbwachs (1968 apud POLLAK, 1989, p. 3 e 4) afirma:

Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum. 1517

Portanto, foi no cruzamento entre as várias memórias destes habitantes que foi
tecido este artigo
Na atualidade a agricultura é uma atividade econômica de fundamental
importância nas comunidades de Caenda e Malhada dos Negros, nas diversas entrevistas
realizadas os moradores relacionavam a agricultura à sobrevivência. Assim, para garantir uma
melhor qualidade de vida é necessário plantar. Há uma rotatividade de culturas, a plantação
gira em torno da mandioca, do milho, do feijão, da fava e do feijão verde. E, ainda baseado
nas entrevistas percebemos que essa prática da agricultura remonta a períodos bem anteriores.
Dentre os produtos que eles cultivam e cultivavam possui destaque a mandioca. Pois há nas
comunidades uma grande plantação de farinha, no verão, entre os meses de setembro e
dezembro, a produção de farinha é constante, visto que a plantação encontra-se pronta para a
colheita.

1517
POLLAK, Michael. Memória,Esquecimento,Silencio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, p. 3-15.
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No entanto, a produção de farinha nos povoados é bastante remota. O depoimento


de Dona Eurides1518, que nasceu na comunidade na década de 30, nos noticia alguns
elementos de como ocorria essa produção nos tempos da sua infância:

Nós tinha nossa família, nós tinha uma casinha de farinha aí de taipa. Nós
emprestava a casa de farinha pra quem não tinha. Aí depois o outro vinha e
mais outro [...]. Nós ainda tem casa, tem forno, mas não tem que faça
farinha, aí ta abondonada [...]. no meu tempo era daquele de rodete. Rodei
muito mais meu pai e meus irmão. Difícil foi no nosso tempo, minha gente.
Botava a mandioca na ponta, o outros rodando cá. Um peso que a gente
sentia, né? Depois colocava a massa na prensa, pra agora enxugar e depois
de enxuta, peneirar na peneira e agora colocar no forno pra mexer. Hoje é, as
coisas tão bem mais fácil [...].

No início da citação percebemos uma grande marca da comunidade a


solidariedade. Esse elemento é confirmado em outras entrevistas, os que tinham casa de
farinha emprestavam para os que não tinham e, além disso, dividia também a mão-de-obra e o
produto como gesto de generosidade com os que não tinham a farinha para o consumo.
Outra característica da farinhada de outrora era a alegria, a comunidade
participava, partilhava os serviços, era como uma festa, os vizinhos se reuniam para raspar a
mandioca. Quando a mandioca chegava, raspavam e depois ela era levada para o rodete, uma
espécie de máquina movida à mão, tinha várias lâminas que trituravam a mandioca, em
seguida era levada para uma prensa, que movida à mão fazia com que escoresse todo o
líquido. Depois era levada para a peneira e finalmente ao forno para se concluir o processo de
fabricação da farinha. A farinha era armazenada numa barrica de madeira, uma espécie de
túnel, onde ficava guardada para o consumo
Nesse contexto eram construídos laços de solidariedade. A farinhada era um
momento de sociabilidade das comunidades. Ressalto que a atividade de fazer farinha era
coletiva, e que as mesmas eram produzidas em propriedades privadas.
Atualmente, na comunidade de Caenda há uma casa de farinha comunitária e
outra particular pertencente a família de Senhorinha. A casa de Farinha comunitária Caenda
foi reformada em maio de 1998, através do Projeto São José ligado ao Governo do Estado. Já
na comunidade de Malhada dos Negros as duas casas de farinha existentes são comunitárias.
Nas casas de farinha atuais percebe-se grandes diferenças nos aparelhos
utilizados. De acordo com alguns depoimentos, as técnicas para a produção da farinha estão

1518
Entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando Vasconcelos, no dia 19/05/2007.
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bem avançadas se comparadas com as técnicas manuais que estão na memória coletiva das
pessoas e que eram utilizadas por muitas famílias antes do aparecimento do maquinário
elétrico. Com isso, as farinhadas não duram dias e dias como anteriormente. Ressaltamos que
mesmo com os avanços tecnó0logicos a atividade de fazer farinha ainda é coletiva.
Sobre o uso da casa de farinha comunitária há um revezamento entre as famílias
na utilização da mesma. E nas casas de farinha privadas, além dos proprietários utilizarem
tem famílias que “alugam” o local e pagam com parte da produção.
O relato feito pela moradora da comunidade de Caenda, Dona Amélia, que nasceu
no povoado, serve para entendermos como é realizada a farinhada na casa de farinha da
comunidade:

Enquanto tiver mandioca faz farinha. Cada quem tem seu dia. Uma
comparação: hoje é eu, amanhã já é outro, e depois já é outro. eu pago o
mexedor, uma pessoa para pelejar com o forno elétrico, os meus meninos
não gostam de pelejar. Um ajuda o outro a raspar, uns aos outros. E depois
traz a farinha para casa. Uma pessoa que não tem mandioca pra fazer
farinha, a gente dar farinha pra essa pessoa. Uma comparação: eu tenho uma
vizinha que não tem farinha, aí ela me ajuda a fazer farinha e eu dou farinha
para ela.1519

Percebe-se através do depoimento, ratifica-se a idéia que a produção da farinha


de mandioca é uma atividade coletiva. Ainda, segundo Dona Amélia, dependendo da
quantidade de farinha produzida, essa pode ter destino variado. Desde o consumo até a venda
nas feiras que acontecem na região. Algumas pessoas chegam a vender farinha na própria
casa, quando algum comprador da comunidade ou de outro lugar aparece.

[...] a farinha vende na feira de Ribeirópolis e vende nas portas, se tiver


comprador.1520

As feiras freqüentadas pelos moradores dos povoados são as de Ribeirópolis, São


Miguel do Aleixo e Nossa Senhora da Glória, que acontecem nos dias de segunda, sábado e
domingo respectivamente. O transporte utilizado para ir a feira é o caminhão. Jovens,
crianças, adultos e pessoas idosas usam desse tipo de transporte para chegar até a feira. É na
feira que os moradores das comunidades compram os outros materiais de consumo que não
1519
Entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao Fernando Vasconcelos do Curso de História da
Universidade Tiradentes 19/05/2007.
1520
Dona Amélia, em entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando Vasconcelos, no
dia 19/05/2007.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
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1211
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são produzidos e nem vendidos na comunidade. Alguns desses artigos são: vestimentas,
calçados e materiais de limpeza para a casa. Como também é na feira que trocam informações
e saberes, vêem os amigos e conhecidos.
Por fim, sobre a feitura de farinha de mandioca, salientamos que é uma atividade
que envolve mulheres e homens, adultos e crianças. No entanto, há parte na produção que é
uma atividade masculina, trabalhar com o forno.

Na transição do século Dezenove para o Vinte, Carvalho Déda, observou uma


farinhada, provavelmente em Simão Dias, sua terra natal. Segundo a descrição de Déda, as
mulheres eram majoritárias no feitio da farinha e os homens ficavam com as funções que
exigiam maior vigor físico, como trabalhar no forno e limpar a mandioca. Ainda segundo o
folclorista, as farinhadas também eram acompanhadas por músicas regionais ao som do
rodete1521.
Conforme as transcrições, tanto a comunidade de Caenda, quanto a de Malhada
dos Negros, provavelmente entre as décadas de 40 e 60, produziram algodão para
comercializar. Neste período plantar algodão era muito vantajoso, já que em Sergipe havia
algumas fábricas de tecido. Nas comunidades havia até a máquina que servia para descaroçar
o algodão que seria comercializado.
Na região, há relatos sobre o cultivo do algodão desde os Oitocentos e que as
mulheres eram quem fiavam1522.
Já a produção de milho, feijão e farinha eram somente para a subsistência. Esse
modelo de economia sustentável diferencia-se da economia atual, que é baseada na
agricultura, com uma produção de farinha, milho e feijão para a subsistência e para a
comercialização.
Outra atividade econômica de grande relevância é a criação de animais. Algumas
famílias das comunidades criam gado, principalmente o bovino para fornecer leite, outros
criam cabras, que também fornece leite e carneiros. Há aqueles que criam aves para
comercializar e para o consumo, nos terreiros das casas são bastante visíveis aves como
galinhas, perus, patos e galinhas de angola. Também encontramos famílias que criam animais
que fornecem carne tanto para o consumo quanto para comercializar.

1521 DÉDA, José Carvalho (1898-1968). Brefáias e burundangas do folclore sergipano. 2. ed., Maceió:
Catavento, 2001, p.123.
1522
NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.
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A fala de Dona Francisca1523, a moradora mais velha da comunidade de Caenda,


sobre a criação de animais é bastante elucidativa, pois ela informa que a família dela possuía
diversas espécies de animais, como pode ser observado no trecho seguinte:

[Criava] Égua, vaca, cachorro, gato, criação de cabra, ovelha, gado, galinha,
porco, criava tudo. Esse mato era tudo nosso.

Na atualidade não há a criação desses animais.


Algumas pessoas na atualidade têm outras funções, como a de funcionário
público, no entanto, ainda possuem as suas roças. Vejamos o depoimento de Dona Zeilde, que
tem 51 anos e que além de ser merendeira na escola municipal, também trabalha na sua
roça1524, onde ela cultiva mandioca, milho e feijão e que fica localizada nas imediações da sua
casa.

Ah, quando eu to de folga assim no caso? Ah, ir para a roça, trabalhar


na roça. Tenho prazer de ir. O dia trabalho fora, quando chego em
casa, tem vez que nem almoço, vou direto para a roça, assim quando
to com a cabeça meio assim por causa dos meninos, aí voi para a roça,
só vou tomar café a noite.1525

Com a intenção de organizar melhor as atividades econômicas e sociais das


comunidades de Caenda e Malhada dos Negros, foi fundada naquela em 1991 pelo senhor
Ariston Borges e outro amigo cujo nome não foi revelado, uma Associação de Agricultores.
Esta foi uma iniciativa informal feita por aquele senhor visando superar dificuldades e gerar
benefícios em comum para seus associados.
A mesma foi criada com a finalidade de trazer melhorias para a comunidade, uma
vez que para participar dos projetos governamentais, empréstimos em bancos e outros
benefícios só através destas associações. A cada dois anos é realizada uma eleição para trocar
a presidência, e este não tem a função somente de administrar a Associação. Por exemplo, se
tiver algum problema na comunidade cabe ao presidente ir até a prefeitura e falar como o
representante daquela1526. Trabalham na Associação aproximadamente quarenta pessoas,

1523
Entrevista concedida às alunas do quinto período do Curso de História da Universidade Tiradentes: Aline
Priscila, Denise Maria, Sheyla Maria e Vanessa Silva, no dia 06/05/2007.
1524
A roça é um terreno de pequena lavoura ( em especial de milho, feijão, mandioca, etc.), também conhecida
como roçado.
1525
Entrevista concedida aos autores do artigo no dia 06/05/2007.
1526
Entrevista concedida aos alunos do quinto período do Curso de História da Universidade Tiradentes: Igor
Iury Jurubeba Santos e Vanessa Silva, no dia 19/05/2007.
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atualmente o presidente é o senhor Ariston Borges e a secretária é a Nazaré. Para a criação da


Associação os fundadores não contaram com nenhum auxílio político, apenas com o empenho
e o apoio da comunidade. Os associados pagam por mês cerca de R$ 1, 50, segundo
depoimento de uma das pessoas entrevistadas, a senhora Amélia.
A associação atende tanto a população de Caendas bem como a população da
Malhada dos Negros. Nesta última consta uma Associação de Assistência Social de São
Miguel do Aleixo, localizada na Rua Elisiário Francisco dos Santos, CEP 49535-000. Tendo
como presidente Maria José Teixeira das Graças e tesoureiro José Rosa Lima Neto, eleitos em
17/01/2005 com término do mandato em 17/10/2007.
De acordo com a senhora Amélia há um projeto na associação que eles
denominam de “Alemão” onde as pessoas recebem R$ 100, 00 e ao final do ano paga o
mesmo valor. Algumas pessoas da Alemanha enviam dinheiro para a comunidade,
concedendo pequenos empréstimos e fazem isso através da associação.
Segundo relato de alguns moradores antes da fundação da Associação de
Moradores, a comunidade sempre teve um líder comunitário responsável pelos interesses da
comunidade. Um dos líderes foi o senhor José Cardoso, já falecido.
A atenção que dispensamos ao estudar as atividades econômicas das
Comunidades de Caenda e Malhada dos Negros está fundamentada no desejo de compreender
a identidade cultural da comunidade e sabemos que isso perpassa pelas atividades econômicas
das mesmas. Ressaltamos que esse artigo teve a pretensão de citar alguns elementos sobre as
atividades econômicas das comunidades de Caenda e Malhada dos Negros. Com isso
percebemos, através dos depoimentos, algumas mudanças e continuidades nas atividades
econômicas das comunidades.

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Entrevistas

Entrevista concedida aos alunos do quinto período do Curso de História da Universidade


Tiradentes: Igor Iury Jurubeba Santos e Vanessa Silva, no dia 19/05/2007

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Entrevista concedida às alunas do quinto período do Curso de História da Universidade


Tiradentes: Aline Priscila, Denise Maria, Sheyla Maria e Vanessa Silva, no dia 06/05/2007.

Entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando Vasconcelos, no dia
19/05/2007.

Dona Amélia, em entrevista concedida a Profª: Msc. Joceneide Cunha e ao aluno Fernando
Vasconcelos, no dia 19/05/2007.
Referências

DÉDA, José Carvalho (1898-1968). Brefáias e burundangas do folclore sergipano. 2. ed.,


Maceió: Catavento, 2001.

NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.

POLLAK, Michael. Memória,Esquecimento,Silencio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,


vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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REGISTROS PARÓQUIAIS: FONTE PRECIOSA PARA O ESTUDO DA


ESCRAVIDÃO1527

Bruno Oliveira Santos


Graduando em História Licenciatura na Universidade Tiradentes
brunnolliver@yahoo.com.br
Raíssa Tainá Carvalho de Santana
Graduando em História Licenciatura na Universidade Tiradentes
raissatc_wk@hotmail.com
Joceneide Cunha
Professora Orientadora - Universidade Tiradentes
joceneidecunha@oi.com.br

A Escola dos Annales revolucionaram a tipologia das fontes, “criando” novas fontes
históricas e dentre elas as fontes paroquiais. Na década de 50, houve vários estudos no campo
da história demográfica e esses utilizavam os registros paróquias No entanto, no Brasil essas
fontes ainda merecem uma maior atenção. Ao iniciarmos nossos estudos sobre as vivências
dos negros em terras sergipanas, constatamos que os registros paroquiais poderiam fornecer
dados preciosos para vários temas referentes à formação da população de Sergipe. Através
dos mesmos podemos retirar dados sobre os pardos, caboclos, negros e brancos. Sendo assim,
o nosso objetivo é analisar a importância dos documentos eclesiásticos como fonte histórica,
enfatizando sua relevância no estudo do escravismo em Sergipe. Através dos dados extraídos
dos registros de batismos, por exemplo, conseguimos identificar a filiação, cor, condição
(escrava, livre ou liberta), se a criança era legítima ou ilegítima, informações sobre seus
padrinhos como condição social, quando escravo a que senhor pertence, e em alguns casos,
informações sobre sua origem. Em suma, os registros eclesiásticos são fontes preciosas para o
estudo da família escrava ou não, dos apadrinhamentos, da sociabilidade escrava e da
demografia escrava dentre outros temas referentes a escravidão e da população sergipana.

Palavras - chave: Fontes Paróquias, Escravidão, Demografia Histórica

1527
Este trabalho já é uma reflexão do projeto Vivências africanas nas terras sergipanas que está sendo
financiando pelo PROBIC/UNIT.
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Este texto tem como escopo analisar a importância das fontes paróquias como
fonte histórica, e sua importância para o estudo da escravidão. Para isso, inicialmente faremos
um histórico da utilização dessas fontes pelos historiadores mundiais, em seguida dos
brasileiros.
Em 1545 o papa Paulo III convocou o concilio de Trento onde ocorreram muitos
debates, interrupções e reuniões, os bispos e o papa chegaram a um acordo sobre vários
pontos. Estes estão nas prescrições de 11 de novembro de 15631528. Dentre eles, estava a
ratificação da abordagem nos registros paroquiais, ficando estabelecido que os registros
eclesiásticos dariam uma ênfase maior às relações familiares. E os párocos brasileiros,
seguiram as instruções tridentistas, pois objetivavam marcar para sempre o parentesco do
indivíduo. Fato esse muito importante, pois, nesse período não existia documentos de
nascimento, casamento e óbito, ou seja, os registros civis. Sendo assim, os registros
paroquiais atestavam o nascer, o casar e o morrer dos indivíduos.
As mudanças provocadas pelo Concílio nos registros contribuíram
significativamente para que Pierre Goubert desenvolvesse na França de forma pioneira um
estudo demográfico baseando sua pesquisa nos registros paroquiais1529. Pois os dados
constantes nesses registros eram suficientes para realizar uma analise histórica demográfica,
identificando a taxa de natalidade, de mortalidade de uma determinada região e algumas
relações domiciliares.
A Escola das Annales formou-se em torno da revista Annales d'histoire
économique et sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch e revolucionou a tipologia
das fontes na década de 50 do século XX, ao publicar em uma de suas edições um estudo
demográfico sistematizado. Daí por diante, surgiram inúmeros trabalhos no campo da história
demográfica apoiando-se nos registros paroquiais1530.
Ainda na década de 50, surge no Institut National d’Études Démographiques, uma
metodologia específica para utilização dos registros de batizado, casamento e óbito. E
ressaltamos, que essas técnicas foram desenvolvidas por Louis Henry e Michel Fleury a qual
chamaram de método de reconstituição de famílias. E no inicio dos anos 60, o Cambridge
Group for the History of Population na Social Structure desenvolveu um método quantitativo

1528
COSTA, Iraci Del Nero da. Registros paroquiais: notas sobre os assentos de batismos, casamentos e óbitos.
Disponível no site: http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-ira/ar50.pdf
1529
Idem
1530
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
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que abrangia varias regiões, com o intuito de comparação de dados. Para Cardoso1531 e
Farias1532, o desenvolvimento dessas técnicas aliados a sistematização da pesquisa
demográfica, foram determinantes para ampliação dos estudos demográficos e sociais. Alem
disso, trouxeram a família para o centro explicativo do comportamento populacional. Dessa
forma, a unidade familiar tornou-se objeto especifico de estudo histórico. Um novo, vasto e
inexplorado campo de pesquisa historiográfica.
No Brasil as pesquisas demográficas baseado nesse método foram inauguradas
por Maria Luiza Marcilio no final da década de 60 ao publicar um estudo intitulado como La
Ville de São Paulo. Peuplement ET Population. 1750-18501533.
Pesquisas sobre a sociedade brasileira dos séculos XVIII e XIX são dificultadas
muitas vezes pela falta de documentos específicos, pela dispersão ou por serem
desconhecidos, como pode ser o caso de documentos em mãos de pessoas físicas, instituições
públicas, privadas ou eclesiásticas. Todos esses documentos são de fundamental importância
para a construção de uma historiografia renovada em conceitos e métodos de pesquisa, pouco
se inovou nas pesquisas feitas sobre o Brasil até meados da década de cinqüenta, e a mudança
ocorreu com os trabalhos utilizando registros eclesiásticos como fontes de pesquisa que datam
da segunda metade do século XX, mais precisamente da década de 60 de autores como Mary
Karasch, Renato Pinto Venâncio, Sheila de Castro Faria. Esses pesquisadores utilizaram as
fontes paroquiais aliadas com outros documentos, para retratar a realidade social de
determinados lugares, esse cruzamento de informações se faz extremamente necessário já que
através dele é possível minimizar as margens de erros da pesquisa ou até mesmos rebater
idéias tradicionalistas da historiografia brasileira.
Conforme já foi mencionado os registros citados podem nos apontar aspectos
como a evolução demográfica E há no Brasil pesquisas que também trabalham esses
elementos. Um exemplo é a pesquisa de Sheila de Castro Faria História da Família e
Demografia Histórica nesse trabalho a autora vai utilizar tais registros para perceber a idade
com que as pessoas se casavam, (re)casavam, expectativas de vida, e mortalidade. Juntamente
com as listas nominais e inventários post-mortem foi possível reconstituir grande parte da
realidade familiar sócio e economicamente. Nesse estudo ela aponta algumas modificações

1531
CARDOSO, Ciro Flamarion S; BRIGNOLI, Hector Perez. Historia demográfica. IN: Os métodos da
historia. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2002.
1532
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
1533
SCOTT, Ana Silvia Volpi. A contribuição da demografia histórica para a história da população e da família
no Brasil. Disponível no site: http://www.adeh.org/pdfs/B_1998_XVI_1_12.pdf. Acessado em: 26/09/2008.
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nas idéias mais tradicionalistas sobre as famílias patriarcais onde muitas, segundo estudos
realizados em São Paulo, foram chefiadas por mulheres1534.
Quando falamos de pioneirismo nos métodos de pesquisa no Brasil temos a frente
o nome da brasilianista Mary Karasch. Esta americana veio para o Brasil estudar a vida dos
escravos no Rio de Janeiro e se deparou com historiadores fadados à mesmice, pois os estudos
sobre os escravos no Brasil seriam impossibilitados pela falta de documentos já que estes
foram queimados pelos abolicionistas em 1890, porém seu treinamento nos Estados Unidos
permitiu que ela enxergasse diferentes possibilidades de pesquisas sobre o tema como foi o
caso de documentos de óbito, registros de irmandades, literatura de viajantes, materiais
pictóricos e registros tributários restantes, dessa forma ela conclui um extenso e valioso
trabalho de Doutorado intitulado A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-18501535.Ou
seja, a historiadora utilizou documentos paroquiais. E no campo da história dos escravos,
possivelmente foi a pioneira no uso dessa tipologia documental. Através dos registros de
óbitos ela apontou as principais doenças que vitimaram os escravos, bem como as nações dos
mesmos.
A mesma autora, Mary Karasch, em artigo recente, Centros-africanos no Brasil
Central trabalhou com as fontes eclesiásticas para identificar as nações dos africanos na
região de Goiás. Além dos registros também utilizou os censos e as listas nominais na sua
pesquisa. Neste artigo, a autora buscou a origem dos africanos da região citada e as
possibilidades e escolhas dos mesmos no momento de casamento. Através desse texto
percebe-se a importância dos registros, como também a necessidade de se buscar diversas
fontes e cruzá-las já que uma pode suprir a carência de informações da outra1536.
Com relação ao trabalho de Renato Pinto Venâncio Os escravos e a Morte: uma
sondagem nos registros paroquiais de óbitos de Minas Gerais colonial temos uma pesquisa
voltada para as atas de óbitos que registraram os sacramentos relativos à extrema
unção.Nesse trabalho é possível perceber o relacionamento da Igreja com os escravos, com a
efetuação de atos como batismo e a extrema unção a Igreja acreditava que estaria afastando as
influencias pagãs do cotidiano social no Brasil, com isso vemos a gratuidade dos sacramentos
inclusive para os escravos. Assim ficaram relativamente registrado muitas informações sobre
1534
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: Domínios da historia: ensaios de
teoria e metodologia. Organização de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de janeiro: Campus, 1997.
1535
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Trad. Pedro Maia Soares. - São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1536
KARASH, Mary. “Centros africanos no Brasil Central, de 1780 a 1835”. In: Diáspora Negra no Brasil. (org. Linda
Heywood. Rio de Janeiro: Contexto, 2008.pp.127-164
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doenças e as causas do falecimento das pessoas da época, quando esses registros ficam
escassos o autor observou que párocos passaram a cobrar taxas aos senhores de escravos para
a realização desses sacramentos1537.
O batismo além de ser um sacramento importante para a Igreja Católica era a
oportunidade de ligações entre pessoas da sociedade já que os envolvidos desde então
deveriam respeito a esse compromisso. Através desses documentos é possível perceber não só
a atitude do escravo com a Igreja, mas também a desta para com o negro, pois houve
momentos de uma maior aceitação ou não da religião pelos recém chegados da África além de
ser um dos raros registros escritos que provem o vínculo familiar dos indivíduos.
No Brasil, não existia uma padronização quanto ao livro onde o pároco deveria
realizar o registro, por isso, é comum encontrarmos paróquias onde os registros eram
separados de acordo com o grupo étnico-social do individuo como, por exemplo, a paróquia
do Rio de Janeiro, e outra, onde esse registro era feito indistintamente como é o caso da
paróquia de Salvador. Ressaltamos que após a Lei do Ventre Livre em 1871 ficou
determinado que os batizados dos filhos das escravas deveriam ser registrados em um livro
em separado. Outro fator importante a se observar é a questão da confiabilidade dos dados,
pois a qualidade geral dos registros dependia muito do grau de cultura e interesse dos padres
encarregados de mantê-los, sendo muito variável1538.
Com os registros de batismos é possível identificar sexo, cor, legitimidade e
ilegitimidade, etnia e condição se livre, liberto, forro ou escravo, local de moradia, nome do
padrinho, sua condição social e conjugal, cor e local onde residia. Além disso, a uma
peculiaridade quanto ao valor desse registro no Brasil, pois, para os proprietários de escravos
era interessante batizar os filhos de suas escravas, pois o registro de batismo era um
documento que garantia a posso do mesmo, uma vez que nesse período não existia certidão de
nascimento emitida pelo Estado laico. Para Costa, os registros de batismo permitem
estabelecer a evolução demográfica, auxiliando a elucidar questões econômicas, sociais,
administrativas e cotidianas da sociedade brasileira1539.

1537
VENÂNCIO, Renato Pinto. Sousa, Maria José Ferro de.(et-all) O Compadre Governador: redes de
compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 273-
294 – 2006.
1538
Idem
1539
COSTA, Iraci Del Nero da. Os registros paroquiais como fonte complementar da historia econômica e
social. Disponível no site: http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-ira/ar02.pdf.
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Através sabemos informações sobre a filiação dos nubentes, a cor, condição


jurídica dos noivos e a naturalidade dos mesmos.
Segundo Costa, a pesquisa dos registros de óbito, nos possibilita delinear a
formação e o desenvolvimento dos núcleos populacionais e a ocupação do espaço geográfico
dos quais consta o local de moradia dos falecidos. Pode também, nos auxiliar a elucidar
condições econômicas defrontadas em diferentes momentos pelas comunidades estudadas1540.
Além de contribuir para uma análise das taxas de mortalidades e suas principais causas
mortis1541. Nos registros de óbitos além de descrever a causa da morte também menciona a
idade e o local do enterro. Fatores esses que contribui significativamente, para um estudo
aprofundado da expectativa de vida de uma determinada região em um determinado período
se havia distinções entre os grupos dos locais de sepultamento.
Ciro Flamarion1542 aconselha que a pesquisa historiográfica deve ser realizada
com uma boa delimitação para que se alcancem os objetivos pleiteados. Para isso, é
necessário conhecer a estrutura da população, ou seja, a dinâmica populacional e a estrutura
familiar. As fontes paroquiais possibilitam o acompanhamento dos componentes básicos dos
fenômenos demográficos, isto é, nascimentos, filiação, apadrinhamentos, casamentos,
batizados, óbitos, legitimidade, ilegitimidade, origem e causas mortis. Também é
fundamental que se realize uma triagem das paróquias a serem pesquisadas, pois, é crucial a
observância de alguns critérios seletivos como por exemplo a continuidade dos registros com
o mínimo de lacunas possível, sua representatividade no contexto econômico no período a ser
estudado e sua representatividade quanto à estrutura social no recorte de tempo a ser
analisado.
Em relação à metodologia de pesquisa das fontes paroquiais, são empregados na
maioria dos casos, dois métodos europeus citados o da contagem global e reconstituição de
família.
O método de contagem global se baseia na coleta anônima dos registros de
batismo, casamento e óbito, sem que o pesquisador considere a identidade das pessoas
mencionadas, e no tratamento desse material para fins da historia demográfica. O outro
método de reconstituição de família de Henry e Fleury, através dele pode construir árvores

1540
Idem
1541
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Trad. Pedro Maia Soares.- São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1542
CARDOSO, Ciro Flamarion S; BRIGNOLI, Hector Perez. Historia demográfica. IN: Os métodos da
historia. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2002.
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genealógicas e identificar gerações de uma mesma família1543. Ambos são muitos utilizados
no Brasil. Cristinany Miranda Rocha em histórias de famílias escravas adota a segunda
metodologia e rastreia várias famílias escravas pertencentes a uma mesma família, através dos
registros paroquiais e do cruzamento com outras fontes1544.
Em Sergipe a utilização dos registros paroquiais como fonte de pesquisa histórica
é recente escassa, pois há poucos trabalhos que utilizam os citados registros como fonte
histórica e principalmente como fonte para estudar a escravidão. Um dos trabalhos que estuda
a escravidão em Sergipe e utiliza esse tipo de fonte é a dissertação de mestrado de Joceneide
Cunha Santos, intitulada, Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e
mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). No mencionado trabalho
há um capítulo que versa sobre a família e a autora utiliza também as fontes paroquiais.
Segundo Joceneide Cunha, os casamentos possuíam relações familiares com uma relativa
estabilidade e o compadrio foi bastante praticado, não somente por livres como também por
escravos. Através do batismo a família era ampliada pelos laços espirituais1545.
No decorrer do texto citamos alguns trabalhos que utilizaram as fontes em
discussão. E tentamos citar alguns artigos e trabalhos que versassem sobre a escravidão.
Assim, com o intuito de lançarmos pistas das diversas possibilidades de uso das fontes
paroquiais, enfatizamos que através dos registros de batismo e casamento podemos perceber
as relações familiares dos escravos, legítimas, realizadas na igreja e ilegítimas. As estratégias
e possibilidades que as escravas e escravos possuíam na constituição dos casamentos, bem
como fazer analisar os elementos citados utilizando a categoria gênero. Inês Oliveira Cortês,
por exemplo, menciona que as africanas eram mais escolhidas para serem madrinhas que os
africanos, pois possivelmente as mães das crianças acreditavam que as africanas poderiam
substituir as mães caso fosse necessário 1546.
Segundo Mattoso, os casamentos de escravos foram tão freqüentes quanto os dos
1547
livres . Os estudos em Sergipe corroboraram com essa afirmativa, pois há registros de
vários casamentos entres escravos, como por exemplo, o caso de Malachias, escravo de
Antonio Honorato Bispo que casou na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade na Vila de
1543
Idem.
1544
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
1545
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Disponível no site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp020554.pdf acessado em: 08/09/2008.
1546
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Viver e morrer no meio dos seus”. Nações e comunidades africanas na Bahia do século
XIX. Revista USP, 28 (1995/96), p.175-93
1547
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008
ISBN - 978-85-7822-067-9
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Lagarto em 1888 com Joana Batista do Nascimento, tendo como testemunhas Geraldo José da
Rocha, comerciante de grande porte e proprietário de vários escravos, e o bacharel Nicolau
Tolentino Álvares, também senhor de escravos e advogado1548.
Outros elementos que podem ser investigados são as estratégias e possibilidades
que os homens e mulheres escravos possuíam para construir o compadrio, quem eram os
“compadres e comadres” escolhidos. Como também percebemos as idades que as crianças
eram batizadas e os locais que realizavam esse rito. Pois através desses elementos podemos
perceber se havia distinções para batizar livres e escravos, se havia “locais” preferidos para os
escravos e seus descendentes batizarem seus filhos.
Ressaltamos que essa documentação se encontra nas secretárias paroquiais e em
muitos casos em condições não apropriadas para armazenamento. No estado de Sergipe há
várias paróquias que possuem documentação do século XIX, e por isso os documentos
informam sobre a população escrava e a liberta. Algumas das paróquias que possuem esses
documentos são: Capela, Santo Amaro, Itabaiana, Lagarto, Divina Pastora dentre outras.
Algumas apesar de terem sido criadas no século XVII ou XVIII, não existem documentos
referentes a esses períodos, a exemplo da Paróquia de Santa Luzia e a já citada Santo Amaro.
Em suma, através das pesquisas com os registros paroquiais é possível identificar
algumas práticas culturais da população escrava. Por entendermos que por meio de uma
análise criteriosa e uso de metodologias adequadas, os registros eclesiásticos contribui para
preencher diversas lacunas relativas ao cotidiano da sociedade sergipana, incluindo dos
escravos e dos seus descendentes. As fontes paroquiais são preciosas para o estudo das
relações senhor x escravo, legitimidade e ilegitimidade dos relacionamentos dos escravos, a
origem dos mesmos, ou seja, a “ nação”, condição social (escravo, liberto, livre), cor, as
epidemias, maus-tratos dentre outros. E a riqueza no uso desses documentos aumenta
sensivelmente se cruzarmos as informações desses documentos com outros, como por
exemplo, os inventários post-mortem.
A ausência de trabalhos desse tipo em períodos anteriores ocasionou uma falha na
historiografia regional em todo Brasil, falhas essas que passam agora a ser questionadas e
corrigidas com o uso das fontes paroquiais.

1548
SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Disponível no site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp020554.pdf acessado em: 08/09/2008.

Aracaju, 08 a de 10 de outubro de 2008


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AS ARTES CÊNICAS NO FASC: FRAGMENTOS DA HISTÓRIA


TEATRAL EM SERGIPE.

Rochelle Figueiredo Freitas – UNIT/UFS1549


Chellinha_freitas@hotmail.com
Prof. Msc. José Vieira da Cruz (orientador)1550
Josevieiradacruz@uol.com.br

Na década de 60 e 70, existiam vários grupos teatrais em Sergipe, com diversos tipos de
platéias, desde o publico infantil até o mais adulto. Essa pesquisa objetiva discutir como essa
produção cultural ocorreu em Sergipe no período relacionado a ditadura militar, em particular,
nos registros relacionados a produção teatral localizado na Universidade Federal de Sergipe.
Desta forma, pretende-se entender o cenário artístico e cultural no período militar no Brasil e
a partir dos seus desdobramentos em Sergipe.

Palavras Chaves: História, Teatro, Censura, Político-cultural, Sergipe.

I - A arte de representar idéias

Serve o teatro para tudo. Serve para formatura e comícios, serve para congresso de
todos os tipos e assuntos, serve para reuniões religiosas e convocações cívicas, seve
para folclore e festivais de rádio, serve até, eventualmente, para espetáculos
teatrais. Só não serve para à morte, porque a morte é drama grátis, não cobra
ingressos dos que ocorrem ao velório para olhar a face do Morto.1551

1549
Graduando em História licenciatura pela Universidade Tiradentes e Museologia Bacharelado pela
Universidade Federal de Sergipe.
1550
Prof. Msc. José Vieira da Cruz (ANPUH-SE/UNIT/SEED), Doutorando em História Social/UFBA.
1551
CALVACANTI, Medeiros, Revista de Teatro, n° 344 – Março – abril de 1965.
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O Teatro surgiu no Brasil a partir do século XVI, tendo como utilidade a sua
utilização para a propagação da fé. Um dos nomes de maior destaque foi o Padre José de
Anchieta que escreveu algumas antigas composições teatrais.

No Brasil forte foi à influência do teatro Europeu, principalmente o Francês que


serviu de inspiração para diversos grupos teatrais. Na década de 40 surgiram diversos grupos
teatrais que tocavam diversos temas que foram: Os Comediantes, O TBC, O Teatro Oficina, O
Teatro Arena, O Teatro dos Setes e entre outros.

O teatro é um dos meios culturais que tem a capacidade de mexer com o público e
o seu imaginário, de trazer emoções, de dá um choque com as personalidades que englobam
esse fantástico mundo de criatividade e de idealizações.

Tendo em vista todo o poder de transmissão de informações que o teatro possui,


este também será utilizado como uma grande ferramenta política, que levantará
questionamentos para que sejam tragam inquietude para quem o assiste.

A grande idéia está no sentido de se confrontar, de levantar idealizações, de mover


uma massa que precisava de uma fermentação para que chegasse num ápice, para que assim,
impulsionada pelo calor das transformações pudessem mudar o quadro político da sociedade.

II - O teatro em Sergipe antes do FASC

A criação da Sociedade da Cultura Artística de Sergipe (SCAS), através das


idealizações de um grupo de intelectuais em Sergipe. A partir disso Sergipe vai abrir suas
portas para grupos de teatro que vinham de vários países do mundo encantar os olhares do
público Aracajuense.

Através do apoio do MEC, o SCAS mantinha relações com vários Estados e


estimulava outras artes, desde a música, dança até o teatro que ganhou vidas nos anos 50.

O grupo teatral que se chamava teatro universal, este será sucedido pelo teatro de
amadores em Sergipe (TAS) que foi criado em 1956. 1552

O que podemos observar é que até então o teatro sergipano não era marcado pela
presença profissionalizante para que o cenário teatral em Sergipe, deixasse de ser amado. O
1552
Ibarê Dantas. História de Sergipe República. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2004. p. 163.
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teatro naquela época lutava contra o título de amadorismo, além das faltas de patrocínios e
apoios para o mesmo.

É fato que na década de 60, existiam vários grupos teatrais em Sergipe, com
1553
diversos tipos de platéias, desde peças teatrais para crianças até o mais adultos. Alguns
grupos chamavam a atenção da platéia para assuntos como a reforma de base em suas peças
procurando trazer uma reflexão de quem assistia para uma tentativa de mobilização. É fato
que esses grupos não alcançavam todas as classes da sociedade, pois nem todos tinham
condições de ir ao teatro.

A UNE-Volante na década de 60, em Sergipe passou disseminando suas idéias


revolucionárias o que fez com que contribuísse para o surgimento de novos grupos teatrais
que tinham como objetivo trazer uma conscientização popular para uma mudança na
sociedade.

Entretanto em 64, época do golpe militar e junto com ele vieram as repressões,
que irão fazer uma perseguição cultural a todos os meios culturais que atuavam no nosso
cenário artístico.

III - O teatro no FASC

O I Festival de Arte em São Cristóvão foi realizado nos dias 1,2 e 3 de setembro
de 1972, dando incentivo para a disseminação da cultura no Estado de Sergipe. O FASC tinha
além de uma visão de atrair público para o evento, fazer com que estes, saíssem de lá
aprendendo algo sobre uma determinada área e para isso foram abertos cursos diversos, como
história da arte, jornalismo, literatura Sergipana e entre outros, porém não foi aberto nenhum
curso sobre o teatro.

O I FASC teve como tema a comemoração do sesquicentenário de independência


do Brasil, e reuniu mais de 35000 visitantes. Vários motivos levaram a Universidade Federam
em Sergipe a planejar e executar o festival, entre estes os que mais se destaca sem sombra de

1553
MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1964. São Cristóvão:
DHI/UFS, 1998.(Monografia)
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dúvida está relacionado ao turismo em Sergipe, já que o festival trazia turistas de diversos
locais para Sergipe. 1554

No entanto é necessário frisar o incentivo do MEC no início da década que


trabalhava com uma política de firmar mais as culturas locais do Brasil, fazendo com que
fossem realizadas mais manifestações culturais e este vai apoiar a universidade Federal de
Sergipe para que fizesse o I FASC.

Apesar do I FASC, não apresentar nenhum curso destinado ao teatro, houve uma
arrecadação pré-destinada para poder pagar cachet dos grupos teatrais que iriam se apresentar
no I FASC de C$ 5.000,00 Cruzeiros e a impressão de 10 mil cartazes de divulgação. Os
grupos teatrais que se apresentaram no I FASC foram o Teatro de Amadores de Alagoas, o
Teatro Universitário de Pernambuco, Grupo Teatral Aliança Francesa e a exposição do Teatro
do Orfanato Imaculada Conceição da Professora Aglaé Fontes de Alencar.1555

O I FASC contou com a divulgação nos jornais da cidade, além da campanha no


Senado Federal com o senador da época Lourival Batista que apresenta o festival como um
encontro cultural de grande significação que irá contribuir para incrementar o turismo em
Sergipe.

No segundo ano do FASC, que ocorreu de 31 a 2 de setembro, contou com uma


preocupação maior em relação ao teatro, serão ministrados cursos sobre teatro e haverá a
presença novamente do Teatro Universitário de Alagoas e o de Pernambuco, além da
solicitação da imprensa para a apresentação da peça “A história do zoológico” pelo grupo
Opinião de Espetáculos.

Sobre o Grupo Teatral Universitário que procurava se estruturar, não poderá


participar do II FASC, devido que o contratado para trabalhar com o teatro universitário da
UFS, chegou apenas nas vésperas do II FASC, adiando a estréia do Teatro Universitário.

Só há pouco tempo chegou um participante do Serviço Nacional de teatro


segundo o professor Alencar Filho para dirigir o teatro da Universidade
Federal de Sergipe que iria se apresentar no II festival de arte de São
Cristóvão. 1556

1554
Fundo FASC, Caixa n°: 04, ano de 1972.
1555
Fundo FASC, caixa n°5, ano de 1972.
1556
Jornal da Cidade, 01 de setembro de 1973.
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Em 1974 os interesses pelo teatro junto com a sua profissionalização vão começar
finalmente a aparecer, o ano de 1974 vai marcar o crescimento artístico no cenário
profissionalizante do teatro no FASC. O jornal da cidade em 28 de junho de 1974 já tava
sugestão para que o prédio que foi doado para a UFS, local onde funcionou a Escola Normal
fosse construído um teatrinho de arena, já que a UFS levantava interesses para a formação de
um grupo de teatro universitário e já incentivava os grupos já existentes.

No mesmo ano foi promovido pela UFS um curso de teatro que visava depois
formação para apresentação do III FASC, tendo esse curso de teatro à frente a professora
teatróloga Nilda Spencer.

Nilda Spencer é conhecida como a “Embaixatriz do Teatro Brasileiro”, ela é um


grande nome do teatro baiano, uma atriz muito reconhecida pela sua grande paixão pelo
teatro, ela fundou a escola de teatro da Bahia, já fez diversos cursos sobre o teatro e neste
momento ela vai vim deixar sua grande marca em Sergipe para a contribuição para a
profissionalização do teatro em Sergipe.

Com o primeiro ciclo do curso ficou a Professora Aglaé Fontes para ministrar o
curso e no segundo ciclo contou com a palestra de Nilda Spencer. Com o final do curso
falaram Aglaé Alencar, Raimundo Araújo, o magnífico reitor e a atriz Nilda Spencer que
recebeu rosas vermelhas e confirmou sua presença para montar o espetáculo Teatral com o
grupo de Teatro Universitário (TUS) da UFS.

O ano de 1974 marcou a estréia do teatro universitário, encenando a peça


“Almajarra” de Artur Azevedo no auditório do colégio Estadual Atheneu Sergipense que
também foi apresentada no III FASC, estreando finalmente o teatro universitário no festival
de arte de São Cristóvão.

Finalmente em 1974, a sociedade da cultura artística de Sergipe coloca a


disposição dos grupos teatrais locais que iriam se apresentar no III FASC, toda a sua
aparelhagem técnica, além de prestar colaboração, dando finalmente seu atento aos
movimentos culturais artísticos que vinham sofrendo muitas críticas destrutivas, contando
com mil e uma dificuldades dentre as que mais de destacavam a ordem econômica, sem falar
no descrédito da opinião pública que era voltada para outros tipos de interesses não ligado à
arte.

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Aos pouquinhos o Teatro em Sergipe começou a ganhar uma nova forma, esses
novos investimentos e incentivos para a cultura fizeram com que o teatro começasse a se
mobilizar e procurar adquirir uma maior profissionalização.

Em 1974 contou com um grande número de apresentações teatrais no III FASC, a


sua programação veio recheada de grupos teatrais: O Grupo Expressionista da UFS, grupo
ASC de Espetáculos, Teatro Livre de Sergipe, Teatrinho de Fantoches, Grupo Teatral de
Nilda Spencer e Carlos Petrono. Sem falar da presença do ministro da educação Ney Braga
que abriu o festival de arte de São Cristóvão.

Apesar desse crescimento dos grupos teatrais em Sergipe é necessário tocar no


ponto que chama atenção no que se refere a quem assistia o teatro. No Festival de arte de São
Cristóvão nem todos estavam interessados em assistir o teatro e os que ficavam para assistir,
boa parte desse público se relacionava aos intelectuais e a pessoas que também faziam teatro.
Boa parte das prisões feitas nos períodos do festival de arte de São Cristóvão estavam
relacionadas a bebida e as brigas nas ruas segundo dados do Jornal Gazeta em 1974.

Outro ponto a chamar a atenção está novamente relacionado a visão da não


valorização do que se tinha em Sergipe ou no Nordeste, no jornal da cidade do dia 23 de
agosto de 1974 lamenta a falta de nomes importantes nos Festivais de Arte de São Cristóvão.

Enquanto nosso folclore não passar do zabumba de Quemdera, e o festival de Arte


de São Cristóvão não deixar de convidar a banda de Pífanos de Caruaru como sua
grande atração, Sergipe não passará de um Estado apenas com pretensões
turísticas. 1557

Já no jornal Gazeta traz uma comparação do festival de arte de São Cristóvão com
uma quemersse, já que todos ficavam nas ruas olhando as barraquinhas e na programação do
evento não traziam nenhum artista a nível nacional, apresentando um desapontamento em
relação ao III FASC o chamando de um “FIASCO” já que teve “Pouca gente, pouco interesse,
falta de energia, público desbaratado e por fim, chuva!” 1558

O teatro possuía grandes preocupações, o que ficava difícil se pensar em um teatro


totalmente livre para encenar as suas idealizações para atrair um maior público já que com a

1557
In:___Jornal da Cidade, 23 de agosto de 1974.
1558
Gazeta de Aracaju, em 22 de setembro de 1974.
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ditadura militar nem todas as peças eram aprovadas, tanto que na época que as peças que eram
apresentadas no FASC, eram necessário que se levasse uma cópia para a autorização da
devida censura para que as peças fossem aprovadas e por diante apresentadas, além disso,
tinham que se preocupar com o tema do festival de Arte de São Cristóvão que mudava a cada
ano. 1559

No ano de 1975 o teatrólogo Orlando Miranha enviou para Sergipe o teatrólogo


Carlos mourinho que conta com seu “curriculum” cursos na França, Alemanha e Inglaterra e
ele irá montar o grupo experimental de teatro da UFS.

De acordo com o calendário artístico da UFS de 1975, em 19 de abril ocorreu a


jornada de teatro amador, contando com um auditório de mais de duzentas pessoas,
representando os grupos teatrais de Sergipe e contou com os organizadores João de Barros e
Vieira Neto.

No FASC IV a comissão central do teatro contou com o teatrólogo Vieira Neto,


preparou um seminário sobre teatro além dos grupos teatrais que marcaram presença no
festival: o Teatrinho de Marionetes de Kohler, o grupo Teatro de Gamboa de Salvador, o
Grupo Expressionista da UFS que se apresentou primeiramente para o público adulto e o sua
segunda apresentação foi para o público infanto-juvenil e o Grupo Opinião de Espetáculos. O
IV FASC teve cerca de 40 mil visitantes e foi ultimo dirigido pelo seu criador o reitor Luiz
Bispo. 1560

Em 1976, no V FASC haverá uma grande diversidade de grupos teatrais, ocorreu


entre 24 a 26 de setembro de 1976. Neste FASC, conseguimos notar o quanto o teatro se
tornou importante no FASC, devido o grande número de peças que abrangiam diversos
públicos, os grupos teatrais que se apresentaram no V FASC foram: o grupo Experimental da
UFS com a peça “Guichê”, o Grupo Expressionista da UFS com a peça “Brejais”, o Grupo
Universitário de Alagoas, o Grupo Raízes de Aracaju Teatro Infanto-juvenil com a peça “O
Cagado e a fruta”, o Teatro Mamulengo, o Grupo teatral universitário de Mossoró-URGN, o
grupo Teatral do Estado do Espírito Santos, o grupo “Messias” de Salvador, o Teatro Aliança
Francesa do Rio de Janeiro com as peças “Banco público e os gêmeos faiscantes” e o Grupo
Artístico da Universidade de Piauí.

1559
Fundo do FASC, caixa n°: 05, de 1974.
1560
Fundo do FASC, caixa n°: 04, material de divulgação, de 1975.
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O grupo raízes que foi idealizado por Jorge Lins, atuou na periferia da capital e
em cidades do interior do Estado. Teve um grande sucesso primeiramente em 1975 com a tão
aclamada peça “Abelhinha Sonhadora” e em 1976 monta sua nova peça “O colono e a gruta”.

Neste momento o teatro em Sergipe foi bastante divulgado devido à


disponibilidade de incentivos que serviram para dinamizar o teatro assim como em outros
setores culturais. Esses diversos segmentos ligados à cultura, foram inseridos nessa nova
orientação cultural aproveitando os recursos federais.

Em 1977 nasci o grupo Imbuaça, que foi influenciado pelo teatro livre da Bahia,
ele foi inspirado pela literatura de cordel, este grupo foi especializado em teatro de rua com
bastante embasamento técnico o que contribuiu bastante para o seu reconhecimento e seu
sucesso que até hoje prevalece. 1561

Em 1978 foi criado O Mamulengo Cheiroso da professora Aglaé Fontes de


Alencar e em 1982 o Mambembe, orientado por Virgínia Lúcia Fonseca de Menezes, também
em 1982 os atores fundaram a Federação do Teatro Amador, que foi uma tentativa de superar
o amadorismo, para que assim se pudesse estabelecer uma base mais profissionalizante.

IV- Conclusão

Sabemos que o período da década de 70 serviu como uma alavanca para a


firmação do teatro em Sergipe. Apesar da ditadura militar no Brasil através do golpe de 64,
onde chamou artistas para depor por causa da censura que existia na época, não fez com que
não houvesse inquietude dos intelectuais da época que acompanhavam e encenavam peças.

Em Sergipe apresentou-se um grande incentivo para a cultura, onde vários apoios


apareceram para a firmação do teatro profissional em Sergipe, ou seja, foi neste período
militar que os diversos meios artísticos do Estado de Sergipe mais se desenvolveram.

Foi na década de 70 que deu inicio ao FASC e junto com ele as apresentações de
diversos grupos como os grupos de dança, grupos folclóricos, os grupos que trabalhavam com
o cinema, artistas plásticos e em especial os grupos teatrais Sergipanos.

1561
Ibarê Dantas. História de Sergipe República. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2004. P.220.
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Infelizmente essa questão de não se valorizar o que se tem de bom em “casa”, não
é de hoje, a questão é que em Sergipe já se possuía pessoas competentes para trabalhar com o
teatro, porém por estas ainda serem amadoras era preferível contratar alguém de grande nome
de fora não valorizando assim “a prata da casa” para se valorizar “o ouro de fora”.

Na década de 70, o teatro em Sergipe começou a caminhar para o


profissionalismo, fazendo questão de elevar a arte para outro nível, para que Sergipe
finalmente pudesse deixar de lado o seu amadorismo.

Com o breve estudo sobre o Festival de arte em São Cristóvão, foi possível
perceber como o Teatro Sergipano se desenvolveu ao longo dessa trajetória histórica,
observando suas dificuldades e seus anseios em uma sociedade onde a valorização pela arte
ainda não era a sua principal prioridade.

Ao observar o FASC, foi possível ver a entrada de novos grupos teatrais no


cenário Sergipano através de uma nova onda de incentivo a cultura pelo governo e a criação
de novo grupos de acessória a cultura. O fato é que na abertura política o teatro retomou sua
força do período 1965/1968 para viver um grande período de expansão em Sergipe.

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Fontes:

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• Relatórios

• Ofícios

• Panfletos e Calendários.

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Arquivos da UFS: Material do Fundo do FASC- 1972/1973/1974/1975/1976/1977

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CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA


RELAÇÃO DO TURISMO COM O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO
NA CIDADE HISTÓRICA DE SÃO CRISTÓVÃO/SE

Ivan Aragão (Turismo/Faculdade de Sergipe – FaSe/PIBIC)


ivan_rego_aragao@yahoo.com.br;
Denio Azevedo (Orientador-Turismo/FaSe)
denio_azevedo@yahoo.com.br.

O patrimônio arquitetônico como signo de beleza artística, e a sua valorização como


construção identitária de uma cultura, é motivo de atração turística em diversas cidades.
Assim, os objetivos do presente trabalho são, entender a relação entre patrimônio
arquitetônico, moradores e visitantes na cidade de São Cristóvão/SE; Pretende-se ainda
analisar o convívio dos permanentes com o seu patrimônio imóvel; Investigar como o
patrimônio em “pedra e cal” auxilia na construção da identidade local e perceber de que forma
os turistas apreciam o patrimônio edificado da cidade. Após a pesquisa bibliográfica, foram
feitas observações in loco, realizadas entrevistas e aplicação de questionários com os agentes
envolvidos. Na tabulação e averiguação dos dados coletados, foi desenvolvida uma análise
quali-quantitativa. O estudo mostra que o turismo pode auxiliar no desenvolvimento sócio-
econômico da comunidade e na sensibilização da população quanto à preservação e
importância do seu patrimônio, do passado e da manutenção da tradição. Portanto, a atividade
turística pode ajudar a comunidade na construção de uma identidade, já que por ser um
aglutinador destes valores esquecidos, o turismo também enaltece o que um local tem de
melhor como herança, seja ela natural ou cultural.

Palavras-chave: Turismo, Cultura, Patrimônio Arquitetônico.

Nas cidades históricas alguns edifícios além de retratarem aspectos da época em


que foram construídos, são também, verdadeiros documentos de manifestações artísticas
integradas tanto na parte externa, como no seu interior. É o caso, por exemplo, das igrejas
barrocas de Minas Gerais, do Nordeste, ou ainda as construções do Brasil-Império na cidade
do Rio de Janeiro.

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A preservação do patrimônio construído auxilia na ligação dos moradores com a


sua história, identificando-os como habitantes de uma localidade, através dos símbolos e
códigos que certos edifícios representam para a sociedade. Segundo o Portal Brasileiro de
Turismo1562,

A arquitetura é uma das manifestações mais duradouras da história de um


povo. As edificações refletem costumes, tendências e técnicas vigentes em
cada época. Com grande patrimônio histórico-cultural, o Brasil tem atraído
grande número de turistas interessados em conhecer, seja nos grandes
museus ou pelas ruas das cidades, um pouco mais sobre o passado do País.

Partindo desse pensamento, percebe-se à relevância para a identidade


sociocultural manter o patrimônio de um povo protegido, amparado pela lei e conservado para
as futuras gerações. É importante que este legado mantenha-se edificado, “dialogando” com
os moradores e auxiliando na rememoração de acontecimentos de épocas passadas. Em seu
artigo para a Internet Magda Vianna de Souza (2003) comenta que,

A identidade cultural é vista como uma forma de identidade coletiva


característica de um grupo social que partilha as mesmas atitudes e, está
apoiada num passado com um ideal coletivo projetado. Ela se fixa como uma
construção social estabelecida e faz os indivíduos se sentirem mais próximos
e semelhantes.

Alguns destes prédios são ícones da arquitetura, onde assinala o trabalho de


engenheiros, arquitetos e artistas, tornando-os exemplares construtivos e identificando os
aspectos singulares da cultura de uma região. Desta forma, proteger o patrimônio
arquitetônico das cidades é dar visibilidade aos locais de memória dos indivíduos que nela
estão inseridos.
Essas construções por serem bens mais duráveis, se comparados a outros suportes,
também podem passar a abrigar outras manifestações artísticas como pintura, escultura e arte
aplicada. Alguns desses edifícios foram transformados em Museus, Casas de Cultura,
Pinacotecas, Bibliotecas e Memoriais, abrigando acervos relevantes. Na cidade de São
Cristóvão/SE isso ocorreu com algumas igrejas e prédios públicos.

1562
Disponível em:
<http://www.braziltour.com/site/br/tour_produtos/internas_submenu.php?id=18&fatherId=6> Acesso em: 20 de
Janeiro de 2008.
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A recente tradição no Brasil no que diz respeito à conservação da sua herança


histórica, parece ser um dos fatores que influenciam em um número reduzido de políticas
públicas favoráveis à proteção do patrimônio histórico nacional.
Foi a partir da década de 60 do século XX, na reunião de Quito que se consolidou
a necessidade de conscientizar o poder público e a população sobre a importância e a relação
estabelecida entre turismo e patrimônio. Com o apoio da Organização dos Estados
Americanos (OEA), esse encontro teve como principal objetivo criar medidas para a
utilização e conservação de monumentos de lugares de interesse histórico e artístico.
Algumas construções, além de sofrerem com o abandono, muitas vezes, são
ameaçadas em sua integridade física pelas depredações, vandalismo e descaracterização
construtiva. Esses fatores de descaso podem vir a ocasionar a perda da identidade
sociocultural do lugar, ou afetar o seu fortalecimento.
Os monumentos antigos, tombados ou não, ou seja, protegidos juridicamente pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)1563, ajudam na identificação
dos aspectos que dizem respeito ao histórico de um bem arquitetônico. Com a construção
tombada são mais fáceis reivindicações para a sua proteção e salvaguarda.
O Poder Público tem autoridade de se fazer cumprir a lei, mas, esse ato não anula
a responsabilidade da sociedade em pedir o tombamento de um bem, nem tão pouco de ficar
alheia ao processo de conservação e/ou preservação.
Diante do exposto, são importantes as ações de sensibilização e conscientização
através de medidas educativas, visando valorizar o patrimônio histórico do nosso país. Por
sensibilização e conscientização, entende-se a mudança no olhar das pessoas onde o
patrimônio está inserido. É despertar também, o sentimento de que o mesmo pertence ao lugar
e que, portanto, merece ser protegido. A preservação do patrimônio é também a preservação
da memória e da cultura local.
Nesse sentido, a atividade turística pode ser um dos agentes transformadores da
consciência de moradores e visitantes sobre o passado e a tradição regional. Ela ajuda a
valorizar o que o lugar tem de único, fortalecendo a sua identidade. Por ser um aglutinador
destes valores muitas vezes defasados, o turismo também enaltece o que um local tem de
melhor como herança, seja ela natural ou cultural.

1563
Decreto-Lei Nº 25, de 30 de Novembro de 1937.
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Como um segmento dessa atividade, o turismo cultural, visando a


sustentabilidade, além de ser capaz de valorizar o que cada cidade tem de mais interessante,
também colabora em transformar a visão preconceituosa e distorcida existente sobre esses
lugares por parte de algumas pessoas. Conhecendo a cultura local, torna-se mais fácil
encontrar soluções que visem ao seu respeito, resgate e preservação.
No Brasil, o Ministério do Turismo em parceria com o Ministério da Cultura e o
Iphan (2005, p.10), definiu como turismo cultural: [...] as atividades turísticas relacionadas à
vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos
eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura.
Não se podem ignorar fatores no turismo que são contraditórios a conservação do
patrimônio arquitetônico. Ao mesmo tempo em que ele reafirma a importância de se preservar
as construções como atração turística e lugares de memória, feito de forma desordenada, sem
um planejamento, pode causar graves problemas ao patrimônio cultural.
Isto pode vir a acontecer através do turismo massivo, que vise apenas ao lucro
imediato causando a destruição dos edifícios e espaços históricos, na sua maioria frágeis pela
ação do tempo, e em alguns casos pela falta de cuidado de particulares e órgãos públicos
responsáveis.
Como se sabe, a principal atração turística das cidades históricas é o seu passado
e São Cristóvão está inserida nesta categoria. Pelo seu slogan de divulgação e venda – “A
Quarta Cidade Mais Antiga do Brasil” -, percebe-se a importância que as pessoas e a mídia
dão para este passado, e a definem como relevante produto turístico no estado de Sergipe.
Para os pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas, é natural entender o turismo não
apenas como fator de lazer e entretenimento, mas também analisar questões que dizem
respeito à sua dinâmica e contribuição na preservação dos bens patrimoniais de uma região.
É relevante para a cidade, alternativas que visem à orientação do fluxo turístico,
bem como, ações que sensibilizem as populações residentes e flutuantes sobre a importância
do patrimônio histórico. Essas medidas em benefício da atividade turística quando bem
executadas, serão constituídas de melhorias para a sociedade envolvida. Insere-se nesse
contexto, práticas de educação e interpretação do patrimônio, ações para sua proteção,
conservação e restauro.
Pensar na possibilidade de estimular o turismo nas cidades, utilizando o seu
acervo, tais como, bairros e prédios históricos, bens culturais móveis e o seu patrimônio

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imaterial, é dar destaque à identidade local, aos lugares de memória coletiva e um meio de
desenvolver um lugar economicamente.
Através do patrimônio, o turismo pode ser um agente modificador do cotidiano
dos locais de visita. Estabelecendo novos vínculos sociais, fortalecendo o sentindo de
pertencer da população e transformando a realidade do lugar.
Assim é a cidade de São Cristóvão, que tem um rico patrimônio do período
colonial em estilo barroco. Para algumas pessoas o barroco além de ser um estilo artístico que
influenciou a arquitetura, escultura, pintura, literatura e música, foi também um momento
histórico de transformações políticas e religiosas.
A arte barroca originou-se na Itália no século XVII, chegou ao Brasil através doa
colonizadores portugueses. As suas principais características são impressionar o espírito do
observador, através da busca de efeitos decorativos visuais; criar uma harmonia entre
arquitetura e escultura; destacar em suas obras grandes contrastes entre luz e sombra e fazer
uma pintura, com efeito, ilusionista. (TRIADÓ, 1991).
São Cristóvão tem uma realidade favorável para o turismo cultural, o seu acervo
de caráter predominantemente histórico, vai desde espaços e construções seculares, até grupos
folclóricos de manifestações e danças populares. Na arquitetura, destaca-se o conjunto
colonial da Praça São Francisco e o da Praça Senhor dos Passos (antigo Largo do Carmo).
Ainda existem espalhados pelo centro histórico da cidade, algumas igrejas e casarios.
Com influência das cidades ibéricas, São Cristóvão tinha no início da sua
formação como os espaços principais, o Largo da Matriz, a Câmara (poder religioso e
político) e o porto. Mesmo após a construção da Praça São Francisco, o espaço de poder ainda
era onde se encontravam a Igreja Matriz e a Casa de Câmara e Cadeia. De 1607 a 1637, a
cidade se consolidou como vila, porto, capital e pólo urbano para as fazendas de açúcar.
(GALVÃO JÚNIOR, 2008).
É no primeiro governo da Capitânia de Sergipe, em 1648, que São Cristóvão toma
ares de capital reforçando os espaços simbólicos de poder e de atividades públicas. Galvão
Júnior (2008), diz que esse momento também é marcado pela “tradicionalização dos espaços”
e da memória coletiva, através das feiras, festas, procissões, execuções, dentre outros.
A chegada a São Cristóvão das Ordens Religiosas vai definir os “elementos
formadores de sua trama urbana”. Com a edificação das igrejas conventuais, criam-se espaços
públicos sociais, diretamente ligados a estas construções, locais de convivência dos habitantes
da cidade. Em 1657, foi fundado o convento de São Francisco, antes recolhimento. No local
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que está até os dias atuais, junto com a Santa Casa de Misericórdia e o Palácio dos
Governadores. (GALVÃO JÚNIOR, 2008).
A transferência da sede para Aracaju transforma os espaços de poder da cidade,
seus ritos e atividades. São Cristóvão não é mais a cidade capital e como conseqüência vai
perdendo aos poucos o status de principal núcleo. A antiga urbe, não serve mais “aos
propósitos desenvolvimentistas e outros interesses agregados”. Restam a cidade e aos que
habitam nela, as memórias do seu passado.
Como um dos símbolos da modernização da cidade, São Cristóvão inaugura uma
ferrovia para o escoamento de produtos. Isto implicou em vários deslocamentos na estrutura e
configuração urbana, bem como, nos hábitos e costumes da população. Nesse período, a
cidade se adaptou à linha férrea.
Surgem novos padrões estéticos na arquitetura e a cidade se consolida em dois
planos: a cidade alta - tradicional e histórica, e a baixa - do comércio e da ferrovia.
Configuração que se mantêm até os dias atuais, acrescidas de rodovias, sistema de
comunicação e interesse turístico.
O site do Ministério Brasileiro de Turismo 1564 informa que,

Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –


IPHAN desde 1939, São Cristóvão esta situada à cerca de 25 km de Aracaju.
A primeira capital sergipana é também a quarta cidade mais antiga do Brasil.
O município desenvolveu-se segundo o modelo urbano português, em dois
planos: a cidade alta, onde fica a sede do poder civil e religioso; e a cidade
baixa, com o porto, fábricas e a população de baixa renda. São Cristóvão
preserva um incrível patrimônio de arte sacra. O museu instalado na Igreja e
Convento de São Francisco é considerado o terceiro mais importante do País
em número e qualidade de peças expostas. A maioria dos monumentos de
São Cristóvão está concentrada na Praça de São Francisco, constituindo o
centro histórico da cidade. Entre as construções destaca-se a Santa Casa da
Misericórdia, belo conjunto barroco construído no século XVII; e a Igreja e
Convento de São Francisco, datada de 1693, onde funciona o Museu de Arte
Sacra. Na cidade há também o Museu Histórico, instalado no antigo palácio
provincial; e o dos Ex-votos, na Igreja e Convento do Carmo. Ali vive-se o
simbolismo da cultura nordestina e a força da fé. Entre outras edificações
que também merecem uma visita, estão as igrejas de Nossa Senhora da
Vitória; de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; o Mosteiro de
São Bento; e o Convento da Ordem Terceira do Carmo. Não deixe de
percorrer, ainda, os sobrados. O destaque fica por conta daquele localizado
na antiga cadeia pública; o da rua das Flores e da Castro Alves e o Sobrado

1564
Disponível em:
<http://www.braziltour.com/site/br/cidades/materia.php?id_cidade=8840&regioes=4&estados=25> Acesso em:
27 de Fevereiro de 2008.

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de Balcão Corrido, com forte influência mourisca, provavelmente do século


XIX.

O principal espaço para as manifestações profanas e religiosas é a Praça São


Francisco. As comemorações religiosas do convento franciscano e das outras Ordens, através
das quermesses, missas campais e procissões fazem desse espaço, manifestação de fé e
devoção da religião cristã. Também têm espaço na praça, os festejos profanos, como o
Carnaval, o São João, a Cidade da Seresta e o Festival de Arte de São Cristóvão.
O município é um “museu a céu aberto”, os seus monumentos são marcos de
acontecimentos do passado que refletem no presente, fornecendo subsídios para quais ações
tomar em prol do espaço urbano, dos residentes e identificando as pessoas com a sua cultura e
historia. As suas edificações, o acervo de arte sacra, de objetos históricos, de religiosidade
popular, evidenciam o modo de ser, viver e pertencer dos seus moradores.
São Cristóvão é sem dúvida, um pólo de história, arte, cultura e turismo,
referência para a identidade nacional.

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ENTRE FEIRANTES E CARREGADORES: UM ESTUDO ESPAÇO-


SOCIAL DO MERCADO ANTÔNIO FRANCO DE 1926 A 1949

Kelly Cristina Santos Lino – Unit


kellyliz06@hotmail.com
Rafhael Almeida Oliveira – Unit/UFS
rafhahist@yahoo.com.br
Prof. Msc. Sheyla Farias – Unit (Orientadora)
sheylafarias@yahoo.com.br

A presente pesquisa, em fase de conclusão, nasceu do interesse em compreender a partir do


ideal de sociabilidade como o Mercado Antônio Franco localizado, no centro comercial de
Aracaju, pode ser visto como local onde se estabelece determinadas formas de relações, além
daquelas pré-determinadas pela sua funcionalidade econômica, entre os diferentes agentes
sociais lá existentes durante os anos de 1926 a 1949. Com isso, objetivamos analisar como
espaço público favoreceu a integração de diversas classes sociais, etnias e religiões
destacando a importância das relações existentes dentro e fora do ambiente arquitetônico.
Logo, a presente pesquisa enfatizará os seus espaços internos como também os externos que
serviram outrora como ponto de encontro entre todas as camadas da sociedade sergipana
daquela época. Contudo é de grande importância destacar o papel desempenhado pelo
Mercado Antônio Franco, como espaço de representação social que vai além das simples
relações comerciais de compra e venda de gêneros permanecendo até os dias atuais como um
espaço de sociabilidade.

Palavras - Chaves: Mercado Antônio Franco – Espaço – Sociabilidade

I – VISÕES SOBRE A CIDADE E O MERCADO

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“Os sentidos enganam!”1565. Esta é uma afirmação que pode ser aplicada a alguns
sentidos dados à cidade. Isto pode ser explicado pela mutabilidade do espaço e das relações
1566
do homem com o meio dentro do contexto urbano . Os espaços e as construções são
constantemente derrubados ou/e modificados com o decorrer do tempo assim como a própria
noção de cidade.

Por exemplo, a noção de cidade que se constrói ao dar uma volta pelas ruas de
uma capital dentro de automóvel está associada à idéia de um ambiente antagônico ao campo.
Composta por estruturas em concretos, tendo cada uma delas uma finalidade específica dentro
do espectro urbano – como comércio, ensino, lazer entre outras. Estas que por sua vez
acabam sendo homogeneizado apenas no conceito de cidade 1567.

Essa “materialidade urbana”1568, fria e sem vida, se desconstroí pelo simples ato
de andar pelas suas ruas e prédios. Percebendo que cada espaço do perímetro urbano possui
suas regras e formas de sociabilidades específicas. Existe a vida dentro da cidade.

Pesavento ao afirmar que a “(…) paisagem urbana é sempre uma paisagem social
fruto da ação da cultura sobre fruto da ação da cultura sobre a natureza, obra do homem a
transformar o meio ambiente.”1569 humaniza a concepção de cidade apesar de estar associando
a sua própria existência e mutabilidade a relação que homem estabelece com a natureza. A
relevância do campo social dentro do perímetro urbano é exaltada também por Gilmar
Mascarenhas quando este afirma que “Desde a remota experiência grega, a cidade é o lugar
do encontro. Não existe cidade sem espaços de uso comum”1570, destacando a importância das
subjetividades urbanas; não a partir de uma concepção egocentrista de ver os seres históricos,
mas a partir das suas “redes” sociais que se estabelece nos “espaços de uso comum” da
cidade. Ressaltando a importância dos estudos do seu cotidiano.

1565
Expressão elaborada a partir do pensamento de Descartes, o qual afirma em um dos seus textos que “Tudo o
que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos:
algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos
enganou uma vez.”
1566
Essa mutabilidade pode ser percebida a partir da necessidade do homem contemporâneo ao seu tempo
instituir o poder sobre aqueles que um dia o obtiveram. Partindo de uma noção que o poder pode ser identificado
a partir das suas formas de institucionalização e de que este não é objeto de posse de um determinado grupo ou
indivíduo específica sendo uma variável a depender de inúmeros aspectos como o espaço, o tempo e as relações
de sociabilidade.
1567
Noção comumente construída a partir do senso comum.
1568
Termo associado à noção de cidade a partir de concepções arquitetônicas.
1569
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto”. In: Narrativas da
pós-modernidade na pesquisa histórica, 2005, p. 114.
1570
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, s.p.
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Ao trabalhar com a crítica do sujeito e da história de Foucault, César Candiotto,


aonde este trabalha com as concepções de fim da história e da arqueologia do saber, cita que

Na epistémê da História, a importância é invertida. O espaço aparece como


pano de fundo e o tempo é deslocado para o primeiro plano. Configurações
de saber tais como a biologia, a filologia e a economia deixam de ser
representadas num quadro liso; seus objetivos respectivos, a vida, a
linguagem e o trabalho, adquirem volume próprio e historicidade
específica.1571

No entanto o que Foucault pretendia era a construção histórica a partir do


entrelaçamento do espaço e do tempo, pois essas estruturas lógicas também são, a partir do
discurso, passíveis de transformações. Sendo assim, a partir da desvalorização das estruturas
lógicas e o emergir da subjetividade, uma história dos indivíduos da cidade – e não uma
história da cidade – poderá ser realizada.

Para o campo histórico, torna-se ineficiente o estudo do espaço sem a existência


do social, afinal foram os sujeitos que construíram os espaços urbanos. Procura-se vida,
cotidiano e as relações sociais dentro das paredes frias da cidade, das estruturas de poder,
dentro dos próprios mercados.

Como já foi dito anteriormente, os subespaços urbanos ou “espaços de uso


comum” são constantemente homogeneizados ao conceito social de cidade. Conceito este que
é apenas trabalhado em estudos associados à História da vida e do trabalho – particularmente,
a do operário industrial -, a História das elites e a História das esquerdas. Quando não os
trabalhos encontram-se voltados as questões arquitetônicas ou aos estilos artísticos.

Sempre a cidade foi vista como o campo de batalha entre o popular e a elite,
“donas do poder”. Deixando-se um abismo ao se referir às relações interpessoais e
intrapessoais dos sujeitos urbano, das formas de microfísica do poder e de biopoder entre os
indivíduos, e sua relação com os espaços de sociabilização dentro da cidade.

Partindo da afirmação que “(…) uma Cidade abriga todos estes tipos de espaços
construídos, em múltiplas combinações possíveis, por superposição, substituição ou
composição”1572. Pressupõe-se que por sua grande diversidade é um pecado trabalhar com a

1571
CANDIOTTO, César. Foucault e a critica do sujeito e da história. In: Revista Aulas. 2006/2007, p. 8.
1572
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto”. In: Narrativas da
pós-modernidade na pesquisa histórica, 2005, p. 115.
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cidade, partindo da sua dialética com o social, agrupar os indivíduos urbanos em uma única
concepção. Afinal o comportamento humano se modifica de acordo com o ambiente em que
se encontra o sujeito. E dentro deste, outros subespaços serão construídos. E é a partir destas
subdivisões deixa-se de encontrar os espaços, para alcançar a subjetividade humana.

Esses múltiplos espaços dentro da cidade ou subespaços urbanos devem ser vista
na mesma perspectiva que trabalha Mascarenhas.

A grande cidade de nossos dias é um inconstante mosaico de espaços de


sociabilidade. A coexistência de tempos, agentes e processos os mais
dispares, confere à vida metropolitana grande diversidade e riqueza de
possibilidades. Possibilidades de realização do lucro, de formas de
sobrevivência material imediata, de festa, não obstante a existência de
normas e limites de uso e apropriação do território urbano. Cada um desses
momentos de realização da reprodução social dos homens simples da
metrópole contém suas formas específicas de sociabilidade.1573

Como já foi afirmado dentro desse âmbito maior chamado cidade, existem os
subespaços urbanos. Cada subespaço possui uma finalidade própria que deve garantir a
harmonia e a existência das formas de relações social dentro da cidade. Por exemplo, os
presídios devem – que não é a mesma coisa de poder – afastar das relações urbanas os sujeitos
que são considerados “perigosos” para a existência e os gozos das vidas individuais e
coletivas. Outro exemplo são os Mercados, que tem por finalidade o fornecimento de
mercadorias para os habitantes da cidade facilitando o encontro dos sujeitos urbanos com os
gêneros alimentícios e outros objetos que garantem a existência de vida fora do mundo rural.

Dentro dessa finalidade, rege as relações de vida e poder entre os indivíduos. Por
um objetivo uma série de cadeias de relações sociais é construída. O Mercado tem suas
relações internas principiada por um pressuposto de caráter comercial estabelecendo logo em
seguida subligações entre os freqüentadores daquele espaço como as relações entre
consumidor e feirante. Observa-se assim que a coluna vertebral que sustenta as relações
sociais ali existentes é o fato de esse subespaço fornecer subsídios para a sobrevivência dos
indivíduos dentro da cidade.

Partindo desse pressuposto, este artigo objetiva – o qual faz parte de uma pesquisa
monográfica – identificar as peculiaridades dos sujeitos históricos os quais estabeleceram
relações de poder que freqüentavam o Mercado Antônio Franco. Um estudo sobre o antigo

1573
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, p 1.
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Mercado Modelo, localizado na capital sergipana, entre o período de 1926, data da sua
inauguração sendo que o batimento de sua primeira pedra ocorreu em 1923, a 1949, ano da
inauguração do “Mercado Auxiliar”, futuramente conhecido como Mercado Thales Ferraz.
Logo em seguida, serão apontados os micros espaços de sociabilização existentes dentro e nas
proximidades do mercado, cada um com um determinada importância para a construção
histórica daquele espaço, símbolo da cultura e da tradição popular de Aracaju. Símbolo da
vida de um povo urbano.

II – IDÉIAS SOBRE FEIRAS E MERCADOS

Antes de este texto identificar quais são os sujeitos e os espaços de sociabilidade


do Mercado Antônio Franco1574 deve-se deixar claro que os termos “Feira” e “Mercado”, aqui
são utilizados sinonimamente; pois o que torna significativo para a diferenciação desses
conceitos no segundo quartel do século XX1575 é a idéia de que “Mercado” é uma feira
aglomerada dentro de um edifício, dividida e distribuída em vários compartimentos. Devendo
estas construções seguir determinados padrões como o estabelecido pela Ata da 10° sessão do
Conselho Municipal de Aracaju, de 22 de Abril de 1913, que concede autorização para
construção da obra, mas que não acontece, para Francisco de Andrade de Mello, devendo este
seguir padrões de higiene e salubridade pública. Padrões que objetivavam – a primeiro
momento – transformar Aracaju num lugar bom para se viver para se morar ou uma forma
para retirar os feirantes que se expandia por toda a Rua da Aurora1576 que nos dias de feira
escondia as fachadas dos casarões ali existentes? Uma dúvida que fica para os futuros
interessados.

Em Sebrão Sobrinho ao transcrever um trecho o Relatório de 4 de março de 1872,


escrito pelo Dr. Luis Álvares d’Azevedo Macedo “Era de urgente necessidade e de summa
conveniencia acabar-se com tão anti-civilizador mo de se fazer o commercio miudo”1577 e

1574
Artigo construído a partir de um trabalho de conclusão que ainda está em fase de conclusão pelos mesmos
autores. Por isto aqui neste artigo tentar-se-á evitar a realização de analises das relações ali existentes como, por
exemplo, as relações de poder a partir de uma perspectiva foucaultiana ou a relação dos sujeitos com o próprio
mercado. Estes que são os objetivos do trabalho monográfico que ainda está em faze de conclusão.
1575
Tornando-se errôneo este tipo de associação conceitual quando aplicado para as comunidades
contemporâneas
1576
Atual Avenida Rio branco que ficou e ainda é conhecida como Rua da Frente.
1577
SOBRINHO, Sebrão. Laudas da história de Aracaju. 1954, p. 400.
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justifica a construção de um mercado, pois este “(…) apresenterá a cidade melhor aspecto,
que caracterizará a índole e a civilização do povo de Sergipe”1578. Isso nos faz indagar a que
tipo de civilização o Dr. Luis Álvares se referia? Qual era esse “padrão de civilização” que o
povo deveria se remodelar?

Partindo das concepções de “revolução passiva” de que toda mudança social,


política e até mesmo cultural ocorre de cima para baixo e das micro-formas que se
estabelecem as relações de poder. Conclui-se que civilizar era tornar a sociedade sergipana no
final do século XIX era europeizar a população. Trazer tudo que lembra o branco europeu
excluindo ou estabelecendo relações pessoais característicos de uma sociedade disciplinar,
através das instituições como a escola.

No intuito de civilizar, aglomeraram os feirantes em um edifício, mesmo assim a


vida no Mercado continuou a existir tanto internamente quanto externo ao prédio. Como
prova Fernando Porto relata sobre a existência do dia de feira, domingo e segunda-feira,
aonde a feira se expandia por todas as ruas adjacentes ao mercado (Hoje as Rua Santa Rosa,
Rua José do Prado Franco, Avenida Otoniel Dória, no Beco dos Cocos e etc). Apesar do autor
não definir quais eram os limites de expansão desta feira, afirma somente que a feira crescia
na mesma intensidade que a população aracajuana. Havendo também, segundo Porto, o dia de
mercado onde a feira só acontecia no interior do edifício 1579.

Apesar dessa limitação de concreto, deve se lembrar que ali é um espaço de


sociabilidade. Outros conceitos de mercados ressaltam os aspectos sociais dentro desse espaço
que a primeira vista é puramente econômica. Conceito como o apontado por Paulo Sandroni,
em “Novíssimo Dicionário de Economia”, quando afirma que as relações de compra e vendas
podem ser alteradas pelo contato entre compradores e vendedores, dessa forma

Em sentido geral, o termo [mercado] designa um grupo de compradores e


vendedores que estão em contato suficientemente próximo para que as trocas
entre eles afetem as condições de compra e venda dos demais (...). Desse
modo o mercado pode ser entendido como local teórico ou não do encontro
regular e entre compradores e vendedores de uma determinada economia.1580

1578
Idem. p. 401
1579
PORTO, Fernando. Nomes Antigos do Aracaju 89-90.
1580
SADRONI. Novíssimo Dicionário de Economia. 2002, p.
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Outros conceitos são de tamanha importância para esta pesquisa como o apontado
por Letícia Barbosa e Patrícia de Araújo, ampliando o significado cultural do local conhecido
como feira, mostrando neste texto sua importância educacional, pois este espaço

Historicamente, as feiras adquiriram uma importância muito grande que


ultrapassa seu papel comercial, transformando-se, em muitas sociedades,
num entreposto de trocas culturais e de aprendizado, onde pessoas de várias
localidades congregavam-se estabelecendo laços de sociabilidade. 1581

Mascarenhas conceitua feira não como um local apenas de aglomeração dos


anônimos da história, mas uma das tradicionais estruturas da vida cotidiana que enfraqueceu
com os abalos da modernidade1582.

Sabendo agora, o que é uma feira, além da simples noção de um espaço


responsável pelo fornecimento dos gêneros alimentícios ou simples espaço movido pelas
relações comerciais, deve-se agora analisar quem eram esses sujeitos que andavam pelas ruas
e bancas do Mercado Antônio Franco.

III – SUJEITOS E SUBESPAÇOS DO MERCADO ANTÔNIO FRANCO (1926-1949)

Alguns problemas persistem ao ato de identificação desses sujeitos e subespaços


do Mercado Antônio Franco. O primeiro de todos é que estamos trabalhando com sujeitos que
raros são os seus rastros históricos, e por isso alguns vazios até a conclusão deste trabalho
tornaram-se incapazes de serem preenchidos. Foram utilizadas algumas fontes, na busca de
dados referentes aos feirantes, como os jornais da época, exclusivamente o Correio de
Aracaju, processos criminais que se encontram seguramente conservados no Arquivo Geral
do Poder Judiciário de Sergipe/ AGPJS e algumas fontes orais.1583

Ao se trabalhar com História Oral, dois problemas apareceram. Primeiro é a


recusa de alguns feirantes justificando que estavam cansados de serem enganados e o receio

1581
BARBOSA, Letícia Rameh & ARAÚJO, Patrícia Cristina de Aragão. Feira, lugar de cultura e educação
popular. In: Revista “Nova Atenas” de Educação Tecnológica. p. 2
1582
MASCARENHAS, Gilmar. Feiras livres: informalidade e espaços de sociabilidade. In: Anais do Colóquio
Internacional Comércio, Culturas e Políticas Públicas em termos de Globalização. 2005, p 2
1583
Como o trabalho ainda está em andamento, a coleta de depoimentos é um dos procedimentos que estão em
andamento. E a localização de alguns espaços foi baseada em conversas informais, já que é comum,
metodologicamente, que as primeiras aproximações entre o pesquisador e o entrevistado não ocorra de forma
oficial, ou seja, sem a presença do gravador.
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de outras pessoas ao serem entrevistadas pressupondo a utilização da entrevista para algum


mal-feito. O segundo problema é o próprio recorte cronológico da pesquisa, para os dias
atuais são quase 80 anos de diferença, encontrar pessoas que viveram aquele momento e que
ainda estejam vivas atualmente, é uma verdadeira caça ao tesouro. Cinco jóias raras foram
encontradas ainda na ativa nos Mercados Centrais, perola que passaram a sua infância no
mercado. Para conseguir trabalhar com a memória partimos do pressuposto que Michael
Pollak, em seu artigo “Memória e Identidade Social”, aponta ao responder quais são os
elementos constitutivos da memória, e este divide em três elementos: os acontecimentos, os
personagens e os lugares. Ao trabalhar com a idéia de acontecimento este ressalva o seguinte:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em


segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por
tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa a sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem
sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no
fim longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os
eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou
grupo1584.

Dessa forma é possível trabalhar com “A memória da memória” da comunidade


em que o entrevistado viveu, através do imaginário.

Como deu para perceber pelo perfil das entrevistadas, era comum ainda na
infância irem para o mercado crianças a fim de trabalharem para vender geralmente frutas e
produtos derivados do fubá e da tapioca, outras abasteciam seus cestos e saiam pelas ruas a
vender frutas e legumes. Até hoje é comum ver crianças trabalhando nas feiras da cidade de
Aracaju – vendendo, carregadoras. Evitando-se colocar em uma perspectiva temporal, de
forma generalizada são utilizados pelas antigas crianças trabalhadores de feiras com as de
hoje a mesma justificativa para a sua entrada logo cedo no mercado de trabalho, que é o
auxilio econômico a família desempregada.

A partir das transformações sociais que marcaram o inicio do século XX e com o


intuito de modernizar e embelezar a cidade foi construído o Mercado Modelo (Mercado
Antônio Franco) localizado fora dos limites da zona de expansão do quadrado de Pirro. Este
mercado foi construído no intuito de agrupar toda feira que se estendia em toda Rua da
Aurora. “Mudada não, empurrada. A cada semana, os feirantes eram levados para pontos mais

1584
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. p. 202.
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próximos do novo Mercado”1585, como relata Porto. Mas para a realização desta obra o poder
público precisou do financiamento da iniciativa privada, esta que pode ser chamada de
Coronel Antônio Franco.

Por financiar o fim da obra do Mercado Modelo, o capitalista Antônio Franco,


teve como direito usufruir dos direitos de aluguel daquele estabelecimento até o momento em
que a Intendência municipal reembolsasse o dinheiro investido da obra.

Por muito tempo a aquisição do Mercado foi um dos principais objetivos da


Intendência de Aracaju. Um exemplo é o relato existente no Correio de Aracaju de
26/06/1930 ao se referir ao governo de Theophilo Dantas quando afirma que “A acquisição
do Mercado Municipal é um actos de benemerencia do operoso a honrado prefeito”, logo após
relatar o pagamento de 25 contos de réis pela atual prefeitura. Somando assim a 800 contos o
valor dos pagamentos feitos referentes do contrato entre a Intendência e o cel. Antônio
Franco, valor equivalente a metade da dívida. Foram de enorme importância a ligação entre a
imprensa, o povo e o poder público; geralmente os jornais eram escritos para o gosto popular
e por isso fica apenas como uma indicação um estudo de maior intensidade as relações entre a
imprensa e o poder público.

O abuso das taxas de aluguéis refletiu diretamente no cotidiano dos feirantes e


consumidores do Mercado Modelo. Fenômeno que refletiu até mesmo durante o primeiro ano
de vivência do Mercado Modelo de Aracaju, como cita o Correio de Aracaju de 31/08/1926
expondo várias reclamações de consumidores referindo-se a exorbitância dos preços, aumento
este que deve ser mais bem pesquisado tanto de uma perspectiva econômica como social.

A relação entre consumidor e comerciante – relação básica de sociabilidade


dentro de um espaço voltado para as atividades comerciais – no Mercado Modelo no seu
primeiro ano de existência foi marcada pela variação abusiva dos preços dos gêneros
alimentícios, fator que agiu negativamente no cotidiano desses indivíduos. Caos que
favoreceu o surgimento de um novo “Mercado de Verduras”, no Beco do Assucar1586 atrás do
antigo Mercado da Assistência.

O caos não foi apenas criado pelos consumidores, os inquilinos de bancas em


1926 também estavam inconformados com os altos preços de aluguéis. Até falência foi

1585
PORTO, Fernando. Alguns nomes antigos do Aracaju, 2003, p. 89-90
1586
Beco entre a Avenida Rio Branco e Rua João Pessoa que liga a Rua São Cristóvão a Rua Laranjeiras,
atualmente conhecido como travessa Deusdédite Fontes.
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registrada como o caso de Luís Dias da Silva em 1926 que por entrar em falência queimou o
livro de contabilidade no intuito de causar um incêndio e ganhar o dinheiro do seguro1587. Tão
caros que não propiciaram a formação de lucro sendo este fenômeno criticado pelo Correio de
Aracaju de 20/07/1926 onde “É muito justa tal lembrança, devendo assim ser attendida pelos
ricos donos do Modelo”.

Exploração é o termo que pode ser economicamente definidora das relações bases
entre Consumidores/Mercadores/Administradores do Mercado Antônio Franco, mas
socialmente falando a fúria foi a características marcantes desse tipo de relação que se dá nos
primeiros anos de existência do Mercado. A fúria sempre traz o caos, como a volta da feira
para o local de onde foi retirada.

Outros sujeitos foram encontrados como os mendigos e bêbados como relata o


surto de mendicância que se dá na capital aracajuana na década de 1940 de acordo com o
Correio de Aracaju quando relata a criação da S.A.M (Sociedade de Apoio a Mendicância), e
em 11/09/1948 afirma que

Ninguém póde evitar a visão dantesca de legiões de homens, mulheres e


crianças maltrapilhas, chagosas, miseraveis, a perambular, sem destino, pelo
comércio, nos mercados, nas praças, implorando a pública caridade.

No entanto, nesta mesma reportagem o jornal faz um alerta aos “falsos mendigos”
que para viver na ociosidade parasitavam entre os realmente necessitados.

Outro grupo de ociosos chamou atenção do Correio de Aracaju em 29/08/1929,


denominando-os de boateiro, indivíduos com ar de revolução que percorria todos os cantos da
cidade – praças, cafés e mercados – a espalhar falsos debates. Seres

Bellimaniacos incorrigiveis, vivem os boateiros a sonhar com revoluções,


com movimento de tropas para o sul e para o norte, como explodir de
granadas e ribombar de canhões. Das profundezas de sua imaginação
exaltada essa gente tira as mais alarmantes notícias, que são transmitidas
com a rapidez de um raio para todos os recantos da cidade.

Com boatos e bastante imaginação, qual foi impacto da morte de João Pessoa e da
Revolução de 1930 na imaginação popular dos aracajuanos? Alguns vazios existe na
historiografia sergipana.

1587
AGPJSE, Processo Crime – Caixa 2555
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Outro grupo que lucrou sócio, econômico e sexualmente nas ruas e trapiches que
rodeavam o mercado foram às prostitutas, as quais tiveram seus principais subespaços de
sociabilização: os edifícios conhecidos como Vaticano e o Beco dos Cocos.1588

As prostitutas foram e ainda são símbolos da vida urbana. A busca do prazer, a


mudança do cotidiano. Para Raminelli, a prostituição é a marca registrada das noites nas
cidades capitalistas, acusando que “O espaço urbano e as massas são, portanto, os
responsáveis pela difusão e pelo fascínio que as meninas da noite exercem sobre os
homens”1589; no entanto deve-se deixar claro que a prostituição não ocorre somente nos
centros urbanos e entre as diversas formas de prostituição todas não se resumem apenas a
realização do sexo nas noites urbanas.

O mercado tornou-se propício para a realização de tais profissões por ser uma
região de grande aglomeração masculina. Além que segundo Vrissimtzis deste os tempos
gregos a prostituição em portos é um ato comum e constante, pois ali se apresenta “um grande
número de estrangeiros, sobretudo marinheiros e mercadores, alguns ricos (…). Era, por tanto,
1590
natural que particularmente a prostituição se desenvolvesse nesse ambiente” . Até aquele
período de grande movimentação na barra do Rio Sergipe, trazendo marinheiros e mercadores
de todo o Sergipe e outros Estados.

Aracaju, cidade construída principalmente pela iniciativa privada, teve entre as


atuais Avenidas Otoniel Dória e Avenida Rio Branco, construídas 10 sobrados pelo capitalista
José da Silva, com o intuito de alugar quarto e compartimentos nas proximidades da zona de
ocupação de Aracaju. Pela grandiosidade da obra aquela região ficou conhecida como
Vaticano “e durante algum tempo os andares ocupados por meninas da mais antiga profissão”.
O outro núcleo de prostituição foi o Beco dos Cocos, local onde de acordo com conversas
informais fornecia residências para essas “mulheres solteiras”, e de acordo com Fernando
Porto foi uma região que serviu de deposito para os feirantes que só podiam comercializar ali
nos dias de Feira (Domingo e Segunda-Feira).

Outro ponto de comércio foi a “Peda”, era o local que ficava entre as Ruas Santa
Rosa e Rua Japaratuba (atual José do Prado Franco). Alguns locais de sociabilização ali se

1588
Vaticano localizado na Avenida Otoniel Dória e o Beco dos Coco que liga a Praça General Valadão a Rua
Santa Rosa.
1589
RAMINELLI, Ronald Raminellu. “História Urbana”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS,
Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. p. 196-197.
1590
VRISSIMTZIS, Nikos A. “Prostituição”. In: Amor, Sexo e Casamento na Grécia Antiga. p. 91.
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estabeleceram como o famoso Bar Magnífico localizado no ângulo norte e que serviu como
palco da inauguração do Mercado Modelo, reunido astros da intelectualidade e da política
sergipana. Outro local importantíssimo foram duas praças que foram construídas ao redor do
mercado: A primeira ficou conhecida como Ignácio Barbosa (onde hoje é o Mercado Thalez
Ferraz) separou o Mercado Modelo da Estação Férrea. Foi cenário do comércio intenso de
animais e dos estivadores que descarregavam os navios e trens que viam lotados de frutas e
imigrantes que viam com o “sonho sergipano” de felicidade.. Como ilustra a seguinte figura

]Foto I: Praça Ignácio Barbosa (1935)


Acervo: Acervo Fotográfico Vereador Narciso Machado

Foto ilustrativa à Praça Ignácio Barbosa (atual Mercado Antônio Fraco) em 1935

A outra praça ficou conhecida como Praça das Sete Lâmpadas, separando o
mercado do Rio Sergipe, ficou por um bom período bloqueado por causa da grande
quantidade barracas ali estabelecido, mas “seria um lume, a testemunhar o movimento dos
saveiros, chegando e saindo com suas grandes velas, os navios de passageiros (…)”1591.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

1591
BARRETO, Luis Antônio. p. 2
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O Mercado Antônio Franco é verdadeiramente um “Caldeirão de História”.


Histórias riquíssimas que precisam emergir dos vazios historiográficos. Completar esses
vazios que até o momento a historiografia sergipana vem deixando. Neste artigo pretendemos
trazer os sujeitos da escuridão histórica, indivíduos que andaram de bondes e martinetes,
vendo a cidade evoluir, indivíduos que andaram pelas ruas aracajuanas admirando a vida que
nela exista. Além dos sujeitos, os espaços ou cenários das representações sociais que foram
estabelecidas e modificadas com o evoluir das tecnologias. Outros espaços não foram tocados
como os bares do lado externo do mercado, cenário das famosas rodas de sambas entre
amigos ou o Bar e Restaurante São Pedro, local de encontro de estudantes, estivadores e
marinheiros, segundo Mario Cabral.

Através da Antropologia Urbana, alguns vazios foram deixados neste texto para
aqueles corajosos amantes da História Cultural. Também, alguns temas foram sugeridos para
a “História dos Indivíduos na Cidade”. Mas sempre devemos lembra que existem indivíduos e
relações sociais nas paredes urbanas.

E quanto ao Mercado devemos lembrar que apesar dos maus-tratos e do


esquecimento do homem contemporâneo. Apesar do seu esquecimento, sendo atualmente
trocado pelos Shoppings Center. Devemos sempre lembrar que ele acompanhou
cuidadosamente o crescimento da cidade, ouvindo passos dos homens a procura dos perfumes
femininos nas noites no Vaticano. Vendo a vida dos homens, passar.

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ENTRE TRILHOS E CAMINHOS: OS BONDES EM ARACAJU, NO


PERIODO DE 1900 À 1950.

Luciana de Souza Santos – UNIT


luciana_aracaju@hotmail.com
Maria Carla Andrade de Carvalho – UNIT/UFS
louracarla@hotmail.com
Profª Msc. Sheyla Farias Silva – UNIT
sheylafarias@yahoo.com.br (orientadora)

A presente pesquisa, nasceu do interesse de compreender como a população aracajuana se


deslocava no período de 1900 à 1950. Pesquisa baseada em periódicos, como Jornais; Diários
Oficiais e bibliografias disponíveis. Para tanto, objetivamos saber como Aracaju evoluiu com
relação aos meios de transportes e se estes atendiam à sua população. Abordaremos o
crescimento econômico da Cidade de Aracaju. Fatos de suma importância para conhecermos
como essa Cidade interligou seu território através dos transportes. Constatamos que a Capital
sergipana possuía um sistema de transporte coletivo terrestre realizado por bondes a tração
animal e bondes elétricos, e que este sistema era deficitário. Não atendia a toda população
aracajuana, além de não possuir uma regulamentação de horários e itinerários, dentre outros
problemas, como por exemplo, a lentidão para se percorrer um determinado percurso.

Palavras - Chaves: Cidade; Transporte; População.

A necessidade de deslocamento do ser humano é algo que existe desde tempos


remotos. Com o desenvolvimento e evolução das cidades, os indivíduos passaram a ter a
constante necessidade de se deslocarem, procurando gastar o menor tempo possível, foram
surgindo dessa maneira os meios de transportes. Estes surgem em decorrência do crescimento
das cidades que alarga os percursos, as distâncias entre um ponto e outro, vai exigindo do
homem um esforço maior e mais tempo para chegar ao local desejado, por isso as caminhadas
a pé passam a ser complementadas pelo uso de veículos que o auxiliem no deslocamento.

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Segundo Fernando Mendonça (1990), em sua obra Direito dos transportes, o


primeiro meio de transporte utilizado pelo ser humano teria sido a mulher. Esta ficava
encarregada de conduzir os objetos e as crianças. Ao homem cabia a provisão de alimentos,
através da caça, e também a defesa contra ataques inesperados, por isso precisava ter os
movimentos livres.

“o primeiro meio utilizado foi a própria força humana, fosse


deslocando o objeto nos braços, ombros ou cabeça, fosse, para
tanto, puxando ou empurrando algum instrumento“. (MENDOÇA,
p.5).

Com o passar do tempo, o homem deixou de andar a pé e passou a utilizar animais


para o desenvolvimento de seu percurso. Aprendeu a domesticar animais irracionais e utilizá-
los em suas atividades do cotidiano. Como por exemplo, na agricultura, no transporte da
colheita. Diversos animais foram utilizados, dente eles é possível destacar o elefante, o
camelo, o búfalo, o cavalo. O cavalo e o boi, por muitas vezes serviram e ainda servem tanto
para a montaria como para transportar cargas em seus dorsos ou arrastá-las, principalmente,
nas carroças e carros, a partir do momento em que o homem inventou a roda.

A roda foi um meio que o ser humano inventou para utilizar a força (energia) de
determinados animais irracionais em suas atividades diárias. O surgimento dela veio a facilitar
o transporte de objetos pesados, melhorando o deslocamento do ser humano e de suas
mercadorias.

A palavra transporte é derivada do latim, transportare (trans = de um lado a


outro; portare = carregar). É uma palavra que denota um sentido de ação de conduzir
pessoas ou coisas de um determinado lugar para outro. Existem algumas modalidades de
transportes, estes podem ser terrestres, aquáticos ou aéreos

Os transportes terrestres realizam-se por meio de terra firme. Eles são divididos
em: rodoviários, como por exemplo, o ônibus, o carro; os ferroviários, que são feitos através
de estradas de ferro, como por exemplo, o bonde, o trem, o metrô; e ainda os de recovagem,
transporte que se faz através do lombo de animais, como por exemplo, a carroça, neste
poderia se encaixar o bonde à tração animal, visto que estes eram puxados por muares.

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Para que possamos falar sobre o desenvolvimento dos transportes coletivos feitos
por bondes na cidade de Aracaju, é necessário primeiro, falarmos sobre como esta cidade se
estruturou, por exemplo, como ela surgiu, a necessidade de seu crescimento, como isso
ocorreu, para então chegarmos ao fator deslocamento, o porquê os seus habitantes utilizavam-
se de meios de transportes para se locomoverem.

Aracaju, segunda e atual capital do Estado de Sergipe, de 1855, data da sua


fundação, até 1900 estava ainda sobre efeito das mudanças ocorridas com a transferência da
capital do Estado. A primeira capital foi á cidade de São Cristóvão.

A nova capital surgiu da necessidade de se construir um porto na boca do estuário


do rio Sergipe para a troca e venda de mercadorias, pois o comércio era realizado, em grande
parte, através das bacias hidrográficas do país. Ela foi construída em uma região bastante
arenosa, caracterizada pela presença de dunas, mangues, pântanos e lagoas.

A principal ocupação da nova capital sergipana iniciou-se na duna ao longo do


estuário do rio Sergipe, correspondendo hoje ao espaço que vai da Praça General Valadão até
a Rua São Cristóvão. Era uma zona delimitada ao leste pelo Rio Sergipe, ao norte pelos
mangues do riacho Olaria, a oeste pelos pântanos do Caborge e ao sul por uma depressão
inundável, e após vários aterros esta depressão é hoje ocupada pela Praça Fausto Cardoso.
Segundo PORTO (1991), a Cidade nasce numa “ilha”.

Sebastião Pirro foi o engenheiro responsável pelo planejamento de Aracaju. O


plano dele resumia-se a um alinhamento das ruas, cruzando-se em ângulos reto, como um
“tabuleiro de xadrez”. Dentro de um quadrado de 540 braços de lado estavam traçados
quarteirões iguais de forma quadrada, com 55 metros de braços de lado, separados por ruas de
60 palmas de largura, era padrão daquele tempo.

Após a sua fundação, com o passar do tempo, Aracaju foi se desenvolvendo, de


maneira lenta e constante. Durante o primeiro ano de existência, a cidade apresentava um
pequeno numero de edificações ao longo da Rua Aurora (conhecida popularmente como Rua
da frente). A partir de 1856 foram iniciadas varias obras de aterros em áreas alagadas,
abertura e melhoramento de muitas ruas. É possível constatar esse desenvolvimento no trecho
abaixo:

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“(...) foi edificada a Igreja de São Salvador (atual Rua das Laranjeiras) com a
Rua do Barão (atual João Pessoa). Houve, então, o primeiro movimento da
cidade em direção ao oeste através da estrada para a antiga capital – São
Cristóvão – hoje com o nome de Rua São Cristóvão, no trecho situado
dentro do perímetro urbano.” (RIBEIRO, p. 44).

Segundo a Geógrafa Neuza Ribeiro (1989), houve uma evolução em Aracaju, de


certa forma, espontânea e desordenada. Com a construção da Igreja da Matriz, por volta de
1869, foram surgindo algumas construções em suas imediações. E com a inauguração da
primeira fábrica de tecidos, em 1884, houve um ligeiro crescimento para o norte, dando
origem posteriormente ao Bairro Industrial. A própria construção dos edifícios públicos,
supostamente estes não estavam presentes no Plano de Engenheiro Pirro.

“Os edifícios das repartições administrativas, as igrejas e o hospital foram


levados muito livremente, ao arbítrio de seus construtores e das
circunstâncias do momento, não nos tendo chegado nenhuma demonstração
de que sua posição obedeceu a um plano prévio”. (PORTO, p. 32)

Ou seja, não houve um planejamento com relação ao crescimento da cidade, este


aconteceu de forma desordenada, e com o passar do tempo acabou influenciando no bom
desenvolvimento do trânsito de veículos. Pois Aracaju possui algumas ruas e avenidas
estreitas e irregulares, que acaba dificultando o tráfego dos transportes coletivos em
determinadas localidades. Este talvez seja um dos problemas, que a cidade herdou desde os
seus primeiros anos de existência.

Viver em Aracaju, inicialmente não era fácil, no que se refere ao fator econômico,
pois saia muito caro morar na cidade planejada. O perímetro do Plano de Pirro, possuía um
terreno arenoso, o que dificultava as edificações na região. A Câmara Municipal, segundo
PORTO (1991), a partir da segunda metade do ano de 1856 passou a executar algumas
posturas regulamentando as edificações e os costumes de seus habitantes. Eram exigidas, por
exemplo, dimensões para as portas e as janelas; mandavam caiar as frentes das casas, pelo
menos duas vezes ao ano; e em determinados perímetros era proibida a cobertura de casas
com palha.

Portanto, a população menos favorecida financeiramente, ficava proibida de


manter suas moradias dentro do “tabuleiro de xadrez”, e acabaram fixando-se fora do Plano

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de Pirro. “Tudo que ficasse dentro “do quadro da Cidade” tinha que se condicionar,
estritamente, às “pesadas” exigências da Câmara”. (PORTO, 1991, 42).

Ou seja, o fator econômico influenciou no desenvolvimento desordenado da


cidade, e isso fez com que a classe menos abastada da população fixassem moradia fora do
Plano de Aracaju. Esta cresceu para o norte, onde foi estabelecido o Bairro Industrial, a
noroeste o povoado Santo Antônio, extremamente salubre. Com esse crescimento, os bairros
possuíam uma semi-independência do centro da Cidade (plano de Pirro). Porém, existiam os
bondes movidos à tração animal que interligavam os novos bairros a parte planejada da
cidade.

Com relação a essa população que morava longe do centro administrativo da


cidade, “o tabuleiro de xadrez”, muitas pessoas sobreviviam do comércio e para tanto,
necessitavam deslocarem-se de suas casas para exercerem suas atividades econômicas. Para
isso, utilizavam-se do burro, da carroça, porém é do nosso interesse, como foi dito no início
falar dos transportes coletivos feitos por bondes. Segundo Ribeiro (1989), não há dúvidas que
o crescimento da cidade em várias direções só se tornou possível com as facilidades
representadas pelos transportes urbanos.

Na capital sergipana, a circulação dos primeiros bondes aconteceu com o inicio do


século XX. Primeiro vieram os bondes à tração animal, por volta de 1900. Segundo Francisco
Paulo dos Anjos, em artigo publicado no Jornal da Cidade, no ano de 2005, a circulação
desse tipo de locomoção aconteceu durante o período de 1900 à 1930.

Os bondes à tração animal eram compostos por cinco bancos, onde cada um tinha
a capacidade de comportar quatro pessoas, ou seja, a sua capacidade total era de vinte
passageiros, além de ser puxados por dois burros. Segundo Diniz, em Aracaju: Síntese de sua
Geografia Urbana (1963), existiam 16 (dezesseis) veículos e uma linha de 8 (oito)
quilômetros.

Uma empresa particular controlava os serviços de viação urbana da cidade, a


Carris Urbanos. O Estado comprou os seus serviços, na época, em 1919. Aracaju foi a última
capital estadual do Brasil a instalar o sistema de bondes com tração animal, este permitia uma
maior extensão no então perímetro urbano construído.

A partir do final da década de 1920 surge o Bonde elétrico, mais rápido que o
antigo, movido à atração animal, porém segundo Murilo Mellins, em Aracaju Romântica Que
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Vi e Vivi (2000), ainda era lento. Aracaju era servida por bondes elétricos vindos da
Inglaterra, eram pequenos, vagarosos, abertos em ambos os lados. Os passageiros tinham o
acesso ao transporte através de dois estribos de cada lado por toda a extensão. Na parte
interior, dez bancos de madeiras em tiras iam de um lado a outro; os encostos eram
removíveis.

Ainda segundo Mellins (2000) o sistema de transportes coletivos era precário, no


sentido de ser lento e referente à manutenção, pois era necessário a constante lubrificação nos
trilhos. Além disso, existia a possibilidade de curto circuito, quando existia a ameaça disso o
motorneiro puxava o cabo que interrompia a conexão elétrica do bonde, evitando assim o
incêndio no motor. Eram freqüentes também meninos levados que puxavam esse cabo para se
divertir, causando transtorno a todos.

Como também eram freqüentes a obstrução das ruas por onde passava o bonde,
fato que fazia com que a população daquela localidade ficasse sem o recurso do transporte, e
em muitas casos o percurso demorava até uma hora para ser feito por um bonde.

Não é difícil constatar em jornais da época os atropelamentos feitos por bonde,


como também a falta de cuidado com o público que utilizava como meio de locomoção.

“Várias pessoas vieram a esta redação reclamar de que os motorneiros da


Tração não atendem, corretamente, ao sinal de parada, que para tomar ou
descer do bonde. Adiantaram que os senhoras não podem mas se utilizar dos
veículos da empresa, a não ser que se submetam a uma queda, ou coisa
semelhante... “(Correio de Aracaju, 1929.)

Apesar dos bondes elétricos serem vagarosos e necessitarem de constante manutenção,


eram meios de transporte limpos e românticos, sendo usados por casais de namorados, que
utilizavam-se deles para fazer passeios românticos. Aracaju foi a única cidade sergipana que
possuiu bondes, e segundo Mellins, possuía cinco linhas de bondes:

A linha número um - Bairro Industrial ou Chica Chavez, percorria as avenidas:


Confiança, João Rodrigues, passava pelo centro entrando na praça Fausto Cardoso, indo pela
avenida Ivo do Prado, passando por toda a avenida Augusto Maynard, descendo a rua de
Itabaiana em direção a João Pessoa e daí ao ponto de origem. No fim de linha, os passageiros
desciam, os encostos dos bancos eram invertidos, o aro era puxado em sentido inverso, o

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motorneiro encaixava a manivela em outro motor que ficava na parte posterior, agora frente,
seguindo seu curso normal.

A linha número dois - Santo Antônio – seu percurso iniciava ao pé da colina,


percorria as ruas do bairro, descia e Avenida João Ribeiro passava no centro da cidade, subia
a Rua de Itabaiana, descia pela Avenida Ivo do Prado, Praça Fausto Cardoso, voltando ao
Bairro Santo Antônio. Este também era um passeio agradável e concorrido, principalmente na
época de festas.

A linha número três – Aribé - essa linha passava pelas ruas principais do atual bairro
Siqueira Campos. A linha número quatro - 18 do Forte - servia ás ruas que demandavam
aquele bairro. A linha número cinco – Circular - subia a Rua Itaporanga, passava pela avenida
Pedro Calazans, Praça da Bandeira, descia a Avenida Barão de Maruim, indo pela rua Arauá
até Itaporanga. Essa linha era usada por moradores do bairro Cirurgia, Caixa D’ Água, Carro
Quebrado, e levava muita gente ao cinema Guarany e aos circos armados na praça da
Bandeira.

Por Volta de 1950 o sistema de transportes por bonde elétrico entrou em decadência,
diversos foram os fatores, podemos destacar a falta de energia elétrica, que fazia muitas vezes
os passageiros esperar muito; mudanças súbitas de itinerários, como também o fator que a
cidade estava em constante crescimento e o sistema de transporte teria que evoluir com a
cidade; além do surgimento dos primeiros ônibus, mais conhecidos como marinetes, surgindo
desta maneira uma concorrência desleal, pondo fim ao sistema de transportes por bondes
elétricos.

PERÍODICOS

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MEMÓRIA, IDENTIDADE E TRADIÇÃO ORAL: JOGOS E


BRINCADEIRAS INFANTIS NA COMUNIDADE DO MATIAS.

Eraldo Eronides Maciel – UEPB1592


eraldoeronides@hotmail.com
Dra. Mª Lindaci Gomes de Souza – UEPB1593
mlgsouza26@hotmail.com

Este trabalho é um recorte do projeto de iniciação cientifica / PIVIC da UEPB e tem como
objetivo identificar através das narrativas das mulheres idosas da comunidade do Matias,
jogos e brincadeiras infantis de rua que caracterizam a cultura afro-brasileira. No Brasil, em
que a essência da formação é de caráter colonial escravista, verifica-se na historiografia, assim
como na memória histórica e social, um hiato entre práticas cotidianas e o patrimônio cultural,
no que diz respeito ao lazer e ao lúdico quando nos reportamos à cultura negra. Dessa maneira
faze-se necessário, no atual contexto, reelaborar a história dos jogos e brincadeiras
tradicionais, entendidas como expressão da história e manifestação da cultura de uma
determinada época. A utilização da história Oral foi escolhida como opção teórico-
metodológica porque propicia perscrutar e visualizar as experiências vividas por aqueles que
culturalmente são excluídos da história, e que ocupam um pano de fundo na história
tradicional oficial.

Palavras-chave: Brincadeiras, Tradição Oral, Memória.

Na história da humanidade, o lúdico, as brincadeiras sempre se fizeram presentes


no cotidiano social. No entanto, em países como o Brasil, em que há o predomínio da cultura
ocidental racionalista, o lúdico foi sempre preterido em favor da seriedade enquanto
componente comportamental e social do povo brasileiro.

1592
Graduando em História pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Aluno pesquisador da iniciação
cientifica / PIVIC e membro do grupo de pesquisa História e Cultura afro-brasileira.
1593
Orientadora do projeto de iniciação cientifica/PIVIC e líder do grupo de pesquisa História e Cultura afro
brasileira.
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No Brasil, em que a essência da nossa formação é de caráter colonial escravista,


nas quais as relações sociais foram baseadas no processo de escravidão de africanos e seus
descendentes, visualiza-se na historiografia assim como na memória histórica e social um
hiato entre as práticas cotidianas e o patrimônio cultural, no que diz respeito ao lazer e ao
lúdico quando nos reportamos a cultura negra.
Apesar das peculiaridades, a formação social escravista tinha nas suas bases
econômicas do Nordeste açucareiro, no que se refere ao negro, a sua condição de escravo, na
qual o caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção inviabilizava a
sinalização de momentos em que o lúdico pudesse ter visibilidade nas práticas sociais e
culturais.
Segundo Otavio Ianni (1978) o africano ao longo de vários séculos e sob as mais
variadas condições sociais, passa por personificações ou figurações sociais como crioulo,
mulato, negro, que aparecem no horizonte social do branco assim como nas relações de
trabalho tornando-se recorrente nas relações políticas, religiosas, sexuais e lúdicas em que o
branco figura como detentor de uma imagem dominante.
No período pós-abolição, desdobraram-se dois processos singulares e
concomitantes em relação a população negra, uma parte da população liberta foi expelida para
as cidades, ainda em formação no Brasil, e uma outra parte dos ex-escravos dirigiram-se para
os campos, constituindo as faladas “terras de pretos”, ou Quilombos, como são mais
conhecidos atualmente.
Mais o que é um quilombo? Segundo MOURA (1981, p.26) os Quilombos “eram
toda habitação de negros fugidos que passa de cinco, em parte despovoada, ainda que não
tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. A definição de Quilombo entanto
varia muito conforme o autor e perspectiva que ele tenta abordar, para O’DWYER (1995,
p.75), por exemplo, os Quilombos

consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência


na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na
consolidação de um território(...) A identidade desses grupos também não se
define pelo tamanho e numero de seus membros, mas pelas experiências
vividas e as visões compartilhadas de sua trajetória comum e da
continuidade enquanto grupo.

A partir desse pressuposto, inserido na trama das relações sociais, o branco e o


próprio negro acabam por pensam e agir como se o negro possuísse outra cultura. Conforme

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destaca Ianni (1978, p.52) “ele aparece ao branco e a si mesmo, como um tipo social, cuja
sociabilidade e cultura apresentam características que o diferenciam do branco, bem como os
valores que organizam suas atividades”.
Assim, nessa rede de relações sociais das quais o negro surge como diferente, na
busca da singularidade social e cultural se situa uma questão central, a forma como recriam a
cultura africana no Brasil.
Dessa forma, examinaremos a partir dos relatos das mulheres idosas, descendentes
de uma comunidade quilombola, as táticas utilizadas para manter e recriar no cotidiano social
jogos e brincadeiras infantis. Partindo do pressuposto de que as brincadeiras foram
transmitidas de geração em geração expressa os valores determinados de uma determinada
época, apresentasse no atual contexto histórico a necessidade de resgatar a história dos jogos e
brincadeiras tradicionais. Entendidas como expressão da história e manifestação da cultura, de
uma determinada época, podendo nos mostrar um estilo de vida, maneiras de pensar e,
sobretudo maneiras de brincar e interagir, configurando-se em presença viva de um passado
presentificado através das narrativas dos sujeitos sociais.
Baseado na mentalidade popular a brincadeira tradicional e infantil como forma
expressão das manifestações culturais, ao serem repassadas pela oralidade dos nossos pais e
avos se caracteriza como um patrimônio que incorporam criações anônimas das gerações que
não tiveram direito a voz.
Entendida enquanto manifestação livre e espontânea da cultura popular a
brincadeira tradicional tem a função de perpetuar a cultura infantil, desenvolver formas de
convivência social ao permite o prazer de brincar. Segundo Kishimoto (1999), a brincadeira
por pertencer a categoria das experiências transmitidas espontaneamente, a brincadeira
tradicional infantil de rua garante a presença do lúdico, levando a construir no imaginário
social momentos de fantasia e de sonho.
A historiografia oficial evoca o passado ativando recordações regidas por uma
temporalidade única, ordenando os acontecimentos de forma que as pessoas se lembrem
apenas do saber institucionalizado e submetido a um modelo que dita as normas do conhecer e
do agir.
Nesse contexto, nos acostumamos a aceitar “verdades construídas”, pela cultura
hegemônica européia, através da memória-hábito, imprimindo valores ditados pela
historiografia oficial. Desse modo, em vez de continuarmos ouvindo e repetindo o que foi
registrado oficialmente, podemos desenvolver táticas no sentido de reconstituir através da
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oralidade momentos de ludicidade e de sociabilidade, através das histórias que não puderam
ser contadas.
A tradição oral, além de fortalecer a relação entre pessoas e a comunidade, cria
uma rede de transmissão de tipos distintos de conhecimento e de modo de vida. Dessa forma,
através da oralidade, vão se conhecendo e se fazendo nos sucessivos encontros e desencontros
das diferentes histórias de vida que foram tecidas por essas vozes, o modo de vida e o
conhecimento de um momento que pode ser revivido através do ato de recontar.
Em comunidades rurais, como é o caso das comunidades quilombolas, há um
respeito ainda pela palavra falada, caracterizada com atividade comunicativa, que tem um
poder de transformar em ação, momentos de cumplicidade, contador/ouvinte com também
envolver e partilhar valores que foram e são significativos para a comunidade. Como
depositário das palavras as mulheres idosas, além da memória e do testemunho vivo garantem
no ato de contar e de relembrar os jogos e brincadeiras de sua infância, a socialização de
palavras e memórias.
Conferimos à memória um sentido de permanência e de identidade a grupos
específicos, mas também um manancial de sobrevivências vestigiais. Como reflexão sobre o
passado é também, segundo Guarinello (1994, p. 188) “uma forma de ação, uma ação
representativa e parte da atividade auto-representativa que uma sociedade, grupo ou indivíduo
reproduzem de si, para assumirem e defenderem sua identidade e para orientarem sua ação
individual ou coletiva”.
Mas a memória não é tão somente uma eterna repetição do mesmo, do idêntico a
si. Ela é também potencialmente uma ação reflexiva, uma inquisição proposta ao tempo, é
este o sentido que estamos tomando quando buscamos traçar um quadro dos jogos e
brincadeiras infantis, não buscando apenas identidades e permanências, mas principalmente as
diferenças, as mudanças, ou seja, momentos de ressignificação das brincadeiras infantis das
mulheres destas comunidades.
Este trabalho tem como propósito valorizar a cultura afro-brasileira, ao identificar
e analisar através das práticas sociais nas atividades lúdicas, os jogos tradicionais e
brincadeiras infantis competitivas que refletem a identidade cultural de um determinado grupo
étnico. No caso específico, procura reviver as brincadeiras infantis na comunidade
remanescente de quilombolas do “Matias”. A partir da vivência das mulheres idosas se faz
necessário reavivar memórias silenciadas, com o intuito de dar sentido e visibilidade à cultura
popular vivenciada por povos e comunidades tradicionais.
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Quando se fala em contribuição africana à formação da cultura nacional em nossa


sociedade, normalmente se recorre ao imaginário popular, buscando nele apenas componentes
que caracterizam a cultura e o folclore. É como se nesses mais de 500 anos de contatos
interculturais pudessem se resumir apenas a essas manifestações. Ocorre que as expressões
culturais consideradas como elementos de construção de identidade da cultura negra, como
danças, cantigas e brincadeiras continuam alijadas na nossa história cultural.
Neste sentido, torna-se desnecessário dizer que a história, não dá visibilidade a
essas manifestações, porque é frequentemente constituída de processos de in/exclusão e que a
conseqüência mais nefasta se reflete nas imagens preconceituosas sobre as formas de
sociabilidade do negro.
No que diz respeito às formas de brincar, os tipos de brincadeiras, a cultura lúdica
da criança negra continua fechada em torno da própria comunidade quilombola.
Da mesma forma de que a história registrou apenas uma historicidade em que o
homem branco aparece como sujeito, essa mesma história vem negando o ligar social do
negro, quer seja pela historiografia social ou por outros meios de comunicação. Também se
utilizaram de estratégias para o desconhecimento nas práticas culturais as brincadeiras infantis
afro-brasileiras. Assim, apesar de entendermos que a cultura lúdica do brincar dispunha de
certa autonomia, ela se liga a uma rede de brincar em interdependência com a cultura global.
Segundo Brougère (1997, p. 52) “a cultura lúdica é também estratificada, compartimentada e
não acontece do mesmo modo em todos os lugares onde a brincadeira é possível: na escola ou
na sua casa, a criança utiliza aspectos diferentes de sua cultura lúdica”.
Assim, realizar essa pesquisa se constitui para nós uma oportunidade de fazer uma
reflexão sobre a importância da tradição oral na ressignificação da identidade étnica.
Através desta pesquisa buscamos fazer uma configuração cultural ao trabalharmos
com a questão do cotidiano social, evidenciando as mudanças e/ou transformações nas formas
de brincar das crianças, ou seja, uma perda significativa da ludicidade na infância e quase que
o abandono das brincadeiras tradicionais.
O desafio de se trabalhar com as fontes orais está na possibilidade de conhecer
melhor o conjunto de valores sociais culturais veiculados pela oralidade, assim como recolher
dados significativos que permitam identificar as atividades lúdicas que não foram totalmente
esquecidas.
Entendendo “o jogo como uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro
de certos e determinados limites consentimentos” (HUIZINGA, 1980, p.33) assim como as
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brincadeiras tradicionais passados de geração em geração, quando através do ato de contar, a


oralidade sobre o passado, passa a ecoar no tempo presente. Um outro aspecto a ser
ressaltado, é que as brincadeiras podem constituir uma fonte privilegiada de aprendizagem das
crianças. Tendo em vista que as brincadeiras tradicionais são cada vez mais raras no universo
infantil dos grandes centros urbanos, mas ainda ocupam um espaço rural, momentos
significativos, sendo considerados muito importantes no repertório lúdico popular brasileiro.
A pesquisa sobre as brincadeiras infantis de rua nas duas comunidades
remanescentes de quilombolas, além de se constituir na temática de relevância sócio-cultural
no atual contexto da realidade brasileira, se reveste de um significado especial por ocorrer nas
áreas rurais da Região Nordeste, onde a cultura afro assume particularidades principalmente
no que diz respeito ao processo de exclusão, como também a forma preconceituosa como
sempre se aprendeu e se ensinou sobre a cultura africana.
Assim, apesar do negro ter contribuído para a formação econômica, social e
cultural, nossa cultura hegemônica de herança colonial ainda repassa uma imagem do negro
como escravo. Permanece um tipo de compreensão que desconsidera a presença do negro na
sociedade contemporânea elaborando estratégias para torná-lo invisível.
Historicamente perdura um distanciamento entre o que se define de cultura afro-
brasileira e cultura negra no cotidiano social, estando ainda para ser revisitada. Na escola essa
cultura negra é ainda mais estranha aos alunos, como se não fizesse parte de sua história, se
não lhes pertencesse.
A importância de se pesquisar sobre as práticas culturais das comunidades
quilombolas dos quais estamos inserindo as brincadeiras infantis, deve-se, acredito, ao fato de
que há um desconhecimento dos valores, expressões e manifestações de raízes africanas.
Talvez se deva atribuir aos mitos criados sobre o negro assim como o imaginário
social, no qual os afro-descendentes foram ideologicamente representados como inferiores.
Com efeito, “negativizados desde a sua cor até sua condição social, os afro-descendentes
viram-se sempre alijados das vantagens sociais por conseqüência da negação de sua cultura e
história” (OLIVEIRA, 2006, p. 77).
Concordamos com Oliveira (2006) quando diz que a África durante muitos
séculos tem sido negligenciada em sua cultura, e em suas contribuições para os outros povos,
principalmente na esfera cultural. Portanto, visto que a História oficial negou “o ser negro”,
uma vez no plano cultural foi sempre lembrado apenas no plano das comemorações como dia

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13 de maio ou quando se atribui apenas um dia de comemoração, como o dia da consciência


negra.
Ao incluir nesse cenário as brincadeiras infantis, estaremos trabalhando numa
proposta de recriação, quando “não estamos apenas recuperando elementos culturais que
ficaram sepultados no passado, porque todo resgate histórico é uma recriação e toda recriação
é política”. (OLIVEIRA, 2006, p 77).
Desta forma, através das narrativas das mulheres da terceira idade das
comunidades procuramos identificar as permanências e rupturas das brincadeiras infantis de
rua, assim como identificar aquelas que se mostravam recorrentes nas falas.
Destacamos ainda a relevância em desenvolver esta pesquisa no âmbito local e
regional, no sentido de contribuir para a constituição de uma memória social na qual se
privilegie a questão do patrimônio imaterial, descartado oficialmente.
Assim a execução desse projeto, vira não só fortalecer as discussões do Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros e Povos indígenas (NEAB-Í), mas também servira de subsídio às
ações de pesquisadores que trabalham com essa temática no âmbito local e regional
Naturalmente, estaremos abordando a questão da identidade cultural, o que
implica a formação de um imaginário social específico de cujo conteúdo o papel das
brincadeiras e sua importância como um dos momentos de sociabilidade da criança.
Nossa intenção não é fazer um exame exaustivo sobre os tipos de brincadeiras,
mas elaborar um quadro a partir do estudo corporativo entre as comunidades.
De forma rápida, direta e concreta falando dos nossos objetivo, podemos dizer que
tentaremos identificar, através das narrativas das mulheres idosas da comunidade do Matias,
jogos e brincadeiras infantis de rua que caracterizam a cultura afro-brasileira. Buscaremos
especificamente, perceber nos discursos das mulheres idosas a importância que era atribuída
às brincadeiras infantis no cotidiano social; rediscutir o significado do lazer, do jogo e das
brincadeiras de rua para a criança negra através da memória; estabelecer um quadro
comparativo entre os tipos de brincadeiras recorrentes conhecidas pelos idosos das
comunidades quilombolas e das mulheres que freqüentam as SABs (Sociedade Amigos do
bairro): Santa Rosa e Malvinas; divulgar o saber popular das comunidades quilombolas,
afirmando-o como materialidade singular, criando assim, uma outra referência histórica e
cultural sobre a cultura negra e as brincadeiras infantis; e identificar possíveis relações e
valores presentes nas brincadeiras infantis tradicionais relatadas pelos idosos das SABs e as
brincadeiras relatadas pelas mulheres negras.
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Nos últimos anos, a partir da Escola dos Analles e da nova história cultural, a
História passa a reconhecer a importância das fontes orais para o processo de produção e
construção de uma historicidade popular. Sendo assim, compete neste estudo através dos
depoimentos orais das mulheres da terceira idade (década de 1930, 1940 e 1950), sistematizar
através da história da infância destes grupos sociais, os jogos e brincadeiras infantis, tentando
através da rememoração, reconstituir os momentos de ludicidade e lazer que tiveram alguma
importância ou não no cotidiano social rural em sua infância.
Um dos focos a ser privilegiado neste projeto de pesquisa, refere-se à como
produtora de cultura e de historicidade, a partir dos registros que a comunidade tem registrado
em sua memória; a história construída a partir de sua história de vida.
Neste sentido busca-se analisar os relatos que os seguimentos populares fazem
dos fatos cotidianos, dos quais se conhece apenas a versão da história oficial. Segundo
Montenegro (2003), a importância de uma pesquisa com fontes orais, tem possibilitado o
resgate de experiências e representações passadas e presentes. Portanto o caminho escolhido,
a história oral, centrada nos processos de rememoração, tomando as narrativas das mulheres,
como fonte permitem instituir um novo campo documental.
A utilização da história oral foi escolhida como opção teórico-metodológica
porque propicia perscrutar e visualizar as experiências vividas por aqueles que culturalmente
são excluídos da história, e que ocupam um pano de fundo na história tradicional oficial.
Desta forma, a escolha de uma discussão e reflexão que envolve a memória
individual e coletiva torna-se importante enquanto processo e fenômeno de reconstituição do
passado, ao inserirmos através da memória de 15 mulheres idosas de cada comunidade a
identidade cultural da etnia negra nos registros históricos.
As entrevistas também serão feitas com as lideranças (15 de cada comunidade)
comunitárias dos grupos de mulheres que freqüentam as Sociedades Amigos do Bairro
(SABs) dos bairros de Santa Rosa e Malvinas, com vistas a elaborar um quadro comparativo
entre as brincadeiras narradas através da memória de uma história de hegemonia branca e uma
história tida como inferiorizada e negativizada.
Neste sentido, as conversas do tipo informal se iniciariam com perguntas sobre a
infância e o processo de socialização das entrevistadas no grupo maior, assim como perguntas
que levem a identificação dos sujeitos sociais, tais como onde e quando nasceu, onde passou a
infância, os tipos de brincadeiras considerados mais importantes.

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Desta forma graças ao processo de rememoração das lembranças, os idosos


evocarão o tempo da sua infância, dos jogos, cantigas e momentos lúdicos. Portanto, por ser a
memória por essência seletiva, mas antes de tudo coletiva, estaremos nos posicionando como
historiadores para buscar nas vivências expressadas e revisitadas as representações coletivas
de um tempo passado.
Levando em consideração que a memória se caracteriza também como um ato
individual que ocorre em um meio social, estaremos tomando como objeto de análise as
narrativas com o propósito de fazer uma contextualização a partir de documentos escritos.
Tendo em vista que o passado é uma reconstrução e uma reinterpretação constante, através da
narração, os entrevistados permitem explorar aspectos da experiência vivenciada não
registrada.
Portanto, estaremos fazendo o cruzamento de fontes escritas em arquivos e a
leitura da bibliografia específica. Considerando que depois de organizar e sistematizar esses
elementos que darão conta da investigação, o pesquisador também constrói sua narrativa, sua
versão.
Desta forma, esperamos que as questões formuladas sejam respondidas,
contribuindo, assim, para o processo de reelaboração de um conhecimento sobre a cultura do
negro em seus momentos de ludicidade.

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PRODUÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO EM AREIA BRANCA


SE: APONTAMENTOS DA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE

Cláudio Ubiratan Gonçalves - UFS


ubiratan@ufs.br
Adelvan Santos Dória - UFS
del_adelvan@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo principal descrever alguns estudos de


Geografia Agrária, através da leitura sobre a agricultura camponesa e o agronegócio. Assim,
põem-se em vista os conceitos sobre estas duas categorias de apropriação do território e os
embates provocados pela visão da produção do território divergentes entre o campesinato e o
“agro-empresariado” (ou “agro-empreendedores”) para compreender a produção do espaço
rural no município de Areia Branca, estado de Sergipe.
Areia Branca destaca-se na micro-região do Agreste de Itabaiana, por não
apresentar um tipo predominante de agricultura como vemos que nessa micro-região, onde
estar inclusa de forma preponderante agricultura familiar. Na microrregião do Baixo
Cotinguiba destacam-se os grandes latifúndios. Areia Branca além de fazer parte da
microrregião do Agreste de Itabaiana, e ter uma parte de seu território sobre influencia da
microrregião do Baixo Cotinguiba, fica ainda na zona limítrofe entre as duas. Então no
município em questão são esses os dois que predominam: os grandes latifúndios
desenvolvendo uma agricultura científica e as pequenas propriedades de agricultura orgânica,
no primeiro inserem-se o agronegócio e na outra a agricultura camponesa, objeto de estudo de
campo realizado no município supracitado e no município vizinho de Laranjeiras.

A configuração do território rural em Areia Branca

Os latifúndios monocultores estão localizados na parte leste do município,


encontram-se aí devido à produção canavieira voltada para o abastecimento da agroindústria e
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é lá que encontramos uma produção com características do agronegócio. Outro fato relevante
é que nesta parte do território de Areia Branca apresenta-se em sua maior parte o vertissolo,
um tipo de solo argiloso, que é bem apropriado à produção de cana-de-açúcar. Deste modo, é
importante observar que o fato da presença do referido solo, mais conhecido por massapé, e
os fatores da ocupação histórica na zona da mata nordestina para esse tipo de cultura, por se
só não explicam a presença contínua da produção canavieira nessa região, mas está atrelado
ao próprio interesse de reprodução e ampliação do capital. Este (o capital) se apropria do
território em busca de lucros e geração de desigualdades sócio-espaciais.
Para entendermos os fatos que explicam a existência da monocultora de cana-de-
açúcar na parte oriental do município, temos que inseri - lá no contexto do agronegócio.
O agronegócio em Areia Branca é praticado nessas grandes propriedades. Apesar
de compreendermos que historicamente sempre foi forte a presença da cultura canavieira, e
por isso invoca-se toda a tradição, muitos latifundiários se adaptaram à modernidade, sem
precisar mudar o produto, mais sim a forma de cultivá-lo. Os latifundiários do nordeste do
Brasil mesmo sendo considerados por muitos autores como um dos grupos sociais mais
conservadores, estes buscam sempre manter seu poderio dentro da esfera econômica
utilizando-se agora do que Milton Santos chama de meio técnico-científico-informacional,
que irá permitir um novo uso do território, um local para reprodução intensiva do capital.
Sobre esse modelo de produção agropecuário Marafon (2007) relata:

Esse modelo oferece novas possibilidades para a acumulação ampliada do


capital no setor e viabiliza significativa intensificação do capitalismo no
campo, com o incremento do agronegócio, totalmente regulado pela
economia de mercado (em razão das demandas urbanas e industriais) e pelos
interesses das grandes holdings hegemônicos dos complexos
agroindustriais, cuja produção e consumo se dão de forma globalizada.
(MARAFON, 2007, p. 49)

Na visita feita à Agroindústria no município vizinho de Laranjeiras, que


administra a maioria das fazendas de cana da região, onde um entrevistado nos informou
sobre os processos produtivos. Hoje se produz cana-de-açúcar através de métodos de analise
do solo, viabilidade de novos cortes ou replantio, já que essa planta tem caráter regenerativo,
para isso leva-se em conta o custo-benefício, utilizando-se de alta tecnologia e de princípios
de mercado. Através do meio técnico-científico-informacional e de todo o aparato

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mercadológico, torna-se possível obter informações sobre até quando compensa optar ou não
pelo replantio, segundo o mesmo entrevistado.
Localizado ao lado da zona da agricultura cientifica a que tratamos anteriormente,
a área de produção camponesa, fica na parte ocidental. Nela encontramos uma variedade
enorme de lavouras, tanto as de cultura permanentes (laranja e coco) como as temporárias
(milho, mandioca, feijão, tomate, amendoim). Os produtores dessa área de Areia Branca
contrapondo-se aos canavieiros, pois em geral apresentam-se distribuídos em pequenas
propriedades. A inversão de capitais nessa lavoura é menor que na agricultura científica, e ao
contrario do retorno financeiro, que a na lavoura camponesa de Areia Branca é bem maior, já
que se investiram menos capitais.
Tabela da produção agrícola de Areia Branca (2006)

Produto Área plantada (Hectares) Valor da produção (R$)


Amendoim 110 Hectares 224 mil
Maracujá 18 Hectares 162 mil
Coco-da-baía 62 Hectares 98 mil
Cana-de-açúcar 630 Hectares 1.933 mil
Melancia 60 Hectares 396 mil
Tomate 55 Hectares 1.056 mil
Banana 82 Hectares 432 mil
Fonte: IBGE (2007)

Os próprios dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) de


2007 revelam a rentabilidade por cultura, sendo que várias das agriculturas camponesas
saíram bem melhor que a cultura científica. O exemplo cita-se o tomate produzido por
pequenos agricultores rendeu numa área de 55 hectares cerca de 1,05 milhões de Reais,
enquanto a monocultura cientifica da cana-de-açúcar rendeu 630 hectares pouco mais de 1,93
milhões de Reais. Percebemos que a lavoura canavieira numa área cerca de 11 vezes maior,
não chegou produzir nem 2 vezes mais o valor tomate(em R$). E ao longo da história sempre
fora assim, como afirma Caio Prado Junior:

A cultura da cana somente se prestava, economicamente, a grandes plantações.


Já para desbravar convenientemente o terreno tornava-se necessário o esforço

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reunido de muitos trabalhadores: não era tarefa para pequenos proprietários


isolados. Isso feito, a plantação, a colheita e transporte o açúcar, só se tornava
rendoso quando realizado em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno
não podia subsistir. (Prado Jr. 1985, p.18)

A área oeste do município de Areia Branca, portanto está mais ligada à agricultura
camponesa, apresenta na sua maior parte solo mais arenosos, não tão férteis como o massapé,
mas que propicia uma rica produção hortifrutigranjeira. O solo é visto por esses camponeses
como uma dádiva de Deus, e que dele se apropria quem deseja trabalhar, a terra não precisa
ser corrigida, ela dará ao homem o que dela ele poder tirar dela. “O homem deve saber que a
terra ‘precisa ser bem tratada’, do que resulta uma forma de reciprocidade positiva”
(WOORTMAM, 2003).
As diferenças entre os solos e suas formas de utilização remontam a questão do
território, visto pelo camponês sobre uma perspectiva “etnoecológica” (WOORTMANN,
2003), enquanto que no agronegócio, se apropria do território para transformá-lo em mais um
meio de reprodução do capital. Ainda sobre a questão do solo para o agricultor familiar
WOORTMANN, em seu artigo, O saber tradicional camponês e inovações, fala de
denominações dadas por camponeses sergipanos a essa diversidade de solo:

Também os solos podem ser quentes ou frios, ou transitar do quente para o


frio. Solos argilosos são sempre quentes, enquanto os arenosos que
possibilitam uma lavoura “malhada”, inicialmente quentes vão se tornando
frios, e podem ser adubados com unto, isto é, o estrume animal que é quente.
Já terras quentes nunca podem recebe o unto. (WOORTMANN, 2003, p.
135)

Na pesquisa de campo, percebemos como é desenvolvida a produção agrícola


orgânica no povoado Junco, localizado em Areia Branca, no Estado de Sergipe. Para isso cita-
se a propriedade de um dos entrevistados, onde produz diversas categorias de hortaliças, ao
que nos informar utilizando o sistema orgânico. O plantio de cultivares orgânico iniciou-se
em 1985 e até hoje não recebem incentivo algum do Estado. Na agricultura orgânica não é
feito nenhum tipo de queimada e também não se usa agrotóxicos, e nem se utiliza de insumos
agrícolas próprios à agricultura cientifica: como a mecanização, os métodos de análise e
correção do solo, através principalmente de adubos químicos e outras formas de intervenções
bioquímicas e às vezes genéticas. A agricultura orgânica nesse município caracteriza-se por
ser uma agricultura eminentemente camponesa, pois produzir para o auto-sustento e uma parte

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da produção vai para o auto-consumo, e pelos diversos motivos anteriormente citados é


também uma produção agroecológica.
A dependência, como foi demonstrada durante as visitações, nos processos
produtivos é mínima, tudo o que se produz é aproveitado, só necessitando de alguns produtos
que entram no composto orgânico para adubação das plantações nessas propriedades de
cultivo orgânico, podendo ser substituídos como no caso da mamona (comprada de
agroindústrias) por “esterco de galinha”, um tipo de estrume produzido a partir de aves na
própria propriedade orgânica camponesa. Portanto, não tendo que se endividar tanto, e nem
ficando dependentes de insumos agrícolas com relação ao mercado monopolizado, onde um
seleto grupo de multinacionais detém uma parcela muito grande do mercado, concentrador de
tecnologias e capitais. Esses agricultores resistem à lógica do capital no campo, a da
dependência de insumos agroindustriais e de ter sua produção entregue aos atravessadores ou
as próprias indústrias a preços irrisórios, pois eles se reúnem em uma cooperativa que
possuem duas lojas, uma localizada no município de Itabaiana e outra na capital sergipana,
onde toda renda obtida com a venda desses produtos é repartida por esses agricultores.

CONCLUSÃO E ALGUMAS QUESTÕES

A configuração espacial das pequenas propriedades de produção orgânica e o


destino da produção agrícolas dessas lavouras estava entre os estudos da pesquisa de campo,
porém durante a observação de campo surgem novas questões. Entre as questões dessa
observação está: quais as condições de vida das pessoas que trabalham na lavoura canavieira,
e das que trabalham na agricultura junto à produção orgânica?
A condição de vida dos trabalhadores assalariados da agricultura científica é bem
inferior à dos agricultores autônomos, tendo em vista que aqueles enfrentam condições
inóspitas de trabalho, pois para receberem a quantia de 3 reais enfrentam a tarefa de cortarem
uma tonelada de cana. Se observamos que em media se consegue tirar entre 4 e 5 toneladas do
produto por dia, a renda não chega a atinge o atual salário mínimo de 415,00 enquanto que os
produtores orgânicos organizados em torno de uma associação comercializam a maior parte
da produção, esta é dirigida ao seletivo grupo consumidores de produtos orgânicos, produtos
que em geral são mais caros que os convencionais, e uma outra parte ficam para o auto-
consumo, o que aumenta o rendimento do trabalhador, aja vista também que esse agricultor
não tendo que gastar com a compra de certos alimentos, isso acaba aumentando ainda mais o
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poder aquisitivo. Em posse desses dados pode-se dizer que aonde se produz cana-de-açúcar,
há um decréscimo nas condições de vida e de trabalho, uma vez que o poder aquisitivo desses
proletários rurais é achatado, dificultando o acesso a vestuário, alimentação, saúde e higiene
pessoal.
Entretanto, se estes trabalhadores, que tem a sua mais-valia extraída pelos que
detém os meios de produção, tivessem a posse dessas terras apresentariam um padrão de vida
igual ou superior aos dos agricultores orgânicos, pois essas terras ocupadas pelo latifúndio são
de produtividade bem superior. Pois sendo este um solo mais argiloso, fica úmido logo acima
da camada superior do regolito, próxima a superfície, isso acontece mesmo em épocas secas,
pois é um solo menos impermeável e drena pouca água que recebe das chuvas para os lençóis
freáticos o que contribui ainda mais com relação a sua qualidade.
Como foi demonstrado pelos dados do IBGE, pode-se afirma que se fosse
praticada agricultura camponesa na área onde se encontra a monocultura canavieira, o
rendimento poderia ser até maior, ainda pela questão do solo argiloso ser mais fértil, que
diferentemente do usado pelos agricultores camponeses em sua maioria um solo mais arenoso,
por isso menos fértil. Isso seria uma ótima solução caso o Governo resolvessem através de
medidas de segurança alimentar desapropriar essas terras e criar um novo processo de
“colonização” destas, e transformar-las em grandes “celeiros agrícolas alimentares”, com uma
rica e desenvolvida agricultura camponês-orgânica, produzido alimentos mais saudáveis
melhorando a qualidade de vida e as condições de trabalho dos atuais “proletários rurais”,
fazendo dessas pessoas autônomas, senhora de sua própria força de trabalho. Já que é a
produção camponesa uma das quem mais produzem alimentos para a população, e além de
produzir para o auto-consumo.

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Mapa Político de Sergipe (2008)


Microrregiões do Baixo Cotinguiba e do Agreste de Itabaiana

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARAFON, Gláucio José. Abordagens teórico-metodológicas em Geografia. Rio de


Janeiro: EdUERJ, 2007.

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OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de e MARQUES, Marta Inez. O Campo no século XXI:


território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Ed. Casa Amarela e
Ed. Paz e Terra, 2004.

PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. 4º ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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VIOLÊNCIA EM ESTÂNCIA/SE NO PERÍODO OITOCENTISTA

Jessyca Cristina Reis Santos - UNIT


Msc.Sheyla Farias – orientador - UNIT

A violência esteve durante muito tempo ligada ao cotidiano das pessoas, sejam homens ou
mulheres, reproduzindo-se até os dias atuais. Os crimes eram cometidos pelos mais variados
motivos. Os delitos freqüentemente cometidos iam desde ofensas físicas, homicídios, furtos e
até os de menor índices como as ameaças, dentre outros. Baseando-se no livro de rol dos
culpados, da Comarca de Estância, do período oitocentista (1850 – 1900) armazenado no
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, juntamente com os relatórios dos presidentes da
província, tem-se por objetivo a analise e comparação dos dados coletados, ressaltando os
índices das qualificações dos crimes, gênero e perfil dos agressores, limite espacial, armas
utilizadas e o resultado das sentenças.

Palavras chave: Violência,Estância, Sentenças.

INTRODUÇÃO

Há muito tempo a violência vem repercutindo nas relações sociais. A


criminalidade é determinada por valores sócio-culturais, político-econômicos e morais. A
sociedade oitocentista aceitava passivamente a violência em alguns casos como a defesa da
honra, assim como se acomodavam diante da incompetência das pessoas responsáveis pelo
controle ordem pública. As cartas dos presidentes da província, 1850 a 1875, são relatórios
anuais onde consta a situação da administração da mesma onde na maioria das vezes revelam
um fraco comando resultante da apatia dos mesmos na realização de suas funções. O
julgamento dos réus é relatado no livro de rol dos culpados, os mesmos irão ser utilizados no
decorrer deste artigo como fonte para observar os índices da criminalidade no período
oitocentista, 1850 a 1900, da comarca de Estância.
Este artigo busca demonstrar a criminalidade da sociedade oitocentista, 1870 a
1875, sergipana dando destaque a Comarca de Estância. As características a serem analisadas
são os gêneros dos réus, assim como idade, nacionalidade e profissão. Serão ainda observados

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os delitos cometidos, a situação em que os infratores se encontram com a justiça, relatando


alguns casos desses crimes.
No período oitocentista, 1850 a 1875, a violência na província de Sergipe era
bastante acentuada. Sendo relatado nas cartas do presidente da província que já não parecia à
mesma, foi apontada como um cantão de bárbaros. De acordo com os relatórios analisados o
perfil dos criminosos era em sua maioria: Homens, casados, de 21 a 40 anos, analfabetos e
que trabalhavam na agricultura. Sendo homicídio, ferimentos graves, ferimentos leves,
ofensas físicas, fugas de presos e furto os crimes responsáveis por maior parte dos índices de
criminalidade. Já os que ocupam a menor parcela são ameaças, infanticídio, uso de armas,
rapto, resistência e estupro.
Em alguns casos são relatados problemas na administração da justiça, onde as
pessoas a serviço da mesma não cumpriam suas funções, e que se utilizavam de diversas
desculpas para remediar esse descaso com a sociedade.

Quando assumi a administração da Província em 31 de julho do ano passado


encontrei este importante ramo do serviço em pessimas condições, por que,
achando-se fora do exercicio os quatro juizes de Direito das Comarcas da
Capital, Maruim, Laranjeiras e Propriá; vagos os lugares de Juizes
Municipais letrados dos termos de Laranjeiras, Santa Luzia, Itabaianinha,
Divina Pastora, Capela e Lagarto, e deixando, pouco depois de minha
entrada, seos respectivos lugares sob pretexto de impedimento phisico, os
Juizes de Direito das Comarcas de Itabaiana e Lagarto, he facil de conceber-
se em presença de tal abandono, como marcharia para esses lugares a
administração da justiça, entregue (com poucas e honrosas exceções) a juízes
ignorantes, parciais e caprichosos.”1594

Uma cidade de muita história, onde a violência se destaca em seu cotidiano. É a


Estância oitocentista, 1850 a 1900. Por diversos motivos, mesmo que nem sempre
esclarecidos, eram cometidos os crimes. As informações coletadas no livro de rol dos
culpados apontam para o seguinte quadro:

1594
Relatório do Presidente da Província, 1864, p.4 <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1207/000006.html> acessado
em 29 de Agosto de 2008 às 15h24min.
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Quadro 1

Sexo Quantidade Porcentagem


Masculino 325 91,29 %
Feminino 28 7,86 %
Não consta 3 0,84 %
Nacionalidade Quantidade Porcentagem
Brasileiro 142 39,88 %
Estrangeiro 3 0,84 %
Não consta 211 59,26 %
Idade Quantidade Porcentagem
até 14 anos 0
de 14 a 17 anos 2 0,56 %
de 17 a 21 anos 17 4,77 %
de 21 a 40 anos 83 23,31 %
mais de 40 anos 30 8,42 %
Não consta 224 62,92 %
Situação Quantidade Porcentagem
Afiançado 15 4,21 %
Mandado de prisão 21 5,89 %
Solto 24 6,74 %
Ausente 48 13,48 %
Preso 57 16,01 %
Não consta 191 53,65 %

O quadro demonstra o perfil dos criminosos, a faixa etária, sua situação com a
justiça, nacionalidade, e sexo dos mesmos, em que ao serem analisados chegamos à conclusão
que as cartas dos Presidentes da Província e o livro de rol dos culpados têm quase os mesmos
perfis de criminosos. Em sua maioria temos como infratores homens, brasileiros, com a faixa
etária de 21 a 40 anos. Nos quadros a seguir veremos dados coletados das profissões e crimes
mais cometidos:

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Quadro 2

Profissão Quantidade Porcentagem


Musico 1 0,28 %
Medico 1 0,28 %
Serventes de obras 1 0,28 %
Pegador de açúcar 1 0,28 %
Folheiro 1 0,28 %
Tamanqueiro 1 0,28 %
Tipógrafo 1 0,28 %
Maquinista 1 0,28 %
Senador 1 0,28 %
Pescador 1 0,28 %
Capitão 2 0,56 %
Embarcadoiro 2 0,56 %
Costura 2 0,56 %
Ferreiro 2 0,56 %
Marceneiro 3 0,84 %
Ex-escravo 3 0,84 %
Carpina 3 0,84 %
Alfaiate 3 0,84 %
Sapateiro 3 0,84 %
Serviços domésticos 5 1,40 %
Marítimo 5 1,40 %
Pedreiro 6 1,68 %
Negociante 6 1,68 %
Escravo 7 1,96 %
Policia 8 2,24 %
Lavrador 48 13,48 %
Não consta 238 66,85 %

Nesse quadro podemos notar que na grande maioria os infratores tinham a


profissão de lavrador. Vejamos o quadro dos crimes:

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Quadro 3

Crimes Artigos Total


Ofensas Físicas 201 75
Ofensas Físicas Graves 205 51
Homicídio 193 42
Roubo 269 26
Crime de Dano 266 a 268 20
Furto 257 a 262 20
Uso indevido da imprensa 303 a 307 15
Ajuntamentos ilícitos 294 13
Ameaças 207 a 214 9
Fuga de presos 120 a 126 6
Estelionato 263 a 265 6
Injurias 237 5
Crime contra a liberdade individual 179 a 191 4
Abuso de autoridade 137 a 152 4
Uso de armas ilegais 297a 299 3
Desobediência as autoridades 128 2
Cumplicidade de homicídio 193 2
Tentativa de morte 193 2
Cumplicidade de estelionato 264 2
Defloramento 219 2
Moeda falsa 173 a 176 1
Irregularidade de conduta 166 1
Infanticídio 197 a 200 1
Morte casual 1
Resistência 116 1
Tentativa de roubo 274 1
Crime justificável 14 1
Não consta 40

O quadro mostra que o responsável pela maior parte dos crimes cometidos são
ofensas físicas.
Um caso que nos chamou atenção cujo vitima e autor do crime são mulheres é o
de Constança, escrava do Tenente Antônio José Vieira, morador da Rua do Caminho do Rio
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da cidade de Estância. Cometeu o crime de injúria e ferimento no rosto de Anna Josefa de


Jesus, mulher de Gonçallo Marques.
Apesar de serem em uma pequena proporção, os adolescentes também cometiam
crimes, como é o caso de Sabino José Ignácio, morador e natural da Vila do Arauá, filho de
José Ignácio e Maria Dias Conceição, de 16 anos de idade, solteiro, brasileiro, com a
profissão de aprendiz de pedreiro. Cometeu o crime de roubo na casa do negociante Leonillo
Francisco Carvalho.
Outro fato interessante é o de um réu estrangeiro de sobrenome Girling, cujo
primeiro nome está ilegível no documento, marinheiro inglês, solteiro, de 34 anos, e que só
sabe assinar o nome. Foi preso pelo crime de ferimentos graves no súdito inglês Carlos Smith.
No ano de 1851 na cidade de Itabaiana, ocorreu um crime que abalou a população
pela brutalidade em que o cometeu. Sendo três pessoas os autores do mesmo, estando inclusa
neste número a madrasta do assassinado, Maria Rosa. O cúmplice deste crime de nome David
Lino dos Santos ofereceu-se para servir o exército sem nenhuma gratificação assim que veio a
publico o nome dos criminosos, porém foi descoberto e preso. Francisco Rodrigues,
conhecido por Chicão, foi o principal autor do crime. Aterrorizou os habitantes de Itabaiana,
pois matar era um constante habito seu.

O assassinato mais notável d’este ano, não pela qualidade da victima, mais
pela barbaridade que foi comettido, he o que teve lugar, no dia 2 de Abril, no
sitio denominado – Cova da Onça -, Termo de Itabaiana. Foi achado n’esse
lugar o cadaver de hum infeliz de nome Manoel Francisco de Goes, tão
coberto de facadas e cacetadas que se não podião contar as feridas e
contusões.1595

A partir dos crimes, pode se conhecer um pouco dos costumes e idéias de uma
sociedade. As incompetências na administração da justiça e ate mesmo os crimes hediondos
levaram a população a duvidar da força e da previdência da mesma, sendo vista como uma
verdadeira calamidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1595
Relatorio do Presidente da Provincia, 1851, p.4 <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1198/000006.html> acessado
em 29 de agosto de 2008 as 14:30.
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NETO, Mateus Antônio de Almeida; BORGES, Natalia Moura. O Teatro das colisões hostis
entre homens e mulheres na segunda metade do oitocentos em Aracaju: 1855-1880. p.72-
106. Monografia (Graduação em História), Universidade Tiradentes, Aracaju, 2008.

CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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ÍNDICE REMISSIVO

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Adelvan Santos Dória –(UFS).................................................................................. 1274


Alaíze dos Santos Conceição (UNEB) ..................................................................... 220-848
Aldair Smith Menezes (HPONET/ NPGL/UFS) 443
Alessandra Barbosa Bispo (UNIT) .......................................................................... 561
Alex de Jesus Oliveira (UNEB) ............................................................................... 471
Aline Santos Oliveira (FACED/UFBA) .................................................................. 1070
Alix Pinheiro Seixas de Oliveira (UERJ) ................................................................ 785
Ana Carla de Jesus (UFS) ........................................................................................ 55-65
Ana Carla Menezes de Oliveira (EAFSC) ............................................................... 720
Ana Luiza dos Santos Rodrigues Paulo (UNIRIO) ................................................. 1122
Ana Luzia Santos (UNIT) ........................................................................................ 655
Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira (UNEB) .................................................. 872
Ana Maria Garcia Moura (PIBIC/FAPITEC/UFS) ................................................. 1133
Ana Paula dos Santos Lima (NPGED/UFS) ............................................................ 729
Andreza Santos Cruz Maynard (FSLF) ................................................................... 247
Ane Luíse Silva Mecenas (UFS) .............................................................................. 835
Antonietta d´Aguiar Nunes (FACED/UFBA) .......................................................... 1070
Antonio Fernado de Araújo Sá. (UFS/HPOPNET)................................................. 443
Antonio Teles de Lima (UNIT) ............................................................................... 1153
Antônio Vital Menezes de Souza (UFS) .................................................................. 338-753
Artur Monteiro Bento (FAPERJ/UNIRIO) .............................................................. 481
Bruno Oliveira Santos (PIBIC/ UNIT).................................................................. 1215
Camila Barreto Santos Avelino (UNEB) ................................................................. 148
Caren Victorino Regis (UNIRIO) ............................................................................ 1143
Carlos Alberto Machado Noronha (FAPESB/UEFS) .............................................. 296
Carlos Nassaro Araujo da Paixão (UNEB) ............................................................. 884
Carlos Roberto Santos Maciel (UNIT) .................................................................... 47
Carmen Regina de Carvalho Pimentel (GEPHED/UFS) ......................................... 1019
Caroline Lima Santos (UNEB) ................................................................................ 326
Cassi Ladi Reis Coutinho (UNEB) .......................................................................... 238
Cláudio Ubiratan Gonçalves (UFS) ......................................................................... 1280
Cristiane Vitório de Souza (Faculdade Atlântico) ................................................... 668
Cristina de Almeida Valença (UFBA/UNIT) .......................................................... 630
Daine Dantas Martins (UNEB)................................................................................ 422
Denio Santos Azevedo (UNIT/FASE)...................................................................... 1236
Diogo Francisco Cruz Monteiro (GPEH/DED/UFS) ............................................... 816
Eliane Menezes (UNEB) .......................................................................................... 1041
Elizabeth Ramos da Silva ( PIBIC/CNPq/UNIRIO) .............................................. 1196
Emanuele Tourinho Almeida (UNIT) ...................................................................... 617
Erahsto Felício de Sousa (PPGH/UFBA) ................................................................ 407
Eraldo Eronildes Maciel (UEPB).............................................................................. 1269
Flávia Delfino dos Santos (FSLF) .......................................................................... 195
Francisco Cancela (UFBA) ...................................................................................... 1082
Gersivalda Mendonça da Mota (UNIT) ................................................................ 1153
Gislaine Santos Carvalho (UFS) .............................................................................. 493
Gissele Raline da Cunha Fernandes Moura (UESC) ............................................... 395
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Humberto Ferreira da Silva (FSLF) ......................................................................... 460


Iêda Maria Leal Vilela (IERB-SE/UFS) .................................................................. 742
Igor Fonsêca de Oliveira (UNEB) ........................................................................... 76
Igor Iury Jurubeba Santos (UNIT) ........................................................................ 1207
Ivan Aragão (Bolsista do PIBIC /FASE) .............................................................. 1236
Jacó dos Santos Souza (UNEB) ............................................................................... 125
Jadilson Pimentel dos Santos (UFBA) ..................................................................... 1029
Janilda Freitas de Almeida (UNIT) .......................................................................... 1153
Jean Paul Gouveia Meira (PIBIC-CNPq/UFCG)..................................................... 1111
Jéssyca Cristina Reis Santos. (UNIT)....................................................................... 1288
Joaquim Tavares da Conceição (UFS/CODAP) ...................................................... 574
Joceli Nascimento S. Sales (Faculdade Atlântico) .................................................. 896
Joceneide Cunha (ANPUH/SE-UNIT) .................................................................... 27-
1183-
1215
Jorge Carvalho do Nascimento (UFS)...................................................................... 594
Jorge Prata (UNIVERSO)........................................................................................ 422
Josane Rodrigues Boechat (Universo) ..................................................................... 38
José Dias Junior (FSLF) ........................................................................................... 350
José Joaquim Santos Nascimento (UNIT) .............................................................. 1207
José Vieira da Cruz (UFBA/ANPUH-SE/UNIT) .................................................... 528 -551
-1225
Josiane Thethê Andrade (UNEB) ............................................................................ 306
Josimari Viturino Santos (UFS) ............................................................................... 138
Josivaldo Pires de Oliveira (UFBA) ........................................................................ 157
Josoel Pereira da Silva (UEFS) ................................................................................ 678
Juciene Ricarte Apolinário (UFCG) ........................................................................ 1111
Julio Cláudio da Silva (UFF) ................................................................................... 207
Kátia de Araújo Carmo (UFS) ................................................................................. 587
Kelly Cristina Santos Linos (UNIT) ....................................................................... 1246
Kleber Rodrigues Santos (UFS) ............................................................................... 1172
Kleberson da Silva Alves (UNEB) .......................................................................... 88
Leila Maria Prates Teixeira (UNEB) ....................................................................... 317
Leyla Menezes Santana (UNIT) .............................................................................. 1207
Lina Maria Brandão de Aras (FFCH/UFBA) .......................................................... 451
Lucas Barbosa de Santana (FSLF) ........................................................................... 1179
Luciana de Moura Ferreira (UCE) ........................................................................... 862
Luciana de Souza Santos (UNIT)............................................................................. 1261
Lucas de Oliveira Carvalho (UNIT)......................................................................... 1183
Luciano Rodrigues dos Santos (FAPESE/UFS) ...................................................... 524
Lucília Cardoso dos Santos (UNIT)......................................................................... 1207
Luiz Augusto Pinheiro Leal (UFBA) ....................................................................... 182
Luiz Renato Dias Gomes Padilha (UNIRIO) ........................................................... 1122
Magna Cecília Sobral Silva (Faculdade Atlântico) .................................................. 896
Manoel Lacerda Santos Júnior (UNIT/UFS) ........................................................... 699
Marcelo Santos (NPPCS/UFS) ................................................................................ 795
Marcelo Souza Oliveira (UNEB) ............................................................................. 168
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Margarete Nunes Santos Gomes (UNEB) ............................................................... 256


Maria Amélia Gomes de Souza Reis (UNIRIO)....................................................... 1196
Maria Carla Andrade de Carvalho (UNIT/UFS) ................................................... 1261
Maria de Lourdes Porfírio Ramos Trindade dos Anjos (IERB) .............................. 709
Maria Fernanda dos Santos (UFS) ........................................................................... 765
Maria Helena de Oliveira (UNIT) ............................................................................ 907
Maria Hilda B. Paraíso (UFBA) .............................................................................. 1096
Maria Isabel Andrade de Almeida Santos (UFS)................................................... 431
Maria Lindaci Gomes de Souza (UEPB) ................................................................. 1269
Mariângela Dias Santos (UFS) ................................................................................ 771- 998
Mateus Antonio de Almeida Neto (HOPONET/FSLF/UNIT) ................................ 528
Mayara Gabrielly Carvalho Matos (UNIT) ........................................................... 505
Mônica de Góis Silva Barbosa (SEED) ................................................................... 69
Mônica Sepúlveda Fonseca (UFBA/UNEB) ........................................................... 939
Nailda Marinho da Costa Bonato (UNIRIO)........................................................... 1143
Nayara Alves de Oliveira (UFS) .............................................................................. 607
Nelly Monteiro Santos Silva (UFS) ......................................................................... 914
Onesino Elias Miranda Neto (UNIT) ....................................................................... 807
Osvaldo Silva Felix Júnior (UNEB)........................................................................ 101
Paloma Porto Silva (PPGH/UFPB) .......................................................................... 643
Patrícia Abreu dos Santos (UNIT)............................................................................ 112
Pedro Abelardo de Santana (UNIT) ........................................................................ 1061
Philipe Murillo Santana de Carvalho (UNEB) ........................................................ 371
Rafhael Almeida Oliveira (UNIT/UFS)................................................................. 1246
Raíssa Tainá Carvalho de Santana (PIBIC/ UNIT)............................................... 1183-
1215
Ricardo Fernandez ( Universidade de Aveiro, Portugal)......................................... 1196
Rochelle Figueiredo Freitas ( UNIT) ....................................................................... 1225
Rogério dos Santos França (UFPE) ......................................................................... 1053
Rosana Costa Gomes (UNEB) ................................................................................. 973
Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque (UFBA) .............................................. 1009
Sharlene Souza Prata (UFS) ..................................................................................... 270
Sheyla Farias Silva (UFBA) .................................................................................... 926 –
1246-
1261-
1288
Silvana Santos Bispo (UNEB) ................................................................................. 986
Silvia Carolina Andrade Santos (DHI/UFS) ............................................................ 827
Simone Cristina Figueiredo de Jesus (UNEB) ......................................................... 283
Soanne Cristina Almeida dos Santos (UNEB) ......................................................... 517
Solimar Guindo M. Bonjardim (NPGEO/UFS) ....................................................... 896
Taiane Dantas Martins (UNEB) ............................................................................... 961
Udineia Braga (UFBA) ............................................................................................ 951
Vagner Souza de Assis (PIBIC/CNPq/UFBA) ........................................................ 451
Vanessa Magalhães da Silva (UFBA) ...................................................................... 538
Vinícius Silva Santos (UNEB) ................................................................................. 338
Williams Santos da Silva.......................................................................................... 1183
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Wanderlei de Oliveira Menezes (UFS) .................................................................... 362


Wanderson B. de Souza (UNEB) ............................................................................. 382
Williams Santos da Silva (UNIT)............................................................................. 1179

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