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Os tambores do vodu ecoavam pela floresta, avisando do perigo, enquanto André e Sãona
fugiam dos soldados do general Dessalines, sedentos de sangue. A não ser que
conseguissem despistar seus perseguidores, seriam torturados e mortos. Desde que chegara
ao Haiti, para procurar um tesouro enterrado por seu tio, o conde André de Villaret tinha sido
protegido pelos deuses nativos. Disfarçado, atravessou a ilha, dominada pelos ex-escravos
que haviam massacrado os colonizadores franceses. Mas agora precisava de toda a ajuda
de Damballah, o deus-serpente, para salvar sua maior riqueza: a vida da mulher a quem
amava
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas
portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode
ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. É a autora
romântica mais conhecida e lida em todo o mundo. Seu jeito insuperável de juntar amor,
colorido e suspense conquistou o entusiasmo de milhões de leitores. "Eu dou ao público
romance, ilusão e beleza... tudo o que ele secretamente procurar.
NOTA DA AUTORA
Quando visitei o Haiti, conheci Katherine Dunham, uma das pessoas que mais entende sobre
o culto vodu, naquele país. Ela é uma famosa bailarina negra, atualmente aposentada, que
possui um templo de vodu no jardim de sua casa, e me levou para assistir a uma cerimônia.
Ou, pelo menos, parte dela, pois o final só é permitido ser presenciado pelos iniciados.
Achei as danças magníficas e os tambores pareciam me hipnotizar. E nesta história,
descrevo tudo o que vi, do modo mais verdadeiro possível. No Haiti, o vodu agora é
permitido por lei e praticado, segundo me disseram, por sessenta por cento da população.
CAPÍTULO I
1805
- Estamos chegando!
Kirk Homer levantou-se e caminhou até a luneta, observando a cidade de Port-au-
Prínce, no Haiti, cheia de pequenos barcos ancorados no porto, alguns navios, mas nada tão
grande como a escuna americana em que viajavam.
- Agora, começa minha aventura! - uma voz disse atrás dele. Kirk, um americano alto
e de rosto quadrado virou-se e olhou quem falava.
- Mude de ideia, André - ele pediu. - Volte para Boston comigo. Está cometendo um
erro do qual se arrependerá amargamente. Isto é, se continuar vivo, para se arrepender de
alguma coisa.
- Já passamos por isso antes - André de Villaret respondeu - e a alternativa entre
seguir adiante e viver na miséria o resto da minha vida é uma motivação bem forte.
- É loucura! Absoluta loucura! - Kirk Homer protestou. - Mas acho que devo ajudá-lo,
apesar disso tudo ser contra os meus princípios.
- Você prometeu me ajudar, antes de subirmos a bordo, e estou cobrando a
promessa. E agora, o que faremos?
Kirk virou-se novamente e olhou pela luneta.
Além do porto, estava a cidade e, além dela, as montanhas roxas e azuis, escuras e
ameaçadoras, mesmo à brilhante luz do sol.
Todo o resto era verde, de um verde tão profundo que parecia cintilar. As casinhas
brancas, vistas à distância, davam a impressão de ter luz própria.
- O que quero que faça - Kirk disse -, é ficar aqui, a bordo, até que eu entre em
contato com a única pessoa que acho que pode ajudá-lo nessa maluca caça ao tesouro.
- E quem é?
- Ele se chama Jacques Déjean e é mulato.
André já tinha visto mulatos nos Estados Unidos e Kirk lhe contara que, no Haiti, os
mulatos e os negros se desprezavam, quase tanto quanto odiavam os brancos.
Kirk disse também que, para um francês, era pura loucura tentar entrar no país,
naquele momento.
Jean-Jacques Dessalines, comandante-em-chefe do Exército haitiano havia
massacrado cruelmente os fazendeiros franceses e todos os brancos da ilha e, no ano
anterior, se fez coroado imperador.
Uma de suas primeiras providências foi desenhar novos uniformes para os soldados.
Dois mil uniformes foram encomendados a uma firma de Boston e estavam a bordo da
escuna em que André de Villaret e seu amigo Kirk Homer viajavam.
Kirk havia sido comissionado para mandar um relatório secreto ao presidente norte-
americano, contando as condições atuais da ilha.
Os americanos pretendiam entrar novamente no mercado, do qual tinham sido
expulsos, no tempo da dominação francesa, pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão
Bonaparte.
Na época, o vice-cônsul francês, em Filadélfia, protestou violentamente contra os
americanos, não apenas por estes comercializarem com o Exército de Dessalines,
mandando armas e munições, como também por estarem enviando negros americanos para
lutar junto com os rebeldes e contra os espanhóis e franceses.
Tudo isso era pago em algodão, cobre, madeira e até mesmo em dinheiro. As
reservas de prata de Dessalines eram consideráveis.
A ilha havia ficado tão arrasada, que dificilmente os outros países compreenderiam o
que estava acontecendo. Kirk Horner, que estivera no Haiti há dois anos, esperava descobrir
o que tinha mudado sob o reinado de Dessalines.
Por isso, temia pela vida do amigo, André de Villaret.
Os dois se conheciam há muito tempo e Kirk sempre ficava na casa da família de
André, quando visitava a Inglaterra.
Talvez tivessem sido suas descrições do Haiti que, a princípio despertaram o
interesse do amigo pela ilha. Isso, além do fato de André ter tido um tio lá, fazendeiro muito
rico, morto durante o primeiro levante da revolução, em 1791.
Foi Kirk quem escreveu a André, contando o assassinato do velho e de seus três
filhos.
Ficou atônito, quando, há dois meses, o amigo apareceu em Boston, pedindo sua
ajuda para entrar na ilha.
- Impossível. Jean Jacques Dessalines jurou matar todos os brancos que encontrar.
Ele tem um ódio fanático de brancos. Não dou um tostão pela sua vida, se puser os pés no
Haiti.
Descreveu Dessalines ao amigo.
- Ele não é alto, mas parece um gorila. Tem ombros largos e um pescoço muito
grosso. Os lábios são grossos também e as narinas, muito abertas. Tem o nariz chato, a
testa baixa e o cabelo quase nasce junto às sobrancelhas.
- Não parece muito atraente! - André comentou, rindo.
- Não é assunto para piadas. Ele espalha o terror por todo o país. Seu próprio povo
passa por períodos de histeria. Uns suspeitam dos outros e só conversam sobre morte e
destruição.
- Já ouvi contar que ele se comporta de modo diabólico. Promete proteção aos
brancos, se se entregarem, e depois mata aqueles que confiaram na promessa.
- As ruas, em Jeremie, estão manchadas de sangue. Ele matou lá quatrocentos e
cinquenta homens e crianças - Kirk respondeu. – Até Christophe, seu comandante-em-chefe,
está apavorado com tanta selvageria.
Fez uma pausa, enquanto o outro meditava no que tinha ouvido.
- Não é de espantar que o presidente dos Estados Unidos tenha ficado preocupado ao
ler o ato de independência de Dessalines. Veja o que ele escreveu:
"Para assinarmos esta declaração, precisamos da pele dos homens brancos, dos seus
crânios e do seu sangue. A baioneta será a nossa pena. "
- Está me deixando arrepiado - André interrompeu -, mas continuo decidido a
descobrir o tesouro que tio Phillippe enterrou em sua fazenda.
Kirk sabia que aquele era o único objetivo da viagem do amigo. Seu avô tinha três
filhos. François, o pai de André, era o mais novo. Percebendo que as coisas não estavam
boas na França, e vendo a insatisfação crescer entre os camponeses, Phillippe, o segundo
filho, partiu para o Haiti por volta de 1770, para começar ali uma vida nova.
Sempre escrevia para casa, contando aos parentes que estava se transformando em
um homem muito rico, pois o algodão e o café, que cultivava, conseguiam bons preços em
todo o Novo Mundo.
Então, aconteceu a Revolução Francesa. O conde de Villaret e seu filho mais velho
foram mortos na guilhotina.
Isto significou que Phillippe de Villaret tio de André se tornou o chefe da família e
herdou o título de conde, enquanto que seu irmão mais novo, François, a esposa inglesa e o
filho, André, fugiam para a Inglaterra.
Mas François não tinha muito dinheiro. Só conseguiam viver com algum conforto,
graças à gentileza dos parentes da mulher. Com o assassinato do tio, no Haiti, e a morte do
pai, um ano antes, André se tornou o conde de Villaret, sem nenhum dinheiro para
acompanhar esse título tão antigo e pomposo.
Foi então que decidiu ler cuidadosamente as últimas cartas do tio Phillippe. Na última,
escrita poucos meses antes do massacre, encontrou algo que parecia muito significativo:
"As coisas estão ficando horríveis por aqui. Todos os dias, ouvimos falar de terríveis
atrocidades que sucedem nas fazendas de meus amigos. Os homens não apenas perdem a
vida, mas são torturados e mutilados. As mulheres são estupradas ou enviadas como
escravas para as fazendas, que agora estão sendo administradas pelos próprios negros.
Fazemos planos para fugir. Depois os rasgamos, pois não queremos chamar atenção
sobre nós, a fim de não precipitarmos um destino que parece cada vez mais próximo."
Então, havia aquela frase, que André leu muitas e muitas vezes: "Só confio na terra e,
naturalmente, na proteção da sombra de Deus. "
- Isto - André disse a Kirk, ao lhe mostrar a carta - é uma mensagem perfeita e clara,
dizendo ao meu pai onde ele escondeu o dinheiro. Acredito que esteja tudo enterrado,
próximo da igreja.
- Pode ser. Todos os fazendeiros enterraram seu dinheiro e outros bens que
possuíam. Dessalines sabe muito bem disso e, torturou-os antes de matá-los. Contaram-me
que conseguiu desenterrar muitas riquezas das diversas fazendas.
Fez uma pausa, antes de continuar:
- Quando Dessalines saiu de Jeremie, levou cinco mulas carregadas de pratarias e
outros valores. Mas ouvi dizer que isso nem se compara ao que pilhou em Aux Cayes.
Grande parte destes tesouros foi achada, enterrada.
- Preciso tentar uma busca - André disse. - Afinal, sempre fui um otimista.
- Os otimistas também morrem, como milhares de patrícios seus já morreram lá.
Então, ele sorriu:
- Mas tem sorte de não parecer francês.
- Esqueceu que minha mãe era inglesa?
Não havia dúvidas, o amigo pensou, de que a condessa de Villaret transmitira ao filho
todas as características dos homens de sua família: ombros largos, quadris estreitos e um
corpo atlético, semelhante ao dos melhores amigos do príncipe de Gales.
André era também muito forte. Mas, Kirk sabia, isto não iria salvá-lo no Haiti, pois
tinha a pele branca.
Virou-se para olhar novamente o porto e disse:
- Com um pouco de sorte, podemos trazer a bordo o meu amigo Jacques Déjean. Ele
está me esperando. Ou, pelo menos, deve estar, há dois meses.
- Tem amigos em toda parte - André disse de bom humor.
- Preciso deles, no mundo em que trabalho.
- O que está dizendo, na verdade, é que precisa de espiões, para lhe contarem os
últimos acontecimentos - André comentou. - Mas não me importo, contanto que esses seus
amigos sejam capazes de ajudar.
- Você é um grande egoísta!
Era típico do amigo nunca desistir, quando metia uma ideia na cabeça.
Saiu da cabine e André sentou-se, olhando o porto pela escotilha, com uma expressão
obstinada.
Tinha lutado, não apenas com a mãe, que se opôs àquela expedição, mas também
com Kirk. Os dois discutiram durante um dia inteiro, antes que se decidisse a ajudá-lo.
Entretanto, era realista: sabia muito bem que suas chances de sucesso seriam poucas.
Toda a história da revolta de escravos no Haiti, o incêndio da cidade de Lê Cap,
quando o general Leclerc tentou descer lá, a morte de Leclerc, atacado por febre amarela, e
o ressurgimento da guerra entre a França e a Inglaterra, tinham sido acontecimentos
catastróficos para os franceses.
Pelo que André ouvira, sobre o tratamento dado pelos fazendeiros aos seus escravos,
a revolta começaria cedo ou tarde.
Os escravos tiveram a sorte de conseguir dois líderes brilhantes: Jean Jacques
Dessalines e Henry Christophe.
Dessalines podia ser brutal e sádico, mas era também um soldado corajoso e
experiente. Christophe, muito mais gentil e razoável, havia poupado a vida de alguns
franceses que tratavam bem os negros e, principalmente, os padres e médicos.
Entretanto, noventa por cento da população francesa foi massacrada por Dessalines,
que ainda matava e torturava todos os brancos que encontrava.
André respirou fundo.
- Se eu morrer... morri! - disse a si mesmo. - Ainda assim, acho que vale a pena
arriscar. Se não der certo, o meu sangue se misturará ao de meus compatriotas.
A porta da cabine se abriu e Kirk apareceu.
- Boas notícias! Jacques Déjean já está a bordo. Agora, poderá conhecê-lo.
Um homem entrou e André olhou-o atentamente, sabendo que quase tudo dependeria
dele.
A pele de Jacques Déjean era quase dourada. Se André o encontrasse na Inglaterra,
pensaria que estava bronzeado. Seus traços eram europeus, mas o cabelo era negro,
encarapinhado demais, e os olhos, muito escuros.
Vestia-se com a mesma elegância de Kirk e André. Usava uma gravata de musseline
muito em moda e o casaco, azul-claro, tinha um caimento perfeito.
- Jacques - Kirk disse -, este é o meu amigo André, que precisa dá sua ajuda. Já disse
a ele que você não recusará sua assistência.
- Seus amigos são meus amigos - o mulato respondeu. - Sabe que estou à sua
completa disposição.
Tinha um modo exagerado de falar, e André refletiu se devia mesmo confiar naquele
homem.
Kirk tinha certeza de que sim. Como se entendesse as suspeitas do amigo, apressou-
se a esclarecer:
- Uma vez, no mar bravio, salvei a vida de Jacques. Ele jurou me ajudar sempre que
pudesse, e nunca quebra suas promessas.
- É verdade. E então, monsieur, em que posso ajudá-lo?
André e Kirk ficaram espantados. Aquela palavra lhes dizia que, sem lhe falarem
nada, Jacques havia descoberto que estava diante de um francês. Kirk foi até a porta da
cabine, verificar se estava trancada. Então, perguntou:
- A nacionalidade do meu amigo é assim tão óbvia?
- O fato de ele precisar da minha ajuda e não ter saído ao meu encontro me fez
suspeitar. Quando o vi, tive certeza de não se tratar de um americano.
André riu.
- Pretendia dizer que era inglês. Na verdade, sou meio inglês.
- Metade do meu sangue é branca - Jacques respondeu -, mas os brancos nunca me
aceitaram, a não ser quando precisam usar os meus serviços.
Não falou com amargura. Estava apenas expondo um fato.
- Muito bem, admito que sou francês. Meu nome, que Kirk não lhe disse, é André de
Villaret.
O mulato pensou por um momento, e então disse:
- É parente do Villaret cuja fazenda ficava nas Montanhas Negras?
- Sim.
- Ele esta morto.
- Foi o que Kirk me disse, há dois anos.
- Então, por que veio aqui?
André decidiu dizer a verdade, sentindo que nada teria a perder.
- Acredito que meu tio enterrou dinheiro em alguma parte da fazenda. Os filhos dele
morreram também e agora sou o chefe da família. Este dinheiro me pertence.
- Terá muita sorte, se o nosso nobre imperador o deixou lá, esperando por você.
- Temos algum modo de descobrir se ele o achou? - André perguntou. - Se não tiver
achado, quero ir à fazenda Villaret.
- Quer! Mas não é fácil. Acredite-me, vai ser muito difícil fazer qualquer destas duas
coisas.
- Ora, Jacques - Kirk interrompeu -, sabe, tão bem quanto eu, que, se alguém pode
ajudar André, este alguém é você. Deve haver um jeito de descobrirmos o que Dessalines
escavou e onde. Soube que ele tem muitos tesouros guardados nas montanhas.
- É verdade, mas ele não sabe escrever, não sabe fazer contas e duvido de que confie
em alguém para realizar um levantamento dos tesouros que trouxe.
André deu de ombros, como se achasse que estavam num beco sem saída.
Então, Jacques disse:
- Só uma pessoa sabe o que há no cofre de Dessalines e se isso inclui o que veio da
fazenda Villaret.
- Quem é? - Kirk perguntou.
- Orchis.
- Orchis? Ela está aqui em Port-au-Prince?
Jacques fez que sim.
- Ela se instalou na mansão Leclerc e imita a irmã de Napoleão Bonaparte, aquela que
foi casada com o general Leclerc, que voltou à Europa depois da morte dele. E agora Orchis
imita Sua Alteza Imperial Pauline Borghese.
- Não consigo acreditar!
- Quem é Orchis? - André interrompeu.
Kirk riu.
- Se ficar algum tempo no Haiti, logo ouvirá falar de Orchis!
- Quem é ela?
- É uma das amantes de Dessalines - Kirk explicou. - Ele tem umas vinte, mas todos
dizem que Orchis é a favorita. Alguns acham mesmo que é ela quem controla o próprio
tesouro.
Jacques começou a rir.
- Esta descrição é excelente, meu amigo - comentou -, mas as extravagâncias de
Orchis aumentam a cada ano. Agora, ela quer ser coroada imperatriz. Só que Dessalines
tem uma esposa! Entretanto, apesar da falta de respeitabilidade, ela desempenha
brilhantemente o papel da princesa Pauline.
- Você disse que ela se mudou para a mansão Leclerc? - Kirk perguntou.
- Recebe seus admiradores lá na hora do café da manhã e à noite. É quando
monsieur de Villaret poderá encontrá-la.
- Pensei que isso fosse impossível - Kirk disse.
- Claro que é... se se apresentar com o verdadeiro nome. Mas, se pretende sair de
Port-au-Prince em direção ao interior do país, não pode desembarcar como um homem
branco.
André e Kirk olharam-no, espantados.
- Os poucos brancos que há em Port-au-Prince são americanos que trabalham com as
armas e munições. São apenas tolerados por Dessalines. Se sair da cidade com esta pele
branca, estará fazendo um convite à morte, logo nos primeiros quilômetros de estrada.
- Então, o que sugere? - Kirk perguntou. Jacques examinou André dos pés à cabeça.
- Vai dar um bonito mulato!
- Um mulato!
- Felizmente, o seu cabelo é escuro - Jacques disse. - Precisamos apenas cortá-lo um
pouco. Se tivesse olhos azuis ou cinzentos, tudo seria mais difícil. Mas são escuros o
suficiente, monsieur, e combinam com uma pele da cor da minha.
- Devo dizer que nunca pensei em me disfarçar.
- Então, morrerá! E se Dessalines e seus seguidores estiverem envolvidos no
acontecimento, posso-lhe adiantar que não será uma morte agradável!
- Compreendo! - André disse, rapidamente.
Lembrou-se das atrocidades sofridas, não apenas pelos franceses, mas também por
alguns mulatos. Certa vez, Dessalines chamou um homem ao seu quarto e, enquanto
conversavam, esfaqueou-o no coração. Jacques Déjean estava certo, pensou. Precisava se
disfarçar, para que ninguém, no Haiti, suspeitasse de que era branco e, principalmente,
francês.
- Agora vou para casa - Jacques disse - e voltou com a tinta de uma certa árvore. Ela
é exatamente o que você precisa para disfarçar sua cor. Sugiro também, monsieur, que
escolha roupas bem espalhafatosas e complicadas. Nós, mulatos, gostamos de aparecer!
Dirigiu-se à porta e perguntou:
- Sabe um pouco da língua nativa?
- Estive aprendendo, neste último ano - André respondeu. - Só sei o que li em livros.
Mas um mulato a bordo deu-me algumas aulas.
- Isto é ótimo. Os mulatos são sempre, como Kirk pode lhe dizer, extremamente
educados. Tenho muitos diplomas para provar minha inteligência, mas prefiro confiar mais no
instinto.
André riu e Jacques saiu da cabine. Depois, sentou-se para esperar, pacientemente, a
volta do outro.
Já era quase noite, quando dois mulatos desceram da escuna americana. André fora
completamente pintado com uma tinta que cheirava terrivelmente mal.
- Algum tempo depois de aplicada no corpo - Jacques disse -, o cheiro desaparece.
Mas não precisa apenas de uma pele escura para o seu disfarce. Tem que mudar o seu
modo de pensar.
Pela primeira vez, havia uma certa amargura na voz de Jacques.
- Os mulatos foram subjugados continuamente pelos brancos, o que os fez passar,
definitivamente, para o lado dos negros.
- Ouvi falar sobre isso - André disse.
- Os negros nunca nos apreciaram nem confiam em nós, mas, como temos uma
educação superior e, em muitos casos, chegamos a posições importantes, eles nos acham
úteis. Ao mesmo tempo, vivemos em um território estranho, entre os brancos e os negros, o
que não é uma posição agradável.
- Compreendo, e agradeço muito por me ajudar.
Enquanto conversavam, André era coberto, de cima a baixo, com a tinta que agora
evaporava. Olhou-se no espelho, com ar crítico.
Não restava dúvida de que aquilo tinha alterado sua aparência. Já vira homens tão
bronzeados como estava agora. Imaginou se ninguém desconfiaria.
Como se Jacques percebesse suas dúvidas, esclareceu-as:
- Coloque-se no papel. Você é um mulato. . . sempre um pouco inseguro, sempre na
defensiva.
Sorriu e continuou:
- Pense no que os americanos dizem: "uma sombra por trás dos ombros". Os mulatos
são assim.
- E de onde eu vim? Qual é a minha história?
- Nasceu no Haiti, mas estudou nos Estados Unidos. O seu nome é André. Não
precisa mudá-lo. Acho também que pode dizer ser um Villaret. Afinal, o seu pai era um
homem branco e você tem o nome dele, e não o de sua mãe.
- Está sugerindo que eu diga ser filho de Phillippe de Villaret, que na verdade era meu
tio.
- Por que não? Assim, se fizer perguntas sobre a fazenda Villaret. todos
compreenderão sua curiosidade. Sendo mulato, não provocará muito alarde.
- Isso foi, realmente, muito inteligente - Kirk disse. Ele havia entrado no quarto, e viu
André terminar o disfarce.
- Muito inteligente! - André concordou. - Obrigado, Jacques.
- Tudo que tem a fazer agora é levar a coisa adiante - Jacques disse. - Está por sua
conta.
- O que faço agora?
- Vamos descer em terra. Você diz que esteve na América e acaba de regressar. Isto
lhe possibilita fazer muitas perguntas sobre o que aconteceu por aqui, durante a sua
ausência.
Fez uma pausa e depois disse:
- Ainda não conhece Orchis, mas já ouviu falar dela. Orchis só passou a dominar Port-
au-Prince depois que se mudou para a mansão Leclerc.
- Foi Dessalines quem a instalou lá? - Kirk perguntou.
- Acho que ela mesma se instalou - Jacques respondeu. - Está determinada a se
transformar em uma grande dama. Se o vodu funcionar, a esposa de Dessalines pode até
morrer. Neste caso, Orchis subirá ao trono. Pelo menos, é o que ela pensa.
- Dessalines é muito apaixonado por ela?
- Ele gosta das mulheres educadas, sofisticadas e experientes, Kirk. Orchis é tudo
isso. Tem também todos os deuses a seu favor e eles são muito poderosos.
- Está falando do vodu? - André perguntou.
- Que mais poderia ser?
- Pensei que fosse proibido.
- E é. Tanto Dessalines quanto Christophe o condenam. Dizem que são restos da
servidão, religião de escravos.
- Mas continuam a praticá-lo.
- Claro que continuam! - Jacques respondeu. - O vodu é parte de todo negro, é parte
de todos os que vivem no Haiti. Não conseguem viver sem ele. Está presente também na
mente dos católicos. Não se sabe dizer onde o vodu termina e começa o catolicismo.
- Você me espanta!
- Aprenderá depressa, monsieur. Agora, vamos procurar madame Orchis. Você verá
que ela parece uma serpente, mas tem um rosto bonito. André se despediu de Kirk e desceu
em terra, com uma sensação de irresponsabilidade e excitação.
Ali começava sua grande aventura. Era onde ia testar sua vontade contra a do tirano e
seus seguidores.
Ficara contente, ao saber que Dessalines estava ausente, liderando um ataque militar
na região dominada pelos espanhóis.
- Ele vencerá? - Kirk perguntou, quando Jacques lhe disse onde estava o imperador.
- Duvido. Os espanhóis estão muito bem entrincheirados e são bons guerreiros.
- E se ele falhar?
- Sem dúvida, tentará novamente, com mais armas americanas e melhores canhões.
Então, talvez consiga vencer.
Enquanto permaneceram a bordo, Jacques tinha sido muito espontâneo em tudo que
falava, sem ter medo de fazer comentários sobre o recém-coroado imperador. Mas, logo ao
descerem em terra, André percebeu que ele estava em guarda.
Tomaram uma carruagem e, temendo que o cocheiro ouvisse a conversa, Jacques
falou apenas sobre assuntos triviais. Dirigiram-se a uma rua estreita, cheia de casas de
madeira.
Pararam na casa de Jacques, onde André deixou a bagagem. Era uma residência
grande, de madeira, toda pintada de verde.
- Port-au-Prince está ficando em moda - ele disse -, mas, como todos temem uma
revanche dos franceses, não gastam dinheiro em nada que possa ser destruído por um tiro
de canhão.
André sabia que ele se referia ao fato de Christophe ter destruído completamente Lê
Cap, o porto do outro lado da ilha, quando a armada francesa se aproximou.
O general Leclerc encontrou a cidade em ruínas, toda queimada. Contava-se que sua
esposa, Pauline Bonaparte, tinha chorado ao ver aquilo. Entretanto, ela logo se consolou,
com uma bonita casa em Port-au-Prince: a mansão Leclerc, onde agora Orchis vivia.
Quando a carruagem em que iam passou por impressionantes portões de ferro,
entraram em uma alameda cercada dos dois lados por uma espessa vegetação tropical. À
frente, André viu uma casa imensa, de pedras cinzentas e pilares em toda a frente.
Antes, a guarda usava uniforme branco e vermelho, como os franceses. Agora, só
havia mulatos em roupas complicadas, cor de vinho, que de modo educado lhes davam as
boas-vindas e os conduziam aos aposentos da madame.
Jacques cochichou que Pauline achara os mulatos muito mais bonitos e interessantes
do que os oficiais franceses. Por isso, Orchis também só tinha empregados mulatos.
No tempo de Pauline, eles usavam um uniforme desenhado pela própria madame
Leclerc, muito justo, de modo a ressaltar ainda mais os seus encantos.
André viu que Orchis seguia o exemplo da princesa.
Desceram vários degraus. Sob um pórtico grego, sustentado por colunas e se
encontraram caminhando ao lado de uma piscina octogonal, onde avia um chafariz de água
cristalina.
A decoração era composta por arbustos e árvores altas. Duas portas de madeira
entalhadas se abriram e ambos foram conduzidos à presença de Orchis.
O aposento era todo enfeitado por colunas e janelas sem cortinas, por onde entrava
um ar quente e úmido. O ambiente se dividia em duas partes.
Numa extremidade, elevada a meio metro do solo, ficava uma enorme cama, em
forma de cisne, cheia de almofadas de cetim e renda. Orchis estava deitada, usando um robe
de chiffon amarelo pálido, transparente o suficiente para revelar os bicos escuros dos seios.
Perto da cama, havia bancos de mogno pesado, no estilo napoleônico, onde se
acomodava quase uma dúzia de homens.
A maioria era negra. Havia, entretanto, alguns mulatos, quase todos usando os
uniformes bordados do Exército do imperador.
Todos se comportavam de modo subserviente e atencioso. Empurravam-se uns aos
outros, na tentativa de chegar mais próximos ao leito dela, atrair sua atenção e demonstrar
admiração.
Como se gostasse de novidades no seu círculo de admiradores, Orchis ficou contente
ao ver Jacques. Chamou-o pelo nome e lhe estendeu a mão.
Ele se aproximou do leito, seguido por André, que agora podia vê-la de perto.
Orchis não era nada do que havia esperado. Na verdade, tratava-se de uma mulher
exótica e diferente, como seu próprio nome. Nunca imaginou que alguém fosse ao mesmo
tempo tão bonita e tivesse uma expressão tão diabólica.
Seus braços nus, seu rosto, tudo que aparecia do seu corpo era de um tom dourado
suave. Os lábios cheios, vermelhos, eram provocantes e, ao mesmo tempo, misteriosos. Os
olhos verdes pareciam cheios de segredos, exigentes e possessivos. Quando olhava um
homem, penetrava profundamente em seu coração, para mantê-lo cativo.
Tudo nela era sedutor e sensual. Era uma felina... um animal primitivo e selvagem da
floresta, tentadora como a serpente no jardim do Éden.
- Jacques! - ela disse, de um modo que mais parecia uma carícia. - Por que demorou
tanto para vir me ver?
- Fui a Lê Cap. Mas, agora que voltei, trouxe alguém que ainda não conhece e que lhe
pode contar as últimas novidades da América.
- América!
Pousou os olhos em André e ele se sentiu despido. Obviamente, ficou contente com o
que viu, pois lhe estendeu a mão, dizendo:
- Precisa me contar qual é a última moda e quantos novos milionários há naquele
próspero país.
- Há muitas coisas que gostaria de lhe contar.
Orchis olhou-o por baixo dos cílios, como se o estivesse avaliando. Então, de repente,
bateu palmas e, com ar de rainha, disse:
- Saiam... vocês todos! Tenho que discutir algumas coisas em particular com estes
amigos e vocês fazem barulho demais. Saiam!
- Como pode ser tão cruel, madame? - um oficial perguntou. Usava tantas ombreiras
de ouro que seus ombros pareciam artificialmente altos e largos.
- Algum dia fui cruel com você, Réné? Venha amanhã e, talvez, eu o receba a sós.
Não havia dúvidas do que ela queria dizer com aquele convite. Réné ficou
entusiasmado com a honra.
Beijou os dedos dela e todos saíram, sem ousar desobedecer. Orchis ficou sozinha
com André e Jacques.
- Sentem-se, mês braves. Querem vinho?
- Você já me sobe à cabeça, Orchis. Não preciso de vinho - Jacques respondeu,
galante.
- Está sempre elogiando e, geralmente, sem sinceridade - Orchis respondeu. - O que
fez com aquela pequena poule que tomou meu lugar no seu coração?
- Ninguém nunca conseguiu isso - Jacques protestou. - Enquanto estive fora, ela
encontrou outro protetor, um general. Não posso me comparar com ele.
Falou de um modo que fez Orchis rir divertida. Depois, virou-se para André e disse:
- Não acha uma boa ideia usar o uniforme dos no dos haitianos?
- Sou um homem de negócios.
- E, falando em uniformes - Jacques interrompeu, chegou da América com os dois mil
uniformes que o imperador encomendou.
- Chegaram? Jean-Jacques vai adorar! Espero que os recebamos a tempo de
comemorar a vitória sobre os espanhóis.
- Uma batalha não revela toda a beleza dos uniformes - Jacques disse. - É melhor
guardá-los para a celebração.
- Naturalmente. Só espero que os uniformes desenhados pelo imperador sejam tão
bonitos quanto ele os imagina. Caso contrário, certas cabeças rolarão.
Jacques estendeu as mãos.
- Não a minha! Não tenho nada a ver com isso. A coincidência foi o meu amigo, André
de Villaret, ter vindo junto com os uniformes.
Orchis inclinou a cabeça.
- Parece que conheço o seu nome.
- Era um nome muito conhecido, antes da Revolução.
- Quer dizer que havia algum Villaret importante no Haiti?
- Foi uma das fazendas mais prósperas daqui e o dono era o pai de André.
- Oh, naturalmente! Por isso reconheci o nome. Bem, imagino que não pretenda
trabalhar nos campos de algodão, ou sei lá o quê cultivam!
- Não pretendo!
Achou que Jacques tinha mencionado muito cedo a fazenda. Procurou mudar de
assunto.
- É muito bonita, madame. Ouvi falar dos seus encantos, antes de ir para a América.
Mesmo em Boston, ouvi comentários sobre sua beleza. Agora, não tenho palavras para
descrevê-la.
Orchis fez um movimento sensual na direção dele e, por um momento, suas mãos se
tocaram. Ele sentiu como se a língua de uma serpente passasse rapidamente sobre sua
pele.
Então, novamente, ela pareceu avaliá-lo por trás dos cílios espessos. Sentiu-se como
se usasse um dos uniformes colantes dos empregados mulatos.
- Precisa jantar comigo. Prometi a um certo oficial que estaria sozinha esta noite, mas
mudei de ideia.
Estendeu a mão para Jacques.
- Quando sair, querido, avise os empregados que não devo ser perturbada, por
nenhum motivo!
- Levarei seu recado. Só espero não encontrar o convidado rejeitado, com uma
espada na mão.
- Você conseguirá sobreviver. Sempre consegue. E, como nós dois sabemos, sempre
se torna indispensável.
Jacques beijou-lhe a mão e dirigiu-se para a porta.
- Tem muita sorte, André - disse, enquanto saía.
- Quase não consigo acreditar na minha boa sorte. - André respondeu.
A porta se fechou atrás de Jacques. Orchis e André ficaram sozinhos. Ela virou-se
para ele. Sabendo o que o esperava, sentou-se do outro lado da cama, encarando-a.
- É muito bonito, mon ami, mas será que é tão másculo como aparenta - Espero que
sim, porque, entre todas as mulheres bonitas que conheci, você é a mais feminina.
Sentiu que as mãos dela o acariciavam. Então, como era impossível não ficar atraído
por ela, pelo convite de seus lábios e a tentação de seus olhos, ele se inclinou.
Os lábios dela se colaram aos dele e as unhas longas arranharam suas costas.
Olhou-a nos olhos, profundamente, e se viu nadando em águas perigosas.
Fogos de artifício pareciam explodir em sua mente e não conseguiu pensar em mais
nada.
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
Por um momento, André só conseguiu ficar olhando as mãos da freira. Então, ela
levantou o rosto e o encarou.
Parecia rodeada por uma luz que o cegava. Disse, numa voz que não parecia ser sua:
- Você é... Sãona!
- Sim... e sou... Sãona... e você... você não é um... mulato! Os olhos dela se
iluminaram, de repente. Então, rouco, ele perguntou:
- Você é uma freira? Já fez os votos? Sorriu, sem conseguir deixar de olhá-lo.
- Não. Foi... impossível para mim... fazê-los.
André se aproximou e segurou-a pelo braço. Tomás tinha desaparecido. Conduziu-a
pelo canteiro de lírios até o pequeno jardim escondido, onde haviam estado antes.
Só quando chegaram lá, Sãona olhou-o e perguntou, num murmúrio:
- Por que me trouxe até aqui?
- Acho que já sabe a resposta.
Largou o braço dela e examinou seu rosto perfeito, o nariz reto, os olhos. Devagar,
como se saboreasse cada momento, mas ainda com medo de que ela fosse uma freira,
passou o braço em volta de seu corpo.
A moça não resistiu. Ficou trêmula, e ele sabia que não era de medo.
- Eu lhe disse que a amava e achei que havia razões para que não pudesse
corresponder, razões pelas quais eu não tinha nenhum direito de declarar o meu amor. Mas,
agora, estas razões desapareceram.
Apertou-a mais e continuou:
- Eu a amo, Sãona! Eu a amo, quem quer que seja. Mas quero saber o que sente por
mim.
- Eu tinha... medo. Porque pensei... que você fosse... um mulato.
- Compreendo. Mas eu a amei, mesmo achando que em suas veias corria sangue
negro. Sabia que a queria para mim. Agora, não há nada que possa impedir o nosso amor.
Segurou o queixo dela, erguendo-lhe o rosto.
Naquela posição, parecia uma flor, um lírio branco, puro, tão perfeito, que ele sentiu
medo de tocá-la.
Não conseguindo se controlar mais, uniu os lábios aos dela. A inocência e a doçura
fizeram com que sentisse emoções que nunca sentira, ao beijar uma mulher.
Aquilo era o amor, pensou. O amor que não conhecia; o amor que era parte de algo
divino.
A pressão de seus lábios ficou mais forte, mais insistente. Agora sabia, sem que ela
lhe tivesse dado a resposta, apenas pelo toque daquela boca macia, que Sãona também o
amava.
- Você me disse que não é realmente uma freira. Então, minha querida, posso tirar
isso da sua cabeça?
Enquanto falava, gentilmente, puxou o turbante que cobria o cabelo dela.
Era louro, da cor da luz do sol.
- Por que não me disse quem era?
- Eu queria dizer. Meu coração me avisava que podia confiar em você, mas tive medo.
- Compreendo.
- Os mulatos vieram, depois que todos estavam mortos, e roubaram a casa.
Procuraram por toda parte, cavaram no jardim, onde pensaram que o dinheiro devia estar
enterrado.
André compreendeu que os mulatos do Exército de Dessalines deviam ser os que
descobriam os lugares onde os fazendeiros escondiam seus tesouros.
Os negros, inflamados pelo desejo de sangue e vingança, só queriam matar e
incendiar.
- Foi por isso que fugiu de mim, quando me viu pela primeira vez?
- Ninguém vinha à casa nem à fazenda, há muito tempo. E comecei a esquecer o
perigo.
- Não aguento pensar sobre o que teve de suportar.
- Você é mesmo o conde de Villaret? - ela perguntou, como se temesse tê-lo
compreendido mal.
- Juro que sou. E sou tão branco quanto você. Mas, quando cheguei a Port-au-Prince,
um amigo me ajudou. É mulato e me disse que seria loucura tentar chegar até aqui, a não
ser que usasse um disfarce.
- É perigoso ficar aqui, agora. Há sempre pessoas observando, sempre alguém
disposto a trair o homem branco.
Olhou ao redor do jardim.
- O imperador tem espiões por toda parte - disse, quase sem respirar.
- Tive muita sorte, até o momento. E, qualquer que seja o perigo, sei que valeu a
pena, pois a encontrei, meu amor.
Ela o olhou, com uma expressão de imensa felicidade. Beijou-a, agora
possessivamente.
- Eu a amo! Amo tanto que quase não consigo pensar em mais nada. Preciso levá-la
para a Inglaterra, minha querida.
- Não será fácil. Primeiro, precisa ter o tesouro que seu tio lhe deixou.
Porque estava tão apaixonado, e sentia-se tão feliz em abraçar Sãona, André, por um
momento, havia esquecido completamente o tesouro.
- Damballah me disse que Sãona iria me entregar o tesouro. Por isso, eu a estava
procurando.
- E agora que você me encontrou?
- Sei que encontrei um tesouro muito mais importante, mais maravilhoso do que
qualquer dinheiro do mundo.
- Acha mesmo isso?
- Ainda duvida de mim?
Ela deitou a cabeça no ombro dele, com um movimento de pura suavidade, como uma
criança tocando em algo que ama.
- Minha querida, quando podemos ir embora?
Suas palavras a fizeram pensar novamente no perigo que os rodeava.
- O mais cedo possível, mas não tenho certeza se vamos conseguir.
- Deixe tudo comigo. Falarei com Tomás e iremos a Lê Cap, procurar um barco que
nos leve para os Estados Unidos
- Parece tão perfeito, tão maravilhoso! E se nos pegarem?
- Então, morreremos! Mas sinto, minha querida, que Deus nos protegerá. O nosso
Deus, o seu e o meu, nos manteve em segurança até o momento. Há também os deuses do
vodu que com sua magia, falaram comigo, através da voz do meu tio.
- Você ouviu?
- Parece inacreditável e poucas pessoas na Inglaterra acreditariam em mim, mas, na
verdade, ouvi tio Phillippe falando comigo, pelos lábios do papaloi.
- Já ouvi dizer que isso acontece. E compreendo por que o papaloi quer ajudar.
- Por quê?
- O conde sempre foi gentil e compreensivo para com os que praticavam vodu. Alguns
fazendeiros eram cruéis e puniam severamente os homens, quando ouviam os tambores e
sabiam que tinham executado sacrifícios. Mas o conde costumava dizer que os homens não
vivem sem religião, qualquer que seja ela. E não importava os deuses que adorassem, eles
sempre os levavam a Deus.
- Parece mesmo o meu tio. Ele sempre foi um homem muito tolerante.
- Por isso, todos os que seguem Damballah, nesta região, vão ajudá-lo.
- Ficarei muito agradecido. Se não puderam salvar meu tio e família, pelo menos,
salvaram você.
- Foram as freiras que fizeram isso. Porque o conde foi bom com elas, quando vieram
para cá, depois que a Revolução começou. Ele lhes deu abrigo e construiu o convento.
Ela suspirou,
- Ninguém sabia que as coisas ficariam sérias, ou que se espalharia pelo sul aquilo
que já estava acontecendo no norte.
- Ouvi contar.
- As freiras ficaram muito gratas e, quando a situação piorou, perguntaram ao seu tio
como poderiam ajudar.
André sabia que aquela história estava entristecendo Sãona. Abraçou-a rnais forte e
lhe beijou o cabelo,
- O conde disse que achava difícil seus escravos se revoltarem. Mas caso isso
acontecesse, que as freiras procurassem salvar as mulheres da casa.
- Os outros conseguiram fugir, quando chegou a hora?
- Todos estavam sempre falando em fugir. A condessa arrumou a bagagem uma dúzia
de vezes. Então, como tudo parecia tão pacífico e calmo por aqui, achou bobagem chamar a
atenção, indo a qualquer lugar.
- Compreendo.
- O conde e a condessa foram ficando e ficando... até que um dia... Parou de falar,
com um soluço.
- O que aconteceu então?
- Foi no começo da noite. Um escravo chegou correndo em casa. Nós estávamos
sentados na sacada. Ele disse que um grande exército se aproximava, já estava entrando na
fazenda e incendiando os canaviais.
- Deve ter sentido muito medo.
- Acho que todos estavam com medo. Entretanto, o conde foi muito calmo e corajoso.
- O que ele fez?
- Mandou a condessa ir de uma vez para o convento, mas ela não quis.
Disse que seu lugar era ao lado dele. As duas senhoras que estavam hospedadas na
casa também se recusaram a fugir. "Se temos que morrer", uma delas disse, "morreremos
com vocês".
- Era assim que os aristocratas se comportavam no tempo da Revolução, na França -
André falou.
- Foi o que ouvimos. Mas tive medo e me agarrei à condessa. Não queria morrer.
Queria continuar vivendo.
- Você era apenas uma criança.
- Tinha nove anos, acabara de comemorar meu aniversário na semana anterior.
- O que aconteceu depois?
- O conde ordenou à criada negra, que cuidou de mim, desde que fui viver na casa,
que me levasse ao convento.
Ela deu um soluço e continuou:
- Então, não houve tempo de dizer adeus. "Corra, corra!", o conde ordenou. "A criança
estará segura lá. Não podemos perder tempo! "
Fez uma pausa, depois continuou, com lágrimas nos olhos:
- Ouvi, depois, contarem o que aconteceu... após ter partido para o convento.
- Quero saber, mas não quero deixá-la triste, meu amor.
- Acho que deve saber. O conde e os três filhos esperaram na frente da casa. Quando
os homens apareceram gritando e exigindo vingança, liderados por Dessalines, eles devem
ter percebido que não havia esperanças.
A voz de Sãona parecia engasgada.
- Os soldados cortaram as cabeças dos homens. As mulheres e crianças foram
empaladas em baionetas.
Agora ela chorava. André beijou-a no rosto e na testa. Continuou, em voz baixa:
- Mais tarde, ouvi contar que o conde tirou uma pistola do bolso, matou a condessa e
dois de seus filhos. O outro matou as duas senhoras! Então, os revoltosos o mataram!
André sentiu-se orgulhoso do tio e dos primos. Teria se comportado exatamente
daquela forma, se estivesse no lugar deles.
Não queria que Sãona se entristecesse mais. Beijou as lágrimas que rolavam pelo seu
rosto, antes de beijá-la nos lábios.
Sãona prosseguiu:
- Os soldados começaram a invadir a igreja e as freiras fugiram para a floresta, com
exceção de várias jovens que foram aprisionadas. Não sei o que aconteceu com elas.
André sabia. Pensou que era típico de Dessalines permitir a seus soldados a invasão
de uma igreja.
- Antes de morrer, meu tio lhe disse onde estava escondido o tesouro?
- Só disse... para mim.
- Por que ele fez isso?
- Sabia que muitos fazendeiros tinham sido torturados, junto com as famílias, antes de
morrerem, até revelarem seus esconderijos. Ele achava que, se os rebeldes chegassem até
a fazenda, pelo menos eu me salvaria.
Sorriu, com tristeza, e continuou:
- Talvez ele tivesse... uma intuição. Talvez Deus lhe tivesse dito que eu seria
poupada.
- Só posso agradecer a Deus por isso!
Beijou-a mais uma vez e sentiu um desespero repentino, como se ela pudesse ser
levada embora.
- Eu a amo! E sofro em saber tudo isso que passou.
- As freiras foram muito gentis comigo. A madre superiora e mais duas velhas freiras
são as únicas, no convento, que sabem que sou branca.
- Foi a superiora quem pensou em pintar suas unhas e disfarçá-la de mulata?
- Ela sabia como o general Dessalines era fanático em matar os brancos. Achou que
seria o único jeito de me salvar.
André pareceu surpreso e ela disse, em voz baixa:
- Mesmo para as outras freiras, poderia ser uma tentação revelar o esconderijo de
uma fugitiva branca.
- Compreendo.
- A superiora disse que nem mesmo os padres deviam saber do meu segredo. E
quando o padre vinha nos visitar, uma vez por mês, eu me escondia.
André olhou-a, confuso.
- Como poderia assistir à missa, sem participar da confissão? E se fosse confessar,
teria que contar ao padre.
- Naturalmente. Então, todos estes anos, minha querida, você não pôde ter os
confortos da religião?
- Eu ouvia os sermões, de onde ninguém pudesse me ver, e rezava muito, sempre
que estava sozinha.
Beijou-a outra vez.
- Precisamos ir embora. Meu momento mais feliz será quando chegarmos em
segurança à Inglaterra. E, talvez, um dia, com a ajuda de Deus, possamos voltar ao nosso
lar, na França, ao qual pertencemos.
Sãona deu um risinho:
- Eu lhe disse que o meu pai era francês, mas a minha mãe era inglesa.
- A minha também. Por isso, então, minha querida, você tem esse cabelo lindo.
- Sou muito parecida com mamãe. Ela ficou tão infeliz, depois que papai morreu em
uma batalha no mar, que só desejava encontrá-lo, no paraíso.
- Seu pai era da Marinha?
- Sim, por isso mamãe veio para o Haiti, para ficar perto dele. Eu nasci aqui. Mas,
depois que ele morreu, não conseguimos ir embora e mamãe ficou... tão doente.
Novamente, os olhos de Sãona se encheram de lágrimas.
- Papai era amigo do conde Phillippe. Quando soube da morte de mamãe, o conde me
trouxe para cá e disse que eu seria a filha que ele sempre desejou ter.
- Deve tê-la amado muito e sentido orgulho de você, como eu. Queria ficar aqui o dia
todo, dizendo o quanto a amo, mas precisamos ser razoáveis e fazer planos para fugir.
- Posso mesmo ir com você?
- Acha que eu a deixaria aqui? Minha querida, você tem toda a minha felicidade em
suas mãos e eu lhe juro que é verdade, quando digo que não posso mais viver sem você.
Beijou-a até que o jardim e tudo mais rodopiasse ao seu redor, que seus pés
parecessem flutuar, como se estivessem voando para o céu.
Então, com um esforço sobre-humano, André se forçou a pensar seriamente na
situação de ambos.
- Coloque o turbante, de modo que ninguém possa ver o seu cabelo. Então,
voltaremos até a casa e pedirei a Tomás que prepare a tinta para colorir novamente nossas
unhas.
Sãona pegou o tecido branco que André atirara no chão e enrolou-o na cabeça.
- É muito linda. Quero lhe comprar roupas de cetim e sedas, enfeitá-la com colares de
pérolas e lhe dar um anel de noivado que brilhe tanto quanto os seus olhos.
Ela sorriu, envergonhada.
- Infelizmente, a não ser que me diga onde está o tesouro, será difícil comprar todas
essas coisas.
- O tesouro está aqui, mas acho melhor vir buscá-lo à noite, um pouco antes de
escurecer completamente.
- E por que não depois de escurecer?
- Porque, se alguém vir luzes na igreja, virá investigar.
- O tesouro está na igreja? Ela fez que sim.
- Meu tio disse isso, na carta que escreveu a papai. E disse que o havia colocado na
terra, à sombra de Deus.
- Foi exatamente o que fez - Sãona disse - e eu lhe mostrarei como encontrá-lo.
- Obrigado, querida. Agora, vamos cuidar de nossas mãos. Depois, eu a levarei de
volta.
- A madre superiora deve estar preocupada comigo. Nunca fiquei na floresta durante
tanto tempo.
- Precisa ter cuidado, muito cuidado. Eu podia, afinal, ser mesmo um inimigo e a teria
maltratado.
- Quando conversei com você na igreja, soube que, apesar dos meus temores, nunca
iria me magoar.
- Como podia saber disso?
- Acho que foi o amor que me disse. Beijou-a outra vez e dirigiram-se para a casa.
Tomás os esperava, com a tintura preparada. Deu um largo sorriso, e André disse:
- Você é uma raposa velha, Tomás! Como soube que mademoiselle Sãona estava
disfarçada como eu?
- Damballah prometeu encontrar m'mselle.
- Acho que isso é o mais próximo que podemos chegar da verdade - André disse,
baixinho, a Sãona. - Continuarei curioso, durante anos, para saber como Tomás descobriu o
seu disfarce. Será que ele ouviu algum comentário no vilarejo? Ou os tambores de
Damballah lhe disseram?
- Nunca saberemos - disse Sãona. - Mas ele foi muito inteligente, me revelando o seu
segredo.
- Era algo que não tinha nenhum direito de fazer! - respondeu, sorrindo, enquanto
tentava parecer furioso.
Tomás pintou cuidadosamente as meias-luas das unhas de Sãona. Depois, restaurou
a cor de André.
- Não tinha ideia de que essa tinta saísse com facilidade - ele disse.
- Uma árvore faz o marrom, outra árvore faz o branco - Tomás explicou. - A árvore de
fazer o branco é muito secreta. Pouca gente conhece.
- Há mesmo muitos segredos no Haiti. Se a árvore de fazer o branco cresce aqui, por
favor, traga bastante pó, para levarmos, quando formos embora.
O negro fez que sim, como se já tivesse pensado naquilo.
- Agora, preciso ir - Sãona disse, olhando as unhas, para ver se estavam secas.
- Vou acompanhá-la até a floresta. Virou-se para o criado:
- Tomás, nós três temos que ir para Lê Cap o mais cedo possível. Acho que
precisaremos de mais um cavalo.
- Não será difícil.
- Precisa ser um cavalo muito bom, pois acho que um dos nossos animais está
doente. Deve dizer isso, senão as pessoas perguntarão por que precisamos de três cavalos,
se somos apenas duas pessoas.
Tomás concordou e André, segurando a mão de Sãona, saiu para a sacada. Enquanto
caminhavam, ela lhe contou como a mansão Villaret era bonita, antes da destruição, dos
saques e incêndios.
André não havia visto o tio durante muitos anos, mas, ouvindo a descrição de Sãona,
sobre a maneira como vivia, sentiu que as lembranças lhe voltavam.
Os três filhos eram rapazes finos, interessados na plantação. O mais jovem, Sãona
disse, era um artista talentoso.
- Foi pensando nos quadros dele que sugeri a decoração do altar da igreja.
- Foi sua ideia?
- Descobri que a irmã Térèse adorava desenhar e pintar. Como você viu, ela tem
muito talento.
- Achei os murais, apesar de bem primitivos, cheios de uma estranha fortaleza.
- Também acho. Foram pintados com muito carinho, o que ajuda bastante.
Pensou que ela tinha duas grandes virtudes: o amor e a fé. Era difícil que uma mulher,
vivendo a vida que ela vivera, continuasse tão bonita, não apenas de corpo, mas também de
alma. Era um homem de sorte.
- Virei até a igreja por volta das quatro horas. Terei tempo de rezar, até que você ache
seguro vir se encontrar comigo.
- Você reza... realmente?
- Sim, tenho muito a agradecer e uma porção de favores para pedir, tanto agora,
quanto para nosso futuro próximo.
Ela riu.
- Rezarei muitas novenas para que possamos sair daqui em segurança.
- Tenho certeza de que suas preces serão atendidas - André disse, com toda
sinceridade.
Enquanto voltava para casa, pensou em como tudo aquilo era estranho. Na verdade,
estava tendo uma sorte incrível. Não apenas conseguira chegar sem problemas à mansão
Villaret, como encontrara a jovem que procurava.
Só desejava que o tesouro do tio, escondido com tanto cuidado, fosse suficiente para
o futuro de ambos.
Uma coisa o preocupava, mas não disse nada a Sãona. Temia que o tesouro fosse
muito pesado e difícil de transportar até Lê Cap. Tudo podia se tornar perigoso demais.
Bolsas grandes sempre despertavam suspeitas em tempos difíceis. O ouro não era
fácil de levar de um lado para outro, a não ser em quantias insignificantes. Precisava
descobrir um meio de disfarçar o tesouro, mas só conseguiria ter alguma ideia, quando visse
exatamente o que o tio havia escondido.
Ao chegar à mansão Villaret, não encontrou sinal de Tomás. Não havia nada para o
almoço, e André estava faminto.
Todas as emoções da manhã acabaram com suas energias. Entretanto, não se
lembrava de uma época em que se sentisse mais satisfeito consigo mesmo.
Sempre tinha rido da ideia do amor à primeira vista, dos homens que diziam ter
mudado de vida, depois de encontrarem determinada mulher.
Era exatamente o que lhe havia acontecido. Não podia descrever todas as mudanças
que sofrera em tão pouco tempo.
Parecia conhecer Sãona há milhões de anos. Ela estava dentro de sua alma, de seu
coração.
Era completamente sua, como se já estivessem casados por toda uma vida.
Sabia que seus corações batiam juntos. Sãona teria comentado que tinham sido
abençoados por Deus.
André olhou a beleza do jardim e depois levantou os olhos para o céu.
- Obrigado, meu Deus!
Era a oração mais sincera que já tinha feito na vida.
Tomás voltou, um pouco depois, dizendo que encontrara exatamente o tipo de cavalo
de que precisavam. Não era muito caro. Se lhe desse o dinheiro, poderia trazê-lo à noite.
- Quanto mais cedo, melhor. Agora que encontrou tudo, precisamos ir embora. Vou
dizer a mademoiselle que fique pronta para amanhã de manhã. Você conhece o caminho
para Lê Cap?
Tomás fez que sim.
Ele nunca dizia palavras desnecessárias. Depois entrou e foi buscar um suco de
frutas.
O almoço foi servido tarde. André teve pouco tempo, antes de sair para a igreja.
Estava em dúvida, se iria a cavalo ou a pé. Se fosse a cavalo, poderia, na volta, trazer
parte do tesouro. Por outro lado, teria que deixar o cavalo amarrado do lado de fora da igreja
e isso despertaria curiosidade.
Tinha visto poucas pessoas, desde que chegara à mansão Villaret. Mas sabia que
existiam povoados nas redondezas e homens trabalhando nas plantações de cana e de
banana.
Era inevitável que ficassem curiosos com um estranho. Naquele momento, seria
aconselhável não chamar nenhuma atenção.
Resolveu ir a pé. Mais tarde, ou na manhã seguinte, bem cedo, quando houvesse luz,
podia voltar com Tomás e levar tudo.
Chegou à igreja um pouco depois das quatro horas. Entrou pela porta do lado oeste,
que sempre ficava aberta, e ajoelhou-se para rezar.
Tudo estava muito quieto e o clima era fresco. Imaginou quantas pessoas, através dos
tempos, tinham ido até ali, meditar sobre problemas e dificuldades.
André se sentia ansioso sobre sua própria segurança. Mas agora a ansiedade
aumentara. Preocupava-se com Sãona.
Parecia incrível que, ainda tão jovem, já tivesse sofrido tanto, suportando infelicidade,
agonia e terror.
Estava tão mergulhado em seus pensamentos, que não a viu chegar. Só quando o
tocou no ombro, foi que se ergueu. Ela não falou, apenas estendeu a mão que ele beijou.
Sãona virou-se, fechou a porta e colocou a tranca de madeira. Depois, tomou a mão
dele e o puxou para o corredor.
Ambos se ajoelharam diante do altar e André olhou para os murais que decoravam a
parede.
Sentia que o colorido daquelas pinturas lhe dava uma sensação de proteção e
compreensão.
Entraram atrás do altar, descendo alguns degraus.
Tinha sido construído no lado leste, de modo a se poder passar entre ele e as paredes
de pedra.
Sãona caminhou na frente, direto para o lado oposto ao centro do altar. Havia flores e
velas por ali e, acima deles, a pesada cruz entalhada.
Sãona olhou para cima, depois curvou-se e apontou uma pedra chata, colocada
exatamente atrás do altar, onde André percebeu que caía a sombra da cruz.
Ela lhe deu uma barra de ferro, para remover a pedra.
A abertura embaixo era pequena. Nada grande podia estar escondido ali.Sãona sorriu,
encorajando-o, e lhe entregou uma pá.
Cavou quase meio metro e bateu em algo.
Enfiou a mão no buraco e puxou uma bolsa de couro, não muito grande, que tilintava.
Agora, era difícil disfarçar seu desapontamento e desânimo. Não podia
haver muito dinheiro numa bolsa tão pequena.
Sem olhar o conteúdo, colocou-a de lado.
- Devo colocar a terra de volta ao buraco? Ela sorriu, como se ele fosse uma criança
boba:
- Cave mais fundo. Isso é apenas para enganar os ladrões e fazê-los pensar que é
tudo.
- Há mais?
- Você vai ver.
Começou a cavar, com novas energias. Agora iria muito mais fundo. O monte de terra
a seu lado crescia e crescia.
Outra vez, bateu em algo. Teve que enfiar o braço todo, para conseguir pegar outra
bolsa de couro.
Era um pouco maior do que a primeira, mas não muito. Novamente, sentiu-se
desanimado.
Olhou para Sãona, querendo perguntar se devia continuar cavando, mas ela disse,
suavemente:
- Olhe dentro.
Enquanto desamarrava, calculava que não devia conter muito dinheiro, pois era bem
leve.
Por um momento, não entendeu o que estava vendo. Então, a luz do poente passou
por sobre suas cabeças e algo brilhou.
- Diamantes! - disse, atônito, temendo estar enganado.
- Sim, diamantes. Quando seu tio me mostrou onde estavam escondidos, disse que os
comprou por que seriam mais fáceis de levar, se tivesse que fugir do país.
- Diamantes! André murmurou, quase sem respiração. Aquela coleção valia realmente
uma grande fortuna.
O tio era inteligente. Enquanto o tesouro dos outros fazendeiros era em ouro e prata,
fácil para Dessalines achar e tão pesado que precisaria ser transportado, de volta a Port-au-
Prince, em cinco mulas, o dele permanecera escondido.
Aquela fortuna não precisava de nenhum esforço para ser carregada. Só muito
cuidado, para que não fosse roubada.
Deu a bolsa com os diamantes para Sãona e, rapidamente, empurrou a terra para
dentro do buraco.
Depois, colocou a pedra e arrumou a terra em volta dela, procurando não deixar
vestígios de sua escavação
Pegaram a bolsa com o ouro, voltaram ao interior da igreja, e se ajoelharam diante do
altar.
Só quando chegaram à saída, André disse, em voz baixa.
- Como posso lhe agradecer?
- Agradeça a Deus por ter protegido o tesouro, guardando-o para você.
- Farei isso. E você, esteja pronta para partir comigo, amanhã de manhã.
- Já falei com a madre superiora. Ela compreendeu. Vai me dar um endereço em Lê
Cap, onde estaremos seguros, até encontrarmos um navio.
- Agradeça a ela por mim.
- Já fiz isso. Se você a encontrar amanhã, não mencione sobre o tesouro.
- Nem pensaria em fazer isso. Sei que você não falou nada sobre isso a ninguém.
- A ninguém. Algumas vezes, imaginei o que aconteceria se eu morresse e nenhum
Villaret viesse procurar o tesouro.
- Felizmente, isso não aconteceu. Agora, minha querida, podemos ter certeza de que
nosso futuro está garantido. Poderei comprar todas as coisas que quero lhe dar.
O rosto dela era adorável. Ofereceu os lábios a ele:
- Eu só quero você.
De volta à casa, tarde da noite, André sentou-se em seu leito, olhando a bolsa de
diamantes e tentando avaliá-los.
Não sabia muito sobre pedras. Sua mãe tinha poucas jóias, as sobras de uma grande
coleção que possuíra antes da Revolução Francesa.
Havia um anel, muito especial, que ela se recusara a vender. Dizia que o guardava
para dar à esposa que ele escolhesse.
- Há duzentos anos, este anel está na nossa família. Não acho que devemos
transformá-lo em algo tão mundano como pão, apenas porque temos fome!
- Podemos, com a venda dele, comprar mais coisas, além de pão André disse, rindo.
- Sei disso. Na verdade, já me ofereceram mil libras por este anel, quando o levei para
consertar.
- Mil libras!
- Será o dote da sua esposa. Não tenho mais nada a oferecer a ela e não quero que
se aproxime de uma mulher com as mãos completamente vazias.
André compreendeu o sacrifício que ela fazia e beijou-a.
- Obrigado. Mas, se precisar do dinheiro, insisto em que venda o anel.
O diamante de sua mãe não se comparava com aquelas pedras, na bolsa. Sou um
homem rico, pensou.
Então, soube que o que o fazia realmente um homem rico e feliz era ter encontrado o
amor de Sãona.
- Por favor, Deus, faça com que cheguemos a salvo na Inglaterra. Apertou as duas
bolsas contra o peito, antes de fechar os olhos.
Acordou de repente, com Tomás sacudindo seu braço. Arregalou os olhos, espantado,
despertando de um sono profundo.
- Acorde, m'sieur, acorde.
O negro estava nervoso. André sentou-se.
- O que foi?
- Temos que sair agora. Depressa!
- Por quê?
- Os tambores dizem que soldados estão vindo de Port-au-Prince!
- Soldados?
- Soldados procurando m'sieur.
Tinha sido um tolo, em não prever que aquilo aconteceria. Orchis devia ter descoberto
que tinha ido lá, procurar o tesouro, e estava mandando soldados para tirar proveito disso.
Só queria saber como ele e Sãona poderiam fugir dali, antes de serem presos e
mortos.
Nem se importou em perguntar como os tambores sabiam que os soldados estavam à
sua procura. Era suficiente saber que tinha uma chance, pelo menos uma, de tirar Sãona
dali, em segurança.
Calçou as botas, pegou as duas bolsas e correu para fora. Tomás já o esperava, com
os cavalos prontos, a bagagem amarrada nas selas.
André pegou a rédea e lhe estendeu as duas bolsas com o tesouro.
- Coloque isso na bagagem do seu cavalo, Tomás.
O criado obedeceu com extrema rapidez.
Então, sem desperdiçar mais palavras, André montou e Tomás seguiu-o, levando o
terceiro cavalo.
CAPÍTULO VII
FIM