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Vale quanto pesa?

Notas sobre a questão do valor literário

Antonio Marcos Pereira (UFBA)

I
Meu título alude a um conhecido ensaio de 1978 que emprestou seu nome a uma
coletânea de textos de Silviano Santiago publicada em 1982: estou me remetendo
a coisas, portanto, produzidas em outro período, textos que têm quase minha
idade e que devem, como costumo dizer aos meus alunos, ser também
historicizados, colocados em uma perspectiva que nos permita alguma forma de
aproximação e, portanto, de apropriação das questões que solicitaram a
produção, das justificativas do debate então. Fato é que, ao reler recentemente
esse ensaio como parte da preparação de uma aula sobre o campo crítico
brasileiro, notei um trecho que apareceu para mim com muita saliência, e que se
transformou no próprio punctum do texto nessa leitura recente, tragando para si
tudo o que se seguia, em um circuito que estabelecia numa sentença o centro
gravitacional do problema: é o momento no qual, definindo seus propósitos,
Santiago diz que almeja produzir uma “meditação pouco ortodoxa sobre o
conhecimento que o objeto livro de ficção tem trazido para os habitantes deste
país chamado Brasil” (p. 25).
Para leitores habituais de Santiago, esse tipo de afirmação soa familiar: é um
movimento ao qual ele retorna aqui e ali, uma remissão à condição de letramento
da população brasileira, à opção que tornou entre nós o rádio e a TV mais
expressivos, em termos de alcance populacional, que as formas literárias de
expressão, e uma resolução desse emaranhado em uma reflexão orientada para
enfatizar a relação entre o matiz de precariedade e sua contrapartida de potência
e peculiaridade: é essa a pegada que vemos no artifício de abertura de O
Entrelugar da Literatura Latino Americana (texto de 1972) e na sugestão de um
Cosmopolitismo do Pobre (como no texto epônimo de 2002). Nesse arco, há trinta
anos de uma reflexão obviamente multifacetada, mas que encontra aí um de seus
momentos de ressonância: Santiago ecoa a si mesmo nesses momentos, diz
coisas afins, familiares – e, no meio desse caminho, no conjunto dessas
reflexões, há o trecho que tanto chamou minha atenção há pouco tempo.
E por que, penso, o tal trecho parece tão interessante? Agora, com o fito de
explicitar o campo em que esse texto vai se mover, penso que uma resposta
decente seria dizer que a definição de propósitos de Santiago em seu ensaio de
1978 tem o mérito notável de ser, ao mesmo tempo, uma declaração de
princípios, o esboço de um programa utópico de investigação e uma operação
extremamente oportuna de crítica e autocrítica. Aproveitada por uma leitura
próxima, que deflacione um eventual anacronismo presente no efetivo
desenvolvimento do texto original e amplifique suas possibilidades de uso
contemporâneo, a observação de Santiago parece, enfim, bastante produtiva
como plataforma de lançamento de uma discussão sobre o tema do valor literário
– essa, que pretendo propor agora com o vezo da modéstia acadêmica de praxe:
como anotações, reflexões orientadas para puxar conversa ou eventualmente
participar de um debate, mas nada exaustivas, de maneira alguma ambicionando
qualquer tipo de juízo final ou última análise.
A via de exame do problema que proponho é, como só pode ser, uma alinhada
com meu repertório e com minha dieta de leituras, e tem como seu ponto inicial,
sua plataforma de lançamento, a transposição de algumas observações de
Roberto Da Matta do espaço das Ciências Sociais para o dos Estudos Literários
(deixando pendurada a questão sobre se nós, nos estudos literários, podemos
nos considerar praticantes de uma “ciência social” e, no caso de uma resposta
negativa, onde vamos encontrar nosso lugar no espectro das ciências). Da Matta,
em um texto de 1974 que se tornou bastante popular entre alunos de cursos
iniciais de Antropologia – fazia parte de meus materiais didáticos quando
lecionava Antropologia e Sociologia para alunos de Comunicação e, checando
com uma colega que ainda leciona grupos com essas características, o texto
ainda está lá, imune às intempéries de mais de trinta anos, ainda útil para
apresentar um aspecto de uma problemática que se tornou bastante relevante
nas Ciências Sociais, ligada à questão da presença do autor no texto sobre os
assim chamados fatos sociais e culturais – alude ao fato de que há todo um
espaço de experiência absolutamente incontornável para a construção do saber
antropológico, para a produção de conhecimento sobre os fenômenos sociais e
culturais, mas que, curiosamente, por um desses movimentos que talvez tenham
sua explicação lá no nascedouro das ciências com uma fisionomia
contemporânea e sua distribuição em cercadinhos departamentais, é
sistematicamente negligenciado, substituído ao invés por elaborações que não
apenas o elidem, mas que ainda denunciam sua eventual presença como fato
outré, a ser evitado em benefício da validade de nossas observações qua
cientistas. Trata-se daquilo que funda mesmo o espaço de investigação do
antropólogo e, em um certo sentido, o justifica: a área das relações humanas e os
incidentes que, ao se tornarem biográficos, permitirão a eventual posterior fatura
de um texto etnográfico.
Esse conjunto de questões, diz Da Matta, aparece em um anedotário circunscrito
a certos espaços sociais: em Mesas Redondas em eventos da área às vezes
aludimos às vicissitudes do trabalho de campo, e em um cafezinho com os
colegas de departamento certamente comentamos à farta sobre essa ou aquela
felicidade ou dificuldade em tal ou qual manobra da pesquisa, em qualquer dos
seus meandros. Mas nos textos que se consumam e apresentam como o produto
final de nosso trabalho, queixava-se Da Matta, pouco, quiçá nada, aparecia que
nos falasse disso, desse horizonte que terminava por se tornar, paradoxalmente,
diáfano, por força de um processo de silenciamento coletivo e concertado, quando
era justamente o momento em que a materialidade das relações constitutivas do
trabalho mais se fazia presente e mais apresentava a possibilidade de, uma vez
expressa, produzir outros saberes. Da Matta sugere então, fazendo uso de uma
retórica da razoabilidade, que reconheçamos que o pesquisador “nunca está só”,
e que essa margem de alteridade cujo exame constitui uma das razões de ser de

[Pereira: Vale quanto pesa? Para Azevedo & Tollendal (Orgs), 2009.] 2
seu trabalho deve também se manifestar, e dizer a que vem, com tudo que pode
implicar de aspereza e efetiva dificuldade para um modus operandi mais motivado
pela noção de que onde os fatos têm lugar, os valores não têm, ou não devem ter,
lugar nenhum.
Outros tempos, outros problemas: o lugar da experiência e do autor no texto
antropológico hoje é angulado de maneira diferente sem tanta dificuldade, entre
os anos que nos separam desse texto há muito de elaboração dessa questão
fundamental. Mas, para retornar ao que sugiro ser a operação de transposição
que busco aqui, proponho recorrer, como oferecendo ocasiões para a discussão
do problema do valor literário, a um domínio que, de maneira bem semelhante às
experiências do trabalho de campo no caso de Da Matta, encontra-se na melhor
das hipóteses lançado para segundo plano entre nós, profissionais ligados aos
estudos literários: refiro-me ao espaço da sala de aula, ao que acontece nessas
zonas de contato que constituem nosso cotidiano, são parte significativa de nossa
justificativa social programática e que tão raramente comparecem nos momentos
em que nos dedicamos a teorizar sobre literatura. Afinal, é na sala de aula e seus
espaços adjacentes, nos quais nos encontramos com os alunos, que tocamos o
campo imediato de alteridade com o qual dialogamos: é neles, com eles, a partir
deles que podemos verificar o que acontece com nossas concepções sobre o
literário, ou a crítica, no conjunto minimamente expressivo, enquanto microcosmo
alegórico da sociedade brasileira, dos consumidores de livros ou leitores que eles
são. Se há um lugar social privilegiado para observar “o conhecimento que o
objeto livro de ficção tem trazido para os habitantes deste país chamado Brasil”,
creio ser plausível sugerir que esse lugar é a sala de aula de um curso superior
de Letras em uma universidade pública – que seleciono por ser uma descrição
fidedigna de meu lugar de inserção profissional, e por saber que caracteriza
igualmente o lugar de ensino e pesquisa de parcela significativa (e, antes do
boom das IES Privadas, diria sem escrúpulos “a maior parte”) de meus colegas
professores da área de Letras no país. O que é, afinal de contas, valor literário
para um aluno de graduação em Letras hoje? E para seus professores? Há
alguma resposta interessante – no sentido de produtiva, fértil, conducente a
outras zonas de debate – para essas questões?

II
Creio, evidentemente, que há algo de interessante e produtivo no exame desse
anedotário de sala de aula, e na contemplação da potência expressiva desses
lances fugidios que ocorrem nas lides acadêmicas: esse é, talvez, o agon, a zona
em que os embates se apresentam com mais clareza, inclusive por não terem
sido ainda amaciados pelos hábitos característicos de nossa “República das
Letras”. E, de um conjunto bem variado de casos, recolhi dois que, em sua
peculiar co-ocorrência e simetria, podem servir para tematizar o problema à mão.
Há coisa de dois semestres, fui professor de um aluno que se destacou bastante
entre os demais, pela mescla de investimento, sabedoria social e engajamento
que nos leva, via de regra, a prestar mais atenção e, por conseguinte, a investir
também, por força no mínimo de uma certa economia de dom e contra-dom, em
seu desenvolvimento; acredito que ele seja oriundo de uma família de classe

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média, e sei que, antes de fazer Letras, cursou Comunicação algum tempo em
uma IES privada, o que talvez responda por uma condição mais robusta enquanto
consumidor de bens culturais que ele apresenta no contraste com a média dos
seus colegas. Enquanto representante de um extrato particular no conjunto dos
subgrupos que constituem a população discente de um curso de Letras hoje, creio
ter nele um bom representativo de um grupo que oferece, aos professores, pouco
trabalho do ponto de vista da construção de uma identidade viável como
profissional da área: são leitores formados e consumidores de bens culturais
relativamente informados, alunos que, se ainda não assistiram Godard, sabem
que se trata de um cineasta francês importante e que, tanto como produtores de
textos orais quanto escritos, apresentam a habitual necessidade de ajuste e
sintonia fina com os regimes de produção e disseminação de saber acadêmicos,
mas geram pouca angústia no professorado ao demonstrarem níveis de
letramento que julgamos razoáveis para alguém que pretende fazer jus a uma
certificação profissional superior. Esse aluno terminou por se envolver com um
grupo de pesquisa no qual também estou envolvido e vem caminhando, ainda que
de maneira um pouco oblíqua – não é meu orientando, está ainda na graduação e
creio ver nele uma certa hesitação entre os estudos literários e a lingüística como
projeto de carreira – de maneira próxima a mim. Recentemente, pediu minha
ajuda, sob a forma de uma leitura ligeira, para “dar umas dicas”, do projeto que
pensava em submeter como trabalho final de uma disciplina, e que consistia em
uma sugestão de exame das práticas de comentário de best sellers em periódicos
de grande circulação. Ao ler, imediatamente me chamou a atenção o fato de que,
ao mencionar o “valor” de livros como O Código Da Vinci e O Caçador de Pipas o
termo aparecesse assim como o referi, entre aspas e, sem sequer refletir muito
sobre as minhas razões para perguntar, inquiri sobre as razões dele para utilizar
as aspas. A réplica, que veio em tom meio jocoso, acompanhada de um sorriso,
foi “E pode, Professor, usar valor sem aspas hoje em dia?”
Mais ou menos na mesma época em que fui professor desse aluno, tive uma
aluna que fazia parte de um contingente significativo, e cada vez mais expressivo,
nos grupos de alunos que trabalham comigo: ao mesmo tempo cotista e
evangélica, sua relação comigo foi marcada por uma constante observação e
reiteração de seu lugar como crente ao longo do curso: a cada atividade proposta,
em sua finalização aparecia um trecho das Escrituras, e em dois momentos fui
presenteado com folhetos de conteúdo religioso; reiteradamente a aluna deu
mostras de que seu horizonte de interesse como leitora residia nas leituras
religiosas, e tão-somente. Marcas dessa natureza aparecem freqüentemente, e
com abundância, a cada nova turma: há um percentual significativo de alunos que
combinam a extração social ao pertencimento a um culto neo-petencostalista, e
que representam, por essa via, uma manobra de dupla inclusão, ao tornarem o
espaço acadêmico em uma universidade pública não só permeável e suscetível
às particularidades de sujeitos sociais pertencentes a extratos até recentemente
significativamente alijados da possibilidade de participação na vida dessas
instituições como torna a vida de tais instituições sujeita a manobras e acordos
que passam pela negociação com um sistema de crenças que, em muitas
situações, choca-se com pressupostos flagrantes da educação superior. Afinal,
como conciliar a crença em dogmas com a construção de uma identidade cidadã,
crítica, proativa na construção de um mundo público de instituições laicas, ligadas

[Pereira: Vale quanto pesa? Para Azevedo & Tollendal (Orgs), 2009.] 4
a ideais forjados na Revolução Francesa? Independente dessa discussão mais
ampla, testemunhei, em virtude de uma série de contingências, a trajetória dessa
aluna em particular, e diria que em termos de lugar na construção da carreira ela
se encontra em uma posição bem semelhante à do aluno anterior: ambos
encontram-se mais ou menos no meio do curso, cursaram praticamente as
mesmas disciplinas, e já se encontram vinculados a grupos de estudo e pesquisa
que os levam a ter contato com uma rede de conversações e práticas peculiar,
que ultrapassa significativamente o escopo do que é possível realizar em sala de
aula. Recentemente, segundo me explicou em uma conversa breve no elevador,
por causa de um trabalho de pesquisa para um curso de literatura, encontrou na
internet uma resenha escrita por mim sobre o livro de André Sant’Anna, O paraíso
é bem bacana. O livro – narrativa longa e fragmentada da história de Mohammad
Mané, um jovem negro de Ubatuba que, por sua excelência no futebol, migra para
Europa e lá consuma sua trajetória trágica – explora uma série de tentativas de
emulação dos registros do relato oral e, por essa via, abunda em gírias e
palavrões. A resenha, fazendo uso de uma editoria mais liberal, também foi
generosa no uso dessa terminologia e, como uma espécie de comentário que já
não esperava mais resposta, dito na saída do elevador, a aluna observou “Mas,
Professor, fico pensando aqui: aquele negócio cheio de palavrão, cheio de
palavra chula – aquilo é literatura?”

III
Na falta de um roteiro mais estabelecido ou sistemático para o exame dessas
narrativas, proponho algumas considerações preliminares:
1. É digno de nota o uso do vocativo “Professor” em ambos os casos,
indicando talvez que, malgrado a informalidade das duas situações, estava
em jogo ali um pronunciamento interno ao campo profissional, relacionado
às práticas institucionais que provocaram, em primeira instância, os
encontros.
2. Embora ambas apresentem-se sob a forma de questão, parecem antes
perguntas retóricas, solicitações não de efetiva resposta, mas
demonstrações da aquisição de um saber ou conhecimento de um certo
modus operandi institucional, indicadores de pertencimento ao campo,
senhas de verificação da inclusão.
3. Ambas insinuam uma compreensão do que é “moeda” no mercado
acadêmico contemporâneo, de qual o investimento arriscado e qual o
rentável – mas ao passo que uma das questões se dirige a uma
elaboração metateórica a respeito de um conceito usado para tratar de
literatura (caberia talvez verificar se, no momento de usar a expressão
“cânone” o aluno utilizaria, também, aspas, por exemplo), a outra se dirige
a confrontar uma noção de literatura, implícita, a outra, exemplificada (ao
colocar sob exame a potência de um texto contemporâneo para “passar no
teste” de literatura, o que está em jogo é a própria circunscrição do objeto
dos estudos literários).

[Pereira: Vale quanto pesa? Para Azevedo & Tollendal (Orgs), 2009.] 5
4. Meus procedimentos inferenciais, nos dois casos, sempre passam pela
consideração dos históricos dos respectivos alunos como leitores, e minha
crença de que a condição de leitor é um sine qua non mínimo para a
profissionalização na área de Letras: esses alunos representam diferentes
encarnações da trajetória do “objeto livro de ficção” entre “os habitantes
deste país chamado Brasil”: suas histórias como alunos de Letras são
traduzíveis em termos de seqüências previstas de apresentação
sistemática a esses objetos, e disso se espera que resultem, dentre outras
exibições de habilidade, incidentes de demonstração de um exercício
reflexivo como esse.
O que esse conjunto de questões faz com o problema do valor literário? Em si,
obviamente, nada: esses casos são inofensivos, e não exsudam teorização
automaticamente. Mas o que eles dispõem à observação talvez se mostre
relevante na medida em que contemplarmos as dificuldades de estabelecimento
de uma condição genérica para o juízo de valor a partir de sujeitos sociais tão
distanciados em termos de construção identitária quanto esses e que, pelos
artifícios de convivialidade propostos pela vida universitária, são expostos a um
conjunto de experiências que os torna, ou deve torná-los, concidadãos. Conhecer
esses processos, de construção de uma identidade profissional, que em nosso
caso sempre inclui a incorporação de um conjunto de procedimentos para afirmar
e sustentar diferencialmente o valor de textos literários, é tarefa provavelmente
mais afinada com alguma investigação sociológica que com uma projeção
puramente especulativa ou filosófica – e, apesar disso, é essa via, de cunho
generalizante, que manobra numa relação empobrecida com o espaço empírico
que pretende descrever, explicar e, eventualmente, controlar, a que tem mais
valor entre nós. Todavia, malgrado essa tendência que historicamente se fixou
entre nós, o que podemos dizer com maior grau de veracidade sobre o valor,
literário ou não, é provavelmente que se trata de algo mutável e flutuante, e que
sua mutabilidade e flutuação devem-se a uma miríade de marcadores que servem
como orientações para o que fazemos, e para como compreendemos –
classificamos, distribuímos e hierarquizamos – o que fazemos.
Um exemplo de alguns problemas que observo na maneira como habitualmente
tratamos do tema é o texto recente de Jaime Ginzburg, “O valor estético: entre
universalidade e exclusão”, que capturei em uma busca na internet sobre o
problema do valor. É uma das primeiras aparições quando buscamos no Google
os termos “valor literatura brasil”, foi publicado em uma revista respeitável – pois
já é longeva, estabilizada, e sua produção está atrelada a um corpo editorial
representativo de docentes e pesquisadores de vulto na área no país. Além disso,
o autor aparece com marcas de legitimação institucional inequívocas: é “professor
da USP” – uma das universidades mais prestigiadas do país, para não entrar no
que o significante USP indica em termos de pertencimento a certa tradição nos
estudos literários – e “pesquisador do CNPq” – o que indica que seu mérito como
produtor de saber foi reconhecimento por uma das instâncias de fomento à
pesquisa mais relevantes no cenário nacional e que, por esse mérito, o professor
é legitimado publicamente como pesquisador em uma hierarquia que os distribui
em termos de longevidade e continuidade do trabalho na pesquisa, além de ser
premiado com uma bolsa de produtividade. Essa constelação toda aparece antes

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mesmo da leitura do texto, em um conjunto de indícios que permitem que aquele
que vai ler já registre uma zona de valorização específica para esse produto no
espaço do capital cultural: não se trata de matéria de oferta em lojas de produtos
populares, mas sim de algo cujo uso pressupõe a possibilidade de participação
em trocas de bens simbólicos bem sofisticados. Trocando em miúdos, o texto de
Ginzburg é algo que se adquire numa espécie de shopping da alta costura dos
bens culturais: freqüentar os espaços que possibilitem diálogo com esse texto é
como, digamos, freqüentar a Daslu.
Todavia, é na manobra com o próprio texto que verificamos como, pretendendo
falar para ou em nome de ou a favor de um certo contingente de excluídos e, por
conseguinte, propondo que o problema do valor literário seja tratado como uma
matéria ligada ao tema mais amplo da justiça social, Ginzburg dá apenas mostras
de quão pouco da alteridade que ele crê que deve ser incluída nos processos de
valoração literária efetivamente aparece em sua própria produção. Ao longo do
texto, lemos sobre os juízos universalistas de Afrânio Coutinho, sobre o problema
do valor no new criticism, sobre Harold Bloom, Leila Perrone-Moisés, Schelling,
Adorno e Levinas – mas, salvo um reclame constante para que apresentemos
algum tipo de reação quanto à “dor dos outros” ou quanto à importância de um
“real traumático”, verdadeiro leitmotiv do texto, não se verifica como o que está
excluído deve ser incluído. Lendo o texto de Ginzburg, portanto, não tenho acesso
a nada que me permita aperfeiçoar minha possibilidade de diálogo com qualquer
dos dois alunos que, em suas distintas trajetórias de formação, expressaram
através de seus questionamentos de que maneira vêm incorporando, em seus
procedimentos interacionais na academia, um certo conhecimento sobre o
problema do valor. O tour de force de citações e remissões demonstra a erudição
que se espera de alguém que ostenta as credenciais expostas por Ginzburg, mas
justamente quando ele deveria oferecer uma manifestação mais assertiva, recua,
e parece concluir numa via de conciliação por meio da qual, se não compra uma
briga direta e explícita com partidários do cânone tradicional – Afrânio Coutinho e
Bloom são, obviamente, vilões no diagrama do texto – tampouco incorpora as
implicações radicais de uma posição antagônica a deles, o que o leva a dizer, a
certa altura, que
se todo valor é atribuição historicamente construída, poderí-
amos cair em um relativismo extremo, em que tudo está su-
jeito a debate. Nenhuma obra seria boa por evidência ime-
diata, estaríamos sem certezas e, em última instância, não
teríamos nenhuma segurança sobre o que deve ser lido ou
não. Como professores, estaríamos à mercê de nós mesmos
na tarefa delicada de decidir o que fazer. (Ginzburg, 2008, p.
106)
Ora, então não é esse o caso? Acaso há alguma saída para a questão do valor
literário além da admissão de que se trata de matéria complexa porque variável,
porque põe na berlinda toda a estrutura de autoridade e legitimação desse
arcabouço de práticas e instituições que resumimos com o termo “Ocidente”?
Salvo no caso de se substituir um essencialismo por outro – isto é, de trocarmos
os valores humanos, universais, e sempiternos do Afrânio Coutinho, quaisquer
que fossem, por um outro contingente de valores que, enquanto outros, seriam

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ainda, também, “humanos, universais, e sempiternos” – creio que, como
professores, se estivermos minimamente informados, ocupamos um lugar que
nos provoca sim a proclamar que “Nenhuma obra seria boa por evidência
imediata”.
Todavia – e aí, creio, reside um setor de diferença ainda mais significativo entre a
natureza do argumento de Ginzburg e o que pretendo defender aqui – não creio
que disso decorre que nós, professores, “estaríamos sem certezas e, em última
instância, não teríamos nenhuma segurança sobre o que deve ser lido ou não”.
Nossas “certezas”, os eixos orientadores de nossa prática docente e de nossas
prédicas em sala de aula, continuarão comparecendo às instâncias de produção
de saber como sempre compareceram – todavia, com o ônus adicional, benesse
ambígua do contemporâneo, de se apresentarem como problemas, como
articulações de um debate que sempre ultrapassará qualquer manifestação
individual. E, talvez, seja o caso de considerar uma modulação no próprio papel
do professor que parece subjacente ao texto de Ginzburg, e supor que esse lugar
tenha conexões melhores com um exercício de incerteza do que de certeza –
que, talvez, a tarefa de formar profissionais na área de Letras e em Estudos
Literários passe, em certa medida, por formar sujeitos capazes antes de operar
com a nuance que de sujeitarem-se às certezas comercializadas por professores
ou quaisquer outros com os quais venham a se deparar. Isso que acabei de
enunciar é, por exemplo, algo bem próximo de uma “certeza” que utilizo como
baliza para meu trabalho docente – mas será que é disso que Ginzburg fala em
seu texto? Não me parece.
Nesse sentido, portanto, estaríamos sim envolvidos na “tarefa delicada de decidir
o que fazer”, cabendo talvez enfatizar que há muitos “que fazeres” em jogo no
cenário agonístico e multicultural de qualquer sala de aula de ensino superior em
um grande centro urbano hoje. Alguns exemplos apenas, recolhidos de maneira
mais ou menos aleatória em um conjunto de questões que me chamaram a
atenção em textos com os quais trabalhei recentemente – como Aira (2007),
Azevedo (2005), Carvalho (2005), Dalcastagné (2005), Perrone-Moisés (2006) e
Souza (2002) – ou em situações nas quais me vi envolvido: O que fazer com
nossa disposição genérica, automática e imediata, traduzida em nossos métodos
de avaliação e hierarquização de alunos, para valorizar aqueles que manifestam
uma condição patente de leitores já formados e bem informados? O que fazer
com aqueles que, por força de mil estratégias políticas de inclusão, desde os
programas de promoção social até as políticas de cotas, emergem no espaço
privilegiado da universidade pública na condição de leitores precários, ainda semi-
letrados na comparação com os alunos que fomos, por exemplo? O que fazer
com alunos evangélicos, enquanto representantes de sistemas de crenças que se
chocam com pressupostos elementares do saber acadêmico? O que fazer com os
alunos que aparecem demonstrando uma proficiência em produção textual
construída principalmente por suas trajetórias como usuários das novas (e já não
tão novas) tecnologias de comunicação e que não apresentam nenhum repertório
de leituras a não ser Harry Potter e quejandos? O que fazer com a pura e simples
ampliação do número de vagas nas universidades, que submete os professores,
em especial aqueles em início de carreira, a condicionantes particulares de uso
do tempo e condução dos afazeres acadêmicos completamente distintos

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daqueles que caracterizavam o cotidiano dos professores que os formaram? E,
afinal, o que fazer com perguntas como “Isso é literatura?” ou “Para que serve a
literatura?” – condená-las a um index proibitorum ou acolhê-las como
problematizações incontornáveis para quem trabalha em nossa área?

IV
Escusado dizer, não venho aqui defender nenhuma panacéia universal que dê
conta desse coacervado de perguntas com um abracadabra. Mas, como já deve
estar evidente, venho sim sugerir que o problema do “valor literário” aparece em
todas essas instâncias, e está longe de se restringir a fatos obviamente
relacionados a ele – como, para um exemplo rudimentar, responder porque os
alunos têm cursos sobre Pessoa e Guimarães Rosa em número superior ao dos
cursos que versam sobre Preto Ghoez e Santiago Nazarian. E, em paralelo a
isso, venho defender também que a via do exame das condições factuais,
materiais, empíricas de realização do trabalho com literatura no país é que
precisam de mais e melhores abordagens, que nos permitam sair do pedestal de
juízo a priori e manobrar de maneira um pouco mais salubre com as
complicações, e eventuais propostas de resolução local, de problemas que vão
desde a construção diferencial do currículo nas instituições de ensino superior até
as demandas mínimas de exercício profissional, passando obviamente pelos
procedimentos de negociação interessantes para a construção de uma
micropolítica universitária capaz de dialogar com esses desafios.
Por essa via, então, as investigações sobre o problema do valor literário que
poderiam talvez produzir um material conducente a uma reflexão mais orientada
sobre questões do presente seria, imagino, algo alinhado com propostas como as
de Barbara Herrnstein Smith (1988; 2002), Wendy Griswold (1993), John Guillory
(1993), ou Bruno Latour (2005) – que, a partir de perfis profissionais e lugares
distintos como pesquisadores, conduzem nossa atenção para os horizontes de
práticas nos quais nos envolvemos e, por essa via, permitem uma observação
capaz de circundar as rotas e os ritos do hábito trivializador, um pouco nos termos
em que Gilberto Velho sugere, em seu “Observando o familiar” (1981) que nos
aproximemos de coisas que sempre vemos e encontramos, mas que nem por isso
são necessariamente conhecidas por nós. Assim, precisaríamos ainda seguir os
sujeitos sociais engajados em uma miríade de usos do objetos literários – de
leitores a críticos profissionais, passando por professores e alunos, por diletantes
e editores, por juízes de premiações literárias a agentes empossados na gestão
de órgãos não-governamentais de fomento à cultura, de professores do ensino
básico a jovens autores – para construir uma discussão mais empiricamente
orientada dos processos de construção e circulação de “moedas” entre esses
agentes. Qual é a moeda forte no campo literário contemporâneo? Qual é a
aposta da vez, quem é o azarão?
Considerando o sedimento histórico deixado pelas matrizes disciplinares que
constituíram as estratégias de produção de saber sobre literatura no Brasil,
trabalhar por essa via será, certamente, manobra “pouco ortodoxa” – mas talvez
implique em uma apropriação renovada, quem sabe vivificada, do “o
conhecimento que o objeto livro de ficção tem trazido para os habitantes deste

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país chamado Brasil”. Antes de análise de conjuntura, descrição de afazeres e
práticas; antes de juízos peremptórios sobre a antinomia reguladora da área,
exploração sobre o que talvez se mostre mais como um emaranhado ou jardim de
caminhos que se bifurcam que como uma esquina paulistana, com direito a sinal
de trânsito e faixa de pedestres. Essas explorações levarão aos embaraços com
as vicissitudes de uma zona de contatos mais ao rés do chão e menos
obviamente douta: uma condição certamente mais áspera mas, talvez, justamente
por isso, mais potencialmente fértil. Nesse sentido, a questão que se apresenta é
se a proposta “vale quanto pesa”, compensa o tanto de investimento que
determinaria suas condições mínimas de sucesso – e isso, obviamente,
encontrará condições muito diferenciais de acolhimento em um campo que,
apesar de tão reduzido é tão segmentado internamente como o dos Estudos
Literários brasileiros. Parodiando uma observação de Cristina Magro (1999) a
respeito da relação entre fato e valor nos Estudos Lingüísticos, talvez seja apenas
através desse tipo de trabalho – propiciador de algum ganho especular, alguma
dimensão mais efetiva das características das múltiplas práticas nas quais
estamos envolvidos – que poderemos dar valor, de fato, à literatura, ao
conhecimento e a nossa atividade intelectual.

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Referências:
Aira, Cesar. O que fazer com a literatura? In: Aira, César. Pequeno manual de
procedimentos. Curitiba: Arte & Letra, 2007.
Azevedo, Luciene. Valores? Pra quem? Estudos de literatura brasileira
contemporânea, n. 26, julho/dezembro de 2005, p.107-118.
Carvalho, Bernardo. Para que serve a literatura? In: Carvalho. Bernardo. O
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[Pereira: Vale quanto pesa? Para Azevedo & Tollendal (Orgs), 2009.] 11

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