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Se em outro tempo o escravo fora inútil para o seu amo, pois fugira, agora
será útil. O jogo de palavras empregado pelo Apóstolo prende-se com o nome
Onésimo (= útil), como se quisesse dizer que, se antes Onésimo não tinha
honrado o seu nome, agora sim; mais ainda, não só passava a ser útil ao
Apóstolo, mas também ao próprio Filemon, que devia recebê-lo como se se
tratasse do próprio Paulo em pessoa: Se me tens por amigo, recebe-o como a
mim4. “Vede Paulo escrevendo a favor de Onésimo, um escravo fugitivo – diz
São João Crisóstomo –: não se envergonha de chamá-lo seu filho, suas
próprias entranhas, seu irmão, seu bem-amado. Que diria eu? Jesus Cristo
abaixou-se até tomar por irmãos os nossos escravos. Se são irmãos de Jesus
Cristo, também o são nossos”5.
As palavras do Apóstolo cobram toda a sua força por terem sido escritas
numa época bem conhecida pelo pouco ou nenhum apreço em que se tinham
os escravos. Foi sobre esse pano de fundo que se viveu a caridade, com tal
vigor que se compreende que os primeiros cristãos assombrassem o mundo.
Se isto foi o que fizeram os primeiros cristãos, havemos nós de excluir do
nosso trato e da nossa amizade seja quem for, por razões sociais, de raça, de
educação...?
II. FRATER QUI ADJUVATUR a fratre quasi civitas firma6. O irmão ajudado
pelo seu irmão é tão forte como uma cidade amuralhada, lemos no Livro dos
Provérbios. Naqueles primeiros tempos, em que se acumulavam tantas
dificuldades externas, a fraternidade era a melhor defesa contra todos os
inimigos. Levai os fardos uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo7,
exortava São Paulo aos Gálatas.
Quem vive bem a caridade adquire uma grande fortaleza à hora de enfrentar
obstáculos muitas vezes semelhantes aos que afligiram os primeiros cristãos.
Temos de chegar a Deus bem unidos na fé, guardando-nos uns aos outros,
sem deixar que ninguém sinta a dureza da solidão nos momentos mais difíceis:
“Se uma cidade se defende, e se cinge com muros fortes, e se protege por
todos os lados com uma atenta vigilância, mas um só ponto fica sem defesa
por negligência, por ali sem dúvida entrará o inimigo”10. Não exceptuemos
ninguém dos nossos desvelos.
A caridade implica uma série de virtudes conexas que são ao mesmo tempo
a sua manifestação, apoio e defesa: a lealdade, a gratidão, o respeito mútuo, a
amizade, a deferência, a afabilidade, a delicadeza no trato... Viver bem o
mandamento do Senhor exige-nos muitas vezes que dominemos o estado de
ânimo, que fomentemos a serenidade, o optimismo. Pelo contrário, os tons
ásperos e agressivos, as faltas de educação, as impaciências, o juízo negativo
sobre os outros, o descuido na linguagem... costumam revelar ausência de
finura interior, de vida sobrenatural, de união com Deus, da qual procede a
caridade com os homens. São João deixou-nos um resumo daquilo que deve
ser a nossa vida: Nisto conhecemos o amor de Deus, em que ele deu a sua
vida por nós; e nós devemos também dar a vida pelos nossos irmãos15.
Este entregar a vida pelos outros deve ser diário, no meio do trabalho, em
casa e com todas as pessoas com quem nos relacionamos. Assim
cumpriremos o Mandamento do Senhor: Como eu vos amei, amai-vos também
uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes
amor uns aos outros16. Mediante este mandamento, “Jesus diferenciou os
cristãos de todos os séculos dos demais homens que ainda não entraram na
sua Igreja. Se nós, os cristãos, não manifestamos esta característica,
acabaremos por confundir o mundo, perdendo a honra de ser considerados
filhos de Deus.
“Em tal caso – como néscios –, não aproveitamos a arma talvez mais forte
de que dispomos para dar testemunho de Deus no nosso ambiente, congelado
pelo ateísmo paganizante, indiferente e supersticioso.
(1) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 43; (2) cfr. Fil 13-1; (3) Fil 9-13; (4) cfr.
Sagrada Bíblia, Epístolas do cativeiro, nota a Fil 6; (5) São João Crisóstomo, Homilia sobre a
Epístola a Filemon, 2, 15-16; (6) Prov 18, 19; (7) Gál 6, 2; (8) Santo Inácio de
Antioquia, Epístola a São Policarpo, 1, 3; (9) Santo Agostinho, Confissões, 10, 4, 6; (10) São
Gregório Magno, Moralia, 19, 21, 33; (11) cfr. Liturgia das Horas, Domingo IV da Quaresma,
Preces das II Vésperas; (12) Eclo 4, 12; (13) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 460; (14)
São João Crisóstomo, Homilias sobre a Epístola a Filemon, 21; (15) 1 Jo 3, 16; (16) Jo 13, 34-
35; (17) Chiara Lubich, Meditaciones, pág. 46.