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A Deusa Vencida

The Drums of Love


Barbara Cartland

Os tambores do vodu ecoavam pela floresta, avisando do perigo, enquanto André e Sãona
fugiam dos soldados do general Dessalines, sedentos de sangue. A não ser que
conseguissem despistar seus perseguidores, seriam torturados e mortos. Desde que chegara
ao Haiti, para procurar um tesouro enterrado por seu tio, o conde André de Villaret tinha sido
protegido pelos deuses nativos. Disfarçado, atravessou a ilha, dominada pelos ex-escravos
que haviam massacrado os colonizadores franceses. Mas agora precisava de toda a ajuda
de Damballah, o deus-serpente, para salvar sua maior riqueza: a vida da mulher a quem
amava

Digitalização: Dores Cunha


Correcção: Edith Suli
Título: A deusa Vencida.
Autora: Barbara Cartland.
Dados da Edição: Livros Abril, São Paulo.
Título Original: The Drums of Love
Género: romance.
Digitalização: Dores cunha.
Correcção: Edith Suli
Estado da Obra: Corrigida.
Numeração de Página: Rodapé.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas
portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode
ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. É a autora
romântica mais conhecida e lida em todo o mundo. Seu jeito insuperável de juntar amor,
colorido e suspense conquistou o entusiasmo de milhões de leitores. "Eu dou ao público
romance, ilusão e beleza... tudo o que ele secretamente procurar.

NOTA DA AUTORA
Quando visitei o Haiti, conheci Katherine Dunham, uma das pessoas que mais entende sobre
o culto vodu, naquele país. Ela é uma famosa bailarina negra, atualmente aposentada, que
possui um templo de vodu no jardim de sua casa, e me levou para assistir a uma cerimônia.
Ou, pelo menos, parte dela, pois o final só é permitido ser presenciado pelos iniciados.
Achei as danças magníficas e os tambores pareciam me hipnotizar. E nesta história,
descrevo tudo o que vi, do modo mais verdadeiro possível. No Haiti, o vodu agora é
permitido por lei e praticado, segundo me disseram, por sessenta por cento da população.
CAPÍTULO I

1805
- Estamos chegando!
Kirk Homer levantou-se e caminhou até a luneta, observando a cidade de Port-au-
Prínce, no Haiti, cheia de pequenos barcos ancorados no porto, alguns navios, mas nada tão
grande como a escuna americana em que viajavam.
- Agora, começa minha aventura! - uma voz disse atrás dele. Kirk, um americano alto
e de rosto quadrado virou-se e olhou quem falava.
- Mude de ideia, André - ele pediu. - Volte para Boston comigo. Está cometendo um
erro do qual se arrependerá amargamente. Isto é, se continuar vivo, para se arrepender de
alguma coisa.
- Já passamos por isso antes - André de Villaret respondeu - e a alternativa entre
seguir adiante e viver na miséria o resto da minha vida é uma motivação bem forte.
- É loucura! Absoluta loucura! - Kirk Homer protestou. - Mas acho que devo ajudá-lo,
apesar disso tudo ser contra os meus princípios.
- Você prometeu me ajudar, antes de subirmos a bordo, e estou cobrando a
promessa. E agora, o que faremos?
Kirk virou-se novamente e olhou pela luneta.
Além do porto, estava a cidade e, além dela, as montanhas roxas e azuis, escuras e
ameaçadoras, mesmo à brilhante luz do sol.
Todo o resto era verde, de um verde tão profundo que parecia cintilar. As casinhas
brancas, vistas à distância, davam a impressão de ter luz própria.
- O que quero que faça - Kirk disse -, é ficar aqui, a bordo, até que eu entre em
contato com a única pessoa que acho que pode ajudá-lo nessa maluca caça ao tesouro.
- E quem é?
- Ele se chama Jacques Déjean e é mulato.
André já tinha visto mulatos nos Estados Unidos e Kirk lhe contara que, no Haiti, os
mulatos e os negros se desprezavam, quase tanto quanto odiavam os brancos.
Kirk disse também que, para um francês, era pura loucura tentar entrar no país,
naquele momento.
Jean-Jacques Dessalines, comandante-em-chefe do Exército haitiano havia
massacrado cruelmente os fazendeiros franceses e todos os brancos da ilha e, no ano
anterior, se fez coroado imperador.
Uma de suas primeiras providências foi desenhar novos uniformes para os soldados.
Dois mil uniformes foram encomendados a uma firma de Boston e estavam a bordo da
escuna em que André de Villaret e seu amigo Kirk Homer viajavam.
Kirk havia sido comissionado para mandar um relatório secreto ao presidente norte-
americano, contando as condições atuais da ilha.
Os americanos pretendiam entrar novamente no mercado, do qual tinham sido
expulsos, no tempo da dominação francesa, pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão
Bonaparte.
Na época, o vice-cônsul francês, em Filadélfia, protestou violentamente contra os
americanos, não apenas por estes comercializarem com o Exército de Dessalines,
mandando armas e munições, como também por estarem enviando negros americanos para
lutar junto com os rebeldes e contra os espanhóis e franceses.
Tudo isso era pago em algodão, cobre, madeira e até mesmo em dinheiro. As
reservas de prata de Dessalines eram consideráveis.
A ilha havia ficado tão arrasada, que dificilmente os outros países compreenderiam o
que estava acontecendo. Kirk Horner, que estivera no Haiti há dois anos, esperava descobrir
o que tinha mudado sob o reinado de Dessalines.
Por isso, temia pela vida do amigo, André de Villaret.
Os dois se conheciam há muito tempo e Kirk sempre ficava na casa da família de
André, quando visitava a Inglaterra.
Talvez tivessem sido suas descrições do Haiti que, a princípio despertaram o
interesse do amigo pela ilha. Isso, além do fato de André ter tido um tio lá, fazendeiro muito
rico, morto durante o primeiro levante da revolução, em 1791.
Foi Kirk quem escreveu a André, contando o assassinato do velho e de seus três
filhos.
Ficou atônito, quando, há dois meses, o amigo apareceu em Boston, pedindo sua
ajuda para entrar na ilha.
- Impossível. Jean Jacques Dessalines jurou matar todos os brancos que encontrar.
Ele tem um ódio fanático de brancos. Não dou um tostão pela sua vida, se puser os pés no
Haiti.
Descreveu Dessalines ao amigo.
- Ele não é alto, mas parece um gorila. Tem ombros largos e um pescoço muito
grosso. Os lábios são grossos também e as narinas, muito abertas. Tem o nariz chato, a
testa baixa e o cabelo quase nasce junto às sobrancelhas.
- Não parece muito atraente! - André comentou, rindo.
- Não é assunto para piadas. Ele espalha o terror por todo o país. Seu próprio povo
passa por períodos de histeria. Uns suspeitam dos outros e só conversam sobre morte e
destruição.
- Já ouvi contar que ele se comporta de modo diabólico. Promete proteção aos
brancos, se se entregarem, e depois mata aqueles que confiaram na promessa.
- As ruas, em Jeremie, estão manchadas de sangue. Ele matou lá quatrocentos e
cinquenta homens e crianças - Kirk respondeu. – Até Christophe, seu comandante-em-chefe,
está apavorado com tanta selvageria.
Fez uma pausa, enquanto o outro meditava no que tinha ouvido.
- Não é de espantar que o presidente dos Estados Unidos tenha ficado preocupado ao
ler o ato de independência de Dessalines. Veja o que ele escreveu:
"Para assinarmos esta declaração, precisamos da pele dos homens brancos, dos seus
crânios e do seu sangue. A baioneta será a nossa pena. "
- Está me deixando arrepiado - André interrompeu -, mas continuo decidido a
descobrir o tesouro que tio Phillippe enterrou em sua fazenda.
Kirk sabia que aquele era o único objetivo da viagem do amigo. Seu avô tinha três
filhos. François, o pai de André, era o mais novo. Percebendo que as coisas não estavam
boas na França, e vendo a insatisfação crescer entre os camponeses, Phillippe, o segundo
filho, partiu para o Haiti por volta de 1770, para começar ali uma vida nova.
Sempre escrevia para casa, contando aos parentes que estava se transformando em
um homem muito rico, pois o algodão e o café, que cultivava, conseguiam bons preços em
todo o Novo Mundo.
Então, aconteceu a Revolução Francesa. O conde de Villaret e seu filho mais velho
foram mortos na guilhotina.
Isto significou que Phillippe de Villaret tio de André se tornou o chefe da família e
herdou o título de conde, enquanto que seu irmão mais novo, François, a esposa inglesa e o
filho, André, fugiam para a Inglaterra.
Mas François não tinha muito dinheiro. Só conseguiam viver com algum conforto,
graças à gentileza dos parentes da mulher. Com o assassinato do tio, no Haiti, e a morte do
pai, um ano antes, André se tornou o conde de Villaret, sem nenhum dinheiro para
acompanhar esse título tão antigo e pomposo.
Foi então que decidiu ler cuidadosamente as últimas cartas do tio Phillippe. Na última,
escrita poucos meses antes do massacre, encontrou algo que parecia muito significativo:
"As coisas estão ficando horríveis por aqui. Todos os dias, ouvimos falar de terríveis
atrocidades que sucedem nas fazendas de meus amigos. Os homens não apenas perdem a
vida, mas são torturados e mutilados. As mulheres são estupradas ou enviadas como
escravas para as fazendas, que agora estão sendo administradas pelos próprios negros.
Fazemos planos para fugir. Depois os rasgamos, pois não queremos chamar atenção
sobre nós, a fim de não precipitarmos um destino que parece cada vez mais próximo."
Então, havia aquela frase, que André leu muitas e muitas vezes: "Só confio na terra e,
naturalmente, na proteção da sombra de Deus. "
- Isto - André disse a Kirk, ao lhe mostrar a carta - é uma mensagem perfeita e clara,
dizendo ao meu pai onde ele escondeu o dinheiro. Acredito que esteja tudo enterrado,
próximo da igreja.
- Pode ser. Todos os fazendeiros enterraram seu dinheiro e outros bens que
possuíam. Dessalines sabe muito bem disso e, torturou-os antes de matá-los. Contaram-me
que conseguiu desenterrar muitas riquezas das diversas fazendas.
Fez uma pausa, antes de continuar:
- Quando Dessalines saiu de Jeremie, levou cinco mulas carregadas de pratarias e
outros valores. Mas ouvi dizer que isso nem se compara ao que pilhou em Aux Cayes.
Grande parte destes tesouros foi achada, enterrada.
- Preciso tentar uma busca - André disse. - Afinal, sempre fui um otimista.
- Os otimistas também morrem, como milhares de patrícios seus já morreram lá.
Então, ele sorriu:
- Mas tem sorte de não parecer francês.
- Esqueceu que minha mãe era inglesa?
Não havia dúvidas, o amigo pensou, de que a condessa de Villaret transmitira ao filho
todas as características dos homens de sua família: ombros largos, quadris estreitos e um
corpo atlético, semelhante ao dos melhores amigos do príncipe de Gales.
André era também muito forte. Mas, Kirk sabia, isto não iria salvá-lo no Haiti, pois
tinha a pele branca.
Virou-se para olhar novamente o porto e disse:
- Com um pouco de sorte, podemos trazer a bordo o meu amigo Jacques Déjean. Ele
está me esperando. Ou, pelo menos, deve estar, há dois meses.
- Tem amigos em toda parte - André disse de bom humor.
- Preciso deles, no mundo em que trabalho.
- O que está dizendo, na verdade, é que precisa de espiões, para lhe contarem os
últimos acontecimentos - André comentou. - Mas não me importo, contanto que esses seus
amigos sejam capazes de ajudar.
- Você é um grande egoísta!
Era típico do amigo nunca desistir, quando metia uma ideia na cabeça.
Saiu da cabine e André sentou-se, olhando o porto pela escotilha, com uma expressão
obstinada.
Tinha lutado, não apenas com a mãe, que se opôs àquela expedição, mas também
com Kirk. Os dois discutiram durante um dia inteiro, antes que se decidisse a ajudá-lo.
Entretanto, era realista: sabia muito bem que suas chances de sucesso seriam poucas.
Toda a história da revolta de escravos no Haiti, o incêndio da cidade de Lê Cap,
quando o general Leclerc tentou descer lá, a morte de Leclerc, atacado por febre amarela, e
o ressurgimento da guerra entre a França e a Inglaterra, tinham sido acontecimentos
catastróficos para os franceses.
Pelo que André ouvira, sobre o tratamento dado pelos fazendeiros aos seus escravos,
a revolta começaria cedo ou tarde.
Os escravos tiveram a sorte de conseguir dois líderes brilhantes: Jean Jacques
Dessalines e Henry Christophe.
Dessalines podia ser brutal e sádico, mas era também um soldado corajoso e
experiente. Christophe, muito mais gentil e razoável, havia poupado a vida de alguns
franceses que tratavam bem os negros e, principalmente, os padres e médicos.
Entretanto, noventa por cento da população francesa foi massacrada por Dessalines,
que ainda matava e torturava todos os brancos que encontrava.
André respirou fundo.
- Se eu morrer... morri! - disse a si mesmo. - Ainda assim, acho que vale a pena
arriscar. Se não der certo, o meu sangue se misturará ao de meus compatriotas.
A porta da cabine se abriu e Kirk apareceu.
- Boas notícias! Jacques Déjean já está a bordo. Agora, poderá conhecê-lo.
Um homem entrou e André olhou-o atentamente, sabendo que quase tudo dependeria
dele.
A pele de Jacques Déjean era quase dourada. Se André o encontrasse na Inglaterra,
pensaria que estava bronzeado. Seus traços eram europeus, mas o cabelo era negro,
encarapinhado demais, e os olhos, muito escuros.
Vestia-se com a mesma elegância de Kirk e André. Usava uma gravata de musseline
muito em moda e o casaco, azul-claro, tinha um caimento perfeito.
- Jacques - Kirk disse -, este é o meu amigo André, que precisa dá sua ajuda. Já disse
a ele que você não recusará sua assistência.
- Seus amigos são meus amigos - o mulato respondeu. - Sabe que estou à sua
completa disposição.
Tinha um modo exagerado de falar, e André refletiu se devia mesmo confiar naquele
homem.
Kirk tinha certeza de que sim. Como se entendesse as suspeitas do amigo, apressou-
se a esclarecer:
- Uma vez, no mar bravio, salvei a vida de Jacques. Ele jurou me ajudar sempre que
pudesse, e nunca quebra suas promessas.
- É verdade. E então, monsieur, em que posso ajudá-lo?
André e Kirk ficaram espantados. Aquela palavra lhes dizia que, sem lhe falarem
nada, Jacques havia descoberto que estava diante de um francês. Kirk foi até a porta da
cabine, verificar se estava trancada. Então, perguntou:
- A nacionalidade do meu amigo é assim tão óbvia?
- O fato de ele precisar da minha ajuda e não ter saído ao meu encontro me fez
suspeitar. Quando o vi, tive certeza de não se tratar de um americano.
André riu.
- Pretendia dizer que era inglês. Na verdade, sou meio inglês.
- Metade do meu sangue é branca - Jacques respondeu -, mas os brancos nunca me
aceitaram, a não ser quando precisam usar os meus serviços.
Não falou com amargura. Estava apenas expondo um fato.
- Muito bem, admito que sou francês. Meu nome, que Kirk não lhe disse, é André de
Villaret.
O mulato pensou por um momento, e então disse:
- É parente do Villaret cuja fazenda ficava nas Montanhas Negras?
- Sim.
- Ele esta morto.
- Foi o que Kirk me disse, há dois anos.
- Então, por que veio aqui?
André decidiu dizer a verdade, sentindo que nada teria a perder.
- Acredito que meu tio enterrou dinheiro em alguma parte da fazenda. Os filhos dele
morreram também e agora sou o chefe da família. Este dinheiro me pertence.
- Terá muita sorte, se o nosso nobre imperador o deixou lá, esperando por você.
- Temos algum modo de descobrir se ele o achou? - André perguntou. - Se não tiver
achado, quero ir à fazenda Villaret.
- Quer! Mas não é fácil. Acredite-me, vai ser muito difícil fazer qualquer destas duas
coisas.
- Ora, Jacques - Kirk interrompeu -, sabe, tão bem quanto eu, que, se alguém pode
ajudar André, este alguém é você. Deve haver um jeito de descobrirmos o que Dessalines
escavou e onde. Soube que ele tem muitos tesouros guardados nas montanhas.
- É verdade, mas ele não sabe escrever, não sabe fazer contas e duvido de que confie
em alguém para realizar um levantamento dos tesouros que trouxe.
André deu de ombros, como se achasse que estavam num beco sem saída.
Então, Jacques disse:
- Só uma pessoa sabe o que há no cofre de Dessalines e se isso inclui o que veio da
fazenda Villaret.
- Quem é? - Kirk perguntou.
- Orchis.
- Orchis? Ela está aqui em Port-au-Prince?
Jacques fez que sim.
- Ela se instalou na mansão Leclerc e imita a irmã de Napoleão Bonaparte, aquela que
foi casada com o general Leclerc, que voltou à Europa depois da morte dele. E agora Orchis
imita Sua Alteza Imperial Pauline Borghese.
- Não consigo acreditar!
- Quem é Orchis? - André interrompeu.
Kirk riu.
- Se ficar algum tempo no Haiti, logo ouvirá falar de Orchis!
- Quem é ela?
- É uma das amantes de Dessalines - Kirk explicou. - Ele tem umas vinte, mas todos
dizem que Orchis é a favorita. Alguns acham mesmo que é ela quem controla o próprio
tesouro.
Jacques começou a rir.
- Esta descrição é excelente, meu amigo - comentou -, mas as extravagâncias de
Orchis aumentam a cada ano. Agora, ela quer ser coroada imperatriz. Só que Dessalines
tem uma esposa! Entretanto, apesar da falta de respeitabilidade, ela desempenha
brilhantemente o papel da princesa Pauline.
- Você disse que ela se mudou para a mansão Leclerc? - Kirk perguntou.
- Recebe seus admiradores lá na hora do café da manhã e à noite. É quando
monsieur de Villaret poderá encontrá-la.
- Pensei que isso fosse impossível - Kirk disse.
- Claro que é... se se apresentar com o verdadeiro nome. Mas, se pretende sair de
Port-au-Prince em direção ao interior do país, não pode desembarcar como um homem
branco.
André e Kirk olharam-no, espantados.
- Os poucos brancos que há em Port-au-Prince são americanos que trabalham com as
armas e munições. São apenas tolerados por Dessalines. Se sair da cidade com esta pele
branca, estará fazendo um convite à morte, logo nos primeiros quilômetros de estrada.
- Então, o que sugere? - Kirk perguntou. Jacques examinou André dos pés à cabeça.
- Vai dar um bonito mulato!
- Um mulato!
- Felizmente, o seu cabelo é escuro - Jacques disse. - Precisamos apenas cortá-lo um
pouco. Se tivesse olhos azuis ou cinzentos, tudo seria mais difícil. Mas são escuros o
suficiente, monsieur, e combinam com uma pele da cor da minha.
- Devo dizer que nunca pensei em me disfarçar.
- Então, morrerá! E se Dessalines e seus seguidores estiverem envolvidos no
acontecimento, posso-lhe adiantar que não será uma morte agradável!
- Compreendo! - André disse, rapidamente.
Lembrou-se das atrocidades sofridas, não apenas pelos franceses, mas também por
alguns mulatos. Certa vez, Dessalines chamou um homem ao seu quarto e, enquanto
conversavam, esfaqueou-o no coração. Jacques Déjean estava certo, pensou. Precisava se
disfarçar, para que ninguém, no Haiti, suspeitasse de que era branco e, principalmente,
francês.
- Agora vou para casa - Jacques disse - e voltou com a tinta de uma certa árvore. Ela
é exatamente o que você precisa para disfarçar sua cor. Sugiro também, monsieur, que
escolha roupas bem espalhafatosas e complicadas. Nós, mulatos, gostamos de aparecer!
Dirigiu-se à porta e perguntou:
- Sabe um pouco da língua nativa?
- Estive aprendendo, neste último ano - André respondeu. - Só sei o que li em livros.
Mas um mulato a bordo deu-me algumas aulas.
- Isto é ótimo. Os mulatos são sempre, como Kirk pode lhe dizer, extremamente
educados. Tenho muitos diplomas para provar minha inteligência, mas prefiro confiar mais no
instinto.
André riu e Jacques saiu da cabine. Depois, sentou-se para esperar, pacientemente, a
volta do outro.
Já era quase noite, quando dois mulatos desceram da escuna americana. André fora
completamente pintado com uma tinta que cheirava terrivelmente mal.
- Algum tempo depois de aplicada no corpo - Jacques disse -, o cheiro desaparece.
Mas não precisa apenas de uma pele escura para o seu disfarce. Tem que mudar o seu
modo de pensar.
Pela primeira vez, havia uma certa amargura na voz de Jacques.
- Os mulatos foram subjugados continuamente pelos brancos, o que os fez passar,
definitivamente, para o lado dos negros.
- Ouvi falar sobre isso - André disse.
- Os negros nunca nos apreciaram nem confiam em nós, mas, como temos uma
educação superior e, em muitos casos, chegamos a posições importantes, eles nos acham
úteis. Ao mesmo tempo, vivemos em um território estranho, entre os brancos e os negros, o
que não é uma posição agradável.
- Compreendo, e agradeço muito por me ajudar.
Enquanto conversavam, André era coberto, de cima a baixo, com a tinta que agora
evaporava. Olhou-se no espelho, com ar crítico.
Não restava dúvida de que aquilo tinha alterado sua aparência. Já vira homens tão
bronzeados como estava agora. Imaginou se ninguém desconfiaria.
Como se Jacques percebesse suas dúvidas, esclareceu-as:
- Coloque-se no papel. Você é um mulato. . . sempre um pouco inseguro, sempre na
defensiva.
Sorriu e continuou:
- Pense no que os americanos dizem: "uma sombra por trás dos ombros". Os mulatos
são assim.
- E de onde eu vim? Qual é a minha história?
- Nasceu no Haiti, mas estudou nos Estados Unidos. O seu nome é André. Não
precisa mudá-lo. Acho também que pode dizer ser um Villaret. Afinal, o seu pai era um
homem branco e você tem o nome dele, e não o de sua mãe.
- Está sugerindo que eu diga ser filho de Phillippe de Villaret, que na verdade era meu
tio.
- Por que não? Assim, se fizer perguntas sobre a fazenda Villaret. todos
compreenderão sua curiosidade. Sendo mulato, não provocará muito alarde.
- Isso foi, realmente, muito inteligente - Kirk disse. Ele havia entrado no quarto, e viu
André terminar o disfarce.
- Muito inteligente! - André concordou. - Obrigado, Jacques.
- Tudo que tem a fazer agora é levar a coisa adiante - Jacques disse. - Está por sua
conta.
- O que faço agora?
- Vamos descer em terra. Você diz que esteve na América e acaba de regressar. Isto
lhe possibilita fazer muitas perguntas sobre o que aconteceu por aqui, durante a sua
ausência.
Fez uma pausa e depois disse:
- Ainda não conhece Orchis, mas já ouviu falar dela. Orchis só passou a dominar Port-
au-Prince depois que se mudou para a mansão Leclerc.
- Foi Dessalines quem a instalou lá? - Kirk perguntou.
- Acho que ela mesma se instalou - Jacques respondeu. - Está determinada a se
transformar em uma grande dama. Se o vodu funcionar, a esposa de Dessalines pode até
morrer. Neste caso, Orchis subirá ao trono. Pelo menos, é o que ela pensa.
- Dessalines é muito apaixonado por ela?
- Ele gosta das mulheres educadas, sofisticadas e experientes, Kirk. Orchis é tudo
isso. Tem também todos os deuses a seu favor e eles são muito poderosos.
- Está falando do vodu? - André perguntou.
- Que mais poderia ser?
- Pensei que fosse proibido.
- E é. Tanto Dessalines quanto Christophe o condenam. Dizem que são restos da
servidão, religião de escravos.
- Mas continuam a praticá-lo.
- Claro que continuam! - Jacques respondeu. - O vodu é parte de todo negro, é parte
de todos os que vivem no Haiti. Não conseguem viver sem ele. Está presente também na
mente dos católicos. Não se sabe dizer onde o vodu termina e começa o catolicismo.
- Você me espanta!
- Aprenderá depressa, monsieur. Agora, vamos procurar madame Orchis. Você verá
que ela parece uma serpente, mas tem um rosto bonito. André se despediu de Kirk e desceu
em terra, com uma sensação de irresponsabilidade e excitação.
Ali começava sua grande aventura. Era onde ia testar sua vontade contra a do tirano e
seus seguidores.
Ficara contente, ao saber que Dessalines estava ausente, liderando um ataque militar
na região dominada pelos espanhóis.
- Ele vencerá? - Kirk perguntou, quando Jacques lhe disse onde estava o imperador.
- Duvido. Os espanhóis estão muito bem entrincheirados e são bons guerreiros.
- E se ele falhar?
- Sem dúvida, tentará novamente, com mais armas americanas e melhores canhões.
Então, talvez consiga vencer.
Enquanto permaneceram a bordo, Jacques tinha sido muito espontâneo em tudo que
falava, sem ter medo de fazer comentários sobre o recém-coroado imperador. Mas, logo ao
descerem em terra, André percebeu que ele estava em guarda.
Tomaram uma carruagem e, temendo que o cocheiro ouvisse a conversa, Jacques
falou apenas sobre assuntos triviais. Dirigiram-se a uma rua estreita, cheia de casas de
madeira.
Pararam na casa de Jacques, onde André deixou a bagagem. Era uma residência
grande, de madeira, toda pintada de verde.
- Port-au-Prince está ficando em moda - ele disse -, mas, como todos temem uma
revanche dos franceses, não gastam dinheiro em nada que possa ser destruído por um tiro
de canhão.
André sabia que ele se referia ao fato de Christophe ter destruído completamente Lê
Cap, o porto do outro lado da ilha, quando a armada francesa se aproximou.
O general Leclerc encontrou a cidade em ruínas, toda queimada. Contava-se que sua
esposa, Pauline Bonaparte, tinha chorado ao ver aquilo. Entretanto, ela logo se consolou,
com uma bonita casa em Port-au-Prince: a mansão Leclerc, onde agora Orchis vivia.
Quando a carruagem em que iam passou por impressionantes portões de ferro,
entraram em uma alameda cercada dos dois lados por uma espessa vegetação tropical. À
frente, André viu uma casa imensa, de pedras cinzentas e pilares em toda a frente.
Antes, a guarda usava uniforme branco e vermelho, como os franceses. Agora, só
havia mulatos em roupas complicadas, cor de vinho, que de modo educado lhes davam as
boas-vindas e os conduziam aos aposentos da madame.
Jacques cochichou que Pauline achara os mulatos muito mais bonitos e interessantes
do que os oficiais franceses. Por isso, Orchis também só tinha empregados mulatos.
No tempo de Pauline, eles usavam um uniforme desenhado pela própria madame
Leclerc, muito justo, de modo a ressaltar ainda mais os seus encantos.
André viu que Orchis seguia o exemplo da princesa.
Desceram vários degraus. Sob um pórtico grego, sustentado por colunas e se
encontraram caminhando ao lado de uma piscina octogonal, onde avia um chafariz de água
cristalina.
A decoração era composta por arbustos e árvores altas. Duas portas de madeira
entalhadas se abriram e ambos foram conduzidos à presença de Orchis.
O aposento era todo enfeitado por colunas e janelas sem cortinas, por onde entrava
um ar quente e úmido. O ambiente se dividia em duas partes.
Numa extremidade, elevada a meio metro do solo, ficava uma enorme cama, em
forma de cisne, cheia de almofadas de cetim e renda. Orchis estava deitada, usando um robe
de chiffon amarelo pálido, transparente o suficiente para revelar os bicos escuros dos seios.
Perto da cama, havia bancos de mogno pesado, no estilo napoleônico, onde se
acomodava quase uma dúzia de homens.
A maioria era negra. Havia, entretanto, alguns mulatos, quase todos usando os
uniformes bordados do Exército do imperador.
Todos se comportavam de modo subserviente e atencioso. Empurravam-se uns aos
outros, na tentativa de chegar mais próximos ao leito dela, atrair sua atenção e demonstrar
admiração.
Como se gostasse de novidades no seu círculo de admiradores, Orchis ficou contente
ao ver Jacques. Chamou-o pelo nome e lhe estendeu a mão.
Ele se aproximou do leito, seguido por André, que agora podia vê-la de perto.
Orchis não era nada do que havia esperado. Na verdade, tratava-se de uma mulher
exótica e diferente, como seu próprio nome. Nunca imaginou que alguém fosse ao mesmo
tempo tão bonita e tivesse uma expressão tão diabólica.
Seus braços nus, seu rosto, tudo que aparecia do seu corpo era de um tom dourado
suave. Os lábios cheios, vermelhos, eram provocantes e, ao mesmo tempo, misteriosos. Os
olhos verdes pareciam cheios de segredos, exigentes e possessivos. Quando olhava um
homem, penetrava profundamente em seu coração, para mantê-lo cativo.
Tudo nela era sedutor e sensual. Era uma felina... um animal primitivo e selvagem da
floresta, tentadora como a serpente no jardim do Éden.
- Jacques! - ela disse, de um modo que mais parecia uma carícia. - Por que demorou
tanto para vir me ver?
- Fui a Lê Cap. Mas, agora que voltei, trouxe alguém que ainda não conhece e que lhe
pode contar as últimas novidades da América.
- América!
Pousou os olhos em André e ele se sentiu despido. Obviamente, ficou contente com o
que viu, pois lhe estendeu a mão, dizendo:
- Precisa me contar qual é a última moda e quantos novos milionários há naquele
próspero país.
- Há muitas coisas que gostaria de lhe contar.
Orchis olhou-o por baixo dos cílios, como se o estivesse avaliando. Então, de repente,
bateu palmas e, com ar de rainha, disse:
- Saiam... vocês todos! Tenho que discutir algumas coisas em particular com estes
amigos e vocês fazem barulho demais. Saiam!
- Como pode ser tão cruel, madame? - um oficial perguntou. Usava tantas ombreiras
de ouro que seus ombros pareciam artificialmente altos e largos.
- Algum dia fui cruel com você, Réné? Venha amanhã e, talvez, eu o receba a sós.
Não havia dúvidas do que ela queria dizer com aquele convite. Réné ficou
entusiasmado com a honra.
Beijou os dedos dela e todos saíram, sem ousar desobedecer. Orchis ficou sozinha
com André e Jacques.
- Sentem-se, mês braves. Querem vinho?
- Você já me sobe à cabeça, Orchis. Não preciso de vinho - Jacques respondeu,
galante.
- Está sempre elogiando e, geralmente, sem sinceridade - Orchis respondeu. - O que
fez com aquela pequena poule que tomou meu lugar no seu coração?
- Ninguém nunca conseguiu isso - Jacques protestou. - Enquanto estive fora, ela
encontrou outro protetor, um general. Não posso me comparar com ele.
Falou de um modo que fez Orchis rir divertida. Depois, virou-se para André e disse:
- Não acha uma boa ideia usar o uniforme dos no dos haitianos?
- Sou um homem de negócios.
- E, falando em uniformes - Jacques interrompeu, chegou da América com os dois mil
uniformes que o imperador encomendou.
- Chegaram? Jean-Jacques vai adorar! Espero que os recebamos a tempo de
comemorar a vitória sobre os espanhóis.
- Uma batalha não revela toda a beleza dos uniformes - Jacques disse. - É melhor
guardá-los para a celebração.
- Naturalmente. Só espero que os uniformes desenhados pelo imperador sejam tão
bonitos quanto ele os imagina. Caso contrário, certas cabeças rolarão.
Jacques estendeu as mãos.
- Não a minha! Não tenho nada a ver com isso. A coincidência foi o meu amigo, André
de Villaret, ter vindo junto com os uniformes.
Orchis inclinou a cabeça.
- Parece que conheço o seu nome.
- Era um nome muito conhecido, antes da Revolução.
- Quer dizer que havia algum Villaret importante no Haiti?
- Foi uma das fazendas mais prósperas daqui e o dono era o pai de André.
- Oh, naturalmente! Por isso reconheci o nome. Bem, imagino que não pretenda
trabalhar nos campos de algodão, ou sei lá o quê cultivam!
- Não pretendo!
Achou que Jacques tinha mencionado muito cedo a fazenda. Procurou mudar de
assunto.
- É muito bonita, madame. Ouvi falar dos seus encantos, antes de ir para a América.
Mesmo em Boston, ouvi comentários sobre sua beleza. Agora, não tenho palavras para
descrevê-la.
Orchis fez um movimento sensual na direção dele e, por um momento, suas mãos se
tocaram. Ele sentiu como se a língua de uma serpente passasse rapidamente sobre sua
pele.
Então, novamente, ela pareceu avaliá-lo por trás dos cílios espessos. Sentiu-se como
se usasse um dos uniformes colantes dos empregados mulatos.
- Precisa jantar comigo. Prometi a um certo oficial que estaria sozinha esta noite, mas
mudei de ideia.
Estendeu a mão para Jacques.
- Quando sair, querido, avise os empregados que não devo ser perturbada, por
nenhum motivo!
- Levarei seu recado. Só espero não encontrar o convidado rejeitado, com uma
espada na mão.
- Você conseguirá sobreviver. Sempre consegue. E, como nós dois sabemos, sempre
se torna indispensável.
Jacques beijou-lhe a mão e dirigiu-se para a porta.
- Tem muita sorte, André - disse, enquanto saía.
- Quase não consigo acreditar na minha boa sorte. - André respondeu.
A porta se fechou atrás de Jacques. Orchis e André ficaram sozinhos. Ela virou-se
para ele. Sabendo o que o esperava, sentou-se do outro lado da cama, encarando-a.
- É muito bonito, mon ami, mas será que é tão másculo como aparenta - Espero que
sim, porque, entre todas as mulheres bonitas que conheci, você é a mais feminina.
Sentiu que as mãos dela o acariciavam. Então, como era impossível não ficar atraído
por ela, pelo convite de seus lábios e a tentação de seus olhos, ele se inclinou.
Os lábios dela se colaram aos dele e as unhas longas arranharam suas costas.
Olhou-a nos olhos, profundamente, e se viu nadando em águas perigosas.
Fogos de artifício pareciam explodir em sua mente e não conseguiu pensar em mais
nada.

CAPÍTULO II

Amanhecia, quando André saiu da mansão Leclerc.


Levantou-se, enquanto Orchis ainda dormia. Vestiu-se, achando que seus dedos
estavam inchados e que as pernas não o obedeciam.
Nunca, em toda a vida, havia passado uma noite como aquela. Mesmo dormindo, a
mulher parecia lhe enviar vibrações.
Tinham jantado juntos, sob as estrelas, no jardim ao lado da sala de banquetes, à luz
de castiçais.
Só se ouvia o som da água caindo de uma fonte e o barulho do vento na vegetação
tropical.
Tomaram vinho e saborearam os deliciosos pratos crioulos. Orchis insistiu para que
André provasse algo que mais tarde ele conheceria como "cerveja do diabo".
Parecia um licor com perfume estranho. O gosto era diferente de tudo que ele já havia
tomado.
Depois de terminar seu copo, sentiu o corpo queimando, como se uma corrente de
fogo percorresse cada nervo, chegando até o cérebro. Já não pensava em nada, sentia
apenas um desejo imenso por Orchis, de um modo que sabia não ser natural, mas
irresistível.
Mais tarde, quando se deitaram, exaustos, no leito em forma de cisne, ele forçou-se a
lembrar por que estava ali e disse:
- Gostaria de colocar esmeraldas em seu pescoço, para combinar com o verde dos
seus olhos, e rubis em suas orelhas, iguais ao vermelho dos seus lábios. Entretanto, não
posso, não tenho dinheiro.
- Dinheiro não tem tanta importância, quando um homem é um homem. E é isso, sem
dúvida, que acontece com você, mon cher.
- Acha - perguntou André, escolhendo com cuidado as palavras que há algum dinheiro
ou tesouro enterrado na fazenda Villaret?
- Quer saber se o imperador escavou aquela fazenda, como escavou todas as outras?
- Ela riu, um riso que não tinha nada de agradável. - O meu Jean-Jacques é terrível. Ele
encontra todos os cofres secretos em que os brancos colocam seus tesouros, pensando que
estão seguros. Mas o imperador diz que há muito ouro à disposição dos brancos, no outro
mundo. Não precisarão mais usar o que deixaram aqui.
- Eu gostaria de ter um pouco deste ouro, para colocá-lo aos seus pés.
- Há outro presente que prefiro, no momento.
Virou-se para ele e seus lábios e mãos se encontraram novamente, acendendo em
André um fogo que pensava já estar extinto. Mais tarde, ele tentou outra vez.
- Ajude-me a encontrar o que me pertence, não pela lei, mas por direito natural. Por
que meu pai não deveria pagar por meus prazeres, já que não me aceitou como seu filho?
Orchis fez um ar de aborrecimento.
- Os brancos são sempre assim, os porcos sujos. Acho que devemos nos livrar deles.
Aqueles que sobraram serão punidos com algo pior do que a morte.
Falou com tal violência que André percebeu uma imitação de Dessalines.
Entretanto, era muito desagradável ouvir uma mulher falando daquele jeito e se
divertindo ao lembrar da agonia dos que haviam morrido.
Era igual ao imperador, em sua sede de sangue. André precisava ser cuidadoso e
parecer simpatizante das ideias dela. Tinha que dar a impressão de desejar a morte de todos
os brancos e apoiar os que estavam no poder.
- Ajude-me a realizar minha vingança particular - ele pediu contra o homem que
possuiu minha mãe à força e me fez nascer num mundo difícil, onde não sou branco nem
negro.
- Ele certamente lhe deu algo de que pode se orgulhar - Orchis brincou.
Passou os dedos pelo corpo dele e continuou:
- Tenho uma boa memória e o imperador sempre confiou em mim, mas não me
lembro de nada vindo da fazenda Villaret. Se ele encontrou algo, certamente foi de pouca
importância.
Era aquilo que André queria saber. Foi esperto o suficiente para dizer:
- Que o meu pai queime no inferno por me deixar sem nenhuma herança, a não ser a
minha inteligência.
- Ele lhe deu também... este corpo - Orchis disse, como se o acariciasse.
Então, ele não conseguiu conversar mais...
Quando se levantou para partir, tomou cuidado em não acordar a mulher. André
olhou-a e, de repente, sentiu uma revolta imensa, que não sabia explicar.
Mesmo dormindo, ela era linda, com a graça e a sinuosidade de uma serpente.
Sentiu um arrepio e lembrou quanto ela o havia excitado a noite toda. Enlouquecido
por aquela bebida estranha, ele se tornara quase um animal.
Caminhou pela alameda. O ar úmido; batendo em seu rosto, não era bastante frio
para despertá-lo. De repente, desejou o inverno inglês, com o vento soprando do norte e o
frio intenso da neve.
Do lado de fora dos portões, viu uma carruagem. Os cavalos pareciam cansados e
sonolentos e o cocheiro dormia, enroscado no assento.
Acordou-o. O homem se espreguiçou e perguntou em crioulo:
- Para onde, m'úeur?
- Esperou aqui a noite toda? O negro fez que sim.
- Há sempre um cavalheiro cansado demais para andar, saindo pela manhã, da
mansão Leclerc.
André entrou na carruagem e desceram a montanha, em direção à cidade.
Um empregado deixou-o entrar na casa de Jacques Déjean, onde ele e Kirk ficariam
hospedados.
Sentia-se tão cansado que não conseguiu subir a escada de madeira.
Atirou-se em uma cama no térreo, achando que jamais chegaria ao primeiro andar.
Dormiu, assim que encostou a cabeça no travesseiro.
Era quase meio-dia, quando Kirk entrou no quarto e o acordou.
- Bom dia, "Romeu!" Não parece tão ardente agora como na noite passada.
André gemeu.
- Senti inveja de você, quando foi se encontrar com a deliciosa Orchis - Kirk continuou
-, mas agora acho que foi melhor ter ficado jogando cartas com Jacques.
André sentou-se na cama.
- Peça um café para mim e, pelo amor de Deus, pare de fazer gracinhas a esta hora
da manhã.
Kirk riu e se atirou em uma poltrona confortável, perto da janela que dava para uma
sacada.
- Está de péssimo humor e não vou provocá-lo, perguntando o que aconteceu. Já sei,
só de ver as suas olheiras.
André gemeu outra vez e se recusou a conversar, até que um empregado lhe trouxe
café com croissants quentinhos.
- Quero tomar um banho - disse, enquanto tomava a xícara de café de um só gole.
- O empregado arranjará tudo. Mas Jogo verá que não é no estilo americano.
- Quero me sentir limpo e isso se aplica tanto à minha mente quanto ao corpo.
- Está de ressaca. Esta é a palavra certa para o que sente. Ficará bom com alguns
exercícios. Foi exatamente isso que Jacques lhe preparou.
André o olhou, curioso, e Kirk prosseguiu:
- Vai partir hoje e acho que Jacques está certo. Seria um erro ficar mais tempo por
aqui. Apesar de parecer um mulato, pode ser que os outros mulatos percebam o disfarce.
- Também temo isso. Havia mulatos no quarto de Orchis, na noite passada.
Felizmente, como ela estava lá, eles não me olharam muito. Você passaria num exame
superficial. Mas Jacques estava me contando como é importante que pense como mulato. E
isso, como sabe, não é fácil.
- Tentarei. E tomarei todas as precauções. Se tiver contato com Dessalines, sei que o
menor descuido poderá ser fatal.
- Descobriu se o tesouro do seu tio ainda está na fazenda?
- Acho que sim. Dessalines nunca mencionou a Orchis ter trazido nada daquela
fazenda, e sei que ela confere cuidadosamente, para saber o que veio das escavações.
- Jacques disse que ele tem uma quantia enorme em dinheiro e jóias escondidas.
Descobriu algo importante?
- Não houve tempo para muita conversa! A não ser durante o jantar, quando falei
sobre a América, e sobre coisas em que não estava realmente interessado.
Só depois de André ter tomado banho, e estar se vestindo, foi que Jacques voltou.
- Já acertei tudo para você deixar Port-au-Prince esta noite. A menos que Orchis
tenha dito que não há mais nada na fazenda. Então, não precisa fazer a viagem.
- Orchis disse que Dessalines nunca mencionou a fazenda Villaret ou algo especial
trazido de lá - André respondeu. - Tem certeza de que ele não encontrou nada importante.
- Eu lhe disse que Orchis era esperta. Se o seu tio era rico e sua tia possuía jóias de
valor, ela sem dúvida se lembraria.
- Então, preciso tentar encontrar o tesouro.
- Mas, primeiro, precisa de algo muito necessário, para não ser detido logo nos
primeiros quilômetros da estrada.
- O que quer dizer? - perguntou, preocupado.
- Precisa escrever uma carta agradecendo gloriosamente a Orchis e lhe mandar um
imenso buque de flores.
André pareceu confuso.
- Devia ter pensado nisso.
- Pauline Leclerc estava sempre rodeada de flores. Ganhava tantos buquês, que os
empregados nem sabiam o que fazer com eles. E tudo que Pauline recebia, Orchis também
quer. Escreva uma carta muito eloquente. Deve ser fácil para um francês, quanto mais para
um mulato. Mas não assine.
André fez cara de espanto e Jacques explicou: - Orchis desafia Dessalines com suas
conquistas, para torná-lo ciumento. Se pensar que você é um amante melhor do que ele,
Dessalines sem dúvida mandará matá-lo!
- Preciso admitir que o Haiti é um lugar muito perigoso para se viver! - disse,
brincalhão.
Kirk, que estava ouvindo, comentou:
- Mude de ideia. Vá para a escuna e espere por mim. Podemos voltar juntos a Boston.
- Não vou fazer nada disso! Ao mesmo tempo, gostaria de poder deixar a fuga
preparada. Assim, quando precisar sair do Haiti, haverá um barco esperando, para me levar
embora.
- Há duas alternativas - Jacques disse, antes que Kirk pudesse falar. - Primeiro, você
volta a Port-au-Prince, o que, se tiver encontrado o tesouro, será um risco desnecessário.
Não apenas Dessalines, mas muitas pessoas e inclusive Christophe farão o possível para
que não leve nada. Acham que tudo que é encontrado aqui pertence a eles.
André esperou que Jacques continuasse:
- Se encontrar o tesouro, sua única chance é ir a Lê Cap. A distância entre esse lugar
e a fazenda do seu tio é quase a mesma daqui.
- Acha que haverá um barco americano em Lê Cap?
- Pode haver. Muitos canhões e munições que os americanos estão enviando ao Haiti
são desembarcados lá. Há também chances de encontrar um barco inglês.
- Inglês?
- A marinha britânica está patrulhando a região que vai da Jamaica até Windward
Passage e a saída para o Atlântico. Por isso, o imperador sabe que, no momento, está a
salvo de uma invasão francesa, por mar.
- Claro. Agora compreendo por que Dessalines foi atacar a parte espanhola da ilha.
- Há muitas tropas brancas e negras lá - Jacques respondeu. Christophe avançou de
Lê Cap em direção à costa norte, para ajudá-lo. Portanto, no momento, o seu caminho está
limpo, tanto daqui até a fazenda do seu tio, como de lá até Lê Cap.
- Como posso agradecer a sua ajuda?
- Tenho um cavalo esperando, e um empregado vai acompanhá-lo.
André pareceu surpreso e ele explicou:
- Precisa de alguém que conheça o interior do país. Precisa também de um homem
que fale o dialeto do povo com o qual terá contato e onde conseguirá comida.
- Sinto que lhe devo muito.
- O homem que escolhi para acompanhá-lo é alguém muito especial. Pode confiar
nele, como confiou em mim. Seu nome é Tomás. Apesar de ter sofrido as crueldades de um
amo francês, despreza, tanto quanto eu, o tirano que nos governa agora.
Logo depois de uma refeição leve, André disse que estava pronto para partir. Deu a
Jacques a carta, com uma quantia em dinheiro para que comprasse as flores de Orchis.
A carta era muito floreada, poética. Esperava que agradasse uma cortesã de qualquer
nacionalidade.
Os olhos de Jacques brilharam, ao lê-la.
- Excelente. É difícil acreditar que você tenha algum sangue inglês.
- Está insinuando que os ingleses são frios? Se um dia for à Inglaterra, terá uma
surpresa!
Pensava nas mulheres que haviam correspondido ao seu amor, não com a paixão
física de Orchis, mas com muito ardor e entusiasmo.
- Mandarei um criado levar a carta e um buque de orquídeas até a mansão Leclerc,
logo que você sair da cidade.
- Acha que Orchis pode querer me ver outra vez?
- Dificilmente ela deseja o mesmo homem mais do que uma noite, mas é uma mulher
imprevisível.
- É melhor não se arriscar - Kirk disse.
- Estou tentando prever tudo que pode acontecer - Jacques falou, sorrindo. - Conheço
Orchis há muitos anos e sei que é melhor prevenir, quando se trata dela.
O criado levou a bagagem e André se despediu.
- Por favor, deixe-me pagar por tudo que lhe devo. O cavalo e todas as despesas que
fez por minha causa.
Jacques sorriu.
- Tudo é parte do que devo ao meu amigo Kirk. Devo a ele a minha vida. Como posso
aceitar, em troca dela, algo tão desprezível como dinheiro?
Todos riram e Jacques garantiu que, se André insistisse, estaria ofendendo sua
dignidade de mulato.
André compreendeu que aquele orgulho era falta de confiança em si mesmo, por
causa de sua origem e do modo como tinha sido tratado. Dava prazer ao mulato pensar que
era importante para os brancos.
Na verdade, pensou, estaria completamente perdido se ele não o tivesse ajudado.
Foi com um sentimento de superioridade que Jacques decidiu tornar André bem-
sucedido em sua busca. Escolheu o disfarce e estabeleceu o roteiro da viagem.
Esperou que o criado saísse do aposento e disse:
- Na sua bagagem, coloquei um saco com a tintura para a sua pele.
- Quando devo usar novamente?
- Daqui a duas ou três semanas, porque apliquei uma camada bem grossa. Está com
uma cor mais escura do que a minha e a da maioria dos mulatos. Mas, há algo que precisa
tingir com mais frequência: a meia-lua das suas unhas.
André olhou as mãos, enquanto ele falava.
Lembrou-se de que Jacques tinha sido muito cuidadoso em escurecer a base de suas
unhas.
- Na verdade, vai encontrar muitos mulatos claros - Jacques explicou - e não o
reconhecerão, a não ser por um detalhe: a meia-lua dos mulatos verdadeiros tem sempre
uma tonalidade escura. As unhas crescem depressa. Portanto, tome muito cuidado: um traço
branco na base, perto da cutícula, poderá denunciá-lo instantaneamente.
- Lembrarei. E obrigado, mais uma vez. Despediu-se de Kirk, perguntando:
- Quando voltar para a América, posso ir direto para Boston?
- Sabe que será sempre bem-vindo. Minha família ficou encantada com você.
André virou-se para Jacques.
- Kirk me contou que você o informou da morte do meu tio e dos três filhos dele. Tem
alguma ideia de onde foram enterrados?
- Soube que todos os moradores da fazenda morreram no massacre: seu tio, sua tia,
os três filhos, a garotinha que adotaram e levava o nome de Villaret e também alguns amigos
que estavam escondidos lá. Foi tudo o que descobri, quando Kirk me pediu para fazer
algumas perguntas.
Fez uma pausa e continuou, baixinho.
- Não é costume de Dessalines enterrar aqueles que destruiu. Geralmente,
permanecem atirados sobre a terra que possuíam ou seus corpos são jogados em
desfiladeiros, se houver algum por perto.
Jacques hesitou, antes de continuar:
- Acredito que os homens foram torturados. É um método de morte comum, no Haiti.
Mas não tenho informações detalhadas sobre o que aconteceu.
André apertou os lábios. Despediu-se de Kirk mais uma vez e caminharam todos até o
pé da escada.
Na parte de trás da casa, onde ninguém os veria, estavam dois cavalos. Tomás
segurava as rédeas. Era um negro retinto, e seu rosto tinha uma estranha beleza, com um
largo sorriso.
O cabelo agarrava-se à cabeça, encarapinhado e preto, a testa era baixa e os olhos,
muito inteligentes.
André gostou dele à primeira vista e sentiu que se tratava de um homem honesto.
Estendeu-lhe a mão.
- Prazer em conhecê-lo, Tomás. Estou satisfeito em que me acompanhe nesta
viagem.
O negro hesitou: nunca havia apertado a mão de um branco. Então, esticou a mão
imensa e fortíssima.
- Tomás cuidará de você - Jacques disse. - Confie nele e não guarde nenhum
segredo.
Tentou expressar sua gratidão, mais uma vez. Depois, montou e, acompanhado de
Tomás, saiu do pátio.
Quase imediatamente, começaram a subir as montanhas.
André percebeu que evitavam as ruas mais movimentadas e se mantinham nos
caminhos estreitos e empoeirados.
Olhando um mapa, na casa de Jacques, tinha visto que, para chegar à fazenda do tio,
precisava viajar ao longo do canal St. Mark, depois subir as Montanhas Negras e chegaria ao
vale onde Phillippe de Villaret havia se estabelecido.
No mapa, vira também que a distância entre a fazenda e Lê Cap era a mesma entre
esta e Port-au-Prince.
Estava tranquilo em saber que Lê Cap se submetia agora ao comando de Henry
Christophe, apesar de não ter nenhuma vontade de encontrá-lo. Na verdade, este general
queimara toda a cidade e também sua magnífica mansão, ao ver o sinal de barcos franceses
chegando para a invasão.
Christophe matara muitos brancos, mas tudo que se dizia sobre ele provava ser
menos cruel e menos tirânico do que o imperador.
O general também estava determinado a se livrar do domínio francês. Mas sempre
dizia que era melhor ter amigos entre os povos brancos, como os americanos e ingleses, que
podiam ajudá-lo.
No momento, tanto Christophe quanto Dessalines estavam ocupados, lutando contra
os espanhóis. André rezou para que sua busca não fosse muito demorada.
Quando já tinham se afastado bastante da cidade, dirigiram-se a uma estrada
costeira. Puxou conversa com Tomás.
- Tomás, monsieur Jacques lhe disse o que procuro?
- Sim, m'sieur, mas não vai ser fácil.
- Ele lhe disse que tenho uma indicação de onde o dinheiro pode estar escondido?
- Disse, m'sieur.
André tirou do bolso a carta do tio e, em voz alta, leu para Tomás a frase mais
importante.
- Tenho certeza de que isso significa que ele escondeu o dinheiro perto da igreja.
Tomás não falou nada. Andaram em silêncio e então o negro disse:
- Vamos encontrar a igreja.
- Deve haver uma.
Passaram a primeira noite em uma casinha coberta de palha, uma caille, num
pequeno vilarejo.
Era grande o número de telhados de palha, sobre paredes de madeira ou barro. Cada
casa tinha seu pequeno jardim ou quintal, cercado e enfeitado com cactus.
- Boas pessoas - Tomás observou. - Não fazem perguntas.
Parou o cavalo, desmontou e entrou na caille mais próxima para conversar, durante
um longo tempo, com um velho que fumava um cachimbo de barro.
Quando voltou, sorria.
- bom abrigo. A caille é nova, mas está vazia.
Ficava um pouco distante das outras e, pelo que Tomás disse, acabara de ser
construída. A palha ainda estava fresca e o barro das paredes, úmido.
Dentro era muito limpa. Tomás esticou um tapete, sobre o qual André dormiria.
Tinham trazido comida para dois dias.
"Confie em Tomás", Jacques tinha dito. "O que ele encontrar pode não parecer muito
gostoso, mas o manterá vivo. "
Saborearam galinha, ovos cozidos e peixe frio, preparado em um delicioso molho
crioulo.
André comeu tudo que o negro lhe ofereceu, sabendo que poderia ser sua última
refeição decente, durante um longo tempo.
Por causa da aventura da noite anterior, ainda se sentia cansado. Deitou-se no tapete
e dormiu imediatamente. No dia seguinte, Tomás o acordou bem cedo, dizendo que
precisavam continuar a viagem.
Tomaram uma xícara de café e comeram um bolinho francês seco. André colheu
laranjas. Estavam suculentas e doces.
Havia também muitas bananeiras pelo caminho. Mesmo se não comesse os alimentos
a que estava acostumado, dificilmente passaria fome. Viraram em direção às montanhas.
Logo tiveram uma vista panorâmica de toda a ilha e, ao longe, o mar azul.
Às vezes precisavam cavalgar lentamente, entre as árvores que escureciam a floresta,
formando um estranho ambiente, quase místico.
Flores de cores brilhantes surgiam de todos os lados, entre as quais orquídeas verdes
e brancas.
Elas fizeram André pensar em Orchis. Não conseguiu afastar a lembrança de seu
corpo sensual, seus lábios exigentes e os braços macios e envolventes.
Sacudiu a cabeça, tentando se livrar das recordações.
Ela era como uma parasita, pensou; se enroscava em um homem e podia apertá-lo
tanto, que ele já não teria vontade própria, tornando-se apenas um escravo de seus desejos,
Naquela noite, não tiveram muita sorte.
As casinhas pelas quais passaram não agradaram a Tomás. André sentiu que o
criado tinha medo da floresta.
Em determinado ponto do caminho, onde uma trilha cruzava com outra, havia um
grande mastro. No alto, estava pendurado um bode preto, estrangulado, amarrado pelos
chifres.
Tomás lhe havia dito que as encruzilhadas eram consideradas lugares sagrados, onde
costumava haver um pequeno altar, erigido por algum habitante do local; um loa.
- Está me dizendo que isso é parte do vodu, Tomás?
- Sim, m'sieur
O modo como falou e seu jeito de olhar o loa revelaram que era um praticante de vodu
e não diria mais nada.
Agora, olhando o bode negro, a expressão dele era de terror.
- O que significa, Tomás?
- Vodu, m'sieur. Feitiçaria de Pedro.
- Quem é ele?
- Pedro é mau! Cuba bom. Magia negra!
André teve vontade de rir do jeito do outro falar. Mas sabia que o negro levava a sério
tudo aquilo. Depois de um momento, perguntou:
- Quem são os deuses bons? Quais as divindades que você cultua? Achou que
Tomás não ia responder, mas ele disse:
- Damballah, m'sieur. Damballah Weydo é um grande deus. Ele o ajuda.
- Espero que ajude mesmo!
- M'sieur não odeia vodu? - Tomás perguntou, cauteloso.
- Por que deveria odiar? Não sei muito sobre isso, mas acho que todo homem tem o
direito de acreditar na religião que ele próprio escolher.
Viu uma expressão de alívio no rosto do negro e continuou:
- Nasci e fui batizado como católico, mas tenho muitos amigos que são protestantes,
budistas e maometanos. Eles são, acredito, tão bons ou maus quanto eu mesmo. Só os
avalio por suas ações e pelo bem que fazem.
Tomás olhou o bode. Então, enquanto prosseguiam, aproximou o cavalo do de André
- Damballah vai ajudá-lo, m'sieur. Vai ajudá-lo a descobrir onde o tesouro está
escondido.
- Se ele me disser isso, vou ouvi-lo com muito respeito. Depois, lhe farei uma
oferenda, para expressar minha gratidão.
Tomás fez que sim.
- Deixe tudo comigo, m'sieur - e continuaram cavalgando, sem discutir mais o assunto.
Passaram uma noite desconfortável numa clareira. As árvores se erguiam altas e os
galhos pareciam prestes a despencar sobre suas cabeças. André lembrou-se de uma
enorme catedral.
Sabia, entretanto, que Tomás não se sentia à vontade e dormiu pouco. Aos primeiros
sinais do amanhecer, montaram e partiram.
Agora, já não havia mais café. Apenas alguns pedaços de pão seco e frutas.
Quando desceram do outro lado íngreme da montanha, chegaram a um povoado.
Tomás encontrou alguém que lhe preparou um café e encheu o cantil. Na noite seguinte,
passaram em um povoado, onde as pessoas olhavam André, cheias de suspeitas. Não
pareciam acreditar no que Tomás lhes dizia.
- Algumas vezes, m'sieur, os mulatos criam problemas. São inteligentes, dão ordens e
esperam que os negros obedeçam. Se recusam, os mulatos agem cruelmente.
Aquele era um país atormentado, amedrontado e dividido, André pensou. Sentiu pena
do povo, que não sabia em quem confiar ou no quê acreditar. Então, finalmente, quando
parecia que nunca mais chegariam, viram o vale que procuravam.
Se a floresta era bonita, o vale era de tirar o fôlego!
André não conseguia imaginar como teria sido aquele local nos anos de prosperidade,
quando o tio escrevia para a França, contando sobre a grande fortuna que estava
conseguindo acumular.
Passaram por engenhos de cana e entraram em campos realmente férteis, cruzados
por riachos cristalinos e protegidos por imensas montanhas.
Tudo ali era tão bonito que André pensou que estivesse no paraíso.
Tomás levou-o diretamente à casa do tio. Passaram pela porteira quebrada e
entraram numa alameda cercada de flamboyants que começavam a florir.
Cercas vivas de buganvílias caíam ao redor de colunas, formando uma cobertura
colorida e brilhante. Pés de jasmins dourados e lírios enchiam o ar com seus perfumes.
Lutaram para passar por uma vegetação espessa e, de repente, viram a casa à sua
frente.
André conhecia, pelas descrições do tio, a construção branca de tijolos, feita pela
família, com tanto orgulho. Tinha dois andares e uma escada em forma de ferradura, que
levava à sacada principal. Tudo parecia quebrado em mil pedaços.
O telhado perdera as telhas, todas as vidraças tinham sido despedaçadas e a casa
parecia ter estado nas mãos de vândalos.
A porta da frente, com a pesada fechadura e todas as dobradiças, tinha caído. As
parreiras se enroscavam pelos pórticos e colunas, subindo pela sacada e escurecendo as
janelas.
A destruição era tanta, que causava depressão.
Os dois homens desmontaram e André caminhou para a casa, pisando
cuidadosamente sobre o que tinha sido um assoalho de madeira.
Ficou surpreso ao ver que todos os quartos estavam vazios. A casa havia sido
completamente saqueada.
Uma parte estava incendiada, as paredes negras, o chão coberto de poeira e teias de
aranha por toda parte.
Ficou contente em sair novamente no jardim colorido.
- Não deixaram nada para nós - disse a Tomás.
- Ninguém vem aqui. Magia má!
- Magia? O que a magia tem a ver com isso? Em resposta, o negro virou-se e
apontou. André olhou na direção indicada.
- O que é? O que está me mostrando?
Então viu, num pilar, ao pé da escada, algo que lhe parecia um galho torcido, ou um
pedaço de corda.
- O que é?
- Pedro ouanga... magia negra demônio!
- Bobagem! Não acredito nessas coisas. Podem ser reais para você, mas não para
mim.
Falou secamente. Então, percebendo que Tomás parecia aborrecido, tentou corrigir.
- Desculpe, Tomás, não quis ofender. Talvez esteja com tanto medo quanto você. A
magia, branca ou negra, é algo fácil de se acreditar, quando se está neste país.
- Venha olhar, m'sieur.
Chegaram ao pilar e André viu que, na verdade, se tratava de uma corda tingida de
verde. Tinha mais ou menos meio metro e era tão grossa como o pulso de um homem. As
extremidades estavam amarradas juntas com lã colorida e, nos nós havia penas de galinhas
tingidas de vermelho e branco.
Parte da corda tinha sido coberta com uma substância branca, que se espalhou,
quando André a tocou. A outra parte estava coberta com algo seco e preto. Tinha certeza de
que era sangue.
- O que é?
- Eu lhe digo, m'seur: esta é a cobra verde de Pedro ouanga. Magia forte... negra.
- Por que está aqui?
- Não sei, m'sieur. Só se souberam que vínhamos para cá.
- Eu? Vindo aqui? Como alguém podia saber? Tomás olhou para a montanha e disse:
- Tudo se sabe. Os tambores falam.
- Está dizendo - perguntou, devagar -, que a minha chegada a esta fazenda
abandonada já é do conhecimento de algum praticante de vodu?
O negro fez que sim.
- É difícil acreditar numa coisa dessas.
Olhou o pedaço de corda e percebeu que havia sido colocado ali há pouco tempo.
Tocou a parte escura, que pensara ser sangue coagulado. Pressionou-a com os
dedos: estava macia e úmida. Era mesmo sangue!
Viu então que aquele pilar estava completamente limpo das trepadeiras que cresciam
por toda parte.
Não havia dúvida de que aquela corda, representando uma serpente, tinha sido
colocada ali há pouco tempo, talvez naquela manhã ou na noite anterior.
- Não entendo, Tomás, mas não gosto disso.
- Não se preocupe, m'sieur, vou encontrar um bom papaloi que endireitará as coisas.
- O que é isso?
- Um homem, m'sieur.
- Que tipo de homem?
- O que vocês chamam de sacerdote... um sacerdote do vodu. André pôs as mãos na
cabeça
- Quer dizer que, para acabar com esta feitiçaria, ou sei lá o quê, em forma de cobra,
precisamos encontrar um sacerdote vodu que pratique magia branca?
- Certo, m'sieur'
- Parece uma completa... André não disse as últimas palavras.
De repente, lembrou-se de Jacques lhe dizendo que, para desempenhar bem o papel
de mulato, precisava pensar como um deles.
Mulatos acreditam em vodu, assim como os negros.
Muito bem... valia a pena tentar! Entretanto, coisas estranhas demais estavam
acontecendo. Mas, se devia se comportar como um haitiano, jogaria a magia branca contra a
negra. Precisava concordar que até fazia sentido.
- Onde podemos encontrar este sacerdote... este papaloi?
- Eu encontro, m'sieur.
- Muito bem. Estou de acordo. Enquanto isso, vou me livrar desta bobagem.
Pegou a corda de cima do pilar e atirou-a, com toda força, no meio do mato que
rodeava a casa.
- Pelo menos, não explodiu - disse, sorrindo. Mas Tomás continuava sério.
- A praga continua aí. Só o papaloi pode tirar. Bem-humorado, André lhe deu um
tapinha no ombro.
- Então, encontre o papaloi. E escolha um lugar onde possamos dormir, com um teto
que não caia sobre a minha cabeça, nem um chão que desabe sob os meus pés
Olhou em direção à casa e continuou, brincalhão:
- Pelo menos, enquanto estiver dormindo, vou fingir que sou o dono da fazenda
Villaret. Quero dormir na casa que legalmente deveria ser minha, apesar de ninguém mais
acreditar nisso, a não ser você.
Durante um momento, Tomás não falou. Quando o fez, foi em voz tão baixa, que
André mal pôde compreender:
Damballah vai dizer, m'sieur, onde o tesouro está escondido.

CAPÍTULO III

André saiu da casa e desceu, cuidadosamente, os degraus que levavam ao jardim.


Tinha comido bastante, um surpreendente jantar que Tomás preparara.
Compraram duas galinhas no vilarejo por onde passaram. O negro pendurou-as na
sela e André ficou imaginando se ele saberia como prepará-las.
Devia ter adivinhado que Jacques, com sua eficiência meticulosa, lhe forneceria um
criado, não apenas capaz de indicar os caminhos, mas também apto a servi-lo de muitas
outras formas.
Quando Tomás percebeu que André pretendia ficar na casa, improvisou uma
vassoura, varreu e tirou a poeira das paredes e do teto.
Conseguiu limpar completamente um quarto, que André achava ter sido uma sala, e
começou a limpar a cozinha.
Não demorou muito para que um cheiro apetitoso chegasse até a sacada, onde o
rapaz descascava uma laranja.
Ia sair para uma inspeção mais completa no dia seguinte, quando se sentisse menos
cansado.
Aquele dia tinha sido difícil, principalmente porque ambos haviam dormido pouco, na
noite anterior. Tomás quase nem dormira, de tão ansioso para sair da floresta.
André sentou-se na sacada, tentando imaginar como era aquela casa, no tempo de
seu tio. Lembrou que a tia era uma mulher muito atraente e supervisionava os empregados
com a experiência e a rigidez que pareciam natas nas francesas.
Deviam ter muitos criados, pois o tio era rico. André acreditava que a mansão de
Villaret conhecera todos os confortos europeus, transportados até o Novo Mundo.
Imaginou se teria gostado de viver no Haiti. Mas, para ser honesto consigo mesmo,
precisava admitir que estava muito apegado aos seus hábitos ingleses e, por outro lado,
adorava a França.
Antes de ser obrigado a fugir com a família para a Inglaterra, para escapar da
Revolução Francesa, conheceu a grandiosidade em que vivia o avô, seu poder e as imensas
fazendas que possuía, empregando centenas de pessoas.
Parecia duro que os únicos a desfrutarem do luxo e glória de serem os condes de
Villaret tossem seu avô e o tio Phillippe.
Agora, o título era seu. Nada mais. Depois da busca ao tesouro, voltaria à Inglaterra e
tentaria achar um emprego, de modo a se manter e a ajudar a mãe.
Sabia que há muito ela desejava que ele se casasse.
Em circunstâncias normais, qualquer família nobre da Europa ficaria contente em unir
uma de suas filhas ao conde de Villaret. Entretanto, ele não aceitaria um casamento
arranjado, muito menos agora, que não tinha nada a oferecer, a não ser um título de
nobreza.
Todos seus instintos masculinos fugiam da ideia de se casar com alguém a quem teria
que ser subserviente, porque controlaria as finanças.
Uma esposa rica seria muito inconveniente; uma mulher que, na verdade, estaria
pagando por tudo e a quem precisaria recorrer, até para pedir uma mesada.
Ainda estava perdido nesses pensamentos, quando Tomás avisou que o jantar ia ser
servido.
Entrou por uma janela, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro e
procurando o local onde a refeição tinha sido colocada.
Descobriu que um bloco de madeira serviria como cadeira e os pratos seriam imensas
folhas. Entretanto, teriam garfos e facas, trazidos da casa de Jacques. A galinha, preparada
à moda crioula, estava deliciosa.
Tomás tinha cozido também algumas espigas de milho, colhidas atrás da casa, e
alguns tomates.
André estava faminto e comeu tudo.
Havia água pura para beber, que o negro lhe disse vir de um poço do pátio, na parte
central da casa.
Durante um momento, ficou preocupado. Sabia que em tempos de guerra os poços se
tornam perigosos, pois servem como depósito de cadáveres. Mas aquela água parecia
transparente como cristal e, com a sede que sentia, achou que a apreciaria mais do que
qualquer vinho francês.
- Amanhã compraremos comida, pratos, xícaras e copos - Tomás murmurou. - Além
de vassouras e toalhas.
André riu:
- Acho melhor fazer uma lista.
Então, lembrou-se de que dificilmente Tomás saberia ler ou escrever.
- Tomás sabe o que precisa! - o negro disse, com dignidade, e André sorriu,
sacudindo os ombros. Estava contente em tê-lo ali, para resolver esses problemas.
Pegou uma banana e descascou-a, dirigindo-se ao jardim.
O sol estava se pondo e a poeira fazia tudo parecer misterioso e estranho. Morcegos
voavam sobre sua cabeça e as primeiras estrelas brilhavam no céu.
O ar quente e úmido era semelhante à pele de uma mulher. André lembrou de Orchis.
Depois, expulsou-a de sua mente.
Pensou ouvir longe, muito longe, o som de tambores.
Prestou mais atenção, para ter certeza de que não era imaginação.
Só ouviu o ruído dos morcegos e dos sapos.
Tudo era parte do mistério do Haiti. Kirk lhe falara alguma coisa sobre o vodu e lera
outras, enquanto navegavam para o Haiti.
Durante o último século, um milhão de negros, trazidos da África, tinham sido
vendidos nos mercados de São Domingos. Para eles, uma nova vida começara, ao soar do
chicote dos feitores. Foram tratados com uma crueldade que parecia inacreditável a André e
para a maioria dos ingleses.
William Wilberforce contava histórias incríveis aos incrédulos membros do Parlamento.
Tentava abolir a escravatura, e dizia ter visto fazendeiros matarem seus escravos, apenas
para verificar se a pistola estava carregada. Outras histórias diziam que os fazendeiros
mandavam enterrar seus escravos até o pescoço e usavam suas cabeças para um jogo de
bolas.
Kirk contara a André que, na fazenda Gallifet, os escravos que tentavam fugir eram
surrados e seus ferimentos tratados com pimenta.
Um fazendeiro de La Grande Rivière prendeu um escravo à parede, pelas orelhas,
com pregos, depois cortou-as com uma faca e forçou o homem a comê-las.
Um homem em Plaine dês Gonaives foi apelidado de "Perna-de-Pau", porque, sempre
que capturava um escravo fugido, mandava que lhe cortassem uma das pernas. Se o
escravo sobrevivesse, o que era difícil de acontecer, tinha que usar uma perna de pau.
O instrumento de tortura mais comum era o chicote, que assombrava toda ilha. Taille
era a palavra que todos gritavam e significava um homem chicoteado até se transformar
numa massa ensanguentada.
As escravas eram tão chicoteadas quanto os homens. Havia fazendeiros que tratavam
bem os escravos; entretanto, sempre tinham menos importância do que os animais de
estimação.
Seu único conforto, sua única esperança, eram os rituais vodu, que tinham trazido da
África.
Tratava-se de uma religião mágica, com adoração de muitos espíritos.
André ouvira falar de sacerdotes-reis e sacerdotisas-rainhas, os papaloi e as mamaloi
que podiam trazer os mortos de novo à vida, em forma de zumbis.
Nunca acreditara nisso. Mas, agora, pensava que, naquele clima quente e abafado,
era fácil acreditar em muitas coisas das quais teria rido, se estivesse na Inglaterra.
A revolução começara com o vodu, que se tornou o coração de uma sociedade
secreta, ligando os escravos de todas as fazendas.
Os papaloi e as mamaloi se transformaram em líderes naturais e eram recrutados
entre os escravos superiores das casas, os commandeurs.
Eram feitores que chicoteavam os outros, nos campos.
Entre esses commandeurs estava um escravo de nascimento britânico, chamado
Brickman, que liderou o primeiro levante, na grande Planície do Norte.
Brickman usou o vodu como uma cadeia, para sincronizar todos os levantes através
da ilha.
De junho a julho de 1791, sucederam-se várias perturbações nas Províncias Orientais.
Os rebeldes eram chicoteados, quebrados na roda ou enforcados.
Os fazendeiros não encararam estes incidentes isolados como algo importante. Então,
Brickman reuniu seus conspiradores das plantações do norte e lhes falou da necessidade de
união.
Encontravam-se na floresta, debaixo de tempestades, pois acreditavam que, assim,
conseguiriam a aprovação dos deuses. Brickman realizava os rituais de vodu.
Sua mamaloi cortou o pescoço de um javali negro e, com os lábios cheios de sangue,
os conspiradores fizeram um juramento de aliança com Brickman e seus comandados.
Marcaram a data do próximo levante para 22 de agosto, daquele ano.
Naquela noite, Brickman chamou seus seguidores para irem até a fazenda Turpin.
Não usou o chicote, mas sim uma tocha. E por todas as planícies do norte, os escravos
começaram a incendiar, estuprar e matar.
O fogo das chamas iluminou mansões e canaviais destruídos. Os fazendeiros mais
cruéis foram torturados e mortos com uma violência perfeitamente compreensível.
Nas fazendas onde os escravos haviam sido bem tratados, houve retribuição:
esconderam seus amos, que fugiram em segurança, acompanhados das famílias.
Entretanto, para a maioria, nenhum branco devia sobrar para contar o que havia
acontecido.
Odeluc, o administrador da fazenda Gallifet, que era muito cruel, estava em Lê Cap.
Ouviu dizer que algo estava acontecendo e partiu para a fazenda.
No caminho, alguns guardas lhe falaram sobre os incidentes. Quando chegou,
descobriu que seus próprios escravos estavam entre os líderes da revolta. Carregavam,
como bandeira, o corpo de uma criança branca, nua, empalada em um mastro.
Odeluc foi capturado e morto. Já não era mais necessário nenhum alarme.
Bandos de escravos intoxicados pelo desejo de vingança se espalharam por toda a
planície.
André sentiu que podia ver tudo aquilo acontecendo.
O que o surpreendia era que depois de terem ganho o poder, declararem
independência e terem aclamado Dessalines imperador, tanto este quanto Christophe
haviam proibido o vodu, o instrumento que lhes dera a vitória.
André não conseguia compreender. Entretanto, tinha certeza de que, mesmo na
clandestinidade, o vodu nunca poderia ser retirado dos corações e da imaginação daqueles
que nele acreditavam.
O dia se transformou em noite e Tomás veio até a sacada:
- A cama está pronta, m'sieur.
com um sorriso, André foi até a sala que usava como quarto, esperando encontrar o
tapete sobre o chão nu, como nas noites anteriores,
Desejava que os diversos lagartos que deslizavam para cima e para baixo, nas
paredes, se mantivessem à distância.
Então, à luz de uma vela que tinham trazido, viu que, em alguma parte daquela casa
destruída, Tomás havia encontrado uma cama: quatro pés de madeira e um espaço vazio,
preenchido com algo que parecia uma rede.
Era uma cama primitiva, como a usada em todos os países quentes pelos criados e
escravos. Naquela noite, foi um ótimo achado.
Enquanto estava na sacada, pensou ter ouvido batidas. Agora percebia que era
Tomás, remendando a cama, que devia estar quebrada; caso contrário, teria sido roubada.
- M'sieur, tome cuidado! Amanhã, vou reforçá-la.
- Obrigado, Tomás. Foi muito engenhoso e acho que será bem mais confortável do
que dormir no chão, como nas outras noites.
Tomás sorriu, depois ajudou-o a tirar as botas de montaria, pegou as roupas e
preparou-se para levá-las.
- Vai precisar da vela - André disse.
- Há luz suficiente na cozinha. Boa noite, m'sieur!
Pensou como era estranho estar ali, deitado na casa do tio, auxiliado por um criado
negro e imaginando que aventuras o esperariam no dia seguinte.
- Tenho tido sorte, muita sorte, até o momento - disse, baixinho, Então, lembrou-se de
Pedro ouanga, que prendera a corda no pilar quebrado.
Não importava o que Tomás dizia: não acreditava que aquilo tivesse algo a ver com
ele.
Como alguém saberia que pretendia passar a noite ali? Que estava indo à fazenda
Villaret com um propósito especial?
Tudo não passa de um montão de histórias para amedrontar criancinhas, murmurou,
enquanto fechava os olhos.
Horas mais tarde, André acordou e encontrou a vela derretida, quase no fim. Tinha
sido muito distraído em não apagá-la, antes de dormir.
Então, imaginou se, na verdade, não estaria com medo de ficar sozinho na escuridão.
Depois, disse a si mesmo que não era nada disso; apenas distração, descuido.
Pela janela, que dava para a sacada, podia ver as estrelas. No ar havia um perfume
de flor exótica, um perfume que tornava as noites marcantes.
Foi então que percebeu os tambores.
Estavam próximos, muito mais próximos do que no começo da noite, quando não teve
certeza completa de tê-los ouvido.
Sonolento, tentou imaginar que mensagem estaria enviando.
Devia mesmo acreditar que falavam dele?
Sentindo uma grande curiosidade, levantou-se da cama e foi até a sacada. Moveu-se
com cuidado, pois o soalho não estava seguro e poderia cair.
Agora, ouvia claramente os tambores. Estavam em algum ponto da floresta, na
direção de onde tinham vindo.
Pensou se devia chamar Tomás e perguntar o que significavam os sons. Mas um
sexto sentido, uma certeza interior, lhe disse que o negro não estava na casa. Encontrava-se
sozinho.
Não tinha provas disso; no entanto, sentia tanta certeza, que achou desnecessário
chamar o criado. Voltou para a cama.
Ficou acordado durante um longo tempo, olhando a chama pequenina da vela,
ouvindo, imaginando e sentindo uma grande curiosidade.
André acordou de manhã com o cheiro do café. Minuto depois, Tomás entrou,
trazendo uma caneca. Bebeu, deliciado.
O criado trouxe depois suas roupas, e viu que as botas tinham sido limpas e
engraxadas.
Vestiu uma camisa limpa, comeu ovos, frutas e tomou mais um pouco de café.
- Vou procurar comida, m'sieur. Fique aqui.
- Por quê? - perguntou, automaticamente, já sabendo a resposta.
- M'sieur não deve ser visto.
- Concordo. Leve um pouco de dinheiro. Se precisar de mais, é só pedir.
Viu que Tomás não compreendia.
- Não é bom ficar devendo nada. Compre o que precisar, mas se comprar muitas
coisas, os habitantes vão suspeitar de que está morando na casa.
Tomás fez que sim. Mas André achava que, apesar do criado não querer que fosse
visto no vilarejo, já sabia que todos tinham conhecimento da sua presença naquela casa, que
estivera vazia por tanto tempo.
Não adiantava fazer muitas perguntas, a não ser depois de Tomás saber o que estava
acontecendo na região.
Enquanto o negro se afastava, André saiu sem chapéu e de mangas arregaçadas. Foi
até o jardim.
O sol ficava cada vez mais quente. Entretanto, debaixo das árvores havia muita
sombra. Estava decidido a explorar o máximo possível o local, obedecendo aos conselhos de
Tomás de não se deixar ver.
Era difícil descobrir que plantas eram cultivadas naquele jardim, ou onde ficava a
horta.
Olhou novamente a terra e pensou que a natureza havia se encarregado de tomar
conta do seu território, novamente.
O sol esquentou mais e ele procurou a sombra.
Agora via libélulas batendo as asas sobre orquídeas um pouco diferentes das que
encontraram na floresta.
Caminhou pela sombra, deixando que a beleza do lugar tomasse conta de sua
imaginação. Sentia-se intrigado pelas sensações que aquele lugar lhe despertava.
Deu alguns passos, chegando a uma espécie de caminho, que se afastava da casa.
Queria saber onde ia dar.
Então, enquanto se desviava dos galhos de uma imensa árvore, viu, um pouco
adiante, uma figura branca.
Parou onde estava, lembrando as palavras de Tomás. Percebeu que a pessoa não se
mexia.
Parecia uma freira, usando um hábito branco que pensou ser típico do Haiti. tinha
visto freiras vestidas assim nas ruas de Port-au-Prince.
A roupa dela era branca, mas, em vez do véu tradicional, usava um turbante branco,
que cobria completamente os cabelos e as orelhas.
Surpreso, percebeu que a freira, sentada num tronco caído, não estava sozinha.
A sua volta, comendo em sua mão, havia uma multidão de pássaros. Eles lhe bicavam
os braços, pousavam em seus ombros e cabeça. Confiavam nela. O quadro era tão bonito,
tão extraordinário, que André prendeu a respiração, enquanto observava a freira, à distância.
Depois, muito devagar, sem que ela o percebesse, aproximou-se mais.
Escondido pela folhagem dos arbustos e troncos das árvores, ficou bem perto,
observando-a.
Ao olhar seu rosto, voltado para os pássaros, viu que era muito bonita. E mais: era
branca!
Como era possível que houvesse uma mulher branca, vivendo nas terras de Villaret?
Talvez, por ser freira, tivesse sido poupada.
Entretanto, não lhe parecia que o imperador tivesse alguma consideração especial por
qualquer mulher, mesmo uma religiosa.
Devia ser muito jovem. Não conseguia se lembrar de já ter visto alguém tão adorável:
grandes olhos, nariz reto, queixo delicado e lábios bem feitos. Tinha um ar de nobreza.
Havia algo de muito delicado em sua beleza. O sangue que corria naquelas veias
devia ser da aristocracia.
Então, quase riu alto.
Que aristocratas havia no Haiti, depois da Revolução? Que brancos tinham
sobrevivido às lutas do imperador? Só os que trabalhavam com munições e armas, em Port-
au-Prince e Lê Cap.
Desejou ser um artista, para poder retratar a beleza da cena à sua frente.
Os pássaros menores, de penas amarelas, pousavam em suas mãos, Beliscando o
milho ou o que quer que fosse que ela lhes oferecia.
Riu, divertida.
- São muito malcomportados! - Peguem a comida no chão!
Espalhou alguns grãos, que tirou de uma sacola a seu lado. As libélulas e beija-flores
pareciam não temer os outros pássaros.
André percebeu que ela havia falado no mais puro francês, sem nenhum sotaque
crioulo. Sua voz era suave e delicada.
Colocou mais alguns grãos na palma da mão e a estendeu aos pássaros menores.
Elas os observava, sorrindo, de um modo que a tornava ainda mais bonita.
André sentiu que devia lhe falar, perguntar quem era, por isso saiu de seu esconderijo.
Tinha dado apenas dois passos, quando os pássaros perceberam sua presença e
saíram voando, em bandos, para os galhos mais altos das árvores.
Durante um momento, a freira os seguiu com os olhos, surpresa, Então, viu André.
Ficou imóvel, como que petrificada, com uma expressão de terror. Depois, levantou-se
de um salto.
- Não mademoiselle, por favor, não se vá - André gritou, mas era tarde.
freira saiu correndo numa velocidade que o surpreendeu, e perdeu-se entre os
troncos das árvores.
Viu várias vezes o hábito branco aparecer e desaparecer, cada vez mais longe.
Quando chegou ao local onde ela estivera sentada, já não conseguiu vê-la mais.
- Que pena! Não queria amedrontá-la.
Mesmo detestando ter perdido aquela oportunidade de lhe falar, concordou que ela
tinha razões para sentir medo.
Para ela, não se tratava da aproximação de um homem branco, mas sim de um
mulato, o que era muito diferente.
- Esqueci - ele disse, baixinho - e acho que, estando aqui sozinha e sabendo o que
aconteceu com as mulheres durante a revolução, tem motivos, não apenas para sentir medo,
mas para ficar aterrorizada!
- Preciso encontrá-la outra vez - André falou consigo. Então, lhe veio outro
pensamento.
Se havia uma freira, devia haver outras. E onde há freiras, geralmente há uma igreja
ou um convento.
Era exatamente isso que procurava. O próximo passo seria em direção ao tesouro que
o tio havia escondido sob a proteção de Deus. Seria um erro, pensou, seguir imediatamente
a freira. Devia dizer a Tomás o que pretendia fazer?
Voltou para a casa e, meia hora depois, o negro chegou. Vinha carregado de
compras, quatro galinhas vivas e um galo. André sorriu.
- Acho que planeja comer muitos ovos, não é?
- Elas botam, nós comemos - Tomás disse, com uma lógica simples. Com uma
pequena quantia em dinheiro, conseguira comprar comida, pregos, um martelo, utensílios de
cozinha, pratos, xícaras, um bule e um facão, que se parecia com a arma afiada e perigosa
que os haitianos sempre usavam nos canaviais.
Tomás olhou as compras, satisfeito, e André, contente em tê-lo como ajudante, sorriu.
- Se vamos nos demorar aqui, acho que precisará de mais do que isso.
- Começo com pouco - Tomás disse -, senão as pessoas farão perguntas.
A lógica era irrefutável e André, ansioso por fazer perguntas, começou:
- Sabe se há um convento aqui perto? Pensou que Tomás não tivesse entendido.
- Freiras. Vi uma freira na floresta.
- Vêm da igreja - disse Tomás.
Apontou na direção para onde a freira tinha fugido e continuou:
- A igreja é lá.
- Então, vamos dar uma olhada. Vá buscar o meu cavalo.
Sentiu que Tomás ia falar algo, dizer que aquilo podia ser um erro, mas tinha mesmo
a intenção de ir e, sabendo como ele se sentia, o criado não disse nada.
Pegou o cavalo no estábulo e o trouxe. André colocou uma gravata, abotoou as
mangas da camisa e montou.
Tomou a direção em que a freira tinha ido.
No final do atalho, havia uma ligeira subida. Precisava cavalgar devagar, evitando que
o chapéu lhe fosse levado da cabeça pelos ramos mais baixos das árvores.
Também tinha que tomar cuidado com os troncos caídos.
Então, antes do que esperava, viu uma construção que parecia uma igreja. Parou,
numa pequena elevação de onde dava para avistar toda a fazenda. A igreja era construída
em pedra e muito antiga. Muito mais velha do que a casa do tio. Estava coberta de
trepadeiras e parecia tão verde como tudo que a rodeava.
Entretanto, reparando melhor, viu que, no telhado, havia vários lugares remendados
com madeira.
Isso dava à igreja uma aparência rústica. Devia ter mais de cem anos e, talvez, por ela
ficar ali, o tio tinha escolhido aquele local para construir a casa.
Desejou poder se lembrar melhor das cartas que o tio escrevia frequentemente para a
França.
Tinham sido deixadas para trás, quando a família fugiu para Londres, durante a
Revolução Francesa.
Depois, o pai lhe escrevera, contando a tragédia que lhes sucedera e receberam
poucas cartas em resposta, antes de um silêncio total.
Qualquer que fosse a explicação para as atitudes do tio, quando veio para o Haiti,
agora não importava mais. No momento, André só pensava que tinha encontrado a igreja
onde o dinheiro estava enterrado.
Porém, sentia um certo desânimo. A vegetação cobria tudo, com exceção da frente,
que dava para a floresta.
As raízes se entrelaçavam, dificultando uma escavação naquele local, sem antes ser
feita uma limpeza.
Era um problema sem resposta, no momento.
Chegou até a igreja e, vendo a porta aberta, desmontou e amarrou o cavalo.
Novamente, olhou em volta. Havia várias cailles abandonadas. Talvez, antigamente,
ali fosse o centro de um vilarejo nativo, de onde todos os habitantes haviam partido.
Só restava a igreja.
Olhou mais atentamente e descobriu uma construção baixa, quase escondida por uma
árvore imensa.
As paredes eram brancas, como as da casa do tio, mas estavam mais conservadas e
tinham vidraças intactas. No centro, uma porta e um sino de bronze muito polido.
Devia ser ali que as freiras viviam. Mas elas iriam esperar. Primeiro, queria visitar a
igreja.
Era toda de pedra. No altar, havia murais coloridos, que o deixaram curioso. Quando
ficou na casa de Jacques, viu quadros semelhantes, que, na Europa, só tinha visto nos
museus ingleses.
Tinham cores brilhantes e desenhos rústicos. Porém, possuíam o mesmo toque que,
há séculos, os italianos conseguiram.
Quando demonstrou interesse, Jacques disse:
- O Haiti tem uma história de piratas e degoladores, mas, por outro lado, temos um
talento artístico que nunca foi desenvolvido.
- O que quer dizer com isso?
- Alguns mulatos, como eu mesmo, viram quadros em outros lugares do mundo, que
tentam reproduzir aqui. Querem ver o que conseguem, como artistas. Este é o resultado.
- São muito diferentes e surpreendentes. Apesar de eu não ser um especialista em
arte, acho que têm talento.
- É o que penso. Um dia, vou levar um destes quadros à América do Norte.
Ou então, Kirk poderá levar.
- Duvido que os americanos os apreciem - Kirk respondera. Deixe André levá-los para
a Inglaterra. Ou, melhor ainda, para a França.
Agora, lembrava-se daquela conversa, ao olhar para os murais que se pareciam muito
com os quadros de Jacques: representações primitivas de santos e anjos, da Virgem Maria,
do nascimento de Cristo e da crucificação.
Os desenhos, apesar de rústicos e exagerados, eram coloridos com tonalidades
brilhantes. Os fiéis deviam se sentir inspirados por eles.Estava tão distraído, que não
percebeu uma freira entrar na igreja e
Parar a seu lado.
- O que procura, meu filho?
Era negra e tão velha, que sua pele parecia pergaminho. Usava um habito branco,
com véu, e um rosário com um enorme crucifixo, na cintura.
Falou calmamente, sem nenhuma preocupação. Mas, olhando-a, André percebeu que
estava com medo.
- Vim rezar, irmã. Olhou novamente os murais.
- Estava admirando as pinturas.
- Quando reformamos nossa igreja, não tivemos dinheiro para enfeitá-la.
Recentemente, uma das irmãs tentou decorar as paredes.
- Quando reformaram a igreja? O que houve com ela?
Pensou que sua pergunta tinha deixado a velha um pouco ansiosa. Ela não sabia se
devia responder ou mandá-lo cuidar da própria vida. Depois de alguma hesitação, disse:
- Aqueles que estão dominados pela violência nem sempre respeitam a casa de Deus.
André teve certeza de que a igreja fora danificada na mesma época do massacre da
família Villaret, quando a casa do tio fora arrasada.
- Posso conversar com a senhora, irmã?
- Sobre o quê, meu filho?
- Sobre o que aconteceu aqui e na fazenda Villaret. Deixe-me explicar: meu nome é
André de Villaret e sou filho natural do conde Phillippe.
A freira fez um movimento com a cabeça, como se aceitasse aquela possibilidade.
Depois, disse:
- O conde era um homem generoso e gentil. Construiu uma casa para nós,
quando viemos do norte.
- E quando foi isso?
- Em 1791, quando começaram os levantes. Lembrou-se do que havia lido sobre a
Revolução de Brickman ter começado no norte.
- Estávamos em segurança, aqui - a freira disse -, até que nosso protetor foi morto.
Em sua voz soou uma nota de terror e suas mãos ficaram trêmulas, agarrando
depressa o crucifixo, como se ele lhe desse proteção contra as próprias recordações.
- O que aconteceu à senhora e às outras freiras?
- A maioria escapou, escondendo-se na floresta.
- A maioria?
Durante um momento, ela não pareceu disposta a responder. Então, quase num
murmúrio, falou:
- Eles não deixariam as brancas irem embora.
Soube, então, que as freiras brancas tinham sido mortas. Ou sofrido coisas piores.
Então, como vira aquela freira na floresta? A que fugira correndo?
Ficou em dúvida, se devia mencioná-la, e decidiu que não.
Como se as recordações a enfraquecessem, a velha sentou-se num dos bancos do
coro. André sentou-se ao seu lado.
- Foi uma experiência terrível! - ela disse. - Terrível! Mas, o bom Deus nos protegeu.
Quando tudo acabou, voltamos e encontramos a igreja só um pouco danificada e nossa casa
quase do jeito que a tínhamos deixado.
- Tiveram muita sorte.
- Agradecemos a Deus.
- E agora? O que está acontecendo com vocês?
A freira olhou em direção ao altar. Seguindo seu olhar, André viu que o altar era
entalhado em madeira bruta.
Mesmo sem perguntar, sabia que tudo que a igreja possuíra, de algum valor, tinha
sido roubado.
- Acho que estamos seguras aqui. Henry Christophe é um bom católico, mas o
imperador...
Parou, sabendo que estava sendo indiscreta. Seus lábios tremiam.
- O imperador detesta os brancos e não gosta dos mulatos - André disse -, mas alguns
de nós somos úteis a ele e, por isso, poupou nossas vidas.
Não desejava amedrontá-la ainda mais. Mesmo assim, precisava fazer mais uma
pergunta:
- Na sua ordem, onde imagino que seja a madre superiora, todas são mulatas ou
negras?
Houve um momento de silêncio. Então, com voz calma e sem expressão, ela
respondeu.
- Todas, monsieur!
CAPÍTULO IV

André voltou para casa, mergulhado em pensamentos.


Sabia que a madre superiora estava mentindo, mas não conseguira lhe dizer que
havia encontrado uma freira branca, na floresta.
Imaginou que, depois de fugir aterrorizada, a moça devia ter mencionado o que
acontecera. Era de se esperar que nenhuma outra fosse vista nas vizinhanças.
Entretanto, estava quase certo de que a superiora o olhara, com surpresa e não com
medo. Seus pensamentos não o levavam a parte alguma.
- Mais um quebra-cabeças nesta terra misteriosa - disse a si mesmo.
Tentou visualizar os canaviais, as plantações de banana. No momento, a terra parecia
selvagem, mas devia ter sido muito lucrativa.
Por que o novo imperador ou Henry Christophe não mandaram negros para continuar
cuidando da fazenda?
Lembrou-se de ter ouvido dizer que os escravos, agora livres, não gostavam da ideia
de trabalhar em seus antigos empregos, mesmo que o patrão fosse outro.
Todo ex-escravo queria uma pequena caille em algum lugar onde pudesse viver
sozinho ou com a família, com pouca terra, onde cultivava uma horta suficiente apenas para
seu sustento.
Entardecia, quando, finalmente, amarrou o cavalo nos fundos da casa, onde ficavam
os estábulos semidestruídos e capazes de abrigar apenas os dois cavalos, agora.
Entrou e encontrou Tomás arrumando a madeira que iria servir de mesa, com os
novos pratos.
- Não está preparando uma refeição assim tão cedo, está?
- M'sieur come agora e depois vai encontrar DambaJlah.
Olhou-o, surpreso.
- Quer dizer que marcou a cerimônia vodu para esta noite?
Não precisou esperar pela resposta. Sabia, agora, onde Tomás estivera na noite
passada e por que os tambores tinham parecido tão próximos.
Pelo menos, aprenderia alguma coisa sobre o vodu, apesar de não acreditar muito na
ideia otimista de Tomás, querendo resolver todos os problemas através dos deuses.
Sentia-se suado da cavalgada, foi até o poço e se lavou, tirando vários baldes de
água.
Mais tarde, inspecionou cuidadosamente o corpo, procurando ver se a tinta estava
desbotando. O trabalho de Jacques tinha sido muito eficiente.
Ninguém suspeitaria de que era um branco.
Entendia que, se fosse descoberto na cerimônia de vodu, seria sacrificado
imediatamente.
Vestiu roupas limpas e comeu uma refeição excelente. Mais uma vez, sentiu-se feliz
por Tomás ser um cozinheiro tão bom.
Então, sem mais conversa, o criado trouxe os dois cavalos.
Tomaram o mesmo caminho pelo qual tinham vindo das montanhas.
O céu estava cheio de cores vivas: alaranjado, vinho, verde. Enquanto viajavam, tudo
foi ficando azulado e, depois, cor de ametista.
Morcegos esvoaçaram sobre suas cabeças, perturbando alguns pássaros que
procuravam o ninho.
Então, baixinho, muito longe, sem ter muita certeza do que ouvia, André percebeu o
som de tambores.
O som ficou mais alto e parecia ecoar por todas as árvores e pela montanha,
estendendo-se pela escuridão do vale, que agora era semelhante a um lago negro a seus
pés.
As estrelas começaram a aparecer, brilhando através dos ramos das árvores. André
seguia atrás de Tomás.
Não tinha nenhuma ideia de para onde iam. O criado dirigia o cavalo com a segurança
de quem caminha, mais pelo ouvido do que pelos olhos.
A noite se tornou viva, pulsante, cheia de sons que pareciam levar uma mensagem,
mas André não a entendia.
Já estavam quase no topo da montanha, quando, inesperadamente, Tomás parou e
desmontou.
André hesitou, depois fez o mesmo. Sem falar, o negro pegou as rédeas dos dois
cavalos e se afastou.
Amarrou os animais num velho tronco caído e voltou para junto do rapaz.
Seguiram adiante, a pé.
Através da escuridão, André viu luzes fraquinhas, brilhando à distância, enquanto que
o som dos tambores aumentava cada vez mais, a ponto da vibração ser quase insuportável.
Surgiu uma clareira e André parou, quando viu pessoas movendo-se contra as luzes.
Depois, elas se perderam na escuridão.
Tomás percebeu sua hesitação e disse:
- Venha!
Era quase num cochicho. Envergonhado por estar com medo, André o seguiu.
No momento seguinte, estavam na beira da clareira. No centro, havia um mastro muito
alto - ou podia ser uma enorme árvore, André não tinha certeza. Ao lado, luzinhas brilhavam:
eram lamparinas em tigelas de óleo.
De repente, surgiu um fogo na base do mastro. Agora, vozes humanas se misturavam
ao som dos tambores.
Por um momento, pareceu que aquela multidão gritava com toda força de seus
pulmões, produzindo sons estranhos, como um desafio ao medo e, ao mesmo tempo, um
convite a ele.
André sentiu que Tomás o puxava para o chão. Sentou-se ao lado do negro e a dança
começou.
Achou que a dançarina era uma mamaloi. Depois surgiu um homem vestido apenas
com uma tanga cor de vinho, que começou a traçar no chão estranhos desenhos, feitos com
farinha de milho.
De onde André estava, podia ver claramente os dedos do papaloi fazendo
movimentos rápidos, dando ao desenho uma aparência de serpente.
Apesar de não saber com certeza o significado daquilo, havia lido que, no início da
cerimônia, era feita uma invocação especial aos deuses aos quais iriam pedir favores.
O canto atingiu o som mais alto, os dançarinos aceleraram os movimentos.
Mesmo os que assistiam, como Tomás e André, moviam o corpo, instintivamente,
seguindo o ritmo dos tambores.
Era uma coisa estranha, estar ali, ouvindo palavras que ele não compreendia,
pronunciadas por dançarinos que sacudiam os corpos violentamente, com um abandono
quase histérico.
De vez em quando, ouviam um grito diferente, um grito de súplica.
Quando o papaloi terminou o desenho, o ritmo se tornou mais forte e André teve uma
sensação sensual, erótica e, ao mesmo tempo, violenta.
O papaloi entrou na luz da fogueira. Na cabeça, usava um turbante feito de trapos
coloridos, enfeitado com penas de galo.
Era óbvio que estava em transe. Seu corpo todo tremia, assim como o chicote que
trazia nas mãos.
A dança se intensificou e a velha mamatoi começou a levantar e abaixar os braços.
Segurava dois pombos brancos, que se debatiam furiosamente, e André ficou contente,
quando os outros dançarinos esconderam o que aconteceu em seguida.
Sabia que era um sacrifício aos deuses. Faziam aquilo, antes de pedirem qualquer
coisa. A mamaloi matava as aves a dentadas.
O sacrifício devia ter terminado, pois agora a música diminuía e a mamaloi, segurando
o que restou dos pombos, rodopiava, de modo que todos pudessem ver a oferenda.
Quando passou dançando perto de André, viu que usava apenas colares brancos
cobrindo o busto. Colares feitos com vértebras de serpente.
De repente, como um rugido, todos gritaram juntos:
- Damballah Weydo! Damballah Weydo!
O clamor das vozes parecia sacudir todos os ramos das árvores. Gritaram mais uma
vez e mais outra. O papaloi bebeu em uma garrafa negra e soprou uma nuvem branca.
- Aquilo é clarin - Tomás murmurou.
André sabia que se tratava de um rum branco nativo, muito forte, capaz, não apenas
de queimar o estômago de um homem, mas também sua mente.
O papaloi se aproximou deles, rodopiando e tremendo tanto que parecia não ter
controle sobre o próprio corpo.
Depois se afastou, caiu de joelhos e começou a murmurar alguma coisa.
Uma mulher saiu do meio das dançarinas e veio para o seu lado. Depois, atirou sobre
ele algo que parecia um cobertor grosso de lã. Cobriu-lhe primeiro os pés, depois o corpo
trêmulo e, finalmente, a cabeça.
Todas as vozes silenciaram e o som dos tambores diminuiu tornando se apenas um
murmúrio.
A figura enrolada no chão foi ficando mais e mais achatada. Durante um momento,
ficou imóvel. Então, o cobertor começou a se mexer. A princípio, era quase imperceptível;
depois, o movimento ficou mais e mais aparente.
O fogo diminuiu, quase desaparecendo. André não conseguia ver bem uma mão
apareceu na extremidade do cobertor; mesmo assim, ele não tinha certeza do que era.
Parecia mais a cabeça de uma cobra e se movia com uma graça quase sensual.
Vagarosamente, saindo da escuridão, surgiu uma figura, que devia ser de um homem,
do próprio papaloi. Só que, agora, apesar de conservar a aparência humana, ele parecia não
ter ossos: seu corpo possuía a sinuosidade de uma serpente.
- Fui hipnotizado - pensou.
Não conseguia desviar os olhos da figura que aparecia à luz bruxuleante da fogueira e
das poucas lamparinas. Era inacreditável, mas aquele corpo deixara de ser o de um homem.
Então, da escuridão, veio uma voz.
- Está aqui, André. Isso é bom! O rapaz ficou tenso.
Devia estar sonhando. As palavras eram em francês e a voz era... de seu tio.
- Vai encontrar o que procura - a voz disse -, porque Sãona lhe mostrará. Sãona sabe
onde está escondido... Sãona... Sãona...
A voz foi sumindo, seguida pela batida dos tambores.
Agora o papaloi-cobra já não estava mais de pé, e sim de costas no chão, coberto
pelo cobertor. Sua mão desapareceu por último e ainda parecia a cabeça de uma serpente.
André achou que não conseguiria respirar. Então, as danças começaram outra vez, o
som dos tambores aumentou e o fogo duplicou de tamanho um homem começou a subir no
mastro, gritando, como se estivesse em êxtase.
André ficou sentado, imóvel, olhando o que acontecia e, ao mesmo tempo esforçando-
se a pensar com clareza e descobrir se o que havia ouvido não era produto da sua
imaginação.
Era a voz do tio, seu tio, falando um pouco rouco, mas muito autoritário e com as
palavras educadas dos franceses nobres.
Seria impossível que um daqueles negros seminus, reunidos ali para realizar um ritual
tão antigo e primitivo, fosse capaz de falar daquele jeito.
O papaloi levantou-se. Veio até André e estendeu a mão.
Compreendeu e cumprimentou-o. Então, o papaloi virou-se para Tomás e fez a
mesma coisa, mas de um modo diferente, usando um gesto que, mais tarde, André soube
que era um sinal secreto entre os praticantes de vodu.
Depois, disse algo que ele não ouviu e dirigiu-se a um outro homem sentado ali perto.
Tomás tocou André no braço.
- Vamos m'sieur.
Levantou-se, relutante. Queria ficar, queria ouvir mais, queria se convencer de que o
que acontecera ali era verdade.
Viu que as danças se tornavam mais frenéticas. Um homem atirou ao chão uma
mulher e cobriu-a com o corpo.
Tomás puxou André e o levou para fora da floresta, caminhando com segurança em
direção ao local onde tinham deixado os cavalos.
Só então, o rapaz conseguiu falar.
- Ouviu o que ele disse, Tomás?
- Não, m'sieur, não ouvi nada.
- Não ouviu nada? Mas tem que ter ouvido! O papaloi, quando saiu de debaixo do
cobertor, falou comigo.
Tomás soltou os cavalos.
- Não ouvi nada, m'seur,
André montou. Não adiantava conversar. Seguiu Tomás em direção à Planície.
Só quando não havia mais árvores gigantescas à sua volta, o criado falou:
- M'sieur foi abençoado por Damballah. Damballah vai ajudar.
- Se não ouviu nada, como sabe?
- O papaloi disse que m'sieur está sob a proteção de Damballa. Agora, tudo estará
bem.
- Não percebeu que o papaloi falou comigo sobre o tesouro que procuro?
- Damballah fala ao coração, m'sieur. Aquela era a resposta, pensou André.
Agora, acreditava que Tomás não tinha ouvido nada. Seu instinto lhe dizia que a voz
do tio só havia sido ouvida por ele.
Como era possível? Como um homem civilizado podia acreditar que aquela voz vinha
de um morto?
Lutou contra sua convicção interior de que aqueles acontecimentos eram verdadeiros.
Seria possível?
Era algo espantoso demais para compreender.
Então, pensou que não se preocupara, quando Jacques lhe falou sobre a garotinha
adotada pela família, que havia morrido com os outros.
Será que o nome dela era Sãona? Como poderia ter certeza? Na verdade, não sabia
muito sobre a menina.
Vagamente, lembrou-se de sua mãe conversando sobre o tio Phillippe e a esposa,
dizendo que estavam desapontados por terem três filhos homens e nenhuma menina.
O conde não a mencionou em nenhuma das cartas que escreveu, depois de saírem
da França. Mas, também, eram tão poucas!
Não sabia muito sobre os filhos dele, só o medo que sentiam pelo futuro do país.
Sãona. Que nome estranho! Não era francês.
Em voz alta, dirigiu-se à Tomás:
- Já ouviu falar de alguém chamado Sãona? Uma mulher?
- Não, m'sieur. André deu um grito:
- Mas claro! Eu já ouvi! É o nome de uma pequena ilha perto de São Domingos.
- Sim, m'sieur - Tomás disse, como se lembrasse também -, está certo.
- Sãona - repetiu.
Uma ideia lhe veio à mente: e se a freira que encontrou fosse a menina branca
adotada por sua família, chamada Sãona?
Havia muitas histórias de escravos que salvaram seus donos e crianças da morte
terrível. Podia ter acontecido isso com Sãona.
O tio tinha morrido há dez anos. Naquele tempo, a menina teria oito ou nove anos.
Agora, teria a idade da moça que vira na floresta.
Aquilo também explicava por que a madre superiora mentira. Estava com medo, por
pensar que ele fosse mulato, um perigo para a freira branca.
- Acredito que vamos resolver nossos problemas - disse, cheio de entusiasmo.
Tomás sorriu:
- Damballah é um grande deus, m'sieur.
Para André, foi difícil dormir, depois de ter passado por acontecimentos tão exóticos e
sensações tão intensas.
Tentou ouvir com atenção, para ver se percebia, à distância, os tambores.
Mas só escutou seu coração batendo... batendo. E a voz do tio, lhe dizendo o que
queria saber.
Tudo aquilo parecia impossível. Mal conseguia esperar que amanhecesse para
descobrir se o que ouvira estava correto; se, na verdade, Sãona era a freira que podia lhe
dizer onde o tesouro estava escondido.
Levantou-se cedo, antes que Tomás o chamasse, e ficou na sacada, olhando o que
restara do jardim.
Sentiu, de um modo estranho, que havia nascido novamente, durante a noite. Agora,
possuía nova força, vitalidade e coragem.
O ar quente e úmido já não o deixava nervoso, mas sim ativo. Achava que podia
escalar a montanha mais alta, nadar nas profundezas do mar e não sentir nenhum cansaço.
Foi ao poço, lavou-se e, quando terminou de se vestir, Tomás lhe trouxe o café.
- Obrigado, Tomás, por me levar à cerimônia de vodu. Acho que agora a magia negra
de Pedro ouanga não pode mais nos atingir.
- Damballah protege m'sieur - Tomás disse, sorrindo.
- Preciso descobrir se o que Damballah me disse estava certo. Traga o meu cavalo.
Não posso esperar mais para procurar Sãona.
O criado trouxe o cavalo, sem fazer comentários, e observou, sorrindo, enquanto
André se afastava.
Depois, vagarosamente, pegou alguns gravetos e folhas e, com eles fez o sinal
protetor de Damballah, encostando-o ao pilar, onde tinha encontrado a magia de Pedro
ouanga.
André dirigiu-se primeiro à igreja. Quando chegou lá, ficou em dúvida se não devia
pedir logo para ver a freira branca.
Então, pensou que elas recusariam, e talvez nunca mais conseguisse vê-la.
Precisava tomar cuidado e não esquecer que, tanto a garota quanto a madre
superiora, o viam como um inimigo, por causa da sua pele mulata.
Amarrou o cavalo e foi até a igreja, procurando descobrir o que devia fazer.
A porta estava aberta, como antes.
Entrou e viu duas figuras de mulher perto do altar.
Excitado, percebeu que uma delas usava o hábito branco sem véu. Apesar de estar
de costas, tinha certeza que se tratava da moça da floresta.
A outra, muito mais velha, usava o hábito e o véu semelhantes aos da madre
superiora.
Olhavam os murais e a freira jovem dizia:
- Acho que as tintas estão começando a descascar um pouco. Gostaria de comprar
um material melhor em Port-au-Prince.
- E quem podemos mandar até lá?
- É muito longe, além disso é arriscado mandarmos alguém até lá.
- Preciso me arranjar com o que tenho - a mais velha disse, em tom resignado.
- Pegue suas tintas agora, e eu a ajudarei a misturá-las.
- Está bem.
Desapareceu atrás de uma porta, que devia levar ao convento. A freira branca ficou
sozinha, imóvel, olhando os murais. Devagar, André se aproximou. Quando estava bem
perto, ela virou-se Novamente, viu que era mais bonita do que qualquer mulher que
conhecia. E a mesma expressão de terror surgiu nos olhos dela. Ele disse, depressa:
- Por favor, mademoiselle, não tenha medo. Não vou magoá-la. Preciso de sua ajuda.
A garota encarou-o, tensa. Percebeu que ela queria fugir, como antes, mas estava
entre ela e o caminho de saída.
- Por favor, me ajude, eu lhe imploro.
Com muito esforço, ela se controlou e respondeu, com a voz trêmula:
- Como... posso ajudá-lo?
- Meu nome é André de Villaret e estou aqui por um motivo especial. A respiração da
moça se tornou irregular. O coração quase lhe saltava do peito.
- Os... Villaret estão... todos mortos.
- O conde Phillippe de Villaret era meu pai natural.
André estava detestando dizer uma mentira àquela jovem tão adorável. No entanto,
precisava evitar que fugisse.
A moça corou, ao entender o significado do que ele havia dito. Como não gostou de
tê-la embaraçado, continuou:
- Isso não importa, mas estou convencido de que é a única pessoa em condição de
me ajudar. Imploro que me ouça.
- Como... posso... ajudá-lo?
- Podemos nos sentar e conversar sobre isso?
Pensou que ela ia recusar. Então, seus olhos se encontraram, e percebeu que,
mesmo contra a vontade, ela queria confiar nele.
Afastou-se um pouco e indicou um banco do coro, onde estivera sentado coma madre
superiora, no dia anterior.
Sentou-se, colocando o chapéu no chão, a seu lado. Depois de hesitar um momento,
a freira se aproximou.
Sentou-se o mais longe possível dele e cruzou as mãos.
- Estou morando na mansão de Villaret - André disse, com calma.
- Cheguei de Port-au-Prince há dois dias.
Fez uma pausa. A freira não pareceu muito interessada. Entretanto, sabia que ela
continuaria escutando.
- Ouvi contar como a casa era bonita e como eram lindas as plantações. Acho triste
encontrar tudo destruído e as plantações abandonadas.
Deu um suspiro e a moça suspirou também.
- Quando a vi na floresta - continuou -, fiquei muito surpreso. Não esperava encontrar
uma mulher branca e, principalmente, uma na qual os pássaros confiam. Talvez seja uma
irmã de São Francisco. Qual é o seu nome?
Como se achasse difícil encontrar as palavras, a freira respirou fundo
Depois, falou baixinho:
- Me chamam... de irmã Dévotée.
- Um bonito nome. E como consegue que os pássaros venham comer em suas mãos?
Ficou desapontado, ao saber que o nome não era Sãona. Mas teria sido fácil demais,
se ela fosse a jovem que procurava.
- Os pássaros sabem que eu... os amo. Mesmo tendo muita comida, eles preferem
comer em minha mão.
- Compreendo. Devo lhe dizer que formava uma cena lindíssima, com eles
esvoaçando ao seu redor. Se eu fosse um artista, como a sua amiga, gostaria de pintar um
quadro e chamá-lo "Santa Dévotée com os pássaros".
A freira deu um sorriso, que a tornou ainda mais bonita.
- Não sou uma santa. A madre superiora ficaria chocada, se o ouvis se dizer isso.
- Falei ontem com a madre superiora e ela me disse que as freira estão seguras aqui,
depois que fugiram do norte.
Pelo rosto dela passou uma expressão de desespero que ele não compreendeu.
- Não me disse... como posso. ajudá-lo...
- Concorda em fazê-lo?
- Depende. Como posso saber se poderei ajudar, se não sei o que quer?
Ele achou que a voz dela parecia atormentada novamente.
- Posso lhe jurar, aqui, diante deste altar, com toda sinceridade e honestidade, que
não desejo nada que a aborreça e amedronte.
- Quero acreditar em você, mas não acho que devamos ficar conversando aqui, a sós.
- Que importância tem? Em poucos minutos, sua amiga voltará com as tintas.
Portanto, não há nada a temer. Não há nada de estranho em duas pessoas conversarem,
sentadas numa igreja. E quem poderia nos guiar melhor do que Deus?
Temeu que ela achasse aquilo um sacrilégio e resolveu mudar de assunto.
- Vim para a mansão Villaret porque acredito que o conde, antes de morrer, deixou
algo que gostaria de me dar.
- A casa está vazia. - Tudo foi roubado, após o assassinato do conde. Quebraram
tudo, queimaram e roubaram os quadros, os móveis, tudo que estava lá.
- Como sabe? - André perguntou, de repente.
- Foi... o que me disseram. Quando fugimos para a floresta, podíamos ouvir o que
acontecia. Foi horrível! Horrível!
Podia imaginar o quanto tinha sido terrível; principalmente se ela estava na mansão
Villaret, com a família, preparada para morrer.
- Devia ser muito jovem, quando tudo aconteceu. Como é possível que já estivesse no
convento?
Fez a pergunta com calma, para ver a reação dela.
- Fui deixada com a madre superiora. Meus pais... morreram.
- E veio com elas, do norte?
- Era lá que os meus... pais viviam.
André pensou, rapidamente. Não queria fazer uma pergunta direta, indagando se era
ou não a filha adotiva do tio. Tinha medo de que, se fizesse isso, terminasse a conversa
entre os dois, para sempre. Seria muito difícil encontrá-la outra vez.
- É terrível pensar em tudo o que aconteceu. Tanta destruição, tanto sangue, tantas
mortes!
- E quando tudo isso vai acabar? - a freira perguntou. - Se os franceses vierem,
haverá mais lutas, mais sangue.
Falou com uma vozinha suave, infeliz, e André sentiu vontade de confortá-la.
- Fala como se os franceses fossem inimigos. Qual é a sua nacionalidade?
Encarou-o, como se desconfiasse daquela pergunta. Um brilho passou por seus olhos
e disse, devagar, com cuidado:
- Sou haitiana. Não... percebeu que sou... mulata?
André não pôde acreditar. Depois, olhou a base das unhas dela e percebeu a
tonalidade escura.
Mais tarde, lembrou-se do choque que sentiu diante daquela revelação, ficou tão
surpreso, que não conseguia falar. Só olhava para as lindas unhas dela, com as meias-luas
marrons
Queria gritar que aquilo era impossível, mentira!
A ideia de que aquela freira era branca havia se enraizado em sua mente, desde o
momento em que a vira, até o momento em que suspeitara que ela fosse Sãona. Agora, o
chão parecia sumir debaixo dos seus pés.
Uma mulata!
Tanto Kirk quanto Jacques lhe disseram que muitos deles não se distinguiam
facilmente dos brancos, fossem homens ou mulheres. E agora, ali, diante de seus olhos,
estava a evidência de que aquilo era verdade.
Em Londres e nos Estados Unidos tinha ouvido falar, apesar de não se interessar
muito pelo assunto, que os mulatos eram muito mais bonitos que as crianças brancas das
famílias mais importantes.
A freira era uma prova viva disso. Talvez sua beleza se devesse exatamente à mistura
de sangue.
Não sentia apenas o desapontamento por ela não ser Sãona. Havia algo de sensível,
delicado e tão lindo naquela freira, que ele a teria colocado num altar, para adoração, como a
santa dos pássaros.
Talvez fosse filha de um branco e uma negra, ou então, de uma mulata também.
Não conseguia falar. Vendo como estava chocado, a freira disse:
- Ainda estou esperando para saber como posso ajudá-lo. Agora, aquilo já não tinha
importância.
- Talvez eu tenha cometido um engano. Talvez ninguém aqui possa me ajudar. Estava
sendo otimista demais, mas o conde falou de um modo que me fez pensar que ele me
ajudaria, no futuro.
- Como poderia fazer isso?
- Deixando algum dinheiro para mim, ou um tesouro.
- Procurou na casa?
- O que há lá para procurar? Quartos vazios, tetos desabando. Acho que todos já
olharam nos lugares mais óbvios: debaixo do soalho, no teto. Não sobrou nada da mobília, a
não ser uma pilha de madeiras velhas, sobre a qual fazemos nossas refeições.
- Tem certeza de que o conde o ajudaria?
- Certeza absoluta. Se tivesse alguma dúvida, não teria mais, depois da noite
passada, quando fui a uma cerimônia de vodu.
Nunca teria contado aquilo a uma mulher branca. Mas a freira não era branca. Tinha o
mesmo sangue daqueles que adoravam Damballah, daqueles cujos corações batiam no
ritmo dos tambores.
Mas assustou-a. A moça levantou-se e foi até um banco, perto do altar.
- O vodu é errado para os cristãos - ela disse -, e aqui o povo não pode viver sem ele.
- Está proibido pelos governantes, não está?
Esperou que ela falasse, mas, como continuasse em silêncio, continuou:
- Como sabe, ninguém presta atenção a isso. Deve ouvir os tambores à noite e sabe o
que está acontecendo nas montanhas.
- Vodu é algo que não devemos discutir. Se não quer me dizer como posso ajudá-lo,
acho que não temos outros assuntos.
Sentiu que o tom de voz dela estava frio. Parecia ter-se aborrecido com ele, mas não
sabia por quê.
- Muito bem, vou lhe dizer o que quero. Quero saber se já ouviu falar de alguém
chamada Sãona.
Ela estava de costas, mas percebeu que seu corpo se enrijeceu.
- Sãona? - repetiu o nome, que em seus lábios parecia suave e atraente.
- Sim, Sãona. Era uma menina, adotada pelo conde. Contaram-me que foi
massacrada com o resto da família, mas na noite passada, na cerimônia de vodu, o espírito
falou como se ela ainda estivesse viva.
- Como podem estes... que praticam vodu saber qualquer coisa sobre Sãona?
- Não sei, mas me disseram que os tambores transmitem segredos, que não se pode
esconder nada deles; pelo menos, não daqueles que conseguem entender suas mensagens.
- Estão errados - a freira disse, depois de um momento. André levantou-se.
- Como sabe?
Falou com voz áspera, que ecoou na igreja. A freira virou-se e o encarou.
- Ela está morta. Sãona está morta!
Em casa, André sentou-se na varanda, para pensar, enquanto Tomás lhe preparava
algo para beber, sem fazer nenhuma pergunta.
Tomás devia saber, André pensou, ao vê-lo de volta, que a ida até a igreja não tinha
dado nenhum resultado.
Havia partido todo entusiasmado, certo de que as revelações da noite anterior lhe
indicariam quem era Sãona. Agora, era a imagem da frustração.
- Fui um tolo em pensar que seria assim tão simples - murmurou, furioso.
Na noite passada, tinha sido hipnotizado por esperanças falsas. Agora se desprezava
por ter acreditado que o vodu ajudaria a resolver o mistério.
Quando voltasse a Londres, seus amigos ririam, quando lhes contasse que, por um
momento, ao ver o papaloi saindo do cobertor, acreditara que tinha assumido a aparência de
uma serpente, o símbolo de Damballah.
- Vodus, serpentes e mulatos! Magia negra e magia branca, tudo parece uma grande
besteira, do princípio ao fim! Como pude ser tão idiota e acreditar numa bobagem tão
infantil?
Tomás chegou com a bebida e André, sedento, tomou-a rapidamente. O criado havia
misturado vários sucos de frutas, juntando água fria do poço.
Estava delicioso.
- Traga outro, por favor - André disse, aborrecido, entregando o copo vazio.
- M'sieur está desapontado?
- Extremamente desapontado! Se quer saber a verdade, acreditei no seu Damballah,
mas ele me abandonou.
Tomás sacudiu a cabeça.
- Damballah nunca falha! M'sieur está enganado. Afastou-se e André olhou-o,
aborrecido.
- M'sieur errou desde o começo - disse, baixinho - e só posso reclamar de mim
mesmo, por ser um tolo tão crédulo!
Suspirou.
Devia começar a cavar, pensou, mas sabe Deus como e onde? Olhou os lagartos
correndo a seus pés. Tomás voltou com outra bebida. Tomou o copo e disse:
- Na noite passada, Tomás, fui hipnotizado pelo seu papaloi. Ele me disse que devia
encontrar alguém chamada Sãona. Mas hoje me disseram que Sãona está morta. Talvez,
agora, você possa me explicar como poderei encontrá-la.
Falou com ironia, tomando o suco e pensando o quanto aquelas frutas eram gostosas.
Não era culpa de Tomás que seu ídolo fizesse brincadeiras.
- Damballah lhe disse para encontrar Sãona?
Falou devagar, como se tentasse esclarecer aquele quebra-cabecas para si mesmo.
- Exatamente. E vou lhe dizer algo que não disse antes. Ontem, vi uma freira na
floresta e pensei que fosse branca. Achei estranho que uma mulher branca sobrevivesse a
todos os massacres.
Tomás ouvia com atenção e André continuou:
- Depois do que ouvi na noite passada, tive certeza de que a freira era Sãona, a filha
adotiva do meu tio, mas descobri que ela é mulata. Suas unhas são escuras, como as
minhas. Isso me lembra que devo tingi-las novamente amanhã, ou terei problemas.
Tomás não falou. Ficou parado, pensando no que André lhe havia dito, como se fosse
algo complicado demais.
- Não tem importância, Tomás. Ainda vamos descobrir, de um modo ou de outro.
O negro continuou em silêncio.
- Não é melhor pensarmos no jantar? Para dizer a verdade, estou faminto.
- Estou pensando em Sãona, m'sieur.
- Ela está morta, já lhe disse. E a única pessoa que pode encontrá-la é o seu amigo
Damballah. Se você for a uma sessão de vodu esta noite, pergunte-lhe onde ela está.
Não pôde evitar o sarcasmo.
Então, muito devagar, com todo cuidado, como se as palavras lhe estivessem sendo
ditadas, Tomás disse:
- Damballah vai encontrar Sãona!

CAPÍTULO V

André desceu até o jardim.


O ar ainda estava úmido e as estrelas brilhavam no céu.
Não conseguindo dormir, decidiu vestir-se e sair para ver o amanhecer. Durante toda
a noite sua mente trabalhara. Não podia se convencer de que a freira não era Sãona. Todo
tempo, lembrava da decepção que sentira, ao saber que ela tinha sangue negro.
Afinal, era apenas uma freira e isso não teria consequências em sua vida. Mas, por
que, perguntava a si mesmo, não esquecia a expressão de medo dos olhos dela e o modo
como tremia, ao vê-lo se aproximar?
Sempre acabava voltando ao mesmo ponto: ela era uma mulata.
Aquela inquietação devia ser causada por aquele clima maldito, o vodu e todas
aquelas bobagens, que nunca tinha encontrado antes de ir para lá.
Tentou afastar os pensamentos, relaxar, mas em sua imaginação só via o rosto da
freira, os olhos enormes, a suavidade dos lábios, o narizinho reto. Quando a viu pela primeira
vez, pensou que ela fosse uma aristocrata. Que ironia!
Tentou outra vez afastar os pensamentos, mas não conseguiu e decidiu caminhar pelo
jardim. Esperava que o ar lhe refrescasse a mente.
- Preciso andar - disse, baixinho. - Preciso muito de exercício.
Sabia que, quando o sol nascesse, ficaria muito quente para caminhar, mesmo que
fosse vagarosamente, como os nativos.
Com passos largos, foi para o jardim, de onde pegou o caminho que levava à floresta,
aquele que havia usado da primeira vez.
Não queria admitir, mas a freira lhe causara uma impressão muito forte.
Ainda lembrava o jeito adorável com que alimentava os pássaros e a suavidade de
sua voz, ao falar com eles.
Continuou andando, procurando pensar em outras coisas: sua casa, os Estados
Unidos, a chegada ao Haiti.
Recordou-se de sua visita com Jacques à mansão Leclerc, e o encontro com Orchis.
Agora, era estranho, mas ela não tinha mais nenhum poder sobre sua mente, como
tivera nos primeiros dias em que se afastara de Port-auPrince, e a todo instante sentia
vontade de voltar.
Naquela época, precisou expulsá-la da memória, esquecer seus lábios, os braços, o
corpo se movendo contra o seu.
Agora, ela já tinha desaparecido na neblina do passado. Já não lhe despertava mais
nenhum desejo. Pelo menos, neste ponto, a proteção de Damballah tinha sido eficiente.
Em alguma parte secreta de seu íntimo, André acreditava que a magia de Pedro
ouanga, que encontraram perto do pilar, diante da casa, tinha algo a ver com Orchis.
Era verdade que a magia branca dominava a magia negra. Agora o poder do ouanga
tinha desaparecido, e Orchis também.
Caminhou entre os arbustos, sentindo o perfume delicioso das flores recém-
desabrochadas. Lembrou-se da freira.
Devem ser os lírios que me fazem lembrar dela, pensou.
Havia algo semelhante às flores na beleza da moça. Lembrava a delicadeza dos
jasmins e a inocência de um botão entreaberto. Não ia se esquecer dela como "Santa dos
Pássaros", entre uma porção de flores de laranjeira.
As flores de laranjeira eram as flores do casamento.
Se não encontrasse o tesouro que procurava, não poderia se casar. Apesar dos
protestos da mãe, continuaria solteiro o resto da vida.
Também para a pequena freira não existia nenhuma esperança de casamento.
Talvez, ela tivesse sido feliz em escolher a castidade.
Era tão linda, tão delicada. Tinha uma beleza espiritual; quem sabe, exatamente por
ser uma religiosa?
Então, continuando a pensar nela, afastou os galhos das árvores e, ali, à sua frente,
ele a viu.
Achou que era sua imaginação, pois havia muita neblina, que fazia tudo parecer uma
visão de sonho.
Mas a freira era real, assim como os pássaros que esvoaçavam sobre sua cabeça e
bicavam os grãos a seus pés.
Sem esperar mais, para admirá-la à distância, André se aproximou.
Os pássaros desapareceram mas desta vez ela não fugiu. Permaneceu sentada,
esperando-o, com os olhos arregalados e uma expressão que ele não compreendeu.
Chegou até ela e não conseguiu dizer nada. Ficou apenas olhando-a, como ela o
olhava.
O silêncio entre ambos se prolongou durante tanto tempo, que pareciam estar
conversando sem palavras. Então, André disse:
- Chegou muito cedo.
- Não consegui... dormir.
- Nem eu.
Ela olhou para as montanhas ao longe e disse, envergonhada:
- Esperei que... talvez... viesse aqui.
- Eu devia saber que estaria me esperando, pois senti vontade de vê-la.
Sem lhe pedir permissão, sentou-se a seu lado, no tronco caído de uma árvore.
- Os pássaros voltarão, agora que estou aqui?
- Talvez voltem, se você não se mexer.
- Gostaria de alimentá-los como você faz.
Ela deu um sorriso, pegou o saco de grãos e o colocou no colo.
- Estenda a mão.
André obedeceu e ela despejou alguns grãos de milho na palma da mão dele.
- Agora, estenda-a bem alto.
Ela fez o mesmo. Por alguns minutos, não aconteceu nada. Então, houve uma
revoada e os pássaros menores pousaram na mão da freira e ela os passou para a mão de
André.
Quando as duas mãos se tocaram, pareceu que uma estranha faísca percorria os
dois.
A freira não se mexeu, não se afastou, mas ele tinha certeza de que ela havia sentido
a mesma coisa.
Seu coração disparou. Havia uma estranha vibração entre ambos, que não sabia
explicar.
Os pássaros foram pousando, procurando grãos de milho.
Um após outro, muitos vieram para a mão de André.
Sentia um encantamento que nunca havia provado antes. Sabia que não era apenas
por causa dos pássaros, mas também pela moça sentada a seu lado, que lhe despertava
fortes sensações.
- Quero falar com você - ele disse, em voz baixa.
Apesar de ter quase cochichado, os pássaros se assustaram e voaram.
Abaixou a mão e jogou no chão o milho que sobrou. Virou-se e olhou diretamente nos
olhos dela:
- Por que queria me ver?
A pergunta direta fez a moça corar.
- Na noite passada, acho que fui... grosseira e não... ajudei. Fiquei envergonhada... e
queria que... me perdoasse.
- Pensou que me encontraria aqui?
- Se não... encontrasse... achei que... voltaria à igreja...
- Vim aqui porque não pude me controlar e ficar longe. Queria vê-la, pensei em você a
noite toda.
Suas palavras a deixaram espantada. Ficou tensa e o olhou. Mas sabia que em seus
olhos já não havia a expressão de medo que vira da primeira vez.
- Você é uma pessoa muito estranha, para ser encontrada aqui, ou em qualquer outro
lugar - ele comentou.
- Por que diz isso?
- Eu estava procurando uma igreja. Tinha certeza de encontrá-la nas vizinhanças, mas
não sabia que existia um convento.
Ela sorriu.
- Não é um convento muito grande. Mesmo assim, é uma comunidade de freiras. Os
lábios dele diziam aquilo, mas seus pensamentos eram muito diferentes.
- Como não conseguisse se controlar mais, perguntou:
- Como pode viver trancada lá, afastada do mundo? Como pode dedicar a uma vida
onde não terá um marido, não será amada por nenhum homem?
- Eu... tenho Deus.
- E é suficiente? Será suficiente, quando os anos passarem e você não conhecer o
amor humano? Nunca segurará um filho em seus braços.
Viu que ela estremecia. Então, como se não aguentasse o tom de acusação da voz
dele, disse:
- Pelo menos, estou salva!
- Está? Há muitos cristãos no país, mas isso não evita que matem uns aos outros. Há
também o perigo dos mulatos, que são odiados pelo imperador.
A freira tremeu e fez um gesto, pedindo que ele não falasse mais.
- Está tentando... me deixar com medo?
- É a última coisa que eu faria. Mas estou aborrecido, chocado, em ver uma pessoa
tão linda como você desperdiçando a vida, quando tem tanto para fazer.
A freira endireitou o corpo:
- A oração nunca é um desperdício.
- Pode rezar e, ao mesmo tempo, fazer outras coisas. Sou católico. Rezo, quando
estou em dificuldades; rezo, quando estou agradecido; rezo pedindo ajuda, mas também
estou preparado para viver no mundo, lutar e não fugir e tentar escapar da realidade da vida.
- Algumas vezes, ela é real demais... para se aguentar - falou, como se conversasse
consigo mesmo.
- Posso lhe dizer uma coisa? Ela virou o rosto, atenta.
- Quando a vi pela primeira vez, achei que tinha uma sorte incrível, que você era a
mulher que procurava, a menina adotada pelo conde de Villaret, a menina chamada Sãona.
- Por que pensou isso?
- Primeiro, porque ela era muito bonita; segundo, porque acreditei que você fosse
branca, e, terceiro, porque, na cerimônia de vodu, a voz me disse para encontrar Sãona.
Como um tolo, achei que ia ser fácil.
- E se você a encontrasse, o que faria?
- Acredito que ela me mostraria o que procuro. Planejei levá-la de volta para a
Inglaterra comigo, para viver com minha mãe.
- E acha que ela gostaria disso... se estivesse viva?
- Acho que dificilmente ela desejaria permanecer neste país, depois de tudo por que
passou.
- Sim - a freira concordou.
Fez uma pausa, e depois perguntou:
- Mora na Inglaterra? Pensei que morasse no Haiti!
Naquele momento, André se lembrou que estava disfarçado de mulato. Na verdade,
tinha esquecido completamente de sua cor.
Tarde demais, lembrou-se das palavras de Jacques, dizendo-lhe que não bastava
parecer um mulato; era preciso pensar como eles. O tempo todo, pensara como André de
Villaret.
Agora, percebia como tinha sido distraído.
- Estou vivendo na Inglaterra há alguns anos - disse, imaginando o que a freira
pensaria. - Na verdade, vim até aqui para ver se seria melhor viver no meu próprio país.
- Como é a Inglaterra?
- Muito bonita. Nunca encontrou ingleses, no Haiti?
Ela sacudiu a cabeça. Poucos ingleses eram católicos e dificilmente ela os veria na
igreja.
- Christophe gosta dos ingleses. Isso, porque gosta de qualquer um que deteste os
franceses.
- Meu pai era francês - a freira falou, suavemente.
- O meu também. É mais uma coisa que temos em comum. Ela o olhou, curiosa.
- As outras são o nosso amor pelos pássaros e o interesse pela pintura. Não se
esqueça de que a encontrei olhando os murais da sua amiga... E, também, nosso sangue é o
mesmo.
Sentiu que sua voz soava falsa, mas queria colocá-la à vontade; para ser honesto,
queria que ela o apreciasse.
De repente, o sol, filtrando seus raios entre os ramos, iluminou tudo com uma luz
dourada.
Cada folha e cada detalhe pareciam brilhar. André disse, impulsivamente:
- Qual a cor dos seus cabelos? Gostaria de ver o sol brilhando neles.
Aquilo amedrontou a freira, que se afastou.
- Está ficando tarde. Preciso voltar ao convento.
- Sinto que está tentando me enganar. Na verdade, acho que ninguém sabe que saiu
de lá.
Teve certeza disso, pela expressão que surgiu no rosto dela.
- Só quis alimentar os pássaros - disse, na defensiva.
- E me ver?
A freira não respondeu. De repente, ele teve medo de que ela realmente partisse.
- Tenho uma ideia. Deve estar na hora do café. Por que não vem até a casa comigo, e
comemos alguma coisa?
Ela o olhou, espantada.
- Não posso fazer isso.
- Por quê? Ainda é muito cedo. As freiras pensarão que está alimentando os pássaros
e não se preocuparão com a sua ausência.
- Mas...
- Tenha coragem. Pelo menos uma vez, pare de fugir do mundo. Entre nele.
Venha ver a casa em que estou, na companhia de Tomás, meu criado. Ele nos fará
um café delicioso.
Como se não pudesse se controlar, a freira riu. André levantou-se:
- Você vem?
Ela se levantou também, mas estava indecisa.
- Tenho... que voltar.
- Pense em como será aborrecido. Pense em como se arrependerá de não ter espírito
de aventura. Arrisque.
Ele sorriu e continuou.
- Depois, poderá fazer muitas penitências.
A freira continuou imóvel. Mais uma vez, ela o olhava, pensando se podia confiar nele.
- Por favor, venha.
- A madre superiora vai ficar zangada, se souber.
- Então, a não ser que ela pergunte, não conte nada. Há um provérbio que diz: o que
os olhos não vêem o coração não sente.
A freira riu.
- Está me conduzindo à tentação. Vou ter que fazer uma porção de orações de
penitência, se ouvi-lo.
- Talvez valha a pena.
Começou a andar pelo caminho por onde tinha vindo e ela o seguiu. Depois de algum
tempo, o caminho ficou muito estreito para andarem lado a lado.
Tomou a frente e, num impulso, segurou a mão dela.
- Está muito difícil, por aqui. Tenha cuidado para não cair.
Era apenas uma desculpa para tocá-la. Mais uma vez seus dedos se uniram e ele
sentiu a mesma faísca passando por todo seu corpo. Podia jurar que ela sentia a mesma
coisa.
Caminharam em silêncio, até que, um pouco adiante, surgiu a casa.
A freira respirou fundo.
- É tão linda!
- Gostaria de tê-la visto no passado. Como era, então?
Ela não respondeu. Só quando chegaram ao jardim, a freira retirou a mão da dele e
parou, olhando a casa.
- Lembra-se dela? - ele disse, sem saber por que fazia aquela pergunta.
Não acreditavam que, vivendo ali perto, ela nunca tivesse vindo até a mansão Villaret.
- Nunca vim aqui, desde...
- Desde que o conde e a família foram massacrados?
- Sim.
Estava muito pálida e ele achou que podia desmaiar. Segurou-a novamente pela mão.
- Venha. Se houver fantasmas, vamos conhecê-los. Vamos nos lembrar de que
estamos vivendo no presente, e não no passado, nem no futuro.
Sorriu para ela.
- Esta é a aventura que lhe prometi e não pense em mais nada com dificuldade, ela
desviou os olhos da casa e o encarou. Então,
Procurando parecer tão alegre como ele, disse:
- Como você já falou, vivemos no presente, e estamos aqui.
- Estamos aqui e eu estou com fome. Tenho certeza de que você também.
Puxou-a em direção aos degraus.
Ao começarem a subir, ela olhou a sacada quebrada, as vidraças espatifadas e as
trepadeiras subindo por todos os lados. Tomás apareceu.
- bom dia, Tomás. Temos uma convidada para o café.
O negro sorriu. A expressão dele era de uma alegria indisfarçável. Entrou correndo na
casa.
André, ainda segurando a mão dela, ajudou-a a subir os últimos degraus e chegar até
a sacada.
- Não temos mobília e Tomás só conseguiu limpar um quarto, que serve tanto de
quarto quanto de sala de visitas e sala de jantar.
A freira riu e entrou na casa, passando pela janela quebrada.
As madeiras estavam no centro do quarto, arrumadas com os pratos rústicos que
Tomás havia comprado e a xícara sem pires, onde André tomava café.
Ela não disse nada. Ficou apenas olhando em volta. Depois, dirigiu-se à abertura
onde antigamente ficava a porta, dando para o quarto ao lado.
- Cuidado! O chão pode afundar. Há muitas falhas e não me parece seguro ficar
caminhando por aí.
A freira parou e, depois de um momento, voltou.
- É... muito triste.
- Muito. Mas não podemos fazer nada. Então, vamos conversar sobre outras coisas. A
não ser que queira me contar como era este quarto, quando tinha mobília.
Ela sacudiu a cabeça.
- Eu estava... no convento.
- Sim, naturalmente. Mas, quando o conde construiu o convento e vocês vieram do
norte, deve ter vindo aqui, visitá-lo.
Ela não respondeu e ele achou que, talvez as lembranças do massacre tossem fortes
demais, e ela não quisesse reviver o medo que sentira, na floresta.
Entretanto, não precisou dizer nada, pois Tomás chegou trazendo um outro bloco de
madeira, que colocou ao lado do que servia de mesa.
- Cadeira para a senhora - ele disse, sorrindo para a freira.
- Obrigada, Tomás, é muita gentileza sua.
O criado desapareceu novamente e ela se sentou.
- Ele parece um homem bom.
- É um grande crente em vodu - André falou, provocando, para ver o que ela
responderia.
- Todos eles são. Quando o padre vem rezar a missa na igreja, uma vez por mês,
sempre prega contra o vodu.
Seus olhos brilharam e ela continuou:
- Observo que todos os presentes se sentem culpados e sei que, mesmo indo à missa
de manhã, à noite irão à sessão de vodu!
- Tomás tem certeza absoluta de que Damballah vai encontrar Sãona para mim.
- Acredita nele?
- Comecei a acreditar, até que, ontem, você me convenceu de que não era Sãona.
Fiquei muito desapontado e desanimado.
- O que fará agora?
- Tentarei encontrar o tesouro que o conde deixou para mim. Pelo menos, é o que
acredito.
- E se não conseguir?
- Aceitarei o inevitável e desistirei.
- E para onde irá? Ele deu de ombros.
- Talvez para Port-au-Prince. Talvez para a Inglaterra. Como já lhe disse, minha mãe
mora lá.
- E não voltará mais aqui?
- Acho que não. O Haiti não é um lugar muito agradável para os mulatos, como deve
saber muito bem.
- Fala muito bem o francês - ela disse, inesperadamente.
- Obrigado. Aceito isso como um elogio. Acho que quem tem uma certa mistura no
sangue herda o melhor dos seus antepassados. Entretanto, há casos em que se herda o
pior.
A freira não respondeu, mas olhou em volta, sorrindo. Tomás apareceu, carregando
uma travessa com ovos e verduras. Trouxe também café fresco e alguns bolinhos que devia
ter preparado como uma surpresa para André.
A freira bateu palmas.
- Tudo parece tão delicioso! Tenho que admitir que estou com muita fome.
- Então, não precisamos esperar mais.
- Precisamos rezar, agradecendo.
- Então, por favor, diga a oração.
Ela juntou as mãos, como uma criança, e disse uma prece em latim. Depois, abriu os
olhos e encarou-o, acusadora:
- Você não me acompanhou.
- Eu estava observando e pensei que rezasse por nós dois, pedindo todas as bênçãos
necessárias, para uma ocasião tão importante.
- Está brincando comigo. Eu devia voltar imediatamente ao convento!
- Pense no café delicioso que vai perder - André respondeu, e ambos riram.
Riram muito, enquanto comiam, e Tomás ia e vinha, servindo os dois, trazendo novos
pratos e espigas de milho cozidas.
- Nunca vi um café da manhã tão completo! Acho que não sentirei fome durante um
ano.
André lhe estendeu o lenço.
- É pouca a comida, no convento?
- É sempre a mesma... suficiente. Devolveu-lhe o lenço e continuou:
- Fui indelicada. A irmã Marie sempre tenta preparar o que gostamos, mas acho que
ela não tem muita imaginação.
- Então, enquanto eu estiver aqui, posso lhe oferecer os préstimos de
Tomás. Ele prepara a melhor galinha que já provei, no mundo inteiro.
- Tem muita sorte em poder viajar.
- Muita sorte. Ao mesmo tempo, gostaria de ter a casa com que sempre sonhei.
- Precisa do dinheiro para isso?
- E esperei encontrá-lo aqui. Talvez, tenha me enganado. Houve um momento de
silêncio.
- É difícil... na Inglaterra... a vida... de um mulato?
André sentiu um impulso de lhe dizer a verdade, contar que era francês e branco.
Então, lembrando que ela era mulata, achou que podia magoá-la e se colocar numa
situação perigosa, desnecessariamente.
Não acreditava, por um momento, que ela o traísse, revelando seu segredo.
Mas poderia comentá-lo com as outras freiras, que, sendo negras, talvez
simpatizassem com aqueles que, no momento, governavam o país.
- Conte-me sobre você. Sobre a sua família.
- Sou órfã e prefiro não falar sobre mim. As freiras do convento se dedicam à Cristo.
Ele é a nossa única família, a nossa vida. André levantou-se.
- Deixe-me mostrar o jardim. A não ser que deseje ver os outros quartos, que estão
num estado ainda mais deprimente do que este.
- Quero ver o jardim. Depois, preciso ir embora.
- Tenha cuidado ao sair pela janela.
Desceu na sacada e lhe estendeu a mão. Ela a segurou e ele sentiu um impulso
quase irresistível de tomá-la nos braços.
- Preciso ter cuidado - disse a si mesmo. - Se agir com muita familiaridade, posso
amedrontá-la e ela fugirá novamente.
Era fácil compreender por que tinha fugido, aterrorizada, na primeira vez em que o
vira.
Possuía o tipo de beleza que perturba e atrai um homem. Não era como Orchis, cuja
sensualidade tocava todos à sua volta; mas uma atração muito mais sutil, indescritível.
Parecia absurdo que, depois de conhecê-la há tão pouco tempo, já sentisse que ela
lhe pertencia e não quisesse deixá-la partir.
Queria abraçá-la, sugerir coisas malucas para fazerem juntos, tirá-la do Haiti, levá-la
para a Inglaterra, como pretendia fazer com Sãona.
Dirigiram-se ao jardim. Repetiu a si mesmo, mais uma vez, que aquele clima o
afetava. Não conseguia pensar com clareza.
Agora era o conde de Villaret, o chefe de uma família ilustre, antiga e venerável. Tinha
responsabilidades, não apenas para com a sua mãe, mas com os Villaret que haviam
permanecido na França.
Muitos deles tinham sido mortos durante a Revolução, mas ainda existiam primos
distantes que mantinham o seu nome e continuavam tentando sobreviver sob o domínio de
Napoleão.
Um dia, quando a paz voltasse, ele encontraria um modo de ajudá-los, como se
esperava que fizesse, na sua posição.
Um dos motivos para querer o dinheiro era exatamente se tornar capaz de cumprir as
obrigações para com os do seu sangue.
Passou-lhe pela cabeça que algo incontrolável o forçava a se aproximar mais e mais
daquela jovem desconhecida, daquela freira e, o que era pior, mulata.
Caminharam pelo jardim e, de repente, ele percebeu que a estava seguindo.
Ela ia adiante, mostrando o caminho. Depois de algum tempo, se encontraram em um
lugar que parecia um jardim secreto, cercado de muros.
Os muros haviam quase desaparecido, cobertos pela vegetação espessa e destruídos
em vários pontos. Muitas espécies de flores cresciam em canteiros.
No centro, havia um pequeno lago de pedra com um chafariz em forma de anjo
segurando um golfinho.
Antigamente, a água saía da boca do golfinho, jorrando para dentro do lago, onde
nadavam peixinhos dourados. André lembrava-se deste tipo de jardim com fontes, na
França.
Agora, ali não havia água, Peixes nada. Apenas lagartos correndo pela pedra
quebrada.
Mas ainda era um símbolo da elegância em que tinham vivido os tios, os primos e
Sãona, a garotinha.
- Não tinha visto isto, antes.
- É muito... bonito - a freira falou.
- Tanto quanto você.
Ela o olhou, surpresa. Seus olhos Se encontraram e não conseguiram se desviar.
Ficaram imóveis, olhando um para outro, parecia que o pequeno jardim vibrava com
eles. O mundo todo tinha desaparecido, não havia mais nada, além dos seus olhos.
- O que está acontecendo conosco? - André perguntou, com a voz tão baixa que mal
se ouvia.
A freira não respondeu.
- Quero tocá-la, quero beijá-la, sei que isso é proibido. Só sei que, desde que a vi,
algo aconteceu comigo. Algo que nunca havia acontecido.
- Eu... não... compreendo.
Seus lábios se moviam, mas as palavras não tinham importância. Você compreende.
Eu me apaixonei. Eu a amo e não posso mais controlar o que sinto. Quero voar, como os
seus pássaros. Agora que está aqui, agora que passamos esta manhã juntos, não
precisamos mais fingir. Você precisa saber a verdade.
- Você... me ama?
- Eu a amo! Eu a amo de um modo que não consigo explicar a mim mesmo. Um amor
tão grande e divino que não posso controlar.
- Não... devo... ouvi-lo.
- É isso que a sua mente lhe diz, mas o seu coração diz algo bem diferente. Sei que,
quando toquei a sua mão, sentimos alguma coisa muito especial. Você é minha. Só quero
saber como podemos vencer os obstáculos que existem entre nós...
A freira cobriu os ouvidos com as mãos.
- Não... posso ouvir... mais. Não posso... ouvir. Por favor, deixe-me ir!
- É livre para ir onde quiser. Sabe que não a impedirei. Eu a amo demais. Não farei
nada que possa magoá-la.
Ela parou na frente dele, ainda escondendo os ouvidos com as mãos. A cabeça
curvada, demonstrava a grande tristeza que a invadia. André resistiu ao impulso de se
inclinar e beijá-la.
- O que estou lhe dizendo? Sei que acredita que tudo está errado. Acho que, na
verdade, estou cometendo um erro em conversar assim com você. É uma freira. Só Deus
pode me ajudar!
Pensou que ela estivesse chorando e, instintivamente, estendeu os braços. Depois,
deixou-os cair junto ao corpo.
- Venha - ele disse, com uma voz que, de repente, ficara rouca, preciso levá-la de
volta. Não adianta nada ficarmos aqui nos torturando.
Ela levantou o rosto e ele viu que, nos olhos, não havia lágrimas, mas algo diferente:
uma tristeza que não esperava encontrar.
- Eu... eu não... sei o que... dizer.
- Não precisa dizer nada. Estou com vergonha de mim mesmo, devia ter tido um
autocontrole maior e não lhe contar como me sentia.
Caminhou para a entrada do jardim e ela o seguiu, devagar, como cada passo fosse
um sofrimento, quando chegaram em frente à casa, ele parou. Desculpe.
- Não precisa se desculpar.
- Preciso. Preciso muito. Comportei-me de um modo horrível. Você é uma freira. É
também minha convidada.
- Não quero que se reprove. Foi culpa minha. Não devia ter vindo aqui, mas você fez
com que parecesse uma aventura.
- É o que devia ter sido.
André apertou os lábios, para não dizer mais nada. Estava espantado com seu próprio
comportamento.
Como podia ter dito aquelas coisas? Como podia ter-se permitido aborrecê-la?
Preciso ir embora, pensou, angustiado.
Como se lesse seus pensamentos, a freira perguntou:
- Vou vê-lo... novamente?
- Duvido. Agora sinto que, quanto mais cedo voltar à minha vida normal, melhor.
- Está magoado comigo. Está infeliz, e eu não queria que isso acontecesse.
- É muito generosa. Tudo que aconteceu é minha culpa e só posso reclamar de mim
mesmo. Você é linda demais e capaz de transtornar qualquer homem.
Falou querendo brincar, mas sua voz tinha um tom de mágoa.
- Sinto muito.
Ele a olhou nos olhos e a amargura desapareceu. Todos os nervos de seu corpo se
tornaram mais sensíveis.
- O erro está apenas no seu ponto de vista. Se a situação fosse diferente, poderíamos
conversar normalmente. Agora, a melhor coisa que posso fazer é ficar em silêncio.
- Por quê? - ela perguntou.
- Por quê? - ele repetiu. - Sabe a resposta e eu também sei. Não podemos significar
nada um para o outro. Só seria uma agonia para nós dois.
Precisamos esquecer.
Percebeu uma expressão de dor nos olhos dela. Por um momento, pensou que, se
não fosse uma freira, a tomaria como amante.
Podiam ir para qualquer lugar do mundo, juntos. Mas sabia que, se sugerisse aquilo,
estaria difamando a pureza dela.
Não era apenas porque se tratava de uma freira, mas havia algo de espiritual nela.
Tinha certeza de que era mais inocente do que qualquer moça da sua idade, em Londres ou
nos Estados Unidos.
Não teve medo dele como um homem que poderia amá-la, mas sim como alguém que
a mataria. Era muito diferente.
André respirou fundo. Sentia-se velho e cansado.
- Escute, minha pequena "Santa dos Pássaros", quero que me prometa esquecer tudo
que aconteceu. Até que tomou café comigo e rimos durante a refeição que Tomás nos
preparou. - Sua voz ficou mais profunda. - E quero que me prometa mais uma coisa.
- O quê?
- Que nunca, nunca mesmo, ficará sozinha com um homem, como ficou comigo.
Os olhos dela se arregalaram; parecia curiosa, querendo saber por que lhe pedia
aquilo.
- É muito linda, bonita demais, muito perturbadora para se arriscar.
Compreende?
- Acho... que sim.
- Comportei-me de um modo horrível, mas um outro homem podia ter feito coisas
piores, e você não poderia evitar nada.
Ela corou, parecendo ainda mais jovem e frágil.
Outra vez, André sentiu vontade de abraçá-la, dizer-lhe que não precisava ter medo,
que iria protegê-la.
Estava tão linda, com o hábito branco e rodeada de flores, que sempre se lembraria
dela assim.
Então, percebeu que ali perto havia muitos lírios brancos com folhas verdes, as flores
de Nossa Senhora.
Ajoelhou-se, tomou a mão dela e a beijou.
- Perdoe-me. Sou o seu servo humilde e, um dia, talvez, compreenda por que foi tão
difícil para mim fazer o que está certo.
- Não deve se ajoelhar - a freira disse, amedrontada.
- Estou ajoelhando porque a amo e adoro. Onde quer que eu vá, qualquer que seja o
meu futuro, você terá sempre um lugar especial no meu coração.
Será a minha "Santa dos Pássaros". A santa que pediu uma bênção para mim,
quando rezou agradecendo a refeição.
Beijou a mão dela e se levantou.
- Venha. Vou levá-la de volta.
Caminharam em direção à entrada da casa e, ao saírem, ele percebeu que tinha
passado por uma experiência emocional que nunca experimentara antes, em toda a sua
vida. Estava exausto.
Tudo parecia irreal. Entretanto, sabia que falara com sinceridade, vinda do fundo de
sua alma.
Amava aquela freira que tinha encontrado só duas vezes, mas era um sentimento tão
devastador que, não tinha dúvida, invadira todo seu coração para sempre.
Dirigiram-se para a parte da frente da casa, procurando o caminho da floresta.
Tomás apareceu na sacada e chamou:
- M'sieur!
André voltou o rosto.
- O que é Tomás?
- M'sieur, espere!
O que estaria acontecendo?
O criado veio correndo, trazendo um prato nas mãos e uma toalha no braço.
- O que é, Tomás? - perguntou, quase irritado.
- A senhora pode querer lavar as mãos - disse, estendendo a água para a freira.
André lembrou-se de ter emprestado o lenço a ela, depois de comerem o milho
cozido.
A freira sorriu para o criado.
- Obrigada, Tomás. Foi muita gentileza sua, pensar nisso. Mergulhou os dedos na
água e depois enxugou-os na toalha. Tomás ofereceu a água e a toalha a André.
- Acho que, realmente, não precisa... - ele começou, mas achou que não devia
desapontar o criado.
- Obrigado - disse, lavando as mãos.
- M'sieur!
- O que é agora?
- Olhe os dedos da senhora. E olhe os seus, m'sieur!
Por um momento, não conseguiu entender o que estava vendo. Depois, percebeu
que, não apenas as meias-luas, mas também as pontas dos seus dedos estavam brancas.
Durante alguns segundos, sentiu-se constrangido.
Então, viu que Tomás olhava os dedos da freira. Estavam tão brancos quanto os dele.
O tom escuro, que provava que ela era uma mulata, havia desaparecido
completamente!

CAPÍTULO VI

Por um momento, André só conseguiu ficar olhando as mãos da freira. Então, ela
levantou o rosto e o encarou.
Parecia rodeada por uma luz que o cegava. Disse, numa voz que não parecia ser sua:
- Você é... Sãona!
- Sim... e sou... Sãona... e você... você não é um... mulato! Os olhos dela se
iluminaram, de repente. Então, rouco, ele perguntou:
- Você é uma freira? Já fez os votos? Sorriu, sem conseguir deixar de olhá-lo.
- Não. Foi... impossível para mim... fazê-los.
André se aproximou e segurou-a pelo braço. Tomás tinha desaparecido. Conduziu-a
pelo canteiro de lírios até o pequeno jardim escondido, onde haviam estado antes.
Só quando chegaram lá, Sãona olhou-o e perguntou, num murmúrio:
- Por que me trouxe até aqui?
- Acho que já sabe a resposta.
Largou o braço dela e examinou seu rosto perfeito, o nariz reto, os olhos. Devagar,
como se saboreasse cada momento, mas ainda com medo de que ela fosse uma freira,
passou o braço em volta de seu corpo.
A moça não resistiu. Ficou trêmula, e ele sabia que não era de medo.
- Eu lhe disse que a amava e achei que havia razões para que não pudesse
corresponder, razões pelas quais eu não tinha nenhum direito de declarar o meu amor. Mas,
agora, estas razões desapareceram.
Apertou-a mais e continuou:
- Eu a amo, Sãona! Eu a amo, quem quer que seja. Mas quero saber o que sente por
mim.
- Eu tinha... medo. Porque pensei... que você fosse... um mulato.
- Compreendo. Mas eu a amei, mesmo achando que em suas veias corria sangue
negro. Sabia que a queria para mim. Agora, não há nada que possa impedir o nosso amor.
Segurou o queixo dela, erguendo-lhe o rosto.
Naquela posição, parecia uma flor, um lírio branco, puro, tão perfeito, que ele sentiu
medo de tocá-la.
Não conseguindo se controlar mais, uniu os lábios aos dela. A inocência e a doçura
fizeram com que sentisse emoções que nunca sentira, ao beijar uma mulher.
Aquilo era o amor, pensou. O amor que não conhecia; o amor que era parte de algo
divino.
A pressão de seus lábios ficou mais forte, mais insistente. Agora sabia, sem que ela
lhe tivesse dado a resposta, apenas pelo toque daquela boca macia, que Sãona também o
amava.
- Você me disse que não é realmente uma freira. Então, minha querida, posso tirar
isso da sua cabeça?
Enquanto falava, gentilmente, puxou o turbante que cobria o cabelo dela.
Era louro, da cor da luz do sol.
- Por que não me disse quem era?
- Eu queria dizer. Meu coração me avisava que podia confiar em você, mas tive medo.
- Compreendo.
- Os mulatos vieram, depois que todos estavam mortos, e roubaram a casa.
Procuraram por toda parte, cavaram no jardim, onde pensaram que o dinheiro devia estar
enterrado.
André compreendeu que os mulatos do Exército de Dessalines deviam ser os que
descobriam os lugares onde os fazendeiros escondiam seus tesouros.
Os negros, inflamados pelo desejo de sangue e vingança, só queriam matar e
incendiar.
- Foi por isso que fugiu de mim, quando me viu pela primeira vez?
- Ninguém vinha à casa nem à fazenda, há muito tempo. E comecei a esquecer o
perigo.
- Não aguento pensar sobre o que teve de suportar.
- Você é mesmo o conde de Villaret? - ela perguntou, como se temesse tê-lo
compreendido mal.
- Juro que sou. E sou tão branco quanto você. Mas, quando cheguei a Port-au-Prince,
um amigo me ajudou. É mulato e me disse que seria loucura tentar chegar até aqui, a não
ser que usasse um disfarce.
- É perigoso ficar aqui, agora. Há sempre pessoas observando, sempre alguém
disposto a trair o homem branco.
Olhou ao redor do jardim.
- O imperador tem espiões por toda parte - disse, quase sem respirar.
- Tive muita sorte, até o momento. E, qualquer que seja o perigo, sei que valeu a
pena, pois a encontrei, meu amor.
Ela o olhou, com uma expressão de imensa felicidade. Beijou-a, agora
possessivamente.
- Eu a amo! Amo tanto que quase não consigo pensar em mais nada. Preciso levá-la
para a Inglaterra, minha querida.
- Não será fácil. Primeiro, precisa ter o tesouro que seu tio lhe deixou.
Porque estava tão apaixonado, e sentia-se tão feliz em abraçar Sãona, André, por um
momento, havia esquecido completamente o tesouro.
- Damballah me disse que Sãona iria me entregar o tesouro. Por isso, eu a estava
procurando.
- E agora que você me encontrou?
- Sei que encontrei um tesouro muito mais importante, mais maravilhoso do que
qualquer dinheiro do mundo.
- Acha mesmo isso?
- Ainda duvida de mim?
Ela deitou a cabeça no ombro dele, com um movimento de pura suavidade, como uma
criança tocando em algo que ama.
- Minha querida, quando podemos ir embora?
Suas palavras a fizeram pensar novamente no perigo que os rodeava.
- O mais cedo possível, mas não tenho certeza se vamos conseguir.
- Deixe tudo comigo. Falarei com Tomás e iremos a Lê Cap, procurar um barco que
nos leve para os Estados Unidos
- Parece tão perfeito, tão maravilhoso! E se nos pegarem?
- Então, morreremos! Mas sinto, minha querida, que Deus nos protegerá. O nosso
Deus, o seu e o meu, nos manteve em segurança até o momento. Há também os deuses do
vodu que com sua magia, falaram comigo, através da voz do meu tio.
- Você ouviu?
- Parece inacreditável e poucas pessoas na Inglaterra acreditariam em mim, mas, na
verdade, ouvi tio Phillippe falando comigo, pelos lábios do papaloi.
- Já ouvi dizer que isso acontece. E compreendo por que o papaloi quer ajudar.
- Por quê?
- O conde sempre foi gentil e compreensivo para com os que praticavam vodu. Alguns
fazendeiros eram cruéis e puniam severamente os homens, quando ouviam os tambores e
sabiam que tinham executado sacrifícios. Mas o conde costumava dizer que os homens não
vivem sem religião, qualquer que seja ela. E não importava os deuses que adorassem, eles
sempre os levavam a Deus.
- Parece mesmo o meu tio. Ele sempre foi um homem muito tolerante.
- Por isso, todos os que seguem Damballah, nesta região, vão ajudá-lo.
- Ficarei muito agradecido. Se não puderam salvar meu tio e família, pelo menos,
salvaram você.
- Foram as freiras que fizeram isso. Porque o conde foi bom com elas, quando vieram
para cá, depois que a Revolução começou. Ele lhes deu abrigo e construiu o convento.
Ela suspirou,
- Ninguém sabia que as coisas ficariam sérias, ou que se espalharia pelo sul aquilo
que já estava acontecendo no norte.
- Ouvi contar.
- As freiras ficaram muito gratas e, quando a situação piorou, perguntaram ao seu tio
como poderiam ajudar.
André sabia que aquela história estava entristecendo Sãona. Abraçou-a rnais forte e
lhe beijou o cabelo,
- O conde disse que achava difícil seus escravos se revoltarem. Mas caso isso
acontecesse, que as freiras procurassem salvar as mulheres da casa.
- Os outros conseguiram fugir, quando chegou a hora?
- Todos estavam sempre falando em fugir. A condessa arrumou a bagagem uma dúzia
de vezes. Então, como tudo parecia tão pacífico e calmo por aqui, achou bobagem chamar a
atenção, indo a qualquer lugar.
- Compreendo.
- O conde e a condessa foram ficando e ficando... até que um dia... Parou de falar,
com um soluço.
- O que aconteceu então?
- Foi no começo da noite. Um escravo chegou correndo em casa. Nós estávamos
sentados na sacada. Ele disse que um grande exército se aproximava, já estava entrando na
fazenda e incendiando os canaviais.
- Deve ter sentido muito medo.
- Acho que todos estavam com medo. Entretanto, o conde foi muito calmo e corajoso.
- O que ele fez?
- Mandou a condessa ir de uma vez para o convento, mas ela não quis.
Disse que seu lugar era ao lado dele. As duas senhoras que estavam hospedadas na
casa também se recusaram a fugir. "Se temos que morrer", uma delas disse, "morreremos
com vocês".
- Era assim que os aristocratas se comportavam no tempo da Revolução, na França -
André falou.
- Foi o que ouvimos. Mas tive medo e me agarrei à condessa. Não queria morrer.
Queria continuar vivendo.
- Você era apenas uma criança.
- Tinha nove anos, acabara de comemorar meu aniversário na semana anterior.
- O que aconteceu depois?
- O conde ordenou à criada negra, que cuidou de mim, desde que fui viver na casa,
que me levasse ao convento.
Ela deu um soluço e continuou:
- Então, não houve tempo de dizer adeus. "Corra, corra!", o conde ordenou. "A criança
estará segura lá. Não podemos perder tempo! "
Fez uma pausa, depois continuou, com lágrimas nos olhos:
- Ouvi, depois, contarem o que aconteceu... após ter partido para o convento.
- Quero saber, mas não quero deixá-la triste, meu amor.
- Acho que deve saber. O conde e os três filhos esperaram na frente da casa. Quando
os homens apareceram gritando e exigindo vingança, liderados por Dessalines, eles devem
ter percebido que não havia esperanças.
A voz de Sãona parecia engasgada.
- Os soldados cortaram as cabeças dos homens. As mulheres e crianças foram
empaladas em baionetas.
Agora ela chorava. André beijou-a no rosto e na testa. Continuou, em voz baixa:
- Mais tarde, ouvi contar que o conde tirou uma pistola do bolso, matou a condessa e
dois de seus filhos. O outro matou as duas senhoras! Então, os revoltosos o mataram!
André sentiu-se orgulhoso do tio e dos primos. Teria se comportado exatamente
daquela forma, se estivesse no lugar deles.
Não queria que Sãona se entristecesse mais. Beijou as lágrimas que rolavam pelo seu
rosto, antes de beijá-la nos lábios.
Sãona prosseguiu:
- Os soldados começaram a invadir a igreja e as freiras fugiram para a floresta, com
exceção de várias jovens que foram aprisionadas. Não sei o que aconteceu com elas.
André sabia. Pensou que era típico de Dessalines permitir a seus soldados a invasão
de uma igreja.
- Antes de morrer, meu tio lhe disse onde estava escondido o tesouro?
- Só disse... para mim.
- Por que ele fez isso?
- Sabia que muitos fazendeiros tinham sido torturados, junto com as famílias, antes de
morrerem, até revelarem seus esconderijos. Ele achava que, se os rebeldes chegassem até
a fazenda, pelo menos eu me salvaria.
Sorriu, com tristeza, e continuou:
- Talvez ele tivesse... uma intuição. Talvez Deus lhe tivesse dito que eu seria
poupada.
- Só posso agradecer a Deus por isso!
Beijou-a mais uma vez e sentiu um desespero repentino, como se ela pudesse ser
levada embora.
- Eu a amo! E sofro em saber tudo isso que passou.
- As freiras foram muito gentis comigo. A madre superiora e mais duas velhas freiras
são as únicas, no convento, que sabem que sou branca.
- Foi a superiora quem pensou em pintar suas unhas e disfarçá-la de mulata?
- Ela sabia como o general Dessalines era fanático em matar os brancos. Achou que
seria o único jeito de me salvar.
André pareceu surpreso e ela disse, em voz baixa:
- Mesmo para as outras freiras, poderia ser uma tentação revelar o esconderijo de
uma fugitiva branca.
- Compreendo.
- A superiora disse que nem mesmo os padres deviam saber do meu segredo. E
quando o padre vinha nos visitar, uma vez por mês, eu me escondia.
André olhou-a, confuso.
- Como poderia assistir à missa, sem participar da confissão? E se fosse confessar,
teria que contar ao padre.
- Naturalmente. Então, todos estes anos, minha querida, você não pôde ter os
confortos da religião?
- Eu ouvia os sermões, de onde ninguém pudesse me ver, e rezava muito, sempre
que estava sozinha.
Beijou-a outra vez.
- Precisamos ir embora. Meu momento mais feliz será quando chegarmos em
segurança à Inglaterra. E, talvez, um dia, com a ajuda de Deus, possamos voltar ao nosso
lar, na França, ao qual pertencemos.
Sãona deu um risinho:
- Eu lhe disse que o meu pai era francês, mas a minha mãe era inglesa.
- A minha também. Por isso, então, minha querida, você tem esse cabelo lindo.
- Sou muito parecida com mamãe. Ela ficou tão infeliz, depois que papai morreu em
uma batalha no mar, que só desejava encontrá-lo, no paraíso.
- Seu pai era da Marinha?
- Sim, por isso mamãe veio para o Haiti, para ficar perto dele. Eu nasci aqui. Mas,
depois que ele morreu, não conseguimos ir embora e mamãe ficou... tão doente.
Novamente, os olhos de Sãona se encheram de lágrimas.
- Papai era amigo do conde Phillippe. Quando soube da morte de mamãe, o conde me
trouxe para cá e disse que eu seria a filha que ele sempre desejou ter.
- Deve tê-la amado muito e sentido orgulho de você, como eu. Queria ficar aqui o dia
todo, dizendo o quanto a amo, mas precisamos ser razoáveis e fazer planos para fugir.
- Posso mesmo ir com você?
- Acha que eu a deixaria aqui? Minha querida, você tem toda a minha felicidade em
suas mãos e eu lhe juro que é verdade, quando digo que não posso mais viver sem você.
Beijou-a até que o jardim e tudo mais rodopiasse ao seu redor, que seus pés
parecessem flutuar, como se estivessem voando para o céu.
Então, com um esforço sobre-humano, André se forçou a pensar seriamente na
situação de ambos.
- Coloque o turbante, de modo que ninguém possa ver o seu cabelo. Então,
voltaremos até a casa e pedirei a Tomás que prepare a tinta para colorir novamente nossas
unhas.
Sãona pegou o tecido branco que André atirara no chão e enrolou-o na cabeça.
- É muito linda. Quero lhe comprar roupas de cetim e sedas, enfeitá-la com colares de
pérolas e lhe dar um anel de noivado que brilhe tanto quanto os seus olhos.
Ela sorriu, envergonhada.
- Infelizmente, a não ser que me diga onde está o tesouro, será difícil comprar todas
essas coisas.
- O tesouro está aqui, mas acho melhor vir buscá-lo à noite, um pouco antes de
escurecer completamente.
- E por que não depois de escurecer?
- Porque, se alguém vir luzes na igreja, virá investigar.
- O tesouro está na igreja? Ela fez que sim.
- Meu tio disse isso, na carta que escreveu a papai. E disse que o havia colocado na
terra, à sombra de Deus.
- Foi exatamente o que fez - Sãona disse - e eu lhe mostrarei como encontrá-lo.
- Obrigado, querida. Agora, vamos cuidar de nossas mãos. Depois, eu a levarei de
volta.
- A madre superiora deve estar preocupada comigo. Nunca fiquei na floresta durante
tanto tempo.
- Precisa ter cuidado, muito cuidado. Eu podia, afinal, ser mesmo um inimigo e a teria
maltratado.
- Quando conversei com você na igreja, soube que, apesar dos meus temores, nunca
iria me magoar.
- Como podia saber disso?
- Acho que foi o amor que me disse. Beijou-a outra vez e dirigiram-se para a casa.
Tomás os esperava, com a tintura preparada. Deu um largo sorriso, e André disse:
- Você é uma raposa velha, Tomás! Como soube que mademoiselle Sãona estava
disfarçada como eu?
- Damballah prometeu encontrar m'mselle.
- Acho que isso é o mais próximo que podemos chegar da verdade - André disse,
baixinho, a Sãona. - Continuarei curioso, durante anos, para saber como Tomás descobriu o
seu disfarce. Será que ele ouviu algum comentário no vilarejo? Ou os tambores de
Damballah lhe disseram?
- Nunca saberemos - disse Sãona. - Mas ele foi muito inteligente, me revelando o seu
segredo.
- Era algo que não tinha nenhum direito de fazer! - respondeu, sorrindo, enquanto
tentava parecer furioso.
Tomás pintou cuidadosamente as meias-luas das unhas de Sãona. Depois, restaurou
a cor de André.
- Não tinha ideia de que essa tinta saísse com facilidade - ele disse.
- Uma árvore faz o marrom, outra árvore faz o branco - Tomás explicou. - A árvore de
fazer o branco é muito secreta. Pouca gente conhece.
- Há mesmo muitos segredos no Haiti. Se a árvore de fazer o branco cresce aqui, por
favor, traga bastante pó, para levarmos, quando formos embora.
O negro fez que sim, como se já tivesse pensado naquilo.
- Agora, preciso ir - Sãona disse, olhando as unhas, para ver se estavam secas.
- Vou acompanhá-la até a floresta. Virou-se para o criado:
- Tomás, nós três temos que ir para Lê Cap o mais cedo possível. Acho que
precisaremos de mais um cavalo.
- Não será difícil.
- Precisa ser um cavalo muito bom, pois acho que um dos nossos animais está
doente. Deve dizer isso, senão as pessoas perguntarão por que precisamos de três cavalos,
se somos apenas duas pessoas.
Tomás concordou e André, segurando a mão de Sãona, saiu para a sacada. Enquanto
caminhavam, ela lhe contou como a mansão Villaret era bonita, antes da destruição, dos
saques e incêndios.
André não havia visto o tio durante muitos anos, mas, ouvindo a descrição de Sãona,
sobre a maneira como vivia, sentiu que as lembranças lhe voltavam.
Os três filhos eram rapazes finos, interessados na plantação. O mais jovem, Sãona
disse, era um artista talentoso.
- Foi pensando nos quadros dele que sugeri a decoração do altar da igreja.
- Foi sua ideia?
- Descobri que a irmã Térèse adorava desenhar e pintar. Como você viu, ela tem
muito talento.
- Achei os murais, apesar de bem primitivos, cheios de uma estranha fortaleza.
- Também acho. Foram pintados com muito carinho, o que ajuda bastante.
Pensou que ela tinha duas grandes virtudes: o amor e a fé. Era difícil que uma mulher,
vivendo a vida que ela vivera, continuasse tão bonita, não apenas de corpo, mas também de
alma. Era um homem de sorte.
- Virei até a igreja por volta das quatro horas. Terei tempo de rezar, até que você ache
seguro vir se encontrar comigo.
- Você reza... realmente?
- Sim, tenho muito a agradecer e uma porção de favores para pedir, tanto agora,
quanto para nosso futuro próximo.
Ela riu.
- Rezarei muitas novenas para que possamos sair daqui em segurança.
- Tenho certeza de que suas preces serão atendidas - André disse, com toda
sinceridade.
Enquanto voltava para casa, pensou em como tudo aquilo era estranho. Na verdade,
estava tendo uma sorte incrível. Não apenas conseguira chegar sem problemas à mansão
Villaret, como encontrara a jovem que procurava.
Só desejava que o tesouro do tio, escondido com tanto cuidado, fosse suficiente para
o futuro de ambos.
Uma coisa o preocupava, mas não disse nada a Sãona. Temia que o tesouro fosse
muito pesado e difícil de transportar até Lê Cap. Tudo podia se tornar perigoso demais.
Bolsas grandes sempre despertavam suspeitas em tempos difíceis. O ouro não era
fácil de levar de um lado para outro, a não ser em quantias insignificantes. Precisava
descobrir um meio de disfarçar o tesouro, mas só conseguiria ter alguma ideia, quando visse
exatamente o que o tio havia escondido.
Ao chegar à mansão Villaret, não encontrou sinal de Tomás. Não havia nada para o
almoço, e André estava faminto.
Todas as emoções da manhã acabaram com suas energias. Entretanto, não se
lembrava de uma época em que se sentisse mais satisfeito consigo mesmo.
Sempre tinha rido da ideia do amor à primeira vista, dos homens que diziam ter
mudado de vida, depois de encontrarem determinada mulher.
Era exatamente o que lhe havia acontecido. Não podia descrever todas as mudanças
que sofrera em tão pouco tempo.
Parecia conhecer Sãona há milhões de anos. Ela estava dentro de sua alma, de seu
coração.
Era completamente sua, como se já estivessem casados por toda uma vida.
Sabia que seus corações batiam juntos. Sãona teria comentado que tinham sido
abençoados por Deus.
André olhou a beleza do jardim e depois levantou os olhos para o céu.
- Obrigado, meu Deus!
Era a oração mais sincera que já tinha feito na vida.
Tomás voltou, um pouco depois, dizendo que encontrara exatamente o tipo de cavalo
de que precisavam. Não era muito caro. Se lhe desse o dinheiro, poderia trazê-lo à noite.
- Quanto mais cedo, melhor. Agora que encontrou tudo, precisamos ir embora. Vou
dizer a mademoiselle que fique pronta para amanhã de manhã. Você conhece o caminho
para Lê Cap?
Tomás fez que sim.
Ele nunca dizia palavras desnecessárias. Depois entrou e foi buscar um suco de
frutas.
O almoço foi servido tarde. André teve pouco tempo, antes de sair para a igreja.
Estava em dúvida, se iria a cavalo ou a pé. Se fosse a cavalo, poderia, na volta, trazer
parte do tesouro. Por outro lado, teria que deixar o cavalo amarrado do lado de fora da igreja
e isso despertaria curiosidade.
Tinha visto poucas pessoas, desde que chegara à mansão Villaret. Mas sabia que
existiam povoados nas redondezas e homens trabalhando nas plantações de cana e de
banana.
Era inevitável que ficassem curiosos com um estranho. Naquele momento, seria
aconselhável não chamar nenhuma atenção.
Resolveu ir a pé. Mais tarde, ou na manhã seguinte, bem cedo, quando houvesse luz,
podia voltar com Tomás e levar tudo.
Chegou à igreja um pouco depois das quatro horas. Entrou pela porta do lado oeste,
que sempre ficava aberta, e ajoelhou-se para rezar.
Tudo estava muito quieto e o clima era fresco. Imaginou quantas pessoas, através dos
tempos, tinham ido até ali, meditar sobre problemas e dificuldades.
André se sentia ansioso sobre sua própria segurança. Mas agora a ansiedade
aumentara. Preocupava-se com Sãona.
Parecia incrível que, ainda tão jovem, já tivesse sofrido tanto, suportando infelicidade,
agonia e terror.
Estava tão mergulhado em seus pensamentos, que não a viu chegar. Só quando o
tocou no ombro, foi que se ergueu. Ela não falou, apenas estendeu a mão que ele beijou.
Sãona virou-se, fechou a porta e colocou a tranca de madeira. Depois, tomou a mão
dele e o puxou para o corredor.
Ambos se ajoelharam diante do altar e André olhou para os murais que decoravam a
parede.
Sentia que o colorido daquelas pinturas lhe dava uma sensação de proteção e
compreensão.
Entraram atrás do altar, descendo alguns degraus.
Tinha sido construído no lado leste, de modo a se poder passar entre ele e as paredes
de pedra.
Sãona caminhou na frente, direto para o lado oposto ao centro do altar. Havia flores e
velas por ali e, acima deles, a pesada cruz entalhada.
Sãona olhou para cima, depois curvou-se e apontou uma pedra chata, colocada
exatamente atrás do altar, onde André percebeu que caía a sombra da cruz.
Ela lhe deu uma barra de ferro, para remover a pedra.
A abertura embaixo era pequena. Nada grande podia estar escondido ali.Sãona sorriu,
encorajando-o, e lhe entregou uma pá.
Cavou quase meio metro e bateu em algo.
Enfiou a mão no buraco e puxou uma bolsa de couro, não muito grande, que tilintava.
Agora, era difícil disfarçar seu desapontamento e desânimo. Não podia
haver muito dinheiro numa bolsa tão pequena.
Sem olhar o conteúdo, colocou-a de lado.
- Devo colocar a terra de volta ao buraco? Ela sorriu, como se ele fosse uma criança
boba:
- Cave mais fundo. Isso é apenas para enganar os ladrões e fazê-los pensar que é
tudo.
- Há mais?
- Você vai ver.
Começou a cavar, com novas energias. Agora iria muito mais fundo. O monte de terra
a seu lado crescia e crescia.
Outra vez, bateu em algo. Teve que enfiar o braço todo, para conseguir pegar outra
bolsa de couro.
Era um pouco maior do que a primeira, mas não muito. Novamente, sentiu-se
desanimado.
Olhou para Sãona, querendo perguntar se devia continuar cavando, mas ela disse,
suavemente:
- Olhe dentro.
Enquanto desamarrava, calculava que não devia conter muito dinheiro, pois era bem
leve.
Por um momento, não entendeu o que estava vendo. Então, a luz do poente passou
por sobre suas cabeças e algo brilhou.
- Diamantes! - disse, atônito, temendo estar enganado.
- Sim, diamantes. Quando seu tio me mostrou onde estavam escondidos, disse que os
comprou por que seriam mais fáceis de levar, se tivesse que fugir do país.
- Diamantes! André murmurou, quase sem respiração. Aquela coleção valia realmente
uma grande fortuna.
O tio era inteligente. Enquanto o tesouro dos outros fazendeiros era em ouro e prata,
fácil para Dessalines achar e tão pesado que precisaria ser transportado, de volta a Port-au-
Prince, em cinco mulas, o dele permanecera escondido.
Aquela fortuna não precisava de nenhum esforço para ser carregada. Só muito
cuidado, para que não fosse roubada.
Deu a bolsa com os diamantes para Sãona e, rapidamente, empurrou a terra para
dentro do buraco.
Depois, colocou a pedra e arrumou a terra em volta dela, procurando não deixar
vestígios de sua escavação
Pegaram a bolsa com o ouro, voltaram ao interior da igreja, e se ajoelharam diante do
altar.
Só quando chegaram à saída, André disse, em voz baixa.
- Como posso lhe agradecer?
- Agradeça a Deus por ter protegido o tesouro, guardando-o para você.
- Farei isso. E você, esteja pronta para partir comigo, amanhã de manhã.
- Já falei com a madre superiora. Ela compreendeu. Vai me dar um endereço em Lê
Cap, onde estaremos seguros, até encontrarmos um navio.
- Agradeça a ela por mim.
- Já fiz isso. Se você a encontrar amanhã, não mencione sobre o tesouro.
- Nem pensaria em fazer isso. Sei que você não falou nada sobre isso a ninguém.
- A ninguém. Algumas vezes, imaginei o que aconteceria se eu morresse e nenhum
Villaret viesse procurar o tesouro.
- Felizmente, isso não aconteceu. Agora, minha querida, podemos ter certeza de que
nosso futuro está garantido. Poderei comprar todas as coisas que quero lhe dar.
O rosto dela era adorável. Ofereceu os lábios a ele:
- Eu só quero você.
De volta à casa, tarde da noite, André sentou-se em seu leito, olhando a bolsa de
diamantes e tentando avaliá-los.
Não sabia muito sobre pedras. Sua mãe tinha poucas jóias, as sobras de uma grande
coleção que possuíra antes da Revolução Francesa.
Havia um anel, muito especial, que ela se recusara a vender. Dizia que o guardava
para dar à esposa que ele escolhesse.
- Há duzentos anos, este anel está na nossa família. Não acho que devemos
transformá-lo em algo tão mundano como pão, apenas porque temos fome!
- Podemos, com a venda dele, comprar mais coisas, além de pão André disse, rindo.
- Sei disso. Na verdade, já me ofereceram mil libras por este anel, quando o levei para
consertar.
- Mil libras!
- Será o dote da sua esposa. Não tenho mais nada a oferecer a ela e não quero que
se aproxime de uma mulher com as mãos completamente vazias.
André compreendeu o sacrifício que ela fazia e beijou-a.
- Obrigado. Mas, se precisar do dinheiro, insisto em que venda o anel.
O diamante de sua mãe não se comparava com aquelas pedras, na bolsa. Sou um
homem rico, pensou.
Então, soube que o que o fazia realmente um homem rico e feliz era ter encontrado o
amor de Sãona.
- Por favor, Deus, faça com que cheguemos a salvo na Inglaterra. Apertou as duas
bolsas contra o peito, antes de fechar os olhos.
Acordou de repente, com Tomás sacudindo seu braço. Arregalou os olhos, espantado,
despertando de um sono profundo.
- Acorde, m'sieur, acorde.
O negro estava nervoso. André sentou-se.
- O que foi?
- Temos que sair agora. Depressa!
- Por quê?
- Os tambores dizem que soldados estão vindo de Port-au-Prince!
- Soldados?
- Soldados procurando m'sieur.
Tinha sido um tolo, em não prever que aquilo aconteceria. Orchis devia ter descoberto
que tinha ido lá, procurar o tesouro, e estava mandando soldados para tirar proveito disso.
Só queria saber como ele e Sãona poderiam fugir dali, antes de serem presos e
mortos.
Nem se importou em perguntar como os tambores sabiam que os soldados estavam à
sua procura. Era suficiente saber que tinha uma chance, pelo menos uma, de tirar Sãona
dali, em segurança.
Calçou as botas, pegou as duas bolsas e correu para fora. Tomás já o esperava, com
os cavalos prontos, a bagagem amarrada nas selas.
André pegou a rédea e lhe estendeu as duas bolsas com o tesouro.
- Coloque isso na bagagem do seu cavalo, Tomás.
O criado obedeceu com extrema rapidez.
Então, sem desperdiçar mais palavras, André montou e Tomás seguiu-o, levando o
terceiro cavalo.
CAPÍTULO VII

Chegaram ao convento à luz das estrelas e de uma pálida lua.


Tudo estava quieto e o luar se refletia no sino de bronze, pendurado sobre a porta.
André desmontou do cavalo e ia tocar, mas mudou de ideia.
Pensou que o sino chamaria muita atenção. Preferiu bater na porta. Bateu, esperou e,
depois de um momento, bateu outra vez.
Rapidamente, a porta foi aberta e uma velha freira surgiu na escuridão.
- Quem é? - perguntou, assustada.
- Quero ver a irmã Dévotée e a madre superiora, imediatamente! Ninguém precisa ter
medo.
- Irmã Dévotée?
- E a madre superiora - André repetiu, levantando um pouquinho a voz.
Fez menção de fechar a porta. Ele deu um passo à frente e entrou. Ela o olhou,
insegura, e o rapaz disse, em tom autoritário, apesar de gentil:
- Por favor, procure a madre superiora, imediatamente, e acorde a irmã Dévotée.
A freira desapareceu, seus passos ecoando pelo convento.
Esperou, impaciente. Todos os segundos eram da máxima importância. Só conseguia
pensar em como tinha tido sorte por saber que os tambores de vodu lhe davam mais uma
chance.
Ouviu passos. A madre superiora se aproximava. Usava o hábito completo e ele
achou que havia interrompido sua vigília noturna. Antes de André falar, perguntou:
- Há perigo? André fez que sim.
- Meu criado disse que os tambores de vodu avisam que soldados estão à minha
procura.
- Então, precisa fugir, imediatamente.
- Vou levar Sãona, em segurança, para a Inglaterra.
- Foi o que ela me falou. Hesitou um momento e acrescentou:
- Ela também me disse que vocês se amam.
- Logo que for possível, ela se tornará minha esposa. Viu o contentamento aparecer
no rosto da freira.
- Obrigado por cuidar dela e protegê-la. Sem a senhora, ela teria morrido.
- Seu tio morreu corajosamente, assim como toda a família.
- Sãona lhe disse quem sou?
- Sim e estou contente que a leve embora. Aqui não é um lugar bom para ela. Cedo ou
tarde, seria descoberta.
- É muito compreensiva.
Ouviu sons de passos correndo e, um momento depois, Sãona chegava. André olhou-
a, ansioso, e a superiora disse:
- Precisamos tomar todas as precauções. Será perigoso, muito perigoso para qualquer
mulher branca, ir a Lê Cap, no momento.
André compreendeu que ela havia disfarçado Sãona. Levou um choque. A pele
branca, quase transparente da moça, estava escura como a dele. E mais: usava o hábito e o
véu negro iguais aos da madre superiora.
Por um momento, André ficou aterrorizado, pensando que algo em Sãona pudesse ter
mudado. Então, viu a expressão dos olhos dela, como se lhe implorasse compreensão.
Sorriu:
- Ainda está muito bonita, minha querida, mas devo ter cuidado com o que lhe digo,
agora que usa um hábito tão sério!
Procurou falar em tom alegre, para diminuir a ansiedade de Sãona e da superiora.
- Não podem mais perder tempo. Aqui está uma carta para levarem ao meu irmão -
disse a madre. - Ele é padre na igreja de Nossa Senhora de Lê Cap. Procurem-no e peçam
sua ajuda. Mas não lhe digam que são brancos.
Deu um risinho:
- Tenho certeza de que ele não iria traí-los, mas acho melhor não envolvê-lo.
- É muito sábia. Obrigado, mais uma vez, por ter cuidado da minha futura esposa.
Pegou a mão da freira e beijou. Sãona ajoelhou-se diante dela.
- André lhe agradeceu, mas meu coração também quer fazer o mesmo. Só lhe peço
que nos abençoe, antes que eu saia daqui e entre no mundo. Ele me parece tão estranho e,
às vezes, amedrontador. E não a terei ao meu lado, para me orientar.
Os olhos da freira se encheram de lágrimas.
- Deus a abençoou, minha criança, como também abençoou este homem, que você
ama. Sua proteção os acompanhará, onde quer que estejam.
Sãona levantou-se e beijou-a no rosto. Em seguida, virou-se para André, que a tomou
pela mão, e saíram juntos do convento. Tomás os esperava do lado de fora.
Sem falar nem olhar para trás, partiram. Cavalgaram até que o sol nasceu e tornou
tudo quente demais.
Então, como sentiam muita fome e sede, sentaram-se à sombra de uma árvore, ao
lado de um riacho.
- Quanto tempo demora para chegarmos a Lê Cap? - Sãona perguntou, enquanto
pegava a comida que Tomás lhe estendia, junto com uma garrafa de suco de frutas.
- Não tenho a menor ideia. Depende da velocidade em que viajarmos.
- Parece que já caminhamos muito.
- Está muito tensa, minha querida? Deve ter sido duro para você, cavalgar durante
todo este tempo.
- Eu costumava montar todos os dias, quando vivia com seu tio. Agora, perdi a prática
e tenho medo de sentir dores. Mas não tem importância.
- Tudo que diz respeito a você tem importância. Ela virou o rosto, quando ele a olhou.
- Não gosto que me olhe assim - murmurou.
- Parece muito bonita, mas quase não consigo vê-la, por causa do véu escuro.
- Sabe que é um disfarce - Sãona disse, sorrindo. - Um disfarce que ninguém deve
perceber.
- A madre superiora foi muito esperta. Seria impossível, para você, tão bonita,
permanecer em segurança em um lugar onde outros homens a vissem.
- Quero que me ache bonita. Mas, por favor, compreenda que sou muito ignorante
sobre a vida. Passei os últimos dez anos entre freiras, no convento. Talvez, quando me
conhecer melhor, me ache aborrecida. Talvez, eu cometa muitos erros.
- Sempre a acharei adorável e a pessoa mais interessante que já conheci em toda
minha vida. Não é apenas o que pensa ou diz que importa, minha querida, mas o que você é,
a sua vibração, sua aura mágica.
- Me faz sentir tão feliz! Enquanto me aprontava para vir encontrá-lo hoje, perguntei a
mim mesma se seria bom você se ligar a uma mulher que realmente vem de um outro
mundo.
- Você viverá no meu mundo, no futuro. Um mundo, querida, onde só importa o fato de
ficarmos juntos.
Estendeu a mão para ela. Tomás recolhia os restos de alimentos e a garrafa de suco.
- Vamos, m'sieur - disse, com firmeza.
- Você é pior do que um feitor de escravos - André reclamou e Tomás riu.
Estavam todos ansiosos para se por a caminho novamente. Viajaram durante um
longo tempo, até que o negro encontrou um lugar bom para passarem a noite.
Dessa vez, não podiam procurar cailles vazias. Nem fazer perguntas aos moradores
dos vilarejos.
André sabia que, quanto menos gente os visse, melhor.
Quando os soldados não os encontrassem na mansão Villaret, sem dúvida
descobririam que tinham ido para Lê Cap.
Só esperava que não passasse pela cabeça de ninguém que uma mulher os
acompanhava.
Ao mesmo tempo, lembrava-se de lhe terem dito milhões de vezes que nada, no Haiti,
ficava em segredo.
Tomás conduziu-os à sombra de algumas árvores, no pé da montanha. Sabia que o
criado não queria dormir na floresta, pois a temia. O lugar era muito escondido, o chão macio
e sem grande vegetação.
O negro deu um cobertor a Sãona e outro a André. Depois de comerem, deitaram-se
lado a lado e o criado desapareceu na escuridão.
Os cavalos ficaram amarrados um pouco longe e os dois estavam a sós.
- Quero beijá-la, minha querida - André disse, segurando a mão dela.
- Não.
- Não?
- Não quero que me beije, enquanto eu estiver disfarçada. Pode estragar tudo.
Ele sorriu do tom infantil da voz dela.
- Tocar seus lábios é, para mim, algo tão maravilhoso que não consigo descrever. Mas
esperarei. Farei tudo que quiser.
- Você é tão maravilhoso! Um dia, talvez eu consiga lhe dizer o quanto o amo!
André não respondeu durante um momento. Sentia que tinha muito a dizer, muito a
explicar. Entretanto, não conseguia colocar em palavras seus sentimentos.
Pertenciam um ao outro, não importa o que acontecesse. Mesmo depois de casados,
seria difícil estar espiritualmente tão próximo dela como estava agora.
Sentiu que a mão dela escorregava. A moça dormia.
Estavam ambos adormecidos, quando Tomás voltou.
Partiram novamente, cavalgando rapidamente durante a manhã, quando o ar ainda
estava fresco, até que se tornasse quente demais e os cavalos diminuíssem o passo.
O caminho até Lê Cap era menos cheio de montanhas e mais fácil do que o de Port-
au-Prince. Chegariam ao porto mais depressa do que tinham imaginado.
Passavam as noites em planícies. O criado procurava lugares entre as árvores, longe
dos vilarejos. E os escondia, quando precisava parar para comprar alimentos.
André e Sãona dormiam, mal suas cabeças tocavam o travesseiro improvisado com
cobertores.
Algumas vezes, durante a viagem, ele a via inclinada sobre a sela e imaginava se
devia ou não levá-la em seu cavalo. Assim, poderia apertá-la junto a si.
Pensava melhor e decidia que não podia correr aquele risco. Ia parecer muito
estranho uma freira cavalgando com um homem, abraçada por ele.
- Só falta mais uma noite - disse a si mesmo - e estaremos em Lê Cap.
Acordou com Tomás ajoelhado a seu lado.
- O que foi?
- Vamos, m'sieur!
- Agora? - ainda estavam no meio da noite.
- Tambores avisam do perigo!
- Tambores?
Ouviu, ao longe, como se fosse as batidas do seu coração, o som de tambores.
- O que eles dizem?
- Perigo para m'sieur.
Havia um tom de urgência na voz de Tomás e André se levantou
- Já devo muito a Damballah. Se ele diz que precisamos partir devemos obedecer.
Inclinou-se sobre Sãona.
- Acorde, amor. Precisamos continuar a viagem. Ela abriu os olhos e fechou-os
novamente.
- Estou... tão... cansada.
- Eu sei, minha querida, mas os tambores estão nos avisando do perigo.
- Perigo?
- Sim, Tomás nos avisou. Está ouvindo?
- Sim... estou.
- Então, precisamos fazer o que eles nos dizem.
Ajudou-a a se levantar. Tomás recolheu os cobertores, amarrou-os na sela e partiram.
Caminharam quase duas horas, antes que a lua e as estrelas desaparecessem
completamente, dando lugar a um lindo nascer do sol.
Como tinham saído muito cedo, André não se surpreendeu, quando, ao pararem para
comer, Tomás lhe disse:
- Chegaremos a Lê Cap esta noite. Olhou, ansioso, para Sãona.
- Sente forças suficientes? Acho melhor chegarmos lá no escuro.
- Estarei... bem - disse Sãona.
- Há alguma chance de comprar um pouco de brandy ou vinho?
- Encontrarei - o criado respondeu.
Poucos minutos depois, ele lhes disse para esperarem, enquanto se dirigia a um
vilarejo próximo.
Quando voltou, trazia a garrafa preta que André conhecia. Era clarin.
Lembrou-se de como havia despertado ao toma-lo, lembrou-se da cerimônia vodu,
quando o papaloi e a mamaloi beberam e depois sopraram nuvens brancas pela boca.
André provou. Era muito forte, mas aliviaria a tensão e a exaustão de Sãona.
Pediu a Tomás que pegasse a xícara. Encheu-a com suco de laranja e juntou um
pouco do rum.
- Beba isso, querida.
- Acha seguro? E se eu cair do cavalo?
- Não acontecerá nada disso. Só fará com que se sinta mais forte. Bebeu, porque
sabia que este era o desejo dele. Depois, André também bebeu e insistiu para que Tomás
fizesse o mesmo.
Três horas mais tarde, pararam para de novo beber mais rum. André sabia que o
pensamento de chegar a Lê Cap era a única coisa que mantinha Sãona acordada.
Estava tão cansada, que já não conseguia nem falar. Enquanto cavalgavam, após o
pôr-do-sol, pegou as rédeas do cavalo dela e o conduziu.
- Segure-se na sela, querida. Já estamos quase chegando.
Meia hora depois, viram as luzes de Lê Cap e a grande baía na frente da cidade, onde
estavam ancorados vários navios.
Era impossível saber a nacionalidade deles. Só podia rezar para que um deles fosse
americano.
Percebeu que Tomás estava mais preocupado com as mensagens dos tambores do
que queria aparentar. Várias vezes, durante o dia, viu que o criado olhava para trás, como se
esperasse ver os soldados que os perseguiam.
Agora, em Lê Cap, as luzes pareciam a André mais animadoras do que qualquer luz
que já tivesse visto em toda sua vida.
Passaram por ruas estreitas que, mesmo àquela hora da noite, estavam cheias de
pessoas.
Havia soldados de folga, sentados nas soleiras das portas, abraçados com garotas
negras.
Vendedores de comida exibiam suas mercadorias.
Um grande número de homens, a maioria soldados, estava bêbado.
André pensou que aquilo era típico de um exército sem treinamento, onde a tendência
à bebida e à desobediência era muito grande.
Tomás conhecia o caminho e apressou-se pelas ruas. Poucas pessoas prestavam
atenção neles. Mas alguns olhavam, surpresos, para a freira a cavalo.
Viu a torre da igreja. Tomás conduziu-os até a frente dela e pararam.
Desmontou e ajudou Sãona. Quando a colocou no chão viu que ela estava cansada
demais para ficar de pé.
Tomou-a nos braços e Tomás bateu na porta da igreja.
Carregando a moça, com a cabeça dela pousada em seu ombro, André imaginou que
devia tirar as bolsas com diamantes dos cavalos.
Como se Tomás lesse seus pensamentos, disse, baixinho:
- Vou pegá-las agora, m'sieur
- Faça isso.
Um padre abriu a porta. Era negro e André achou que se tratava do irmão da madre
superiora.
- Quem são vocês e o que querem?
- Tenho uma carta da sua irmã, padre. Ela nos disse que seria gentil e nos deixaria
descansar. Fizemos uma viagem muito longa.
- Minha irmã? - o padre exclamou surpreso. Depois continuou, rapidamente:
- Entre, meu filho. Traz uma freira com você?
- Ela está muito cansada.
O padre conduziu-os para uma pequena casa, quase sem móveis.
André colocou Sãona delicadamente numa cadeira. Os olhos dela se fecharam.
Parecia completamente exausta.
- Eu estava jantando. Espero que me acompanhem. O café está quente.
- Café é a melhor coisa agora - André respondeu. - Estamos com muita fome.
- Podem se servir de tudo o que eu tenho.
Enquanto ele falava, Tomás entrou com as bolsas enroladas e colocou-as atrás da
porta.
- Encontrará um lugar para os cavalos lá no fundo - o padre disse.
- Vou ajudá-lo - André falou, seguindo Tomás na escuridão. O criado não respondeu,
mas faria o que lhe tinham indicado.
Não querendo deixar Sãona sozinha por muito tempo, André voltou logo e fechou a
porta.
Encontrou o padre servindo a Sãona uma xícara de café. Como se fizesse um
tremendo esforço, ela a levou aos lábios.
André também aceitou café.
Era escuro e forte, mas estava com tanta sede, que achou aquele o melhor café de
sua vida.
Viu que o cansaço desaparecia. O mesmo aconteceu com Sãona.
- Precisa passar a noite aqui - o padre disse - e amanhã me dirá como posso ajudá-lo.
- Acho que a madre superiora explica muitas coisas em sua carta.
- O rapaz tirou o envelope do bolso do casaco.
- Quando a deixou, ela estava bem, em segurança?
- Ela estava bem segura e nos ajudou a fugir.
- Fugir?
- Ela sabia que os soldados estavam vindo de Port-au-Prince, à minha procura.
Pelo rosto do padre passou uma expressão de ansiedade.
- O imperador está vindo para cá. Deve chegar amanhã, a qualquer hora.
- O que aconteceu?
- A luta contra os espanhóis não teve sucesso!
- Eu imaginava que isso não ia deixá-lo de bom humor! E, como sabe, padre, ele não
gosta de mulatos.
- Então, será melhor você partir.
- É o que pretendo fazer. Mas, primeiro, quero lhe pedir um favor...
- O que é?
- A moça que está comigo não é uma freira. É uma garota que sua irmã protegeu
durante dez anos. Quero lhe pedir que faça o nosso casamento.
O padre pareceu surpreso. Então disse.
- Se pretende deixar Lê Cap, antes que o imperador chegue, então precisa se casar
esta noite.
- Espero que concorde com isso. Sãona sentou-se, espantada.
Foi até ela, tirou a xícara vazia de suas mãos e disse, rapidamente:
- Por que devemos esperar mais para sermos marido e mulher?
- Farei... o que você... quiser.
- Achei que queriam se lavar - o padre disse. - Quando estiverem prontos, venham por
aqui, esta porta leva diretamente à igreja. Estarei esperando por vocês.
- Obrigado, padre.
- Esta noite, não será possível realizar uma missa nupcial, mas podem assisti-la
amanhã, às sete horas. Poderei ouvir suas confissões às seis e meia.
Não esperou resposta. Abriu a porta e entrou na igreja. André ajudou Sãona a se
levantar.
- Sei que quer fazer uma porção de perguntas, minha querida. Talvez ache que estou
sendo apressado demais. Mas sinto que não posso perder esta oportunidade. Amanhã, de
qualquer jeito, precisamos escapar de Lê Cap.
- Compreendo. E estou feliz em fazer qualquer coisa que queira. André beijou-lhe a
mão.
- Apesar desta casa ser muito pequena - Sãona continuou -, acho que encontrarei um
lugar onde possa me lavar e tirar pelo menos um pouco da poeira do meu rosto.
Num quarto, André achou uma bacia e um lampião. Iluminou o caminho e procuraram
o quintal - sempre havia um naquelas velhas casas de madeira.
Como André esperava, havia também um poço. Tirou água e lavou a cabeça, as
mãos, sentindo-se refrescado e limpo.
Gostaria de trocar aquela roupa empoeirada, vestir algo importante para uma ocasião
tão especial como aquela. Sabia que Sãona desejaria usar o tradicional vestido de noiva,
com véu de renda e buque de flores de laranjeira.
- Nada disso importa - disse, baixinho -, desde que ela possa ser minha esposa.
Então, voltou à sala e olhou a bagagem que Tomás tinha colocado atrás da porta.
De repente, lhe veio a ideia de que não era aconselhável levar todos os diamantes na
sacola.
Rapidamente, antes que Sãona voltasse, abriu a bolsa, pegou algumas pedras e
colocou nos bolsos. Agora, precisava ser cuidadoso e não tirar o casaco, pois elas cairiam.
Depois, descosturou o forro do casaco e acomodou as outras pedras lá dentro.
Ajeitou a bolsa vazia junto com suas roupas e pegou a outra, que estava cheia de
moedas de ouro.
Esta, sem dúvida, seria muito útil. O dinheiro que trouxera ao Haiti já estava no fim.
Separou algumas moedas para dar a Tomás. Depois, enrolou a bolsa nas
roupas e amarrou-as como estavam antes.
Uma terceira bagagem tinha vindo no cavalo de Sãona. Sabia que ela
precisaria daquilo, quando o padre lhes dissesse onde iriam dormir, naquela noite.
Havia ali uma escada estreita e rústica. Talvez levasse a um dos quartos que iriam
ocupar.
Terminou de colocar uma gravata limpa e Sãona entrou no aposento.
Ainda usava o longo véu e o hábito, mas parecia descansada e seus olhos brilhavam
de animação.
Aproximou-se e colocou as mãos no peito dele.
- Está mesmo pronto para se casar esta noite? Pensei que estava sonhando, quando
me disse.
- Não está sonhando, minha querida. O que mais quero é torná-la minha esposa,
antes de fazer qualquer plano para o futuro.
- O imperador chegará aqui amanhã.
- Eu sei, mas já esqueceu que somos pessoas protegidas?
Ela sorriu. Estava com saudade dos lábios dela, de senti-la, trêmula em seus braços,
como quando a beijara no jardim.
Haveria tempo, mais tarde, se Deus fosse generoso e os deixasse escapar daquela
armadilha que cada vez se fechava mais.
- Venha, precisamos nos casar, minha amada, e isso é mais importante do que
qualquer outra coisa.
Tomou-a pela mão e entraram na igreja.
Era uma capela pequenina, construída depois do incêndio que havia destruído a
cidade. Tinha estilo rústico, mas todos os símbolos religiosos estavam ali: a Via Sacra, a
cruz, as estátuas de Nossa Senhora e Santo António, a lamparina vermelha acima do altar,
iluminado por seis velas.
O padre os esperava, com o livro de orações na mão. Pediu que se ajoelhassem à
sua frente.
O casamento foi igual aos realizados nas catedrais de Notre Dame ou em Chartres,
com orações lindas, que ambos conheciam desde crianças e pareciam ter um significado
especial agora.
Ele sempre resistiu à ideia do casamento. E estava ali, unindo sua vida à de uma
mulher que conhecia há poucos dias.
Ambos se casavam com a pele tingida, disfarçados de mulatos, e André percebeu
que, se fossem negros, mulatos ou amarelos, o amor deles seria o mesmo, não importando a
cor ou a condição social. Sentiu também o quanto tinha sido tolo e preconceituoso ao pensar
em partir, abandonar Sãona simplesmente porque ela poderia ser mulata.
Em vez do vestido de noiva, ela usava um hábito de freira.
Entretanto, os votos que o padre pronunciava eram os mesmos que há anos uniam os
casais.
Seus corações batiam, como se fossem um só. Suas almas estavam unidas, não
apenas uma com a outra, mas com Deus, que os abençoava. Era isso que importava.
O padre ergueu as mãos e as palavras da bênção pareciam de inspiração divina.
- Dominus Deus Omnipotens benedicat vos, impleat que benedictionem in vobis.
- Amém - André e Sãona responderam.
De repente, soou uma voz, no fundo da igreja.
- M'sieur, m'sieur!
André levantou-se. Tomás entrava, quase sem fôlego.
- Venha! Venha depressa! O barco está esperando. Depressa! - Há um barco?
- Barco americano partindo. Venha! André ajudou Sãona a ficar de pé.
- Obrigado, padre.
Correu até o quarto, agarrou a bagagem e saiu para a rua. Encontrou-se com Tomás,
que já o esperava.
Felizmente, a maioria das ruas que tinham que descer eram ladeiras, Tomás escolheu
as mais estreitas e desertas. Não havia ninguém para olhar os três, que quase corriam.
Sãona tropeçou e André, sem falar, tomou-a nos braços.
Então, quando já podiam ver o porto, Tomás gritou:
- M'sieur, venha! M'sieur, aqui!
Naquela escuridão, era difícil imaginar qual o problema. André, quase sem fôlego com
a corrida, viu o criado parar.
À sua frente estava um barco com quatro marinheiros. Colocou Sãona no chão.
- M'sieur, aqui - Tomás gritou mais uma vez. Um dos marinheiros disse:
- Vamos logo! Estamos partindo!
Falava em dialeto crioulo. Na escuridão, não dava para lhe ver o rosto, mas André
achou que era negro.
Tomou Sãona nos braços e a passou para o marinheiro. Pegou as moedas de ouro e
deu-as a Tomás.
- Não, m'sieur, não!
- Deus o abençoe, Tomás. Nunca poderei lhe agradecer o suficiente. Pulou no barco.
Os marinheiros desamarraram a embarcação e André viu Tomás observando-os, enquanto
partiam.
Acenou, aliviado. Sua boa sorte não lhe falhara nem no último momento.
Podia ver, atrás da cidade, a linha de montanhas à luz das estrelas.
Imaginou o que os tambores de vodu iriam dizer. Contariam que tinham escapado?
Então, sentiu a mão de Sãona na sua. Sabia que sentia por ela o mais profundo e
verdadeiro amor.
Dirigiram-se a um dos lados de um barco imenso, ancorado à distância.
André percebeu que era uma grande escuna, de quatro mastros, com a bandeira
americana hasteada na popa.
O pessoal de bordo ajudou-os a subir. Um homem, que parecia ser o capitão,
aproximou-se.
Foi então que André percebeu o que acontecia: o capitão, olhando-o à luz de um
lampião, demonstrava não estar gostando do que via.
Rapidamente, sabendo o que se passava, explicou em inglês:
- Sou o conde de Villaret e esta moça é minha esposa. Compreenda, capitão, que
para chegarmos até aqui, em segurança, precisamos de disfarce. Por isso, alteramos a cor
da nossa pele.
- É francês? Meu marinheiro me disse que está pedindo uma passagem para os
Estados Unidos. É verdade?
- Sim, sou francês e branco mas, se descobrirem a verdade, minha vida não valerá um
tostão.
Enquanto falava, lembrava que Jacques lhe havia dito exatamente aquilo.
O capitão estendeu a mão.
- Bem-vindo a bordo, conde! Espero lhe dar todo o conforto possível.
- Ficarei muito feliz em estar sob a sua proteção e também da bandeira dos Estados
Unidos.
- Devo lhe dizer que tem muita sorte. André esperou que ele se explicasse.
- Acabamos de trazer o embaixador americano para a Jamaica. Ele e a esposa
usaram uma cabine que realmente é digna deste navio. Felizmente, para vocês, no
momento, ela está desocupada.
- Obrigado, mais uma vez. O capitão estalou os dedos.
- Sr. Marshberg - disse para um oficial que se aproximava -, acompanhe o conde e a
condessa até lá embaixo e ajude-os a se acomodarem.
O jovem oficial olhou-os, curioso, depois lhes mostrou o caminho até uma cabine
confortável.
Tinha uma imensa cama antiga, ocupando todo um lado da parede, com cortinado a
toda volta, oferecendo muita intimidade.
Havia poltronas, uma mesa e um lampião pendurado no teto.
O oficial lhes dissera que, se precisassem de algo, era só chamar.
Depois, trouxe o resto das bagagens que Tomás tinha atirado no barco.
Saiu fechando a porta e André olhou Sãona, sorrindo.
Colocou os braços em volta dela e a jovem se afastou:
- Não! Não, até que me sinta eu mesma, novamente.
- Muito bem. Mas este, certamente, é um casamento muito estranho.
- Quero ficar bonita para você - Sãona disse, rapidamente - e não quero sentir o que
sinto agora.
- O que sente?
Enquanto falava, abriu as bagagens procurando o pó da árvore que os faria brancos
novamente.
- Sinto-me empoeirada, feia, cansada e muito, muito feliz!
- Se continuar falando assim, vou beijá-la, mesmo que não esteja se sentindo bonita.
- Quero que nosso beijo seja tão maravilhoso como quando me beijou... no jardim.
Nunca imaginei que um beijo pudesse ser como... chegar ao paraíso.
Era difícil não tocá-la, quando ela falava assim. Ele pegou um pacote e tirou de dentro
da bagagem.
Ao fazer isso, a bolsa, contendo as moedas de ouro, caiu no chão, espalhando seu
conteúdo.
Ele riu.
- Tomei uma porção de precauções, caso esquecesse estas bagagens. Agora, preciso
retirar os diamantes de dentro da minha roupa e colocá-los novamente nas bolsas.
Deixou as moedas no chão e colocou alguns diamantes dentro da bolsa. Depois,
encostou-a junto com a roupa suja, em um canto da cabine. Pegou o pó da árvore, misturou
com água, de acordo com as instruções de Tomás e mexeu até misturar bem.
Sãona sentou-se diante do espelho. Primeiro, tirou o véu escuro; depois, a touca
negra. Seu cabelo dourado caiu até os ombros.
André colocou a tigela com o líquido na frente dela.
- É disso que precisa. Não vou olhar, enquanto você se transforma novamente na
santa pela qual me apaixonei na floresta.
- Não sou uma santa. Sou sua esposa. Esqueceu?
- Não, não esqueci. Ande depressa. Estou ansioso para tratá-la como uma esposa e
não como uma freira.
Sãona começou a limpar o rosto, usando um lenço.
- Arde um pouco, mas a madre superiora me deu um creme especial, feito com mel e
pétalas de rosas, que acabará com a irritação.
Ouviram uma batida na porta e ele foi atender.
- O capitão envia seus cumprimentos, senhor. Ele quer saber se deseja o jantar e uma
garrafa de vinho. Estamos levantando âncora.
- Por favor, agradeça ao capitão e diga que aceito. Fechou a porta.
- Depressa. Quando eu estiver apresentável, jantaremos, fazendo um brinde à nossa
noite de núpcias.
- Já terminei. Ainda bem que a reverenda madre só pintou o meu rosto e as mãos.
André tirou o casaco, pendurando-o cuidadosamente, para que o resto dos diamantes
não caísse. Amanhã, pensou, vou colocá-los todos novamente na bolsa.
No momento, sentia-se cansado demais e ainda precisava remover aquela tinta
aplicada por Jacques.
Sãona pulou da cadeira onde estava sentada.
- Olhe! Agora, sou eu novamente. Espero que esta seja a esposa com quem desejava
se casar.
- Em poucos minutos, vou lhe contar exatamente o que seu marido sente por você.
Mas, como a tinta foi espalhada por todo o meu corpo, sugiro que feche as cortinas da cama
e descanse, antes que o nosso jantar chegue.
Ela o olhou, longamente. Depois, pegou a bagagem. André começou a desmanchar o
nó da gravata.
- Se preferir seguir meus conselhos, tire suas roupas e coloque uma camisola e um
robe, se os tiver. Afinal, vai jantar com o seu marido e ele não repara.
- Acho que... ficarei... envergonhada.
- Gosto de você envergonhada. E agora, estou lhe avisando, vou tirar toda a minha
roupa.
Ela sorriu e desapareceu atrás das cortinas da cama.
André se despiu e começou a aplicar o mesmo líquido que Sãona tinha usado.
Como por milagre, removia rapidamente a tinta.
Primeiro, seu rosto se tornou branco; depois, um lado do peito. Estava começando o
outro, quando ouviu uma batida na porta.
Enrolou-se numa toalha e disse:
- Entre!
Um copeiro entrou, trazendo uma bandeja. Entre os diversos pratos, havia um balde
de gelo e vinho. Arrumou a mesa.
- Devo ficar e servir a refeição, senhor? Olhou André e ficou de queixo caído.
- Oh, nunca vi um homem de duas cores! Desculpe, senhor.
- Está bem, mas nós preferimos nos servir. Muito obrigado.
O homem saiu e André ficou imaginando qual a história que contaria aos amigos da
tripulação.
Finalmente, conseguiu remover quase toda a tinta. Enxugou-se e escolheu um pijama
confortável. Depois, puxou as cortinas.
- O jantar está servido, senhora! - anunciou e viu que Sãona dormia.
Como tinha sugerido, ela usava uma camisola, mas o robe branco estava caído ao
lado da cama.
Devia ter descansado a cabeça no travesseiro e, exausta, adormecera imediatamente.
André ficou observando-a, com ternura. Era tão incrivelmente linda, com o cabelo
caindo sobre o travesseiro e os cílios escuros contra a pele clara. Era tão jovem, tão
inocente, pensou. Parecia até possuir um halo de pureza, que não tinha visto em nenhuma
outra mulher.
Suavemente, fechou as cortinas.
Sentou-se e comeu um pouco do jantar, tomando alguns goles de vinho. Estava com
fome. Era o resultado da tensão, da preocupação, durante tanto tempo, por sua vida e pela
dela.
Era difícil deixar de lembrar como os últimos dias tinham sido difíceis. Sabia que
Tomás temia o encontro com os soldados, antes de chegarem a Lê Cap. Tinha certeza de
que, ao entrarem na cidade, algum oficial ia insistir em interrogá-los.
Havia tantas coisas terríveis que podiam acontecer... Mas, graças a Deus e a
Damballah, estavam salvos. Salvos, não apenas por um momento, mas pelo resto de suas
vidas.
Ficou sentado, sozinho, com o copo de vinho na mão, pensando nas pessoas que
havia encontrado, desde que chegara ao Haiti: Jacques, Orchis, Tomás, a madre superiora
e, principalmente, Sãona.
Ela era o que ele sempre tinha desejado. A esposa que nem sonhava encontrar.
Jovem, muito mais jovem do que esperava, mas, ao mesmo tempo, amadurecida e
inteligente. E era isso que importava.
Personificava seus ideais e princípios, escondidos do mundo cínico, no cantinho mais
profundo de sua alma.
Quando o marinheiro chegou para levar a bandeja, André havia tomado sozinho toda
a garrafa de vinho.
Cansado demais, despiu-se e se deitou.
Olhou durante muito tempo o rosto lindo a seu lado. Depois, sorrindo, decidiu que
tinham toda a vida à sua frente e seria crueldade acordá-la.
O navio prosseguia por águas calmas. Não havia vento e o balanço era mínimo. André
abriu os olhos. Pelas escotilhas passava uma luzinha fraca, anunciando o amanhecer.
Puxou as cortinas e olhou em volta. Viu sua esposa do outro lado da cabine,
escovando os cabelos.
Usava apenas a camisola e tinha saído suavemente da cama, para não acordá-lo.
Observou-a durante um longo tempo, vendo o brilho de seu cabelo, a graça dos
movimentos, a elegância de seu corpo sob a camisola simples, que devia ter sido feita pelas
freiras.
Terminou e levantou-se, caminhando, com cuidado, para a cama com os olhos
semicerrados, fingiu que ainda estava dormindo.
Ela subiu na cama e deitou-se, sem tocá-lo.
Então, André se virou e esticou o braço para abraçá-la.
- Você acordou!
- Eu a estava vendo se tornar mais bonita para mim.
- Oh, André, sinto muito. Dormi, e, só quando acordei hoje de manhã, foi que vi: perdi
meu jantar de casamento.
- Teremos muitos outros jantares, mas foi uma noite de núpcias muito estranha. Minha
esposa não estava interessada em mim!
- Sabe que isso não é verdade. Eu só estava... tão cansada... mas não queria ter
dormido.
- Eu também estava cansado, minha querida, e achei que seria indelicado acordá-la.
- Gostaria que tivesse me acordado - murmurou. Ele a olhou e ela escondeu o rosto
em seu ombro.
- Agora estou acordado e você também, minha linda noiva.
- E você é muito bonito, meu maravilhoso marido. Puxou-a, quase com violência.
- É verdade: estamos casados! Compreende, minha querida, que estamos casados?
Seus lábios a tocaram gentilmente, depois com mais ansiedade, revelando seus
sentimentos. Suas bocas sentiram a doçura uma da outra, as mãos de André tocaram o
corpo dela, deixando-a trêmula.
- Eu a amo! Deus sabe como a amo. E escapamos! Minha querida, compreende isso?
Nós escapamos!
- Tive medo, tanto medo de que os soldados nos alcançassem! Ou que algo
acontecesse, quando chegássemos a Lê Cap. Medo de sermos mortos...
Na voz dela havia um tom que lembrava os horrores do passado. Porque a amava
muito e seus sentimentos eram importantes demais, ele disse, baixinho:
- Agora está salva. Temos que esquecer o que passou. Não será fácil, mas seremos
tão felizes juntos, que suas recordações desaparecerão aos poucos.
- Sinto-me protegida em seus braços. Será fácil esquecer.
- É o que espero. É mais fácil lembrar as coisas alegres, as pessoas que foram gentis
conosco, a madre superiora, Tomás e o padre amigo que nos casou, nossa fuga...
- Pelo menos, estamos casados. Estamos mesmo casados?
Sua voz demonstrava um certo receio, como se não tivesse certeza do casamento ser
legal, ou não passar de um sonho.
- Estamos, sim. Mas, como quero deixá-la ainda mais feliz, minha querida, teremos
uma bênção especial na igreja católica, nos Estados Unidos, ou quando chegarmos a
Londres.
- Gostaria de ter estado bonita no dia do nosso casamento, não com aquela tinta no
rosto...
- Foi uma precaução necessária. Se não tivéssemos tingido nossa pele, eu nunca
chegaria à mansão Villaret nem poderia encontrá-la.
- Eu o amo. E amo aquele pó de árvore que deixou você parecendo um mulato.
André sabia o medo que ela sentia de mulatos. Quanto a ele, entretanto, só tinha a
agradecer. Jamais se esquecera da amizade de Jacques.
Estava decidido a, um dia, com a ajuda de Kirk, retribuir a gentileza dele.
- Devemos ser agradecidos. Há alguém que não poderemos esquecer nunca.
- Quem?
- Damballah, ele nos protegeu. Se os tambores não tivessem avisado Tomás, talvez
os soldados nos encontrassem ainda na casa.
- Oh, André, André! Imagine se você tivesse morrido... Eu nunca amaria mais
ninguém. Eu teria morrido sozinha no convento.
- Isso não aconteceu, mas sempre deveremos nos lembrar, com gratidão, daqueles
tambores. Quando fui ao Haiti, nunca pensei em acreditar no vodu. Pensei que os tambores
fossem diabólicos.
- Para nós, eles foram os tambores do amor! Salvaram você e, graças a eles, agora
estamos casados e a salvo neste maravilhoso navio.
- Está certa, eles foram os tambores do amor. Sempre pensaremos neles assim, pelo
resto de nossas vidas.
Beijou-a na testa, enquanto falava.
- É tão bonita, tão perfeita, que temo ser uma santa em quem não devo tocar.
- Você está me tocando - ela disse, quase num murmúrio.
- Não como gostaria de fazer. Quero abraçá-la e beijá-la, até que você toda me
pertença. Quero beijá-la, desde o seu cabelo brilhante até a ponta dos pés.
- Vou gostar disso - Sãona sussurrou.
- Mas, no momento, só quero beijá-la nos lábios e sentir a suavidade da sua pele.
Beijou seus olhos e o pescoço. Sentiu-a estremecer. Então, gentilmente, para não
amedrontá-la, puxou a camisola e beijou-a nos seios.
Estava sendo muito gentil, muito terno, procurando conhecê-la, como se fosse uma
flor, um lírio que simbolizava tudo de puro e belo.
Sentindo o corpo dela estremecer junto ao seu, percebendo que seu coração batia
freneticamente, seus lábios começaram a ficar mais possessivos, insistentes.
Uma chama a percorreu. Sentiu que ela o desejava tanto quanto ele.
- Eu o amo.
- Eu a adoro. Eu estou fazendo você feliz?
- Você me excita.
- O que sente?
- Pequenos arrepios percorrendo a minha espinha.
- Arrepios?
- Como chamas em meu corpo...
- Posso senti-las em seus lábios.
- Beije-me. Oh, André, beije-me.
Em alguma parte escondida de sua mente, André pensou, enquanto a beijava, que os
deuses os haviam abençoado e deviam saber como estavam contentes. O homem não pode
viver sem amor. Ele é um reflexo do amor divino.
Naquele momento, André pensou que o Deus dos cristãos, dos budistas, dos
maometanos e do vodu eram um só.
Inspirava o homem a amar além de si mesmo, lhe dizendo que a vida não era ódio e
raiva, mas apenas amor.
O que sentia por Sãona era o melhor de tudo que trazia em si mesmo.
Ela lhe dava um amor puro que vinha da alma. Seus corações batiam juntos, cheios
de pureza e beleza.
- Eu a amo, eu a amo!
- Abrace-me mais forte. Oh, André, eu o adoro tanto... que sinto até medo.
- Nada lhe deve causar medo, minha querida.
- Meu amor por você me amedronta... é tão intenso.
- Vou fazê-la me amar um milhão de vezes mais do que agora. Vou encher as nossas
vidas de amor.
Ela começou a respirar fundo, através dos lábios entreabertos. Em seus olhos, André
viu o primeiro despertar do desejo.
- Minha adorável, linda e perfeita esposa.
Suas palavras se perderam numa onda de felicidade. Pareciam não estar mais na
terra, mas sim flutuando cada vez mais alto, em direção ao sol.
- Eu... o adoro... - Sãona murmurou, contra os lábios dele
- Ame-me... oh, André, ame-me...
Já não eram mais duas pessoas, mas uma só. Não apenas nesta vida, mas para toda
a eternidade.

FIM

QUEM É BARBARA CARTLAND?


A histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de cem milhões de livros
em todo o mundo. Numa época em que, segundo a própria Barbara, a literatura dá muita
importância aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou conquistar por suas
heroínas puras e seus heróis cheios de nobres ideais. E ficou fascinado pela maneira como
constrói suas tramas, em cenários que vão do esplendor do palácio da rainha Vitória às
misteriosas vastidões das florestas tropicais ou das montanhas do Himalaia.
A precisão das reconstituições de época é outro dos atrativos dessa autora inglesa
que, além de já ter escrito mais de trezentos livros, é também historiadora, teatróloga,
conferencista e oradora política. Mas Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores do
passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isso, recebeu o título de Dama da
Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores condições de
trabalho para as enfermeiras da Inglaterra, e é presidenta da Associação Nacional Britânica
para a Saúde.

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