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Amiel Vieira, 36, posa para foto na Quinta da Boa Vista, centro do Rio de Janeiro
Imagem: Bruna Prado/UOL
Marcelle Souza
Colaboração para o TAB, em São Paulo
18/07/2019 04h01
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/07/18/nem-rosa-nem-azul-como-e-ser-pessoa-intersexo-no-brasil.htm 1/24
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Mas essa história começa bem antes, na sala de parto, naquela clássica cena em que o
médico recebe a criança nos braços e informa à família "é menino" ou "é menina". No
caso de Amiel, os pais o acolheram com ansiedade e um ponto de interrogação.
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Amiel nasceu com uma condição rara, chamada de síndrome de insensibilidade parcial
androgênica, quando o corpo é incapaz de responder à testosterona, que resulta em uma
má formação do órgão sexual. Ele tinha uma genitália ambígua, e os médicos não podiam
dizer se o que viam era um clitóris maior do que o comum ou um pênis que não estava
completamente desenvolvido. Não era possível dizer o sexo do bebê. Nascia ali uma
criança intersexo.
A condição pode ter causas genéticas ou ambientais. Isso significa que pode ser resultado
de uma alteração cromossômica ou de problemas no desenvolvimento do feto durante a
gestação, com a maior exposição da mãe a hormônios nesse período.
"A gente não entende a intersexualidade como uma doença, mas como um conjunto de
distúrbios de desenvolvimento do sexo" diz o médico endocrinologista Magnus Regios
Dias da Silva, professor da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp (Universidade Federal
de São Paulo).
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Órgãos e identidades
A medicina já mapeou mais de 40 estados intersexos. Eles são caracterizados, por
exemplo, por incompatibilidades entre órgãos e cromossomos sexuais, alterações
hormonais e, em menor número, ambiguidades sexuais.
Amiel foi criado como menino nos primeiros meses e depois registrado como Anamaria
Imagem: Bruna Prado/UOL
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mudou depois que ele foi submetido, ainda bebê, a uma cirurgia para criar uma vagina no
lugar do pênis que não se desenvolveu completamente.
Aos sete meses, ele virou então Anamaria. Seu registro foi corrigido, as fotos das
primeiras semanas de vida foram queimadas e a família foi aconselhada a nunca mais
tocar no assunto. "Os médicos diziam que o silêncio era para não produzir danos
psicológicos, só que eles não levaram em consideração que todo esse processo causaria
danos quase que irreversíveis", diz Amiel, que é estudante de doutorado na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ativista intersexo.
Duas cirurgias
Apesar de socializado como uma menina, Amiel sempre sentiu que havia algo errado com
o seu corpo. Não estava confortável com as roupas, com os brinquedos, com os
comportamentos considerados femininos. Nunca se sentiu uma menina.
Com o passar dos anos, começaram os tratamentos hormonais até que chegou a hora da
última cirurgia: com a previsão de uma vida sexual, seria necessária uma intervenção
para ampliar o canal vaginal criado no primeiro ano de vida. "Eu fui mutilado aos 7 meses
e aos 20 anos de idade", diz.
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Amiel considera que foi mutilado e não se adaptou a criação como menina
Imagem: Bruna Prado/UOL
Na época, ele acreditava que o procedimento teria a capacidade de, enfim, fazê-lo se
sentir em um corpo de mulher. Isso não só não aconteceu, como acabou gerando outros
problemas.
"Não fui eu que tomei a decisão [de ser criado como uma mulher]. Quando meus pais,
junto com os médicos, chegaram à conclusão de que era melhor fazer uma vagina, não
houve consentimento algum da minha parte", diz.
O incômodo só começou a ser quebrado quando Anamaria disse aos pais que era uma
mulher lésbica, e decidiu sair de casa. Mas não era apenas uma questão de orientação
sexual. Havia algo errado com o seu corpo.
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A verdade só começou a aparecer quando, por volta dos 30 anos, Anamaria passou a se
identificar como Amiel, um homem trans. Nessa época, ele encontrou alguns registros
médicos da infância, foi atrás de informações detalhadas sobre a síndrome citada nos
documentos e entrour em contato com alguns ativistas intersexo.
"A cirurgia não me transformou em uma mulher. Só me deu uma parte genital, mas que
não era minha. Eu era só um buraco penetrável", diz. "O poder médico trabalha com o
segredo e o silêncio, o que não dá possibilidade desse assunto ser discutido em
sociedade. Então a intersexualidade nasce e morre dentro da sala de cirurgia".
Os médicos e a ambivalência
A necessidade de uma intervenção cirúrgica precoce em crianças com ambiguidade
sexual é um dos principais embates entre o movimento intersexo e parte da comunidade
médica. De um lado, pessoas adultas que foram submetidas à cirurgia, como Amiel,
dizem que são grandes os prejuízos tanto do procedimento quanto do silêncio em torno
dele.
O CFM recomenda que, para a adoção final do sexo, o caso deve ser acompanhado por
uma equipe multidisciplinar. A família deve receber apoio e ser informada sobre o
problema e suas implicações, e o paciente, sempre que possível, deve participar
ativamente do processo.
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Para Amiel, os médicos querem resolver o problema rápido, sem levar em conta da psicologia do intersexo
Imagem: Bruna Prado/UOL
"O médico quer resolver o problema o mais rápido possível, e não dá tempo da família se
preparar. Meus pais não tinham informação nenhuma. Esperavam um filho homem, nasce
uma criança que o médico não diz se é menino ou menina, então imagina como ficou a
cabeça deles", diz Amiel.
Mutilação e trauma
"Essas cirurgias na maioria das vezes incorrem em erros, porque vão normalizar essas
pessoas para um gênero a qual não se identificam, o que gera traumas ligados a essa
mutilação, como acontece com a maior parte da comunidade intersexo. Uma parte da sua
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Sociabilizado como uma menina, Alex diz que sempre se sentiu incomodado com o
próprio corpo. "Eu só me lembro de querer fazer coisas que as pessoas não me deixavam
fazer, eu queria ser um menino, mas tinha que agir como uma menina".
Sempre soube que tinha algo diferente, mas só aos 21 anos, quando decidiu investigar a
sua própria história, descobriu que havia nascido com uma ambiguidade genital. "O
sentimento, naquele momento, foi de bastante rancor, de frustração. Mas com o tempo eu
percebi que muitas famílias são pegas de surpresa e não têm ferramentas para questionar
os médicos", diz Alex, que nunca falou abertamente com os pais sobre o assunto.
Alex Bonotto é ativista intersexo em Porto Alegre e passou por sete cirurgias
Imagem: Tiago Coelho/UOL
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"A gente entende o intersexo como uma variação da natureza, não como uma anomalia.
Essas pessoas têm o direito de viver com uma genitália atípica e decidir pela cirurgia
quando julgar necessário", diz. "Isso não quer dizer elas não precisem assistência".
A ONU (Organização das Nações Unidas) recomenda que os países proíbam cirurgias e
procedimentos médicos desnecessários em crianças intersexuais. Isso porque, segundo a
organização, há riscos de infertilidade permanente, dor, incontinência, perda da
sensibilidade sexual e sofrimento mental ao longo da vida. A medida, no entanto, foi
adotada por poucos países, como Chile e Malta.
Não é só XX e XY
O que os ativistas intersexos questionam são os parâmetros de normalidade da genitália,
dos hormônios e dos cromossomos atribuídos aos sexos feminino e masculino. Isso
porque há casos em que o órgão possui características atribuídas a um sexo, mas o
mapeamento cromossômico indica o contrário. Por exemplo, quando uma pessoa que tem
uma vagina, mas os exames indicam que é XY (e não XX, como se esperava).
Além disso, há pessoas que que nascem com alterações cromossômicas e, no lugar de
XX (feminino) e do XY (masculino), são XXY.
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A judoca Edinanci Silva teve de fazer teste de feminilidade durante a Olimpíada de 1996, em Atlanta (EUA)
Imagem: Ormuzd Alves/Folha Imagem
Em 1996, por exemplo, a judoca brasileira Edinanci Silva foi submetida a um teste de
feminilidade antes de participar dos Jogos Olímpicos de Atlanta, nos Estados Unidos.
Intersexo, ela havia passado por um procedimento cirúrgico pouco antes da competição e
teve que provar ao comitê que tinha características de uma mulher.
Em maio deste ano, foi a vez do Tribunal Arbitral do Esporte determinar que a atleta sul-
africana e intersexo Caster Semenya, 28, use medicamentos para reduzir os seus níveis
de testosterona para competir na categoria feminina.
"A gente nota aí um caso de intersexofobia. Eu, por exemplo, não tenho testosterona. Eu
sou um nada, eu sou um bug no sistema", diz Amiel.
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disso, ele apresentava uma ambiguidade sexual. "Os médicos falaram que era uma
aberração congênita, sugeriram que eu interrompesse a gestação", conta a
psicopedagoga e educadora sexual.
Mesmo com 70% de risco de morte ao nascer, ela decidiu manter a gravidez e ficar
acordada durante todo o parto. "Quando ele nasceu, chorou normalmente e me deu um
grande alívio", conta.
Jacob tinha um pênis bem pequeno, mas não apresentava testículos, tinha uma
ambiguidade sexual. "A nossa maior preocupação era a sua saúde. Ele tinha uma
síndrome rara e congênita, que afetava o desenvolvimento de vários órgãos e podia
causar morte súbita. Então, a gente nem ligou para a questão sexual", diz a mãe.
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Foi aí que começou a dor de cabeça. Como havia uma ambiguidade sexual, o hospital se
recusou a emitir e Declaração de Nascido Vivo, documento indispensável para a certidão
de nascimento. "Na época, eu procurei promotor, advogado, ninguém sabia o que fazer",
diz. Sem o registro, o bebê não tinha cartão SUS, não tinha acesso ao plano de saúde e
Thaís nem podia solicitar a licença-maternidade. Era como se ele não existisse.
O documento só foi liberado mais de dois meses depois do nascimento, quando saiu o
resultado dos exames genéticos, que apontaram que ele tinha cromossomos XY,
associados ao sexo masculino.
A dor de cabeça da família de Jacob, no entanto, poderia ter sido evitada se o hospital
tivesse respeitado os manuais de preenchimento da Declaração de Nascido Vivo, onde
são registrados dados da mãe, do parto e do bebê.
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O problema é que há muita desinformação e parte das famílias não sabe da existência
dessa recomendação, além da insegurança jurídica, que poderia ser resolvida com uma
lei específica sobre o assunto.
Foi exatamente para acabar com esse tipo de problema que a Alemanha tornou oficial, no
fim de 2018, a existência de um "terceiro gênero" nas certidões de nascimento.
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As frentes de batalha
No Brasil, o movimento organizado de pessoas intersexo é recente e tem demandas
especialmente nos campos da medicina e do direito. "Uma das nossas principais
bandeiras é a despatologização dos nossos corpos", diz Amiel, que é diretor acadêmico
da recém-criada Abrai (Associação Brasileira de Intersexos). Para ampliar ainda mais o
debate, ele decidiu também pesquisar o tema no doutorado.
O mesmo aconteceu com Thais Campos, que recentemente organizou um livro sobre o
tema e passou a investigar intervenções médicas em crianças intersexos no doutorado
em psicologia na Unesp (Universidade Estadual Paulista). "Não existe luta por um direito
sem tornar visível, então resolvi tornar pública a minha história", diz.
Jacob faleceu um ano e meio depois do nascimento por conta dos problemas cardíacos
que tinha, e acabou transformando para sempre a vida de Thais. O contato com ativistas
e a experiência com o filho Jacob fizeram ela virar uma das referências para famílias que
acabam descobrindo o filho intersexo.
"Quando eu tive o Jacob, quis conhecer pessoas adultas intersexo, e todas elas falaram
emocionadas: 'se a minha mãe tivesse respeitado o meu corpo, eu não me sentiria
mutilado´", conta Thais.
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