Um arsenal
eletrônico na guerra
A legislação brasileira que trata de
propriedade intelectual é moderna, en-
contra-se em sintonia com as principais
tendências internacionais e disponibiliza
elementos apropriados para combater a
pirataria, possibilitando o crescimento
econômico da nação.
No plano interno, o Brasil conta
com diversos diplomas legais que tu-
telam a propriedade intelectual. A Lei
da Propriedade Industrial (LPI – Lei nº
9.279/96) tem por objeto as patentes,
os desenhos industriais, as marcas, as
indicações geográficas e a concorrên-
cia desleal. Disposições que protegem
os direitos do titular de criações de
propriedade intelectual também são
encontradas no Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078/90), na Lei de
Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) e na
Lei de Software (Lei nº 9.609/98).
No âmbito internacional, o Brasil
é signatário de inúmeros tratados e
acordos de proteção à propriedade in-
telectual, sendo os mais importantes
deles, para fins do presente artigo, a
Convenção da União de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial
(Convenção de Paris) e o Acordo sobre
54 CUSTO BRASIL
contra a pirataria
Luíz Virgílio Manente*
Sócio responsável pela área contenciosa de Propriedade Intelectual de TozziniFreire Advogados
os Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio
(Trade-Related Aspects on Intellectual
Property Rights – TRIPS).
A Convenção de Paris estabelece
princípios mínimos de proteção, que
podem ser livremente ampliados pelos
Estados-membros, e impõe tratamen-
to equânime para os nacionais e os
estrangeiros na aplicação das normas
pelos Estados-membros. Além de adotar
os mesmos princípios consagrados na
Convenção de Paris, o Acordo TRIPS
instituiu um órgão que fiscaliza o cum-
primento das normas pelos países sig-
natários e também criou um mecanismo
de aplicação efetiva de sanções para o
caso de inadimplemento de suas regras,
incluindo-se aí sanções comerciais, uma
vez que o Acordo TRIPS faz parte do
acordo maior que em 1994 instituiu
a Organização Mundial do Comércio
(OMC).
Apesar de todo esse conjunto de nor-
mas que oferece uma proteção adequada
para os direitos de propriedade intelec-
tual, a pirataria vem causando enormes
prejuízos ao Brasil. O País perde bilhões
de reais por ano com arrecadação de tri-
butos1, perde ou deixa de criar milhões
de empregos por ano2 e é por vezes
visto no cenário internacional como
um país que não combate a pirataria3,
o que acaba por afastar investimentos
estrangeiros e até mesmo sujeita o País
à imposição de sanções por parte da
OMC. Em complemento aos danos que o
setor público experimenta, os proprietá-
rios de marcas e patentes e os titulares
de direitos autorais no Brasil sofrem
prejuízos que diminuem a circulação de
riqueza na economia nacional.
A falta de treinamento adequado
para as autoridades alfandegárias, a
inexistência de uma ferramenta que
as auxilie em seu dever de analisar e
apreender mercadorias contrafeitas e
a atitude freqüentemente adotada por
proprietários de marcas no que diz res-
peito à entrada de produtos contrafeitos
no Brasil podem ser apontados como
os principais fatores que dificultam o
sucesso do País nessa área.
Os altos custos inevitavelmente in-
corridos em medidas judiciais contra a
pirataria, o longo tempo de tramitação
dos processos e a dificuldade normal-
mente encontrada para executar deci-
 Custo Capital Desburo- Risco Meio Infra-
Logística do capital Tecnologia intelectual Energia cratização Tributação jurisdicional ambiente estrutura
sões judiciais contra pessoas envolvidas
com importação e venda de mercadorias
contrafeitas são fortes razões para os
setores público e privado intensificarem
o uso de medidas alfandegárias de com-
bate à pirataria e deixarem de ver o Po-
der Judiciário como o primeiro e muitas
vezes único meio de combate à importa-
ção e venda de produtos piratas.
Apesar de a opinião pública estar
aparentemente mobilizada contra a
pirataria e o cenário nacional nesse
aspecto ter melhorado muito desde a
criação, em 2004, do Conselho Nacional
de Combate à Pirataria e Delitos contra
a Propriedade Intelectual, muito ainda
pode ser feito para que o Brasil torne
suas ações antipirataria cada vez mais
eficazes4.
Entre os pontos fracos da atuação
do País no combate à pirataria podemos
destacar o procedimento alfandegário
instituído pelo artigo 198 da LPI5 e
regulado pelos artigos 544 a 547 do
Decreto 4.543/2002 (com redação dada
pelo Decreto 4.765/2003)6. A experiên-
cia prática revela que freqüentemente
os agentes da Secretaria da Receita
Federal (SRF) deixam de identificar e
conseqüentemente apreender produtos
piratas simplesmente porque não dis-
põem de mecanismos apropriados para
agir e não foram devidamente treinados
para tanto. Como a maior parte das au-
toridades alfandegárias não tem acesso
a nenhuma ferramenta de auxílio e não
é treinada para identificar mercadorias
piratas, normalmente as apreensões de
produtos contrafeitos ocorrem somen-
te quando a SRF tem fortes suspeitas
sobre determinado carregamento de
bens ou quando o proprietário da marca
registrada entra em contato com a SRF
requerendo providências.
Para alterar esse cenário, o País
poderia adotar uma base de dados ele-
trônica que pudesse ser acessada pe-
los agentes da SRF ao longo de toda a
região fronteiriça, em todos os portos
e aeroportos do País. Essa ferramen-
ta seria administrada pela SRF e os
proprietários de marcas registradas
no Instituto Nacional da Propriedade
Industrial (INPI) efetuariam o arquiva-
mento de informações adicionais sobre
a marca, imagens da marca registrada e
de produtos autorizados a ostentá-la.
Com acesso a todas essas infor-
mações e imagens, os agentes da SRF
poderiam combater a pirataria de uma
forma muito mais eficaz e, em espe-
cial, sem a necessidade de as ações
estarem condicionadas à existência
de suspeitas sobre carregamentos
de bens ou à iniciativa dos proprie-
tários das marcas, que nem sempre
têm conhecimento se determinados
carregamentos de bens podem conter
produtos contrafeitos.
MECANISMO ANTIPIRATARIA
Os efeitos negativos decorrentes dos
elevados índices de pirataria no Brasil,
resumidos no início do presente artigo,
poderiam ser reduzidos com a utilização
desse mecanismo moderno, simples,
eficaz e auto-suficiente de combate à
pirataria. Destaque-se, nesse sentido,
que a auto-suficiência desse instru-
mento corresponde ao fato de que ele
poderia ser implantado sem que custos
fossem gerados ao Estado, bastando a
SRF cobrar uma taxa para arquivar as
informações e imagens relativas a cada
marca registrada. Obviamente, para
que esse novo mecanismo pudesse ser
utilizado por todos os proprietários de
marcas sem que isso trouxesse gastos
volumosos, o valor cobrado pela SRF
deveria ser fixado com razoabilidade.
Um exemplo de sucesso na utiliza-
ção de uma base de dados eletrônica
no combate à pirataria é encontrado
nos Estados Unidos da América. As
autoridades alfandegárias americanas
adotaram o Intellectual Property Rights
e-Recordation, que consiste no modelo
de base de dados eletrônica descrito
linhas acima e que tem um funciona-
mento bastante simples.
Com o pagamento de US$ 190 para
cada classe internacional em que a
marca é protegida, o titular de uma
marca registrada no USPTO7 é autori-
zado a transferir para as autoridades
alfandegárias informações e imagens
da marca e de produtos autorizados a
ostentá-la. As informações e imagens
são transferidas de modo eletrônico, via
internet, e arquivadas em uma base de
dados que pode ser acessada por todas
as autoridades alfandegárias em todos
os portos e aeroportos do País.
As estatísticas comprovam a eficá-
cia do mecanismo utilizado nos EUA.
Dados levantados pelo próprio governo
americano indicam que o número de
apreensões de mercadorias piratas
aumentou 110% entre os anos de 2003
e 2007, passando de 6.500 apreensões
em 2003 para um total de 13.657 apre-
ensões em 20078. No que diz respeito
aos valores, o aumento percentual
encontrado pelos EUA foi praticamente
o mesmo. Entre 2003 e 2007, o valor
total dos bens apreendidos aumen-
tou 109%, representando um salto de
US$ 94.019.227,00 em 2003 para US$
196.754.377,00 em 20079.
É certo, porém, que a utilização
desse novo mecanismo de combate à
pirataria, por si só, não seria suficiente
para solucionar todos os problemas
enfrentados pelo Brasil nesse campo.
Por isso, em paralelo às medidas que
poderiam ser implantadas pelo governo,
como a adoção da base de dados eletrô-
nica, o setor privado também poderia
mudar sua postura.
Diante do longo tempo de espera
por uma decisão definitiva no âmbito
do Poder Judiciário e das dificuldades
normalmente encontradas para cumprir
decisões contra pessoas envolvidas com
importação e venda de mercadorias
contrafeitas, os proprietários de marcas
poderiam mudar sua atitude com rela-
CUSTO BRASIL 55
 Custo Capital Desburo- Risco Meio Infra-
Logística do capital Tecnologia intelectual Energia cratização Tributação jurisdicional ambiente estrutura
ção à entrada de produtos piratas no
mercado nacional, deixando de encarar
o Poder Judiciário como o único meio de
combate à importação e venda de produ-
tos contrafeitos e passando a concentrar
suas atenções na alfândega.10
Assim, ao invés de agirem quando as
mercadorias contrafeitas já se encon-
tram à venda no País e, portanto, o dano
já ocorreu, os proprietários de marcas
poderiam intensificar suas ações para
evitar que os produtos contrafeitos se-
1. Com a pirataria, País perde ‘uma CPMF’ por ano,
http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2007/12/21/
com_a_pirataria_pais_perde_uma_cpmf_por_
ano_1128394.html (último acesso em 27 de Março
de 2008).
2. Pirataria reduz novas vagas, diz Fecomércio SP,
http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2008/02/20/
pirataria_reduz_novas_vagas_1198392.html (último
acesso em 27 de Março de 2008).
3. Por exemplo, entre os anos de 2002 e 2006 o
Brasil figurou na lista divulgada pelo Secretário de
Comércio dos Estados Unidos da América (USTR na
sigla em inglês) e entitulada “Special 301 - Priority
Watch List”, com relação a países que não oferecem
uma proteção adequada e efetiva para direitos de
propriedade intelectual ou que não oferecem um
justo e equânime acesso ao mercado para pessoas
que dependem de proteção à propriedade intelectual.
USTR Focus on Intellectual Property and Innovation,
http://www.ustr.gov/Trade_Sectors/Intellectual_Pro-
perty/Section_Index.html (último acesso em 27 de
Março de 2008).
Países que contam com as práticas ou políticas
mais onerosas ou ofensivas e cujas práticas ou
políticas têm o maior impacto (de fato ou poten-
cial) sobre produtos americanos são designados
“Priority Foreign Countries” e passam a integrar a
“Priority Watch List”. Background on Special 301,
http://www.ustr.gov/assets/Document_Library/Re-
ports_Publications/2006/2006_Special_301_Review/
asset_upload_file324_9334.pdf (último acesso em 27
de Março de 2008).
Reconhecendo uma melhoria na atuação do Brasil,
em 2007 o USTR promoveu o país para a “Watch
List”, mas em 2008 a Associação da Indústria de
Biotecnologia e a Associação Americana de Pesquisa
Farmacêutica requereram ao USTR que rebaixe o
Brasil para a “Priority Watch List”. USTR Special
301 Public Submissions 2008, http://www.ustr.gov/
Trade_Sectors/Intellectual_Property/Special_301_Pu-
*Co-autoria de Marlio de Almeida Nóbrega Martins, advogado na área contenciosa de Propriedade Intelectual de TozziniFreire Advogados (marlio@
tozzinifreire.com.br)
56 CUSTO BRASIL
quer entrem no País. Poderiam, também,
investir no treinamento das autoridades
alfandegárias, oferecendo palestras e
seminários, por exemplo. Note-se que os
custos desses treinamentos podem ser
compartilhados por diversas empresas,
ainda que concorrentes em determina-
dos segmentos de mercado. Afinal, a
pirataria prejudica todas elas da mesma
forma, de modo que unir forças para
combatê-la é a providência menos one-
rosa e mais racional.
blic_Submissions_2008/Section_Index.html (último
acesso em 27 de Março de 2008).
4. Segundo a Secretaria da Receita Federal, o valor
total de bens contrafeitos apreendidos pela alfânde-
ga aumentou de R$ 415,641,585.50 em 2004 para
R$1,051,141,004.78 em 2007. Mercadorias Apreen-
didas, http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/
DestinacaoMercadorias/MercadoriasApreendidas/de-
fault.htm (último acesso em 27 de Março de 2008)
5. Art. 198: Poderão ser apreendidos, de ofício ou
a requerimento do interessado, pelas autoridades
alfandegárias, no ato de conferência, os produtos
assinalados com marcas falsificadas, alteradas
ou imitadas ou que apresentem falsa indicação de
procedência.
6. Art. 544. Poderão ser apreendidos, de ofício ou
a requerimento do interessado, pela autoridade
aduaneira, no curso da conferência aduaneira, os
produtos assinalados com marcas falsificadas, alte-
radas ou imitadas, ou que apresentem falsa indicação
de procedência.
Art. 545. Após a apreensão de que trata o art. 544, a
autoridade aduaneira notificará o titular dos direitos
da marca para que, no prazo de dez dias úteis da ci-
ência, promova, se for o caso, a correspondente quei-
xa, e solicite a apreensão judicial das mercadorias.
§ 1º O titular dos direitos da marca poderá, em casos
justificados, solicitar seja prorrogado o prazo estabe-
lecido no caput uma única vez, por igual período.
Art. 546. Se a autoridade aduaneira não tiver sido
informada, no prazo a que se refere o art. 545, de
que foram tomadas pelo titular da marca as medidas
cabíveis para apreensão judicial das mercadorias, o
despacho aduaneiro destas poderá ter prosseguimen-
to, desde que cumpridas as demais condições para a
importação ou exportação.
Art. 547. O titular da marca, tendo elementos sufi-
cientes para suspeitar que a importação ou a expor-
tação de mercadorias com marca contrafeita venha a
Finalmente, entendemos que as
mudanças poderiam ser largamente
incentivadas e facilitadas pelo governo
brasileiro, uma vez que beneficiariam o
País como um todo. Com maior sucesso
no combate à pirataria, o País passaria
a ser visto com melhores olhos no ce-
nário econômico internacional, elevaria
a arrecadação tributária, facilitaria a
geração de empregos e diminuiria o
número de processos levados ao Poder
Judiciário.
lmanente@tozzinifreire.com.br
notas
ocorrer, poderá requerer sua apreensão à autoridade
aduaneira, apresentando os elementos que apontem
para a suspeita.
Parágrafo único. A autoridade aduaneira poderá
exigir que o requerente apresente garantia, em valor
suficiente para proteger o requerido e evitar abuso.
7. Sigla em inglês de United States Patent and Trade-
mark Office, o órgão estatal americano que equivale
ao INPI brasileiro.
8. Comparisons: Seizure Statistics for Intellectual
Property Rights. U.S. Customs and Border Protec-
tion – January 23, 2008 - http://www.cbp.gov/xp/
cgov/import/commercial_enforcement/ipr/seizure/
seizure_stats.xml (último acesso em 26 de Março
de 2008)
9. Id.
10. Em uma recente pesquisa publicada em 17 de
março de 2008, o Tribunal de Justiça de São Paulo
revelou que nos últimos seis anos o número de pro-
cessos em trâmite em primeira e segunda instância
no estado de São Paulo aumentou 70% (setenta por
cento), correspondendo à época da divulgação da
pesquisa a assombrosos 17.158.287 (dezessete mi-
lhões, cento e cinquenta e oito mil, duzentos e oitenta
e sete). Justiça paulista tem mais de 17,1 milhões
de processos em andamento, http://www.tj.sp.gov.
br/noticias/News_View.aspx?Articleid=814&Tipo=1
(último acesso em 18 de agosto de 2008). Em outra
pesquisa, realizada pela Ordem dos Advogados do
Brasil em novembro de 2004, foi apurado que um
processo em trâmite em primeira instância no esta-
do de São Paulo leva em média sete anos para ser
julgado, ao passo que um recurso de apelação chega
a levar cinco anos para ser distribuído a alguma
câmara julgadora no mesmo estado. Instituto de
Pesquisa Economica Aplicada, Revista Desafios do
Desenvolvimento, http://desafios.ipea.gov.br/desafios/
edicoes/6/artigo12918-2.php (último acesso em 18 de
agosto de 2008).