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Departamento de Filosofia
Psicologias do fascismo
Curso completo – 2019
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30
formações do inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são
expressões de dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais,
como o fascismo, exige a mobilização de uma dimensão propriamente
“psicológica”, mesmo que este termo vá, no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinção específica, até o ponto em que talvez não tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicológico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizávamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por uma urgente
necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questões prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem
psicológica do fascismo?”, até porque não é claro o que entendemos por
“abordagem psicológica” neste caso. A outra questão é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemônicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em que
condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a
produzir um erro categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas
para descrever fenômenos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interação entre as múltiplas esferas sociais de
valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como se,
ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relações de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressão institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posição de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da
lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
análise psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre:
criminologia, reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de
urbanização na Europa, reflexão política sobre movimentos de massa, além de
considerações sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo não será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja tradução mais
aproximada seria “psicologia das multidões”. Os principais textos são escritos em
um prazo de não mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon é
de 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre psicologia das massas alcançarão
o mundo anglo-saxão principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregário (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá: The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é de 1921.
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas
estão lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e
de Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e
Maupassant. Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi
anteriormente explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada
um a sua maneira, fazer das massas, da multidão, o objeto de uma ciência a parte
inteira, o que não era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da
regressão social, das involuções que estariam a ameaçar as novas sociedades
capitalistas urbanas do século XIX. Assumindo uma noção bastante presente na
psicologia de então, que definia a doença mental como degenerescência, como
retorno a estágios arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos
(embora os trabalhos de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas
como o equivalente social de uma degenerescência patológica, propícia a
comportamentos criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações
violentas e incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
história, mas nunca tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das
massas, substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual”2. Pois não seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das nações.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período
de “anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva” 3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”4,
2
LE BON, Psychologie des foules, préface
3
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria
possível governar as massas. No máximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria não ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós”5. Tais causas
resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental
da massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização”6.
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história
posteriormente:
Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam
destruir de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse
comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos
humanos antes da aurora da civilização7.
5
LE BON, idem, p. 22
6
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressão do primeiro não
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmáticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinção entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituições, isto no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao
funcionamento normal de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão
que apareceria como desvio em relação ao bom funcionamento normal das
instituições democráticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen8.
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de
democracia liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas não são a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisórios em instituições democrático
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião triunfará não apenas sobre
a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não podemos sequer
imaginar como é potente, a religião”9.
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e
figuras conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepção teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicação da noção clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenômenos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará então a análise das latências
de regressão imanentes a tal racionalidade.
8
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
9
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
relações sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuação se realizam perpetuariam modos de relação social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos são próprios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissão à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna não seria exatamente o esteio de
uma forma democrática de vida baseada na cooperação imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressão
social. E não será por acaso que comportamentos xenófobos, racistas e violentos
não virão necessariamente dos integrantes de famílias em decomposição, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradação, mas
também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente prósperos. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia
respeito à adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O
que vemos aqui é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus
modos de criação de adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilização de fantasmas, de afetos e representações que
não são individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos são individuais. Lembremos do que
diz Freud:
Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são
noções como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de
relações de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relação. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos
são modos de participação social. Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Não são indivíduos que
10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É
a história dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar quanto a história dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.
O que é fascismo?
11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão
como o fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da
transgressão e da repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama
de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários”12. Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revolução afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
dominação interna exercida militarmente por milícias”13. Há a emergência do
que Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitária da produção pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política
de que o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução
preventiva que se faz passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritários da população desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidão a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentração radical da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a
servidão a partir da submissão à força, mas a partir da sua associação à voluntas,
de um querer e participar à sua própria servidão, e este é o ponto fundamental:
12
Idem, p. 17
13
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
estrutura libidinal do fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulação novamente por Reich:
Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que
outros façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os
explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstância, e é isto que se faz necessário compreender15.
15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262
Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado
Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o
fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma
em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início,
os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as
núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...)
Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição17.
Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma
experiência de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua própria aniquilação.
17
Idem, p. 280
18
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta
da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregação inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de participação social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalização da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos apenas uma
analogia, mas a descrição de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter
implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relações de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de
perseguição e de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalização desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a própria constituição
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instância
psíquica que organizava suas relações ao mundo através de projeções,
introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
agressividades19.
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva
a paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
não era o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressões paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,
os dois conceitos tecem relações profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão estudos extensivos
aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades liberais.
19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na
Alemanha e na Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de práticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
sombra e que se atualiza nas condições as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência
da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais
serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjugação
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua
versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pátria construída através do
genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela
opressão. Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social não sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser
reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes não o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-
institucional pela própria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que
abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mão forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupação com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressão de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, tais
proposições poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de análise para saber em que
situações atuais esta descrição encaixa.
Psicologias do fascismo
Aula 2
20
FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14
Essa introdução a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma
nota metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se
estabelecer distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O
que só pode significar que uma clínica da subjetividade será, necessariamente,
uma clínica de fenômenos sociais. Pois não há fato psicológico legível a partir de
uma perspectiva solipsista, os modos de relação a si e a própria constituição de
uma noção identitária como o si-mesmo é dependente destes fenômenos sociais
que são: “as relações dos indivíduos aos seus pais, irmãos e irmãs, a seu objeto
de amor, a seu professor e a seu médico”21. Freud chega mesmo a afirmar que a
distinção entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser situada
no interior da psicologia individual, já que não há ato psíquico narcísico, ou seja,
não há amor de si que não se oriente a partir da internalização de uma teleologia
das relações sociais. O que não poderia ser diferente já que identidades
individuais são produções relacionais, as próprias instâncias da vida psíquica são
internalizações de disposições sociais de conduta. Proposições que podem nos
levar à interpretação de Etienne Balibar, para quem: “a própria individualidade é
um caso particular da formação de massa”22.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais.
Neste sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu
tempo pode ser sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo
isolado como “membro de uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou
uma instituição”, a psicologia social passa por cima da estruturação sistêmica dos
modos de interação social, ou seja, deste modo de interação social que vai
progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre mãe e bebê à família,
às instituições sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que implica que
experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante não para assumir
alguma forma de familiarismo, mas para insistir na dimensão instauradora do
conflito. Pois a família é, antes de qualquer coisa, um núcleo produtor de
conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das
configurações familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz
dependência não diz subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante
tentar compreender a configuração dos processos de interação social postulando
algum princípio abstrato como “pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind”
etc. Devemos compreender como modos elementares de interação influenciam
regimes de aplicação de princípios sociais mais gerais. Daí porque Freud termina
insistindo: “Nossas expectativas são orientadas por duas possibilidades: que a
pulsão social não seja nem originária nem indecomponível e que os inícios de sua
formação possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”23.
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de
literatura que ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o
livro de Gustave Le Bon, La psychologie des foules, editado em 1895. A razão não
deve ser procurada apenas no caráter fundador deste livro que, aos olhos de
muitos, aparece como a inauguração da psicologia social e como a realização
21
FREUD, Psicologia das massas - introdução
22
BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
23
FREUD, Psicologia das massas - introduçõa
clássica dos princípios de uma sociologia das massas de forte caráter
conservador. De fato, Freud encontra uma problemática com a qual ele
compartilha, embora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em
seu livro, Le Bon começa afirmando:
24
LE BON, Psychologie des foules, préface
25
FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
26
LE BON, idem, p. 22
27
idem, p. 24
28
TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
No entanto, esta imitação fundamental para a reprodução do vínculo social seria
um fenômeno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí
porque Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”29,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da
imitação, Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e
de prestígio. Daí afirmações como:
A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração
capaz de sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a
hipnose. Segundo ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de
desejo, imobilizada em lembranças de toda natureza, adormecidas mas não
mortas”31. O hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio,
atualizar tal força potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de
toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como sujeito que saber a
respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de aceitar ao
dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”32.Tal relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de
prestígio poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade
imitativa do ser social”. Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade
é a imitação e a imitação é uma espécie de sonambulismo”33.
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e
o prestígio do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando
de explicações. E para tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as
relações de autoridade e de coesão no interior da massa são expressões de
vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que Freud não teme em remeter
ao conceito platônico de “Eros”. Mas a respeito de tais vínculos, Freud dirá:
29
idem, p. 84
30
idem, p. 86
31
idem, p. 87
32
idem, p. 97
33
idem, p. 97
34
FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43
Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão
de atração libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal
aos membros da massa que não seja constituída a partir da dinâmica das
relações amorosas, com sua produção de objeto de amor e suas modalidades de
identificação. Não há sujeição ou submissão sem amor, é o que lembra Freud.
Amor que não desconhece a força de atração dos corpos, a afecção dos corpos e
suas modalidades de prazer. Afecção que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um
gozo das massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender
a natureza do político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se
serve deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo
poderia se livrar dos recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a
desaparição dos sentimentos de responsabilidade e da consciência moral. Essa
supressão do recalque aproxima os fenômenos de massa e as formações do
inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma distinção extremamente
significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este inconsciente resultante da
sedimentação de heranças arcaicas não é o inconsciente psicanalítico fundado
em operações de recalque:
Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como
motor das experiências sociais que podem aparecer como herança de
experiências históricas. A verdadeira questão é: quais os conflitos que levam
sujeitos a se constituírem em uma massa que se sustenta através da
implementação de exigências libidinais? Esses conflitos psíquicos, cuja
compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à constituição do Eu,
com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de sujeição psíquica,
explicam principalmente a natureza das relações sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas
revolucionárias, já que os processos revolucionários são exatamente aqueles nos
quais as figuras de autoridade são depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever
Psicologia das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores,
Paul Federn, escrevera Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais
(1919). Neste texto, que Freud certamente conhecia pois seus argumentos
principais foram apresentados na Sociedade das quarta-feiras, Federn via no fim
do Império Austro-Húngaro e na queda da figura do Imperador, assim como na
vitória da Revolução Soviética, a possibilidade do advento de sujeitos políticos
que não seriam mais “sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto, tais
sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relações fraternas, relações
distintas e que não se derivam completamente da estrutura hierárquica de uma
relação com o pai que até então havia marcado a experiência política de forma
35
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
hegemônica. Para que novas formas de identidades coletivas fossem possíveis,
não bastaria apenas transmutar a identificação com o pai em recusa de seu
domínio. Seria necessária a existência de um modelo alternativo de
identificações que se daria de maneira horizontal e com forte configuração
igualitária. Daí uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente herdada
ainda que em uma intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo
princípio social, este da comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está
carregado de culpabilidade e temor interior. Seria uma liberação imensa se a
revolução atual, que é uma repetição das revoltas antigas contra o pai, tiver
sucesso”36.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas
poderiam constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e
não completamente dedutível das relações verticais entre filhos e pais, inscreve-
se no horizonte de reflexões sobre estruturas institucionais pós-revolucionárias.
A partir de tal modelo, Federn tentará pensar o fundamento libidinal de
organizações políticas não-hierárquicas como, por exemplo, os sovietes e os
conselhos operários que procuravam se disseminar na nascente república
austríaca graças às propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma república socialista de conselhos
operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa
de uma dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas
baseada na reciprocidade igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de
Freud que, neste sentido, estaria mais à vontade lembrando da agressividade
própria às relações fraternas com suas estruturais duais baseadas em rivalidade.
Por isto, as relações de cooperação tipificadas em confrarias ou comunidades de
iguais só podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano, apoiando-se
na exclusão violenta da figura antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revolução bolchevique, Freud
pergunta-se sobre o que os soviéticos farão com sua violência depois de
acabarem com seus últimos burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de
massa para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões
revolucionárias (como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja:
duas instituições que não pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressão
social. Pois se trata de afirmar que a lógica da regressão social, esta mesma que
anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem, criança, neurótico e
que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no cerne de
nossas instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las).
Se levarmos em conta que estamos a falar de um cidadão do finado Império
Austro-Húngaro, podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder
teológico-político da igreja e as forças armadas é uma maneira metonímica de se
referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza
constitutiva das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo
freudiano vem da igreja católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o
general. As relações entre os membros e o líder constitui uma relação na qual
36
FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238
todos estão igualmente distantes do centro, Por outro lado, é o vínculo libidinal
ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do desaparecimento do líder
provocar ou pânico provocado pela anulação das ligações mútuas ou uma
desintegração que libera a violência generalizada contra aquele que aparece
como o outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere
a uma tese sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma
identidade coletiva precisa de uma identificação vertical para se constituir. Ela
precisa de uma relação à representação de soberania. Essa é uma tese forte e
polêmica, mas lembremos que tal identificação vertical não precisa
necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
ideia, uma representação, uma organização. Mas, para Freud, tais identificações
verticais devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois
fenômenos: o pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há
religião do amor sem violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião
do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela.
No fundo, toda religião é uma religião do amor para aqueles que a abraçam, e
tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores”37. Nesta
proposição, está sintetizado o fundamento do antagonismo político através da
consolidação de relações amigo-inimigo. As massas são constituídas como
mecanismos de defesa contra o pânico vindo da angústia da ausência de
identificação, assim como da defesa contra a desintegração da gestão das
relações antagonistas entre amigo e inimigo.
Problemas de imagens
37
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
38
idem,
comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui
que todos os patrões são exploradores39.
39
LE BON, idem, pp. 44-45
personificada. Ao acreditar na relação fundamental entre norma e fantasia, ou
antes, ao operar como quem não é capaz de estabelecer distinções entre norma e
fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das massas e dos
“grupos transitórios” fortemente dependentes de móbiles psicológicos para todo
e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud não apenas indicaria a gênese
das ilusões substancialistas que afetam a representação da autoridade do Estado,
mostrando como tais ilusões significariam o retorno de uma mentalidade arcaica
a ser combatida por inviabilizar uma concepção democrática da vida política
incapaz de sobreviver ao conflito particularista das paixões. Neste sentido, a
perspectiva freudiana não é eminentemente crítica, o que para Kelsen seria bem-
vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e qualquer vínculo social a
partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua multiplicidade
empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto para a própria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica.
De um lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de
grupo”40, insistindo que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o
Estado, para o jurista austríaco
40
KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323
41
Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e
leituras “republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo
para o exercício do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a
ereção dos cidadãos que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é
aqui objeto de amor unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem
cabeça, sem ‘chefe’ no sentido freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-
culotte?, op. cit., p. 217)
a maneira com que autoridade e fantasia se articulam, o que nos levará
diretamente à teoria do supereu, como veremos na próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura
nossa relação ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá, Freud lembrava
como tudo se passava como se sujeitos agissem no interior das relações sociais
tendo que carregar o peso da culpabilidade e da melancolia produzida pelo
assassinato de um pai primordial. Os sujeitos se socializam, eles agem
socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a qualquer ação,
melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste sentido, se Freud se vê
obrigado a afirmar o caráter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é
por entender que os vínculos à ordem jurídica procuram se legitimar através da
reiteração retroativa de um modelo de demanda de autoridade. Tais vínculos não
se alimentam apenas da especificidade de relações familiares, mas assentam-se
em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o exército, aparelhos mais
gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos libidinais. Com
esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento jurídico
para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmática da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificação política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma
que só pode nos levar à crença na imunidade à problematização política do
quadro jurídico com seu ordenamento e seus mecanismos previamente
estabelecidos de revisão. a teoria freudiana da psicologia das massas fornece
uma crítica a tal positivismo jurídico.
Psicologias do fascismo
Aula 3
42
FREUD, Psicologia das massas e análise do eu, op. cit., p. 71
43
FREUD, Psicologia das massas - introdução
interação no interior do núcleo familiar servirão de base para desenvolvimentos
subsequentes. Isto permite a Freud fazer afirmações como:
44
FREUD, Totem und tabu in Gessamelte Werke, vol.IX, Frankfurt, Fischer, 1999,, p. 177
45
FREUD, O homem Moisés e a religião monoteista, p. 207
Freud precisa insistir na prevalência do núcleo familiar para colocar, na
origem da vida social, as marcas do antagonismo. Por isto, seu conceito de
família é basicamente a narrativa de um sistema de conflitos de identificação
descrito por ele através do complexo de Édipo.
Neste sentido, podemos aceitar que: “livrar a ideia do dirigente político da
analogia familiar-política, da analogia teológico-política assim como da analogia
epistemo-política (a compreensão do dirigente como detentor do Saber) foi e
continua sendo uma tarefa incessante do pensamento crítico”46. Mas não
devemos ver Freud como alguém que procuraria retornar a tais analogias
familiar-políticas ao insistir em como as representações de liderança são
produzidas e dependem de representações familiares. Pois se Freud opera desta
forma é para demonstrar como as saídas neuróticas do complexo de Édipo ainda
determinam nossas formas de aquiescência ao poder, nossas maneiras de dirigir
demandas à esfera do político.
Lembremo-nos disto para compreender melhor porque Freud partilha
com Le Bon a defesa da natureza inconsciente da ação das massas, mas para
dizer que o inconsciente psicanalítico nada tem a ver com o sistema de heranças
hereditárias descrito pela psicologia das massas de sua época:
Se falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor
das experiências sociais que podem parecer herança de experiências históricas, é
porque falta a compreensão da maneira com que os conflitos psíquicos
produzidos nos processos “normais” de socialização produzem indivíduos com
fortes tendências a regressão social. Por isto, lembrei a vocês como não era mero
acaso que os dois exemplos privilegiados de massa para Freud não fossem, como
poderíamos esperar, eclosões revolucionárias (como a Comuna de Paris, para Le
Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições que não pareceriam, a primeira
vista, exemplos de regressão social. Pois se tratava de afirmar que a lógica da
regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da
tríade selvagem, criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa, é peça
constitutiva que atua no cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas
força que visam desestabilizá-las). Assim, se a questão fundamental do texto de
Freud era: “porque homens modernos retornam a estruturas de comportamento
em contradição flagrante com seus próprios níveis de racionalidade e com o
estágio atual da civilização tecnológica esclarecida”48, a resposta passava por
expor como tais “níveis de racionalidade” e tal “estágio atual da civilização” era
indissociável da conservação de arcaísmos e de formas de servidão.
Freud termina esta parte introdutória identificando uma espécie de ponto
cego das teorias de Le Bon, assim como nas teorias de McDougall. Ponto este que
se encontraria na reflexão sobre a natureza do líder das massas. De nada adiante,
46
MONOD, Jean-Claude; Qu’est-ce qu’un chef en démocratie?, Paris: Seuil, p. 87
47
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
48
ADORNO, Freudian theory ..., p. 412
segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma
idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Para
compreender a dinâmica do político nas sociedades modernas faz-se necessário
uma teoria que vincule os processos de formação do Eu à análise da natureza dos
vínculos entre sujeitos e figuras de autoridade. Este é o problema central do livro
e é ele que será o objeto das articulações presentes nos próximos capítulos.
Trata-se de um problema que permitirá, a leitores como Adorno, encontrar neste
livro a previsão: “da ascensão e natureza dos movimentos fascistas de massa
através de categorias puramente psicológicas”49.
49
ADORNO, Freudian theory and the patterns of fascist propaganda, p. 411
50
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 63
pode aparecer ainda como processo de introjeção do objeto perdido na
melancolia ou como escolha homossexual de objeto. Lembremos ainda que tal
introjeção pode se dar de outras formas, além da constituição de ideais. Ela pode
se dar de maneira parcial “tomando apenas um traço da pessoa-objeto”51. Ela
pode se por identificação ao sintoma do outro, ou seja, repetindo seus modos de
adoecer e seus conflitos.
Freud insiste nestes processos de identificação a fim de lembrar como ele
tem valor explicativo no caso da relação entre o indivíduo e o líder da massa.
Pois percebamos que este objeto introjetado, embora apareça inicialmente como
limitação do narcisismo, é ainda um modo de investimento narcísico, já que ele
aparece como Ideal do eu. Isto nos leva a afirmar que:
Melancolia e poder
51
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 64
52
ADORNO, idem, p. 418
53
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 67
melancolia oferece uma visão potencial a respeito de como os laços do
social são instituídos e mantidos, não apenas às expensas da vida
psíquica, mas através da ligação da vida psíquica à formas de
ambivalência melancólica54.
54
BUTLER, Judith; The psychic life of power, p. 168
55
FREUD, Sigmund; “O Eu e o Id”, In: Obras completas vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 34.
56
FREUD, idem, p. 73
“o objeto consumiu o Eu, por assim dizer”57. Isto a ponto de Freud comparar o
objeto amado ao hipnotizador: “a mesma humilde sujeição, mesma docilidade e
ausência de crítica ante o hipnotizador, como diante do objeto amado”58. Essa
forma de descrever o enamoramento como empobrecimento do Eu, e não como
alguma forma de confirmação mútua de si no interior de relações pretensamente
simétricas ou como alguma forma de despossessão mútua que leva todos a
narrarem a si de outra forma, mostra como estamos a falar de relações
assimétricas fundadas em uma lógica melancólica, na qual o objeto amado retira
sua força da associação a um objeto perdido.
Se formos a um texto fundamental de Freud tal qual “Luto e melancolia”,
veremos porque Freud insiste em inserir a etiologia da melancolia no interior de
uma reflexão mais ampla sobre as relações amorosas. Essa é a maneira freudiana
de lembrar que o amor não é apenas o nome que damos a uma escolha afetiva de
objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva a partir
da transformação de investimentos libidinais em identificações. Esta é uma
maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação
dinâmicas identificatórias de formação da identidade, já que tais relações
fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo, de
produzir as condições para o seu reconhecimento. Através das relações
amorosas, traços de caráter são modificados e identificações ao outro são
integradas. Eu sou aquilo que eu amo.
Por exemplo, Freud aceita uma teoria na qual a bissexualidade é a posição
inata dos sujeitos. Eles começam por investir libidinalmente as duas figuras
parentais, o pai e a mãe. No decorrer do processo de constituição de uma
identidade de gênero, um desses investimentos é recalcado, perdido. Mas essa
perda não é simples anulação. Antes, ela produz uma posição melancólica. A
posição masculina deve perder o investimento libidinal na figura paterna,
trocando-o por uma identificação. A posição feminina deve perder o
investimento libidinal na figura materna, trocando-o por uma identificação. Estes
investimentos, no entanto, mesmo recalcados voltam melancolicamente ou como
reprimenda e desvalorização contra si, por ter perdido o objeto outrora amado.
Neste sentido, lembremos da definição freudiana:
57
Idem, p. 72
58
Idem, p. 73
59
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naif, 2010, p. 47.
mim como marcas de identificação narcísica com o objeto que me decepcionou.
Nesse sentido, uma afirmação importante de Judith Butler diz que “Freud
identifica consciência elevada e auto-reprimendas enquanto signos da
melancolia com um luto incompleto. A negação de certas formas de amor sugere
que a melancolia que fundamenta o sujeito expressa um luto incompleto e não
resolvido”60. Assim, a sujeição do desejo pode se transformar em desejo por
sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o saldo afetivo
fundamental de um modelo hegemônico de instauração da vida psíquica.
Notemos então como o poder melancoliza os sujeitos que ele assujeita,
fornecendo o fundamento libidinal das dinâmicas de servidão voluntária. Freud
compreende que a relação da massa ao líder é caracterizada por impulsos
sexuais inibidos na meta. Isto significa que, mesmo servindo-se de energia
libidinal, as relações autoritárias de poder fundamentam-se na perpetuação de
certa forma de recalque. Mas de um recalque que, ao mesmo tempo, reascende a
força do objeto anteriormente investido. Assim Freud poderá dizer:
A plena satisfação dos impulsos sexuais permite uma descarga que não
faz “laços tão duradouros entre as pessoas”. Mas a duração é baseada em uma
forma muito específica de inibição, a saber uma inibição melancólica. Uma
inibição da meta que guarda relações indiretas com a meta inibida. O líder
autoritário guarda sempre traços daquilo que ele combate ou organiza
purgações periódicas contra grupos e sujeitos que reascendem aquilo que os
sujeitos precisaram perder para constituir os sistema de cicatrizes que
representa sua própria identidade. Essa dinâmica é fundamental para
compreendermos a lógica libidinal da relação entre massa e líder. O líder, assim
como a instituição autoritária, oferece uma maneira do sujeito se relacionar
àquilo que fora anteriormente objeto de seu investimento e que ele precisou
recalcar para constituir uma identidade. Essa maneira pode se dar de duas
formas: através de impulsos sexuais inibidos na meta (e não é por outra razão
que Freud procurou, como paradigma das massas, duas instituições homogêneas
e de forte vínculo homossexual inibido como a igreja e o exército) ou através da
inversão do afeto, de amor a raiva, e a constituição do objeto social de agressão.
A explosão de desrecalque que a massa produz é, na verdade, apenas a
contrapartida de uma posição melancólica mais profunda e original.
60
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
61
FREUD, Psicologia das massas, p. 75
um único objeto no lugar de seu ideal do eu e que, consequentemente, se
identificaram uns com os outros em seu Eu” 62 . Os membros da massa
identificam-se entre si horizontalmente porque todos eles se identificam
verticalmente com um único objeto no lugar de seu Ideal do Eu, ou ainda, de seu
supereu. O líder da massa é assim um representante do supereu social. Freud
ainda dirá, de forma mais explícita: “o indivíduo abandona seu ideal do eu
(Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” 63.
Lembremos, a este respeito, de alguns traços gerais dos processos de
socialização próprios à família burguesa. Relação marcada pela sobreposição
entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito
entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como
sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário
que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei
repressora em relação às exigências pulsionais. Para ser reconhecido como
sujeito, a criança deve abrir mão de certos desejos (como os desejos incestuosos
e agressivos) e saber hierarquizar suas pulsões a partir de uma vontade
relativamente unitária. Ele deve aprender a « agir como » uma autoridade
paterna dotada de força de coerção.
O resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de
observação”, no caso, o supereu derivado da identificação com os pais e outras
representações de autoridade. A internalização da lei parental através do
supereu é, para Freud, signo sempre legível de uma demanda de amor, e saber-se
objeto amado por um Outro (que é representante da Lei simbólica), saber-se
potencialmente protegido por alguém a quem reconheço certa força tem, para o
sujeito, o valor da anulação de uma posição existencial de pura contingência.
Lembremos disto: todo vínculo a autoridade é baseado sob alguma forma de
demanda de amor e reconhecimento; ele nunca é simplesmente o resultado de
alguma coerção. No entanto, há um conflito fundamental entre, de um lado,
repressão a desejos incestuosos, agressivos e polimórficos e, de outro, demanda
de amor e reconhecimento.
Podemos nos perguntar aqui por que a formação de uma instância
psíquica como o supereu deve ser vivenciada necessariamente sob a forma da
repressão. Pois ela poderia ser vivenciada como uma espécie de aceitação tanto
da limitação necessária de exigências pulsionais de satisfação quanto de um
ordenamento fundamental para a perpetuação da vida social. Mas sabemos como
Freud insiste ser impossível submeter-se integralmente às injunções do supereu
sem que isto não leve à pura e simples auto-destruição. Conhecemos as páginas de
Freud dedicadas à descrição da « ferocidade » irracional do supereu na sua
aplicação de exigências ao Eu. Isto a ponto dele indicar, como ideal do
tratamento psicanalítico : « fortalecer o Eu, torná-lo independente do supereu,
estender seu campo de percepção e ampliar sua organização de maneira que ele
possa se apropriar de pedaços do Isso. Onde Isso estava, devo Eu advir »64. Isto
talvez se explique pelo fato do supereu não ser apenas a internalização de um
conjunto de regras e normas que visam orientar a conduta e o desejo. Antes, ele
indica a constituição e internalização de uma representação fantasmática de
autoridade que sempre acompanhará o sujeito. Ele é o complemento fantasmático
62
FREUD, idem, - capítulo VIII
63
FREUD, Massenpsychologie und Ich-analyse, p. 144
64
Idem, GW vol. XV, op. cit., p. 86
necessário para minha aquiescência à regra e à norma. Tal representação é, ao
mesmo tempo, objeto de amor (por ocupar o lugar para o qual minhas demandas
de amparo se dirigem, por alimentar minhas expectativas de gratificação, por
aparecer como promessa de segurança e proteção) e de ódio (por suas injunções
serem vivenciadas de maneira restritiva).
Jacques Lacan tem uma maneira precisa de explicar esta natureza
restritiva do supereu, isto quando insiste que ele é uma “lei desprovida de
sentido”65. Podemos compreender tal ausência de sentido a partir da ideia de
que as injunções do supereu são determinações contraditórias feitas apenas para
submeterem o sujeito a uma representação fantasmática de autoridade que deve
perpetuar um sentimento de inadequação, fraqueza e impotência. Como se, ao
final, a afirmação do líder para as massas seria sempre um: “vocês não estavam à
altura”. Como Hitler a dizer que ao final que o povo alemão não estava à altura de
seu destino.
Este sentimento de inadequação é fundamental para conservar uma
representação de autoridade superegóica, já que a possibilidade de tal
representação conservar-se como lócus de acolhimento de uma demanda de
amor está vinculada ao velamento de sua impossibilidade em dar conta do
desamparo e de impedir a confrontação com a contingência. E a maneira mais
eficaz para isto é impondo obrigações contraditórias ou superlativas que nunca
poderão ser realizadas pelo sujeito. Desta forma, a ineficácia do supereu em suas
funções de proteção e segurança acaba por ser, de uma certa forma, invertida
para ser vivenciada como impotência do próprio sujeito em se adaptar às
exigências do supereu, o que ao menos preserva o supereu como representação
fantasmática de autoridade. Estamos dispostos a tudo, mesmo a nos auto-destruir,
para defender a crença de que há um amor que pode nos livrar da insegurança.
Estamos dispostos até a esconder a impotência do Outro que nos promete tal
amor. Neste sentido, só podemos concordar com psicanalista inglês Adam
Phillips :
“Do ponto de vista de Freud, nossa impotência não diminui com o tempo.
Ela nos inquieta cada vez mais, e o terror da qual ela é a fonte nos faz
procurar a segurança ao invés da satisfação, a magia ao invés do alimento,
o desmentido ao invés da constatação. Para Freud, somos animais
atormentados por nossa impotência”66.
65
LACAN, Jacques; Séminaire I, Paris: Seuil, 1975, p. 9
66
PHILLIPS, Adam; Trois capacites négatives, Paris : Editions de l´Olivier, 2009, pp. 90-91.
67
BALIBAR, Etienne; Citoyen Sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: Seuil,
2011, p. 384
dependência e sujeição alimentadas não apenas pela reiteração do medo da paz
do rebanho ser, a qualquer momento, destruída pela matilha de lobos, medo que
o pastor saberá bem manejar para conservar o rebanho paralisado, mas pela
culpabilização do meu próprio desejo de violência contra a norma de igualdade
restritiva enunciada pelo poder. Neste sentido, se Freud pode dizer que o
sentimento de culpa é o “mais importante problema no desenvolvimento da
civilização”68 é porque, entre outras coisas, ele conhece sua função decisiva na
construção da coesão social e na sustentação das relações com a autoridade. Uma
função que não se reduz à expressão da responsabilidade consciente diante dos
impulsos de transgressão de normas aceitas como necessárias para a
perpetuação da vida social. Ela indica principalmente o vínculo libidinal
inconsciente com objetos que perdemos, que ainda tem a força de projetar em
nós a sombra de reprimendas sem fim e de auto-destruição melancólica. A culpa
que sustenta os laços sociais sob a égide do poder tem uma gênese em fantasias
inconscientes construídas a partir de objetos que perdemos, e muito pouco tem a
ver com a expressão de uma responsabilidade diante da perpetuação da vida
institucional assumida de forma consciente.
68
FREUD, Sigmund; “O mal estar na civilização”, op. cit., p. 106
Psicologias do fascismo
Aula 4
Na aula de hoje, vamos terminar nossa leitura de Psicologia das massas e análise
do eu através do comentário de seus últimos capítulos. Neles, veremos a
mobilização feita por Freud a partir da hipótese antropológica do assassinato de
uma figura coercitiva como fundamento do vínculo social. Assassinato provoca
uma circulação de afetos que pulsam entre a melancolia e a mania, definindo as
dinâmicas regressiva no interior da massa.
Antes, gostaria de lembrar a vocês o que vimos até agora, qual o saldo de
nosso trajeto de leitura. Vimos como Freud abria o espaço para uma psicologia
das massas que se enraizava na análise dos processos de formação da
individualidade moderna. Sua ideia central era de que os fenômenos sociais de
regressão não poderiam ser vistos como a emergência de estruturas arcaicas
sedimentadas em um inconsciente que se confundiria com a dimensão do
irracional. Eles eram o anverso necessário dos processos hegemônicos de
constituição de individualidades. Freud procurou mostrar como individualidades
eram constituídas a partir de identificações através das quais lidávamos com
nossas contradições, nossas bivalências, nossa polimorfia a partir da
internalização de figuras disciplinares que tiravam sua força não daquilo que
eles eram capazes de produzir, mas da maneira com que eles eram capazes de
perpetuar nossa dependência a um poder social que não poderia entregar o
amparo que prometia. Ou seja, a ideia central de Freud é que a individualidade
moderna é estruturalmente dividida, ela é um espaço estrutural de sofrimento
por estar cindida entre a disciplina e sua transgressão, entre a unidade e a
multiplicidade, por ser o campo de uma espécie de guerra civil.
As formas de sua gestão desta divisão serão o fundamento para os
processos de regressão social. Assim, as regressões não serão simplesmente o
retorno a alguma forma de demanda de proteção paterna, de retorno à
simplicidade dicotômica de situações. Elas serão, na verdade, as formas de
gestão da divisão subjetiva. Vimos uma dessas formas de gestão através da
melancolia. Eu afirmara que a massa é uma produção melancólica, que a
verdadeira violência do poder consiste em submeter sujeitos à melancolia, que
há uma melancolia das massas. Isto nos permitiu compreender um pouco porque
Freud insiste tanto em levar em conta a natureza vertical da relação entre
massas e líder. Pois ele quer mostrar como a violência das massas contra grupos
e populações específicas, sua relação hipnotizada ao líder não são explosões
arcaicas de violência originária, nem a expressão de uma necessidade animal de
submissão e de comando. Elas são expressões de reações melancólicas. A
violência contra grupos é indissociável da maneira com que objetos
anteriormente amados e investidos serão postos em uma série na qual
encontraremos ao final os grupos atuais que são alvos de violência. Daí porque
essas dinâmicas de massa são tão vinculadas às temáticas da traição, da luta
contra os infiltrados, contra aqueles que parecem conosco mas não o são.
Baseando-se em uma interversão do afeto, de amor a ódio, note-se como
este “ódio” é estruturalmente diferente, pois ele é um afeto através do qual
sujeitos se voltam contra aquilo que um dia amaram, o que faz dele um
sentimento muito mais contínuo. A dimensão maníaca da ação das massas será
sempre marcada por tal dinâmica. Ela se baseia no caráter de “festa” que esta
esse “periódico desrespeito das proibições”69 produz.
Por outro lado, a identificação das massas ao líder é descrita por Freud
como uma identificação superegóica. Isto significa que sua função é perpetuar
uma fantasia que dará sustentação ao poder. Esta fantasia é baseada em uma
demanda de amor cujo resultado só pode ser certo empobrecimento do Eu, certa
paralisia de sua ação. Pois este amor é baseada na internalização de objetos
perdidos que agora se voltam contra o próprio Eu em uma dinâmica de auto-
reprimenda e auto-depreciação. A função do líder, neste caso, é levar os
indivíduos a exigências cada vez mais superlativas, como se estivéssemos diante
de provas de amor que precisam sempre serem dobradas. O fim não poderia ser
outro que uma relação na qual o próprio líder se volta à massa como se ela não
estivesse à altura de seu destino, como se ela o tivesse traído. O líder promete à
massa que ela será “grande novamente”. Ele entrega sempre uma catástrofe na
qual todos são jogados à sua própria pequenez.
69
FREUD, Psicologia das massas, p. 91
70
FREUD, Psicologia das massas ... – capítulo IX
sentimento inicialmente hostil em vínculo positivo próprio à natureza da
identificação”71.
Por outro lado, a noção de instinto gregário passa ao largo, mais uma vez, do
caráter constitutivo das relações sociais de dominação. Ela não fornece um quadro
explicativo sólido para a compreensão da figura do líder (ou de alguma instância
central de autoridade) como elemento fundador da massa. Pois, para compreender o
problema da natureza dos vínculos sociais, não é possível abstrair o problema dos
modos de interação social do problema do poder. Ao contrário, devemos sempre
lembrar que relações simétricas fundam-se a partir do reconhecimento anterior da
essencialidade de relações assimétricas. Daí porque o problema freudiano é, seguindo
esta longa tradição de reflexão sobre o fato político que vincula o problema do
política à assimetria do poder, compreender porque: “todos querem ser dominados por
um só”72. É para tentar dar conta deste problema que Freud retorna, mais uma vez, ao
seu mito antropogenético do assassinato do pai primevo.
De fato, Freud é claro em seus propósitos quando afirma que: “A massa nos
aparece como uma revivescência da horda originária. Da mesma forma que o homem
das origens manteve-se virtualmente em cada indivíduo, a horda originária pode se
constituir a partir de qualquer agregado humano”73.A função desta articulação entre
massa e horda originária consiste, principalmente, em fornecer uma perspectiva de
apreensão das peculiaridades da figura do líder das massas modernas. Tanto é assim
que Freud não deixa de lembrar: “as massas humanas nos mostram, mais uma vez, a
imagem familiar de um indivíduo isolado, onipotente no interior de uma horda de
iguais, imagem igualmente presente na nossa representação da horda originária” 74.
Esta aproximação é fundamental no interior do quadro freudiano de análise porque se
trata de mostrar como a força de coesão do líder das massas não vem, simplesmente,
da sua capacidade em se colocar como tipo ideal que regula sua conduta, por
exemplo, a partir do ascetismo do dever, da imagem de auto-controle sereno de si, da
ética da convicção, como poderíamos imaginar se compreendermos a gênese das
figuras de autoridade como o que advém destes ideais do eu sintetizados pela
internalização da lei paterna. Ao contrário, e este foi um ponto claramente visto por
alguém como Adorno, as figuras de liderança são encarnações de algo como um
supereu social. Daí porque Freud pode afirmar que: “o pai originário é o ideal da
massa que domina o eu no lugar do ideal do eu”75.
Esta natureza própria ao supereu social apropriado pelo líder explica, aos
olhos de Freud, dois traços maiores advindos das figuras modernas de liderança. O
primeiro é que, enquanto tipo ideal pautado pela imagem arcaica de um pai primevo
que não se submete aos imperativos de repressão do desejo, o líder consegue
mobilizar uma revolta contra a civilização e sua lógica de socialização (já que fornece
uma imagem para além da lógica repressiva), mas perpetuando relações de dominação
instrumental. Ele mobiliza representações vinculadas ao fantasma de que a demanda
de amor que suporta os processos sociais de identificação seja direcionada e ouvida
por figuras marcadas pela onipotência (maneira de bloquear a rivalidade própria à
ambivalência da figura paterna na família burguesa). Neste sentido, sua legitimidade
vem da força em mobilizar continuamente estruturas fantasmáticas inconscientes
pressupostas por processos de socialização no interior da família burguesa.
71
idem
72
idem
73
idem, - capítulo X
74
idem
75
FREUD, idem, cap. X
Aqui, vale a pena retornar a algumas considerações postas rapidamente no
final de nossa leitura de Totem e tabu.
76
LEVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, p. 610
77
MARCUSE, Eros e civilização, p. 70
78
BALIBAR, Etienne; L’invention du surmoi, p. 32
79
FREUD, Totem und tabu, p. 125
Tal relação absolutamente particular indicaria uma certa forma de participação:
“quanto mais voltamos no tempo, mais evidente fica que o membro de uma clã se
considera como fazendo parte da mesma espécie que seu totem”, como se os
membros do clã descendessem de um totem elevado à condição de ancestral. Isto
permite a Freud afirmar que a questão central do totemismo estaria presente nas
relações entre a descendência totêmica e os imperativos de exogamia.
Com este problema em vista, Freud passa em revista às teorias sobre a
origem do totemismo, organizando, para isto três grupos explicativos. No
primeiro, estariam explicações de cunho nominalista. O totem seria uma
designação nominal através da qual um clã tomaria o nome de um animal de
empréstimo a fim de realizar exigências de distinção. Posteriormente tal
empréstimo teria se naturalizado, fazendo com que a ilusão da descendência
totêmica fosse criada. No segundo grupo, estariam as ditas teses sociológicas que
veem no totemismo a representação visível de uma religião social. Por fim, as
teses psicológicas baseadas na ideia de que o totemismo seria resultado da
crença primitiva a respeito da transmigração das almas e da reprodução.
Nenhuma destas explicações satisfaz Freud, já que todas elas parecem
ignorar a relação necessária entre elaboração de conflitos pulsionais e formação
de estruturas sociais, ou antes, entre economia libidinal e teoria social. Desta
forma, ele passa então a construir, a partir de teorias distintas, um outro quadro
explicativo para o fenômeno do totemismo. Dois nomes são fundamentais aqui:
Charles Darwin com sua teoria da horda primitiva apresentada em A
descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, de 1871 e William
Robertson Smith com sua teoria do festim totêmico apresentada em A religião dos
semitas, de 1889.
Baseado nas teorias de Darwin, Freud afirma que o estado social
originário do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho impediria a promiscuidade sexual,
produzindo com isto a exogamia. Para acoplar tal teoria aos esquemas próprios
ao totemismo, bastou a Freud recorrer às similitudes entre fato social e sintoma,
no caso, sintomas infantis de fobia de animais. Por exemplo, é sintomático como
Freud compreendia a lógica que regia a constituição do objeto fóbico do pequeno
Hans (o medo de ser mordido por um cavalo). Um dos pólos de produção da
fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou seja, a mesma representação
paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma instabilidade no interior
da identidade da representação. Para rejeitar tal ambivalência, Hans desloca a
angústia diante do pai para uma angústia diante de cavalos e denega a moção
agressiva contra o pai. O cavalo aparece assim como um “substituto do pai
(Vatersurrogat)”. É exatamente a mesma lógica que permitirá a Freud afirmar
que o animal totem não seria outra coisa que uma representação substituta do
pai, da mesma forma que o animal no interior de uma fobia infantil. Daí a
afirmação central que permite a compreensão do sentido das interdições tabu
através do uso do Complexo de Édipo:
Afirmações como esta renderam várias críticas ao texto freudiano, já que se trata
de assumir a universalidade do Complexo de Édipo (um complexo resultante de
certas características específicas da família burguesa, como a sobreposição de
rivalidade e identificação com a figura paterna) como dispositivo geral de
socialização do desejo no interior da cultura.
Por fim, Freud apoia-se em Robertson Smith a fim de insistir que o
sacrifício e a festa são práticas sociais fundadoras e renovadoras dos vínculos
sociais. Neste sentido, lá onde há sacrifício e festa há uma organização social
baseada na circulação de dons (sacrifício) e no reconhecimento de uma Lei que
se faz sentir no momento mesmo em que é suspensa (festa). Smith lembra que: ‘a
forma mais antiga do sacrifício, anterior ao uso do fogo e ao conhecimento da
agricultura, era o sacrifício animal cuja carne e sangue eram consumidos em
comum pelo deus e seus adoradores”81 isto a fim de identificar o animal
sacrificado e o animal totêmico. Daí a hipótese do “festim totêmico”:
A partir daí, as peças estão armadas para que Freud apresente a hipótese
do assassinato do pai primevo, senhor da horda originária:
80
FREUD, Totem e tabu
81
idem
82
idem
83
idem
preservação do lugar do pai primevo como um lugar vazio ocupado por um
substituto, o totem, que deve a partir de então ser objeto de homenagens e
cuidados. O totemismo aparece assim como um sistema de defesa contra o
sentimento de culpa. Sem o totemismo, tal sentimento recrudesce novamente (o
que explicaria seu retorno na modernidade).
Com este esquema explicativo, Freud procura dar conta do advento da
religião (que teria herdado do totemismo este esquema de sentimento de culpa
em relação a uma representação paterna), assim como a transformação de uma
“sociedade sem pais” em sociedade patriarcal. Sociedade, no entanto, em que a
figura paterna é uma pálida encarnação desta representação do pai primevo.
Mas o que podemos dizer deste mito freudiano? Ha duas dimensões do
problema que merecem nossa atenção. A primeiro diz respeito a esta figura do
poder que Freud apresenta através da hipótese do pai primevo. A segunda diz
respeito à anterioridade da culpabilidade em relação ao estabelecimento da Lei
social e da moralidade.
Sobre o primeiro ponto, lembremos que o mito freudiano constrói o pai
primevo como uma figura na qual convergem a enunciação soberana da Lei e
exigências de regulação social que tocam, principalmente, expectativas de
satisfação sexual. Como se uma genealogia do poder fosse, necessariamente,
arqueologia da maneira com o que é da ordem do sexual é regulado no interior
do tecido social. Não é por acaso que a posse do macho mais forte não é simples
posse de bens, mas posse de mulheres. Freud acaba por dar forma a esta crença
moderna de que o sexual transformara-se em fator central da política. Neste
sentido, lembremos desta afirmação fundamental de Foucault: : ”o que é próprio
das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na
obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o
como o segredo”84. Um valorização que permitiu que algo da ordem das
expectativas utópicas que animaram a esfera do político transformasse o que é
da ordem do sexual em campo fundamental de intervenção social. O que explica
a constatação surpresa de Foucault:
84
FOUCAULT, História da sexualidade I, p. 36
85
idem, p. 13
vivenciados, então podemos dizer que, através do mito do pai primevo, Freud
acaba por nos dizer (mesmo se a contragosto) que o sujeitos modernos agem
como quem vê instituições e figuras reconhecidas de autoridade como aquilo que
instaura e é responsável por uma distribuição desigual das possibilidades de
satisfação subjetiva. Maneira de conservar certas representações fantasmáticas
de satisfação que só podem ter realidade fantasmática.
As consequências políticas de tal representação imaginária serão
exploradas em Psicologia das massas e análise do eu. Ao invés do que
poderíamos normalmente esperar (ou seja, consolidação de demandas de
“redistribuição”), as sociedades modernas estariam abertas ao retorno de figuras
superegóicas de autoridade vindas na linha direta do mito do pai primevo, deste
objeto perdido inicial, ou que permitem a identificação com tais tipos ideais.
Neste sentido, lembremos como algumas das grandes contribuições da Escola de
Frankfurt na análise dos líderes fascistas era a insistência de que não estávamos
diante de líderes que pregavam alguma forma de sistema repressivo “law and
order”, mas de encarnações de sistemas sócio-políticos voltados para a
mobilização contínua de exigências libidinais e de transgressões controladas.
Daí porque eles lembravam que a verdadeira análise da ideologia fascista era
uma análise da economia libidinal que suportava o vínculo a tal ideologia.
Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos
outros no tocante às mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas
para si, e na luta de todos contra todos a nova organização sucumbiria.
Nenhum era tão mais forte que os outros, de modo a poder assumir o
papel do pai. Assim, os irmãos não tiveram alternativa, querendo viver
juntos, senão - talvez após superarem graves incidentes – instituir a
proibição do incesto, com que renunciavam simultaneamente às mulheres
que desejavam, pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai88.
86
(FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do eu, p. 94)
87
Difícil discutir tal função da fantasia social do pai primevo sem recorrer à noção de decisão em
SCHMITT, Carl; Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität, Berlin: Duncker
and Humblot, 1934. Como se tratasse, em Freud, de fornecer a economia libidinal da soberania.
88
FREUD, Sigmund; “Totem e tabu”, In: Obras completas vol. 11, São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 220
89
Idem, p. 226
sacralização do sangue comum, na ênfase na solidariedade de todas as vidas do
mesmo clã”90.
Mas esta comunidade de iguais, esta sociedade sem pais, tem uma
fragilidade estrutural: tal lugar vazio é suplementado por uma elaboração
fantasmática. A fantasia do pai primevo não foi abolida, já que ele permanece na
vida psíquica dos sujeitos sob a forma de um sentimento comum de culpa como
fundamento de coesão social, que denuncia, por outro lado, o desejo que tal lugar
seja ocupado. Assim, o afeto de solidariedade que a comunidade dos iguais
permite circular é também responsável pela paralisia social de quem continua
sustentando a “nostalgia pelo pai” (Vatersehnsucht) agora elevado à condição de
objeto perdido. Este pai que não está lá, mas que faz sua latência ser sentida,
retornará sob uma forma melancólica.
A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma
sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar vazio do poder é, ao
mesmo tempo, lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceção
que se coloca em posição soberana. Isto leva Freud a afirmar:
90
Idem, p. 222
91
Idem, p. 227
Psicologias do fascismo
Aula 5
Demandas e afetos
92
LACLAU, Ernesto; A razão populista, São Paulo: Três Estrelas, 2014. Discuto mais detidamente a
hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de SAFATLE, Vladimir; O circuito dos afetos: corpos
políticos, desamparo e o fim do indivíduo, Belo Horizonte: Autêntica, 2016
O projeto de Laclau parte da impossibilidade de pensar o campo social a
partir da noção de grupos em conflito. A noção de grupo pressupõe uma
homogeneidade de interesse na constituição de atores sociais. Cada ator é
portador de sistemas homogêneos de interesses que entram em conflito com
interesses de grupos opostos. Na verdade, Laclau se propõe a dar um passo atrás
a fim de abrir espaço a uma noção na qual grupos aparecem como arranjos
desenvolvidos a partir de demandas muitas vezes heterogêneas. Neste sentido, é
a noção de “demanda” que ganha importância. Entende-se, neste contexto, por
demanda uma petição, uma exigência. O que deixa claro seu horizonte de direção
a um Outro que deve, de certa maneira, ocupar uma dimensão de poder. Grupos
podem conter demandas muitas vezes contraditórias, heteróclitas e toda questão
gira em torno de compreender como demandas contraditórias podem ser,
muitas vezes, agenciadas em incorporações unificadoras. No caso, como é
possível a criação de hegemonia a partir de um terreno socialmente
fragmentado, disperso e múltiplo. Lembremos que, neste contexto, hegemonia
deve ser compreendido como:
93
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal; Hegemony and socialist strategy, p. 7
seria apenas a ênfase em uma lógica política que é um ingrediante
necessário da política tout court94.
94
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 33
95
LACLAU, Ernesto; La razón populista, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011, p. 91
96
Idem, p. 195
97
Idem, p. 87
ideal do eu e a representação de um mesmo objeto internalizado - que permite a
construção de relações gerais de equivalência na massa - faz o líder tender a
aparecer como “o alargamento da própria personalidade do sujeito, uma
projeção coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante
a última fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual”98.
Adorno explora tal traço ao afirmar que:
Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza” 100,
um declínio que não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias.
Isto talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso não
apenas pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou
que sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Pois:
98
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
99
Idem, p. 421
100
Idem, p. 411.
101
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
102
Idem, p. 95
são colocadas em uma série convergente, são articuladas a partir da
convergência de todas elas a um ponto comum. No entanto, como podem
demandas sociais contraditórias convergirem para um mesmo ponto, para uma
mesma pessoa, para uma mesma ideia? Faz-se necessário que esta pessoa seja
um significante vazio: alguém que nunca enuncia claramente suas posições,
alguém que parece adequar-se a todos os grupos, como se estivesse em uma
posição flutuante. Este significante será a encarnação de uma totalidade cujo
nome será “povo”.
O vazio instaurador
Notemos alguns pontos aqui. O primeiro foi bem salientado por Slavoj
Zizek:
Ou seja, não se trata de dizer que, no populismo, o lugar do poder está vazio.
Trata-se de dizer que o líder é a encarnação de um povo que precisa de um
significante vazio para se totalizar. Este significante pode ser, por exemplo,
valores como “liberdade”, “justiça”. Eles precisam ser vazios para que uma
multiplicidade de demandas possa encarnar-se, transcendendo seus próprios
contextos particulares. Este momento transcendente seria fundamental para a
constituição de toda identidade coletiva.
Só assim o vazio poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o povo
como um modelo de identidade coletiva baseado na multiplicidade. No caso,
multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas
vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma rede de
equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma identidade
popular-coletiva e a determinação de linhas antagônicas de exclusão (agora
politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:
103
ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
104
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
americanos, se servem desta totalização por exclusão para operar no âmbito
político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagônicos no interior do qual o povo, mesmo não se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como única totalidade politicamente legítima,
plebs até então não-representada que reclama ser o único populus legítimo.
Assim se constitui um povo. O que não deixa de ressoar uma ideia fundamental
de Carl Schmitt:
105
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
106
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 110
107
Idem, p. 128
despojar-se de conteúdos particulares a fim de abarcar demandas sociais
que são totalmente heterogêneas entre si. Isto é uma identidade popular
que funciona como um significante tendencialmente vazio108.
Transformação e paralisia
108
Idem, p. 125
109
Idem, p. 136
110
Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
demandas que se alojam em um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da
posição da liderança implica reconhecimento de um lugar, não completamente
enquadrado do ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza
constituinte da vontade política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se
transforme na gestão administrativa das possibilidades previamente
determinadas e constrangidas pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o
espaço aberto para a recorrência contínua de figuras de autoridade e liderança
que parecem periodicamente se alimentar de fantasias arcaicas de segurança,
proteção e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a
própria ambivalência da incorporação em política. Tanto é assim que a definição
de demandas democráticas fornecida por Laclau é bastante sumária:
111
LACLAU, idem, p. 161
de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto
de equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situações nas quais há um cálculo possível que permite a
várias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situação na qual
processos de transformação se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestão contínua
do imobilismo e da inércia, desviada pela construção pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâmica do populismo a
presença destes momentos nos quais o imobilismo se justifica pela
transformação da luta de classes em mero fantasma a assombrar, com ameaças
de regressões a condições antigas de vulnerabilidade, os setores submetidos à
liderança. Assim, consolida-se a dependência às figuras de liderança que já não
são mais capazes de fazer o processo de transformação avançar, mas que tentam
nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à situação de
perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de então se perpetuarão
através do retorno fatídico à mobilização libidinal do medo como afeto político.
Psicologias do fascismo
Aula 6
112
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
113
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
No entanto, para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle
socialmente validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento
que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar
sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a
divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham
a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas,
não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
são homogêneos. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas
atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a
medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e,
principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para
Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela
sociedade do trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:
Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos
sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a
conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são
114
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
115
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas
acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo
humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”116.
Segundo Bataille, esta homogeneidade social produzida pelo trabalho
exige a figura do Estado. Pois a função do Estado seria garantir a homogeneidade
e usar sua autoridade contra forças inassimiláveis. O processo produtivo produz,
no entanto, contradições ligadas ao desenvolvimento da vida econômica. Isso
pode levar “uma parte apreciável da massa dos indivíduos homogêneos a cessar
de ter interesse na conservação da forma de homogeneidade existente”117. Esta
parte pode se associar a formas heterogêneas já existentes.
O sagrado e o poder
116
Idem; O erotismo, p. 184
117
Idem, La structure psychologique du fascisme, p. 342
primitivas, têm em si mesmas seu fim118.
O fluxo afetivo que une o líder aos seus apoiadores – que toma a forma de
uma identificação moral destes com aquele que eles seguem (e
reciprocamente) - é função da consciência comum dos poderes e das
energias cada vez mais violentas, cada vez mais desmedidas que se
acumulam na pessoa do chefe e se tornam indefinidamente disponíveis
nele119.
118
Idem; A parte maldita, p. 21
119
Idem, La strucuture psychologique du fascisme, p. 348
Os seres humanos incorporados em um exército são apenas elementos
negados, negados com um espécie de raiva (de sadismo) manifesto no
tom de cada mandamento, negados nos desfiles, pela uniforme pela
regularidade geométrica realizada dos movimentos cadenciados. O chefe
enquanto imperativo é a encarnação dessa negação violenta. Sua natureza
íntima, a natureza de sua glória, constitui-se em um ato imperativo
anulando o populacho infame (que constitui o exército) enquanto tal (da
mesma forma que ele anula a carnificina enquanto tal)120.
O sacrifício
120
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 358
121
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
122
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos corações de ceder
ao excesso dessa tempestade123.
123
Idem, O erotismo, p. 116
124
Idem, p. 129
de reconhecimento de si na alteridade radical do que não aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
não como identidade, mas como espaço de confrontação com a heterogeneidade
que não se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma
experiência social de emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinação pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusão próprio às massas fascistas, com sua fusão
organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por não
saberem como dar conta de uma experiência da heterogeneidade que se
manifesta sob a forma de desejo de fusão e de perda de limites da
individualidade. Vimos como o fascismo seria maneira de absorver tal desejo
através de uma política das massas, mas onde o desejo de fusão produz uma
homogeneidade organizada sob a identificação, profundamente disciplinar, a um
líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuração e
purificação do corpo social. Maneira da identidade ter a última palavra, mesmo
se através do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e
purificar a heterogeneidade, o fascismo acaba por destruir a heterogeneidade
que está a usar”125.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”126. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante
como:
125
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
126
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
como toda situação humana, transitórias, mas continua possível
encontrar, como uma representação ainda imprecisa, forças de atração
diferentes das já utilizadas, tão distintas do comunismo atual ou passado
quanto o fascismo é das reivindicações dinásticas. É tendo em vista tais
possibilidade que se deve desenvolver um sistema de conhecimentos
permitindo prever as reações afetivas sociais que percorrem a super-
estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor127.
127
Idem, p. 163
Psicologias do fascismo
Aula 7
128
REICH, idem, p. 62
juntamente com A função do orgasmo e A análise do caráter apareceu como uma
reflexão psicológica sobre os mecanismos de servidão e, em segundo nível, como
um estudo sobre a psicologia social do fascismo. A questão inicial gira em torno
da tentativa de compreender a constituição psicológica dos indivíduos como uma
forma de sujeição social, ou seja, como a psicologia do indivíduo moderno é fruto
da internalização da sujeição social. Desta forma, ele espera explicitar em novas
bases a profunda relação entre desejo e o campo social.
Fascismo e sexualidade
129
Idem, p. 299
Ao voltarmos para a história da repressão sexual descobrimos que ela não
nasceu com a cultura, que ela não é condição para a formação da cultura,
mas que ela iniciou relativamente tarde, após a instauração do
patriarcado autoritário e do nascimento das classes130.
Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socialização
que não passam pela repressão das pulsões sexuais. No entanto, um modelo de
dominação política baseado no patriarcado autoritário e um modelo de
espoliação econômica baseado na perpetuação da sociedade de classes é
profundamente solidário da generalização de formas de repressão. Reich eleva a
família autoritária, cujo teatro inconsciente nos é fornecido pelo Complexo de
Édipo, ao núcleo central de reprodução social das dinâmicas de regressão. Ela
será a “célula reacionária central”131, um Estado autoritário em miniatura que
visa não apenas a naturalização de um tipo patriarcal de dominação, mas
também a oposição da mulher como genitora e a mulher como ser sexual, de
onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias numerosas: estratégia
clássica para submeter a mulher a condição de genitora. O que significa que
apenas o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Apenas a anulação de uma prática clínica baseada na
redução dos conflitos psíquicos aos processos de identificação no interior do
núcleo familiar poderia contribuir para a emancipação.
Ou seja, Reich procura fornecer uma análise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressão social em operação nas
dinâmicas de socialização, em especial na família. O que significa aceitar que:
“todo espírito autenticamente revolucionário, toda arte e toda verdadeira ciência
tem suas raízes no núcleo biológico natural do homem”132. A emancipação social
é indissociável de uma certa ressureição da natureza negada, da afirmação de
uma força biológica que permite aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Não
será por outra razão que Reich passará para a história como aquele que
inventará a noção de “revolução sexual”. Não haverá revolução efetiva sem a
quebra das dinâmicas repressivas que fundamentam os processos de
socialização.
Esta será a razão que levará Reich a criticar as revoluções comunistas que
ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucionário desaparece
na medida que as tentativas iniciais de transformação das estruturas das
relações entre os sexos, dos modos de reprodução da família são abandonadas
em prol do fortalecimento dos modelos autoritários tradicionais. Lembremos
como, de fato, os primeiros anos da Revolução Russa foram marcados pela
descriminalização da homossexualidade (1917), pelo reconhecimento do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalização do aborto (1919), além das
defesas da união livre, da emancipação da mulher através do trabalho
assalariado (criação massiva de creches e escolas em período integral), da
socialização dos trabalhos domésticos (muitos dos trabalhos domésticos seriam
transferidos para a esfera pública através de lavanderias coletivas, refeitórios
públicos etc.) e da crítica da família (criação do casamento civil, supressão do
130
Idem, p. 73
131
Idem, p. 164
132
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, op. cit., p. 15
poder marital, exercício conjunto da autoridade dos pais sobre os filhos, e
facilitação extrema dos processos de divórcio). Tais mudanças se consolidam
através do Código das Leis sobre Casamento, Família e Tutela de 1918, mas que
serão revistas no período stalinista.
A forma das reações do ego, que difere de um caráter para outro mesmo
quando os conteúdos das experiências são semelhantes, pode ser
remontada às experiências infantis, da mesma maneira que o conteúdo
dos sintomas e das fantasias133.
133
REICH; Wilheim; Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
134
Idem, La psychologia de masse …p. 56
medíocre e reacionária”. Pois a pequena burguesia simplesmente teria copiado a
atitude dos “grandes”, fornecendo sua versão caricatural e exagerada: “não se
representa impunemente ao pequeno burguês a comédia da ‘grande política’”135.
Ela naturaliza aquilo que, nos estratos mais elevados, seria algo como uma
aparência assumida enquanto tal. Ela é o setor que realmente acredita nas
injunções do discurso do poder e suas estratégias retóricas de auto-justificação.
A personalidade estará assim assentada em uma arqueologia social das
repressões porque o destino da sexualidade moldaria toda a extensão dos traços
de caráter do indivíduo. É isto o que permite a Reich fazer afirmações como:
135
Idem, p. 19
136
Idem, p. 74
137
Idem, p. 104
Imunizar o corpo social
Assim, Reich insiste que o racismo não é apenas uma justificação biológica
para aspirações imperialistas. Sua posição estrutural e decisiva está ligada, por
um lado, à clara desumanização dos que serão objetos da reificação máxima, pois
serão reduzidos à condição de objeto. Mas o racismo fascista, como é voltado
contra setores não submetidos à reificação da escravidão, como os judeus, é para
Reich fruto de estrutura psicológica precisa. Nele, pulsa as formas mais
elementares de recalque sexual através da temática da purificação das raças e da
hierarquia pressuposta que procura aproximar motivos teológicos e geográficos:
138
Idem, p. 192
139
Idem, p. 139
A ideologia fascista separa o desejo de orgasmo do homem das estruturas
humanas formadas pelo patriarcado autoritário e atribui tal separação às
diferentes raças: nórdico se torna assim sinônimo de luminoso, celeste,
assexual, puro; o Oriente médio, inversamente, é instintual, demoníaco,
sexual, orgiástico140.
140
Idem, p. 143
141
Idem, p. 170
Psicologias do fascismo
Aula 8
142
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 154
143
Idem, p. 155
saudades do fascismo dos velhos tempos. Nosso ponto de partida
consistiu em considerar que, em um momento crucial, algo da ordem do
desejo manifestou-se à escala de toda a sociedade para em seguida ser
reprimido, liquidado, tanto por forças do poder quanto por partidos e
sindicatos ditos operários e, até certo ponto, pelas próprias organizações
esquerdistas144.
144
GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
haveria transformação política possível que não começasse por partir da crítica à
sujeição que dá forma à vida psíquica.
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de
“Capitalismo e esquizofrenia” uma experiência intelectual única. Lembremos
desta afirmação de Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo
se manifestou”. Ele deixa claro um dos pressupostos maiores do projeto
Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a ideia de que uma teoria do desejo é,
necessariamente, uma teoria dos modos sociais de produção e que, por
consequência, uma teoria da transformação dos modos sociais de produção só
pode ser uma teoria da transformação do desejo. Um marxista clássico torceria o
nariz a tal colocação, lembrando que a teoria dos modos de produção deve ser
compreendida como expressão dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa
forma, Deleuze e Guattari operam uma substituição da centralidade da categoria
de trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá
Guattari em conceitualização marxista, o desejo não deve ser considerado como
uma superestrutura subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura.
Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem, por exemplo:
145
DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
Neste sentido, o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” é uma peculiar
crítica da antropologia filosófica baseada na categoria de desejo, crítica
construída com o objetivo de fornecer a genealogia dos múltiplos processos de
alienação social. Uma genealogia que não teme apelar, entre outros, a
procedimento clássicos da filosofia social, como uma filosofia da história
constituída, neste caso, a partir dos desdobramentos da forma-Estado e que visa
construir, ao menos segundo as palavras de Pierre Clastres: “uma teoria geral da
sociedade e das sociedades”. Por isto, podemos dizer que o eixo fundamental do
projeto de Deleuze e Guattari pode ser descrito da seguinte forma: articular a
crítica da economia política a uma crítica da antropologia filosófica do desejo.
Como dirá Deleuze: “É pois a economia política enquanto tal, a economia dos
fluxos, que é inconscientemente libidinal: não há duas economias; o desejo ou a
libido são apenas a subjetividade da economia política”146. Maneira de mostrar
como a economia política própria ao capitalismo, com seus processos de
racionalização, é indissociável da procura em dar realidade social a um conceito
de agente cuja compreensão exige a análise de seus modos de desejar,
fundamento maior de seus modos de ser.
Neste ponto, encontra-se uma de suas operações filosoficamente mais
surpreendentes do projeto. Deleuze e Guattari mobilizam uma forte crítica a uma
certa compreensão filosófica do desejo que aproximaria nomes como Platão,
Hegel e, principalmente, a psicanálise (cuja metapsicologia seria fortemente
dependente de certa tradição filosófica), isto a fim de afirmar que tal
compreensão filosófica forneceria o horizonte normativo dos modos de
socialização no interior do capitalismo avançado. Como se o capitalismo fosse
dependente de uma certa metafísica, como se ele fosse, à sua maneira, a
realização social de uma certa metafísica. Por fim, como se sua crítica só pudesse
ser, ao mesmo tempo, a crítica de uma metafísica pretensamente hegemônica no
pensamento ocidental. Maneira de submeter a economia política do capitalismo
a uma crítica da metafísica ocidental, de afirmar que, de certa forma, o
capitalismo é uma metafísica materializada em processos de racionalização
social.
Contra tal compreensão metafísica do desejo, faz-se necessário contrapô-
la a uma outra, construída principalmente através do acoplamento dos conceitos
de conatus, em Spinoza e de potência (Macht), em Nietzsche. Dois filósofos
aparentemente marginais à constituição hegemônica do pensamento ocidental.
Faz-se necessário ainda acoplar tal reflexão filosófica aos conceitos produzidos
pelas práticas de tratamento da psicose colocadas em circulação na Clínica de La
Borde, da qual Guattari fazia parte. A seu ver, este embate ao mesmo tempo
filosófico e clínico é, no fundo, estratégia necessária para fazer a crítica não
apenas de um ontologia do desejo, mas de toda uma política que, por pensar
processos de organização apenas a partir das figuras do partido e do Estado, não
sabe o que fazer quando o desejo aparece, em acontecimentos com forte
potencial de ruptura, para além das figuras de sua alienação. Por isto,
“Capitalismo e esquizofrenia” não é apenas um projeto crítico, mas é uma
proposição de refundação dos campos da clínica e da política, uma tentativa de
fornecer a teoria que, de certa forma, teria faltado a maio de 68, a teoria que o
acontecimento seria capaz de produzir. Pois:
146
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 274
Se é verdade que a revolução social é inseparável de uma revolução do
desejo, então a questão se desloca: sob quais condições a vanguarda
revolucionária poderá se liberar de sua cumplicidade inconsciente com as
estruturas repressivas e desativar as manipulações do desejo das massas
pelo poder, manipulações que as fazem: ‘combater pela sua servidão
como se estivessem a combater pela sua salvação’?147
Segmentaridade e micropolítica
Este horizonte pode nos permitir melhor compreender a maneira com que o
problema do fascismo retorna em Mil Platôs, em especial no seu capítulo IX.
Deleuze e Guattari introduzem sua discussão sobre o fascismo a partir de uma
teoria geral da organização social. Essa teoria não parte de formas de
desenvolvimento em sequência, ela não é evolutiva. Na verdade, ela tenta dar
conta de um jogo de dinâmicas distintas presentes em todas as formas sociais.
Maneira de abandonar uma perspectiva histórica teleológica.
Tendo isto em mente, Deleuze e Guattari partem de uma apresentação de
modos de segmentaridade, conceito que vem de Durkheim e se refere a regimes
de organização e reorganização social que estabelece relações não a partir de um
centro funcional, como no caso da noção de Estado. Aparece aí a distinção entre
sociedades de segmento e as sociedades centralizadas.
Deleuze e Guattari partem daí para abandonar tal distinção e propor duas
formas de segmentaridade : uma dura e binária, outra flexível e não-binária.
Todas as duas estariam presentes em todas as formas sociais, em maior ou
menor grau. Esta é a base para uma distinção bastante presente em sua teoria
entre estruturas molares e estruturas moleculares. Note-se que tais dualidades
não são mobilizadas tendo em vista uma distinção etapista entre tipos de
sociedades. Elas procuram dar conta de tendências diversas, de níveis distintos
no interior de todas as formas sociais. Esta dualidade será fundamental para a
distinção que nos interessa, a saber, esta entre macropolítica e micropolítica.
Deleuze e Guattari a descreve assim:
147
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 304
148
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 260
Ou seja, a macropolítica é aquela que se organiza a partir de um modo
necessariamente binário e opositivo, daí a referência às esferas da classe e do
sexo. Este binarismo é o modo privilegiado de organização e legislação inerente
ao Estado, a uma constituição do que eles chamarão de “aparelho de Estado”.
Nesse sentido, a macropolítico normalmente opera pela visibilidade de grandes
oposições.
No entanto, esses binarismos molares também se enraízam em estruturas
moleculares. Assim, os binarismos escondem um rede molecular de relações em
seu interior que sempre forçam as oposições molares a um ponto de
decomposição. As contradições sociais só funcionariam a grande escala; do ponto
de vista micropolítico as organizações se fazem a partir de linhas de fuga, de
dinâmicas de transbordamento. Deleuze e Guattari fazem a mesma observação a
respeito da relação entre classe e massa. Há sempre um outro regime que
coexiste com a separação e a totalização de segmentos duros. Há sempre uma
tensão internas às formas sociais entre processos de codificação e fluxo de
descodificação.
Deleuze e Guattari ainda farão uma distinção interna às estruturas
moleculares. Há os fluxos moleculares que permitem devires e micro-devires,
que estabelece conexões e relações para além dos binarismos molares. Mas há
também aquilo que eles chamarão de linhas de fuga com seu empuxo em direção
ao fora.
Neste sentido, a análise política não deve se deixar aprisionar pela
dimensão macropolítica, embora tal dimensão não seja indiferente. Ela também
não deve ter a ilusão de que a dimensão micropolítica é a verdadeira esfera
decisiva: “As fugas e movimentos moleculares não seriam nada se eles não
repassassem pelas organizações molares, não refizessem seus segmentos, suas
distribuições binárias de sexo, de classe, de partidos”149. Esta é uma maneira de
dizer que uma análise efetiva deve compreender as articulações entre
macropolítica e micropolítica, deve apreender os fenômenos em seu ponto de
articulação entre os dois níveis. Pois só assim será possível apreender o
movimento efetivo e as tensões concretas em jogo nas transformações políticas.
Esta dimensão micropolítica não é “individual” em contraposição à
dimensão “social”. Podemos dizer que ela é libidinal, organizada como fluxo, em
contraposição à dimensão institucional e organizada como segmento. Uma
contraposição fundada sob uma solidariedade profunda. Daí porque:
Esta compreensão das relações entre molar e molecular será fundamental para a
leitura que Deleuze e Guattari farão do fascismo. Pois não se trata de privilegiar a
149
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 264
150
Idem, p. 263
dimensão macropolítica e descrever o fascismo a partir da presença de uma
concepção totalitária de Estado, até porque outros modelos políticos conhecerão
figuras totalitárias do Estado. O fascismo traz um tipo muito específico de
totalitarismo no qual a preservação do Estado totalitário não será o eixo da
lógica da ação política. Mas para entender este ponto, faz-se necessário
compreender a dimensão molecular do fascismo, compreender o micro-fascismo.
Neste nível, o fascismo se mostra muito menos centralizado e duro do que, por
exemplo, o estado stalinista, que seria a figura mais clássica de um Estado
totalitário. Observando-o a partir de sua estrutura molecular, o fascismo aparece
muito mais como um corpo cancerígeno do que como um organismo totalitário.
Nesta dimensão do “microfascismo”, fica mais claro encontrar uma
resposta à questão reichiana: “Por que o desejo deseja sua própria repressão?”.
Pois: “é muito fácil ser anti-fascista no nível molar sem ver o fascista que se é,
que nos entretemos e alimentamos, que cuidamos com moléculas pessoais e
coletivas”151. Mas a resposta de Deleuze e Guattari a respeito do que nos faz
desejar o fascismo passa pela implementação política de uma certa dimensão da
pulsão de morte, mesmo que os dois afirmem, à ocasião: “não invocamos pulsão
de morte alguma”. Mas não seria necessário invoca-la de maneira explícita. Basta
ouvir o que pulsa em afirmações como:
Eis aí o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse a parede, que ela saia
dos buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e
aumentar suas valências a cada vez, ela se volta à destruição, à abolição
pura e simples, à paixão de abolição152.
Nós veremos na aula que vem por que insistir que se trata aqui de uma
leitura libidinal do fascismo que se apoia, à sua maneira na mobilização de um
certo risco interno à pulsão de morte. Mesmo as ambiguidades que Deleuze e
Guattari descrevem (o mesmo processo pode produzir a pura e simples abolição
ou a mutação das formas e lugares) está bastante enraizado nos usos do conceito
psicanalítico de pulsão de morte. Como veremos na aula que vem, Guattari
deixará isto mais claro.
Mas, por enquanto, insistamos em outro ponto, a saber, o fascismo não é
exatamente o culto da ordem, o fortalecimento da estrutura binária da norma e
de suas formas de controle. Há algo em seu interior que se assemelha a essas
dinâmicas libertárias de linha de fuga, a esses fluxos moleculares que
paradoxalmente são fundamentais para processos de singularização. Mais uma
vez, encontramos a ideia de que há algo que necessariamente aproxima o
fascismo de um processo revolucionário efetivo. No entanto, essa possibilidade
de efetivação é cortada por uma submissão da força de transformação a uma
paixão de abolição.
De toda forma, percebamos que é necessário que o assujeitamento faça
também parte do desejo, que ele se enraíze nos agenciamentos do desejo. Ele é
uma de suas linhas que sempre pode ser seguida. Deleuze e Guattari lembram
então como tais liberações de linhas de fuga são impulsionadas por máquinas de
guerra. Essa figura da máquina de guerra visa dar conta de um princípio social de
151
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 262
152
Idem, p. 280
movimento e desterritorialização. Ela descreve todo agenciamento social em
relação de exterioridade ao campo estatal de uma dada situação. Ou seja, a
guerra não aparece aqui como um exercício do Estado, mas como um princípio
exterior que o Estado procura, por várias formas, capturar. Pois em toda
sociedade, o que é primeiro são suas linhas de fuga, seus movimentos de fuga.
Posteriormente, aparecem aparelhos do Estado cuja função é captura-las. A
guerra se aproxima aqui da figura nietzscheana da potência e do combate. Trata-
se da virtude do guerreiro, que em várias situações se coloca em confronto com
as obrigações do Estado. Trata-se da figura do nômade que não se move por
viver em um espaço liso.
Tal máquina de guerra pode operar como um princípio de mutação
contínua de formas, por um princípio de nomadismo que se desdobra em um
longa linha de fuga ou pode liberar uma carga catastrófica de destruição. Nesse
caso, a máquina de guerra funciona exatamente a partir da guerra, pois a guerra:
“é o único objeto que resta quando a máquina de guerra perdeu sua potência de
mover”153. O mesmo princípio de transformação pode se deteriorar em forma
bruta da destruição. Toda linha de fuga tem um risco interno de se tornar uma
linha de abolição, de destruição de si e dos outros. De certa forma, a questão
central gira em torno viver em linhas de fuga, de impedir que as linhas de fuga
sejam tomadas por máquinas de destruição e de autodestruição. Quando isto
ocorre, uma forma fascista necessariamente emerge. Por isto, é importante para
Deleuze e Guattari indicar diferenças entre o fascismo e o totalitarismo:
Ou seja, a guerra fascista não é uma guerra de conquista, ela não tem como parar,
ela não tem como se realizar. Como se fosse um “movimento perpétuo, sem
objeto nem alvo” cujos impasses só levam a uma aceleração cada vez maior. A
ideia nazista de dominação não está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a
um movimento em movimento constante. Hannah Arendt falará da: “essência
dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto
estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”155.
há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total de todo efetivo social, a
militarização absoluta em direção a uma guerra que se torna permanente.
Guerra, no entanto, cuja direção não pode ser outra que a destruição simples.
Como se o horizonte da catástrofe fosse, desde o início, o verdadeiro horizonte
da ação. Deleuze e Guattari lembram, por exemplo, dessas afirmações de
Goebbels:
153
Idem, p. 281
154
Idem, p. 281
155
ARENDT; Origens do totalitarismo, p. 434
No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada
tem mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o
que os outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério
(...) É provável que Hitler terminará em catástrofe156.
156
Idem, p. 282
Falta a aula 9
Psicologias do fascismo
Aula 10
157
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
158
Idem, p. 157
verão as raízes psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de
segregação social, já que:
Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise
do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
Esta era uma maneira de lembrar que a compreensão de fenômenos como o
fascismo era incompleta se mobilizasse apenas categorias econômicas, sociológicas e
políticas. Elas precisariam mobilizar também categorias psicológicas para dar conta
da maneira com que experiências políticas podem gerir estruturas psíquicas e se
enraizar em dimensões nas quais as ações não são motivadas apenas por cálculos de
maximização de interesses ou de crença política, mas também por circuitos
inconscientes de afetos.
Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas de autoritarismo da paranoia,
Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de
participação social no interior de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes
casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da generalização da paranoia como
tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais,
tivessem outra forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos
apenas uma analogia, mas a descrição de um modalidade de funcionamento social a
partir de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos deveriam
agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter implicações na própria
estrutura da personalidade subjetiva.
Mas há um ponto que gostaria de insistir nessa aula. Lembremos como o
conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos frankfurtianos, a aproximava de
uma patologia que colocava, à céu aberto, os mecanismos de identificação e
introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez, eram a expressão de dinâmicas
próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo moderno com seus
desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por exemplo, que o
narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e que seu
mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste ponto,
encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através
de projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de
159
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
denegações e agressividades 160 . Isto lhe obrigava a pensar uma clínica que é,
inicialmente, crítica das ilusões identitárias e sintéticas do Eu, se não quisesse ser o
fortalecimento de tendências paranoicas nos indivíduos.
Neste sentido, é impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não é
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Gostaria de desenvolver este ponto nas próximas aulas.
O anti-semitismo
Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica
que eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será
acrescida à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e
160
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
161
Idem, p. 163
judaísmo, até porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa
na Europa, presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos
comunitários religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os
descendentes dos visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo
wagneriano dos cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em
guardas de elite” 162. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma
violenta contra os semitas. Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários
pode ser melhor compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo,
que coloca de ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte
afirmação:
Mimese
A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar
algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e
penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a
putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se
ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o
progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância
compulsiva166.
Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele
não é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado
de coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado
inorgânico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal
ou a matéria, mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um
degrau”, dirá Caillois (2002, p. 113).
O que faria o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer, não é apenas perpetuar
esse recalque da mimese, mas permitir seu retorno através da violência contra aqueles
168
ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada]
169
idem, p. 245 [tradução modificada]
170
O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade,
fenômenos ansiosos, entre outros.
171
CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111
contra os quais a afinidade mimética está proibida. Assim: “o impulso recusado é
permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação
incondicional com a instância destruidora” 172 . Há uma “mimese desinfetada” nos
rituais de homogeneidade fascista, há uma “mimese desinfetada” na possibilidade de
imitação dos judeus a partir do escárnio e da derrisão. Há projeção nos judeus de tudo
aquilo que seriam os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto,
lhe pertencem. É neste ponto que aparece a mobilização da paranoia como patologia
social do fascismo.
A sombra da razão
172
ADORNO e HORKHEIMER; Dialética do esclarecimento, p. 172
173
Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98.
174
Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente
semelhante a ela175.
A projeção serve para expulsar impulsos que o sujeito não admite como seu,
assim como tudo aquilo que quebraria a unidade e a coerência suposta da
personalidade. Adorno e Horkheimer admitem que, em certo sentido, perceber é
projetar. Ou seja, eles assumem a natureza projetiva da percepção como algo
faltamente inerente ao espírito devido a exigências de autoconservação. No entanto,
tal tendência à projeção seria paulatinamente controlada através de uma dupla
reflexão, de uma reflexão duplicada. O sujeito tem a experiência da resistência que
vem do objeto e tal resistência pode ser integrada através deuma reflexão de segundo
grau. Daí porque Adorno e Horkheimer podem dizer: “o patológico no anti-semitismo
não é comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o
caracteriza” 176 . Nota-se claramente uma articulação profunda entre paranoia e
narcisismo que está na base da descrição psicanalítica da nosografia. O paranoico
projeta o mundo a sua imagem e semelhança, reificando tal projeção.
Por outro lado, contrariamente a outras categorias da psicose, como a
esquizofrenia, a paranoia teria como traço diferencial a preservação das funções
superiores do raciocínio. Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como
encontramos tal intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e
Poder, de Elias Canetti 177 . Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranóica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:
A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual,
é uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar
intelectualmente o fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a
determinar seu juízo, o paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao
fracasso178.
Essa excessiva coerência seria traço de uma forma de saber chamada por
Adorno e Horkheimer de “semicultura” ou “semiformação”: “uma semicultura que,
por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como verdade, não pode
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a
manifestação e a essência”179. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o sintoma do
indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo exterior,
seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza. Ou seja, o
traço fundamental dessa semicultura é a hipóstase de relações, a impossibilidade de
175
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 174
176
Idem, p. 176
177
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
178
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181
179
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
admitir a limitação do saber, o que leva o sujeito a não suportar rupturas entre o
exterior e o interior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência.
“Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal de pensamento e de
humanidade”180. Daí uma tendência às formas do complot, da perseguição.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste
sentido, não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias
crenças, um efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de
reificação. O que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão,
pois é o risco aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do
conhecimento. Esta compreensão da paranoia como uma espécie de “patologia da
reificação” estará claramente presente em Adorno e Horkheimer quando estes
afirmarem:
180
Idem, p. 191
181
ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180
Psicologias do fascismo
Aulas 11 e 12
182
MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
183
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”, in
Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp. 81-94
184
NEUMANN, Behemoot, p. 397
No segundo eixo de estudos dos frankfurtianos, encontramos as análises
sobre a relação entre nazismo e cultura. Talvez o mais exemplar desses estudos
sobre De Caligari a Hitler, de Sigfried Kracauer, não por acaso uma “história
psicológica do cinema alemão”. Kracauer analisa a produção cinematográfica
alemã até a ascensão de Hitler a fim de recompor “o padrão psicológico de um
povo numa determinada época”185. Foi após a Primeira Guerra Mundial que o
cinema alemão realmente nasceu. Ele não poderia ser indiferente a seu próprio
nascimento, a sua necessidade de elaborar os traumas de um país humilhado
pela derrota e conduzido por um governo fraco até uma crise econômica de
proporções catastróficas. Kracauer insistirá na compreensão da psicologia social
como condição para determinar os processos que levam à consolidação do
nazismo. Daí afirmações como:
Por fim, temos o eixo das análise do fascismo como patologia social. Foi
isto que vimos nas últimas duas aulas. Primeiro, eu insistira com vocês no
sentido em abordar um fenômeno social como o fascismo enquanto patologia
social. Vale a pena entendermos melhor este ponto devido a sua importância
epistemológica.
185
KRAKAUER; De Calegaria a Hitler, p. 20
186
Idem, p. 21
um setor importante de desenvolvimento. Pois ao ser traduzido em patologia, o
sofrimento transforma-se em modo de partilha de identidades que trazem em
seu bojo regimes definidos de compreensão dos afetos e de expectativas de
efeitos. Neste sentido, podemos dizer que as patologias são setores fundamentais
de processos de socialização. Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao faze-
los internalizar modos de inscrever seus sofrimentos, seus “desvios” e
descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos. Não se
socializa apenas levando sujeitos a internalizar disposições normativas positivas,
mas principalmente ao fornece-lhes uma gramática social do sofrimento, ou seja,
quadros patológicos oferecidos pelo saber médico de uma época. Não se socializa
apenas através da enunciação da regra, mas principalmente através da gestão
das margens.
Por isto, as categorias clínicas utilizadas para descrever patologias
próprias a sofrimentos psíquicos são necessariamente patologias sociais. Neste
contexto, percebe-se que falar em “patologias sociais” implica, inicialmente,
discutir a maneira com que categorias clínicas participam de formas sociais de
disciplina.
Mas é fato que a análise de Adorno e Horkheimer a respeito do fascismo
como um laço social paranoico dizia um pouco mais. Pois se tratava não apenas
de compreender como patologias mentais forneciam a inscrição de formas de
sofrimento a serem geridas e classificadas. Tratava-se de mostrar como essas
mesmas patologias se transformavam em modo normal de participação social.
Até porque:
187
ADORNO e alli.,; Studies in the Authoritarian personality, p. 157
que diferencia percepção e delírio é certa capacidade de retificação da
experiência através da internalização dos fracassos da projeção. A isto, os dois
chamavam de “reflexão duplicada”. Esta capacidade de retificação da experiência
inexistiria no fascismo, pois não há internalização do princípio de resistência dos
objetos.
Vimos como tal ausência de retificação da experiência era resultado da
generalização da reificação da estrutura do conhecimento. Neste ponto, Adorno
introduzia sua teoria da semiformação. A este respeito, notemos o sentido de
afirmações como:
O que diz Adorno? Ele não afirma que semiformação diga respeito a uma
incapacidade da circulação de informações, do acesso a conhecimento produzir
por si só autonomia. Ao contrário, “a consciência passa de uma heteronomia a
outra”, da autoridade de bíblia, à autoridade da indústria cultural, à autoridade
dos que denunciam a verdade expressa em complots inimagináveis. Em todos
esses casos, o elemento central é a incapacidade de uma relação cognitiva ao
mundo sob o fundo de crise. Digamos que nenhum lugar vazio circula, nenhuma
contingência ocorre, nenhum acaso obriga à revisão. Semiformação não está
ligada à falta de acesso à pretensa totalidade do saber, mas impossibilidade de
lidar com a fragilidade do saber, com os descompassos entre experiência e saber.
Isto pede não apenas uma descrição sociológica das modalidades de circulação
do saber, mas uma descrição psicológica da relação entre saber e desejo, do
saber como anteparo a certas formas de desejo.
188
ADORNO, Teoria da semiformação
figuras de autoridade não poderiam mais se constituir a partir de representações
paternas e ideais sublimados e tipos sociais marcados pelo auto-controle de seus
próprios desejos. As identificações não serão simbólicas, elas serão imaginárias.
Por isto, as identificações só poderiam ocorrer com personalidades que são a
projeção narcísica do próprio sujeito.
Isso faz o líder fascista tender a aparecer como “o alargamento da própria
personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, ao invés da
imagem de um pai cujo papel durante a última fase da infância do sujeito pode
bem ter decaído na sociedade atual”189. Adorno explora tal traço ao afirmar que:
Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza”191,
um declínio que não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias.
Isto talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso não
apenas pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou
que sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Daí porque: “o
líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicológicas desses suscetíveis à
sua propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e deles se
distingue pela capacidade de expressar sem inibição o que está latente neles, isto
ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca”192. Ao descrever de maneira
mais precisa o processo imanente às identificações narcísicas, Adorno dirá:
189
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
190
Idem, p. 421
191
Idem, p. 411.
192
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
193
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015
do eu, adiantando em algumas décadas problemas que levarão às discussões
sobre a “sociedade narcísica”. Ele sabe como tal fraqueza permite, através da
consolidação narcísica da personalidade com suas reações diante da consciência
tácita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que chama de expropriação do
inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito consciente de
seu inconsciente. O que serve para nos lembrar como estas apropriações
frankfurtianas de considerações freudianas servem, entre outras coisas, para nos
mostrar como o autoritarismo em suas múltiplas versões não é apenas uma
tendência que aparece quando a individualidade é dissolvida. Ele é
potencialidade inscrita na própria estrutura narcísica dos indivíduos modernos
de nossas democracias liberais. O que não poderia ser diferente para alguém que
afirma: “Quanto mais nos aprofundamos na gênese psicológica do caráter
totalitário, tanto menos nos contentamos em explicá-lo de forma exclusivamente
psicológica, e tanto mais nos damos conta de que seus enrijecimentos
psicológicos são um meio de adaptação a uma sociedade enrijecida”194.
Por ter que lidar com uma sociedade enrijecida, a constituição moderna
do indivíduo é potencialmente autoritária, pois ela é narcísica, com tendência a
projetar para fora o que parece impedir a constituição de uma identidade
autárquica e unitária, além de continuamente aberta à identificação com
fantasias arcaicas de amparo e segurança. Conhecemos a ideia clássica segundo a
qual situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica são o terreno
fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade
e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo liberal
entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita. No
entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, seria
interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em
famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas
sociedades e a nosso padrão de prosperidade.
A personalidade autoritária
194
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, op. cit.
195
ADORNO e alli.; Studies no authoritarian personality, p. 155
Notemos como, sem mencioná-lo, esse estudo recupera a intuição de
Reich em Psicologia das massas e fascismo a respeito do fascismo como um tipo
de personalidade. Lembremos como Reich determinava uma etiologia de tal
personalidade através do destino do processo de socialização das pulsões
sexuais, o que não será o caso nesse estudo. Mas mesmo não oferecendo uma
etiologia da personalidade autoritária, o estudo insiste na existência de um
padrão geral de comportamento marcado pela permanência estrutural de
dinâmicas de segregação que facilmente podem evoluir para comportamentos
abertamente fascistas. Há um “fascismo potencial” naturalizado em práticas de
segregação que habitam de forma extensiva no interior de nossas democracias
liberais. Potencialidade que indica como indivíduos diferem em sua
suscetibilidade a propaganda antidemocrática. Daí porque se trata de insistir que
as práticas de segregação não são fenômenos isolados, mas parte de um quadro
ideológico mais amplo que dá forma à personalidade. Alguém hostil em relação a
uma minoria é normalmente hostil a uma variedade de outros grupos. O que nos
leva a compreender a personalidade como uma espécie de “ideologia privada”.
Uma das inovações fundamentais dessa pesquisa consistiu em levar a
sério a compreensão de que tal personalidade é formada, inclusive, por
elaborações inconscientes que não são imediatamente acessíveis aos próprios
sujeitos. O que lhe levou a desenvolver um modelo de abordagem que privilegia
questões indiretas, que trabalha com “níveis” no interior da personalidade. Isto
os levou a questionários compostos por questões fatuais, escalas de atitude e
opiniões, além de questões ‘projetivas’. A expectativa era de que tal formato de
questionário permitiria inferências sobre níveis profundos da personalidade dos
sujeitos.
O sistema de escalas era composto por três escalas visando avaliar níveis
de anti-semitismo, de etnocentrismo e de conservadorismo político-econômico.
Com o desenrolar da pesquisa, ficou claro que as escalas de anti-semitismo e de
etnocentrismo tendiam a se correlacionar com um horizonte fascista que
permitiu a constituição do que será conhecido como “escala F”. Trata-se de um
questionário composto por um conjunto de 77 questões visando medir o
potencial fascista da personalidade em questão. Tais questões estavam divididas
em eixos que visavam medir: convencionalismo, submissão autoritária, anti-
intracepção, superstição e estereotipia, poder e rudeza, destrutividade e cinismo,
projetividade e sexo. Já o universo da pesquisa era composto tanto de
voluntários da Universidade de Berkeley e Oregon quanto por pacientes da
clínica psiquiátrica da Universidade da California, prisioneiros da Prisão estadual
de San Quentin, membros de sindicatos, grupos de fieis de igrejas, além de
membros do Rotary club.
Por fim, lembremos como esta procura por uma “personalidade
autoritária” visava explicar porque os padrões de comportamento e de adesão
fascista não estavam vinculados diretamente a classes, mas a estruturas
psicológicas. Em situações de fascismo não é incomum indivíduos irem contra
seus próprios interesses materiais. Pois não se trata de compreender tais ações
como ações de indivíduos maximizadores de interesses, mas como sujeitos
motivados por sonhos, fantasias e delírios.
Psicologias do fascismo
Aula 13
196
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
197
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
constantemente reiterado e produzido pela força de lei de um poder soberano.
Pois:
Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo”199 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 200. Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo
ilimitado, mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da
ambição por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente
como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só
pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite
pelas mesmas coisas”201. A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito
natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha própria
natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis)
prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que é destrutivo à minha vida.
Assim, Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de
indivíduos liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”202. Este ponto é fundamental pois é a possibilidade efetiva
da morte violenta que definirá a necessidade de emergência do político.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão
sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos
são miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para
saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência
entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em
empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência
direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de
vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios
contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os
indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de um não
irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser
superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a
198
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
199
Idem, p. 30
200
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
201
HOBBES, Do cidadão, p. 30
202
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado.
Daí esta definição de Schmitt: “Para Hobbes, o Estado não é outra coisa que a
guerra civil constantemente impedida por meio de um força ilimitada”203.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou
é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima
como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra
saída para a regulação social do que o aparecimento de uma força externa
chamada de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição
mútua e da limitação de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a
desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clássico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.
203
SCHMITT, Carl; Le Leviathan dans la doctrine d’état de Thomas Hobbes, p. 86
atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento
criando um consenso dirigido à submissão geral e incondicional à
potência suprema204.
É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”207. Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a
palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e
esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem
o contraponto da esperança”208.
204
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
205
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
206
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
207
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
208
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de
todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os
homens a respeitá-las”209. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na
qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família). Ou
seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e
condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”210. Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”211. O que fica claro em
afirmações como:
209
HOBBES, Leviatã, p. 253
210
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
211
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
212
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
213
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
está diante de Jó para dizer : quem és tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o
Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Um poder o mais potente,
supremo e sem partilha. Ou seja, fazer do Estado um Leviatã é inscrever-lhe a
força de uma imagem teológica que visa anular o sofrimento e a restrição como
disposição de revolta. Daí porque Schmitt dirá, que o Estado aparece aí como:
“uma totalidade mítica, compreendendo o deus, o homem e a máquina”214. Ele
precisa ser dotado de uma força absoluta a fim de realizar seu designo de
proteção. Isto significa que sua autoridade não se deixa limitar por valores e
verdade. Seu mandamento é uma decisão soberana não restringida por nada,
única forma de evitar o conflito inevitável de interpretações e a sedição. Daí
afirmações como:
Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e
cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais
impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes
a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os
gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir.
Mas há um ponto no qual essa força é quebrada, ao menos no interior da
teoria de Hobbes. Pois há uma única limitação que Hobbes reconhece ao poder
do Estado. Ela se refere ao direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida
214
SCHMITT, Carl; Le Leviathan …, p. 84
215
Idem, p. 107
está ameaçada pelo poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro
direito natural. Se o soberano atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele
me contrapor, pois o que me liga a ele é um pacto de proteção que não existe
mais. No entanto, o soberano guarda o direito de continuar sua ação contra mim
já que pode tudo fazer para garantir a proteção social e a permanência do Estado.
Nesta mesma linha, Schmitt dirá que o germe de morte que destruiu o
Leviatã foi a preservação da liberdade interior de pensamento e de crença. Teria
sido por este caminho que o “pensamento judeu liberal” de Spinoza teria se
aproveitado para distinguir a obrigação dos rituais do culto exterior e a
liberdade da crença privada, reduzindo paulatinamente o Estado a uma mera
aparência reguladora, a um garantidor do direito à opinião individual. Este seria
o caminho para uma situação na qual o Estado não poderia mais reduzir os
conflitos no seio da sociedade à condição de “distúrbios” e tentativas de
rebeliões.
A função do amparo
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de
reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que
opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é
a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de
Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão
soberana”216. Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração
da relação do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperável”217, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no
medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
216
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
217
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu
direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações
soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”218 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não
sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 219.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”.
Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para
proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos
domésticos”220. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices
não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do
excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de
seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
leva Hobbes a acreditar que:
218
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
219
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
220
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
221
Idem, p. 110.
porque a soberania é legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é
nossa função. Ou ainda:
sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade222.
O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser
esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente
econômico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios
com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência,
basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso,
existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso
extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser
decididos nem através de uma normalização geral empreendida
antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “não
envolvido” e, destarte, “imparcial”224.
222
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
223
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
224
Idem, p. 28
Não haveria vida política sem uma operação desta natureza. A vida política é,
para Schmitt, a mobilização contínua da força tendo em vista a gestão do medo
da despossessão produzido pela existência da diferença. Pois a diferença não é
apenas algo que tolero, ela é o que me transforma e me despossui. Ela me leva a
uma forma de vida outra. Contra isto, uma certa política existe. Ela existe
inclusive para impedir outra forma de diferença, fora do horizonte da guerra, a
diferença do “distúrbio”:
225
Idem, p. 10
Psicologias do fascismo
Aula 14
226
THATCHER, Margaret; Interview in http://www.margaretthatcher.org/document/104475
227
Ver, a este respeito, THUROW, Lester ; Les fractures du capitalisme, Paris, Village Mondial, 1997.
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestão social que se
queiram realmente eficazes não podem permitir clivagens desta natureza com a
consequente constituição de um polo alternativo de motivações para o agir, que
encontrariam muitas vezes expressão em atividades normalmente dissociadas
do universo compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como
improdutivas (como o sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, dar aulas
sobre o problema da contradição em Hegel, etc.). Ele deve expropriar todas as
esferas que poderiam fornecer espaço para experiências que não se deixam ler a
partir da lógica em operação na esfera econômica, eliminado os afetos que tais
experiências geram. Processo de expropriação cujas bases foram pela primeira
vez descritas através do conceito frankfurtiano de “dessublimação repressiva”.
Mas expropriar só é possível aqui através da absorção da própria dinâmica
pulsional pela lógica econômica, ou seja, através de uma socialização das pulsões
que não passe mais, de forma hegemônica, pelas clivagens organizadas sob a
forma do recalque. Uma socialização que não é simplesmente retorno à temática
da integração das demandas particulares de satisfação por uma sociedade cada
vez mais “hedonista”, topos clássico de uma crítica moral da sociedade de
consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura polimórfica e
disruptiva da ordem das pulsões, sua potência de indeterminação é traduzida em
um novo papel sócio-econômico através de uma forma renovada de gerir
conflitos psíquicos.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equação através da constituição
de um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar:
228
BROWN, Wendy; Les habits neuf de la politique mondiale: néolibéralisme et néoconservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 54
229
Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel; Das
recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
neoliberal se transformou em um peculiar modo subjetivo de gozo. Assim, o
medo do risco provocado pela insegurança social pode aparecer como covardia
moral.
Este ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da
estratégia neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no
modelo da empresa”230, o que permitiu à lógica mercantil, entre outras coisas,
ser usada como tribunal econômico contra o poder público. Pois é fundamental
ao neoliberalismo “a extensão e disseminação dos valores do mercado à política
social e a todas as instituições”231. A generalização da forma-empresa no interior
do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-compreenderem como
“empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir
da lógica de investimentos e retorno de “capitais” e que compreendem seus
afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de
“inteligência emocional”232 e otimização de suas competências afetivas. Ela
permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” 233 , fundamento
normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado
na auto-avaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da
administração de empresas. Esta retradução das dimensões gerais das relações
inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no
“cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo
e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados
psiquicamente.
Notemos ainda que esta internalização de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administração de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrático weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da
produtividade. O que permitiu a uma socióloga como Eva Illouz lembrar que:
230
FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
231
BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50
232
Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
233
DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
234
ILLOUZ, Eva; O amor nos tempos do capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 37
progressiva dos repertórios do mercado com as linguagens do eu”235. As relações
de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor geridas, até chegar ao
ponto em que as próprias técnicas clínicas de intervenção terapêutica
começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrões de avaliação
e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da administração de
empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível ao neoliberalismo
reconstruir processos de socialização, em todas as esferas sociais de valores,
através da internalização de um ideal empresarial de si.
É fato, no entanto, que tal internalização de ideais exige uma mobilização
cruzada de regimes de identificação. Se, por um lado, ele apoia-se na constituição
de ideais, por outro é inegável que tal processo deve ser impulsionado, entre
outros, por uma parcela significativa de medo. Há uma produção neoliberal da
adesão social através da circulação do medo que não deve ser menosprezada,
mesmo que ela não sirva de causalidade suficiente. É do manejo conjunto do
medo e da esperança, do temor e do desejo, que estruturas de poder se
fundamentam.
Esta dimensão psicológica do medo foi claramente compreendida por
Adorno em suas reflexões sobre o capitalismo tardio e as modificações na
economia psíquica que ele implica. Enquanto instância psíquica de auto-
observação submetida ao impacto das transformações sociais, o supereu
mesclaria atualmente o medo arcaico de aniquilação física com “o medo muito
posterior de não mais pertencer ao conjunto humano”236 devido ao fracasso de
ser bem sucedido como sujeito econômico. Assim, é importante que o discurso
social produza a circulação incessante do risco de morte social devido à
degradação econômica iminente daqueles que resistem a reconstruir sua vida
psíquica a partir da racionalidade econômica. Pois:
235
Idem, p. 154
236
ADORNO, Theodor; Escritos sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 76
237
Idem, p. 75
mentalidade baseada na recusa à nossa liberdade, visa alimentar a sensibilidade
social contra a possibilidade de nos afastarmos da racionalidade econômica que
funda a esfera dos nossos valores. Os medos funcionam como um sistema de
vasos comunicantes.
A função do medo
Difícil não perceber que a matriz desta ditadura liberal vem exatamente de
Carl Schmitt, como vimos na aula passada.
238
LACAN, Jacques; Séminaire XVII, Paris: Seuil, 1991, p. 93
239
Idem, p. 19
240
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
241
Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
que um sujeito a quem se espera a conformação às normas sociais. Ele não segue
normas positivas, mas calcula resultados e por isto, flexibiliza normas
continuamente. Pois sendo a concorrência o valor moral fundamental do laço
social, uma versão mercantil da luta hobbesiana entre os indivíduos, cabe ao
Estado assegurar as condições de possibilidade no interior das quais sua
violência possa desdobrar-se. Tais condições fundamentam-se, por sua vez, na
tradutibilidade geral, na conversão sempre possível da violência da concorrência
em flexibilização contínua de normas e formas. A violência contra o outro se
converte em violência contra as formas e normas que pareciam determinar o
outro e que permite ultrapassá-lo.
Desta forma, através da flexibilização normativa, a forma de vida
neoliberal traduz a violência da estrutura pulsional polimórfica e fragmentária -
que anteriormente parecia ser o fundamento libidinal da revolta - para a crítica à
funcionalização e à fixidez das identidades sociais. Este é um ponto importante,
pois é necessário que os sujeitos aprendam a desejar a flexibilização, não apenas
devido às promessas de realização e de ganho presentes no capitalismo, mas
também devido à tentativa de transformação da flexibilidade em expressão
natural da dinâmica pulsional dos sujeitos, à variabilidade estrutural de seus
objetos. Se o neoliberalismo pode contar com o consentimento moral ao risco
ligado à precarização resultante de processos de flexibilização próprios a modos
intermitentes de trabalho baseados em “projetos”, deslocalizações contínuas e
reengenharias infinitas, é porque tal flexibilização parece traduzir a pulsão em
seu ponto mais insubmisso. Todo consentimento moral fundamenta-se em um
consentimento pulsional mais profundo. Assim fica mais fácil marcar toda recusa
a ela como covardia moral e infantilismo.
No entanto, há de se lembrar como a flexibilização não implica
desarticulação dos quadros de regulação, mas apenas seu deslocamento. O
enfraquecimento de estruturas institucionais com sua capacidade de assistência
e amparo, assim como o enfraquecimento de capacidade de produção de lugares
e identidades sociais, além de normas fixas, dá lugar à mutação das instituições
sociais (Estado, escola, igreja etc.) em empresa. Todas elas começarão a
funcionar a partir de uma mutação na qual suas lógicas se adaptarão à lógica
empresarial. O desamparo provocado pelo enfraquecimento da capacidade
institucional de assegurar condições mínimas de defesa nas relações trabalhistas
é pago pelo amparo produzido pelo discurso do indivíduo como promessa de que
toda experiência poderá ser objeto de cálculo de utilidade, de interesse, de
satisfação, amparo produzido pela injunção a ser plenamente um indivíduo
empreendedor de si como condição para o reconhecimento social e a auto-
realização pessoal.
Desta forma, não se trata mais de regular através da determinação
institucional de identidades, mas através da internalização do modo empresarial
de experiência, com seu regime de intensificação, flexibilidade e concorrência. A
regulação passa assim do conteúdo semântico dos modelos enunciados pela
norma ao campo de produção plástica dos fluxos que se conformam ao modo
empresarial de experiência. A regulação social poderá produzir uma das mais
impressionantes características do modelo disciplinar neoliberal, a saber, sua
capacidade de construir espaços de “anomia administrada”, isto ao assumir
situações de anomia na enunciação das conformações normativas, mesmo
guardando a capacidade de administrá-lo através da regulação do modo geral de
experiência. A biopolítica das sociedades capitalistas contemporâneas se
transforma assim em uma peculiar gestão da anomia.
É com tais processos em mente que podemos entender as mutações da
corporeidade na era neoliberal. Tais mutações poderão nos mostrar como a
biopolítica própria ao neoliberalismo não poderia, de fato, ser compreendida
através do impacto de estruturas normativas disciplinares que funcionariam a
partir de exigências de conformação a mandatos simbólicos claramente
determinados. Ela estaria vinculada à conformação dos sujeitos a certa forma de
indeterminação absorvida pelo modo de funcionamento normal do capitalismo
atual. É necessário que eles organizem sua experiência subjetiva naquilo que ela
tem de mais decisivo, a saber, em seu modo de relação com a diferença, através
desta forma de circulação financeira da indeterminação. É necessário que tal
organização seja corporalmente sentida, que ela tenha uma realidade corporal.