Vous êtes sur la page 1sur 29

COLEÇÃO ABERTURA

CULLURAL

Christopher Da w s on

- A Formação da Cristandade
Das Origens na Tradição Judaico-cristã à Ascensão e
Queda da Unidade Medieval
mm
Christopher Dawson pode ser descrito como o último exem- plar de sua espécie. Altamente erudito e dono de uma visão his- tórica
monumental, Dawson era um intelectual consciencioso que buscava compreender as ações particulares do processo his- tórico e
encaixá-las em um contexto mais amplo, traços que lhe renderam a alcunha de historiador filosófico.
Ainda que possamos chamá-lo de "gigante", pois permitiu que subissem em seus ombros grandes intelectuais contemporâ- neos,
como, por exemplo, T. S. Eliot e Russell Kirk, Dawson era um homem franzino, de saúde frágil, com capacidades oratórias e
didáticas muito inferiores à sua magnífica prosa.
Os anos de Harvard foram os mais produtivos de Dawson
desde 1935. Um dos belos frutos do período é A Formação da
Cristandade, primeira parte do tríptico que traça o rico processo histórico de constituição da identidade cultural cristã. Neste vo-
lume, Dawson delineia a formação cultural do cristianismo das raízes na tradição judaico-cristã até a ascenção e decadência da
cristandade medieval, com incrível riqueza de detalhes, a par-
tir de um princípio que chama de "católico". A presente obra
complementa e amplia escritos anteriores como The Making
of Europe [A Criação da Europa], de 1932; Medieval Religion
and Other Essays [Religião Medieval e Outros Ensaios], de
1934; Religion and the Rise of Western Culture [Religião e o Nascimento da Cultura Ocidental], de 1950; e Medieval Essays
[Ensaios Medievais], de 1954.
Certa vez, uma revista de Boston referiu-se a ele como uma "antítese animadora [ ... ] ao acadêmico encastelado na torre de
marfim'' , já que Dawson trazia consigo a marca do verdadeiro intelectual: a humildade. Não obstante, esse homem despreten-
sioso e frágil teve imensa coragem e excepcional domínio da His- tória ao esboçá-la de um ponto de vista absolutamente inovador:
a partir de um poder de expressão dinâmico, base de toda a cul- tura do homem, a pedra angular que os homens de nosso tempo
rejeitaram chamada religião.
Márcia Xavier de Brito Vice-Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP). Editora
Responsável de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura
Christopher Dawson foi
um dos historiadores mais influentes do século XX na
Grã-Bretanhq, e nos Estados Unidos. Nasceu no dia 12 de outubro de 1889 em Hay-on-
-Wye, em Brecknockshire, no
País de Gales. Até os dez anos
foi educado exclusivamente
em casa por tutores. Estu-
dou no Winchester College
e cursou história no Trinity
College da Universidade de
Oxford. Notabilizou-se pela
grande erudição e capaci-
dade de transitar com rara
facilidade e sólida competência por quase todos os domínios
das ciências humanas, ao abarcar, nos estudos históricos, pro-
fundas reflexões dos campos da Literatura, da Antropologia, da
Sociologia, da Filosofia e da Teologia. Durante a maior parte
da vida foi um pesquisador independente, no entanto, atuou
como professor universitário do University College em Exeter (1930-1936), da Universidade de Liverpool (1934), da Uni- versidade de
Edinburgh (1947-1948) e da Universidade de Harvard (1958-1962). Faleceu no dia 25 de maio de 1970 em
24 livros publicados originalmente em inglês entre 1928 e 1975. Em língua
Budleigh Salterton, em Devonshire, na Inglaterra. Foi autor de
portuguesa, além do livro A Formação da Cristandade(2014), a É Realizações já lançou Dinâmicas da História do Mundo (2010),
Progresso e Religião (2012) e A Divisão da Cristandade (2014).
Imagem da capa: © Cindy Pavlinac ( www.sacred-land-photography.com)
Impresso no Brasil, setembro de 2014.
Título original: The Formation of Christendom Copyright © Julian Philip Scott, Literary Executor of the Sta te of Christopher
Dawson, 2010
Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 - CEP 04010-970 -
São Paulo, SP, Brasil Telefax: (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com. br ww.erealizacoes.com. br ·

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho


Gerente editorial Sonnini Ruiz
Produção editorial William C. Cruz e Liliana Cruz
Tradução Márcia Xavier de Brito
Revisão técnica, preparação de texto e elaboração do índice remissivo Alex Catharino
Revisão Cecília Madarás
Projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves/ Estúdio É
Capa e diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É
Pré-impressão e impressão Gráfica Vida & Consciência
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica fotocópia, gravação ou
qualquer outro meio de reprodução sem permissão expressa do editor.

A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE
Das Origens na Tradição Judaico-Cristã à Ascensão e Queda da Unidade
Medieval
Christopher Dawson
TRADUÇÃO DE MÁRCIA XAVIER DE BRITO
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MANUEL ROLPH CABECEIRAS
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BRADLEY J. BIRZER
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE DERMOT QUINN
POSFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE ALEX CATHARINO
Sumário
Apresentação à Edição Brasileira: Christopher Dawson,
Historiografia, Cristianismo e os Desafios de Nosso Tempo Manuel Rolph Cabeceiras 7 .....................................................................

Prefácio à Edição Brasileira: A Cristandade de Christopher Dawson


Bradley ]. Birzer 31
..................................................................................

Introdução à Edição Brasileira: Christopher Dawson e


a Ideia Católica de História Dermot Quinn .................................................................................... 43
Nota sobre a Tradução
Márcia Xavier de Brito 75 .......................................................................

Nota do Autor 81
.........................................................................................

PARTE I -Apresentação
Capítulo 1 1 Introdução ao Presente Estudo 85 .............................................

Capítulo 2 1 O Cristianismo e a História da Cultura 101 .............................

Capítulo 3 1 A Natureza da Cultura 115 ......................................................


Capítulo 4 1 O Crescimento e a Difusão da Cultura 135 ..............................

PARTE II - Os Primórdios da Cultura Cristã


Capítulo 5 1 As Ideias Cristã e Judaica de Revelação 153 .............................

Capítulo 6 1 A Vinda do Reino de Deus 171 .................................................

Capítulo 7 1 O Cristianismo e o Mundo Grego . 191 .......................... ........ ...

Capítulo 8 1 O Império Cristão . . 207 ......... .... ...............................................

Capítulo 9 1 A Influência da Liturgia e da Teologia no Desenvolvimento


da Cultura Bizantina 229
...................................... ....................

Capítulo 1 O 1 A Igreja e a Conversão dos Bárbaros 249 ..............................

PARTE III - A Formação da Cristandade Medieval: Ascensão e Declínio


Capítulo 11 A Fundação da Europa: Os Monges do Ocidente 261 ...........

Capítulo 12 A Era Carolíngia 277 ............... ..............................................

Capítulo 13 A Europa Feudal e a Era da Anarquia . 291 ......... ... ................

Capítulo 14 O Papado e a Europa Medieval .. 303 ................. ...................

Capítulo 1 5 A Unidade da Cristandade Ocidental... . . 317 ......... ....... ....... . .

Capítulo 16 Os Feitos do Pensamento Medieval... 335 ........................... ...

Capítulo 17 Oriente e Ocidente na Idade Média . 359 .... ...........................

Capítulo 18 O Declínio da Unidade Medieval.. . 375 .......... ................ .... . ..

Epílogo
Capítulo 19 1 A Ideia Católica de Sociedade Espiritual Universal 393 .........

Posfácio à Edição Brasileira: Teologia e História na


Reconstrução da Unidade Cristã A/ex Catharino 411 ............................... ........................... .......................

Índice Remissivo 427


....................................................................................

17
Apres e n ta ç ã o à E d i ç ã o B ra s i l e i ra
CHRISTOPHER DAWSON, HISTORIOGRAFIA,
CRISTIANISMO E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO MANUEL ROLPH CABECEIRAS
Natural do País de Gales, Christopher Henry Dawson nasceu em 12 de outubro de 1889, na pequena cidade de Hay-
on-Wye (em ga- lês "Y Gelli Gandryll"), também chamada simplesmente de "Hay". À época pertencia a
Brecknockshire (condado administrativo de Brecknock, extinto em 1974), exatamente na fronteira entre este e
Herfordshire, no lado inglês. Pacata, transformou-se a partir dos anos 1980, por conta das lojas de publicações usadas,
na "Meca dos bibliófilos", sendo muitas vezes descrita como "a cidade dos livros".
Embora tenha mudado algumas vezes de residência, a infância de Dawson sempre se passou nesse ambiente rural
vitoriano (e ele próprio virá a destacar a importância deste fato em sua formação), sendo educado exclusivamente por
tutores, em casa, até os dez anos, quando passa a frequentar a escola preparatória. Em 1908, ingressou no Trinity
College da University of Oxford, onde estudou História com o grande helenista Ernest Barker (1874-1960).
Em 1909, acompanhado de seu melhor amigo, Edward 1. Watkin (1888-1981), viajou para Roma e lá, nos degraus
do Capitólio, no lugar mais sagrado das sete colinas da antiga Roma, para onde levam todas as ruas, sob o impacto da
Cidade Eterna, sente-se desafiado a escrever a história da cultura; inspiração que seguirá pelo resto da vida. No mes-
mo ano, já de volta a Oxford, conheceu a futura esposa, Valery Mills, a caçula de três filhas de uma viúva, com quem,
em 1916, se casou e foi a companheira de toda a vida, sobrevivendo-lhe por mais quatro anos.
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
Ao mesmo tempo, por volta dessa época, Dawson trilhava um iti- nerário espiritual que veio a culminar na sua
conversão de um angli- canismo praticante a um catolicismo não menos engajado. Para a to- mada de decisão, em
1913, não faltou o apoio do melhor amigo e da namorada, ambos católicos. No dia 5 de janeiro de 1914, Christopher
Henry Dawson foi batizado na igreja, em Oxford. Iniciada a Primeira Guerra, tentou ingressar no serviço militar, mas
é rejeitado em razão da saúde (sempre debilitada).
Em breve, as suas pesquisas começaram a dar frutos e sucederam as publicações: The Nature and Destiny of Man
e The Passing of Industrialism (1920), Cycle of Civilizations (1922), The Age of Gods (1928), Progress
and Religion (1929), Christianity and the New Age (1931), The Making of Europe e The Modern Dilemma
(1932), The Spirit of the Oxford Movement e Enquiries into Religion and Culture (1933), Medieval
Religion and Other Essays (1934), Religion and the Modern State (1935), Beyond Politics (1939), Judgment
of the Nations (1942), Religion and Culture (1948), Religion and the Rise of Western Culture (1950),
Medieval Essays (1954), Dynamics of World History (1956), The Movement of World Revolution (1959),
The Historie Reality of Christian Culture (1960), The Crisis of Western Education (1961), The Dividing of
Christendom (1965), The Formation of Christendom (1967) e, postumamente, The Gods of Revolution
(1972) e Religion and World History (1975). Para um público como o brasileiro, ao qual Dawson foi apresentado
apenas recentemente, a relação visa a dar alguma ideia sobre os temas por ele investigados e o ritmo de produção, sem
qualquer pretensão de esgotarmos a totalidade de sua obra.
Entre tais títulos, alguns foram aclamados, desde o lançamento, como marcos fundamentais, o que enalteceu a
amplitude do conhe- cimento e a lucidez de estilo do autor. A repercussão dos trabalhos dawsonianos pode ser medida
pela eleição do autor, em 1943, para membro da British Academy. Apesar de atuar mais fora do ambiente
819
universitário, chegou a ocupar algumas vezes a cátedra no University College em Exeter (1930-1936), na
Universidade de Liverpool (1934) e na Universidade de Edimburgo (1947 e 1948) no Reino Unido, bem como na
Universidade de Harvard (1958-1962) nos Estados Unidos. No ambiente protestante da Universidade de Harvard,
em Cambridge, Massachusetts, ministrou, como primeiro titular, um curso chamado Roman Catholic Studies
[Estudos Católico-Romanos], criado por inicia- tiva e a convite do benemérito católico, também convertido,
Chauncey Devereux Stillman (1907-1989). Após a estada norte-americana, retor- nou para a sua residência em
Budleigh Salterton, Devon, na Inglaterra, cidade às margens do Canal da Mancha, onde passou os últimos anos,
vindo a falecer em 25 de maio de 1970. Seus restos mortais foram depo- sitados em Bumsall, Yorkshire, no norte
da Inglaterra, próximos aos dos pais, no local em que passou parte da infância.
São partes do curso ministrado por Dawson na temporada esta- dunidense as palestras transformadas em três livros,
então entregues aos cuidados de Watkin, amigo de toda a vida, companheiro da via- gem a Roma, e agora seu agente
e editor literário. Diferente das outras obras anteriores, a publicação das referidas palestras repercutiu mui- to pouco.
Era o ocaso de um gênio e de um modo de fazer História. Dos três, o terceiro e último volume The Return to
Christian Unity [O Retorno da Unidade Cristã] permanece ainda inédito mesmo em língua inglesa. Quanto aos dois
primeiros, os já citados The Formation of Christendom [A Formação da Cristandade] e The Dividing of
Christendom [A Divisão da Cristandade], foram publicados respec- tivamente em 1967 e 1965, assim mesmo, nessa
ordem (para a qual, mais adiante, propomos uma leitura interpretativa dos motivos). O público de língua portuguesa1
é agora, em 2014, agraciado no
1 A presente publicação A Formação da Cristandade e A Divisão da Cris- tandade se somam aos outros livros do autor já traduzidos
- -

para o português e também publicados pela editora É Realizações: Dinâmicas da História do Mundo (2010) e Progresso e Religião
(2012).
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
Brasil com um lançamento simultâneo dessas duas obras, justamente no ano do centenário da conversão de Dawson
ao catolicismo, oca- sião em que assistimos a um renovado interesse pelo seu pensamento em meio aos impasses
vividos na atualidade. Impasses historiográfi- cos e civilizacionais, impasses sobre a presença cristã e, mais particu-
larmente, católica, em tais contextos.
Fiel à inspiração inicial, temos nesse percurso uma vida dedica- da ao estudo das culturas históricas, ao papel
desempenhado pela religião, nesse caso visto como central, e, em particular, o exame do cristianismo histórico e da
cristandade. Eis um historiador da cultura britânico; mas, o que significa ser um historiador da cultura?
Voltando ao público brasileiro, eis uma pergunta pertinente e res- ta aqui um importante esclarecimento. Para quem,
como nós, está ha- bituado a combinar o binômio "História" e "Cultura", nessa ordem, sob a etiqueta de "história
cultural", o termo "história da cultura" soa como algo estranho, completamente exótico.
A história cultural no Brasil, no recorte teórico-metodológico, é suscetível às modas intelectuais. Estas vêm
fundamentalmente dos franceses que, com Roger Chartier (1945-), ao tratar da chamada "nova história cultural"2
sentiu necessidade de fazer dois movimentos para demarcar o terreno: um interno, no bojo da Nouvelle Histoire
[História Nova], cujo objetivo era distingui-la da "história das menta- lidades", sem deixar de apresentar-se como seu
herdeiro; e outro ex- terno, ao identificar uma "história das ideias" e/ou "intelectual" (vez por outra esses termos se
sobrepõem ou são pensados como campos distintos), assinalando-a como pertencente a um universo bastante diverso
da sua proposta de pesquisa.
Todavia, do outro lado do Canal da Mancha, apesar dessa história das ideias, independente do nome dado, se fazer
hegemônica e usufruir
2 Roger Chartier, A História Cultural entre Práticas e Representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1990.
10 111
de grande fortuna, o quadro guardava uma complexidade maior. Foi preciso esperar por outro prócer da "nova história
cultural", o in- glês Peter Burke (1937-), cuja carreira teve início como professor de Intellectual History [História
das Ideias] na Universidade de Sussex, em 1962, e veio a assumir, em 1979, a cadeira de História Cultural na
Universidade de Cambridge, onde hoje é professor emérito.
Pois bem, como parte do desafio do qual se desincumbe no livro O Que É História Cultural?,3 Peter Burke faz de
seu eixo de argumen- tação um esquema apresentado com o intuito de distinguir essa "nova história cultural" (NHC
ou, em inglês, NCH), da "história cultural" que seria praticada nas "fases" anteriores. E, entre elas, a primeira se- ria,
justamente, mais amiúde chamada de "história da cultura", apre- sentada mais como uma "história de obras-primas"
estudadas como expressão de determinada cultura seja nas artes, nas letras ou nas ciências, predominando em suas
análises o tom filosófico, estetizante e elitista. Burke, ao identificá-la como a primeira fase da história da história
cultural, denomina-a de "clássica" e marca o seu início na Alemanha dos anos 1780, notando-a vigorosa até 1950,
quando seria suplantada pelo movimento da "história social da arte". Este último, vindo de 1930, seria representado,
entre outros, por Arnold Hauser ( 1892-1978) e Ernst Gombrich (1909-2001 ), enquanto da fase clás- sica, anterior,
são destacadas as obras do suíço Jacob Burckhardt (1818-1 897) e do neerlandês Johan Huizinga ( 1872-1945) como
as maiores e mais emblemáticas.
Segundo Peter Burke, a história da história cultural ainda teria mais duas fases: a terceira, caracterizada pela
"descoberta da cultura popu- lar" nos anos 1960 e a quarta, justamente a da "nova história cultural", na qual se insere.
Entre os primeiros relaciona E. P. Thompson ( 1924- 1993), Eric Hobsbawm (1917-2012) e Christopher Hill (1912-
2003).
3 Peter Burke, O Que É História Cultural?. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
Já, para a fase presente, iniciada nos anos 1980, aponta o G-4 das re- ferências teóricas do movimento nas obras de
Mikhail Bakhtin (1 895- 1975), Norbert Elias (1897-1990), Michel Foucault (1926-1984) e Pier- re Bourdieu (1930-
2002), distinguindo Chartier como um dos princi- pais líderes. Completar-se-ia, então, o que Burke considera, numa
visão panorâmica, o alargamento do escopo da história cultural, de restrita em sua fase clássica à alta cultura até a
inclusão da cultura cotidiana, abrangendo os costumes, valores e modos de vida, convergindo com a maneira de ver a
cultura dos antropólogos.
Há sérios problemas nessa classificação, que pelo prestígio de seu autor vem se transformando em cânone, ao menos
nas terras brasíli- cas, tantas são as reduplicações e citações feitas sem qualquer crítica. Não sendo aqui o lugar para
exercê-la sistematicamente, pontuare- mos apenas aquilo que diz respeito ao nosso autor.
Peter Burke observa existir na anglofonia um importante con- traste, nesse terreno, entre os Estados Unidos, marcado
por uma tra- dição de interesse nos estudos culturais, e a resistência a tal estudo, no lado britânico do Atlântico, mais
afeito ao estudo das ideias. As principais e raras exceções listadas são o Christopher Dawson de The Making of
Europe (1932), os doze volumes de A Study of History (1934-1961 ) escritos por Arnold Toynbee ( 1 889-1975) e,
o que mais impressiona a Burke, o projeto concebido e planejado, nos anos 1930, pelo bioquímico Joseph Needham
(1900-1995), cujo resultado foi a publicação, iniciada por ele à frente de um grupo de colaboradores, de Science and
Civilisation in China ( 1954-2008).
Ora, no afã de demarcar terrenos, guiados por afeições inte- lectuais, muitas vezes a retórica passa a predominar,
simplificando posições e, por consequência, aspectos importantes deixam de ser contemplados. Assim, por exemplo,
a vitória obtida pelas duas pri- meiras gerações dos Annales, revista em torno da qual se desenvol- veu a História
Nova, com proposições de enorme relevância para a historiografia contemporânea, deu-se acompanhada pelo desprezo
12 l 13
e abandono, por um bom tempo, de setores temáticos como o da política e o da guerra, denunciados no combate pela
renovação teórico-metodológica como típicos de uma história acontecimental (événementielle), de uma história do
tempo breve. No entanto, des- de então, quando o tempo acentuou a relevância de tais domínios, surgiram diferentes
iniciativas cujo objeto era a recuperação e reno- vação dos referidos temas.
À semelhança do ocorrido acima, por mais que Peter Burke te- nha a delicadeza de afirmar o valor de todas as
chamadas quatro fases da história da história cultural e o permanente interesse pelas principais obras de cada tradição
(cada fase seria a expressão de uma determinada tradição nos estudos históricos da cultura), o resultado também aqui
é a valorização daquilo que se revela próximo de suas afinidades intelectuais. Isso se revela na breve menção feita à
obra de Christopher Dawson, reduzindo-a a um único título significativo e, apesar de positiva, vem acompanhada de
um comentário que resume as investigações de Dawson nesse campo aos seis anos de atuação como conferencista de
história da cultura em Exeter, ocasião em que teria produzido aquela mencionada obra. Tudo isso somente revela quão
imenso é o desconhecimento de Burke a respeito da obra e do pensamento dawsoniano.
O preço pago por tal lacuna mostra ser elevado quando pas- samos a observar, nas citações e resenhas da revisão
historiográ- fica empreendida por Peter Burke, a tendência de transformar as simplificações presentes em seu texto,
em algo caricatural. Enfati- zando o exercício retórico promovido vemos, entre outras consi- derações, a "história da
cultura" ser chamada de "história das be- las artes". E bastaria trazer à memória nomes como os de Oswald Spengler
( 1 880-1936) e do já citado Arnold Toynbee, autores que o leitor brasileiro de história tem certa familiaridade, e que,
ape- sar da distância, tiveram várias obras traduzidas para o português (o que permite, pois, que sejam consultados nas
boas bibliotecas)
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
para perceber que esse não é o caso. Aliás, em ambos, Spengler e Toynbee, o nosso leitor pode vir a obter uma imagem
pouco mais aproximada do tipo de trabalho empreendido por Christopher Dawson. No entanto, ainda assim, são obras
bem distintas, seja em muitos dos procedimentos, seja mais ainda nas interpretações e conclusões. O próprio Dawson,
ao dialogar com elas, mesmo em face da obra de Toynbee, de quem foi colega de classe, não deixa de criticá-las
firmemente, e de indicar os pontos que as considerava deficientes ou contraditórias.
Se voltarmos para a fonte das citações e resenhas - o próprio texto de Peter Burke -, um olhar atento torna possível
localizar a ra- zão do desconhecimento e da pouca afeição pela obra de Christopher Dawson. A perspectiva de Burke
ao abordar a cultura é a do viés econômico-social, num horizonte nitidamente marxista. Não há mo- mento em que a
dimensão religiosa é tratada com a atenção devida nas considerações e abordagem a respeito da cultura. É como se
não houvesse lugar para esse campo de pesquisa. E de fato não há. Por não existir, Dawson permanece deslocado.
Esse não deveria ser um problema para Burke, visto que intenta contemplar diferentes pontos de vista. Em época como
a atual, em que os fenômenos religiosos ganham cada vez maior destaque, torna- -se irrecusável a percepção de sua
magnitude na realidade social, e um autor como Dawson, que concede primazia a esse plano na dinâ- mica das culturas
históricas, merece, ao menos, ser lido com um pou- co mais de atenção. Isso sem contar que, ao continuarmos afastados
de tal retórica de combate, entre a "história cultural" e a "história da cultura", as propostas teórico-metodológicas
subjazem variadas, guardando, cada uma, as suas virtudes. E Burke está certo; frequen- tar as diferentes tradições
intelectuais no campo da história cultural areja essa esfera de conhecimento e contribui para o desenvolvimento das
investigações, refinando-nos o instrumental. E, entre os grandes expoentes, Dawson é um gigante.
14 j 15
Um tema, por exemplo, da "história da cultura", não contem- plado pela "história cultural", é o das civilizações, que,
pelo caráter compendioso, já foi objeto de estudo de dois dos nomes mais icônicos da História Nova, Fernand Braudel
(1902-1985) e Jacques Le Goff (1924-2014). Hoje, contudo, tornou-se marginal, em virtude daquilo que foi
denominado de "história em migalhas" ,4 uma tendência que se mantém em razão da imensa e nebulosa pluralidade
de novos pro- blemas, novas abordagens e novos objetos que, desde os anos 1970, quando foi inventariada, já era
impactante.5 Essa perspectiva não para de crescer, fazendo-nos descrer da capacidade de uma só inteli- gência abarcar
todo esse universo com um só golpe de vista.
Entre civilização e cultura, é costume aproveitar, em relação à pri- meira noção, a rota inicialmente traçada pelos
franceses e, em relação à segunda, a dada pelos alemães, demonstrando que ambas são oriun- das de tradições distintas.
A partir de tal operação, muitos se sentem autorizados a descolar da noção de cultura o aspecto de grande sínte- se, o
qual também lhe era e é próprio, tanto que, para muitos autores e circunstâncias, os vocábulos são intercambiáveis.
Assim, deixam de lado a magistral lição de Fernand Braudel que, aproveitando a existên- cia dos dois termos, fazia
coincidir a ideia de civilização com um tipo específico de cultura, a urbana (Grammaire des civilisations,6 de 1987,
ao retomar o núcleo de outra obra de sua autoria, datada de 1963).
Não obstante, tal visão larga, abrangente, dotada de altos voos, característica dessa "história da cultura", já tinha
sofrido um grande
4 François Dosse, A História em Migalhas. Trad. Dulce A. Silva Ramos. São Paulo/Campinas, Ensaio/Editora Universidade Estadual
de Campinas, 1992. 5 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dir.), História: Novos Problemas. 4. ed. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novos Objetos. Trad. Teresinha Marinho. 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem,
História: Novas Abordagens. 4. ed. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. 6 Fernand Braudel, Gramática
das Civilizações. 3. ed. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
estrago, resultado do combate da História Nova em torno das in- terpretações filosóficas do processo histórico ou,
mais precisamente, da energia despendida pelos historiadores em adequar os estudos à determinada filosofia da
história. A isto, e assim designa o próprio Dawson, chamamos de meta-história. A ideia dos "novos historiado- res"
era, em troca, apostar no contato com as demais ciências sociais (a interdisciplinaridade); na prática da pesquisa
problematizada; no desenvolvimento de técnicas mais rigorosas e controladas, no intui- to de evitar interpretações
impressionistas dos fenômenos históricos. Essa necessidade ingente de inculcar no historiador um refinamento teórico
e metodológico testado na pesquisa sistemática das fontes le- vava à necessidade de ostracizar a filosofia e, mais
particularmente, a filosofia da história da cidadela de Clio, relegando a meta-história a assunto de filósofos.
Ora, os resultados pretendidos foram alcançados. Já são quatro as gerações desde os Annales, a revista em torno da
qual, desde 1929, se desenvolveu a Nova História. As críticas dirigidas ao movimento nos anos 1980 e 1990
evidenciaram os limites da proposta e a ne- cessidade de revisão crítica. Cada vez mais a revisão crítica se faz
necessária, pois as questões seguem em aberto, a retomada de certos temas e autores esquecidos no fragor do combate,
e é preciso dar-lhes nova dimensão.
Christopher Dawson é um dos autores, como pode ser antevisto, que muito tem a dizer para aqueles que pertencem
aos domínios da História. Estamos a falar de um dos pioneiros no diálogo com as Ciências Sociais, particularmente,
com a Antropologia e a Sociologia, muitas décadas antes da História Nova. A virada, por exemplo, que Peter Burke
identifica, entre os anos 1960 a 1990, da história cultural em direção à Antropologia, em decorrência dos problemas
de defini- ção daquilo que viria a ser cultura, encontra em Dawson um expe- riente precursor, pois, na década de 1920,
inaugurara esse diálogo. De sua meta-história não estão ausentes tais diálogos; evita as excessivas
16l17
simplificações que ele mesmo denuncia em Oswald Spengler e Arnold Toynbee, mas também em Karl Marx (1 818-
1883). Aliás, um dos em- bates da meta-história dawsoniana é contra as excessivas generaliza- ções e o empenho em
fixar leis da história, algo por ele descartado justamente graças à enraizada visão cristã e à profunda atenção para com
as particularidades sociais.
Muitas vezes somos levados a pensar que a meta-história está ausente da prática historiográfica vigente. O sucesso
das lutas anna- lesistas nos distrai do fato que as teorias sociais de dois dos autores teóricos mais frequentados por
quem pratica História no Brasil, o já citado Karl Marx e Max Weber ( 1864-1920), têm subjacente às suas propostas
interpretativas também uma meta-história. Aliás, à medi- da que se constata ser crescente o renovado interesse pelas
obras de Dawson mundo afora (há um reviva/ dawsoniano), Weber tem sido reiteradamente comparado a Dawson,
e com razão, não quanto à meta-história, mas no diálogo entre a história e outras ciências huma- nas, bem como no
interesse do papel da religião na cultura ocidental. Retornar à ambição pela síntese, tê-la em mente no horizonte
investigativo: é preciso reatar essa conexão que se manteve presente até a terceira geração dos Annales, com
Jacques Le Goff, por exem- plo, como tivemos ocasião de citar. É preciso recordar às raízes dos Annales, recordar
Henri Berr ( 1 863-1954 ), para quem, sem tergiver- sações, a síntese ocupava papel central. Daí a sua Revue de
Synthese Historique ( 1900, após 1930, simplesmente, Revue de Synthese) e o Centre International de
Synthese ( 1925), ambos frequentados por Marc Bloch ( 1886-1944) e Lucien Febvre ( 1 878-1956). A evocação
aqui, porém, é a da exigência, esgotado o caminho, de resultar na "História em migalhas". E aqui também Dawson
fornece inestimá- vel contribuição.
O que sustenta a meta-história de Dawson e qualquer meta-his- tória e qualquer análise relevante dos fenômenos
sociais e históricos é a imaginação criativa. O caminho da síntese é o da "imaginação
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
criativa", de visões inspiradoras que nos lançam para frente e nos permite contemplar grandes horizontes. Quem a
estudou suficiente- mente bem no campo das ciências sociais foi Charles Wright Mills (1916-1962), chamando-a de
"imaginação sociológica".7 A "imagi- nação sociológica" é um ato que permite a quem a pratica partir do horizonte
imediato, no qual se acham as vivências e constatações pessoais, até as grandes questões públicas, inserindo-se
compreen- sivamente no contexto maior da própria sociedade. Por ser uma prática criativa, Mills fala de uma qualidade
de espírito que permite ao sujeito usar a informação de que dispõe e desenvolver a própria razão de modo a obter
maior clareza acerca do que ocorre no mun- do e consigo mesmo.
Analogamente, em cada campo, podemos encontrar uma feição dessa "imaginação criativa". Toda grande obra
intelectual, científica ou artística é alimentada e sustentada por tal visão. Principia, dentre os procedimentos de
conhecimento, muitas vezes em um insight, uma intuição, favorecida por um ambiente, pelo contato com os clássicos,
o exercício da fantasia e do jogo, na projeção refletida e vivenciada de nossas ações em um quadro informado por
determinada ideologia ou religião. Experiências de construção de sentido. Há, outrossim, uma "imaginação histórica".
Falamos em ideologia e religião como fontes da imaginação cria- tiva. Entretanto, não só é fundamental esclarecer o
papel desses ele- mentos em tal processo, como também é crucial ilustrá-lo na obra historiográfica ou em qualquer
interpretação a respeito da realidade. No empenho de apresentar Dawson ao público brasileiro e conceder- -lhe o
devido e inestimável valor, é preciso que nos acautelemos dian- te da leitura fácil e tentadora que pretende encerrá-lo,
atendendo a uma perspectiva apologética, em determinado nicho: o do historiador
7 C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982.
1 8 l 19
conservador e partidariamente católico, como pretendem alguns da- queles que o têm resgatado recentemente.
A apologética possui função e valor, mas, para ela, a História interessa apenas de maneira instrumental, pragmática,
quando está a serviço de determinada causa ou interesse. Não lhe interessa a His- tória na qualidade de um campo de
investigação próprio. Assim o é quando muito abrangida pelo que convencionalmente designamos, hoje, de "história
pública", ou seja, o uso social das investigações históricas. Uma vez restritos a tal gênero de história pública, não de-
vemos confundir os campos: a história profissional/acadêmica e tal uso instrumental da tarefa do historiador na defesa
de determinada fé, seja ideológica ou religiosa.
A despeito dos historiadores adotarem ideologias e estas inspi- rarem as suas pesquisas, interpretações e análises, as
investigações não são, ou ao menos não deveriam ser, direcionadas por esse mesmo ideário particular. Um trabalho
profissional de qualidade ultrapassa as ideologias, seguindo regras próprias do ofício.
Inspirar significa sugerir o que está na raiz dos dilemas e dos ques- tionamentos do historiador, manifestando o quanto
estamos imersos e comprometidos na própria época. Significa dizer, igualmente, que as ideologias estão mediadas por
nossas teorias sociais, estão no cerne das hipóteses ou das respostas dadas aos dilemas e questionamentos
anteriormente propostos. A ideologia tem relação clara com a per- cepção da política, no modo como são justificadas
e projetadas as ações nesse campo. Já a religião, quando é mais que uma palavra na boca do fiel, extravasa o campo
da política e passa a ter um cará- ter mais existencial, abarcando a vida em todas as suas dimensões, fornecendo-lhe
respostas de maior amplitude, capazes de adequada- mente conferir sentindo ao seu viver. Cumpre observar que apenas
uma ou outra possui tal condição - não estamos aqui sectarizando. É da própria vida, da reflexão que fazemos a seu
respeito que proce- dem as questões e hipóteses acerca dessas dimensões. O fundamental
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
aqui é que sejam construídas e testadas conforme os procedimentos de cada disciplina.
Ideologias e religiões, cada uma a seu modo, podem alimentar a imaginação criativa do pesquisador do fenômeno
humano, o qual, por natureza, é social e histórico. Se Wright Mills nos fala em ima- ginação sociológica e igualmente
constatamos que não estão des- providas de imaginação as grandes obras no campo historiográfico, insistimos que
uma e outra são formas da imaginação criativa que alicerçam qualquer investimento sério e sistemático em
determinado ramo de pesquisa ou saber. Ora, em toda forma de saber, há regras e procedimentos que devem ser
seguidos, a despeito das ideologias e das religiões, e a imaginação criativa expressada nas teorias e hipóte- ses é
constantemente posta à prova. Desse modo, apenas resultam, so- brevivem e se tornam clássicas as teorias e hipóteses
que se coadunam em escala significativa com os dados disponíveis. Se a imaginação sociológica é um exercício de
construção de sentido social, por via da imaginação histórica opera-se a construção de sentido ao longo do tempo,
unindo-nos não só às pessoas, às sociedades e às culturas nas quais vivemos na dimensão temporal mais estrita, como
também a outras épocas em perspectivas mais longas.
Assim, é empobrecedor reduzir Christopher Dawson, ou qual- quer grande autor, ao campo ideológico. Uma boa obra
se faz clás- sica por ultrapassar tal bairrismo sectário, por iluminar desassom- bradamente aspectos fundamentais da
realidade humana. O mes- mo se pode dizer da religião. Se Dawson é um historiador católico e esta identidade se
constitui em chave de sua obra, não o é por atender interesses apologéticos, mas pelo fato de ter tal vivência como
ponto de partida das inspirações, dos questionamentos e das hipóteses de um modo que falta, em tempos pós-
iluministas, aos intelectuais cristãos em geral, salvo honrosas exceções. Uma delas é a vida, a carreira e a obra de
Christopher Dawson que nos trazem riquíssimas lições!
20 121
Como vimos, o livro que ora temos em mãos, A Formação da Cris- tandade (1967), foi originalmente lançado após,
não antes, o volume A Divisão da Cristandade (1965), que aborda os acontecimentos que lhe são posteriores. A
narrativa deste último inicia com um olhar de conjunto sobre a época contemplada no volume, examinando, no Oci-
dente, os impactos culturais da quebra da unidade cristã. A seguir, des- creve as manifestações dolorosas de declínio
dessa unidade em pleno século XIV até a consumação da Cristandade dividida, passando pela Renascença, pelo
Barroco e pelo Iluminismo. O Cisma Protestante, a Reforma e as monarquias nacionais são examinados
detalhadamente em seus desdobramentos culturais em um e outro lado do Atlântico.
Já n'A Formação da Cristandade, especial importância adqui- rem os prolegômenos, de cunho nitidamente teórico,
que podem ser divididos em duas partes: uma primeira, histórico-cultural, sobre o cristianismo e a história da cultura,
as culturas históricas e sua di- nâmica; e outro segmento, teológico, sobre Revelação e o Reino de Deus. A seguir, a
narrativa acompanha a Cristandade Medieval em seus primórdios, a ascensão e o declínio, examinando os elementos
de integração e de dissolução e as manifestações culturais no Ocidente e no Oriente. Ao fim, após apresentar as
primeiras fissuras (séculos XIII e XIV), expõe uma análise acerca da ideia católica de sociedade espiritual universal
(epílogo).
Enfim, The Return to Christian Unity [O Retorno à Unidade Cristã], ainda inédito e no aguardo de publicação,
completa o per- curso ao abranger o final do século XVIII e os séculos XIX e XX. No título, indica mais um desejo,
um empenho e um projeto que uma efetiva realização, ao mesmo tempo aponta, também, ao encaminhar às duas obras
anteriores, tratar-se de um conjunto único, centrado na ação da unidade cristã: na necessidade de retomada e de
iniciativas nessa direção, o que o remete a analisar o modo como se deu tal perda e seus desdobramentos, bem como
recorda sua constituição primeva e a manifestação da força dessa unidade.
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
Um único argumento, uma única ação a costurar os três volumes, os quais, portanto, fazem parte de um único canto.
Assim como a Ilíada narra a ira de Aquiles e a Odisseia, a volta de Odisseu (Ulisses) a Ítaca, ou seja, ao lar, temos
também uma única ação, como nos ensina a poé- tica clássica, a presidir a grande epopeia que Dawson nos lega, como
a nos deixar um testamento: a grande série de acontecimentos grandio- sos da unidade cristã no Ocidente, a
Cristandade Europeia.
As palestras ministradas entre 1958 e 1962, e publicadas em 1965 e 1967, ocorrem no contexto do Concílio Vaticano
II: eleito pontífice romano o cardeal Angelo Roncalli (1881-1963) em fins de 1958 (em 28 de outubro, e assumindo o
pontificado em 4 de no- vembro) com o nome de João XXIII, o novo papa convoca, com a bula papal Humanae
Salutis, o Concílio em 25 de dezembro de 1961, cujas sessões ocorrem de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de
1965, encerrando já no pontificado de Paulo VI (1 897-1978). O ecumenismo que sempre estivera no foco das ações
de Dawson, e fora promovido por intermédio das mais diversas iniciativas, encon- trava em João XXIII largos e
decisivos gestos, como a criação, em 1960, do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. As palestras
em Harvard, portanto, mostravam-se bem oportunas.
À decisão de lançar A Divisão da Cristandade antes de A For- mação da Cristandade, provavelmente tomada
por Watkin, não deve ter faltado certo senso de dramaticidade, pois visava a introduzir o leitor in media res, no meio
dos eventos que acabaram por cindir a cristandade e, por tabela, favorecer culturalmente a cristandade, ganhando
espaço para uma modernidade que dela estava ausente, apesar do vigor cultural que ainda demonstrava. Essa
publicação foi seguida d' A Formação da Cristandade, como digressão retrospectiva que pretendia exibir o remédio
ao mal, cuja visão da unidade perdi- da deveria contribuir para o retorno. A fria recepção na ocasião do lançamento
dos dois primeiros volumes, e um Dawson cada vez mais doente, somou-se ao acentuado pessimismo de Watkin em
face dos
22 l 23
novos tempos: tais ingredientes compuseram o quadro que conduziu à decisão pela não publicação do terceiro volume,
deixando-nos ór- fãos da obra completa.
Até que venha o terceiro livro temos naquilo que foi publicado um tesouro inestimável, em dois volumes que se
justificam por si sós e podem ser lidos independentemente ou na sequência, se o leitor assim desejar. Quanto ao
ecumenismo, este continua a ser um desafio para os cristãos. Além da urgência da unidade, dado o avanço do secula-
rismo que alcança no Ocidente uma capilaridade nunca antes vista, a fragmentação da unidade da Igreja revela-se
como um espinho à medida que o amor-caridade entre os irmãos não se mostra capaz, dados os limites humanos, de
demonstrar, no tempo, sinais mais pa- tentes da unidade. A ruptura da união desejada pelo Cristo para a Sua Igreja
veio a se constituir num doloroso óbice à atividade missionária e à obra de construção do Reino de Deus. Um
escândalo. Como co- adunar unidade e diversidade quando as manifestações culturais e as culturas históricas são
plurais?
Nas pesquisas, Dawson demonstra como os fatores de ordem cultural tiveram forte atuação nos desentendimentos
entre cristãos. Logo, compreender as culturas, as dinâmicas e as histórias passa a ser um empreendimento decisivo e
central. Isso não significa fazer dos cristãos, historiadores; mas, o cristianismo nunca deixou de ter uma dimensão
efetivamente histórica. Eis a compreensão que Dawson pretende proporcionar, não só aos católicos, mas também aos
protestantes, pois não podemos esquecer o ambiente no qual as palestras foram originalmente ministradas. Há no
historiador galês um empenho em construir pontes, visando ao entendimento mútuo entre os irmãos em Cristo.
A memória sempre foi uma característica decisiva na experiência cristã: Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Atas dos
Mártires, História Eclesiástica .. . A própria celebração litúrgica é memorial. Distintas em sua dinâmica, memória e
história coletivas também se cruzam e tecem
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
relações entre si, nutrindo-se mutuamente. Isso está presente desde o primeiro momento da caminhada do povo cristão.
Em diferentes sentidos, o cristianismo é uma religião histórica, e isso pode ser dito de modo mais preciso ao dizer que
a todos cabe ter, desta história, algum conhecimento.
Na obra de Christopher Dawson, ao falar de História, podemos entendê-la de três modos diferentes.
1 o) No plano da Fé cristã, a história pode ser vista como uma perspectiva interna à comunidade de crentes,
hermenêutica da me- mória, na qual, apesar de distinta da memória, não deixa de atuar subsidiariamente, forjando o
que podemos chamar de uma "história sagrada", ou seja, de uma História como alimento da Fé. Neste siste- ma, estuda
como se dá a intervenção divina na história. É a crônica de um povo e de sua Fé, sem dúvida, mas não apenas isso.
Interessa-se, todavia, por constatar a intervenção de Deus na his- tória. Em A Formação da Cristandade, há a nota
particular da busca de uma base comum. Aí, Dawson relembra o ensinamento de Santo Tomás de Aquino ( 1225-
1274), em que é essencial, ao entabular um diálogo com aqueles de quem guardamos diferenças, principiar re-
tomando o patrimônio comum, além disso, mostra ser igualmente necessário identificar a ação de sal da Terra.
Por outro lado, e aqui se faz também presente algo do interesse de quem não pertence à comunidade cristã: tomar
Cristo como "ca- minho, verdade e vida", critério para a ação, alfa e ômega, senhor da História, significa que essa Fé
se encarna e se assume como manifes- tação cultural, informando e conformando a cultura. Não só tal fé transforma
por dentro como cria o novo. Para o cristão isso ocorre em virtude do Criador fazer dele o Seu instrumento. A
justificativa dada, porém, não importa: o fato é que mudanças históricas e cultu- rais têm registro. Isso é o que melhor
nos permite compreender o pa- pel da religião nos fenômenos histórico-culturais e, ao mesmo tempo, torna patente ao
próprio cristão tais desdobramentos da experiência
24 l 25
cristã. Então, a história cultural passa, também, a revelar um valor sagrado, ressaltando o sentido pouco aprofundado,
mas importante, de testemunho de uma fé.
2o) Há o plano do fazer historiográfico, a dimensão prática. Já o vimos exaustivamente, todavia, vale retomar alguns
pontos. Ao his- toriador católico ou protestante, ao pesquisador cristão em geral, é exigida a feitura de uma "boa"
história, rigorosa, como é exigido de qualquer historiador que queira ter o trabalho validado, o que en- globa o modo
como opera suas generalizações. Conceitos, modelos e problemas, tudo é o resultado de generalizações sistemáticas e
cons- cientes, as quais são aplicadas a estudos particulares e bem delimita- dos. Se assim não fosse, a História não
passaria de crônica.
As análises e interpretações, por seu turno, bem como, por sua vez, as sínteses, são interdependentes e uma não subsiste
adequada- mente sem a outra. É fundamental recuperar tal exercício que tam- bém faz parte da prática historiográfica.
Voltando a Santo Tomás de Aquino, ou à Razão, aquele sabendo-a limitada, faz com que siga autônoma em relação à
Fé; caso contrário, não haveria sentido em dela sermos dotados. Assim, da mesma ma- neira como a filosofia e a
teologia possuem suas autonomias, seguin- do cada uma procedimentos próprios, o mesmo também é válido para a
História. Claro que não é suficiente para um historiador católico ser um bom historiador no sentido de aplicar correta
e rigorosamente os métodos e técnicas próprios desse campo do saber. No entanto, tal condição é necessária e
imprescindível. Igualmente aqui, o agostia- nismo de Dawson é exemplar ao empregar não só os instrumentos
proporcionados pela historiografia do período, como ao atuar pionei- ramente numa perspectiva interdisciplinar.
3o) Há ainda o plano propriamente da razão histórica como pro- cedimento interpretativo, vista como um sério
empenho de compreen- são do processos históricos conforme as regras próprias e autonomias desse tipo de
investigação. Acima, no plano do fazer historiográfico
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
foram mais considerados os meios; neste campo particular é levado em conta o conteúdo a ser examinado e os
resultados obtidos, o co- nhecimento alcançado, as teorias formuladas e as propostas interpre- tativas. Sem desdizer a
importância de qualquer um desses planos, é deste quesito que mais carecemos. E é aqui que a leitura de Dawson,
talvez, mais possa nos ajudar.
A respeito da razão histórica, o católico e o protestante, o cris- tão em geral carece de uma reassunção de áreas do
pensamento em que parece ter abdicado do exercício da cidadania. É preciso uma retomada efetiva. Abrimos mão da
formulação de teorias sociais e de hipóteses interpretativas próprias com a marca de uma reflexão genuinamente cristã.
Não se assume seriamente o desafio do Cristo, alfa e ômega, do Cristo critério de apreensão da realidade. Quando
dizemos apreensão da realidade não é somente no julgar, mas também no ver, no modo de entendê-la e interpretá-la.
Cedemos terreno diante dos ataques da modernidade iluminista. Sem deixar de reconhecer, na atualidade, o
empenho dialogal estabe- lecido entre a cristandade e a presente modernidade, não podemos es- quecer a virulência
dos ataques passados movidos contra a cristandade. E, não obstante a identificação de elementos profundamente
humanos em tal perspectiva de modernidade, a esta também são próprios os fa- tores que, mesmo hoje, a mantém
em rota de colisão com a cristandade. A vitalidade demonstrada, por exemplo, na modernidade barroca parece ter se
assustado diante do desencadeamento, a partir de 1789, dos ventos revolucionários e do furor das guerras que lhes
acompa- nhavam. A resposta do romantismo em sua vertente católica é tímida e acanhada, está mais preocupada em
justificar-se e em lutar pela pró- pria defesa e sobrevivência. De certo modo, mesmo não tendo faltado santos e
profetas, a cristandade encastelou-se.
O campo das ciências humanas, salvo raríssimas exceções, foi de tal modo preterido no exercício intelectual criativo
que os pressupos- tos e leituras secularistas, materialistas e ateus parecem fazer mais
26 1 27
sentido e parecem mostrar ser os mais adequados. Uma vez que na vertente protestante, para ficarmos em um exemplo,
os abusos subje- tivistas da teologia liberal resultaram na reação do fundamentalismo; no meio católico, a resposta
mais emblemática veio, em 1 864, com o Syllabus Errorum Modernorum [Sílaba dos Erros de Nossa Época], uma
enumeração sumária dos erros modernos apensada à encíclica Quanta Cura, promulgada pelo papa Pio IX (1792-1
878) em 8 de dezembro de 1864.
Essas reações costumam ser vilipendiadas ou enaltecidas, num confronto ideológico que nada acrescenta à cristandade,
mas é pre- ciso compreendê-las em seu contexto. Restringindo-nos ao caso da encíclica e do respectivo anexo, havia
tamanha indigência intelectual entre os católicos, que o papa, como diz a linha inicial do documento pontifício,
"movido por grande solicitude e zelo pastoral", não podia omitir-se, oferecendo a orientação possível no momento (D-
2890).8
Era e é preciso sair do castelo. Uma tentativa que se alastrou rapidamente foi a iniciativa do sacerdote belga Josef
Cardijn ( 1882- 1967), coadjutor em sua paróquia, que começou, em 1912, a desen- volver um trabalho pastoral entre
os jovens operários que acabou por ser o embrião da Ação Católica, fundada por ele em 1920. Em pouco tempo outros
núcleos se disseminaram, chegando ao Brasil em 1935. Uma das razões de seu sucesso foi o método de análise da rea-
lidade incutido em seu seio: o ver-julgar-agir. Este método, apesar de desempenhar um relevante papel na
recomposição do diálogo com as ciências humanas, em si traz um vício de origem, revelador da mes- ma indigência
no meio intelectual católico demonstrada pela encíclica Quanta Cura e o seu Sílabo. Na maneira como o método é
aplicado, o ver se remete aos instrumentos de leitura das ciências, ao passo que atribui à Bíblia o julgar. Ou seja, a
Bíblia nada teria a dizer em relação
8Pio IX, Encíclica Quanta Cura de 8 de dezembro de 1 864. ln: Heinrich Denzinger, Compêndio dos Símbolos, Definições e
Declarações de Fé e Moral. São Paulo, Paulinas/Loyola, 2007.
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
ao ver, deixando o terreno aberto, nesse particular, para a semeadura de teorias que em muitas situações não guardam
nenhuma relação com a experiência cristã, a exemplo das teorias forjadas no horizonte materialista e ateu.
É um equívoco imaginar tais respostas como permanentes ou ideais. Em ambos os casos, elas tiveram os seus
momentos nos respecti- vos anos de 1864 e 1912 (os anos aqui são apenas simbólicos), e devem ser superadas. Ser
católico, como o cristão, em geral, é consequência do seguimento a Cristo e n'Ele nos orientamos, tomando o
Evangelho como inspiração ao elaborarmos as nossas teorias e interpretações.
Christopher Dawson, como dissemos, é um exemplo de exercí- cio vigoroso nesse aspecto. O encontro com a sua obra
nos oferece modelos, interpretações e hipóteses, toda uma problemática orgânica e genuinamente cristã, que usufrui
de uma tradição de pensar que procede de um período muito anterior. Há temas próprios introdu- zidos na reflexão
historiográfica e há frutos da experiência cristã. O mestre Étienne Gilson ( 1884-1978), com extraordinário sucesso,
demonstrou algo análogo para a Filosofia: a existência, com foros le- gítimos, de uma filosofia caracteristicamente
cristã, iluminada por tal experiência. São várias as obras do eminente filósofo nas quais pode- mos encontrar uma
sistematização a esse respeito, mas em particular cito O Espírito da Filosofia Medieval,9 obra toda dedicada ao
tema da natureza da filosofia cristã e de suas características; vemos isso, igualmente, na obra História da Filosofia
Cristã, escrita juntamente com Philotheus Boehner (1901-1955).1o
Como aqui não é o lugar para um tratado de maior fôlego, ca- bem apenas rápidas e modestas anotações de quais
seriam alguns
9 ÉtienneGilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2006. 10 Philotheus Boehner e
Étienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, Vozes,
2003.
28 l 29
dos temas trazidos pela experiência cristã à escrita da História e que, portanto, podem ser encontrados em Dawson: o
humanismo ou a dignidade própria do aspecto cultural e a autonomia do reli- gioso; a exigência de síntese ou de
perspectiva integral (holística) da realidade; a relação entre espírito e matéria, ou como atuam as condicionantes
(fatores) materiais e imateriais - como desdobra- mento desses temas; a relevância e a efetiva dimensão da liberdade
humana na ação histórica; o caráter dramático da síntese apre- sentada como a luta entre forças de integração e de
dissolução. Nesses contributos, fundamentalmente enraizados numa antropo- logia filosófica coerentemente
evangélica, pode-se afirmar, indubi- tavelmente, haver uma História com uma propriedade dita cristã a irradiar-se para
outras historiografias.
Não é, pois, menor dizer que, independente da crença (ou mesmo na ausência desta), quem quer que se interesse tanto
pela história do cristianismo, bem como pela história da cristandade - esta vis- ta como expressão cultural daquele -,
sairá beneficiado pela leitura d'A Formação da Cristandade: uma obra única, construída em aten- ção às exigências
íntimas de uma humanidade que anseia por reali- zação plena, que não abre mão de compreender o seu lugar e se sente
chamada à ação. A História de Dawson fala-nos ainda hoje, mais que nunca, não só ao cristão, mas ao homem de boa
vontade, afirmando- -se como uma obra clássica e de referência para quem quer que se interesse pela dinâmica das
culturas históricas - aqui também inde- pendente das diferentes filiações teórico-metodológicas que possamos vir a ter
nesse campo de estudo. Como se vê, o pensamento e a obra Dawson seguem palpitando de vibrante atualidade.
Uma palavra final de agradecimento e louvor ao empenho de Alex Catharino e de Márcia Xavier de Brito, bem como
da É Realiza- ções Editora, na figura de seu editor Edson Manoel de Oliveira Filho, ao trazer para o Brasil uma obra
que não só enriquecerá o leitor como também a nossa cultura, pelo contato mais extenso e intenso com o
A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira
pensamento dawsoniano, em uma edição tão bem cuidada quanto a presente e que o caro leitor, agora, tem o
privilégio de ter em mãos.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Na festa dos Santos Mártires Marcelino e Pedro
Manuel Rolph Cabeceiras
Cursou o bacharelado e a licenciatura em História e o mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
com a dissertação As Metamorphoses de Ovídio e as Lutas de Representação na Roma Antiga, e o dou- torado em História pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Urbi et Orbi, Nós e os Outros: Romanidade(s), Fronteira Étnica e a História como
escrita dos dilemas pátrios. Professor, entre outras instituições, da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB, 1986-1997) e da UFF (desde 1997), onde fundou, com ou-
tros docentes, estudantes e pesquisadores, o Centro de Estudos Interdisciplinares da
Antiguidade (CEIA-UFF). Atua na área de História da Antiguidade Greco-romana e
da Alta Idade Média, com ênfase nos seguintes temas: Mediterrâneo, História Cultu-
ral, Discurso e História, Etnicidade, Mitologias, Tradições Clássicas, História Militar,
História das Religiões e Paleocristianismo. Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de
Estudos Clássicos (SBEC) e membro da Associação Nacional de História (ANPUH)
e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sócio emérito do Instituto
de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB), ocupando a cadeira 89, cujo
patrono é Olavo Bilac. Editor assistente e membro do Conselho Editorial da edição brasileira de COMMUNIO: Revista Internacional
de Teologia e Cultura.
131
P refá c i o à E d i ç ã o B ra s i l e i ra
A CRISTAN D A D E D E CHRISTOPH ER D AWSON - POR BRADLEY J. BIRZER
Como verificamos, a trilogia da cristandade foi a última gran- de obra do historiador anglo-galês e literato Christopher
Dawson (1889-1970). Mais ou menos. A trilogia surgiu, originalmente, das palestras que Dawson ministrara enquanto
lecionou na Universidade de Harvard, entre 1958 e 1962. Desejava que fizessem parte da trilo- gia da cristandade o
presente livro, The Formation of Christendom [A Formação da Cristandade], lançado originalmente em 1967; The
Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade], publicado em 19651, e The Return to Christian Unity [O
Retorno à Unidade Cris- tã]. No geral, cada volume representava um dos grandes períodos do mundo cristão: o vínculo
entre os períodos antigo e medieval; a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica; e a Igreja na era da
democracia, dos nacionalismos e das ideologias.
Embora A Formação da Cristandade seja, tecnicamente, o pri- meiro volume da série, a obra surgiu dois anos após
o lançamento do segundo volume, A Divisão da Cristandade. A ideia de publi- car as conferências como trilogia
ocorreu a Dawson em 1963. Seu editor, Frank Sheed ( 1 897-1981 ), prontamente concordou. A úni- ca questão era se
os publicariam separadamente, como três obras
1 Os dois livros foram relançados em inglês nas respectivas edições: Christo- pher Dawson, The Formation of Christendom. San
Francisco, lgnatius Press, 2008; Idem, The Dividing of Christendom. Pref. James Hitchcock; intr. David Knowles. San Francisco, lgnatius
Press, 2008.
A Formação da Cristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira
distintas, ou logo corno urna trilogia. 2 Sheed gostaria de publicá- -las o quanto antes, pois esperava que os livros
pudessem servir de base para os debates do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1 965. Não sem razão, Sheed
acreditava que Dawson - junta- mente com urna série de outros humanistas cristãos corno Jacques Maritain ( 1 8 82-
1 973) e Étienne Gilson ( 1 8 84-1978) - pudesse ser- vir corno pedra angular e manancial para as importantes delibe-
rações e reformas do Concílio. Afinal, figuras importantes, corno Romano Guardini ( 18 85-1968 ), clamavam por
reformas litúrgicas desde a década de 1 920.3
Nada, corno de fato aconteceu, poderia estar mais distante da verdade. Corno acreditava a maioria dos teólogos e das
editoras ca- tólicas nos anos 1960, o Espírito Santo abolira muito do passado recente, e poucos, afora um pequeno
número de fiéis, ainda pensavam que Dawson tinha muito a contribuir para o futuro do catolicismo. O próprio sucesso
que obtivera corno pensador católico de 1928 a 1962, nesse momento, contava negativamente, e muitos o viam corno
urna relíquia da geração passada e um símbolo daquilo que acabara de ser superado. Corno posteriormente explicou
o teólogo neocon- servador Michael Novak: "É corno se todos aqueles escritos potentes de Dawson, Maritain, Guardini
e de tantos outros nunca tivessem realmente criado raízes". 4
Além disso, Frank Sheed se aposentou em 1963, saindo quase to- talmente do caminho de seus sucessores. Sem Sheed
na editora Sheed and Ward, não restava ninguém no mundo editorial que promovesse,
2 Carta de Frank Sheed para Christopher Dawson, de 16 de dezembro de 1963. ln: Box 1, Folder 13, Sheed and Ward Family Papers,
Archives of the University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana.
3 Carta de Sheed para Dawson, 10 de dezembro de 1963. ln: Box 1, Folder 13, Sheed and Ward Family Papers, Notre Dame. 4
Michael Novak, "The Political Identity of Catholics". Commonweal 97, 16 de fevereiro de 1973, p. 441.
32 l 33
ativa e significativamente, as obras de Dawson. Quando incitado a responder por que a editora Sheed and Ward fez
tão pouco para pro- mover A Formação da Cristandade, o sucessor de Sheed desculpou-se: "Há, como sabem, uma
falta de interesse nesta obra que acho extre- mamente lamentável. Ao mesmo tempo, só posso sugerir que, em ge- ral,
parece existir uma total falta de interesse na História da Igreja", escreveu numa carta privada o editor-chefe Philip
Scharper (1919- 1985). Quase ninguém prestou atenção n'A Divisão da Cristandade, observou, e, provavelmente,
um número muito menor de pessoas se importariam com A Formação da Cristandade. 5 Infelizmente, fosse ou não
autorrealizável a profecia de Scharper, muito poucos se deram conta dessa obra quando foi lançada.
A imprensa mainstream norte-americana, como o New York Times e o Wall Street ]ournal, ignorou-a
completamente. Somen- te duas revistas acadêmicas, a Sociological Analysis e a Catholic Historical Review
escreveram resenhas a respeito do livro de 1967.6 Os resenhistas apresentaram pontos de vista opostos aos de Daw-
son. Werner Stark (1909-1985), da universidade jesuíta Fordham em Nova York, nitidamente queria gostar do livro,
ao chamar o autor de "distinto" e ao saudar a intenção de escrever uma história a partir da perspectiva católica como
algo admirável e louvável. "A questão é, certamente, quão bem tal programa foi implementado e, a esse respeito,
infelizmente, não posso negar certo desapontamen- to", afirmou Stark. As próprias visões datadas de Dawson de uma
"teoria da história de grandes homens" já estavam morrendo, la- mentou o resenhista. O maior problema de Dawson,
contudo, vinha de sua incapacidade de explicar o catolicismo e sua profundidade aos protestantes. "A discussão sobre
o monaquismo, por exemplo,
5 Cartade Philip Scharper para John Mulloy, de 29 de novembro de 1967. ln: Box 113, Folder 44, Sheed and Ward Business
Collection, Notre Dame.
6 Ver: Werner Stark, Sociological Analysis 28, Outono, 1967, p. 172-73; Martin R. P. McGuire, Catholic Historical Re11iew 56,
Abril, 1970, p. 219-20.
A Formação da Cristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira
deixa de transmitir o que era seu significado mais profundo", escre- veu Stark. "O professor Dawson não disse aos
alunos que os pio- neiros do monaquismo queriam provar para Deus e para os homens que, na verdade, homens podiam
ser divinos e, mesmo decaídos, podiam ser como Adão fora antes do Pecado Original". 7 O pro- fessor da Catholic
University of America (CUA), Martin McGuire ( 1897-1969), no entanto, não encontrou erros na obra A Formação
da Cristandade. Representava o historiador galês "em sua melhor forma", oferecendo "profundos insights e grande
poder de síntese". O leitor, McGuire entusiasma, "é arrebatado não só pela profundi- dade das reflexões, mas pela
concretude dos exemplos". Compará- vel à originalidade do pensamento de Dawson, conclui, está o estilo de escrita
"cativante" do autor.8
Devemos notar que, apesar de Sheed ter-se aposentado da editora Sheed and Ward, nunca perdeu a fé em Dawson.
Desde o primeiro encontro, os dois iniciaram uma amizade rápida e, por vezes, frus- trante. Sheed não só encorajou
Dawson profissionalmente, ao editar significativa parcela da obra do amigo, mas também ajudou a dar alguma
estabilidade ao maníaco-depressivo Dawson. Se existiu um "renascimento literário católico" no mundo de língua
inglesa após a Primeira Guerra Mundial, Sheed o creditou a seis homens: Hilaire Belloc (1870-1953), G. K.
Chesterton (1874-1936), C. C. Martindale (1879-1963), Ronald Knox (1888-1957), Christopher Dawson e ao
inspirador de todos, o maior teólogo de todos os tempos, Santo Agos- tinho de Hipona (354-430).9 Sheed, no entanto,
tinha perdido a fé no renascimento pleno do catolicismo já em 1958. A mentalidade cató- lica provara, repetidas
vezes, a própria genialidade em autores como Dawson, mas nunca se estendeu além das letras para os domínios
7Werner Stark, Sociological Analysis, p. 172-73.
8 Martin McGuire, Catholic Historical Review, p. 220.
9 Frank Sheed, The Church and I. Garden City, Doubleday, 1974, p. 107-29.
34 l 35
da arte e da arquitetura, lamentava. Tal limitação levaria, por fim, à implosão do movimento. 10
Igualmente prejudicial a Dawson foi a indicação de seu melhor anú- go, E. I. Watkin (1888-1981), como seu agente e
editor literário. Dawson sofrera uma série de derrames devastadores ao longo da década de 1960, perdendo, por fim, a
capacidade de escrever e falar. Certamente precisava indicar alguém para ternúnar a obra. Watkin, entretanto, pernútiu
que suas paixões roubassem o que tinha de melhor a oferecer. O Concílio Vatica- no II o enfureceu. Rotulou o concílio
e suas conclusões de "deformação". A nova Igreja, preocupava-se Watkin, tinha retornado ao barbarismo e nunca
entenderia as nuances de um pensador tão profundo quanto Dawson.11 Desencorajado, Watkin editou as últimas duas
obras de Da- wson, mas com pouco entusiasmo. Em 1969, um ano antes da morte de Dawson, seu melhor anúgo
escreveu a respeito dele e das últimas obras. O Vaticano II nunca poderia refutar Dawson, mesmo se tentasse fazê-lo:
"Não pode, pois suas interpretações estão seguramente ancoradas no fato histórico. Ele é, simplesmente, descartado"
.12 Apesar de Dawson também crer que o Vaticano II estava repleto de erros, aceitara o concílio e seus ensinamentos
por questão de autoridade. Watkin nunca o aceitou. 13
10 Idem, "I am a Catholic Publisher". Westminster Cathedral Chronicle, set./ out., 1959, p. 137.

Carta de E. 1. Watkin para Bernard Wall, de 28 de fevereiro de 1969. ln: Box 1, Folder 24, Bernard Wall Papers, Archives of
11

Georgetown University, Georgetown, Washington, D.C. 12 E. 1. Watkin, "Tribute to Christopher Dawson", The Tablet, 1969, p. 974.
13 Watkin é uma figura fascinante por si mesma. Escreveu inúmeras obras críti- cas sobre arte e cultura na mesma época em que Dawson
escrevera suas obras. Frequentaram a mesma escola quando crianças e mantiveram uma amizade muito próxima por toda a vida. Watkin,
certa vez, descrevera o relacionamento deles em termos clássicos. Ele era grego e Dawson, romano. Watkin, no entan- to, sempre fora um
tanto heterodoxo. Manteve um estrito pacifismo e viveu de modo quase bígamo durante a maior parte da vida adulta. A seu respeito só
existe uma biografia, escrita pela própria filha. Ver: Magdalen Goffin, The Watkin Path: An Approach to Belie(. Eastbourne, Sussex
Academic Press, 2006.
A Formação da Cristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira
Não é de espantar que Watkin também nunca tenha editado o ter- ceiro volume, O Retorno à Unidade Cristã.
Inédito, o único manuscrito da conclusão da trilogia - que necessita urgentemente de revisão, edição e organização -
repousa na Harvard Theological Library. Fragmentos apareceram como artigos em vários periódicos acadêmicos da
década de 1960, mas apenas pequenos trechos. Algum dia, quem sabe, um edi- tor possa comprar os direitos autorais
e, apropriadamente, lançá-lo. Até que isso aconteça, devemos nos contentar com o que Dawson nos legou.
Decerto, deixou-nos uma herança riquíssima! Dawson, ou, mais provavelmente, Watkin organizou A Formação da
Cristandade em quatro partes: Apresentação, Os Primórdios da Cultura Cristã, A Formação da Cristandade
Medieval e um Epílogo. Ainda que a história de Dawson seja, é claro, excelente e suas conferên- cias bela e
cuidadosamente preparadas, a verdadeira importância de A Formação da Cristandade não está em narrar
novamente a história da civilização ocidental, mas na teoria que apresenta a respeito da natureza e filosofia da
história, o papel fundamental da Igreja em reconciliar o pensamento clássico com o cristianismo e, em especial, no
primado da cultura. De fato, muito daquilo que Dawson escreve ao detalhar a história da civilização ocidental pode
ser facilmente en- contrado em suas obras anteriores, desde meados da Primeira Guerra Mundial. Em vez disso, o
que torna A Formação da Cristandade tão fundamental, não somente como uma parte do corpus dawsoniano,
mas também como uma das grandes obras de todo o século XX, é a longa seção introdutória. O professor McGuire
estava correto. Isso é Christopher Dawson em sua melhor forma em termos de lógica e retórica. A seção introdutória
reflete toda a vida de reflexão de uma das maiores mentes de sua época, uma mente católica cheia de vida, no auge
da capacidade.
"A cultura", Dawson explicou com falaz simplicidade n' A For- mação da Cristandade, "é o modo de vida humano
comunicado por uma língua, de modo que a palavra do homem tanto é criadora como
36 l 37
transmissora de cultura" .14 Não interessa quão fáceis possam parecer tais palavras, a profundidade paira em cada
fragmento dessa afirmação de Dawson. Ao mesmo tempo que Dawson ministrava essas famosas conferências em
Harvard, também tentava fomentar suas interpretações pessoais por vários empreendimentos educacionais. A cultura,
afirma- va juntamente com o grande estadista irlandês Edmund Burke ( 1729- 1797) e com o filósofo francês Alexis
de Tocqueville ( 1805-1859):
é um produto artificial. É como uma cidade laboriosamente construída pela obra de sucessivas gerações, não uma floresta que cresceu
espon- taneamente pela pressão cega de forças naturais. A essência da cultura que é comunicada e adquirida e, ainda que seja legada de
uma geração para outra, é uma herança social e não biológica, uma tradição de aprendizado, um capital de conhecimento acumulado e uma
comuni- dade de "costumes" em que o indivíduo tem de ser iniciado. Por isso, é evidente que a cultura é inseparável da educação.15
Como Dawson sempre afirmou, a cultura encontra suas expres- sões mais significativas nas coisas mais humanas, em
gestos e, espe- cialmente, na liturgia religiosa.
Desde o primeiro livro, The Age of the Gods16 [A Era dos Deu- ses], publicado em 1928, Dawson promoveu,
incessantemente, uma análise da cultura como o fundamento mais importante de compreen- são da sociedade, da
família e da pessoa. Nisso, Dawson contrariou a obsessão do século XX com ideologias fanáticas e política. De fato,
Dawson acreditava que o desejo de dar primazia à política e ao pen- samento político levou, inevitavelmente, na
pessoa individual, à perda
14 Verna presente obra o capítulo V (As Ideias Cristã e Judaica de Revelação), p. 153. 15 Christopher Dawson, The Crisis o( Western
Education. Steubenville, Franciscan University Press, 1989, p. 3. 16 Idem, The Age o( the Gods: A Study in the Origins o( Culture in
Prehistoric Europe and Ancient Egypt. Intr. Dermot Quinn. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 2012.
A Formação da Cristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira
da imaginação e, nas sociedades humanas, ao empobrecimento do ra- ciocínio superior. Sem nuance e sempre, e em
todos os lugares, tendo algo de imperial, a política tenta expandir a própria esfera de influên- cia em todos os aspectos
da vida. Em última análise, porém, a política só pode ser bem-sucedida ao neutralizar a pessoa, rotulando-a como algo
inferior do que fora pretendido por Deus ou pela natureza. "Te- mos de encarar o fato de que houve um declínio nas
ideias", confiden- ciou a um amigo íntimo, Bernard Wall (1 894-1976), "há não só uma falta positiva de novas ideias,
mas, também, uma perda subjetiva de interesse nas ideias como tal" .17 Por certo, Marte e Demos apressaram o
crescimento do Leviatã, temia Dawson. "Ainda vivemos à sombra da guerra e na incerteza do futuro da Europa ser
favorável à obra criativa", 18 afligia-se. As limitações ideológicas e a propaganda polí- tica rapidamente se infiltraram
no pensamento, nas artes e na música de várias igrejas cristãs, católicas e protestantes, afirmava Dawson. "Os teólogos
modernos, ao deixarem de ser poetas, também deixa- ram de ser filósofos."19
Embora Dawson tenha gasto um tempo considerável analisando a política e a ideologia, especialmente entre os anos
de 1931 e 1942, ele sempre se ressentiu desse aspecto de seus escritos, acreditando que eram necessários somente para
combater os erros do século XX. De modo algum, temeu e lamentou; argumentos políticos pró ou contra fizeram
progredir a causa de Deus, a cristandade ou a pessoa. A política serviu somente como uma distração neste mundo de
so- frimentos, mas uma distração mortal como provaram ser os campos de concentração e os gulags. Ainda assim, a
análise política deve ser feita, mas sempre no sentido de explicar sua insignificância se com- parada à cultura. Na
última de suas obras declaradamente políticas,
17 Carta de Dawson para Bernard Wall de 26 de agosto de 1946.
18 Carta de Dawson para Bernard Wall de 9 de setembro de 1946.
19 Carta de Dawson para Bernard Wall de 28 de julho de 1946.
38 l 39
The Judgment of the Nations20 [O Julgamento das Nações], de 1942, Dawson, de modo surpreendente, dedica a
obra "a todos os que não perderam a esperança na república, na comunidade dos povos cris- tãos, nesses tempos
sombrios".
Apesar do projeto dawsoniano de reforma do mundo ocidental nunca ter tido êxito, sem dúvida, ajudou a preservar a
melhor parte da civilização ocidental. Certamente seria muito difícil exagerar a importância de Dawson ao inspirar
vários dos melhores pensado- res do século passado. Dentre eles, temos poetas, romancistas, crí- ticos culturais e
artistas como T. S. Eliot ( 1888-1965), David Jones ( 1895-1974), C. S. Lewis ( 1898-1963), J. R. R. Tolkien ( 1892-
1973), Thomas Merton (1 915-1968) e Russell Kirk ( 191 8-1994), e todos, durante suas vidas, adotaram abertamente
a posição de Dawson a respeito de cultura.
Bastam dois exemplos. No poema Four Quartets [Quatro Quar- tetos] de T. S. Eliot, indiscutivelmente, a maior obra
de arte do século XX, quase ao final do quarto poema, "Little Gidding", publicado em 194 2, escreveu Eliot:
E cada frase Ou sentença de rigor (onde cada palavra se familiariza, Assumindo seu posto para suportar as demais, A palavra sem pompa
ou timidez, Um natural intercâmbio do antigo e do novo A palavra corrente, correta, digna, A palavra essencial e exata, mas sem
pedanteria, O íntegro consórcio de um bailado unívoco)21
20 Christopher Dawson, The ]udgment of the Nations. lntr. Michael J. Kea- ting. Washington, D.C., The Catholic University of
America Press, 201 1. 21 No original: And every phrase / And sentence that is right (where every word is at home, / Taking its
place to support the others / The word neither diffident nor ostentatious / An easy commerce of the old and the new / The
common word exact without vulgarity / The formal word precise but not pedantic /The complete consort dancing together). (T. S.
Eliot, "Little Gidding".
A Formação da Cristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira
De maneira menos poética, mas com palavras igualmente pro- fundas, o crítico cultural e historiador norte-americano
Russell Kirk escreveu em seu livro sobre liberdade acadêmica de 1955:
O principal sustentáculo da liberdade acadêmica, no mundo antigo, no mundo medieval e na tradição educacional norte-americana foi a
convicção, entre estudiosos e professores, de que eram os Portadores da Palavra - homens consagrados, cuja primeira obrigação é com a
Verdade, e que a Verdade deriva da apreensão de uma ordem superior à natural ou à material.22
Tanto Eliot quanto Kirk refletiram diretamente um sentimento muito joanino e a argumentação de Dawson. Corno
escreveu no iní- cio do capítulo II d'A Formação da Cristandade:
A história do cristianismo é a história de uma intervenção divina na história, e não podemos estudá-la à parte da história da cultura no
sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi primeiramente revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e na sociedade. De-
pois, o Verbo de Deus se encarnou em uma determinada pessoa, em um determinado momento da história, e, posteriormente, esse processo
da redenção humana perdurou na vida da Igreja, a nova Israel, a comuni- dade universal portadora da Revelação divina, e foi o meio pelo
qual o homem participou da nova vida do Verbo Encarnado.23
Dawson via cada um corno um pequeno verbo, que traz dentro de si um ícone, urna imagem perfeita daquilo que
estamos destinados a ser, segundo Aquele que criou o mundo e o redimiu. Corno nos assegura São João, o lógos é "a
verdadeira luz que, vindo ao mundo
Four Quartets, seção V, versos 234-41 ). Utilizamos aqui a versão em português da seguinte edição brasileira: T. S. Eliot, Quatro
Quartetos. ln: T. S. Eliot: Obra Completa - Volume 1: Poesia. Trad., intr. e notas Ivan Junqueira. São Paulo, Arx, 2004, p. 385. (N. T.)
22 Russell Kirk, Academic Freedom: An Essay in Definition. Chicago, Regnery, 1955, p. 29.
23 Ver na presente obra o capítulo II (0 Cristianismo e a História da Cultura), p. 101.
40 l 41
ilumina todo homem" (João 1,9). Todo aspecto da imaginação e da razão superior nos é dado por algo exterior a nós
mesmos. Ironica- mente, aquilo que é menos humano em nós é o que nos torna mais humanos. Dawson acreditava que
essa verdade era a mais importante que podemos conhecer em nossa peregrinação por este mundo, ao nos prepararmos
para a cidadania celeste. A Formação da Cristanda- de figura como uma alma que se ergue no mundo para
testemunhar o brilhantismo de Christopher Dawson, bem como para encorajar, de modo profundo, nossas vidas a
continuarem intelectual e sobrenatu- ralmente vivas, ou seja, a permanecerem católicas.
Bradley ]. Birzer Professor titular de História da cátedra "Russell Amos Kirk em Estudos
Norte-americanos" do Hillsdale College, em Michigan, nos EUA. Cursou o B.A. na
University of Notre Dame, o M.A. em História na Utah State University e o PhD em História na Indiana University. É autor dos livros J.
R. R. Tolkien's Sanctifying Myth: Understanding Middle-earth (ISI Books, 2003), Sanctifying the World: The Augustinian Life and
Mind of Christopher Dawson (Christendom Press, 2007), American Cicero: The Life of Charles Carrol/ (ISI Books, 2010), The
Humane Repu- blic: The Imagination of Russell Kirk (University Press of Kentucky, 2014), coautor, com Larry Schweikart, do livro
The American West (Wiley, 2002) e coeditor, com John Willson, da coletânea de escritos de James Fenimore Cooper The American
Democrat and Other Political Writings (Gateway, 2001).
l 43
I n t ro d u ç ã o à E d i ç ã o B ra s i l e i ra
CHRISTOPHER DAWSON E A I DEIA CAT Ó LI CA DE HISTÓRIA 1
DERMOT QUINN
Christopher Dawson (1889-1970) foi o mais eminente historiador católico de língua inglesa do século XX, mas, apesar
de toda sua dis- tinção, ele permanece um enigma. Examinar a sua obra é dar-se conta de que o paradoxo está em seu
cerne, que uma simples frase não pode capturar a totalidade de sua realização. Num elegante ensaio revisio- nista,
James Hitchcock demonstrou a consistência com que Dawson parece frustrar expectativas. De gostos rústicos, ele foi
"o mais cos- mopolita dos eruditos";2 ardentemente inglês, aceitou uma cadeira na Harvard University, já perto da
terceira idade, deixando sua terra na- tal; um crítico do industrialismo e individualismo americanos,3 passou a amar
os Estados Unidos da América, e continua mais admirado lá do
1 Ensaio publicado pela primeira vez em língua portuguesa com o mesmo título, em tradução de Mareio de Paula S. Hack, no periódico
trimestral COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, vol. XXVII, n. 3 (edição 99), jul./set. 2008, p. 697-718.
Agradecemos aos editores respon- sáveis Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo e Márcia Xavier de Brito, bem como ao gerente
editorial Alex Catharino, que gentilmente autorizaram a reprodução do texto na presente edição. Todas as notas do editor (N. E.) no
presente ensaio são de autoria de Alex Catharino. A versão aqui publicada foi devidamente revisada, atualizada e acrescida de notas do
tradutor (N. T.) para esta edição por Márcia Xavier de Brito. 2 James Hitchcock, "Christopher Dawson: A Reappraisal". ln: The
American Scholar, vol. 62, 1993, p. 111 .
3 Aquela conjunção era, em si, paradoxal, como observou Dawson: industria- lismo e individualismo muitas vezes se suprimem
mutuamente.
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
que na Inglaterra; distante de companhias intelectuais por grande par- te de sua vida, e antimoderno por temperamento,
era ousado em ques- tões de metodologia histórica; um cristão conservador, reconheceu não obstante o "Reino de
Cristo" como um princípio "de importância revolucionária, tanto para a ordem política quanto para a moral".4 Sua
vida variegada, em outras palavras, parece resistir aos contornos definidos das biografias. Suas excentricidades
zombam das conven- ções; o inesperado não cessa de aparecer. Dawson dá a impressão de ser da melhor espécie de
não conformista: aquele que não se conforma sequer com o próprio não conformismo.
Essas ambiguidades não esgotam sua complexidade. Chamar Dawson de expressivo dentre os historiadores católicos
já é em si enigmático, e parte do enigma tem a ver com uma maneira de pen- sar - chame-a "História Católica" - quanto
com o próprio homem em questão. Certamente, não há dúvidas quanto à sua distinção. Seu tutor na University of
Oxford, Sir Ernest Barker (1 874-1960), o con- siderava inigualável dentre seus pupilos, "um homem e um erudito da
mesma espécie de qualidade de Lorde Acton ( 1 834-1902) e de Friedrich von Hügel ( 1 852-1925)".5 O padre David
Knowles, O.S.B. ( 1896-1974) afirmava que era "em seu campo, o mais eminente pen- sador católico deste século" .6
Mas os testemunhos chamam a atenção apenas para o fato de que Dawson, como historiador, se encontra em grande
medida esquecido. Ele está fora de moda. Talvez sua insis- tência de que a religião está no centro da cultura pareça
redutiva ou confessional. Talvez sua crença na Europa como uma "unidade espi- ritual [com um] sistema comum de
valores morais"7 seja eurocêntrica
4 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit. London, Sand, 1942, p. 4. 5 Citado em Christina Scott, A Historian and His World: A
Life of Christo- pher Dawson 1 889-1 970. London, Sheed and Ward, 1984, p. 110. 6 Ibidem, p. 210.
7 Christopher Dawson, Understanding Europe. New York, Sheed and Ward, 1960, p. 6.

44 j 45
demais para a nossa época eurofóbica ou multiculturalista. Mais pro- vável, porém, é que ele esteja fora de moda por
nunca ter estado nela. De fato, Dawson não parece de modo algum pertencer ao sécu- lo XX. A comparação com
Lorde Acton é apropriada: ambos foram eruditos reservados que se devotaram aos grandes temas, convencidos de
que o estudo da história é uma empreitada profundamente moral. Mas a comparação com Lorde Acton parece
investir sobre ele uma gravitas vitoriana, separando-o de seus contemporâneos. Dawson chegou à maturidade após
a Grande Guerra, quando a mente acto- niana - confiante, liberal, progressiva, racional - havia perecido nas
trincheiras. Depois das batalhas de Passchendaele e Somme, o mundo passou a suspeitar do político como pregador,
do historiador como homiliasta. Ele continuou a enxergar padrões na história, mesmo de- pois que os outros não
conseguiam ver nada além do absurdo. E em outro sentido, ele não se encaixa bem entre os historiadores ingleses.
Se os escritos de história revelam o estilo nacional, então há nele mais Alemanha do que Inglaterra, mais Theodor
Mommsen (1817-1903) do que Frederic William Maitland (1 850-1906), mais Oswald Spen- gler (1 880-1936) do
que William Stubbs ( 1825-1901). O miniaturis- mo das monografias não o atraía: a paisagem, sim. Suas preocupa-
ções eram a natureza da cultura e da civilização, do progresso e da religião, os contornos da história mesma:
questões metafísicas muito distantes do quo warranto [com que direito], o reino do rei Stephen de Blois ( 1096-
1154) e a ascensão do feudalismo bastardo. Sua me- todologia era sempre empírica: nisto, ao menos, ele era inglês.
Mas a "meta-história" tinha muito maior importância para ele do que para os outros. Era, de fato, seu recurso
fundamental:
O historiador acadêmico está perfeitamente certo ao insistir na impor- tância das técnicas da crítica e da pesquisa históricas. Mas o domínio
dessas técnicas não produzirá boa história, mais do que o domínio da métrica produz grande poesia. Para isto, algo mais é necessário. A
experiência dos grandes historiadores, como Alexis de Tocqueville
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
(1 805-1859) e Leopold von Ranke (1795-1 886), me leva a crer que uma visão universal meta-histórica [ ... ] partilhando mais da natureza
da contemplação religiosa que da generalização científica, está bem próxima da fonte de seu poder criativo. 8
A defesa pede um exame melhor. "Visão universal meta-histórica" soa como a escola continental nos seus piores
momentos de vagueza e indefinição. Mas a melhor arma contra o fogo é o próprio fogo. Dawson sabia do que falava.
Pense na sua crítica a Oswald Spengler, cujo continentalismo só não era mais exacerbado do que seu relati- vismo.9
A acuidade de Spengler ao descrever civilizações não era ba- seada em qualquer crença na "civilização" mesma. Em
última análise, ele dissolveu "a unidade da história numa pluralidade ininteligível de processos culturais isolados e
estéreis" .10 A insistência de Dawson sobre a meta-história, deste modo, revelou as falhas daquela escola, melhor do
que a simples confiança num empirismo que, apesar de toda sua atratividade, jamais poderia provar algo fora de si
mesmo.
Até aqui, então, alguns enigmas. Dawson foi um galês que es- creveu à maneira dos alemães; uma figura do século
XIX exilada no século XX; ele era rus in urbe; um revolucionário conservador. Todas estas são ideias úteis. Mas o
paradoxo mais revelador ainda está para
8 Idem, "The Problem of Metahistory: The Nature and Meaning of History and the Cause and Significance of Historical Change". ln:
History Today, 1, junho, 1951, p. 9-12. 9 Idem, Progress and Religion: An Historical Enquiry into the Causes and Development of
the Idea of Progress and Its Relationship to Religion. New York, Doubleday Image, 1929, p. 38. [Ao longo de todo o presente texto
subs- tituiremos as passagens da versão original em português do artigo publicado em COMMUNIO pelas equivalentes da tradução
brasileira da obra, lança- da posteriormente, além de indicarmos entre colchetes as páginas do livro em português. A obra foi lançada em
português na seguinte edição brasilei- ra: Christopher Dawson, Progresso e Religião: Uma Investigação Histórica. Apres. Joseph T.
Stuart; pref. Christina Scott; intr. Mary Douglas; trad. Fabio Farias. São Paulo, É Realizações, 2012, p. 86-87. (N. T.)].

Ibidem, p. 43 [p. 95].


10

46 l 47
ser explorado. Dawson era um historiador católico; e o catolicismo está no centro de sua identidade. O que isto
significa? Num certo nível, as implicações parecem claras. "Historiador católico" implica tanto combinação quanto
contraposição. É ser católico, é escrever inter alia sobre questões católicas, e fazê-lo com empatia, mas sem abandono
da faculdade crítica. Isso parece incontestável, uma com- binação sem controvérsia. Mas a contraposição também jaz
escon- dida. Por que falar de historiador católico senão para sugerir uma identidade dupla, uma lealdade dividida? O
católico segue regras di- ferentes e responde a um juiz mais elevado, assim reza o argumento. Ele finge ser um
pluralista, mas, no fim das contas, somente a Mãe Igreja importa. É o velho hino agostiniano tornado estridente pelo
secularismo. Mas considere suas pressuposições. Se há de fato duas cidades, como Santo Agostinho (354-430) as
descreve, perceba como é estranho que seja o secularista a exigir (em nome do pluralismo) que o católico viva em
apenas uma delas. Em qualquer lealdade dividida, ele afirma, prerrogativas sagradas devem ser, primeiro,
abandonadas, fazendo assim o verdadeiro pluralismo impossível. Mas isto é, eviden- temente, arbitrário, acrítico e em
si mesmo antipluralista: não uma identidade dupla, mas um padrão duplo. Como disse o historiador Johann Peter
Kirsch (1861-1941 ):
Exigir do historiador eclesiástico uma ausência de todo tipo de compreen- sões prévias não é apenas inteiramente irracional, mas uma
ofensa à objetividade histórica [ ... ]. Esta atitude só seria sustentável admitida a hipótese de que o fim da investigação científica não é a
descoberta, mas simplesmente a busca da verdade, sem que jamais possamos encontrá-la [ ... ]. [Uma hipótese] completamente impossível
de ser defendida, pois a afirmação de que a verdade sobrenatural, ou sequer a simples verdade objetiva de qualquer espécie, está além do
nosso alcance, é em si uma hipótese prévia.1 1

11 Johann Peter Kirsch, "History". ln: The Catholic Encyclopedia - Volume VII. New York, Robert Appleton Company, 1910, p.
367.
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
Antes que o historiador católico precise se defender contra acusa- ções de antipluralismo, em suma, ele tem o direito
de exigir uma de- fesa semelhante (se não um pedido de desculpas) de seus acusadores. É errôneo, portanto,
imaginar a "história católica" como um pleito especial ou uma renúncia ao julgamento crítico. Neste cami- nho,
encontra-se a história mesquinha. Mais importante, neste ca- minho encontra-se também o catolicismo mesquinho.
No primeiro exemplo, o historiador acadêmico está "perfeitamente justificado" ao insistir em técnicas de crítica e
pesquisa históricas. Sem estas coi- sas, ele não é nada. O argumento de Dawson é de que eram insufi- cientes, e não
de que eram desnecessárias. Evidente, isto não resolve o dilema da lealdade cindida, mas o fortalece, ao deixar
implícita a insuficiência de meios puramente históricos de entender a histó- ria. Mas não faz mal algum à integridade
profissional sugerir que a "verdade" pode estar em algum lugar para além do empirismo. O católico sustenta uma
visão de mundo peculiar. Disto não decorre a impossibilidade do pluralismo: logicamente, na verdade, implica a sua
necessidade. Sequer é razoável supor - como Charles Kingsley ( 1819-1 875) famosamente fez com John Henry
Newman ( 1801- 1890) que o católico não se interessa pela verdade como tal. Pelo contrário, o católico revela seu
-

catolicismo dizendo a verdade. Se até isto for posto em dúvida, então devemos concluir que nenhum diálo- go é
possível entre o que é sagrado e o que é secular.
Tudo isto deveria ser óbvio, e se a "história católica" fosse, ape- nas, a crônica de um povo e de sua fé, não haveria
dificuldade em empregar os métodos convencionais para entendê-la. Estes métodos não são "positivistas", são apenas
aplicações da razão humana aos problemas concretos. Nem deveria a acusação de meta-história ser causa de alarma.
Como lembra-nos o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988), a busca do historiador é:
Captar as coisas mediante uma divisão radical em dois elementos: o fático - que, como tal, é o "individuado", sensível, concreto e casual
-e
48 l 49
o necessário e universal cuja universalidade leva, por mais preparado que seja, o abstrato, essa lei e esse valor que partem do caso singular
-

para regulá-lo superando-o.12


Assim, qualquer afirmação histórica isolada contém uma afirma- ção sobre a história mesma: só desta maneira se torna
convincente. Do mesmo modo, o historiador que não generalizou, não disse abso- lutamente nada. Ele compilou fatos
erroneamente crendo que fatos falam por si mesmos. O particular e o universal não existem como elementos separados,
mas são intimamente ligados em todos os mo- mentos históricos. A questão das leis históricas surge daí. Entre a opi-
nião radical de que não existem leis históricas e a visão igualmente radical de que toda história é regida por leis, o
historiador católico toma o caminho do meio. De um lado, a negação da lei histórica cai por contradição: afirmar que
não há leis históricas é em si afirmar uma lei histórica. Mas apenas isto não justifica o historicismo empo- lado de,
digamos, G. W. F. Hegel (1770-1831 ) ou Karl Marx ( 1818- 1883 ); pois qualquer esquema que tente entender o
particular com uma elaborada arquitetura de "leis" ou "forças" comumente nega a própria particularidade que procura
explicar.
Será este, então, o problema característico da "história católica" ? Não. Explicar a contingência dentro da teleologia
não é um problema peculiarmente católico. Mesmo historiadores que negam a finalidade enfrentam este problema: a
antiteleologia deles é igualmente esque- mática, o contingencialismo radical igualmente uma afirmação sobre a
historicidade e, portanto, sobre a história mesma. O problema do historiador católico é, na verdade, o seu
providencialismo. Ele deve
12 Hans Urs von Balthasar, A Theology of History. New York, Sheed and Ward, 1963, p. 5. [As passagens da obra citadas na versão
original em por- tuguês do artigo publicado em COMMUNIO serão substituídas no presente texto pelas equivalentes da tradução da obra
em português, sendo informa- das entra colchetes as páginas da seguinte edição brasileira: Hans Urs von Balthasar, Teologia da História.
Trad. Claudio J. A. Rodrigues. São Paulo, Fonte Editorial, 2005, p. 12. (N. T.)]
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
defender a ideia de criação, e também o propósito divino entrona- do nela. Isto é possível, mas a confusão da história,
muitas vezes, barra esse caminho. Pense no bispo Jacques Bossuet ( 1627-1704), cujo grande esquema de história
universal "baseado nas Escrituras Sagradas" alcançou a harmonia somente ao preço das particularida- des históricas.
O resultado foi insatisfatório, não apenas do ponto de vista do historiador, como também do ponto de vista do teólogo.
Ao destituir a contingência, da concretude do aqui-e-agora, ele destituiu a própria história, desta forma prejudicando
seu próprio esquema incarnacional. Cristo, de fato, se tornou o Senhor da História, mas foi um reinado vazio, uma
soberania sem sentido. Bossuet parecia encarar a história como um drama, cujo ato final já era conhecido, e a escrita
da História como um ramo da apologética, que não tinha que prestar contas de coisa alguma. Sua teleologia requeria
uma sa- bedoria que era demasiado otimista e um determinismo que era por demais pessimista. É uma armadilha que
ainda em nossos dias amea- ça os incautos.
Isto não é o mesmo que dizer que a história providencial é impos- sível. Pelo contrário, tal leitura apresenta
dificuldades precisamente porque é necessária. Sem o reconhecimento de que Cristo é o Senhor da História, de que
toda história está resumida e ganha sentido na Encarnação, o historiador católico difere muito pouco do historia- dor
secular que procura escrever a história universal a partir de uma perspectiva puramente material. Mas se o católico vê
a história como revelação de uma economia divina da salvação, então seu projeto se tornou teológico. Crucialmente,
porém, isto não aniquila as normas ou métodos históricos. Como lembra-nos Balthasar:
Nem se pode tratar de metafísica natural, de ética natural, de direito natural, de ciência histórica natural, como se não fosse Cristo a nor-
ma concreta do todo; nem tão pouco se pode estabelecer uma "du- pla verdade" sem relação, segundo a qual os teólogos e os especialistas
profanos investiguem sobre o mesmo objeto, sem que seus respectivos
50 l 51
métodos se encontrem nem se cruzem jamais; nem tão pouco, por últi- mo, se podem dissolver as ciências do mundo na teologia, como se
esta fosse a única competente, porque Cristo é a exclusiva norma concreta. Precisamente porque Cristo é norma absolutamente irrepetível,
seu pre- sente é incomensurável com relação às normas interiores do mundo.13
A tarefa do historiador católico não é, portanto, escrever "boa história", quer de uma perspectiva católica ou não
católica: é, em vez disso, decidir até que ponto seu projeto histórico é mais ou menos aberto às normas teológicas
que ele reconhece ao reconhecer a pró- pria catolicidade. Talvez o fracasso de Bossuet tenha sido o fracasso em
distinguir com propriedade entre ambos, para prejuízo de ambos. Esses, portanto, são os problemas que o historiador
galês Christopher Dawson apresenta. Mas para entender Dawson, o his- toriador, precisamos entender Dawson, o
homem. Os dois não exis- tiam separadamente, mas eram integrados num nível profundo de sua personalidade. Mas,
ainda assim, ele impõe exigências severas ao biógrafo, que deve compor uma história a partir dos insuficientes
entusiasmos de erudição provinciana e de uma razoável obscuridade. A vida de Dawson é um estudo em
anonimidade. Juventude passa- da entre livros, Oxford, exígua existência em Exeter por um tempo, de volta a
Yorkshire como um cavalheiro escritor, Harvard no final: dificilmente material para um Richard Hannay14 ou um
Dornford Yates.15 Mas uma vida tão solitária e tão resolutamente intelectual
13 Ibidem, p. 14 [p. 19].
14 O major Sir Richard Hannay é um fictício agente secreto criado pelo ro- mancista, historiador e estadista escocês John Buchan ( 1875-
1940), primeiro barão Tweedsmuir. A inspiração de John Buchan na criação desta persona- gem foi, em parte, o marechal Edmund Ironside
(1880-1959), primeiro barão Ironside, que atuou como espião durante a segunda guerra dos bôeres, na África do Sul. (N. E.)
15 Dornford Yates é o pseudônimo do romancista inglês Ceei) William Mercer (1 885-1960), cujas estórias curtas e bem-humoradas,
publicadas em revistas, se tornaram best-sellers no período entre as duas guerras mundiais. (N. E.)
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
gera a sua própria evidência. Livros e artigos revelam os contornos de uma sensibilidade e as experiências que a
formaram. Os escritos sozinhos proveem a autobiografia. Temos a sorte, também, de Chris- tina Scott ( 1922-2001 )
ter-nos dado um relato soberbo sobre seu pai. Nele, ela registra as primeiras memórias de Dawson, de Hay-on-Wye e
Yorkshire, de paisagens permeadas de história. Quando criança, ele "gostava da liberdade e da ausência de limites nos
selvagens pân- tanos do interior do país", como se a imensidão vazia o ligasse ao mundo dos mitos e lendas. Aquele
mundo mítico - "metade história e metade poesia" - formava uma paisagem de poderosa atração. Ele parecia enxergar
nele: "A velha estrada que nos leva de volta não meramente por séculos, mas por milhares de anos; a estrada pela qual
todas as pessoas viajaram e da qual os começos de todas as litera- turas surgiram".16 Assim foi que ele veio a adquirir
um "amor pela história" e um "interesse pelas diferenças entres culturas" .17 Sua ima- ginação era primariamente
visual. A história não era uma abstração, mas uma coisa a ser vista, em igrejas e túmulos, na própria terra. Isto é
certamente revelador. Ele se tornou um historiador visionário, ima- ginativamente consciente dos grandes movimentos
dos povos e das civilizações, porque começou como um historiador visual. Usando as palavras do poeta Thomas Hardy
(1 840-1928), "era um homem que costumava notar tais coisas" .18
Nenhuma reflexão subsequente erradicou esta experiência da his- tória como algo tangível. "O passado não morre",
ele gostava de dizer, citando Santo Agostinho. "Ele se incorpora na humanidade" .19 Aqui estava um sentimento quase
místico de que, em oposição às "leis da his- tória", que explicam ou obscurecem o passado, "sempre permanece um
16 Christina Scott, A Historian and His World, p. 27.
17 Ibidem, p. 15.

18No original: "he was a man who used to notice such things ". Thomas Hardy, Afterwards, verso 4. (N. T.) 19 Christina Scott,
A Historian and His World, p. 99.
52 l 53
irredutível elemento de mistério" .2° Começou no mundo imaginativo da infância e foi ligado a um poderoso intelecto
que, ao explorar cone- xões entre as paisagens e a história, também intuía uma relação entre tempo e eternidade. A
carreira de Dawson em Oxford (praticamente autodidata) refinou seu intelecto. Também o fez a sua conversão ao ca-
tolicismo, que deveu muito a um temperamento histórico cativado pelo drama do passado cristão, que se concretizou
no presente cristão.21 De- pois de Oxford, o pendor de sua mente se tornou mais contemplativo. "Eu [o] achei repleto
de misticismo e de história", escreveu seu amigo E. l. Watkin (1 888-1981 ), "ocupado com um ensaio sobre o
significado religioso da história". 22 Watkin continua afirmando que: "Ele encon- tra, na revelação, a chave necessária
para a interpretação da história". Perceba a interação de duas ideias: a revelação por si como doadora de sentido à
história, a história mesma como parte de uma revelação que se desenrola no tempo.
Dawson jamais abandonou estas preocupações: por um lado, a relação entre cultura e religião, por outro lado, o papel
da Revelação na história e o da história na Revelação. Desde The Age of the Gods [A Era dos Deuses],23 em 1928,
até The Gods of Revolution [Os Deu- ses da Revolução], 24 em 1972, publicado dois anos após a sua mor- te, tais
obras constituíram o trabalho de uma vida. juntamente com
2° Christopher Dawson, The Historie Rea/ity of Christian Culture: A Way to the Renewal of Human Lifet. New York, Harper &
Bros., 1960, p. 18. 21 Christina Scott, A Historian and His World, p. 63. "Assim como Newman, sua abordagem do catolicismo era por
meio da História. 'Os Padres da Igreja me fizeram católico', escreveu certa vez Newman [ ... ] e, em outra ocasião, 'Ser profundo em
História é deixar de ser protestante' [ ... ] ou seja, a prova cumu- lativa do passado cristão o levou à plena aceitação do presente católico".
22 Ibidem, p. 57. 21 Christopher Dawson, The Age of the Gods: A Study in the Origins of Culture in Pre-historic Europe and the
Ancient East. London, J. Murray, 1928. 24 Idem, The Gods of Revolution. Intr. Arnold Toynbee. London, Sidgwick & Jackson, 1972.
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
Lorde Acton, ele sustinha que a religião oferecia a chave da história. Nenhum outro princípio - econômico, social,
cultural - igualava o seu poder explanatório. "Não importa o quão longe formos na his- tória da raça, não podemos
jamais encontrar uma época ou um lugar onde o homem não estivesse consciente da alma e de um poder divino do
qual sua vida dependia". 25 Além do mais, a religião era a chave para a cultura: uma cultura decaía na medida em que
se secularizava. Dawson evitou a afirmação de que a simples longevidade era pro- va de verdades religiosas. Nem
sequer fundia a numinosidade - um vago impulso para a espiritualidade - com a religião propriamente dita. Mas a pura
escala da experiência religiosa do homem o comovia grandemente; nas palavras de Dawson: "um poder maciço, objeti-
vo, não questionado, que entrou em tudo e imprimiu sua marca no mundo externo tanto quanto no interno" .26 Isto
dava uma espécie de segurança de que, "não importa quão negro seja o panorama'', há sentido na falta de sentido,
ordem no caos. 27
Esta busca por um princípio histórico universal é evidente em tudo o que Dawson fez. Uma ideia - uma palavra -
percorre a sua obra, como um leitmotiv: "unidade". A escrita está banhada com lin- guagem de harmonia e
consonância, um senso sinfônico da história como uma dança para a música do tempo, requerendo uma melo- dia
abarcante para salvá-la da cacofonia. Veja Progress and Religion [Progresso e Religião], de 1929, seu livro mais
importante, no qual escreve sobre tais coisas como: "A nação como uma unidade espi- ritual [ .. . ] unidades [como
ideias] culturais ditadas por condições materiais"; "crença religiosa, uma fonte de desunião" após René Descartes
(1596-1650); "a unidade da cultura europeia restabelecida sobre a base da ciência internacional" no século XVIII;
"necessidade
25 Idem, Religion and Culture. London, Sheed and Ward, 1948, p. 41. 26 Citado em Christina Scott, A Historian and His World, p. 15.
2 7 Christopher Dawson, The Sword of the Spirit, p. 4.
54 l 55
de unificação social e moral" na Europa contemporânea; "desunião intelectual e espiritual" desde a Reforma; "divórcio
entre a religião e a vida social, fatal para a civilização"; "Cristandade e unidade inter- nacional". Impossível não
perceber o tema e suas variações.
Por que a preocupação com a unidade? Ela representava uma busca pelo princípio da integração. Sociedade e
civilizações formam um todo integral: fazê-lo é de sua natureza. A história, também, deve ser coerente; de outra forma,
o providencialismo é absurdo. E assim, um unificador (e unidades relacionadas) deve ser encontrado. Quatro
"unidades" preocupavam Dawson especialmente: aquelas da socie- dade, da cultura, da Europa, e da civilização. Cada
uma delas era importante. Juntas, formavam uma quinta unidade: a própria his- tória. Como um esquema, isso possuía
algo da confiança da grande corrente do Ser, aquela visão de mundo elisabetana onde cada objeto, do menor ao maior,
encontrava o seu lugar. O esboço de Dawson era menos grandioso, mas igualmente confiante. Mas qual era o princípio
unificador? Dawson acreditava que a religião o supria:
Todas as culturas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual
que forneça a energia necessária para aquele esforço social sustentado que é a civilização. Normalmente essa dinâmica é fornecida por
uma religião, mas em circunstâncias excepcionais o impulso religioso pode
se disfarçar em formas filosóficas ou políticas.28
Epigramático, erudito e sereno, o insight era típico. Ele provinha de três fontes - conhecimento da religião do mundo,
uma habilidade de antropólogo para categorizar tipos e formas, e o reconhecimento da insuficiência de explicações
não religiosas para o processo histó- rico. Considere essas fontes por um instante. A erudição era extraor- dinariamente
ampla. Dawson estava à vontade, junto de Juliano, o Apóstata (331-363) e de Santa Juliana de Norwich (1342-1421
), com o evangelho de São Marcos e com o "evangelho" de Karl Marx. Ele
Idem, Progress and Religion, p. viii (p. 48].
28

A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira


podia ir dos xamãs da Sibéria aos índios Pueblo do Arizona, de Ísis e Osíris a Confúcio (551-479 a.C.) e Lao-Tsé. Há
uma qualidade po- límata em sua obra, que delicia tanto quanto desconcerta. Quanto à antropologia, ela era também
abalizada. Dawson escreveu sobre to- tens e totemismo, sobre cultos e culturas, sobre civilizações elevadas e
inferiores, sobre religiões verdadeiras e falsas, com grande esmero. Certamente, ele percebia que as deficiências
teóricas da antropologia, particularmente seu darwinismo acrítico e sua indiferença aos pro- cessos efetivos de
mudança histórica. Citando Maitland, ele pensava que "mais cedo ou mais tarde a antropologia teria que optar entre
ser história ou não ser nada". 29 Mas seus insights sobre a cultura primi- tiva muito deviam à antropologia. E ela
tinha outra utilidade. Ele via como a antropologia "debilitava suposições do Iluminismo de uma maneira importante -
crenças 'primitivas' não podiam meramente ser descartadas como absurdas e irracionais, mas mostrou-se que possuí-
am um sentido profundo dentro de suas culturas particulares" .30 Os críticos de Dawson chamavam-no de
antirrelativista e até anti- -histórico:31 considerando essas evidências, vê-se que não é o caso. A religião primitiva era
uma censura importante àqueles que nega- vam a espiritualidade do homem. Apesar de toda a sua "obscuri- dade e
aparente falta de lógica" ,32 possuía profundidade e riqueza psicológica, enquanto o racionalismo oferecia somente
arrogância e
29 Ibidem, p. 50 [p. 102]. 30 James Hitchcock, "Christopher Dawson: A Reappraisal", p. 1 12. 31 Veja, por exemplo, Hayden White,
"Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson". English Miscellany, vol. 9, 1958, p. 247-87. [O texto se encontra
disponível, também, na seguinte coletânea de escritos do historiador norte-americano Hayden White, "Religion, Culture and Western
Civilization in Christopher Dawson". ln: The Fiction of Narrative: Essays on History, Literature, and Theory, 1 957-2007. Ed. e intr.
Robert Doran. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2010, p. 23-49. (N. E.)] 32 John J. Mulloy, "Christopher Dawson and a
Christian Apologetic". The Dawson Newsletter, outono, 1987, p. 3.
56 l 57
superficialidade: "Quanto mais alto [o racionalista) ergue sua torre de civilização, mais instável ela se torna, pois a
natureza dele permanece essencialmente a mesma do homem primitivo". 33
Terei mais a dizer sobre o Iluminismo daqui a pouco. Retorne- mos ao tema da unidade, particularmente a das
sociedades humanas. Dawson sentia, fortemente, que a estabilidade de qualquer organiza- ção humana derivava de
sua identidade orgânica. Era um ser vivo. Possuía ritmo e sazonalidade. Crescia devagar. Respeitava as limita- ções
das geografias humana e física. Veja esta passagem de Progress and Religion, na qual Dawson examina a capacidade
das cidades para perder contato econômico e vital com suas regiões:
É esse processo de degeneração urbana que se constitui uma das maio-
res fontes de fraqueza da nossa moderna cultura europeia. Nossa ci-
vilização está se tornando disforme e moribumda porque perdeu suas
raízes e não possui mais ritmo vital e equilíbrio. [ .. . ] Assim como uma
civilização mecânica e industrial buscará eliminar todo desperdício dos
movimentos no trabalho, de forma a tornar o operador o complemen-
to perfeito de sua máquina, uma civilização vital fará que todas as fun-
ções e todos os atos percam sua graça vital e sua beleza. ( ... ] Por que
um corretor de bolsa é menos bonito do que um guerreiro homérico ou um sacerdote egípcio? Porque ele está menos incorporado à vida;
ele
não é inevitável, mas acidental, quase parasita. Quando uma cultura
conhece suas reais necessidades e organiza suas funções vitais, todos
os ofícios ficam bonitos. 34
Muito de Dawson está aqui: amplitude, senso estético, um óbvio antimodernismo, paixão moral. "A perfeição de uma
cultura", defen- deu, é "medida por sua correspondência com seu ambiente". 35 Era por isto, aliás, que a vida industrial
urbana parecia tão falsa. "Sem
33 Christopher Dawson, Religion and Culture, p. 28. Citado, também, em John j. Mulloy, "Christopher Dawson and a Christian
Apologetic'', p. 3.
3 4 Christopher Dawson, Progress and Religion, p. 68 [p. 1 16-17].
3 5 Ibidem, p. x [p. 51].
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
dúvida, o artesão medieval não possuía um alto padrão de vida", escreveu Dawson, "mas ao menos compartilhava da
vida orgânica da cidade. O abismo entre sua existência e aquela vivida pelo mineiro e pelo operário de tecelagem do
final do século XVIII é quase tão pro- fundo quanto aquele que separa a civilização da barbárie".36
Isto era unidade no nível simples de uma cultura à vontade consigo mesma. Mas a unidade também tinha relação com
continuidade e me- mória coletiva, a história compartilhada e consciente de unidade espiri- tual pela qual as grandes
civilizações são conhecidas. A Europa exibia tal unidade, e Dawson devotou muitos de seus escritos a esse exame.
Entender a Europa foi, de fato, a sua realização mais significativa. Mas o que era a Europa? Mais, é certo, do que uma
expressão geográfica:
A Europa é uma comunidade de povos que compartilham de uma tra-
dição espiritual comum, que teve suas origens 3 mil anos atrás, no
leste do Mediterrâneo, e que foi transmitida de época em época e de povo para povo até chegar a abarcar o mundo [ ... ) O que chamamos
"Europa" no sentido cultural é, na verdade, somente uma fase deste
desenvolvimento cultural. 37
A Europa de Dawson era uma sociedade de povos regionalmente diversos, geograficamente misturados e
historicamente variados. Mas não havia nada de frágil nessa diversidade, nem qualquer unidade meramente hipotética,
encontrada numa variedade compartilhada. A unidade era algo substancial. Sua base era a igreja cristã. Não é
trivialmente que se diz que a Igreja era a Europa e a Europa era a Igre- ja. Aqui havia uma confraternidade,
transcendendo divisões raciais e
36 Idem, Dynamics o( World History. Ed. John J. Mulloy. New York, Sheed and Ward, 1957, p. 192. [A passagem da versão original
em português do ar- tigo publicado em COMMUNIO foi substituída por equivalente da tradução brasileira da obra, lançada
posteriormente na seguinte edição: Christopher Dawson, Dinâmicas da História do Mundo. Ed., pref., intr. e posf. John J. Mulloy; intr.
Dermot Quinn; pref. e trad. Maurício G. Righi. São Paulo, É Realizações, 2010, p. 292. (N. T.)] 37 Idem, Understanding Europe, p. 32.
58 l 59
políticas, oferecendo, mesmo em seu declínio, a memória da unida- de, a lembrança de uma cidadania comum. "O que
fizemos com esta herança?", Dawson costumava perguntar. "Ao menos nós a tivemos. Ela tem sido parte de nossa
carne e sangue, e das palavras de nossa própria língua". 38 Este plangente anseio que os críticos ouviram em Dawson
pode ser ouvido aqui, porém não como nostalgia, mas como um chamado à ação. Enquanto escrevia, ele viu ameaças
à unidade europeia sob as formas da guerra, do totalitarismo e do materialismo. A redescoberta da identidade espiritual
da Europa não era devaneio histórico, mas uma questão de urgente necessidade.
O historiador galês prestou os reconhecimentos devidos às raízes gregas da Europa. Sem o platonismo e suas
elaborações, a "Euro- pa" como um ideal teria sido impossível. Mas, acima de tudo, foi o cristianismo que mudou a
Europa, transformando um helenismo filosoficamente finito em uma cultura com extraordinários poderes de
adaptação, expansão, autoconhecimento e capacidade para o infinito. A Encarnação foi tudo. A Revelação foi
Revolução. Tanto o Orien- te quanto o Ocidente foram transformados por esta. O estilo de tal transformação diferia
em cada lugar. Sob a influência do neoplatonis- mo, no Oriente a Encarnação foi reespiritualizada, fazendo a divin-
dade perder a carne que brevemente assumira. Influenciado por Santo Agostinho, no Ocidente a ordem espiritual se
desenvolveu não como um princípio metafísico estático, mas como "uma força dinâmica mo- ral e social" .39 Este
insight agostiniano foi profundamente importante para a igreja cristã, e central para a compreensão que Dawson tinha
do Ocidente. Através dele, a integridade do cristianismo como encar- nacional foi preservada. Através dele, o mundo
do Ser Finito podia ser compreendido, não como estático ou ilusório, mas como dinâmico e espiritualmente dirigido.
Através dele, uma nova ordem social pôde se
38 Idem, Religion and the Rise of Western Culture: Gifford Lectures, 1 948- 1 949. London, Sheed and Ward, 1950, p. 273.
39 Idem, Progress and Religion, p. 164 [p. 202).
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
erguer, baseada na "única cidadania verdadeira", "a associação com a Igreja" .40 Santo Agostinho demonstrou, através
de seu entendimento da Encarnação como um acontecimento no tempo e além do tempo, que Igreja e sacramento
tornavam manifesto, na Terra, um mundo celeste do qual eram ao mesmo tempo antegozo e realização.
Dawson acreditava que essa unidade espiritual chegara mais per- to de ser atingida na Europa da Idade Média. O
medievalismo tem uma importância tão grande em seus escritos - e na crítica deles - que é importante saber qual
significado lhe dava. Talvez seja mais simples saber qual significado ele não lhe dava. Não era a perfeição, ou pa-
raíso na Terra, ou "algum padrão ideal [ . .. ] pelo qual as sociedades existentes possam ser julgadas'',41 ou mesmo
especialmente agradá- vel.42 Foi, no entanto, uma época na qual as implicações da unidade espiritual eram elaboradas
e manifestadas na vida de uma socieda- de. Na esfera secular, "um novo espírito democrático de irmandade e
cooperação social começa a se sentir na Europa nessa época", 43 junto com um crescimento nas atividades comunais
e corporativas. Na esfera eclesiástica, a igreja se tornou responsável pela educação, pela arte, pela literatura, pelo
cuidado dos pobres, pelo consolo dos moribundos: não como obrigações institucionais, mas como deveres que os
homens sentiam ter para com os outros. Naturalmente, um
40 Ibidem, p. 166 [p. 203-04]. 41 Idem, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14. 42 "A Europa medieval não possuía mais
uma cultura material homogênea [ ... ]. Era uma federação solta dos mais diversos tipos de raça e de cultura sob a hegemonia de uma
tradição comum religiosa e eclesiástica. Isso explica as contradições e a desunião da cultura medieval - o contraste de sua crueldade e de
sua caridade, de sua beleza e de sua sordidez, de sua vitalidade espiritual e de seu barbarismo material. Pois o elemento de uma cultura
superior não surgiu naturalmente das tradições do organismo social em si, mas veio do exterior como um poder espiritual que teve que
remoldar e transformar o material social no qual tentou se incorporar" (Idem, Progress and Religion, p. 166 [p. 204]).
43 Ibidem, p. 167 [p. 205).
60 l 61
ideal tão dominante poderia degenerar em teocracia. Mas a espiritua- lidade medieval alegremente acolheu o ideal da
irmandade cristã: veja os escritos de São Bernardo de Claraval ( 1090-1 15 3 ), a vida de São Francisco de Assis ( 1
181-1226). A separação entre fé e vida, ou entre o espiritual e o material, era evitada, "já que os dois mundos [haviam)
se fundido na realidade viva da experiência prática". São Francisco de Assis fez daquela fusão agostiniana, realidade;
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) lhe deu autoridade filosófica. Foi o Aquinate quem reconheceu a autonomia da
razão natural na epistemologia, na ética e na política, precisamente porque ele reconhecia as implicações
encarnacionais daquela autonomia. Dawson resumiu os insights do Doutor Angélico com afinidade e de forma
sucinta:
O homem ocupa uma posição única no universo [ .. . ]. Ele é o ponto
no qual o mundo dos espíritos toca o mundo do sentido, e é por meio dele e nele que a criação material chega à inteligibilidade e torna-se
iluminada e espiritualizada.
[ ... ] Portanto, a Encarnação não destrói nem se sobrepõe à natureza. Ela é análoga e complementar a ela, uma vez que restaura e estende
a
função natural do homem como elo de união entre os mundos material
e espiritual.44
Este era o medievalismo que Dawson celebrava: uma época e um povo transformados pelo poder do Evangelho. Aqui,
não havia um exercício em mera pietas, nenhum lamento por séculos perdidos. A importância daqueles séculos não
"seria encontrada na ordem ex- terna que eles criaram ou tentaram criar, mas na mudança interior que realizaram na
alma do homem ocidental". 45 O historiador galês amava o grande poema visionário de William Langland ( 1332-
1386), Piers Plowman, achando-o "a última [ ... ) e mais inflexível expres- são do ideal medieval da unidade entre
religião e cultura". Perceba a
44 Ibidem, p. 175 [p. 210].
Religion and the Rise of Western Culture, p. 274.
• 5 Idem,
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
conclusão; a cultura não era engolida pela religião, mas, sim, trans- formada por ela; a religião não era engolida pela
cultura, mas a trans- formava e transcendia, de modo que a própria Encarnação começa a ser entendida na e pela
cultura, e não separadamente dela:
Para Langland, o outro mundo está sempre presente em cada rela-
cionamento humano, e a vida cotidiana de todos os homens é orga- nicamente ligada à vida da Igreja. Desta forma, cada estágio de vida
da cristandade é uma vida cristã em sentido pleno - uma extensão da
vida de Cristo na Terra. E a ordem sobrenatural da graça está fundada
e enraizada na ordem natural e na vida comum da humanidade [ ... ]
Ele percebeu, com mais clareza do que os poetas e mais intensamente do que os filósofos, que a religião não era um modo particular de
vida,
mas o caminho de toda a vida, e que o amor divino que é "o líder do
povo do paraíso de Deus" é também a lei da vida sobre a Terra.46
A eloquência de Langland é ricamente repercutida por seu expositor. Sugeri que há três fundamentos para a ênfase
de Dawson na reli- gião como a base da cultura. Até agora, examinamos dois: seu conhe- cimento das religiões do
mundo e sua habilidade em distinguir tipos e formas da crença religiosa ou semirreligiosa. Consideremos agora um
terceiro: a insuficiência das explicações não religiosas dos processos históricos, especialmente aquelas propostas
pelo pensamento ilumi- nista e pós-iluminista. Dawson era um crítico excepcionalmente astuto do Iluminismo,
primariamente porque as armas que empregava contra ele - um apelo à razão e à história - eram as do próprio
Iluminismo. Sua objeção era a de que, como explicação do homem e de seu mundo, era não persuasiva, e que
suplantava uma outra muito mais persua- siva. Não seria difícil, na verdade, ver a "idade da razão" como uma época
de múltiplas descontinuidades intelectuais. Vejamos algumas delas. Primeiro, veio o divórcio entre mente e corpo
promovido por René Descartes, que acarretou uma celebração da razão independente da existência física, e da
verdade como independente da experiência
46 Ibidem, p. 270-72.
62 l 63
ou da autoridade.47 Então, veio o divórcio entre indivíduo e "socie- dade", promovido pela teoria do contrato social,
que substituiu as comunidades por Estados autoconscientes e criou pessoas reverentes por direitos, apenas, quando
percebiam que os possuíam. E assim con- tinuou. Thomas Hobbes (1588-1679) convocou o onipotente Estado para
proteger "direitos", e a proteção foi tão completa que os próprios direitos desapareceram. John Locke ( 1632-1704)
separou a pessoa do corpo, e a separação foi tão eficaz que o indivíduo se "possuiu" como a uma propriedade,
presumivelmente diminuindo em pessoalidade, quando sofre amputações, perde um dente ou fica careca. Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) separou a humanidade dos seres humanos, e o cisma foi tão amplo que a primeira veio a ser
adorada, e os últimos, desprezados. Havia algo de radicalmente cindido em tudo isso, como se uma cultura ou uma
maneira de pensar tivessem perdido a conexão com sua própria fonte. Dawson capturou brilhantemente este fenôme-
no. "O ideal abstrato de 'civilização"', ele sugeriu, "tomou o lugar da tradição histórica da cultura europeia" [ ... ]. Os
"conceitos de razão, verdade e civilização" foram usados "como armas para atacar todas as verdades e para enfraquecer
as fundações sobre as quais a [ ... ] es- trutura da cultura europeia se baseava". 48
A divisão entre a Europa antes e depois do Iluminismo pode ser exagerada, mas um contraste revela a diferença.
Considere o tomismo e o cartesianismo. O primeiro oferecia a divindade na contemplação de si mesma. O segundo
oferecia a mente na contemplação de nada além de si mesma: uma decadência assustadora. Dawson sustentava, e com
bons motivos, que existia somente uma pequena distância entre Descartes e a adoração irracional da racionalidade49
de Maximilien Robespierre (1758-1794) e o otimismo sombrio de Charles Darwin
Progress and Religion, p. 10 [p. 67-68].
47 Idem,
Understanding Europe, p. 192. 49 Arnold Toynbee, "lntroduction". ln: Christopher Dawson, The Gods of Revolution, p. x.
4 8 Idem,
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
(1809-1 882). Veja esta passagem memorável, na qual mostrou como o confiante ideal da perfectibilidade encontrava
o seu quietus [quita- ção] na seleção natural:
Mesmo quando eram materialistas, os filósofos do século XVIII coloca- vam o homem em uma categoria acima e distinta do resto da
natureza, e hipostasiavam a razão humana em um princípio de desenvolvimento mundial. Mas a nova teoria evolucionista colocava o
homem de volta à natureza e debitava seu desenvolvimento a uma operação mecânica das mesmas forças cegas que governavam o
mundo material. [ ... ] [ ... ] Era uma lei do Progresso, porém a de um progresso cego e não ético, em que o sofrimento e a morte
desempenhavam um papel maior do que a antevisão ou a cooperação. [ ... ] [ ... ] Assim, a razão cartesiana, que tinha entrado tão
triunfalmente em sua missão de explicar para si a natureza e o homem por seu próprio poder desassistido, terminou em um tipo de
suicídio racional tendo que se justificar.50
Uma frase chocante; e versátil também. O "suicídio racional" do cartesianismo não terminou com a Revolução
Francesa ou com o darwinismo, mas se metastizou em novas formas que buscavam tor- nar desnecessária a religião
ou substituí-la por ideologias semirreli- giosas. Uma delas foi o nacionalismo. Outra o liberalismo. Ambas eram
perigosas. Quanto à primeira, Dawson viu como poderia ter- minar num particularismo "mais dissolvente [da] tradição
europeia do que a própria Revolução Francesa".51 Quanto à segunda, pro- duziu, em sua versão econômica, extremos
de vileza e riqueza; em sua forma política, um incoerente erastianismo,52 que substituía o Estado confessional por um
anticonfessional, oferecendo apenas a
5° Christopher Dawson, Progress and Religion, p. 18, 22 [p. 74, 75, 77]. 51 Idem, Understanding Europe, p. 193.
52 Referência à doutrina concebida pelo teólogo protestante e médico suí- ço Thomas Lüber (1524-1583), mais conhecido como Erastus.
De acordo com Thomas Erastus, o Estado tem ascendência sobre a Igreja em assuntos eclesiásticos, o que justifica o controle governamental
sobre a religião. (N. E.)
64 l 65
moral convencional, porque a própria convenção havia se tornado o código moral. Dawson escreveu a crônica dessas
patologias com a sombria inteligência de um homem que vê um acidente prestes a acontecer. Na medida em que
abordava o seu próprio século, podia ver o impulso secular, a autoimolação secularista, galopar rumo à insanidade.
No totalitarismo, atingiram o seu apogeu, quando os EStados tentaram "erradicar as raízes mesmas da liberdade espiri-
tual do homem e fazer da sociedade um mecanismo de funciona- mento azeitado, planejado e controlado por
'especialistas' em nome da eficiência social". 53 A alternativa liberal era pouco melhor. "Nós podemos ou permanecer
na casa provisória da democracia liberal", Dawson advertiu, "buscando desesperadamente manter os mais ele- vados
padrões de vida econômica, que são a justificação principal da nossa cultura secularizada; ou podemos retornar à
tradição so- bre a qual a Europa foi fundada e nos dedicar à imensa tarefa de restaurar a cultura cristã" .54 Esta foi a
sua recomendação final para o seu próprio mundo e para o nosso.
Esta exposição da compreensão histórica de Dawson foi breve e talvez pobre também. Deveria nos incitar, porém,
algumas refle- xões mais amplas, tanto sobre sua visão da história quanto sobre a empreitada histórica católica em
geral. Essencial a esta visão - algo já deve estar óbvio - era a religião: "o poder maciço, objetivo, não questionado, que
entrou em tudo" e imprimiu sua marca em todas as coisas. Ora, isto é controverso, e os críticos de Dawson não
tardaram em dizê-lo. Que forma tomam as críticas, e que poder têm? Deve- mos distinguir duas objeções: a primeira
resiste a qualquer princípio histórico unificador; a segunda resiste ao princípio particular, a reli- gião, que Dawson
abraça. A distinção é importante, mas largamente
53 ChristopherDawson, "Newman and the Sword of the Spirit". ln: The Dawson Newsletter, primavera / verão, 1991, p. 13. 5 4
Christopher Dawson, The Movement of World Revolution. London, Sheed and Ward, 1959, p. 65.
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
ignorada pelos próprios críticos. Assim, se eles caem na primeira ca- tegoria, tendem a renegar a meta-história, mas
se traem numa auto- contradição, o próprio argumento sendo meta-histórico; ou (caso se enquadrem na segunda)
negam a religião apenas para substituí-la por alguma criptorreligião de seu próprio cunho, mais comumente o
humanismo secular.
No entanto, examinemos essas críticas gêmeas mais de perto. Vejamos de novo o princípio unificador de Dawson.
Todas as cul- turas vivas precisam possuir alguma dinâmica espiritual, afirma, normalmente suprida por uma religião.
Em circunstâncias excepcio- nais, no entanto, o impulso religioso pode se disfarçar sob formas filosóficas ou políticas.
Pode haver dois tipos de circularidade aqui. De um lado, se Dawson está de fato embebido na história da reli- gião,
pode ser o caso que ele exagere a sua importância para a his- tória; tudo visto por daquele prisma é, por ele, distorcido.
Por outro lado, isso parece habilitá-lo a afirmar que certas ideologias, talvez, sejam religiões bastardas (e abertas a
críticas como tais), enquanto ao mesmo tempo preserva a religião propriamente dita da acusação de ser uma ideologia
bastarda. Essas dificuldades não são triviais: não são, porém, intransponíveis.
A primeira se responde a si mesma. Que a especialização seja prova de uma compreensão desproporcionada é uma
ideia estranha e, na verdade, uma ideia circular. Dawson enfatizou a importância da religião, na história, não porque
estava imerso nela: ele estava imerso nela porque era importante. A segunda crítica, entretanto, pede um exame mais
cuidadoso. Talvez sua versão mais sofistica- da tenha sido oferecida em 1958 pelo historiador norte-americano Hayden
White. A partir de cinco bases, White contestou todo o pro- jeto de Dawson. Primeiramente, o historiador norte-
americano afir- mou que Dawson estava indisposto a admitir que a dialética históri- ca possa continuar para além do
ponto alcançado pelo cristianismo num dado estágio do seu desenvolvimento. Como numa primeira
66 l 67
versão de Francis Fukuyama e de sua escola do "fim da história", Dawson oferecia a Igreja católica medieval como a
única portadora de tudo o que havia de genuinamente espiritual no Ocidente: de- pois disso, a história "parou" ou
entrou em declínio.55 Uma variante disso é o argumento de que a construção de tipos sociológicos de Dawson era
falha. "Para ele", argumenta White, "uma civilização pode ser considerada sadia apenas se e quando se conforma a
um tipo que existiu num dado tempo e num dado espaço [ . .. ] Aquelas que não desenvolveram [ . .. ] uma casta
sacerdotal, ele as chama pri- mitivas; aquelas que rejeitaram a sua, as chama de decadentes" .56 A segunda objeção
de White é a de que "a sociologia da cultura de Dawson não o é de forma alguma, mas, sim, uma sociologia da religião"
.57 A terceira é a de que o esquema de Dawson (precisamen- te, ao que parece, por ser esquemático) fracassa em
"fazer justiça à multiplicidade da criatividade humana". 58 A quarta objeção é a de que Dawson nega qualquer valor
positivo à cultura secular. Por fim, argumenta que Dawson é, de fato, anti-histórico, defendendo como defende que
alguns "insights sobre a cena histórica requerem formas especiais de entendimento" ,59 pelo que ele queria dizer,
sim- plesmente, que apenas os católicos podiam entender o verdadeiro significado da história europeia.
O que concluir disso? Parece uma avaliação sóbria, escrupulosa tanto no método quanto nas razões. Na verdade, muito
dela está erra- do, e chega ao ponto do desatino. Parte dessa avaliação, certamente, não deve ser levada muito a sério.
Sugerir que a sociologia da cultura de Dawson nada mais é do que uma sociologia da religião parece
55 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson'', p. 277. 56 Ibidem, p. 278.
57 Ibidem, p. 278.
58 Ibidem, p. 281.
5 9 Ibidem, p. 285.

A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira


ser uma interpretação totalmente errada. O mesmo acontece com o argumento de que Dawson fracassa em reconhecer
a multiplicidade da criatividade humana ou - no fim das contas é a mesma coisa - ten- de a depreciar a cultura secular.
Um passar de olhos sobre Progress and Religion, talvez, sugira o contrário. Fundir um esquema histórico unificado
com a múltipla diversidade da história é um erro de cate- gorização que Dawson não cometeu, e no qual o próprio
White caiu. Igualmente curiosa é a alegação de que Dawson "fetichizou" o me- dievalismo, como se sua obra fosse
um longo lamento por um Éden perdido. Mas Cristo foi o Senhor de toda história. Se história e cul- tura são, de fato,
encarnacionais, então aquele tipo de anseio é uma espécie de desespero. Afinal, a nostalgia é apenas um maniqueísmo
choroso. Seu desejo por um mundo perdido é um desprezo pelas coi- sas do mundo, uma aversão ao contemporâneo,
porque uma aversão à própria temporalidade. O Cristo que entrou na história, entrou em toda ela. "Nós vemos de
novo", escreveu Dawson, "o milagre da cria- tividade divina e uma nova colheita espiritual surgindo do velho solo da
natureza humana" .60 Ele não era um nostálgico. Condenava o cul- to do progresso como uma perversão da
perfectibilidade iluminista, porque o via como é na verdade: maniqueísmo sob outro disfarce - desgosto pelo aqui e
agora, exprimido como um desejo pelo futuro em vez de pelo passado. Dawson não desejava o passado por des- prezar
o presente. Imaginar que ele o encarava como um museu que habitamos como forma de fuga do mundo é entender
mal a noção que Dawson tinha da história.
Mas White cai no desatino, e não só no erro. A pose de neutra- lidade acadêmica esconde um desacordo altamente
partidário com a obra de Dawson, particularmente pelo seu catolicismo. "É muito di- fícil para qualquer pessoa que
não seja católica", White cita Dawson argumentando, "entender o significado pleno da" história europeia,
6° Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 14.
68 l 69
significado pleno, envolvendo uma verdade que requer, não uma ha- bilidade humana ou histórica, mas uma revelação
epistemológica es- pecial. A lógica é fraca. "Muito difícil" não é o mesmo que "impossí- vel": pelo contrário, implica
possibilidade. Além disso, é claro que é White, e não Dawson, quem exige privilégios epistemológicos. Veja a
pejoração, uma paródia do cientificismo secular:
Se sociedades antigas pareciam melhor ajustadas ou mais harmo- niosas, era porque a Igreja e os Estados agiam conjuntamente para destruir
a responsabilidade individual, em vez de de encorajá-la. Para o bem ou para o mal, a ciência moderna rompeu com essas antigas coerções
e ofereceu ao homem a responsabilidade por tudo o que ele faz. A religião deve oferecer, como a ciência, a filosofia, uma verdade que
admite a possibilidade de revisão. [Então], não
terá necessidade de sedativos. 6 1
Mas isso é incoerente. A própria história é absolutizada, ganha uma autoridade que não pode possuir. O julgamento
histórico é vis- to como de algum modo autoafirmativo, dispensando outros argu- mentos ou provas. Da mesma forma
que a moralidade convencional fracassa - porque a própria convenção se torna o código moral -, também a
compreensão histórica informada apelar por uma "his- tória" absolutizada não é compreensão de maneira alguma.
Para adotar a terminologia do próprio crítico, torna-se uma verdade que não admite possibilidade de revisão, uma
espécie de historicismo se abrindo para um quarto vazio. Cria o passado como sanção ou norma, mas não fornece
nenhum fundamento além de si mesmo para fazê-lo. O historicista que defende a invencível "preteridade" do passado
torna insignificante qualquer julgamento - mesmo aque- le julgamento que se dá ao trabalho de fazer sobre o passado
mes- mo. Se o passado é um país estrangeiro, se eles, realmente, fazem as
61 Hayden White, "Religion, Culture and Western Civilization in Christopher Dawson", p. 283.
A Formação da Cristandade 1 Introdução à Edição Brasileira
coisas de modo diferente por lá,62 o historiador não pode saber ou mesmo saber que não pode saber.
A segunda acusação de circularidade assim fracassa da mesma forma que a primeira. Dawson não inventa a religião
como chave dos processos históricos, e então descobre a religião bastarda - a ideo- logia - como prova da alegação
anterior. Pelo contrário, ele é cuida- doso na definição de ambas, e nas evidências que delas oferece; mais cuidadoso
do que seus críticos. Além disso, a noção de Dawson sobre a religião na História é mais sutil do que a deles. Não é o
"elemento que tudo explica" de alguma teleologia determinista - servindo a fun- ção para o religioso que a economia
(digamos) serve para o marxista ou a libido para o freudiano. Se a história é encarnacional, então é carregada de
religião de um modo inteiramente diferente; e noções de passado, presente e futuro são obliteradas na realidade central
de Cristo, alfa e ômega, que é Senhor de toda a História.
E então nos aproximamos do cerne da questão. Dawson gostava de citar o estadista e escritor irlandês Edmund Burke
(1729-1797) so- bre a vacuidade do historicismo. "Burke escreveu com muita verdade e fineza", disse, "que as assim
chamadas leis da história, que tentam subordinar o futuro a alguma espécie de determinismo histórico, são apenas as
combinações da mente humana. Sempre resta um elemento irredutível de mistério". 63 O argumento é sólido. Na
medida em que os sistemas se expandem, paradoxalmente se contraem: a tentativa
62 Referência à sentença "The past is a foreign country: they do things differently there" [O passado é um país estrangeiro: eles
fazem as coisas de modo di- ferente por lá}. Esta é a famosa frase inicial do romance The Go-Between [O Mensageiro] do escritor
britânico Leslie Poles Hartley (1895-1972), publi- cado, originalmente, em 1953. O livro foi adaptado por Harold Pinter (1930- 2008)
como roteiro do premiado filme homônimo, lançado em 1971, com direção de Joseph Losey (1909-1984) e estrelado, dentre outros,
pelos atores Julie Christie, Edward Fox, Alan Bates (1934-2003), Margaret Leighton (1922- 1976) e Michael Redgrave (1908-1985). (N.
E.) 63 Christopher Dawson, The Historie Reality of Christian Culture, p. 18.

Vous aimerez peut-être aussi