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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

Mestrado em Direito

DANO SOCIAL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Daniel Arthur Quaresma da Costa

Rio de Janeiro
2007
Daniel Arthur Quaresma da Costa

DANO SOCIAL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito


da Universidade Gama Filho, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Calmon Nogueira da


Gama

Rio de Janeiro
2007
Dissertação em Mestrado em Direito intitulada “Dano Social nas Relações de
Consumo”, de autoria do mestrando Daniel Arthur Quaresma da Costa, apresentada ao
curso de Mestrado em Direito da Universidade Gama Filho e sustentada perante a banca
examinadora constituída pelos seguintes professor es:

____________________________________________________ ____________
Prof. Dr. Guilherme Calmon N ogueira da Gama – Universidade Gama Filho Pontuação

____________________________________________________ _____ _______

____________________________________________________ ____________

O candidato foi considerado ______________ com média final igual a ______ (_____________)

Rio de Janeiro
2007
DEDICATÓRIA

A Deus, por sua divina onipresença, sempre


disposto a realizar os sonhos mais impossíveis.

Aos meus pais, Juca e Libânia, por terem -me


tornado uma pessoa verdadeiramente rica.

À memória do vovô Orígenes, por todas as


vezes que gostaria de estar presente – e esteve.
A vovó Nena e a Dedéia, simplesmente por
serem vovó Nena e Dedéia.
Ao carinho e amor de todos os familiares.

À minha prima Mariana, pelos cuidados e


companhia carinhosa de sempre.
À presença, alegria, humor e vitalidade sempre
revigorante dos amigos de verdade.

A Verônica, pelo amor e dedicação e por saber


estar comigo sempre na hora certa e no
momento certo.
AGRADECIMENTOS

Todo trabalho guarda em si toda uma história. Manifesto meus sinceros


agradecimentos a todos que viabilizaram a conclusão deste trabalh o. À querida prima
Mariana, pelo convite. Aos meus pais pelo incentivo e apoio. À presença da família,
especialmente da Tia Lili, do Tio Zé Carlos e família. Aos exemplos de determinação
pessoal e profissional da minha madrinha, que me incentivaram sempre que as
dificuldades se apresentavam.
Às dicas daqueles que, além de mestres, tenho agora o prazer de chamar de
amigos: Kátia V. Pires, Dalton C. Rocha, Elton Dias Xavier, Janice F. Sant’ana, Ionete
M. Souza, Maria da Luz A. Ferreira, dentre vários outros q ue desde já peço perdão por
cometer o pecado de não mencionar nominalmente.
Aos ensinamentos e orientação dos professores Hugo R. Lovisolo, Zoraide
Amaral de Souza, Alberto Nogueira, Hilda Helena S. Bentes, José Ribas Vieira e
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, sempre muito solícito e simpático na tarefa de
orientar-me neste trabalho.
Aos amigos da Turma, pelas horas de descanso, sempre regadas do mais
agradável e revitalizante humor e pelas palavras e ações de apoio. Ao Adriano, Débora e
Clemar, pelo apoio, presença e hospedagem no Rio. A Pedro e Juliana pela ajuda com o
inglês. Aos colegas do mestrado, em especial ao Adriano Siúves, sempre companheiro.
Aos colegas do escritório, Luciana Marques, Nardélio Bahia, Rui Pereira, Moacir
Barbosa, Leandro Teixeira Mota e Renato Tolentino pelo apoio nas horas de ausência.
À minha sócia Regina C. M. Rocha, sempre muito competente, pelas mesmas razões. A
todos os meus alunos, cujos questionamentos fomentaram essa pesquisa. A sua
existência é que dá sentido à vida inte lectual dos professores.
A Verônica pela paciência nas horas de ausência, pelo amor nas horas em
que se fez presente e por acreditar sempre na conclusão deste projeto.
RESUMO

COSTA, D. A. Q. Dano Social nas Relações de Consumo. 2007. 127 f. Dissertação


(Mestrado em Direito e Economia) Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007.

O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo sobre como se pode utilizar a


responsabilidade civil como instrumento apto a garantir a observação dos princípios
constitucionais da atividade econômica brasileira, especialmente no que diz respeito às
relações de consumo. Através da pesquisa jurisprudencial e bibliográfica, analisou -se a
nova tábua axiológica do direito privado, a influência dos direitos fundamentais nas
relações privadas e como essa tendência transforma e regula as relações consumeristas.
Para que o escopo fosse atingido, dividiu -se o trabalho em três momentos distintos. O
primeiro é constituído de uma análise da evolução do direito privado até a atua lidade,
demonstrando quais são os princípios norteadores do Código Civil de 2002 e de todo o
direito privado. Num segundo momento, é feita uma abordagem sobre a
interdisciplinaridade existente entre os direitos fundamentais e as relações privadas,
destacando-se ao final as conseqüências dessa relação com a atividade econômica.
Finalmente, a terceira e última parte é dedicada à análise da vulnerabilidade do
consumidor em relação ao fornecedor, às possibilidades deste último praticar atos
abusivos contra o primeiro e a busca pela solução para o caso na responsabilidade civil.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais – Autonomia Privada – Dignidade da Pessoa


Humana – Função Social da Empresa – Responsabilidade Civil – Ato Abusivo –
Indenização Punitiva.
ABSTRACT

COSTA, D. A. Q. Dano Social nas Relações de Consumo. 2007. 127 f. Dissertação


(Mestrado em Direito e Economia) Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007.

The objective of this essay is to study about how to use the civil respon sibility as a
useful instrument to assure that the constitutional principles of the Brazilian economical
activities, specially the ones related to the consume relations. Through jurisdiction
and bibliographical research the new table of moral contents of t he private law, the
influence of the fundamental rights in the private relations and how this tendency
changes and regulates the consumerist relations were analyzed. To reach this objective,
this essay was divided into three different parts. The first part consists in an analysis of
the evolution of the private law, showing which are the principles of the 2002 Civil
Code and all laws. On the second part, a study about the existing interdisciplinary
among the fundamental rights and the private relations is presented, emphasizing
at the end the consequences of those relations with the economic activity. Finally, the
third and last part is dedicated to the analysis of the consumers’ vulnerability related to
the suppliers, the possibilities of those suppliers ex ploit the consumers and the search of
a solution for the cases in the civil responsibility.

Key words: Fundamental rights – Private Autonomy – Person’s Dignity – Social


Function of a Company – Civil Responsibility – Abusive Act – Punitive Damage.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CDC - Código de Defesa do Consumidor


CC - Código Civil
STJ - Superior tribunal de Justiça
STF - Supremo Tribunal Federal
REsp - Recurso Especial
DOU - Diário Oficial da União
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

1 DIREITO CIVIL 15
CONSTITUCIONAL ............................................................................ ............................

1.1 Evolução do Direito Privado ........................................................................... ..... 15

1.2 Evolução do Direito Privado no Brasil........................................................ .............. 26

1.3 Diretrizes axiológicas do Código Civil Brasileiros..................................... ............... 32

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA EFICÁCIA NAS RELAÇÕES PRIVADAS...... 42

2.1 Dignidade da pessoa humana e seus corolários........ ................................................ 48

2.2 Sistema das cláusulas gerais………………………………………………… …….. 69

2.3 Atividade econômica e constitucionalização do direito privado.............. .............. 73

3 FUNÇÃO DA REPARAÇÃO NOS CASOS DE D ANO 80


SOCIAL............................................................................................................................

3.1 Impactos da constitucionalização na responsabilidade civil.................... ............... 80

3.2 Eticidade e abuso do direito nas relações de consumo............................ ................ 88

3.3 Dano decorrente do abuso do direito no ambiente de consumo: o dano 100


social............................................................................ .......................................................

CONCLUSÃO................................................................................................................. 118

REFERÊNCIAS ................................................. ........................................................... 123


INTRODUÇÃO

A passagem da sociedade moderna para a pós -moderna trouxe vários

desafios aos mais variados ramos da ciência. No caso das ciências jurídicas, não poderia

ser diferente. A sociedade civil contemporânea transforma -se continua e rapidamente

em direção a um rumo ainda desconhecido e desafiado pelas mais diversas espécies de

riscos. Estes, por sua vez, gerados pelos avanços da biotecnologia, telecomunicações,

informática, economia globalizada, e muitos outros fatores.

Estes eventos influenciam e modificam o meio social, que passa a exigir do

Direito novas normas que venham a dar forma jurídica às relações cada vez mais

complexas tanto na área pública quanto privada. Na sociedade civil , constata-se que

grupos sociais outrora marginalizados fazem -se representar. A estrutura da codificação

já não atende às expectativas sociais, pois seus modelos abstratos de relações jurídicas

mostram-se anacrônicos e excludentes.

Neste contexto, o legislador em resposta às expectativas sociais insere

microssistemas no ordenamento jurídico. Com estrutura radicalmente diferente da

codificação, o microssistema desafia a tradicional dicotomia do direito público e direito

privado, porque traz em si um misto de ssas duas áreas. Para atuar como núcleo do

ordenamento, são utilizados os preceitos constitucionais dos direitos fundamentais. A

partir deles é que o ordenamento jurídico passa a ser analisado.

Ao trazer os direitos fundamentais como elemento centralizador de

microssistemas aplicáveis em relações privadas, o legislador conduz os juristas à

temática da eficácia dos direitos fundamentais naquele âmbito de relações. Com isso,

cria-se uma problemática a ser solucionada. Em que intensidade os direitos


11

fundamentais devem interferir nas relações privadas? Como esses direitos se

relacionarão num campo tradicionalmente dominado pela autonomia privada? Qual o

método a ser utilizado para a correta aplicação dos direitos fundamentais no campo

privado?

O Estado contemporâneo já descobriu que não é possível se manter afastado

das relações privadas como no antigo ideal liberal. Afinal, muitos particulares detêm

bens jurídicos que são fundamentais para a manutenção da dignidade humana dos

cidadãos. Há particulares que, em te rmos de riqueza, conhecimento e influência sobre a

sociedade, chegam a rivalizar com o próprio Estado. Neste contexto, torna -se dever

estatal intervir nas relações privadas cujo desequilíbrio gera exploração para que a

dignidade humana não seja prejudicada .

Neste universo de vulneráveis, o consumidor apresenta -se como exemplo

maior. Vulnerável do ponto de vista técnico, informativo, político, econômico e

jurídico, esta facção da sociedade se apresenta carecedora de especial atenção estatal.

Exposto às mais variadas práticas abusivas, é preciso um método jurídico para garantir

ao consumidor não só sua segurança e dignidade individual, mas assegurar que o

fornecedor, atuando com respeito à função social da empresa, não se desvie da conduta

ética esperada. Afinal, é sabido que, por adotar políticas padronizadas, o fornecedor que

desvia sua conduta não prejudica apenas um ou outro consumidor, mas toda uma

coletividade.

O objetivo deste trabalho, portanto, é analisar, dentro do ponto de vista do

direito privado constitucionalizado, como a responsabilidade civil pode ser chamada a

auxiliar o Direito a impedir que o fornecedor abuse de seus direitos e prejudique os

consumidores.
12

Para tanto, será necessário num primeiro momento fazer uma análise da

evolução do direito privado, examinando sua trajetória a partir do Estado Liberal.

Optou-se pela análise histórica mais objetiva, dispensando a pesquisa do

desenvolvimento do direito privado em tempos mais remotos. A razão dessa opção deu -

se porque basta a comparação da atua lidade com a ideologia liberal e social para atender

ao objetivo do primeiro capítulo, que é visualizar quais problemas herdados do Estado

Moderno o novo direito privado tentará solucionar. É também nesta fase do trabalho

que será feita uma análise do dese nvolvimento do direito privado no Brasil, com suas

peculiaridades, finalizando com uma análise do Código Civil de 2002 e os princípios

que o orientam. Para a tarefa proposta, foram fundamentais as obras de Miguel Reale,

Judith Martins-Costa, Ricardo Luis Lorenzetti, César Fiúza, Maria de Fátima Freire de

Sá, Bruno Torquato de Oliveira Naves, Gustavo Tepedino e outros.

Em seguida é feita uma exposição sobre os valores e normas constitucionais

que devem ser obrigatoriamente observados na aplicação do direito privado pós-

moderno. Constituindo-se como a nova tábua axiológica do direito privado, os direitos

fundamentais passam a ter uma importância diferenciada nas relações privadas. No

segundo capítulo é feita uma análise sobre a intensidade em que esses direito s penetram

nas relações privadas e como aplicá -los. Também nessa oportunidade dissecou -se o

princípio da dignidade da pessoa humana, para que se possa saber o seu conteúdo (na

medida do possível) e seus desdobramentos. Outro objetivo específico deste segun do

capítulo foi, ao analisar as cláusulas gerais presentes na área do direito privado procurar

saber qual a técnica legislativa utilizada para viabilizar ainda mais a incidência dos

direitos fundamentais nas relações privadas. Finalizando o segundo capítul o e já

direcionando os temas abordados para o terceiro capítulo, procurou -se analisar a

incidência dos direitos fundamentais e o sistema das cláusulas gerais no campo da


13

atividade econômica, oportunidade em que se tratou de temas como a função social da

empresa e suas bases constitucionais.

Para atingir os objetivos propostos no segundo capítulo, recorreu -se, além de

pesquisa jurisprudencial, à doutrina de autores como Daniel Sarmento, Ingo Wolfgang

Sarlet, Maria Celina Bodin de Moraes, Gustavo Tepedino, L uiz Edson Fachin, Juan

Maria Bilbao Ubillos e outros.

Por fim, no terceiro e último capítulo é feita uma proposta sobre como

utilizar a responsabilidade civil como meio de se garantir os direitos fundamentais

contra atos abusivos nas relações de consumo. P ara isso é feito primeiramente um

despretensioso panorama sobre os novos rumos da responsabilidade civil no direito

pátrio. Aborda-se a influência da socialização e eticidade na responsabilidade civil.

Após essa fase, é feito um estudo sobre o abuso do dir eito no Código Civil e nas

relações consumeristas. Finalmente, vencidas as etapas mencionadas, culmina o

trabalho com o exame de uma nova espécie de dano extrapatrimonial: o dano social.

Neste ponto, é também abordado o tema da reparação punitiva, sua apli cação no caso de

atos abusivos nas relações de consumo e a destinação dos valores a ela referentes.

Na fase final do trabalho, destacam -se as doutrinas de Antônio Junqueira de

Azevedo, Judith Martins-Costa, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Bruno

Bartholo, Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves de Farias, Maria Celina Bodin de

Moraes, Sérgio Cavalieri Filho, Fábio Ulhoa Coelho e outros, além da jurisprudência.

O método utilizado para a realização do trabalho foi basicamente a pesquisa

jurisprudencial e bibliográfica. Procurou-se utilizar ainda dos preceitos interpretativos

modernos, partindo sempre das determinações constitucionais para só então analisar -se

a lei infraconstitucional.
14

O trabalho finaliza demonstrando uma proposta de utilização da

responsabilidade civil como instrumento a ser utilizado para garantir o estímulo ao

exercício da cidadania do consumidor, de redução das demandas judiciais cujo objeto

seja a indenização por danos sociais, e acima de tudo, a manutenção e respeito à

dignidade humana como valor observado no mercado de consumo.


15

1 DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

1.1 A Evolução do Direito Privado

É assente o entendimento de que o direito, em sua trajetória, absorve e

manifesta valores das sociedades, ao l ongo da história. O conhecimento jurídico se

transforma, agregando a ética disseminada pelos projetos político -filosóficos das

sociedades ao longo do tempo. O direito privado, nesse contexto, é um dos ramos mais

antigos da ciência jurídica, e é por isso me smo que ele traz em sua estrutura sinais dos

hábitos e costumes das mais antigas sociedades.

Atualmente o direito privado passa por mais um salto evolucionário e, para

entender as novas perspectivas e diretrizes que se apresentam, é importante analisar a

fase que antecede o atual contexto. Trata -se do paradigma da modernidade,

desenvolvido no contexto do Estado Liberal.

Os acontecimentos históricos que influenciaram o surgimento do Estado

Liberal, e que deram inicio aos tempos modernos foram a descoberta d o Novo Mundo,

o Renascimento e a Reforma. 1 Francisco Amaral afirma que, nesse momento histórico,

a subjetividade aparece como princípio fundamental, dessa forma o ser humano aparece

novamente como foco das produções filosóficas e culturais, resgatando valo res e idéias

já cultivadas em outros tempos como na Grécia Antiga, por exemplo 2.

O desenvolvimento da subjetividade fomentou idéias de vários pensadores

de grande importância para a política e para o direito. A exaltação do subjetivismo

1
Afirma-se que o paradigma da modernidade teria se iniciado por volta de 1500, portanto um pouco antes
do estabelecimento do Estado Liberal enquanto paradigma. Para mais informações a respeito, v.
AMARAL, Francisco. O Direito Civil na Pós Modernidade. In: FIUZA, César; FREIRE DE SÁ, Maria de
Fátima; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 62 – 77.
2
Autor cit. op.cit. loc. cit.
16

levou vários pensadores de todas as áreas a trabalhar o individualismo, e


3
consequentemente, a liberdade e autonomia. Na esteira dessas idéias, não tardaram

pensadores, como John Locke e Adam Smith publicarem obras defendendo os direitos

civis como direitos fundamentais, no sentido de criarem para o Estado um dever de

abstenção, de não intervir na liberdade das relações privadas.

Importante lembrar que também inspirados no individualismo e seus

desdobramentos teóricos, os movimentos da Revolução Francesa e o

Constitucionalismo apresentam-se ao mundo, anunciando uma nova fase para o modelo

estatal. É o fim dos tempos para o Estado Absoluto e o início para o Estado Liberal.

O Iluminismo teve especial importância nesse contexto, em especial no

tange ao direito privado. Ao defend er o direito natural e influenciar as codificações,

acabou rompendo com as tradições do ancien regime dando início a uma nova forma de

se pensar o direito. Lembra R. C. van Caenegem:

Desse modo, formou-se na era moderna uma nova concepção do


direito natural. Ainda fazia referência à natureza do homem e da
sociedade, mas diferia das concepções anteriores em vários aspectos.
Rejeitava a concepção do direito natural como um ideal de justiça
com uma significação maior do que a da ordem jurídica positiva. Pelo
contrário, concebia o direito natural como um corpo de princípios
básicos dos quais o direito positivo deveria ser diretamente derivado:
era um direito natural aplicado. A moderna Escola do Direito Natural
recusava derivar seus princípios de sistemas exter nos, como o direito
divino ou o Corpus iuris. Através do estudo racional e da crítica da
natureza humana, os autores dessa escola procuravam princípios
evidentes e axiomáticos, dos quais pudessem deduzir todos os outros
more geométrico. O nome “direito da razão” (vernunftrech) é,
portanto, mais adequado do que “direito natural”, que possui outras
conotações. 4

Como se pode notar, o movimento iluminista influenciou o direito privado,

ao procurar por valores universais (que posteriormente tomaram a forma dos direitos

3
Autor cit.. Op. cit., loc. cit.
4
CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao Direito Privado. Tradução: Carlos Eduardo
Lima Machado; revisão Eduardo Brandão – 2. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 164, 165.
17

fundamentais) que não poderiam ser ignorados nem pela lei, nem pelo Estado. Este

movimento influenciou de tal forma o modelo estatal e o direito privado que se chegou

ao ponto de ser esse o principal conjunto normativo daquele. Ou seja, o direito privado

passou a ser a principal fonte jurídica do Estado Liberal de Direito.

Nessa busca por direitos “naturais”, fundados na razão e de aplicação

universal, os iluministas e os pensadores por eles influenciados legaram à ciência

jurídica os princípios do direito privado. Esses princípios constituem verdadeiros

deveres de abstenção para o Estado, bem como se apresentam como desdobramentos do

individualismo, sendo que os principais são a liberdade e a igualdade.

John Locke, considerado um dos principais ide ólogos do liberalismo, em sua

obra o Tratado do Governo Civil, de 1689, já afirmava que era dever do Estado não

piorar a vida civil de seus cidadãos. Se estes eram livres e iguais no Estado de Natureza,

caberia ao governo manter essa mesma liberdade e igua ldade entre eles. Este pensador

chega a defender a tese de que, caso o cidadão tenha sua liberdade e outros direitos

fundamentais tolhidos pelo Estado de forma abusiva, o povo tem o direito de revoltar -se

contra o governo. A doutrina deste filósofo é funda mental para entender o projeto

político-filosófico do Estado Liberal e dessa fase do direito privado, já que tem por

principal característica a defesa dos interesses individuais e da não intervenção estatal

na liberdade e propriedade dos cidadãos. 5

5
“Assim, na concepção lockeana, convivem, simultaneamente, o Estado Civil com o Estado de Natureza.
O Estado Civil é erigido para garantir a vigência e proteção dos direitos nat urais que correriam grande
perigo, no estado de natureza, por encontrarem -se desprotegidos. Assim, é a guerra e a desordem que
ameaçam os homens e os motivam a formar as regras que constituem o modo de vida regido pelo Estado
e pelas leis. (...)
Outra peculiaridade do pensamento de Locke é sua posição a favor do direito de resistência. Locke baseia
sua posição na impossibilidade de os magistrados, cuja autoridade fundamenta -se na proteção dos direitos
naturais, desrespeitarem a “lei natural”. Caso isso ocor ra, a oposição dos cidadãos é totalmente legítima.
(...)
A originalidade da obra de Locke está em sua radical defesa dos direitos naturais, que não são inatos, mas
de fácil apreensão pela razão e não podem ser desrespeitados pelo “estado civil” que é insti tuído,
exatamente, com o intuito de assegurar sua proteção. A sociedade é, então, apenas o artifício para
manterem-se os direitos naturais, e não pode corrompe -los, desvirtua-los ou suprimi-los. BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2005. p. 232 - 234.
18

Sendo assim, o Estado deveria não só abster -se, mas garantir condições para

que a liberdade – na forma da autonomia privada – fosse exercida de forma plena, por

todos. Dentro dessa mesma filosofia, deveria também o Estado dar um tratamento

igualitário a todos, estando impedido de intervir para conceder quaisquer espécies de

privilégios ou prerrogativas a quem quer que fosse, em qualquer âmbito da

Administração. 6

O direito privado no Estado Liberal, dentro do paradigma da modernidade,

sofreu ainda outra forma de in fluência do iluminismo. É que a razão iluminista gerou a

chamada racionalidade formal. Trata -se da ação do sujeito observando certos

procedimentos para se atingir um determinado fim. Esvazia -se a historicidade e o

conteúdo do objeto observado – no caso o direito – abstraindo-se o máximo possível em

busca da universalidade.

Nesse diapasão, o formalismo jurídico não tardou a manifestar -se. Essa linha

de raciocínio criou o postulado de que o direito seria um sistema completo e coerente

cujo alcance social seria ilimitado. Nesse sentido, afirma Francisco Amaral:

Resulta, ainda, que o direito teria um caráter estático, com reduzida


possibilidade de mudanças, que poderiam afetar a segurança jurídica,
valor supremo do formalismo. Às decisões judiciais chegar -se-ia
dedutivamente, por meio de um silogismo de subsunção, em que a
premissa maior seriam as regras gerais e abstratas, a premissa menor
os fatos concretos da vida real, enquadráveis na hipótese de aplicação
da norma, e como conclusão, a conseqüência jurídica prevista no
respectivo dispositivo. Finalmente, a segurança jurídica, a certeza e a
previsibilidade, seriam os principais valores ou ideais a atingir. 7

Assim, a grande contribuição do início da modernidade para o direito – e

consequentemente para o direit o privado – foi a racionalização do direito, organizando -

6
Importante lembrar que, também nesse período, Montesquieu inspirava o mundo com sua obra “O
espírito das leis” (1748), onde se afirmava que o poder deveria ser tripartido em legislativo, executivo e
judiciário, para melhor funcionamento do Estado.
7
AMARAL, Francisco. Op.cit.p. 69-70.
19

o num sistema. Tal fato veio a criar as codificações, que sistematizavam as normas

jurídicas e, em especial, o direito privado.

A ideologia da igualdade (nesse caso a igualdade formal) nesse contexto

histórico realçou a necessidade de se ter leis de caráter geral e abstrato, já que a sua

aplicação necessariamente teria que alcançar todos os integrantes da sociedade sem

privilegiar ou prejudicar formalmente nenhuma categoria social. A codificação do

direito privado apresenta-se, por isso, como verdadeiro produto de seu tempo, porque se

apresenta como um sistema de leis abstrato e de aplicação geral, cujo conteúdo é

garantir o princípio da autonomia da vontade viabilizando a segurança jurídica das

transações patrimoniais. Nesse sentido, leciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

No que tange à seara do Direito Privado, as codificações assumiam,


mais especificamente, uma função garantista em relação à autonomia
da vontade individual, sempre sob um viés pa trimonialista,
demonstrado pela valorização da propriedade e do contrato,
verdadeiros sustentáculos do regime privatista daquela fase histórica.
É justamente nesse contexto que se situam os Código Civis
oitocentistas, verdadeiros “estatutos” do indivíduo, regulamentando,
inclusive, normas sobre cidadania e gozo dos direitos civis e
assentando os parâmetros socioeconômicos desejados pela classe
politicamente forte no plano jurídico (...). 8

O movimento de codificação foi apoiado por interesses político -econômicos,

razões filosóficas e correntes sociais. A promulgação de um código nacional tinha uma

função política unificadora, já que se tratavam de normas abstratas aplicáveis a quem

quer que fosse. Sendo assim, até as mais heterogêneas facções da sociedade es tariam à

sombra do código, que tinha característica cosmopolita. Do ponto de vista intelectual,

afirma R.C. van Caenegem que a corrente iluminista rompeu com velhos dogmas e

tradições – sobretudo as religiosas – e passou a procurar o bem estar do homem. 9 A

8
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2006. p. 2-3
9
CAENEGEM, R. C. van. Op. cit. p. 178
20

nova concepção de um mundo que pode ser cientificamente analisado,

matematicamente pensado, com leis físicas que podiam ser logicamente provadas

(pensamento claramente fomentado por pensadores como Descartes, Newton e Spinoza,

p. ex.) contribuiu para essa influência no direito. Além disso, a codificação contou

também com apoio social porque a mesma era agora sinal de um novo tempo, onde ao

Estado não cabia mais assegurar a glória de Deus, mas sim o bem comum dos cidadãos.

Todo esse projeto político -filosófico resultou para o direito num novo
divisão de um conceito em duas partes, normalmente contrárias
paradigma. Criou-se a dimensão dicotômica do direito público e do direito privado. O

direito público, especialmente fundamentado pelo movimento constitucionalista, passou

a estabelecer basicamente deveres de não interve nção estatal na vida dos cidadãos,

regendo assim as relações entre o Estado e seus governados. Noutro giro, tem -se o

direito privado, este reforçado pelo movimento de codificação daquele direito natural

postulado nos moldes iluministas, constituindo o Códi go Civil o centro jurídico das

relações privadas. Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma:

Entretanto, a doutrina liberal dos direitos humanos consolidou -se em


outro sentido, pois foram articulados dois sistemas diferentes para a
proteção da liberdade human a. Nas relações entre Estado e indivíduo
valia a Constituição, que limitava os governantes em prol da
liberdade individual dos governados, enquanto, no campo privado, o
Código Civil desempenhava o papel de constituição da sociedade
civil, juridicizando as relações entre particulares de acordo com
regras gerais, supostamente imutáveis, porque fundadas nos
postulados do racionalismo jusnaturalista, que tinham seu centro
gravitacional na idéia de autonomia privada. 10

Enfim, pode-se afirmar que a modernidade e o Estado Liberal, com suas

influências morais e filosóficas, transformaram o direito, criando uma nova sistemática

para o mesmo. Dentre as várias transformações, é seguro afirmar que esta fase histórica

10
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed – Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2006, p. 12.
21

foi importante por focar o pensamento jurídico em tor no do homem e de sua

subjetividade, privilegiando -se assim o valor liberdade, donde se extrai a conclusão de

que o Estado não deveria intervir na autonomia privada e garantir a segurança das

relações jurídicas, sobretudo aquelas de cunho patrimonial. Passo u-se a respeitar o

primado da lei, que seria a realização da vontade popular. Também a lei passou a ser

organizada em torno de um sistema de codificação, cujo objetivo era criar um conjunto

ordenado de normas abstratas de aplicação geral que tinha por cons eqüência romper

com o aspecto histórico, contínuo e dinâmico do direito, apostando num sistema mais

fechado, estático e imutável, porque universal. E por fim, consagrou -se a dicotomia

direito público/privado, onde como se disse acima, a Constituição era o centro do

primeiro e o Código Civil o epicentro do segundo. Nasceram, portanto, duas gerações

de direitos fundamentais: a primeira, dos direitos civis, donde o Estado deveria respeitar

a liberdade, a igualdade e outros direitos que desses princípios são de rivados; e a

segunda, dos direitos políticos, quando se limitou os poderes do Estado em suas

relações com o indivíduo e tripartiu -se o poder estatal. 11

O direito privado nesse contexto teve por características marcantes o

movimento de codificação, a sistema tização do racionalismo jusnaturalista e do

conteúdo ideológico iluminista em relação à liberdade e igualdade formais e o aspecto

patrimonialista dado aos institutos do contrato, da família, da propriedade e mesmo da

responsabilidade civil.

Sob as idéias deste Estado Mínimo, onde a “mão invisível” das leis naturais

equilibraria a sociedade, o Estado e sobretudo a economia, deu -se à iniciativa privada a

mais ampla área de atuação e as pessoas seriam livres para produzir bens e serviços da

forma como lhes fosse mais conveniente. A economia, num primeiro momento, reagiu

11
Para aprofundar mais na evolução dos direitios fundamentais, v. CALMON, Eliana. As Gerações dos
Direitos e as novas tendências. In: ALENCAR, Fontes de. (org). Ensaios Jurídicos. Brasília: Superior
Tribunal de Justiça, 2003, p. 108 e 109.
22

bem a esse novo contexto, mas logo os problemas decorrentes dos excessos de liberdade

começaram a se fazer notar.

Na área contratual, os princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt

servanda foram utilizados para justificar as mais estranhas e injustas relações jurídicas.

Com isso, não tardaram a surgir problemas decorrentes de uma economia

doente. Fenômenos como desemprego, miséria, concentração de renda e inflação

passaram a ser motivos d e preocupação para os Estados e cientistas políticos e

econômicos. Estes acontecimentos começaram a obrigar os juristas a repensar a função

estatal junto com os sociólogos e políticos. 12

Diante dessa nova realidade começa a surgir um novo modelo estatal: o

Estado Social. A desigualdade social, política e econômica advinda dos excessos do

liberalismo levaram à necessidade de ação por parte do Estado, que antes apenas se

abstinha. A partir de então, criou -se o intervencionismo estatal. Chegou -se à conclusão

de que a abstenção estatal completa e absoluta na vida particular dos cidadãos apenas

levou ao domínio dos economicamente mais fortes sobre os economicamente mais

fracos.

Sendo assim, o novo projeto de modelo estatal previa a necessidade de um

Estado interventor e provedor, garantidor dos chamados direitos sociais. Ou seja, com o

Estado Social veio também mais uma dimensão para os direitos fundamentais. Eliana

Calmon bem descreve essa nova realidade ao expor:

A revolução industrial deixou às claras o desampa ro das mulheres,


das crianças e dos idosos.
O amadurecimento de novas exigências ou de novos valores, tais
como o bem-estar, a equidade real e não apenas formal, e o interesse
na manutenção de uma igualdade que transcende a fronteira do
Estado, fizeram explodir uma nova era.

12
Para saber mais detalhes sobre essa passagem histórica, v. ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI,
Nelson. Toda história – história geral e história do Brasil. 7. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 128 -183
23

Tem início com uma visão ainda individual: a igualdade real de cada
um, merecedora de proteção do Estado – direito à educação, ao pleno
emprego, à segurança, etc. 13

Neste modelo, coube ao Estado o papel de provedor, adquirindo então em

seu máximo grau, suas características paternalistas. Sob esse aspecto, os Estados

nacionais chamaram para si toda a responsabilidade pelo desenvolvimento social e

econômico, não apenas intervindo na economia, mas também concorrendo com a

própria iniciativa privada.

Várias novas constituições foram promulgadas nessa fase, haja vista que

vários Estados deixaram de ser capitalistas para adotarem o modelo socialista e os que

não o fizeram, adotaram a filosofia política do welfare state. Fábio Ulhoa Coelho,

comentando este evento histórico, chama a atenção para o fato de que os países que não

se tornaram socialistas foram obrigados a também adotar políticas públicas visando o

bem-estar social, pois temiam a possibilidade de revoltas e revoluções, tendo em vista

que as vantagens sociais oferecidas pelo sistema socialista eram deveras sedutoras aos

cidadãos das classes menos abastadas. 14

É de se notar que nessa fase, as transformações jurídicas se deram

basicamente no plano constitucional, com a afirmação dessa nova geração de direitos

fundamentais. Isso quer dizer que a relação do Estado com o indivíduo foi a seara que

sofreu as alterações mais significativas, já que aquele passou a assumir maiores

compromissos com este. No plano das relações privadas, houve muito po ucas

mudanças, pois o sistema de codificação e sistematização de direitos, para os países de

tradição romano-germânica, se manteve praticamente intacto. O que se pode afirmar

13
CALMON, Eliana. Op. cit. p. 108-109.
14
“Ora, o estado do bem-estar social nunca foi visto pelos marxistas como um resultado positivo da
evolução capitalista, mas simplesmente como um meio de conter as insatisfações do operariado quanto às
condições de vida a que se encontram sujeitos. Um meio bastante caro, mas que valia a pena à burguesia
utilizar para impedir que tais insatisfações pudessem se traduzir em revoluções socialistas.”COELHO,
Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, V. 1 . 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 6.
24

como mudança nessa seara é a sistematização do direito do trabalho, primeiro ramo do

direito que passa a desafiar a então tradicional dicotomia direito público/direito privado,

já que se trata de um sistema cujas normas ora se apresentam com conteúdo publicista,

ora com conteúdo privatista.

A ciência jurídica então, passa a ter dois pl anos de análise jurídica com

abordagens bem distintas entre si. No plano do direito público, aplicam -se as normas

inspiradas na 2ª. geração dos direitos fundamentais – os direitos sociais, ou seja,

aplicava-se um direito fundado na ideologia do Estado Soci al. Contudo, no plano do

direito privado, as questões jurídicas – pelo menos dos Estados capitalistas – ainda eram

decididas basicamente dentro do sistema do Estado Liberal, com inspiração nos direitos

fundamentais de 1ª geração. Nas questões que envolviam direito privado, corria-se o

risco de inclusive o julgador fazer uma leitura da Constituição a partir das premissas do

Código Civil e seus institutos.

Esta talvez tenha sido uma das últimas fases do direito enquanto instituto

consolidado nos moldes do Est ado Moderno. Isso porque a partir das últimas décadas

do século XX, transformações de toda ordem se verificaram. A queda do sistema

socialista, o fim da guerra fria, o avanço da biotecnologia, da informática somada aos

não menos importantes e significativo s avanços nas telecomunicações, entre outros

fatores relevantes, modificaram a sociedade e, conseqüentemente, o Estado e o direito.

A sociedade, antes contida dentro dos padrões das tradições, costumes e

fronteiras do Estado-Nação provedor, passou a ter ma ior facilidade para interagir com

outras pessoas de outros Estados, de outras sociedades. Passou -se a ter acesso aos

estranhos, estrangeiros. Tal fato gera, segundo Anthony Giddens, dois efeitos: um de

ordem cosmopolita, e outro inverso, fundamentalista. 15 Cosmopolitismo no sentido de

15
Para maiores informações a respeito dos efeitos da globalização no mundo, v.GIDDENS, Anthony.
Mundo em Descontrole. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges – 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
25

que o ser humano agora passa a ser cidadão do mundo, já que as forças das fronteiras do

Estado paulatinamente se enfraquecem em todos os planos – especialmente o

econômico, político, social e jurídico – pois os indivíduos agora têm mais acesso a toda

sorte de informações, de qualquer lugar do globo. Como conseqüência, os problemas de

todas as espécies também deixam de ser locais e passam a ser globais. Terrorismo,

aquecimento global, pirataria de produtos, venda de bens ilícitos pela Internet são

exemplos. No plano da vida privada, a diminuição de distância também cria realidades

inéditas. Com a interação das mais diversas pessoas, dos mais diversos locais, a vida

privada se transforma radicalmente.

Todas as relações da vida priv ada dos indivíduos – antes contidas e

controladas pelo Estado – transpassaram as fronteiras estatais. Casamento, família,

contrato, propriedade, relações de consumo e trabalho passaram a ser vistos e tratados

sob novas concepções.

Mas outro efeito também a pontado por Giddens, é que tais transformações

deixam o mundo inseguro, o que leva alguns grupos sociais a um movimento contrário

ao cosmopolitismo. Grupos sociais passam a se reconhecer e se organizar, e as minorias

passam a ter uma maior representativida de social e política. 16

Tudo isso leva à transformação do direito privado em especial. Isso porque,

conforme já se afirmou, o plano constitucional já havia sido alterado. Isso quer dizer

que nas relações do Estado com os indivíduos, os direitos fundamentais de 2ª. Geração

já estavam consolidados, contudo nas relações privadas o mesmo não se dava ainda.

Como agora no Estado contemporâneo as instituições encontram -se enfraquecidas e

várias instituições privadas da sociedade civil têm representatividade e poder muito

grandes – haja vista a força das ONGs, Transnacionais, Organizações de Interesse

16
Autor cit. Op.cit. Loc. Cit.
26

Privado, dentre outros – passa-se a ser necessário repensar o direito privado e sua

relação com os direitos fundamentais.

Além disso, há que considerar também que o con texto da

contemporaneidade trouxe com seus problemas globais novas categorias jurídicas –

inclusive no direito privado – como os interesses metaindividuais e interesses coletivos

e seus meios de tutela processual, que se colocam entre a figura estatal e a figura do

individuo, apresentando-se quase como a manifestação concreta da sociedade civil. Tais

fatores levaram à gênese dos direitos fundamentais de 3ª. Geração, como o direito ao

meio ambiente, proteção consumerista e outros.

1.2 Breve Histórico do Desenvolvimento do Direito Privado no Brasil

No Brasil, hodiernamente acompanha -se a necessidade mundial de se rever o

direito privado. O sistema de codificação do direito privado deu -se primeiramente não

na seara do direito civil, mas no direito comercial. O código comercial brasileiro teve

sua gênese em 1850, ainda sob o governo de Dom Pedro II. Claramente influenciado

pelo código francês, o governo brasileiro tratou de criar naquela época seu próprio

código. E a tradição da codificação nesse país é tão for te que este código até os dias

atuais vigora em sua 2ª. parte, sendo que a primeira somente em 2002 perdeu sua

vigência, com a entrada em vigor do atual Código Civil.

Na área cível, não se pode dizer que o Brasil tenha sido tão ágil. Antes da

independência, em 1822, as Ordenações do Reino, expedidas em 1603 por Felipe I eram

as normas de regência da vida civil na então colônia portuguesa. Contudo, após a


27

independência, relata Washington de Barros Monteiro que se cogitou desde logo a

elaboração de um Código Civil.17

Nada mais natural que o anseio por um Código Civil brasileiro após a

independência, já que, conforme já se afirmou supra, nos idos do século XIX, o código

significava a segurança, desenvolvimento e coerência com o projeto filosófico -político

do Estado Moderno e Liberal. Tamanha era a preocupação com a elaboração de um

código próprio que a Constituição de 1824, em seu art. 179, no. 18, chegou a se referir

expressamente à elaboração de um código civil e criminal, cujos fundamentos deveriam

ter sólidas bases na justiça e equidade. 18

Contudo, apesar da determinação constitucional, o Código Civil tardou a ser

promulgado. Coube então ao jurista Teixeira de Freitas a criação do primeiro projeto de

Código Civil. Apesar de não ter resultado no código definitiv o, o projeto foi tão

apreciado pelos juristas da época, conforme narra Washington de Barros Monteiro, que

parte do trabalho foi aproveitado na confecção do Código Civil argentino, “cujo ramo

mais deficiente, o direito das sucessões, não pôde contar com a i nspiração do genial

jurisconsulto.” 19

Após Teixeira de Freitas, outros jurisconsultos fizeram suas tentativas de

criar ou de aprovar o Código Civil, dentre eles, pode -se citar Nabuco de Araújo – que,

quando ocupava o cargo de Ministro da Justiça, atribuíra a tarefa anteriormente a

Teixeira de Freitas – e Joaquim Felício dos Santos. Comissões também foram montadas

17
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 1º.vol. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 1987 –
1989. pp. 45 – 50.
18
Afirma Washington de Barros Monteiros que “Com a ruptura dos vínculos, cogitou -se desde logo da
elaboração de um Código Civil, aspiração da consciência jurídica nacional, que viesse a cimentar a união
das províncias e consolidar a unidade política do país.
Esse anseio generalizado por legislação própria estava presente quando o governo imperial
expediu a lei 20 de outubro de 1823, mandando vig orar em todo o território nacional as ordenações, leis e
decretos de Portugal, enquanto se não organizasse um novo Código.” Autor cit. Op. cit. p. 47.
19
Autor cit. op. cit. p. 48
28

no sentido de realizar essa tarefa, mas a proclamação da República impediu que seus

trabalhos tivessem continuidade.

Com a República, nomeou -se Coelho Rodrigues para elaborar o projeto de

Código Civil, mas este também não logrou êxito em seus esforços. Posteriormente,

Clóvis Beviláqua foi nomeado para o encargo. Após seis meses, estava pronto o projeto,

que sofreu árduas críticas de Rui Barbosa e Ing lês de Sousa. 20 Mesmo assim, o projeto

de Clóvis Beviláqua foi o que recebeu a aprovação do legislativo, sendo promulgado em

1916, bem mais tarde do que se almejava, já que a intenção era ter um código

promulgado quase que simultaneamente à independência br asileira.

Durante mais de 80 anos, esse foi o Código Civil em torno do qual girou o

direito privado brasileiro, tendo suas instituições influenciado todos os demais ramos do

direito privado e também inspirado alguns ramos do direito público. Sua significân cia é

tamanha que pode-se dizer que até a virada do século XX para o século XXI, as

situações jurídicas de direito privado eram solucionadas pelo judiciário tendo o Código

Civil e seus princípios como fonte primária e a Constituição como fonte secundária.

Porém, já na década de 1920, eventos de relevância nacional vieram a

inspirar mudanças no Direito. A semana da arte moderna, a revolução de 1930 e o golpe

de 1964, dentre outros, eventos já sinalizavam mudanças no sistema de direito privado

pátrio. O código de águas, o código de minas e o instituto do tombamento, por exemplo,

já relativizavam o direito à propriedade. O Estado também já fazia leves intervenções na

vontade das partes contratantes, ao criar limitações para contratar com a lei de usura e a

ação renovatória, por exemplo. E, por fim, em 1980, alguns sinais de mudança mais

definitivos começaram a aparecer no horizonte do direito privado brasileiro.

20
Autor cit. op.cit. p. 48 e 49.
29

Em 1980, a sociedade civil já era bastante diferente do que aquela que o

legislador assistira em 1916 . O Brasil já era um país que contava com a maior parte de

sua população nas cidades e a economia já não era exclusivamente carregada pela

agropecuária. Para se ter uma idéia, relatam José Jobson de A. Arruda e Nelson Piletti

que em 1950, foi constatado qu e apenas 36% da população encontrava -se nas cidades

enquanto o restante – 64% – habitava o meio rural. Já em 1980, a situação estava

completamente invertida, com 66% da população brasileira habitando as cidades e 34%

tendo sua morada nomeio rural. Os autor es supramencionados afirmam:

O progresso industrial que se seguiu ao fim da II Guerra Mundial


limitou-se ao Sudeste. Nas outras regiões continuaram predominando
as atividades econômicas tradicionais. A conseqüência foi o aumento
das correntes migratórias, principalmente do Nordeste para o Sudeste
e do campo para a cidade. 21

O relato dos autores é importante porque demonstra o ambiente em que a

economia e a sociedade brasileira se desenvolveu. Mesmo tendo optado por uma

política econômica um pouco diferente do liberalismo – já que no caso brasileiro o

Estado interferiu na economia – os resultados negativos desse processo compreendido

entre 1945 e 1964 foram bastante similares aos dos efeitos negativos do liberalismo no

restante do mundo. E de 1964 a 1988 não se pode dizer que a situação tivesse

melhorado muito. Era preciso de um sistema jurídico que efetivamente diminuísse os

efeitos da desigualdade causada pela economia. 22

21
ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson . Op. Cit. p. 320.
22
“Os bens produzidos pelas indústrias ficaram acessíveis apenas a uma pequena parcela de brasileiros,
aqueles que conseguiram superar os níveis mínimos de subsistência. Continuou marginalizada, política e
economicamente, a maior parte d a população, constituída de trabalhadores que recebem salário mínimo
ou menos, de subempregados ou desempregados. A renda produzida pelos brasileiros ainda não se
transformou em hospitais, escolas, casas e centros de promoção humana. Em 1980, 7 milhões de crianças
de 7 a 14 anos não freqüentavam escola, apesar da obrigatoriedade constitucional, e metade dos
municípios brasileiros (quase 2000 deles) continuava sem médico residente.” Autores cit. op. cit., loc. cit.
30

Foi nesse ambiente e com esse escopo que se assistiu à promulgação da

Constituição de 1988. Pela via constitucional, alterou -se o direito privado, pois não se

pode perder de vista que o Código Civil de 1916 fora pensado para uma sociedade

moderna, cuja população encontrava -se ainda em sua maioria no meio rural. Sendo

assim, o código ainda tr azia normas para relações patrimonializadas e tratava as

instituições da família e da propriedade nos moldes do Estado Liberal.

As instituições da família e da propriedade, por exemplo, surgiram com uma

nova abordagem na Constituição da República de 1988. Sobre o assunto, adverte

Gustavo Tepedino:

A inclusão dos institutos de direito civil, como contrato, propriedade


e família, na agenda atinente à ordem pública associa -se à irradiação
dos princípios constitucionais nos espaços de liberdade individual.
Com efeito, a partir da interferência da Constituição no âmbito antes
reservado à autonomia privada, uma nova ordem pública há de ser
construída, coerente com os fundamentos e objetivos fundamentais
da República. Afinal, o código civil ‘é o que a ordem públi ca
constitucional permite que possa sê -lo. E a solução interpretativa do
caso concreto só se afigura legítima se compatível com a legalidade
constitucional’. 23

A família brasileira, que vinha mudando sua estrutura de acordo com os

eventos históricos nacionais, também teve regulamentação alterada desde 1916. A lei da

adoção, o estatuto da mulher casada, de 1962, a lei de alimento (lei 5478 de 1968), a lei

de divórcio (lei 6515 de 1977) e outros diplomas legais já anunciavam mudanças no

campo do direito familiar. Isso porque a Constituição da República em várias passagens

institui princípios que alteram a estrutura do direito de família que existia no Código

Civil de 1916. Por exemplo, ao instituir o princípio da isonomia entre homens e

mulheres em seu artigo 5º., I, acabou com o paradigma então vigente de que o homem

23
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento.
IN: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord.). A constitucionalização do Direito
– fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2007. p. 309.
31

era o chefe de família – papel que deixava a mulher em segundo plano (o que é

especializado no princípio isonômico constante do art. 226, § 5º, do texto

constitucional). Também reconheceu -se a existência jurídica da união estável (art. 226,

parágrafo 3º.) e a família monoparental. Os filhos havidos fora do casamento passaram

a ter tratamento jurídico igualitário (art. 227, parágrafo 6º.) aos filhos havidos na

constância do casamento e o instituto d o pátrio poder passou a ser denominado pelos

juristas da área por poder-dever familiar.

O artigo 5º. da Constituição garante ainda o direito à propriedade (direito

fundamental de 1ª. Geração), mas condiciona seu exercício ao atendimento de sua

função social (inciso XXIII do art. 5º. e 170, III, 182, parágrafo 2º. e a art. 186, todos da

Constituição). Pela via constitucional, o direito sinalizava uma mudança na forma de

pensar o direito privado. Essa é, por exemplo, a intenção de Luiz Edson Fachin, ao

sustentar:

Ancorar nos princípios os fins fundamentais do Direito Civil,


fundeando para além da suposta autonomia e pretensa igualdade; sem
capir-se no futuro acontecido ontem, saudar o reconhecimento da
pessoa e dos direitos de personalidade, mesmo que seja pa ra prantear
os não reconhecidos, os excluídos de todos os gêneros; no véu da
liberdade contratual encontrar mais responsabilidade que
propriedade, menos posse na formação epistemológica do núcleo
familiar; e fotografar a legitimidade da herança e direito d e testar na
concessão que também outorga personalidade jurídica aos entes
coletivos. E aí filmar o roteiro das tendências contemporâneas. 24

De 1988 a 2002, o que se assistiu foi um louvável trabalho jurisprudencial no

sentido de procurar adaptar um Código Civil em muito defasado às necessidades

sociais, harmonizando-o com as novas leis (como a lei de divórcio, alimentos, código de

24
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro . 2. Ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 8 -9.
32

defesa do consumidor, lei do inquilinato, e muitas outras) e as construções

jurisprudenciais.

No Brasil e no mundo, o sistema de codificação encontra-se hoje ameaçado e

com sua importância reduzida, devido ao fato de que, como demonstrado acima, cada

vez mais a sociedade civil se torna heterogênea, dificultando a viabilidade de um

sistema que se pretende unificador. Sobre a questão , manifesta-se Ricardo Luis

Lorenzetti no seguinte sentido:

O Código significou uma abstração da idéia de ‘cidadão’, eliminava


as singularidades para dispor sobre um conceito único, ao qual se
aplicavam as conseqüências jurídicas.
Face à heterogeneidade e à diferença, não possuímos conceitos
análogos ou abrangentes. 25

Por todas essas circunstâncias, chegou -se a cogitar a viabilidade de um

sistema maior de direito privado, cujas partes componentes seriam os microssistemas.

Estes, por sua vez, esvaziavam o c onteúdo do Código Civil e passam a ser amarrados

entre si pelas normas fundamentais constitucionais de natureza civilística. Com isso, o

Código Civil afasta-se cada vez mais do centro nuclear do direito privado, deixando que

a Constituição tome seu devido lugar.

Mesmo com todo o contexto exposto, em 2002, assistiu -se no Brasil à

promulgação de seu atual Código Civil, cujo projeto foi desenvolvido sob a

coordenação de Miguel Reale, e cujas normas foram em muito inspiradas no código

anterior sem se descuidar, contudo, de algumas questões pertinentes à realidade atual. A

preocupação em harmonizar as suas normas com os ditames constitucionais, por

exemplo, é uma constante, conforme se verá a seguir.

25
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1998. p. 55
33

1.3 Diretrizes axiológicas do Código Civil Brasileiro

Mesmo diante de um contexto que aponta para uma defasagem do sistema de

codificação, em 2002, promulgou -se no Brasil o Código Civil que veio a substituir o de

191626. O seu anteprojeto contou com a coordenação de Miguel Reale, que foi nomeado

para o encargo em 23 de Maio de 1969. Em meados de 1970, o anteprojeto foi

apresentado ao Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, para que o mesmo desse

prosseguimento aos trâmites necessários. 27 Entretanto, o projeto do Código Civil não foi

promulgado naquela ocasião e foi assim que o mesmo passou por 32 anos de trâmite até

a sua promulgação.

Essa é uma das razões pelas quais se critica o Código Civil de 2002. Devido

ao tempo que distancia o anteprojeto da efetiva promulgação do mesmo, vários juristas

temem pela possibilidade de o mesmo não corresponder adequadamente às necessidades

contemporâneas. Nesse sentido, alerta Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

Nesse quadro de fontes normativas, no qual ainda se inserem as


normas supranacionais recepcionadas pelo Ordenamento nacional, e
de complexa realidade econômica e tecnológica, surge o Código Civil
de 2002, sendo que um dos primeiros impasses visíveis que este
fomenta é quanto à sua relação com a legislação especial, já
existente, no campo do direito intertemporal. Indaga -se até que ponto
o novo texto codificado seria capaz de impor seus dispositivos,
revogando os previamente elaborados para regular matérias
específicas, e, desde já, são cabíveis algumas considerações sobre o
assunto. Primeiramente, é inevitável reconhecer que a event ual
supressão da normativa de certos diplomas legais anteriores ao
Código de 2002 por este implicaria retrocesso de direitos já
conquistados, pois o projeto daquele data do inicio da década de 70,
muito antes da Constituição de 1988 e da resultante organiz ação dos
institutos privados sob a orientação de uma concepção vinculada à

26
Será demonstrado mais adiante sob quais aspectos tem -se pensado o direito privado, bem como quais as
alternativas para se lançar mão de um direito privado eficaz no Brasil.
27
REALE, Miguel; MARTINS -COSTA, Judith. História do Novo Código Civil. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005. pp. 19 – 34.
34

defesa da pessoa humana, e não de preocupações patrimonialistas e


conceitualistas. 28

Em defesa do Código Civil, Judith Martins -Costa e o próprio Miguel Reale

argumentam:

Por outro lado, Josaphat Marinho, na qualidade de Relator Geral, em


virtude de alterações na legislação, ou como decorrência da
Constituição, houve por bem oferecer emendas aditivas, ouvindo,
para tanto, não somente Moreira Alves e a mim, mas também a
outros juristas, como os professores Álvaro Villaça de Azevedo e
Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos, sobre Direito de
Família; Edson Fachin, sobre Direito das Coisas; Mauro Rodrigues
Penteado, sobre Títulos de Crédito, e Fábio Konder Comparato, a
propósito da “desconsideração da pessoa jurídica”. Além disso, levou
em conta as contribuições da Consultoria Legislativa sobre Direito de
Família e Sucessões (p. 175 e ss.).
Graças a essa iniciativa, foi possível proceder -se à atualização do
Projeto, sendo aberto campo a novos estudos, como resulta do
volume I da obra supra referida, na qual constam os pareceres do
Relator Geral, bem como a discussão no Plenário, que, a final,
aprovou a redação final do Projeto, sendo publicado o texto
consolidado. 29

Dando seqüência à sua exposição, Reale arremata posteriormente,

afirmando:

Não tem cabimento afirmar -se que o novo Código Civil, dado o
longo tempo decorrido desde seu envio ao Congresso Nacional,
estaria desatualizado, pois conforme já tive ocasião de esclarecer,
jamais se perdeu a oportunidade de introduzir no texto as alterações
exigidas por motivos supervenientes. 30

A questão sobre a atualidade do Código Civil é sem dúvida polêmica, mas é

inevitável a constatação de que, em termos de momento histórico, a codificação em si

tem sido criticada, repensada e corre o risco de tornar -se obsoleta. Nessa mesma linha,

verifica-se ainda que o diploma legal deixa de regular questões importantes da nossa

28
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit.. p. 5.
29
REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit. p. 32
30
Autores cit. op. cit. p. 44.
35

complexa realidade. Questões ligadas à telecomunicação, à informática, algum as

relações familiares – como as homoafetivas – bem como questões complexas ligadas à

genética e à bioética, dentre outros, continuam a interferir na vida da sociedade civil e

permaneceram carentes de legislação. Novamente em defesa do Código Civil, Miguel

Reale afirma o seguinte sobre a metodologia adotada para a elaboração do projeto:

Firmar a orientação de somente inserir no Código somente a matéria


já consolidada ou com relevante grau de experiência crítica,
transferindo-se para a legislação especial aditiva o regramento de
questões ainda em processo de estudo, ou que, por sua natureza
complexa, envolvem problemas e situações que extrapolam o Código
Civil.31

Contudo, é de grande importância o apontamento de Guilherme Calmon

Nogueira da Gama, ao afirmar tal medida parece ter o objetivo de manter uma certa

estabilidade do Código, mantendo o “aspecto unificante e uma capacidade mediadora no

Ordenamento, mas sempre em respeito ao valor primário da Carta Maior e aos

microssistemas”. 32 Neste ponto, a visão converge com a do próprio Miguel Reale, que

afirma ser necessária a aplicação da hermenêutica para ajustar os parâmetros da nova

codificação. Ou seja, afirma -se que não há como se interpretar o Código Civil atual com

a mesma mentalidade do antigo Código de 19 16.33 Essa é também a posição de Gustavo

Tepedino, que critica a possibilidade de centralizar -se o direito privado em torno do

direito civil, prescindindo-se das normas constitucionais:

31
Autores cit. op. cit. p. 36
32
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. Cit. p. 7
33
Afirma Miguel Reale: “É indispensável, porém, ajustar os processos hermenêuticos aos parâmetros da
nova codificação, pois, como nos ensina o insigne filósofo Hans Georg Gadamer – falecido recentemente
aos 102 anos – , a hermenêutica não se reduz a m ero conjunto de normas interpretativas, porque é da
essência mesma da realidade cultural que se quer compreender. Nada seria mais prejudicial do que
interpretar o novo Código Civil com a mentalidade formalista e abstrata que predominou na compreensão
da codificação por ele substituída. REALE, Miguel; MARTINS -COSTA, Judith. Op. Cit. p. 52
36

Por tudo isso, mostra-se inquietante que setores nostálgicos do


voluntarismo queiram aproveitar a chegada do Código Civil de 2002
para considerar desnecessário, a partir de agora, todo o esforço
hermenêutico de compatibilização das fontes normativas em torno da
Constituição da República. Segundo tal raciocínio, a nova
codificação restauraria ao civilista o seu estatuto orgânico das
relações patrimoniais, servindo o Código como mediador entre as
normas de direito público e a autonomia privada. A tese, contudo,
mostra-se inteiramente descabida. 34

Fato é que num ponto todos os c ivilistas da atualidade convergem: é preciso

fazer uma leitura do direito privado a partir das premissas da Constituição de 1988.

Trata-se do Direito Civil-Constitucional. Como se dará a influência dos ditames

constitucionais na esfera privada, será demons trado oportunamente neste trabalho. Para

o momento, cabe o questionamento: quais foram os caminhos, as diretrizes axiológicas,

adotadas pelo Código Civil para que seja possível sua interpretação em harmonia com

os direitos fundamentais? Quais técnicas fora m utilizadas? É o que se demonstrará a

seguir de forma ainda que sucinta.

Primeiramente, serão analisadas as estratégias utilizadas para desenvolver o

trabalho de elaboração do projeto do Código Civil de 2002 e, após serão expostas as

diretrizes axiológicas do mesmo. Dissertam Judith Martins -Costa e Gerson Luiz Carlos

Branco que a primeira providência tomada pelos elaboradores do projeto do Código

Civil atual foi a de primar pela unificação e sistematização do direito privado. 35

Este é um ponto passível de v ários questionamentos. Primeiro porque, por

todo o exposto e fundamentado até agora, o papel unificante e totalizador do direito

privado já não cabe ao Código Civil, mas sim à Constituição. Segundo porque, ainda

que tal papel coubesse ao Código Civil, este certamente não logrou êxito na unificação

do direito privado, haja vista que vários microssistemas – inclusive o que diz respeito à

34
TEPEDINO, Gustavo. Op. cit. p. 319.
35
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil
brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2002. p. 45.
37

atividade empresarial – fogem da abrangência do Código Civil de 2002. A situação

jurídica da criança, do adolescente e do i doso, as relações consumeristas, as relações

ocorridas no âmbito das sociedades anônimas e o tratamento jurídico dos títulos de

crédito típicos continuam sendo regulados por suas próprias leis, sendo que o Código

Civil tem pouco a oferecer em termos de nor matização destes institutos.

O próprio Miguel Reale, ao comentar essa primeira diretriz estratégica,

acaba por abrir possibilidades graves de questionamento sobre o objetivo “unificante”

do Código de 2002, ao esclarecer que foi também seu objetivo:

Não realizar, propriamente, a unificação do Direito Privado, mas sim


do Direito das Obrigações – de resto, já uma realidade operacional no
País, em virtude do obsoletismo do Código Comercial de 1850 –,
com a conseqüente inclusão de mais um livro na Parte Especia l, que,
de início, se denominou ‘Atividades Negociais”, e, posteriormente,
‘Direito de Empresa’. 36

Outro ponto desenvolvido por Reale, ao comentar suas diretrizes

estratégicas, foi o cuidado de preservar o máximo possível o Código de 1916, mas

procurando correlacioná-lo com a sociedade contemporânea. Esta é um objetivo

importante, já que o cenário social no qual o Código de 1916 foi promulgado era

radicalmente diferente do atual, haja vista o deslocamento da população brasileira do

meio rural para os grande s centros, a facilidade de comunicação e associação entre os

indivíduos atualmente, bem como as mudanças sociais no âmbito familiar, profissional

e social dos brasileiros.

Contudo, é de se lembrar que, ainda que fosse objetivo dos criadores do

projeto atualizar o Código Civil com a realidade da sociedade civil, muitos assuntos de

grande importância ficaram de fora. E a explicação para essa ocorrência, foi a de que

outra diretriz estratégica seria a de não incluir matérias não consolidadas no Código,

36
REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit. p. 36.
38

conforme já citado supra. Essa decisão estratégica acaba por abrir ainda mais espaço

para a manutenção dos microssistemas, que passarão a coexistir com o Código Civil.

A derradeira diretriz estratégica adotada pela Comissão foi estabelecer

“valores considerados e ssenciais, tais como o de eticidade, de socialidade, e de

operabilidade”.37 Esta última estratégia utilizada é a que revelará as três diretrizes

axiológicas do Código Civil: os seus três princípios fundamentais.

Umas das diferenças fundamentais do Código at ual para o anterior é que a

pretensão deste era a de conter, sozinho, todo o ordenamento jurídico afastando -se a

possibilidade do sistema sofrer interferência de outras leis ou mesmo da jurisprudência.

O atual, por sua vez, tem a pretensão de ser centraliz ador. Apesar de questionável

(entende-se ser esse atualmente o papel da Constituição, conforme já exposto supra),

esse objetivo é sem dúvidas mais próximo da vida contemporânea. Por essa razão, a

atual codificação abre um espaço maior em seu sistema para q ue suas determinações

possam ser somadas à legislação especial e, principalmente, à jurisprudência. Isso é

importante, pois é através dessas aberturas que os três princípios fundamentais do

Código, necessariamente somados aos princípios e direitos fundamen tais presentes na

Constituição, conduzirão o jurista nos caminhos do direito privado brasileiro.

Os princípios aparecem por meio de normas genéricas, ou cláusulas gerais,

que nos dizeres de Reale, não têm “a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, a

fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados,

quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais”. 38

A eticidade apresenta-se no atual código em normas genéricas, fazendo

referência às expressões “pr obidade”, “boa-fé” e “correção” como dever de conduta a

ser observado não no campo do subjetivismo, mas sim de forma objetiva. É o

37
Autores cit. op. cit. loc.cit.
38
Autores Cit. Op. cit. p. 37
39

comportamento e o resultado que importam, não mais apenas o animus, a intenção. A

eticidade é o dever-ser em razão da pessoa humana39, do ponto de vista civil -

constitucional, é o dever de conduta dos indivíduos no sentido de se orientar no

cotidiano das relações jurídicas respeitando e zelando pela dignidade da pessoa humana.

É o dever de tratamento interpessoal, que exige dos in divíduos uma conduta digna, de

parceria e boa-fé, que tende a desafiar a máxima popular “o mundo é dos espertos”.

Não seria demais afirmar que a eticidade é um princípio que, conforme se

verá adiante, se apresenta como um desdobramento da máxima da solidar iedade40. O

principal instrumento da eticidade no atual Código Civil é a boa -fé objetiva. Este

instituto, que orienta todo o sistema, aparece no Código de 2002 em seus artigos 113,

187 e 422. 41 A boa-fé objetiva é relativamente nova em termos de positivação. Diferente

da boa-fé subjetiva, cuja base de análise é o estado anímico, psíquico e volitivo da parte,

a boa-fé objetiva tem bases mais sólidas. O que se quer é avaliar se a conduta do

indivíduo é aceitável pelos padrões morais sociais. Neste sentido, afir mam Judith

Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco:

A concepção de um ‘historicismo axiológico’ que revela o


culturalismo de Reale, transborda em toda sua magnitude no que diz
respeito à predominância do principio da eticidade no novo Código.
Tal princípio trata do reconhecimento da relação bipolar e dialética
entre a realidade e o direito, a força que a moral social, o poder social
possuem e os efeitos que provocam sobre o direito. 42

Neste ponto a eticidade aproxima -se não só do trabalho jusfilosófico d e

Reale, mas também da dialética histórica de Hegel. 43 Sendo assim, o Código Civil atual

39
Definição dada pelo próprio Reale, v. Autores cit. op. cit. p. 57
40
Valor iluminista que, somado à igualdade e liberdade, somam a expressão máxima dos direitos
fundamentais. Contudo, apesar de estar no mesmo patamar de importância da igualdade e da liberdade, é
de se observar que, dentre os três, a solidariedade parece ter sido abandonada no esquecimento durante o
desenvolvimento do Estado Liberal, vindo a ser resgatada no paradigma do Estado Social e inserida no
âmbito constitucional dos Estados Sociais, fossem comunistas ou partidários do welfare state.
41
Estes artigos serão melhor examinados no tópico “1.3”, ao analisar -se o sistema de cláusulas gerais.
42
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit. p. 63.
40

deve interagir com a realidade social e seus valores sociais. Para que seja possível sua

contextualização, o Código traz conceitos mais vagos, onde se espera que a

jurisprudência e a atividade criadora do jurista, trabalhando os conceitos éticos sociais,

aplique adequadamente a norma a cada caso. Nesse sentido, seguem Judith Martins -

Costa e Gerson Branco afirmando:

O princípio da eticidade servirá para aumentar o poder do juiz no


suprimento de lacunas, nos casos de deficiência ou falta de ajuste da
norma à especificidade do caso concreto. Para Reale a eticidade é o
espírito do novo Código Civil, e esse espírito é o ‘conjunto de idéias
fundamentais em torno das quais as n ormas se entrelaçam, se
ordenam e se sistematizam’. 44

O segundo princípio inserido no Código foi o da socialidade. A socialidade

impõe uma função aos institutos de direito privado, gerando um compromisso dos

mesmos com a coletividade. É mais uma vez um des dobramento do valor solidariedade

na seara do direito privado. 45 Os artigos 421 e 1228 são dois exemplos deste princípio

ao mencionar a função social do contrato e da propriedade, respectivamente. Sobre esse

princípio, Reale comenta:

É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o


manifesto caráter individualista da lei vigente, feita para um País
ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no
campo.
43
Sobre a filosofia hegeliana, leciona Gianluigi Palombella: “Num aspecto diferente, o direito abstrato é
concebido por Hegel como o direito que exprime unilaterali dade, ou seja, o lado da pura forma, do
conceito abstrato, do geral desligado do particular, do direito formal desligado das instituições, da idéia
de razão separada da historia, em suma, um elemento resultante da decomposição de um universo ético
em que o direito é também experiência histórico -institucional, é positiva conexão com as necessidades
concretas, é uma relação com a história. O direito abstrato conteria então as aquisições formais, abstratas,
gerais e de princípio que a razão iluminista declara essenciais para a vida civil, e com base nas quais
constituíra (veja-se o Código Civil francês) regras para as inter-relações dos indivíduos, ou seja, dos
indivíduos como tais. Mas é justamente esse fundamento e essa função do direito racional que o torna
abstrato, porque o direito positivo seria, para Hegel, concreto e universal ao mesmo tempo, e só poderia
ser o direito de uma determinada comunidade ética, historicamente definida segundo relações
substanciais, que são relações institucionais, morais e soc iais determinadas”. PALOMBELLA, Gianluigi.
Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 93 -94.
44
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. op. cit. p. 64.
45
A funcionalização do direito privado será analisada em tópico próprio neste t rabalho.
41

Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção


de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade
reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rádio
e a televisão. Daí o predomínio do social sobre o individual. 46

Por fim, há ainda o princípio da operabilidade. Dentre os três, ess e é o mais

técnico. Segundo Reale, trata -se da “decisão tomada no sentido de estabelecer soluções

normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação pelo operador do

Direito”. 47 Talvez esse princípio seja mais uma técnica utilizada que um instrume nto de

hermenêutica, propriamente dito. Isso porque este princípio teve por objetivo criar no

código mecanismos para eliminar dúvidas existentes na aplicação do sistema anterior,

bem como abrir as possibilidades de atuação jurisprudencial, especialmente po r meio do

sistema de cláusulas gerais, que será comentado oportunamente.

Pretende-se, por meio destes três princípios (diretrizes axiológicas) do

Código, viabilizar a aproximação da lei civil à contemporaneidade, sem se descuidar

também da aplicação dos di reitos fundamentais e sua influência sobre o sistema dos

direitos privados. Se essa fórmula hermenêutica trará os benefícios esperados ou não,

somente o tempo, a sociedade e o direito dirão.

46
REALE, Miguel; MARTINS -COSTA, Judith. História do Novo Código Civil. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005, p. 28.
47
Autores cit. op. cit. p. 40
42

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA EFICÁCIA NAS RELAÇÕES

PRIVADAS

Conforme visto anteriormente, o direito privado na sociedade moderna foi

estruturado nos moldes da filosofia burguesa do Estado Liberal. Tal fato implicou na

criação da dicotomia Direito Público/ Direito Privado, responsável por sistematizar a

ciência jurídica em dois campos: o conjunto de normas que regem a relação do Estado

com seus cidadãos e o conjunto de normas que regem a vida privada dos cidadãos na

sociedade.

Dentre os vários institutos que compõem o direito público (especialmente o

constitucional), há o instituto dos direitos fundamentais. É a soma de normas que

contém direitos positivos e negativos, que os cidadãos podem opor ao Estado como

forma de garantir a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Ocorre que o

projeto político-filosófico do Estado Liberal tem como um de seus postulados

fundamentais a separação entre Estado e sociedade. Sendo assim, caberia em especial ao

Código Civil (e não necessariamente à Constituição) ser o núcleo jurídico em torno do

qual giraria todas as normas do direito privado. Tal fato por si só já afastaria a

incidência dos direitos fundamentais, mas não é só. Toda a estrutura da ciência jurídica

então criada para as relações privadas tinha por fundamentos valores patrimoniais, de

forma que toda a estrutura desse ramo do direito estava voltada para a garantia da

propriedade como valor central, sendo que a liberdade, a autonomia privada e a

igualdade (então meramente formal) atendiam a esse escopo.

Para a teoria liberal, o direito de propriedade é sag rado e a autonomia da

vontade é valor inafastável em quaisquer relações privadas. Ocorre que a atualidade já

não pode sustentar coerentemente este postulado da dicotomia do direito público e


43

privado e suas implicações. Isso porque não são raras as situaçõe s em que um ente de

direito privado se apresenta na sociedade concentrando uma enorme gama de poder

econômico e até político, chegando mesmo às vezes a rivalizar com o Estado.

Este fenômeno do poder privado obriga os juristas a repensarem o papel dos

direitos fundamentais e sua eficácia nas relações privadas, pondo em risco a tradicional

teoria liberal. Se por um lado o pilar da autonomia privada e da igualdade sustentam o

direito privado tradicional, por outro, constata -se na realidade que determinados suj eitos

privados possuem tanto poder e tanta autoridade que se tornam mesmo capazes de

impor sua vontade a outros sujeitos, tornando desigual as relações desta seara do direito.

Sendo assim, o poder já não está mais concentrado apenas nas mãos do Estado, mas

também, em vários sujeitos de direito privado, de forma disseminada na sociedade.

Nesse sentido, alerta Juan Maria Bilbao Ubillos para a necessidade de se

repensar a doutrina tradicional:

Son evidentes, en efecto, las analogias entre el poder público y e l


privado, un poder que aflora como tal en aquellas situaciones
caracterizadas por ‘una disparidad sustancial entre las
partes’(Lombardi). Esta falta de ‘simetria’ permite que la parte que
por razones económicas o sociales se encuentra en ‘posición
dominante’ condicione la decisión de la parte ‘débil’. Lo que se
ejerce en estos casos es un poder formalmente privado (en lo que
concierne a su fuente y a los sujeitos implicados), pero que se ejerce
com formas de coacción y autoridad asimilables sustancialmente a lãs
propias de los poderes públicos. Las decisiones de estos poderes de
supremacia privada, a los que se atribuyen con frecuencia amplias
facultades de autotutela, son muchas veces tan imperativas e
inmediatamente ejecutivas como lãs adoptadas por um ór gano
administrativo. Se produce, em suma, uma aproximación sustancial
entre lãs relaciones públicas y privadas de dominación. 48

Sendo assim, não se pode ignorar que a realidade do poder privado na

sociedade, sendo que se torna necessário encontrar soluções jurídicas para as situações

48
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundam entales?
In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado . 2 ed. rev. e
amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 304.
44

jurídicas complexas de direito privado onde as diferenças se apresentam como fator

limitativo da autonomia da vontade da parte mais fraca. Também nesse sentido, o autor

supramencionado afirma que o direito “tiene que afrontar e sa realidad y dar una

respuesta apropiada, que no podrá venir de la simple apelación al dogma de la

autonomía privada, um princípio seriamente erosionado en la experiencia del tráfico

jurídico privado.” 49

Na esteira desse pensamento, surge a doutrina alemã do Drittwirkung der

Gruendrechte, que pretende estender às relações privadas a eficácia dos direitos

fundamentais, anteriormente somente oponíveis ao Estado. 50

Juan Maria Bilbao Ubillos 51 e Daniel Sarmento 52 relatam que, para aplicar

essa doutrina, três vertentes distintas surgiram no direito comparado.

A primeira, utilizada no direito norte -americano, é a teoria da negação da

eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, também chamada de doutrina

da state action. Por ser de tradição extremamente individualista e por ter forte influência

dos ideais da doutrina liberal ainda nos dias de hoje, o sistema jurídico e o sistema

judiciário dos Estados Unidos ainda são muito resistentes em admitir a chamada

eficácia horizontal dos direitos fundamentais. A penas quando o sujeito de direito

privado age no lugar do Estado, como se fosse este, seria possível estender a eficácia

dos direitos fundamentais às relações privadas, razão pela qual a doutrina leva o nome

de state action.

Basicamente, o direito constitu cional estadunidense impõe limites apenas

aos poderes estatais, não admitindo – exceto em relação à escravidão – que os mesmos
49
Autor cit. op. cit. p. 305
50
A expressão, segundo tradução realizada em artigo de Eugêni o Facchini Neto, significa eficácia frente a
terceiros dos direitos fundamentais. Para maiores detalhes, v. FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões
histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.).
Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado . 2 ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p. 43.
51
Autor cit. op. cit. pp. 309 – 321.
52
SARMENTO, Daniel. op.cit. pp. 185 – 232.
45

sejam argumentados para limitar a autonomia privada. Ao interpretar literalmente o

texto constitucional, o judiciário daquela naç ão impede a incidência dos direitos

fundamentais nas relações privadas. Outro argumento desta teoria, trazido ao Brasil por

meio da pesquisa de Daniel Sarmento seria:

Além do argumento liberal, outra justificativa invocada para a


doutrina da state action liga-se ao pacto federativo. Nos Estados
Unidos, cumpre não esquecer, compete aos Estados, e não à União,
legislar sobre Direito Privado, a não ser quando a matéria
normatizada envolva o comércio interestadual ou internacional.
Assim, afirma-se que a state action preserva o espaço de autonomia
dos Estados, impedindo que as cortes federais, a pretexto de
aplicarem a Constituição, intervenham na disciplina das relações
privadas. 53

Sendo assim, para essa teoria, os direitos fundamentais não se vinculam às

relações privadas a menos que as atividades exercidas pelos sujeitos de direito privado

sejam de natureza essencialmente estatal, ainda que não haja delegação. Nos demais

casos, a vinculação não é possível devido ao fato de que os direitos fundamentais

presentes na constituição vincularem apenas os poderes públicos e também ao fato de

que a esfera federal – legislativa, executiva ou judiciária – do Estado não poder editar

normas privadas que criem essa eficácia dos direitos fundamentais nas relações

privadas.

A segunda teoria trata da eficácia mediata ou indireta dos direitos

fundamentais na esfera privada. Esta é a teoria mais aceita na Alemanha e consiste num

nível intermediário entre a negação e a total incidência dos direitos fundamentais. Para

ela, esses direitos não teriam uma incidência direta no direito privado, sendo possível

por vezes os particulares, exercitando sua autonomia privada, inclusive renunciar a

esses direitos ocasionalmente. Contudo, é preciso que se criem passagens no sistema do

53
Autor cit. op. cit. p. 189.
46

direito privado para que os direitos fundamentais ali se manifestem. Essas passagens são

criadas por meio de cláusulas gerais de conceito indeterminado, onde o juiz, por meio

de sentenças que completam o sentido das mesmas – chamadas também de sentenças

determinativas – faz com que os direitos fundamentais se manifestem no direito

privado. Juan Maria Bilbao afirma que a técnica desta doutrina se dá da seguinte forma:

Esto se consigue condicionando la operatividad de los derechos


fundamentales en el campo de las rel aciones privadas a la mediación
de un órgano del Estado, que además de estar vinculado directamente
a estos derechos ha de ser consecuente con el deber de protección que
se deriva de la dimensión objetiva de los derechos fundamentales. Se
requiere concretamente la intervención del legislador o la recepción a
través del juez, en el momento de interpretar la norma aplicable al
caso.54

Vale dizer que os partidários dessa doutrina temem a gama de poder

concedida ao juiz pela teoria que será a seguir exposta: a teoria da eficácia imediata dos

direitos fundamentais nas relações privadas. É nesse sentido que Daniel Sarmento

relata:

Afirmam seus defensores que a adoção da teoria rival, da eficácia


horizontal direta dos direitos fundamentais, importaria na outorga de
um poder desmesurado ao Judiciário, tendo em vista o grau de
indeterminação que caracteriza as normas constitucionais
consagradoras destes direitos. Por isso, entendem os partidários desta
tese que a Constituição não investe os particulares em direitos
subjetivos privados, mas que ela contém normas objetivas, cujo efeito
de irradiação leva à impregnação das leis civis por valores
constitucionais. 55

Portanto, para essa corrente, os direitos fundamentais somente chegarão às

relações de direito privado por in termédio de leis impregnadas de direito fundamental –

via legislador – ou por meio da interpretação do judiciário quando este estiver diante de

uma cláusula geral para solucionar as demandas, situação em que caberá ao judiciário –

54
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. Op. cit. p. 311
55
SARMENTO, Daniel. op. cit. p. 198
47

com o crivo do legislador – aplicar os direitos fundamentais. Na ausência de normas a

respeito, o judiciário não poderá aplicar esses direitos nas relações privadas.

Completando as propostas sobre o tema, há ainda a eficácia imediata ou

direta dos direitos fundamentais nas relaçõe s privadas. Esta teoria, também de origem

alemã, é adotada em Portugal, Espanha e inclusive no Brasil. Apesar de ser

originalmente germânica, essa doutrina não prevaleceu naquele país. Segundo essa

corrente, os direitos fundamentais são oponíveis erga omnes, pois os riscos ao bem estar

social hoje não advém apenas ao Estado, mas sim de vários sujeitos de direito privado.

Caso numa determinada demanda, não haja normas – seja de conceito vago

ou não – para a sua solução, o judiciário estará autorizado a busca r na Constituição

princípios e leis constitucionais para serem aplicados diretamente nos casos concretos

que envolvam relações privadas. Daniel Sarmento, citando Canotilho, expõe o critério

para aplicação da teoria em questão:

O mestre de Coimbra destacou que o Judiciário, no julgamento de um


litígio privado deve, em primeiro lugar, aplicar as normas do Direito
Privado em conformidade com os direitos fundamentais, pela via da
interpretação conforme a Constituição. Se isso não for possível, ele
deve recusar-se a aplicar ao caso a norma em questão, no exercício
do controle incidental de constitucionalidade. E, em caso de ausência
de norma ordinária apropriada, ele deve concretizar os direitos
fundamentais, valendo-se não apenas das cláusulas gerais e conceito s
indeterminados do próprio Direito Privado, mas também das próprias
normas constitucionais consagradoras de tais direitos, cuja aplicação
direta pelo judiciário ele defende. 56

Contudo, é importante salientar que mesmo os partidários dessa tese

afirmam que se deve ter um cuidado para que a autonomia privada não seja

completamente sacrificada no processo de aplicação dos direitos fundamentais, já que a

desigualdade na relação jurídica privada é um dado que não pode ser desconsiderado.

56
Autor Cit. op. cit. pp. 209 – 210.
48

Ao aplicar essa teoria, o jurista deve ponderar os interesses em questão, analisando o

grau de desigualdade e vulnerabilidade das partes, para que os direitos fundamentais

não tenham efeitos nefastos na sociedade.

No Brasil, por ser essa a teoria adotada, é plenamente possível e stender a

aplicação dos direitos fundamentais às relações de entes privados, mas é importante

ressaltar que no processo não se pode sacrificar a dignidade da pessoa humana, que se

manifesta também na liberdade da autonomia privada. O grau de desigualdade e de

sujeição de uma das partes à vontade da outra é o principal critério norteador da

aplicação – direta ou indireta – dos direitos em questão.

Vale lembrar que – com escopo de proteger a dignidade da pessoa humana,

fundamento da República brasileira – o direito privado pátrio inseriu em seu sistema

normas com conteúdo coerente com a Constituição de 1988, além de ter criado no

sistema de direito civil, empresarial e consumerista cláusulas abertas por onde o juiz

poderá aplicar os valores advindos do direito constitucional. Cumpre lembrar contudo,

que ao criar sua sentença determinativa, o juiz jamais poderá afastar -se dos valores que

permeiam a dignidade da pessoa humana. E o mesmo pode ser afirmado quando houver

ausência de norma de direito privado e o judi ciário precisar aplicar diretamente as

normas constitucionais. A busca pela dignidade da pessoa humana será sempre o alvo a

ser atingido por qualquer método de interpretação e aplicação da lei.

2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e seus corolários

Sendo assim, cabe fazer algumas considerações a respeito dos valores que

preenchem de conteúdo os direitos fundamentais. O primeiro deles, orientador de todo o


49

sistema, é o princípio da dignidade da pessoa humana, present e no artigo 1º., inciso III

da Constituição Federal brasileira:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união


indissolúvel dos estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui -
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana
(...)57

O princípio da dignidade da pessoa humana, por constar no elenco de

fundamentos da República brasileira, deve ser amplamente observado pelos poderes

públicos e, conforme já afirmado, também nas relações privadas. Suas diretrizes devem

se fazer presentes nas normas públicas e privadas, sentenças judiciais e em todas as

demais normas do ordenamento jurídico pátrio. Neste sentido, Maria Celina Bodin

Moraes afirma:

No direito brasileiro, após mais de duas décadas de ditadura sob o


regime militar, a Constituição democrática de 1988 explicitou, no art.
1º., III, a dignidade da pessoa humana como um dos “fundamentos da
República”. A dignidade humana, assim o diz o texto da
Constituição, não é criação da ordem constitucional, embora seja por
ela protegida. A Constituição consagrou o princípio e, considerando a
sua eminência, proclamou -o entre os princípios fundamentais,
atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica
democrática. 58

Guilherme Calmon Nogueira da Gama, ao discorrer sobre a nova tábua

axiológica do Direito Civil, frisa que a dignidade da pessoa humana é o valor central

dentro do sistema de constitucionalização do direito privado 59. Num ambiente jurídico

57
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1998. Diário Oficial da
União, n. 191-A, Brasília, 05 de outubro de 1988.
58
MORAES, Maria Celina Bodin. Danos Morais e Relações de Família. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha. (coord.). Afeto, ética, família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 407.
59
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Critérios para a fixação do Dano Moral. In: LE ITE, Eduardo
de Oliveira. Grandes Temas da Atualidade – Dano Moral. Rio de Janeiro, Forense, 2002. p. 224 – 225.
50

onde os direitos fundamentais têm aplicação imediata, o princípio da dignidade humana

deve se fazer presente como elemento norteador de todo o sistema hermenêutico.

Nesse sentido, o direito privado passa por um processo chamado de

“despatrimonialização”, pela maioria dos autores até agora aqui citados. Tal processo

consiste em pensar o direito privado a partir da pessoa humana e não mais a partir da

relação jurídica. Luiz Edson Fachin leciona nesse sentido afirmando que a neutralidade

da relação jurídica e em especial da parte geral do direito civil, geram a exclusão de

situações e sujeitos que, por não constarem dentro do sistema jurídico de direito

privado, são por ele excluídos. 60 Num de seus artigos, o autor adverte: “só haveria

direitos subjetivos onde há modelo jurídico. Em outras palavras: quem não se insere em

dado modelo de relação jurídica não teria direitos subjetivos”. 61 A sistemática anterior

exaltava a propriedade e as relações que a envolvem, como sua garantia e formas de

transmissão. Noutro giro, o sistema atual já prevê uma forma diversa de se interpretar o

direito privado, pois não se pode ignorar o destinatário das normas do direito no

processo de interpretação e aplicação da lei, sob pena de se lesar a dignidade da pessoa

humana.

Fachin e Ruzyk, neste diapasão, mencionam que a ordem sistêmica da

codificação nada mais faz do que reproduzir a racionalidade patrimonialista sobre a qual

a mesma se edificou, e afirmam sobre a constitucionalização do direito civil no seguinte

sentido:

Quando o centro do ordenamento passa a ser a pessoa humana dotada


de dignidade, e não o patrimônio, cuja proteção é assegurada por
meio de um sistema formado por conceitos e modelos abstratos, essa
racionalidade não sistêmica se torna possível: é possível u ma abertura
para a concretude da vida. 62

60
FACHIN, Luiz Edson. Op. cit. p. 81 – 141.
61
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo P. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa
humana e o novo código civil: análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado . 2. ed. ver. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 97.
62
Autores cit. op. cit. p. 99
51

Contudo, traçar um esboço sobre os limites e conteúdo da dignidade da

pessoa humana é sem dúvida das tarefas mais difíceis. Carlos Roberto Siqueira Castro

demonstra bem o problema, ao afirmar que o princípio possui o conteúdo mais

abrangente de todos na escala dos princípios:

Tal está a indicar que o ideário da dignidade humana constitui uma


categoria de contingência histórica e cultural, ou seja, que não se
acha determinada em dimensão absoluta, eis que se sujeita à evolução
do processo civilizatório e à visão do homem e da sociedade, de seus
direitos e deveres, em cada tempo e lugar. 63

Por ser muito abarcante, o princípio da dignidade da pessoa humana é difícil

de ser definido com precisão. Esse fato se dá porque o instituto tem raízes mais

filosóficas e sociológicas que jurídicas. Ademais, essa vagueza tem também papel

importante, pois, conforme afirma Luiz Edson Fachin, é importante que não se inclua o

conceito de dignidade da pessoa humana dentro de uma sistemáti ca, sob pena de se

repetir o problema atual da exclusão de determinadas pessoas e situações da incidência

do direito privado. 64 Em artigo publicado por Fachin e Ruzyk, ambos afirmam:

Cabe enfatizar, todavia, a necessidade de interpretação dos próprios


direitos fundamentais de modo que não se corra o risco de
transforma-los em modelos abstratos. A dignidade da pessoa humana
não pode ser vista como mera proclamação discursiva, lida em uma
dimensão de abstração. Caso contrário, de espaços de abertura não
sistêmica – embora sistemática – , os direitos fundamentais serão
transformados em elementos meramente formais, despidos de
conteúdo, além de instrumentos retóricos de legitimação da
reprodução dessa mesma ordem sistêmica. 65

63
CASTRO, Roberto Siqueira. Dig nidade da pessoa humana: O princípio dos princípios constitucionais.
In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio (orgs.) Direitos Fundamentais:Estudos em homenagem ao
professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 141.
64
FACHIN, Luiz Edson; RUZ YK, Carlos Eduardo P. Op. cit. p. 102.
65
Autores cit. op.cit. p. 102.
52

A dignidade da pessoa humana, portan to, passa a ser um princípio que se faz

presente em todo o ordenamento jurídico – inclusive sentenças judiciais – chegando ao

cidadão seja por meio da lei, diretamente, por meio de cláusulas gerais ou mesmo

diretamente em aplicação tópica em casos concreto s. Essa metodologia de interpretação

sem dúvidas extrapola os modelos positivados e o que os autores supracitados chamam

de “código binário sistêmico lícito -ilícito”.

Nas relações privadas, sem dúvida a maior incidência de aplicação desse

princípio será nos momentos em que uma das partes se encontrar em situação de

flagrante vulnerabilidade em relação ao outro. Nesse sentido, Roberto Siqueira Castro

afirma:

Subjaz à essa concepção de humanismo revestido de supralegalidade


a certeza de que o homem não é mai s apenas um sujeito de direito
livre e responsável, capaz de autodeterminar -se e de gerir seus
interesses no convívio social e no mercado de bens da vida, mas de
que, segundo sugestiva expressão de DAMM, é um “ sujeito
deficitário”, dependente de condições externas e exposto a riscos e
vulnerabilidades que individualmente não controla. 66

Pode-se dizer que este é o ponto onde se verá com mais freqüência a

incidência da aplicação da dignidade da pessoa humana nas relações privadas. Por essa

mesma razão, acredita-se que em grande parte ela se fará presente nas relações

consumeristas, onde a vulnerabilidade fundamenta todo o sistema. Um claro exemplo

onde a vulnerabilidade e a dignidade da pessoa humana foram levados em consideração

numa relação privada foi no ca so do julgamento do Recurso Especial 238715/RS, onde

o STJ afirma que a união homossexual gera direitos analógicos à união estável e por

isso o companheiro dependente neste espécie de relação também tem direito a ser

incluído em plano de assistência médica . No Recurso, encontra-se ainda a alusão direta

66
CASTRO, Roberto Siqueira. Op. cit. p. 141.
53

à dignidade da pessoa humana, quando o mesmo afirma que “o homossexual não é

cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito

menos, a dignidade da pessoa humana”. 67

O caso acima demonstra claramente situação onde o plano de saúde,

desconsiderando a pessoa, leva em conta apenas a relação jurídica – conforme exposto

em Fachin – negando ao companheiro em relação homossexual inclusão em plano de

saúde. Nesta situação, excluía -se a pessoa em favor da relação jurídica positivada.

Contudo, essa prática afastava também a dignidade da pessoa humana, por

desconsiderar o ser humano, tratando -o com desigualdade, razão pela qual se afirma no

Recurso que o homossexual não é cidadão de se gunda categoria.

Há que se levar também em consideração o grau de vulnerabilidade da

pessoa em relação ao plano de saúde no caso acima. Essa vulnerabilidade agrava ainda

mais a situação, porque o plano de saúde detém um serviço de alto grau de importância

para a vida do cidadão, razão pela qual os direitos fundamentais incidem com força

ainda maior na decisão.

Ainda na esteira da proteção do vulnerável e sua relação com a dignidade da

pessoa humana, é de se ressaltar o Recurso Especial 617588/SP, cujo relat or, Ministro

Luiz Fux, utiliza o princípio mencionado para julgar o corte de fornecimento de água

por inadimplência do consumidor. Na ementa, o relator afirma que na atualidade não se

pode aplicar a legislação infraconstitucional sem passar pelos princípio s constitucionais,

sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, numa clara alusão à aplicação

imediata dos direitos fundamentais no direito pátrio. Sua segunda consideração – a

exposta acima fora a primeira – é igualmente relevante, pois afirma que “a

67
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 238715/RS.Caixa Econômica
Federal – CEF, Recorrente; R.P.C. e outro, Reco rrido; Fundação dos Economiários Federais – FUNCEF,
Interessados. Relator Min. Humberto Gomes de Barros. J. 07.03.2006. DJU 02.10.2006 p. 263.
54

responsabilidade patrimonial no direito brasileiro incide sobre patrimônio do devedor e,

neste caso, está incidindo sobre a própria pessoa”. 68

Ambos os casos têm em comum a aplicação dos princípios constitucionais.

Nas duas situações, o julgador agiu no s moldes traçados pelas lições de Canotilho e

Fachin, dando prioridade aos direitos fundamentais nas relações privadas e aplicando o

princípio da dignidade da pessoa humana, analisando cada caso em concreto 69.

Inclusive, este método é expressamente menciona do por Luiz Fux no Recurso Especial

mencionado, ao escrever que “temos que enunciar o direito aplicável ao caso concreto,

não o direito em tese.” 70

Um ponto é pacífico quando se trata de aplicar o princípio da dignidade da

pessoa humana: sempre que o direit o se encontrar entre um interesse patrimonial e um

interesse existencial, este último deve prevalecer. Maria Celina Bodin de Moraes,

utilizando as lições do filósofo Kant, leciona:

De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de


valores: o preço (preis) e a dignidade (Würden). Enquanto o preço
representa um valor exterior (de mercado) e manifesta interesses
particulares, a dignidade representa um valor interior (moral) e é de
interesse geral. As coisas têm preço; as pessoas, dignidade. O val or
moral se encontra infinitamente acima do valor de mercadoria,
porque, ao contrário deste, não pode ser substituído por equivalente.
Daí a exigência de jamais transformar o homem em meio para
alcançar quaisquer fins. Em conseqüência, a legislação elabora da pela
razão prática, a vigorar no mundo social, deve levar em conta, como

68
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 617588/SP. Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, Recorrente; Márcio Rodrigues Vasques, Recorrido.
Relator Min. Luiz Fux. J. 27.04.2004. DJU 31.05.2004 p. 241.
69
Canotilho, conforme já citado, afirma que os direitos fundamentais devem impregnar todo os sistema
jurídico – público e privado – e, caso haja divergência entre a lei infraconstitucional e os direitos
fundamentais, estes últimos devem prevalecer. Tal método se dá em razão do controle incidental de
constitucionalidade. Já Fachin, por sua vez, afirma em sua teoria críti ca do Direito Civil que não se pode
transformar a dignidade da pessoa humana num modelo abstrato, sob pena de fomentar a exclusão
existente no sistema do direito codificado.
70
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 617588/SP. Op. Cit.
55

sua finalidade máxima, a realização do valor intrínseco da dignidade


humana. 71

O novo paradigma do direito – e do direito privado por conseqüência – é,

portanto, abandonar os valor es individualistas, partindo para a tutela da vulnerabilidade

humana nas suas mais variadas manifestações. Para tutelar os interesses das minorias

vulneráveis como as crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiências físicas e

mentais, consumidores, vítimas de acidentes anônimos, dentre outros, a autora

supracitada recorre aos postulados kantianos para nortear um conceito de dignidade.

Para ela, será desumano tudo aquilo que reduzir a pessoa à condição de objeto, já a

pessoa não pode ter preço, ao contrário das coisas. E para identificar quais aspectos da

existência são próprios da dignidade humana, Maria Celina Bodin afirma:

O substrato material da dignidade assim entendida pode ser


desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) recon hece
a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do
mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular, iii) é dotado
de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em
relação ao qual tem a garantia de nã o vir a ser marginalizado. São
corolários desta elaboração os princípios da igualdade, da integridade
física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade. 72

Neste sentido, tem-se a razão pela qual o princípio da dignidade da pessoa

humana é tão abrangente, sendo chamado por Roberto Siqueira Castro de “o princípio

dos princípios” 73. Para que se instale a dignidade humana é preciso que haja a tutela

adequada dos princípios da igualdade, liberdade, integridade psicofísica, e solidariedade

social. Estes valores supremos compõem o sistema universal dos direitos humanos e,

conforme lembra Fábio Konder Comparato, foram constituídos durante a revolução

71
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado . 2
ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp 115-116.
72
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil -constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 85.
73
CASTRO, Roberto Siqueira. Op. cit. p. 135.
56

francesa e consagrados no Bill of Rights da Virgínia. 74Para o momento serão analisados

de forma bastante sucinta os princípios herdados do iluminismo, a saber: igualdade

(égalité), liberdade (liberté) e solidariedade (fraternité).

2.1.1 Princípio da Igualdade

Seguindo a ordem proposta por Maria Celina Bodin de Moraes, será

analisado primeiramente o princíp io da igualdade. 75 O histórico desse direito

fundamental já é amplamente conhecido na ciência jurídica. Oriundo dos ideais

iluministas, após o rompimento com o Ancien Regime, a igualdade ganhou destaque nas

constituições dos mais diversos Estados, bem como nas declarações internacionais de

direitos fundamentais.

Ocorre que a igualdade tem -se apresentado por fases ao longo da história da

humanidade. Em sua estréia como direito fundamental, ao se fazer presente nas

constituições influenciadas pelo ideal libera l, a igualdade se apresentou como um dever

negativo do Estado, que estava proibido de dar tratamento diferenciado aos cidadãos, já

que a sociedade civil, com todos os seus membros, era a proprietária da Res Publica.

Contudo essa não intervenção do Estado n o sentido de tratar todos da mesma

forma – chamada pela doutrina de igualdade formal – logo se mostrou desvantajosa para

muitos desprovidos de poder econômico e extremamente vantajosa para alguns, cujo

poder econômico desequilibrava as relações privadas, s ubmetendo os menos poderosos

à sua vontade. E o pior: tudo isso acontecia com o amparo legal.

74
COMPARATO, Fabio Konder. Comentário ao art. 1 º.. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. 50
anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: 1948 – 1998. Brasília: Comissão Nacional de
Direitos Humanos, 1998. p. 33.
75
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op.cit. p. 85
57

Por isso mesmo, encontra -se relatos de juristas que, à frente de seu tempo e

preocupados com a igualdade que mantinha injustiças e iniqüidade, já advertiam para a

necessidade de se trocar a igualdade formal pela isonomia, ou igualdade substancial. É o

que se pode ver já em 1920 no discurso de Rui Barbosa para os estudantes de Direito

em São Paulo em que, apesar de estar vivendo no contexto do Estado Liberal, este

jurista já advertia:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente


os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade
social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a
verdadeira lei da igualdade. O mais são de svarios da inveja, do
orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a
desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não
igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma
universal da criação, pretendo, não dar a cada um, na razão do que
vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.
Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a
humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos
direitos do trabalho; e, executada, não fari a senão inaugurar, em vez
da supremacia do trabalho, a organização da miséria. 76

Devido a todas as injustiças sociais perpetradas pelo Estado do laissez faire,

a doutrina e jurisprudência mundiais passaram a rever seus conceitos. A ciência política,

em harmonia com o Direito, passou a adotar o ideal de igualdade substancial. 77 Com

isso a igualdade substancial passa a ser uma das principais inovações jurídicas do

welfare state. O Estado abandona a diretriz da extrema não -intervenção para criar leis

de proteção a algumas facções vulneráveis na sociedade. Criam -se assim institutos

como a inversão do ônus da prova, preferência de foro, e outros.

Este era o status quo do princípio da igualdade até há pouco tempo.

Contudo, recentemente novas demandas têm influencia do uma mutação no princípio da

76
BARBOSA, Rui (de Oliveira). Oração aos moços/ O dever do advogado. Campinas: Russel, 2004, p.
33.
77
Até porque, conforme já exposto no item 1.1, o socialismo apresentou -se como ameaça ao sistema dos
Estados capitalistas que, acuados, tiveram que criar uma solução para a situação miserável de sua
população para que a insatisfação geral não movimentasse uma revolução.
58

igualdade. Trata-se do direito à diversidade. O direito de ser diferente tem forçado os

juristas a criar mais uma dimensão para o princípio da igualdade. Nas palavras de Maria

Celina Bodin de Moraes:

Se, num primeiro momento, logo após a instauração dos Estados de


Direito na Europa Ocidental, a igualdade substancial gerou
significativas alterações legislativas – que, tomadas em conjunto,
viriam a formar a estrutura normativa dos chamados Welfare States -,
hoje, a questão mais debatida coloca-se em outros termos, isto é, na
reivindicação de um “direito à diferença”. Esta idéia parte do
princípio de que, em lugar de se reivindicar uma “identidade humana
comum”, é preciso que sejam contempladas, desde sempre, as
diferenças existentes entre as pessoas, evidência empírica que pode
ser facilmente comprovada: os homens não são iguais entre si, e para
confirmar esta assertiva basta pensar nas dicotomias facilmente
visualizáveis, como ricos e pobres, sadios e deficientes, homens e
mulheres.78

O desafio atual é procurar reconhecer o próximo como pessoa tão

merecedora de respeito quanto aquele que observa. Sugere -se que o reconhecimento do

outro é melhor que identificar -se com ele. Isso porque a identidade pressupõe pontos em

comum, que podem eventualmente nem existir entre os sujeitos nos casos concretos.

Sendo estes os limites gerais do princípio, toda vez que alguém for tratado

de forma diferente pelo Estado sem justificativa fundamentada, esta discriminação

constituirá um ilícito contra os direitos fundamentais. Contudo, importante lembrar que

o tema em questão é referente à aplicação do princípio da igualdade na esfera das

relações privadas e, nesse ponto, há que se considerar a importância da autonomia

privada, que, por sua própria nat ureza, é desigualadora. Nesse sentido e criticando a

aplicação da teoria da eficácia direta desse e outros direitos , adverte Jorge Reis Novais:

Não se pode estar só um bocadinho grávida, tal como não se pode


violar o princípio da igualdade só um bocadinho. Se o princípio da
igualdade é aplicável ao estado, então se o Estado não o observa

78
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op.cit. pp. 87-88.
59

integralmente comete uma inconstitucionalidade. (...) Já se um


particular não convida outro para uma festa privada por razões
ideológicas, por que razão já não haveria vi olação da igualdade. A
resposta existe, mas a tese da eficácia directa não a pode reconhecer:
só não há violação do princípio constitucional da igualdade porque,
enquanto princípio constitucional, ele tem como destinatário o Estado
e não os particulares.
(...)Se o Estado não admite alguém só porque tem olhos verdes ou é
adepto do Porto comete uma inconstitucionalidade; se uma família
não contratar um empregado doméstico exactamente pelas mesmas
razões, a discriminação não é menos arbitrária, mas já não há
qualquer problema jurídico. Por outro lado, repita -se, se se
entendesse que era a autonomia privada a razão de justificação da
discriminação, então a mesma razão valeria igualmente para
diferenciar entre Estados e particulares em termos de oponibilidade
subjectiva dos direitos fundamentais. 79

As considerações deste autor são importantes. Conforme menciona Maria

Celina Bodin de Moraes, “o princípio da igualdade é dos que mais se presta a ensejar

hard cases”.80 Como lidar com a igualdade nas relações privadas? Em que medida

aplicar o princípio? Sem dúvidas não se pode desconsiderar a autonomia privada no

processo de aplicação. E, nesse aspecto, a liberdade individual apresenta -se como grave

obstáculo à efetivação plena da igualdade, na medida em que o indivíduo pode tratar as

pessoas de forma diferente porque é livre para tanto. Novamente as palavras de Jorge

Reis Novais realçam bem essa questão:

Nas relações entre particulares, tudo o que não é proibido é


permitido. Obviamente, se a tese da eficácia direta leva sse
verdadeiramente a sério as suas premissas, há muito que teria
remetido esta máxima para o museu de antiguidades: só seria
permitido tudo o que não fosse proibido, mas que simultaneamente
não contrariasse, entre outros, o princípio da igualdade, o princ ípio da
proporcionalidade, o princípio da segurança jurídica, o princípio
socialidade e, mais que isso, qualquer uma das infindáveis refracções
em que se desenvolve o alargado elenco de direitos fundamentais de
qualquer Constituição de Estado de Direito. 81

79
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO , Daniel (coords). A constitucionalização do Direito –
Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. pp. 375 -376.
80
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit. p. 89.
81
NOVAIS, Jorge reis. Op. cit. p. 376
60

Parece claro que não se pode prescindir da autonomia privada na sociedade

civil, contudo ainda assim há motivos para se crer que a aplicação direta dos direitos

fundamentais é bastante razoável num campo das relações privadas: o campo da relação

jurídica de direito privado que encontra pessoas em posição de flagrante desigualdade.

Essa desigualdade é aquela gerada pela vulnerabilidade de alguns sujeitos ou grupos

que, por não controlar determinados bens, poder ou informações, não têm o mesmo

poder privado que outros. Esta situação leva à sujeição dos vulneráveis à vontade dos

detentores de poder e pior: muitas vezes o bem jurídico em mãos do sujeito mais forte é

um bem essencial como transporte, comunicação, energia elétrica, fornecimento de

água, assistência médica, dentre várias outras possibilidades.

Apesar das considerações de Jorge Reis Novais sobre a impossibilidade de

aplicação direta dos direitos fundamentais, não parece haver outra solução para os casos

em que a proteção do vulnerável se faz necessá ria. Como é impossível prever em lei

todas as possibilidades de violação à dignidade da pessoa humana , é preciso ir além de

meros modelos abstratos criados em lei. É preciso que se busque a tutela efetiva, através

da aplicação de princípios e direitos fund amentais nas relações privadas impedindo

assim a exclusão que pode ser gerada por meio desses modelos abstratos.

Claro que a igualdade não pode, enquanto princípio, ser aplicada de forma

desmedida, deverá ser utilizada em coerência com os demais princípio s e apenas nos

casos em que se fizer necessária. A autonomia privada é a regra geral e a liberdade dela

decorrente será amplamente exercida, mas somente nos casos em que os sujeitos de

direito privado estiverem em situação de paridade. Onde houver vulnerab ilidade, a


61

igualdade será aplicada no exato grau de vulnerabilidade, o que será medido em cada

caso concreto, conforme já mencionado acima para o caso da dignidade humana. 82

Portanto, para aplicação de todos os direitos fundamentais, e do princípio da

igualdade em especial, dever-se-á primeiro levar em consideração o grau de

vulnerabilidade e sujeição de uma das partes e em seguida aplicar direta ou

indiretamente – caso haja cláusulas gerais a regular a situação – o princípio mencionado

no grau necessário a restabelecer a dignidade humana àquele que se encontra

vulnerável.

2.1.2 Princípio da Liberdade

Também a liberdade tem passado por várias transformações ao longo do

tempo, assumindo diferentes dimensões. Num primeiro momento, pode -se afirmar que a

liberdade era medida e pensada na forma como a sociedade e seus membros regulavam

seu cotidiano, criando suas próprias regras. Fábio Konder Comparato leciona:

O núcleo do princípio da liberdade é a idéia de autonomia, isto, é, de


submissão de cada qual a normas por ele mesmo editadas. Uma
sociedade livre é aquela que obedece às leis que ela própria
estabelece e aos governantes por ela escolhidos. O pensamento
clássico vê, pois, no autogoverno, sob o império da lei, a marca
registrada de uma sociedade livre.
A partir das declarações de direitos no final do século XVIII, porém,
estabeleceu-se a distinção entre a liberdade pública, com sentido
político de autogoverno, e as liberdades privadas, como instrumentos
de defesa do cidadão contra as interferências govername ntais.83

O Estado de Direito interage com o liberalismo a partir do fim do século

XVIII, gerando duas espécies de liberdade distintas: a liberdade política que fundamenta

82
Conforme já citado no item 1.2.1 sobre a dignidade da pessoa humana, o Ministro Luiz Fux ao julgar o
já citado Recurso Especial 617588/SP, afirmou que cada situação pede uma análise particular do grau de
incidência dos direitos fundamentais.
83
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 32.
62

a democracia, nos moldes das lições de Rousseau; e a liberdade individual, sobre a qu al

tremula a bandeira do liberalismo, estabelecida nos moldes burgueses do discurso

proferido por Benjamin Constant.

Nesse sentido, Daniel Sarmento ensina que a liberdade do cidadão e a

liberdade do burguês constituem -se em teorias liberais e democratas -republicanas

(respectivamente) da liberdade. 84 Enquanto o democrata entende por liberdade a

faculdade de ter poder e voz ativa nas decisões ocorridas dentro do espaço público, o

liberal quer impor limites à autonomia popular utilizando -se das liberdades
85
constitucionais, excluindo “certas questões do espaço de deliberação da sociedade”.

As duas formas de se conceber a liberdade – liberdade na praça e liberdade

no jardim 86 – são complementares. O homem precisa tanto de sua liberdade política

quanto de sua liberdade individual, ambas são essenciais à dignidade. Até porque,

conforme Fábio Konder Comparato afirma:

A liberdade política sem as liberdades individuais não passa de


engodo demagógico de Estados autoritários ou totalitários. E as
liberdades individuais, sem efetiva participação política do povo no
governo, mal escondem a dominação oligárquica dos mais ricos. 87

É no princípio da liberdade – nos moldes burgueses – que a autonomia

privada encontra suas raízes. É graças a este princípio que o postulado consti tucional de

que “tudo o que não é proibido é permitido” encontra fundamento, sendo inclusive

previsto no artigo 5º. da Constituição pátria, em seu inciso II, onde “ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Defi nindo e

84
SARMENTO, Daniel. op. cit. p. 145.
85
Autor cit. op. cit. p. 145
86
Expressão encontrada e utilizada por Daniel Sarmento em sua obra supracitada. Autor cit. op. cit. p.
144.
87
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 33
63

traçando os limites da autonomia privada na filosofia do Direito, Tércio Sampaio Ferraz

Júnior elucida:

Não obstante as controvérsias que se giram em torno de uma


definição do conceito de direito subjetivo, a liberdade permaneceu
nele como um centro em que as relações entre os sujeitos se
interseccionam. Segundo a doutrina mais geralmente aceita e
praticada, no conceito de direito subjetivo ocorre o relacionamento de
um sujeito, dotado de um poder (faculdade) sobre um objeto ( res,
persona), que tem garantidas suas pretensões em face dos demais
sujeitos (erga omnes), aos quais cabe um dever geral de omissão.
Distinguem-se, assim, na estrutura do direito subjetivo, um aspecto
positivo, isto é, o poder sobre algo ( res) ou poder de exigir de alguém
uma conduta (persona), e um aspecto negativo, isto é, uma
capacidade de excluir todos os demais. 88

A autonomia privada é também, por si só, elemento que compõe a dignidade

humana, razão pela qual deve ser considerada quando da aplicação dos demais direitos

fundamentais. Conforme dito quando se discorreu sobre o princípio da igualdade, é

importante lembrar que os princípios têm aplicação flexível a cada caso concreto. Dessa

forma, algumas vezes a liberdade recua em nome de outros direitos fundamentais, mas o

inverso também é verdadeiro. Tudo será analisado em cada caso concreto, tendo a

dignidade humana como escopo maior.

Não custa lembrar ainda que mitigar a autonomia privada ou exterminá -la é

também atentar contra a dignidade da pessoa humana. Deve haver um equ ilíbrio entre

esses princípios e mais: estabelecer os limites da quota de liberdade de cada indivíduo

na sociedade. Não se pode trazer o modelo de aplicação dos direitos fundamentais nos

poderes públicos e utiliza -los sem qualquer adaptação na esfera priva da, porque são

searas distintas, com características próprias.

Sendo assim, cabe questionar: como limitar a autonomia privada sem lesar a

dignidade da pessoa humana? Para responder a essa pergunta, é preciso analisar de perto
88
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o poder, a liberdade,
a justiça e o Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 105
64

a autonomia privada. Primeiram ente, em sua consagração nos ideais revolucionários

franceses, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e do Bill of

Rights, de 1776, é importante lembrar que a liberdade foi estabelecida como princípio,

mas visando proteger os ideais indi vidualistas da época, ou seja, tratava -se de uma

“liberdade patrimonializada”, uma espécie de liberdade econômica. Essa liberdade

econômica persiste até os dias atuais no campo da autonomia privada. É o espaço livre

da intervenção estatal onde o cidadão te m a faculdade de decidir sobre a administração e

a livre disposição de seu patrimônio individual e dos direitos a ele correlatos. O aspecto

econômico da autonomia privada é herança da crença liberal na não intervenção estatal

como elemento propulsor do equ ilíbrio econômico.

Contudo, é de se destacar também que nos dias atuais, uma nova dimensão

da autonomia privada vem se manifestando na sociedade. Trata-se da liberdade que o

ser humano possui de traçar seu projeto existencial, seu estilo de vida. Questões de

cunho existencial, englobando o caráter afetivo, sexual, artístico, político, religioso,

ideológico e muitos outros da personalidade huamana, têm tomado os tribunais cada vez

mais e com maior freqüência. A “liberdade existencial” apresenta -se como nova

dimensão da autonomia privada, acompanhando a nova dimensão da igualdade,

conforme já exposto acima no item 1.2.2. Maria Celina Bodin de Moraes leciona a

respeito:

O princípio da liberdade se consubstancia, hoje, numa perspectiva de


privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida privada.
Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferência
de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, mais, o próprio
projeto de vida, exercendo-o como melhor convier. 89

89
MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de Dignidade Humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (org.) Op. cit. p. 138
65

Assim, a liberdade com o direito subjetivo, como autonomia privada

encontra-se atualmente com duas dimensões marcantes: uma com caráter patrimonial e

outra com caráter existencial. É fundamental distinguir uma da outra o máximo possível

para que se possa responder à pergunta ini cial e descobrir como limitar a autonomia

privada sem com isso prejudicar a dignidade da pessoa humana.

Importante ressaltar que a liberdade existencial deve prevalecer sobre a

liberdade patrimonializada, porque a primeira refere -se diretamente ao projeto de vida

da pessoa (conforme citado acima) e a segunda refere -se à livre administração das

coisas. Conforme já analisado quando se discorreu sobre a dignidade da pessoa humana,

a primeira refere-se a questões que estão sob o pálio da dignidade, enquanto a s egunda

refere-se às coisas que têm preço. E de acordo com o postulado kantiano, o que tem

preço não tem dignidade. Sendo assim, a dignidade deve prevalecer sobre o que tem

preço. Portanto, se num determinado caso, o julgador reprime a autonomia patrimonial

para valorizar a autonomia existencial ou qualquer outra dimensão da dignidade da

pessoa humana, estará sendo coerente com o ordenamento jurídico pátrio.

Destaque-se ainda que, além do artigo 1º. da Constituição estabelecer a

dignidade da pessoa humana co mo fundamento da República, o caput do artigo 170

condiciona a liberdade de iniciativa (nesse aspecto entendida como a liberdade

patrimonializada), criando um objetivo para a mesma: assegurar a todos uma existência

digna.90 Dessa forma, resta claro que a pr ópria Constituição é que faz a opção pela

supremacia da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, das questões

existenciais, em detrimento da liberdade de iniciativa.

90
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: (...) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1998.
Diário Oficial da União, n. 191-A, Brasília, 05 de outubro de 1988.
66

Além da questão que envolve a dicotomia da liberdade acima exposta

(liberdade patrimonializada x liberdade existencial), há ainda situações em que, mesmo

que os interesses envolvidos sejam apenas patrimoniais, ainda assim será necessário que

haja a intervenção na liberdade patrimonializada. Nem sempre as partes estarão numa

situação de igualdade de condições negociais ou ainda nem sempre as partes agirão em

coerência com o interesse público. Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma:

Mas o advento da sociedade de massas e a progressiva


democratização do Estado levaram à erosão destes postula dos
liberais. A crescente sensibilidade do discurso jurídico para a
desigualdade fática e para os interesses sociais e coletivos vai
provocar o desmoronamento do credo liberal na autonomia privada
como motor do bem comum no campo econômico. Amplia -se a
intervenção estatal na esfera das relações contratuais, seja com o
objetivo de acudir as partes mais débeis, seja com o propósito de
condicionar a autonomia negocial à prossecução de algum interesse
público.91

O princípio da liberdade, portanto, encontra -se presente no sistema do direito

privado sob vários aspectos. Enquanto autonomia privada subdivide -se em dois

conjuntos: o das liberdades de caráter patrimonial e o das liberdades de caráter não

patrimonial. Nesse sentido, “a proteção à autonomia privada deco rrente na Constituição

de 88 é heterogênea: mais forte, quando estão em jogo as dimensões existenciais da vida

humana; menos intensa quando se trata de relações de caráter exclusivamente

patrimonial”. 92

Também será limitada a liberdade onde houver apenas re lações de caráter

patrimonial, mas as partes se encontrarem em flagrante posição desigual, gerando a

vulnerabilidade de uma delas à vontade da outra. E, por fim, mesmo que as partes

estejam em posição de igualdade e manifestem sua livre vontade no exercíci o de sua

91
SARMENTO, Daniel. Op. cit. p. 160.
92
Autor cit. op. cit. p. 177
67

liberdade negocial, se atentarem contra o interesse público também sofrerão intervenção

estatal em sua autonomia privada.

Sem dúvidas, o princípio da liberdade foi o direito fundamental que mais

sofreu restrições, enquanto os demais estenderam sua influência no campo do direito

privado. Contudo, é de se lembrar que tal fato se dá porque na origem do sistema de

direito privado codificado, este mesmo princípio foi larga e exageradamente aplicado

com a finalidade de executar a ideologia liberal, confo rme já exposto supra.

2.1.3 Princípio da Solidariedade

O princípio da solidariedade foi o último dos pilares ideológicos da

Revolução Francesa a se manifestar no Direito. Enquanto a liberdade e a igualdade

foram previstas desde as primeiras constituições , a solidariedade tardou a se fazer

presente. Tal fato não se deu sem razão. Há que se considerar que a ideologia liberal não

comportava a solidariedade em seu projeto filosófico. Maria Celina Bodin de Moraes,

expõe o problema afirmando:

De fato, uma parcela relevante do que acontece em nossos dias teve


origem nos efeitos da criação e da assimilação do conceito de
“humanidade”, elaborado para dar resposta aos terríveis crimes
praticados, no período de 1933 a 1945, pelo regime nazi -facista. Foi a
noção de “crime contra a humanidade”, até então inexistente, que
possibilitou que se começasse a pensar na humanidade como uma
coletividade, merecedora, enquanto tal, de proteção jurídica.
Posteriormente, a utilização do conceito foi ampliada, inspirando
também a proteção de um “patrimônio comum da humanidade”, desta
feita contra a exploração desordenada dos recursos naturais. Na
expressão de um civilista francês, a humanidade se apresenta como o
conceito jurídico adequado para combater todas as formas de barbárie
moderna, originadas pelo estado ou pela tecnociência. 93

93
MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa Humana. Op.cit. p. 109
68

Criação do socialismo e também do welfare state, o princípio da

solidariedade se apresenta como um direito -dever que tem por objetivo corrigir e

superar o individualismo desenvolvido no Estado Liberal e na sociedade burguesa.

Fabio Konder Comparato leciona que o fundamento ético desse princípio está ligado à

idéia de justiça distributiva aristotélica, buscando -se a “socialização dos riscos normais

da existência humana.” 94 Este jurista lembra ainda que a solidariedade é uma

compensação “de bens e vantagens entre as classes sociais”. 95

Este princípio traz o postulado de que a sociedade tem responsabilidade

pelas carências e necessidades dos seus integrantes ou de grupos de seus integrantes.

Nesse diapasão, os direitos sociais passaram a ganhar espaço nas Constituições e o

Estado passou a assumir um papel de executor de políticas públicas cujo objetivo é

amparar as pessoas e classes mais vulneráveis na sociedade.

É também graças à solidariedade que atualmente o direito privado vem

funcionalizando seus institutos. A função social da propriedade, do contrato, da família,

da empresa, da responsabilidade civil e de outros institutos são inovações decorrentes da

aplicação deste princípio, que procura atenuar a força individualista da liberdade

individual.

A solidariedade é o reconhecimento do outro. A regra da reciprocidade. O

dever de cuidado. Dela derivam princípios de direito privado como a boa -fé objetiva,

que será adiante analisada. Trata -se de um dever de cond uta a ser observado pelos

cidadãos na sociedade civil, que devem agir sempre observando os princípios éticos de

cuidado com o próximo, para que a dignidade humana não seja prejudicada. Este dever

é imposto aos particulares sobretudo quando uma das partes é vulnerável, conforme já

mencionado ao longo dessa exposição.

94
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 34
95
Autor cit. op. cit. p. 34
69

A diretriz constitucional pátria determina que a exclusão deve ser combatida

em todas as suas formas, já que a idéia de justiça distributiva encontra -se prevista no art.

3º. da Lei Maior. Importante lembrar que este artigo estabelece a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária como objetivo fundamental da República. Nesse

sentido, Maria Celina Bodin de Moraes explica:

Do ponto de vista jurídico, como mencionado, a solidariedade está


contida no princípio geral instituído pela Constituição de 1988 para
que, através dele, se alcance o objetivo da “igual dignidade social”. O
princípio constitucional da solidariedade identifica -se, assim, com o
conjunto de instrumentos voltados para garanti r uma existência
digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como
livre e justa, sem excluídos ou marginalizados. 96

Caberá então à solidariedade balizar o grau de autonomia privada nas

relações dessa esfera, dosando o grau de liberdade e igual dade afim de estabelecer a

dignidade humana. O modelo a ser utilizado, vale lembrar, não pode ser o mesmo

utilizado para os poderes públicos, já que o ambiente das relações privadas é

marcantemente diferente do ambiente estatal. Para essa tarefa, dever -se-á ter uma

atenção toda especial ao critério da vulnerabilidade das pessoas ou grupos envolvidos

nas questões jurídicas, de forma a evitar que a aplicação dos direitos fundamentais

acabe por fugir de seu objetivo e lesar o campo da autonomia privada indevid amente.

2.2 Sistema das cláusulas gerais

Apesar de haver a possibilidade da aplicação imediata dos princípios

constitucionais, nada impede que a lei infraconstitucional traga também aberturas por

onde os mesmos poderão ser inseridos nas relações privadas , orientando os juristas. No

96
MORAES, Maria Celina Bodin. Op. cit. p. 114
70

direito civil e no direito do consumidor este fenômeno se dá especialmente por meio do

sistema de cláusulas gerais. Este sistema segue a linha da eficácia mediata dos direitos

fundamentais, quando o legislador lança mão de conc eitos vagos e abstratos criando na

lei espaço para que o juiz, ao dizer o direito, possa preencher os conceitos vagos com os

valores éticos próprios do tempo em que a lei é aplicada, conforme lecionam Judith

Martins Costa e Gerson Luiz Carlos Branco. 97

As cláusulas gerais apresentam -se como a opção mais viável ao legislador

contemporâneo, já que atualmente a ciência, a sociedade e o Estado transformam -se

numa velocidade incomparavelmente superior à do legislador. Ademais, dada a

quantidade de transformações e novidades científicas, econômicas e sociais que agem

na sociedade, criar uma lei para cada situação seria gerar uma sociedade completamente

fragmentada, conforme lembra Gustavo Tepedino. 98 Guilherme Calmon Nogueira da

Gama disserta sobre o tema conceituan do assim as cláusulas gerais:

As cláusulas gerais representam espécie de técnica legislativa


autorizadora da incorporação de princípios e valores ainda não
expressos no texto legislativo, de deveres de conduta não tipificados
exclusivamente, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de modo
a viabilizar sua sistematização e permanente ressistematização. 99

Completando o raciocínio, tem -se a explicação de Custódio da Piedade U.

Miranda, que ao explicar as técnicas legislativas utilizadas no sistema abert o, elucida:

Um outro mecanismo próprio do sistema aberto é o recurso às


chamadas cláusulas gerais. Ao contrário do que ocorre na técnica
tradicional, em que o legislador atua hipotizando, por meio de
fattispecies, as situações da vida, ou porque se trata de matéria
complexa a ser regulada, ou de fatos ou relações sociais sujeitas a
rápidas transformações, ou ainda pelas repercussões que elas possam

97
COSTA, Judith Martins; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit. p. 131
98
TEPEDINO, Gustavo. As relações de Consu mo e a nova teoria contratual. In: Temas de Direito Civil.
3. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
99
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2006. p. 7.
71

causar por transcenderem os interesses das partes envolvidas, o


legislador recorre, por vezes simultaneamente com o método
casuístico, ao expediente de formular uma cláusula geral, confiando
ao intérprete a missão de decidir em cada caso se ocorrem ou não os
pressupostos da aplicação da cláusula geral. 100

As primeiras experiências com as cláusulas gerais no direit o privado

brasileiro datam do Código Comercial de 1850, que já continha a previsão da boa -fé

objetiva como elemento que vincula a conduta ética do cidadão. 101 Contudo, apesar da

previsão dessa cláusula geral, há que se considerar que o contexto histórico,

constitucional e econômico era bem diverso do de hoje e, talvez por isso mesmo

encontrou-se muita dificuldade em determinar o real significado da boa -fé ali

mencionada. Já atualmente as experiências mais recentes têm se mostrado mais

eficientes que as de outrora. O Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto das

Cidades e o Código de Defesa do Consumidor apresentam um sistema de cláusulas

gerais eficazes e atendem bem às demandas sociais.

O Código Civil de 2002 trouxe também cláusulas gerais, seguindo a

tendência moderna. Boa-fé objetiva, função social da propriedade e do contrato, tutela à

pessoa humana nos direitos da personalidade e comunhão plena de vida no casamento

são conceitos lembrados por Guilherme Calmon Nogueira da Gama como exemplos de

cláusulas gerais presentes no Código Civil atual. 102 Neste aspecto, cumpre lembrar que

os defensores do Código Civil de 2002, como Judith Martins Costa, Miguel Reale e

Gerson Luiz Carlos Branco, festejam a utilização desse sistema de cláusulas gerais,

presente no Código em artigos como o 420 e 421. Contudo, Guilherme Calmon

Nogueira da Gama lembra bem que os críticos do Código, por sua vez, “questionam a

100
MIRANDA, Custódio da Piedade U. Teoria Geral do Direito Privado. Belo Horizonte: Del Rey,
2003. p. 125.
101
Conforme visto em TEPEDINO, Gustavo. Crises de Fontes Normativas e Técnica Legislativa na parte
geral do Código Civil de 2002. In: Temas de Direito Civil, Tomo II . Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
102
GAMA, Guilherme Calmon nogueira da. Op. cit. p.7
72

abundância do uso desse recurso legislativo”, restrito a poucos artigos, bem como a

técnica utilizada no Código que, diferente daquela utilizada no Código de Defesa do

Consumidor e da utilizada no Estatuto da Criança e do Adolescente, não determinam de

forma clara em sua narrativa o conteúdo axiológico das mencionadas cláusulas. Além
103
disso, a ausência de exemplos na lei também se faz notar.

A técnica legislativa para a criação das cláusulas gerais compreende

basicamente quatro aspectos. O primeiro deles, já mencionado, é a utilização de

conceitos de definição vaga, cujo preenchimento será realizado observando -se os

valores, princípio e realidade contemporâneos. Com isso, pretende -se manter-se a

estrutura legal por mais tempo, evitando a rápida defasagem legislativa em função das

transformações científicas e sociais hodiernas. O segundo aspecto é o caráter

exemplificativo das cláusulas gerais. Seu texto, além de trazer os conceitos vagos,

contém também exemplos que servem de orientação ao intérprete. Para isso, as

cláusulas gerais contêm uma narratividade criada em sintonia com as diretivas

constitucionais que conduze m o jurista pela aplicação dos princípios constitucionais no

direito privado. O terceiro aspecto é o próprio conteúdo narrativo dos exemplos

contidos nas cláusulas gerais, que constituem a aplicação dos direitos fundamentais nas

relações privadas de forma mediata, por intermédio da lei e da aplicação da mesma pelo

juiz. Os direitos humanos apresentam -se como valores supremos nos textos legislativos,

impregnando as relações privadas com seus princípios. Por fim, o derradeiro aspecto

constitui-se no método de interpretação das cláusulas nas sentenças chamadas de

determinativas – porque preenchem as lacunas dos conceitos legais vagos. O método a

ser destacado é o teleológico, e deve atentar para a aplicação dos direitos fundamentais,

para os aspectos éticos soc iais e para os problemas contemporâneos. Nos casos onde

103
Autor cit. op. cit. p. 7
73

uma das partes apresentarem -se vulneráveis, a tutela desta também deverá ser

considerada como objetivo, porque a dignidade humana tem a proteção do vulnerável

como um de seus fundamentos, conforme já visto supra.

2.3 Atividade econômica e constitucionalização do direito privado

2.3.1 Interação da economia e do direito no sistema social

A dignidade humana e os demais direitos fundamentais frequentemente

apresentam-se em casos complexos envolvendo a e conomia. A partir do projeto do

Estado Liberal essa relação ficou cada vez mais complexa. Tanto é assim que na esfera

do direito privado a maioria das transformações aqui descritas foram alavancadas pelas

desigualdades que a economia gera na sociedade. Pod er-se-ia dizer que cabe ao Direito

igualar as relações que a economia desiguala. O equilíbrio entre essas duas forças é

fundamental para o estabelecimento de uma sociedade desenvolvida e, ao mesmo

tempo, justa livre e solidária, como quer a Constituição br asileira.

Por outro lado, sabe-se também que por meio da interação de conhecimentos

do Direito e da Economia, pode -se estimular a eficácia e a observação dos direitos

fundamentais nas relações privadas. Para tanto o jurista e o legislador devem lançar mão

dos instrumentos jurídicos à sua disposição. Ou seja, se por um lado a Economia

influencia no cotidiano do Direito, o inverso também é verdadeiro. A questão que se

coloca é: é possível manter na sociedade e no mercado a dignidade humana enquanto o

empresário persegue seu lucro?

Considerando-se a economia global, vê -se claramente um movimento por

parte de multinacionais e empresários locais também de alterar o direito em nome do


74

aumento da competitividade das empresas. Essa é a razão pela qual se discute

atualmente a flexibilização das leis do trabalho, da reforma tributária e da previdência

social, bem como a revisão do direito privado. Atender às necessidades do mercado sem

prejudicar as conquistas sociais é um desafio que se impõe. Todas essas questões são

situações impostas pela interação entre a Economia global e o Direito.

Nesse sentido, a economia criou um campo de estudo chamado análise

econômica do Direito, cujo objeto é estudar os impactos do Direito e das decisões

judiciais na eficiência da economia na sociedade. Também chamado de Law and

Economics, essa corrente tem suas raízes em Karl Marx, sendo que posteriormente

Guido Calabresi veio a sistematizar um estudo sobre o assunto, sendo seguido nesse

sentido por Richard Posner. 104Décio Zylberzstajn e Rac hel Sztajn explicam que há

várias análises do Direito possíveis na visão econômica, e afirmam:

O Direito, por sua vez, ao estabelecer regras de conduta que modelam


as relações entre pessoas, deverá levar em conta os impactos
econômicos que delas derivarão , os efeitos sobre a distribuição ou
alocação dos recursos e os incentivos que influenciam o
comportamento dos agentes econômicos privados. Assim, o Direito
influencia e é influenciado pela economia, e as organizações
influenciam e são influenciadas pelo a mbiente institucional. A análise
normativa encontra a análise positiva, com reflexos relevantes na
metodologia de pesquisa nessa interface. 105

Importante, portanto, considerar os impactos econômicos do Direito. Ocorre

que, ao fazê-lo o jurista não deverá co locar a ciência jurídica a serviço da economia,

mas sim utilizar conhecimentos econômicos para garantir a eficácia dos direitos. Em

suma: no ambiente de mercado o estudo dos impactos econômicos do direito privado

104
Conforme RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A responsabilidade civil por danos produzidos no
curso de atividade econômica e a tutela da pessoa humana: o critério do dano eficiente. In: R AMOS,
Carmem Lucia Silveira; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena (org.). Diálogos sobre
Direito Civil. et al. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 136 – 137.
105
ZYLBERSZTANJ, Décio; SZTANJ, Rachel. Análise Econômica do Direito e das organizações. In:
ZYLBERSZTANJ, Décio; SZTANJ, Rachel (orgs.). Direito e Economia: análise econômica do Direito e
das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 3
75

devem ser considerados como forma de garant ir a eficácia dos direitos fundamentais, de

forma a afinar a aplicação deste ramo do Direito com sua nova matriz axiológica.

2.3.2 A Função Social da Empresa

Nesse campo do direito privado, são o direito empresarial e o direito do

consumidor os alvos dos maiores impactos. O fenômeno da constitucionalização na

atividade econômica criou no direito empresarial, civil e consumerista algumas

cláusulas gerais através das quais os direitos fundamentais infiltram nas negociações.

Primeiramente a função social pas sa a dar uma nova perspectiva aos direitos reais

(função social da propriedade), aos contratos (função social do contrato) e à empresa

(função social da empresa). Em seguida, há que se considerar que, para o exercício da

livre iniciativa 106 nos moldes constitucionais, é preciso ainda que o empresário aja no

mercado observando o dever da boa -fé objetiva e evitando praticar o abuso de direito.

Sendo assim, os conceitos de função social da empresa, boa -fé objetiva e

abuso de direito 107 serão analisados por serem d e relevância para este trabalho.

A empresa, que anteriormente ao Código Civil de 2002 era regida pelas

normas do Código Comercial e algumas leis esparsas, passa a integrar o corpo do

Código Civil atual, tendo sido dedicado ao direito empresarial o livro II intitulado Do

Direito de Empresa, ocasião em que o direito rompe definitivamente com a teoria dos

atos de comércio. Em sintonia com o que determina o artigo 170 da Constituição pátria,

o novo sistema de Direito Empresarial traz em seu sistema a função soc ial da empresa.

106
A livre iniciativa, conforme afirmado por Fernanda Pessanha Amaral Gurgel, é a manifestação da
autonomia privada no campo da economia, sendo por isso mesmo espécie do gênero. GURGEL, Fernanda
Pessanha Amaral. Liberdade e Direito Privado. In: NERY, Rosa Maria Andrade (coord.). Função do
Direito Privado no atual momento histórico. São Paulo: Revista dos tribunais, 2006. p. 23
107
Destaque-se que a análise do abuso de direito será feita no capítulo seguinte.
76

A função social pode ser entendida como a manifestação do princípio da

solidariedade dentro da autonomia privada e, no caso da empresa, na livre iniciativa.

Introduzida primeiramente no conceito de propriedade, a função social veio

paulatinamente ocupando cada vez mais espaço dentro do direito privado brasileiro até

ganhar também a empresa. Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Bruno Paiva

Bartholo explicam que os principais propagadores da função social na ciência jurídica

foram Karl Renner e Leon Duguit. 108

O pensamento de Karl Renner era no sentido de que bastaria a empresa

produzir e circular riquezas para cumprir sua função social, ou seja, para ele a função

econômica da empresa fundia -se à função social da mesma. Leon Duguit, a seu turno,

desenvolveu raciocínio diferente. Duguit afirmava que os interesses subjetivos tinham

que se submeter à preocupação com a legitimidade no exercício do direito.

Desenvolvendo os conceitos rascunhados por Duguit, a doutrina veio

demonstrando que a função soci al significa objetivamente preocupar -se com os

interesses maiores da sociedade, condicionando o exercício dos direitos subjetivos à

observação dessa diretiva. Desse conceito extrai -se que os indivíduos na sociedade

brasileira são livres para empreender (li vre iniciativa), mas essa liberdade não é ampla e

irrestrita. Ela é delimitada pelos objetivos da atividade econômica no país, que se

encontram enumerados no caput do já citado art. 170 da Constituição brasileira, a saber:

a existência digna e a justiça so cial. Além disso, é de se lembrar também que esse

mesmo exercício da livre iniciativa não pode se afastar ainda dos princípios que

orientam o caminho do empreendedor brasileiro, também contido nos incisos do artigo

em pauta.

108
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. A Função Social da Empresa .
Rio de Janeiro: Grupo de pesquisa da UERJ e CNPq -UGF, 26p. Não Publicado. p. 7.
77

Por ser tema complexo e de exte nso tratamento, não serão aqui trabalhados

todos os princípios da atividade econômica, mas vale lembrar que a defesa do

consumidor, a livre concorrência, a defesa do meio ambiente e a busca do pleno

emprego com redução das desigualdades regionais e sociais já sinalizam para a função

social da empresa, pois demonstram uma preocupação da Lei Maior com os impactos

que o exercício da empresa podem ter na economia e na sociedade.

Nas palavras de Carlos Alberto Farracha de Castro e Paulo Nalin,

“funcionalizar significa, assim, impor aos clássicos institutos do liberalismo


109
(propriedade privada, família e contrato) um novo ritmo ideológico constitucional”.

Sendo assim, mesmo no campo da atividade empresarial seja a relação estabelecida

entre empresários ou entre em presários e consumidores, a função social há de ser

observada para que a dignidade humana não seja lesada.

2.3.3 A boa-fé objetiva nas relações empresariais e consumeristas

Cumpre salientar que a função social não se confunde com outra cláusula

geral: a boa-fé objetiva. Atualmente prevista nos artigos 113, 422 do Código Civil, a

boa-fé objetiva aparece como exigência de conduta nos negócios jurídicos. De forma

ainda mais abrangente, aparece ela também como princípio da política nacional de

relações de consumo no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º., III. É a

manifestação do princípio da eticidade no Código Civil e do Código de Defesa do

Consumidor.

109
CASTRO, Carlos Alberto Farracha; NALIN, Paulo. Economia, mercado e dignidade do sujeito. In: .
In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena (org.).
Diálogos sobre Direito Civil. et al. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 119.
78

A boa-fé subjetiva é um estado anímico, psíquico e volitivo da parte. Tem

relação com a intenção da parte com a outra. Já a boa -fé objetiva é uma regra de

conduta. Olha-se se a conduta da parte se enquadra no exigível pela sociedade, se a

conduta enquadra na “moldura” das práticas aceitáveis na sociedade.

Nesse sentido, Humberto Theodoro Junior lecio na que a boa-fé objetiva no

contrato pode ser aferida da seguinte forma:

Para aferir a boa-fé objetiva na formação e execução do contrato, e,


portanto, para exigir-se do contratante alguma prestação derivada de
dever acessório, recorre-se aos costumes do tráfego, já que todo
contratante, na atual concepção da teoria dos contratos, está obrigado
a agir de acordo com os usos e costumes observados pelas pessoas
honestas. 110

Pode-se concluir daí que a boa -fé gera um efeito integrador nas relações

entre as partes, criando deveres acessórios que, apesar de não estarem previstos no

contrato, são condutas esperadas das pessoas (ou empresas) probas e honestas. Outro

efeito da boa-fé objetiva é a razoabilidade que advém do comportamento ético honesto.

Uma espécie de dever sensibilidade com as situações, respeitando a dignidade das

pessoas. Atitudes desarrazoadas em relações desigualadas economicamente

frequentemente levam à lesão da dignidade do vulnerável. É o que se pode observar, por

exemplo, no caso do Recurso Espe cial nº 299.355/MG, julgado em 04 de dezembro de

2001 pelo STJ. Naquela demanda, decidiu -se a respeito de um contrato de alienação

fiduciária, onde era cobrada taxa de 93.000% ao ano da parte débil. Considerando a

ausência de razoabilidade no cálculo da ta xa, bem como o abuso de direito por parte da

instituição financeira recorrida. 111

110
THEODORO JR, Humberto. O contrato e sua função social . Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 10
111
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 299.355/MG. Convap Engenharia
e Construções S/A, Recorrente; Banco Francês e Brasileiro S/A, Recorrido. Relator Min. Ruy Rosado de
Aguiar. J. 04.12.2001. DJU 08.04.2002 p. 220.
79

Nesse sentido, apresenta-se o terceiro efeito da boa -fé objetiva: sua função

limitativa. Agir de boa-fé (objetivamente) significa não abusar dos próprios direitos,

causando lesão a outrem. Nesse ponto, a boa -fé objetiva encontra seu ponto de

intersecção com outro importante instituto, que é o abuso de direito. Por essa razão é

possível vislumbrar desde logo uma conexão entre a função social da empresa, a boa -fé

objetiva e o abuso de direito como corolários da manutenção da dignidade humana nas

atividades empresariais. 112

112
A exposição sobre abuso de direito será oportunamente realizada no próximo capítulo.
80

3 FUNÇÃO DA REPARAÇÃO NOS CASOS DE DANO SOCIAL

3.1 Impactos da constitucionalização na responsabilidade civil

Por um longo tempo na história do direito privado, o instituto da

responsabilidade civil apresentou -se no direito brasileiro como o mecanismo a ser

utilizado nos casos em que um cidadão, tendo praticado ato ilícito, é chamado a

responder pelos danos causados por suas ações . No Código Civil de 1916, encontrava -

se o artigo 159, que preceituava:

Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência,


ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica
obrigado a reparar o dano. 113

Durante o longo período de vigência do Código Civil de 1916, o artigo 159

estabeleceu a responsabilidade fundada no ato ilícito como o standart da

responsabilidade civil, seguindo a tradição já consagrada na sociedade moderna desde o

código napoleônico, que por sua vez segue a tradição romana sobre a responsabilidade.

Essa responsabilidade é chamada de subjetiva. A responsabilidade subjetiva trabalha

com três pressupostos: a prática do ato ilícito, o dano dele decorrente e o nexo causal

que liga ambos. Por não ser exatamente o objeto desse trabalho, tais pressupostos não

serão detalhadamente analisados. Esta responsabilidade subjetiva foi mantida no Código

Civil de 2002, nos seus artigos 186, 187 e 927 . O artigo 186 praticamente repete o texto

do artigo 159 do Código anterior, mantendo o sistema da responsabilidade subjetiva.

Contudo, conforme será visto adiante, a responsabilidade subjetiva passa a dividir

espaço com a responsabilidade objetiva, dando orige m ao sistema dualista de

113
BRASIL. Código Civil, lei nº 3.071 de 1º. de Janeiro de 1916. 50. e d. São Paulo: Saraiva, 1999.
81

responsabilidade. Já o artigo 187 inova prevendo a figura do abuso do direito, que

também será analisado oportunamente, e, por fim, o artigo 927 arremata imputando

responsabilidade àqueles que praticarem o ato ilícito.

A novidade em termos de responsabilidade no Código de 2002 encontra -se

em três pontos: a) a responsabilidade civil com foco na pessoa humana; b) a

responsabilidade objetiva e o alargamento das suas hipóteses; e c) a responsabilidade

civil com previsão legal para os ca sos em que ocorrer o abuso de direito. 114

3.1.1 A responsabilidade civil com foco na pessoa humana

Conforme já demonstrado nos capítulos anteriores, o direito civil

contemporâneo é focado na pessoa e não mais necessariamente na relação jurídica,

porque sua nova tábua axiológica são os preceitos constitucionais. É correto pensar,

portanto, que a responsabilidade civil segue essa tendência, devendo o jurista ampliar

sua visão em relação à responsabilidade, que não pode ser vista apenas sob seu aspecto

patrimonial. A responsabilidade passa a ter papel especial no contexto da manutenção

da dignidade da pessoa humana, na proteção das liberdades existenciais, no

estabelecimento da igualdade substancial e na viabilidade da solidariedade nas relações

econômicas e sociais. Nesse sentido, Maria Celina Bodin de Moraes ensina:

O princípio da proteção da pessoa humana, determinado


constitucionalmente, gerou no sistema particular da responsabilidade
civil, a sistemática extensão da tutela da pessoa da vítima, em
detrimento do objetivo anterior de punição do responsável. Tal
extensão, neste âmbito, desdobrou -se em dois efeitos principais: de
um lado, no expressivo aumento das hipóteses de dano ressarcível; de

114
Este último será analisado em tópico próprio e em momento oportuno.
82

outro, na perda de importância da função moralizadora, outrora ti da


como um dos aspectos nucleares no instituto. 115

O princípio da solidariedade, aplicado à responsabilidade civil, transformou

o instituto. A responsabilidade subjetiva, que anteriormente tinha o efeito moralizador

como elemento marcante, agora perdeu espa ço nas hipóteses de aplicação e mudou seu

foco do comportamento do autor do dano para o prejuízo experimentado pela vítima. É

preciso reafirmar que a responsabilidade subjetiva ainda precisa da culpa impregnada no

ato ilícito para se fazer caracterizar, co ntudo a forma de analisar a culpa já não é

realizada com tanta severidade quanto outrora. Diferentemente da lei penal, para quem a

conduta do ofensor é nuclear, o grau de dolo ou culpa (que na responsabilidade civil não

são diferenciados), no direito privado não é elemento que possa influenciar na decisão

do valor da indenização.

Para o direito civil contemporâneo, e em certa medida também no Código

Civil de 1916, a culpa é lato sensu, já engloba o elemento dolo em seu conceito. Vale

dizer que no direito privado, entre uma lesão corporal leve muito dolosa e um homicídio

acidental, a indenização decorrente do homicídio será maior, mesmo diante do alto grau

de culpa na lesão corporal. Isto se dá hoje em razão do artigo 944 do Código Civil de

2002, que determina que a indenização será medida tendo em vista a extensão do dano.

Em relação à proteção da pessoa humana, é importante lembrar que o

aspecto subjetivo da demanda em que se discute a responsabilidade civil é de grande

relevância. Quando a questão a ser dis cutida girar em torno de questões meramente

patrimoniais e as partes estiverem em posição de igualdade, sem dúvidas a regra da

socialização do prejuízo e da desconsideração do grau de culpa do ofensor deverá

115
MORAES, Maria Celina Bodin de. A Constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos sobre a
Responsabilidade Civil. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; S ARMENTO, Daniel (coords). A
constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2007. p. 439.
83

prevalecer. Neste caso pode -se considerar a menor o grau de culpa do ofensor e

certamente a extensão do dano poderá ser tranquilamente medida, já que basta verificar

o valor do dano experimentado pela vítima, seja ela vulnerável ou não.

Porém, atualmente a responsabilidade civil vem enfrentando hard cases

cujos efeitos são impossíveis de serem ignorados. É o que ocorre quando os direitos

fundamentais são lesados por um particular. Quando uma pessoa é lesada em sua

dignidade, seja porque foi tratada de forma desigual em relação aos seus pares, seja

porque teve sua liberdade existencial indevidamente limitada, seja porque foi

marginalizada e excluída do meio social, em todos esses casos surge o dano

extrapatrimonial.

Também chamado de dano moral, o dano extrapatrimonial é de difícil

liquidação, porque manifesta-se na desconsideração de valores constitucionais e

existenciais, atingindo a dignidade humana. Dessa maneira, é impossível medir a

extensão do dano extrapatrimonial. Nas palavras já citadas de Maria Celina Bodin de

Moraes, a dignidade não tem preço, e o dano moral é o dano à dignidade.

Como não há previsão no Código Civil para a indenização punitiva,

presume-se primeiramente que a princípio o dano moral não tem caráter punitivo, pois a

análise da conduta do ofensor só autoriza a redução, jamais a major ação do quantum

indenizatório. Nesse diapasão, é importante lembrar que a conduta do ofensor não foi de

todo esquecida, já que o parágrafo único do art. 944 permite a redução do valor da

indenização em casos de culpa mínima. Tal determinação conduz à pergu nta: será

possível também aumentar então o valor da indenização tendo por base a conduta

altamente culposa do ofensor? Talvez não nas relações em que haja a ausência de parte

vulnerável, mas faz-se desde já ressalva em relação a particulares que, abusando de seu
84

poder econômico lesam sistematicamente direitos fundamentais de outros particulares,

vulneráveis.

Discute-se já há muito tempo a possibilidade de aplicação dos chamados

punitive damages no Brasil. Esse instituto de origem norte -americana tem raízes na

análise econômica do direito, pois procura por meio do valor da indenização, corrigir o

comportamento do indivíduo, fazendo -o pelas vias econômicas. O seu fundamento é a

utilizar a capacidade econômica do ofensor como uma das medidas para fixação da

indenização, e não o seu grau de culpa, o que deve ser diferenciado. Não é possível

admitir os critérios dos punitive damages e do grau de culpa do ofensor nas relações

civis, por ausência de previsão legal, mas tal assertiva não se espalha por todo o sistema

de direito privado. Entre particulares que exercem amplamente sua autonomia privada

negocial e existencial, onde não há desigualdade de posições, não há que se falar na

aplicação dos punitive damages. Menos ainda quando o dano for patrimonial. Mas há

considerações a serem feitas no direito consumerista.

A regra geral do direito civil é levar em consideração as condições pessoais

da vítima e a extensão do dano. Essa posição é bem razoável, desde que se considere

que sua aplicação ocorra nas relações civis e entre pessoas que estejam em plenas

condições de igualdade em termos de autonomia privada. Tal fato se dá porque, quando

uma das partes é vulnerável, a situação torna -se mais complexa, conforme será visto. De

qualquer forma, a responsabilidade civil por d ano moral apresenta-se como a guardiã da

dignidade humana nas relações privadas.


85

3.1.2 A responsabilidade objetiva e o alargamento das suas hipóteses

A solidariedade conduz a responsabilidade civil para socialização dos danos,

razão pela qual o foco é atualmente a extensão do dano sofrido pela vítima. Neste

mesmo sentido, uma importante mudança ocorre nessa área civilista: a responsabilidade

subjetiva, outrora a regra geral de responsabilidade, passa a dividir espaço com a

responsabilidade objetiva, ge rando o sistema dualista de responsabilidade.

A responsabilidade objetiva, além de ter suas hipóteses alargadas previstas

em lei, ganhou uma cláusula geral de aplicação no parágrafo único do artigo 927, que

determina que aquele cuja atividade normalmente d esenvolvida implicar, por sua

natureza, em riscos para os direitos de outrem, deverá re sponder objetivamente pelo

dano causado. Essa é uma grande inovação na responsabilidade civil, pois anteriormente

ao Código Civil de 2002, todas as hipóteses de responsa bilidade objetiva eram

tipificadas, não podendo ser presumidas. A responsabilidade objetiva, advinda do final

do século XIX, leva em conta o risco gerado pela atividade exercida pela pessoa.

Abandona-se a análise da conduta, para considerar a atividade que expõe um número de

pessoas a uma situação de lesão. Ocorrendo o dano, o agente responde

independentemente da ocorrência de culpa ou de ato ilícito. O fator determinante é a

relação entre a ocorrência do dano e o risco gerado pela atividade do sujeito. O d ano

poderá ser decorrente da prática de ato ilícito ou mesmo de ato lícito. Segue -se o

postulado de que quem aufere o bônus, suporta o ônus. Aquele que se beneficia de

atividade que põe em risco os demais, fica obrigado a reparar os danos caso o risco se

concretize.

A responsabilidade civil passa a ter dois sistemas que dividem o espaço

jurídico no direito privado. Agora, ainda que se tenha em tela um caso não previsto em
86

lei, se a atividade exercida pelo sujeito gera riscos, a responsabilidade a ser aplica da

será a objetiva. Cumpre saber apenas dentro de quais parâmetros se deve decidir se a

atividade exercida por certa pessoa é geradora de riscos ou não. Nesse sentido,

encontram-se dois posicionamentos. Trata -se da teoria do risco proveito e da teoria do

risco criado.

A teoria do risco proveito quer que a responsabilidade objetiva se aplique

àqueles que, em busca de proveito econômico, gerem riscos à sociedade. São partidários

dessa teoria Fábio Ulhôa Coelho e Sérgio Cavalieri Filho. Fabio Ulhôa Coelho reje ita a

sucessão de atos ordenados em conjunto como elemento bastante para que o risco se

caracterize. Para ele é preciso que a atividade normalmente desenvolvida seja “aquela

em que for possível a socialização dos custos”. 116 Já Sérgio Cavalieri Filho, após c itar

Caio Mário da Silva Pereira como o grande defensor da teoria do risco criado, que será

abaixo exposta, contrapõe -se à mesma, escrevendo:

Assim, parece-me lógico concluir que o objetivo do legislador foi


estabelecer uma cláusula geral de responsabilid ade objetiva que
abrangesse toda essa vasta área dos serviços, mormente se tivermos
em conta que o Projeto do Novo Código Civil foi elaborado muito
antes do Código do Consumidor, que posteriormente tratou da
matéria no seu art. 14, no que concerne às relaç ões de consumo. 117

Já a teoria do risco criado pretende estender a responsabilidade objetiva a

quaisquer pessoas cuja atividade seja geradora de risco, não importando se com isso

busca-se o proveito econômico. Afirma-se que o artigo 927 do Código Civil util iza

apenas expressão “atividade” e não “atividade econômica”. Nesta corrente, encontram -

se Caio Mário da Silva Pereira – conforme já exposto –, Miguel Reale e Carlos Roberto

116
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil, vol II. 2.ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 2005. p. 349
117
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 183.
87

Gonçalves. Este último, após citar Miguel Reale em sua obra, harmoniza seu

posicionamento ao dele, ao afirmar:

A inovação constante do parágrafo único do artigo 927 do Código


Civil é significativa e representa, sem dúvida, um avanço, entre nós,
em matéria de responsabilidade civil. Pois a admissão da
responsabilidade sem culpa pelo exe rcício de atividade que, por sua
natureza, representa risco para os direitos de outrem, da forma
genérica como consta do texto, possibilitará ao Judiciário uma
ampliação dos casos de dano indenizável. 118

Se a atividade exercida pela pessoa criar riscos para a sociedade, haverá a

responsabilidade objetiva. Essa última teoria parece ser a mais adequada não só porque

a letra da lei não restringe a sua aplicação à atividade econômica, mas também porque a

atividade empresarial já está há muito tempo sob a sombra da responsabilidade fundada

no risco. Ademais, como se verá adiante, o Código Civil já traz um artigo direcionado à

atividade empresarial.

Resta apenas saber quais critérios serão utilizados para se saber quando a

atividade em questão será qualificada como atividade geradora de riscos. O risco não

pode ser elemento natural de cotidiano, como conduzir automóveis, por exemplo. O

risco surge de atividades ousadas, do empreendedorismo, é exercer uma atividade cuja

característica seja fugir da normalidade.

Apesar de a cláusula geral de responsabilidade objetiva representar um novo

paradigma no direito civil, no cenário empresarial a novidade só veio mesmo a

confirmar uma tendência que há muito se manifesta. Afinal, a responsabilidade do

empresário já é objetiva e m várias hipóteses como nas relações consumeristas, na

proteção do meio ambiente e nas relações concorrenciais. Uma das poucas hipóteses em

que a responsabilidade do empresário ainda poderia ser medida nos termos do ato ilícito

118
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol IV . – São Paulo, Saraiva, 2007. p. 33 –
34.
88

eram as relações interempres ariais. Ocorre que o Código Civil de 2002, por meio do

artigo 931 inverteu definitivamente a antiga tradição na seara da responsabilidade

empresarial, estabelecendo a responsabilidade objetiva como regra geral no âmbito das

relações empresariais, deixando a responsabilidade subjetiva apenas para os casos

previstos em lei. Trata-se também de cláusula geral no âmbito das relações

empresariais, reforçando a diretriz já traçada pelo parágrafo único do artigo 927.

Muitos poderiam afirmar que não há novidade nenh uma nos dispositivos

legais, já que o Código de Defesa do Consumidor há muito estabeleceu a

responsabilidade objetiva do empresário para os produtos e serviços postos em

circulação. Ocorre que o artigo 931 do Código Civil é mais abrangente que a lei 8.078

de 1990, porque ultrapassa a hipótese de incidência desta lei, alcançando as relações que

não são de consumo.

3.2 A Eticidade, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil nas Relações de

Consumo

3.2.1 Relações entre o Direito Constitucional, o Direito do C onsumidor e a

Responsabilidade Civil

As relações entre iguais são, em regra, reguladas pelo Código Civil. O

Código de Defesa do Consumidor, a seu turno, regula uma outra categoria de relações.

São as relações de consumo, onde uma das partes – o consumidor – é

consideravelmente vulnerável à vontade da outra parte – o fornecedor. No sistema de

responsabilidade consumerista, é preciso considerar dois conjuntos normativos para se

chegar a uma aplicação adequada dessas normas. É preciso considerar os ditames do s


89

direitos fundamentais e seus princípios, as normas específicas de responsabilidade

consumerista e, para preencher as lacunas, aplicar o Código Civil.

Acompanhando as lições hermenêuticas de Rizzato Nunes, a interpretação

adequada do sistema jurídico cons umerista deve partir da Constituição até chegar à lei

8078, não o inverso. Parte -se primeiro da Constituição Federal, este é o ponto de

partida.119 Por meio deste método dedutivo é que é possível ir interpretando a

constitucionalidade das normas infraconstit ucionais a serem analisadas.

Utilizando este método, é possível vislumbrar a defesa do consumidor em

duas passagens fundamentais no texto constitucional. Primeiro como direito

fundamental, no artigo 5º. , XXXII. Ali a norma constitucional determina que o E stado

tem o dever positivo de “promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Apesar

de, à primeira vista, o texto aparentar uma norma programática, importante salientar que

a norma é auto-aplicável. O Estado aí deve ser compreendido como as três esfe ras de

poder – executivo, legislativo e judiciário – que deverão promover a defesa do

consumidor. A expressão “na forma da lei” também não se restringe apenas ao Código

de Defesa do Consumidor, a Constituição pátria determina que o Estado, lançando mão

do sistema jurídico, protegerá o consumidor. Vale dizer: ainda que não existisse a lei

8078/90, ainda assim o Estado teria que proteger o consumidor fazendo uso das fontes

do sistema jurídico.

Também o artigo 170, V, ao ditar os princípios a serem observados para o

funcionamento da atividade econômica elege a defesa do consumidor como condição a

ser observada no exercício da livre iniciativa 120. Neste ponto é importante lembrar que é

este mesmo artigo 170 da Constituição que estabelece a função social da empresa . Neste

aspecto, vale lembrar as lições de Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Bruno

119
NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2. ed. rev. modif. e atual. São Paulo: Saraiva,
2005. p. 12
120
Livre iniciativa aqui também chamada de liberdade econômica, no âmbito da autonomia privada.
90

Bartholo, que afirmam que a função social da empresa possui duas áreas de incidência:

uma endógena e outra exógena. A exógena, que interessa para o momento, engloba os

interesses dos concorrentes, dos consumidores e do meio ambiente. 121 Também tratam-

se de normas constitucionais de aplicação imediata, consolidando a aplicação dos

direitos fundamentais nas relações privadas e estabelecendo definitivamente a função

social da empresa. Contudo, é importante ressaltar que os autores citados acima

chamam a atenção para a necessidade de sanções que garantam a observância dos

princípios constitucionais previstos no artigo 170. 122 Neste sentido, ambos advertem:

Além da existência dessas divergências entre os jurisconsultos,


também se recorre ao argumento de que aos poucos dispositivos
usualmente referenciados nesse tema, como o art. 170, da
Constituição Federal, não correspondem as devidas sanções capazes
de garantir o respeito ao previs to nessa normativa. No entanto,
considerando-se as possibilidades de aplicação direta da normativa
constitucional nas relações privadas, com a Carta Maior como centro
do ordenamento, e de aplicação de determinados instrumentos
jurídicos existentes, como a responsabilidade civil, seria possível
esboçar uma embrionária solução para o impasse. 123

Todo o ordenamento jurídico, no que se refere ao consumidor, deve ser

interpretado teleologicamente de forma a assegurar a proteção do mesmo, por razões

constitucionais. É claro que a lei infraconstitucional também traz essa mesma diretriz. É

o que ocorre com o Código de Defesa do Consumidor, que é uma extensão do direito

fundamental de proteção ao consumidor. É uma das (pode haver várias outras) formas

de proteger o consumidor. O CDC é uma lei centralizadora, que chama para si a

proteção do mercado saudável e a proteção do consumidor. Para isso traz em seu texto
121
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno. Op. cit. Rio de Janeiro: Grupo de
pesquisa da UERJ e CNPq-UGF, 26p. Não Publicado. p. 19
122
Os autores afirmam que a função social da empresa possui duas áreas de incidência: uma endógena e
outra exógena. A primeira compreende os agentes internos da empresa, como as relações trabalhista s e as
relações societárias entre administrador, sócio controlador e sócios minoritários. As exógenas, por sua
vez, compreendem, como dito acima, a proteção do consumidor, do meio ambiente e a concorrência leal.
Para maior aprofundamento do tema, ver GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno.
Op. cit. loc. cit. Não Publicado.
123
Autores cit. op. cit. loc. cit. p. 17
91

princípios e cláusulas gerais que orientam o jurista na interpretação da norma, fazendo -o

buscar a tutela do vulnerável. Estes princípios, já se afirmou, são manifestações das

normas constitucionais. É o que se pode verificar no artigo 4º. do CDC e seus incisos.

Levando em consideração essa função centralizadora do CDC para a proteção do

vulnerável no mercado de consumo, bem como a pluralidade de leis existentes num

ambiente que inevitavelmente caminha para a descodificação, Cláudia Lima Marques

apresenta a sua teoria do diálogo das fontes. A autora afirma que o jurista deve fazer

com que as leis especiais, o CDC, o Código Civil e a Constituição “dialoguem” nas

demandas específicas procurando em seus textos sempre a forma mais eficaz de


124
proteção ao consumidor. Desse exercício de interpretação seria possível atender aos

princípios constitucionais e consumeristas, fazendo com que o CDC atinja seu objetivo

constitucional.

Consolidando esse entendimento, o STF, ao julgar a ADIN 319, afirma que

os princípios constitucionais da atividade econômica devem ser interpretados sempre

visando o objetivo de se preservar a digni dade humana e a promoção da justiça social.

Segundo a ementa da ADIN 319:

Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre


iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do
consumidor e da redução das desigualdades soc iais, em conformidade
com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa,
regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que e o
poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. 125

124
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. pp. 595 – 599.
125
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ementa. ADIN 319 Questão de Ordem na Ação Direta de
Responsabilidade. Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEM, Requerente;
Congresso Nacional e Presidente da República, Requeridos. Relator Min. Moreira Alves DJ 30 -04-1993
PP-07563 ement VOL-01701-01 PP-00036.
92

Toda lei infraconstitucional que vi er a promover a defesa do consumidor

será constitucional. Da mesma forma, toda lei que vier a prejudicar o consumidor,

afastando a incidência do CDC, terá sua constitucionalidade comprometida, pois não

corresponderá aos objetivos e fundamentos da República , não promoverá a eficácia

direta dos direitos fundamentais (dentre os quais a proteção do consumidor) e

significaria regresso nas conquistas jurídicas e sociais. Mesmo sendo lei especial

posterior, Cláudia Lima Marques afirma que sua aplicação deverá se a dequar às normas

e princípios pré-estabelecidos pelo CDC, sob pena de incompatibilidade com o sistema

consumerista e constitucional. Segundo ela:

Em outras palavras, uma lei especial nova não tem o condão de


afastar a incidência do CDC sobre estes determ inados contratos de
consumo. A lei especial nova regula a relação de consumo especial
no que positiva e o CDC continua a regulá -la de forma genérica e em
todos os pontos não abrangidos pela lei nova.
Repita-se, pois, que no mais das vezes, a lei especial p osterior se
integra ao espírito da lei geral anterior, ainda mais no caso em estudo,
de o CDC atuar como “lei geral de proteção dos consumidores”, uma
vez que representa ordem pública e constitucional nacional. A lei
especial nova geralmente traz normas a par das já existentes (art. 2º.
da LICC), normas diferentes, novas, mais específicas do que as
anteriores, mas compatíveis e conciliáveis com estas. Como o CDC
não regula contratos específicos, mas sim elabora normas de conduta
gerais e estabelece princípi os, raros serão os casos de
incompatibilidade. 126

Cumpre ainda afirmar que também aplicação da lei deve observar as

diretrizes traçadas pelo sistema constitucional e consumerista, pois a interpretação

meramente formal que tenha por resultado a diminuição da proteção do consumidor,

também é contrária aos ditames constitucionais. A interpretação e aplicação das normas

é que devem, acima de tudo serem organizadas de forma a garantir o objetivo central de

tutela do consumidor.

126
MARQUES, Cláudia Lima. op. cit. p. 632
93

Nesse sentido, como se verá adiante , é possível fazer uso mesmo de algumas

regras do Código Civil, no caso em questão a respeito do abuso de direito e da

responsabilidade civil, com a finalidade de manter o mercado saudável, beneficiando os

bons fornecedores e protegendo os consumidores. A respeito desse assunto, Cláudia

Lima Marques elucida:

Transpondo esta inversão da lógica para o momento atual, o ideal é


não mais perguntar somente qual o campo de aplicação do novo
Código Civil de 2002, quais seus limites, qual o campo de aplicação
do CDC e quais seus limites, mas visualizar que a relação jurídica de
consumo é civil e é especial para proteger o sujeito de direito, sujeito
de direitos fundamentais, o consumidor. Nesta ótica, ambas as leis se
aplicam à mesma relação jurídica de consumo e co laboram com a
mesma finalidade, concorrendo, dialogando, protegendo, com luzes e
eficácias diferentes, caso a caso, mas com uma mesma finalidade, a
de cumprir o mandamento constitucional. Neste sentido, não é o CDC
que limita o Código Civil, é o Código Civ il que dá base ao CDC e o
ajuda, e, se o Código Civil for mais favorável ao consumidor do que
o CDC, não será esta lei especial que limitará a aplicação da lei geral
(art. 7º. Do CDC), mas sim dialogarão à procura da realização do
mandamento constitucional de proteção especial do sujeito mais
fraco.127

A relação entre o CDC e o Código Civil é tão complementar que Gustavo

Tepedino, escrevendo sobre o tema, afirmou que o inverso também é verdadeiro. Pode -

se utilizar a lei 8078/90 para auxiliar o Código Civil t ambém:

Entretanto, mediante a aplicação direta dos princípios constitucionais


nas relações de direito privado, devemos utilizar o Código do
Consumidor, seja em contratos de adesão, mesmo quando não se
constituam em relação de consumo, seja nas circunstânc ias
contratuais em que sejam identificados, pela identidade de ratio, os
pressupostos de legitimação da intervenção legislativa em matéria de
relações de consumo, sendo os princípios constitucionais da isonomia
substancial, da dignidade da pessoa humana e da realização plena de
sua personalidade os pressupostos justificadores da incidência do
conjunto de mecanismos de defesa do consumidor nas relações
interprivadas. 128

127
Autora cit. op. cit. pp. 587 – 588.
128
TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova t eoria contratual. In: Temas de direito civil. 3.
ed. ataul. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 233.
94

Na esteira desse raciocínio, será feita adiante uma proposta sobre como

garantir a eficácia dos direitos fundamentais e dos princípios regentes na atividade

empresarial utilizando institutos do direito civil e consumerista, especialmente a

responsabilidade civil e o abuso do direito.

3.2.2 Eticidade e abuso do direito nas relações de consumo.

A eticidade nas relações privadas é um princípio que foi definitivamente

incrustado no sistema infraconstitucional com a instituição do Código de Defesa do

Consumidor. Sua manifestação se dá em várias passagens desta lei. Inicialmente, é de se

notar que o artigo 4º., III determina o seguinte:

Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por


objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhor ia da sua qualidade de vida, bem
como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos
os seguintes princípios:
(...)
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de
consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a
viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art.
170 da Constituição Federal), sempre com base na boa -fé e equilíbrio
nas relações entre consumidores e fornecedores;
(...)129

Este artigo, ao apresentar os princípios que deverão orientar as relações entre

fornecedores e consumidores, elege a boa -fé como um de seus fundamentos. Esta boa -fé

só pode ser a boa-fé objetiva, já que posteriormente, em outras passagens, o legislado r

exige do fornecedor uma conduta coerente e não apenas o animus. Essa exigência se

129
BRASIL. Lei n. 8078 de 11 de Setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 12 de setembro de 1988.
95

torna transparente quando se observa as passagens em que o Código do Consumidor

proíbe a prática do ato abusivo. Esta proibição se faz presente nos artigos 6º., IV, 28, 37,

39, 51, 60 e 67 do Código. Em todos esses casos, a lei consumerista determina um

modelo de conduta esperado do fornecedor nas práticas empresariais, na veiculação da

publicidade, na elaboração das cláusulas contratuais e na execução dos contratos.

O Código Civil de 2002, seguindo esta tendência, traz também o seu artigo

187, cujo texto afirma que aquele que, no exercício de seus direitos, exceder os limites

impostos pela boa-fé e bons costumes, pelos fins econômicos ou sociais, comete ato

ilícito. José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro afirma que os princípios da eticidade e
130
socialidade se fazem presentes no artigo citado. Há, portanto, uma íntima relação

entre a boa-fé objetiva e o abuso de direito. Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald confirmam essa afirmativa:

O verdadeiro critério do abuso do direito no campo das obrigações,


por conseguinte, parece se localizar no princípio da boa -fé, pois em
todos os atos geralmente apontados como de abuso do direito estará
presente uma violação ao dever de ag ir de acordo com os padrões de
lealdade e confiança, independentemente de qualquer propósito de
prejudicar.
Conforme a lição de Teresa Negreiros, boa -fé e abuso de direito
complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do
comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será
irregular e, nesta medida, abusivo se consubstanciar quebra de
confiança e frustração de legítimas expectativas. 131

Reforçando a tese de que a boa -fé que serve de medida para a constatação do

abuso de direito é a objetiva, encontra-se a lição de José Horácio Halfeld Rezende

Ribeiro, que comentando o ato abusivo previsto no Código Civil, afirma:

130
RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. O Abuso de Direito e a Justiça Social. In: FILOMENO,
José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coords). O
Código Civil e sua Interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 367.
131
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Parte Geral. 6. ed. atual. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 509
96

Dessa forma, concordes com a definição acima, vislumbramos como


trabalho do operador do direito a identificação dos excess os dos
limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa -fé ou pelos
bons costumes relacionado ao direito em questão. E não há dúvida
que a boa-fé mencionada no art. 187, é a objetiva, ou seja, aquela
idéia de um “modelo de conduta social, arquétipo ou standart
jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a
esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com
honestidade, lealdade, probidade”, esperada nas circunstâncias do
caso.132

O primeiro parâmetro para se constatar a oco rrência de abuso do direito é,

portanto, a observância ou não da boa -fé objetiva. Ocorre que o CDC não define o

abuso do direito e o prevê em situações específicas. Contudo, conforme já se

demonstrou acima, o Código Civil e o Código do Consumidor devem dia logar para que

a proteção do consumidor se torne real. Ou seja, ainda que o fornecedor abuse de

direitos não mencionados no CDC, o Código Civil ampliou a aplicação do instituto. A

boa-fé é exigida em todas as relações consumeristas, sem exceção. Pela mesma razão,

onde não houver boa-fé, haverá abuso.

Coerente com o entendimento exposto acima, o STJ, ao decidir o Recurso

Especial 250523/SP associa o abuso do direito à ausência de boa -fé objetiva na conduta

das instituições financeiras que se apropriam de num erário destinado ao pagamento de

salários, dizendo que “age com abuso de direito e viola a boa -fé o banco que, invocando

cláusula contratual constante do contrato de financiamento, cobra -se lançando mão do

numerário depositado pela correntista em conta des tinada ao pagamento dos salários de

seus empregados”. 133

No Código Civil, o abuso do direito está inserido no título que trata dos atos

ilícitos. Ao lado da culpa, portanto, haveria o abuso do direito como espécies do gênero

132
RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. O Abuso de Direito e a Justiça Social. In: FILOMENO,
José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coords).
Op. cit. p. 366.
133
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Ac. 4ª. T., Aero Mecânica Darma Ltda., Recorrente;
Banco Bamerindus do Brasil S/A, Recorrido. REsp 2 5052-3/SP. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr.
V.u., j. 19.10.2000, DJU 18.12.2000, p. 203.
97

atos ilícitos. Este fato leva à q uestão: será preciso verificar a existência de culpa na

prática do ato abusivo para que o mesmo seja assim reconhecido? Essa é uma questão

controvertida, já que há doutrinadores que sequer admitem o abuso de direito como ato

ilícito.

Fábio Ulhoa Coelho expõem a controvérsia afirmando que a teoria do abuso

do direito, em sua trajetória, apresenta duas formulações distintas:

De um lado, a concepção designada subjetiva, que reputa abusivo o


exercício do direito com a intenção única de provocar danos a outras
pessoas, sem proveito ao titular. Essa concepção está mais próxima
da figura do ato emulativo do direito romano. De outro, a designada
objetiva,que não se ocupa das intenções do sujeito e considera ilícito
o exercício do direito sem a observância de sua fi nalidade econômica
e social ou da moral. Na primeira corrente, os limites ao exercício do
direito são fixados pela intenção do titular, que não pode ser senão a
de satisfazer interesse legítimo; o abuso se caracteriza pela emulação,
pela vontade de prejudicar. Na segunda, são dados pela finalidade
econômica e social do direito exercido e pelos preceitos da moral;
abusa quem, ao exerce-lo, desvia sua finalidade ou desconsidera
regras éticas de convivência em sociedade. 134

Por haver ainda controvérsia em relaç ão às suas origens, a doutrina brasileira

tem debatido o tema em duas frontes. Na primeira, se o abuso de direito é ato ilícito; na

segunda, se o abuso é ato ilícito, mas caracterizado por critérios objetivos, prescindindo

da constatação de culpa.

Afirmando pela descaracterização do abuso do direito como ato ilícito,

encontra-se José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, que afirma:

A confusão do abuso do direito e do ato ilícito se deve porque suas


conseqüências são assemelhadas. Porém, se, de fato, considerar mos o
abuso do direito como ato ilícito, a redação do artigo 187 não teria

134
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, vol. 1. 2. ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 365
98

sentido, uma vez que a regra do art. 186 seria suficiente para
enquadrar todas as hipóteses. 135

O entendimento do autor acima citado se dá em razão de a doutrina atual

diferenciar o ato ilícito do abuso de direito porque este último dispensa a ocorrência de

conduta culposa por parte do agente que abusa de seu direito. Basta que o ato praticado

exceda os seus limites éticos, econômicos ou sociais. Por essa razão, o Código Civil

teria incluído o abuso de direito num gênero inadequado, porque o ato ilícito tem por

característica nuclear o comportamento culposo do sujeito. Sobre o tema, Guilherme

Calmon Nogueira da Gama afirma:

Contudo, ao definir o abuso de direito como espécie de ato il ícito, o


legislador contrariou a doutrina mais moderna do abuso do direito,
que não exige que o agente infrinja culposamente um dever
preexistente para que haja a obrigação de indenizar o dano causado.
A idéia é de ato antijurídico ou, de maneira mais espe cífica, da
nomenclatura de ato abusivo. A diferença entre o ato ilícito e o ato
abusivo vem sendo apontada na doutrina, de maneira tranqüila.
Enquanto no ato ilícito o agente viola frontal e diretamente o
comando legal que previa a conduta que deveria ser tomada, no ato
abusivo há o exercício de direito aparentemente pelo titular com
violação dos valores que justificam o reconhecimento e proteção
deste direito pelo ordenamento jurídico em vigor. 136

Apesar da confusão criada pela localização do instituto no C ódigo Civil,

muitos doutrinadores acabaram por admitir o abuso do direito como espécie de ato

ilícito que não necessita do elemento culpa para ser caracterizado. Dentre estes,

encontram-se Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho 137, Carlos Roberto

Gonçalves138 e Fábio Ulhoa Coelho. 139

135
RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. O Abuso de Direito e a Justiça Social. In: FILOMENO,
José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coords).
Op. cit. p. 358.
136
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit. p. 197
137
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. 8. ed.
rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006, p. 447.
138
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol I . 3. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2006. p. 463.
99

É de se destacar a exposição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald, que afirmam:

Conceituando-se a ilicitude como relação de contrariedade entre a


conduta humana e a norma jurídica, é possível crer que o abuso do
direito também seja um ato ilícito, pois nas hipóteses dos arts. 186 e
187 há uma atuação sem direito. Todavia, tal fato não elimina a
autonomia dogmática dos dois institutos. Percebemos que o abuso do
direito revela a contrariedade da conduta ao elemento axiológico da
norma, não obstante o comportamento do agente preencha a
morfologia do direito subjetivo que se pretende exercer. Aqui haverá
uma heteronomia na criação do direito: de um lado, o legislador
introduz os valores que não podem ser vulnerados; de outro, o
magistrado os preencherá na concretude do caso, examinando a
proporção entre o exercício do direito e a sua repercussão
teleológica. 140

O abuso do direito seria, portanto, espécie diversa de ato ilícito, porque não

necessita da verificação da culp a individual para ser caracterizado. Trata -se de conduta

moralmente imputável ao sujeito. Sua conseqüência é o prejuízo social, razão pela qual

não raras serão as vezes em que sua repercussão e gravidade se apresentarão maiores e

mais graves que aquelas de correntes do ato ilícito subjetivo.

No campo do direito consumerista, a prática abusiva fere ordem pública, nos

termos dos arts. 1º. e 4º. do CDC. Afinal, o artigo 1º. do Código do Consumidor afirma

expressamente que a lei 8078/90 é de ordem pública enquan to o art. 4º. III elege a boa -

fé objetiva como princípio que deverá reger as relações de consumo. Detectado o ato

abusivo, o juiz poderá declará -lo ex officio caso nenhuma das partes ou o Ministério

Público se manifestem a respeito. A sanção, por ausência de previsão genérica, será a

que possa equilibrar a relação e manter a ordem pública. Poderá ser a revisão de

cláusulas abusivas, a nulidade das mesmas, a veiculação de contrapropaganda nos casos

de publicidade abusiva, ou mesmo o dever de indenizar.

139
COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 364
140
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit. p. 514
100

Em relação a esta última possibilidade, há que se ressaltar que o critério para

se determinar a responsabilidade por abuso do direito no sistema consumerista será o da

responsabilidade objetiva. É de se ressaltar que se até mesmo o ato lícito pode gerar o

dever de indenizar neste sistema, mais ainda será possível condenar o sujeito a indenizar

por ocorrência de ato ilícito. A diferença para o caso é que não será discutida a culpa no

caso da responsabilidade objetiva. Entretanto, como já se demonstrou que na ocor rência

do ato abusivo a culpa também não é critério a ser considerado, nenhum impedimento

em se aplicar a responsabilidade objetiva na hipótese. Basta verificar se há nexo entre o

dano sofrido e o ato abusivo. Relevante lembrar que, para o caso, até a veri ficação da

boa-fé se dá em critérios objetivos.

Reforçando o argumento, é preciso lembrar também que, antes mesmo do

Código Civil incluir o ato abusivo no rol dos atos ilícitos, o CDC já trazia várias

hipóteses (todas elas exemplificativas, pois o CDC é le i principiológica) de abuso de

direito em seu texto, e para todas essas hipóteses a conseqüência é a responsabilidade

objetiva.

3.3 O dano decorrente do abuso do direito no ambiente de consumo: o dano social

A responsabilidade civil é o principal institu to de direito privado a ser

utilizado para garantir a eficácia dos direitos fundamentais, dos princípios

constitucionais do artigo 170 da Constituição Federal e dos objetivos do Código Civil.

Para isso, deve-se lançar mão das cláusulas gerais não só do CDC , mas também do

Código Civil, que hoje constitui também um sistema aberto por meio do qual os valores

constitucionais devem se infiltrar nas relações privadas.


101

A questão que se coloca agora é como fazer com que a responsabilidade civil

funcione como elemento que venha a garantir a boa -fé nas relações consumeristas, de

modo a proteger a dignidade humana do consumidor. Para isso, será necessário rever

alguns pressupostos já apresentados.

Já foi afirmado que no direito brasileiro atual os direitos fundamentais têm

eficácia imediata nas relações privadas, bem como ainda que não fosse esse o caso, o

sistema aberto e repleto de cláusulas gerais do Código do Consumidor somado ao

sistema de características semelhantes do Código Civil admitem perfeitamente que as

normas constitucionais atingissem as relações de consumo. Nesse sistema, que parte da

interpretação de normas constitucionais até chegar às relações consumeristas, o valor

máximo a ser protegido é a dignidade humana, e esta quando lesada, não pode ser

reconstituída. Quando a dignidade humana é atingida, o dano que daí decorre é de

natureza extrapatrimonial, também chamado de dano moral.

Assim, para protegê-la contra abusos praticados pelos detentores de poder

provado, é preciso utilizar um sistema adequado, e a indenização por dano moral parece

se encaixar bem nessa tarefa. O dano moral não se resume apenas ao sofrimento interior

experimentado pelas vítimas. O critério para conceituar o dano moral é o critério por

exclusão. É dano moral todo o dano que não seja patrimonial.

O dano moral é gênero. Pode ser que o mesmo se apresente como sofrimento

humano, mas não se pode esquecer que há vítimas de dano moral que, por uma ou outra

razão, jamais não apresentarão o sofrimento íntimo. É o caso, por exemplo, das pessoa s

jurídicas, das pessoas sem discernimento, dos nascituros ou ainda das coletividades

compostas por facções na sociedade. O dano moral tem por característica ser um dano

que não pode ser avaliado de modo preciso e exato, sendo essa a razão pela qual nos

casos de ocorrência de dano moral só é possível a compensação. Por essa razão, Sílvio
102

de Salvo Venosa afirma que “do ponto de vista estrito, o dano imaterial, isto é, não

patrimonial, é irreparável, insusceptível de avaliação pecuniária porque é

incomensurável. A condenação em dinheiro é mero lenitivo para a dor, sendo mais uma

satisfação que uma reparação”. 141

Em relação ao fornecedor, o consumidor é vulnerável nos mais variados

aspectos. Essa vulnerabilidade se manifesta não só no plano da autonomia vista no

âmbito das liberdades econômicas, mas também no âmbito das liberdades existenciais.

Isso porque hodiernamente não se pode desconsiderar a necessidade contínua de se

consumir determinados bens sem os quais não é possível viver. É o que se demonstrou

na oportunidade em que se comentou o Recurso Especial 617588, quando o Ministro

Luiz Fux chega a mencionar que, em determinados casos, o corte de energia ou de

fornecimento por inadimplência, faz recair a responsabilidade por dívida na pessoa e

não em seu patrimônio.142

Pode ser verificado também abuso e desequilíbrio na relação de consumo no

caso do Recurso Especial 234219, quando uma prestadora de seguro saúde, sem ter feito

exame clínico prévio no segurado, se recusou a prestar assistência ao mesmo alegando

doença preexistente. 143 Na ocasião, foi afirmado que a obrigação do exame prévio era

da seguradora, cabendo a ela arcar com os ônus de sua inoperância. Não se poderia

presumir a má-fé do consumidor num campo onde o mesmo é flagrantemente

vulnerável.

141
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 6. ed. – São Paulo: Atlas, 2006. p.
37.
142
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 617588/SP. Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, Recorrente; Márcio Rodrigues Vasques, Recorrido.
Relator Min. Luiz Fux. J. 27.04.2004. DJU 31.05.2004 p. 241.
143
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 234213/SP. André Bela Toth -
Espólio, Recorrente; Bradesco Seguros S/A, Recorrido. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar.
J.15.05.2001. DJU 20.08.2001 p. 471.
103

Há também o Recurso Especial 343698, onde o consumidor, tendo sofrido

um assalto e levado um tiro no tórax, foi hospitalizado 144. Por conta da internação, não

pode pagar pontualmente o plano de saúde, que imediatamente suspendeu os efeitos do

contrato de seguro-saúde. Por conta de problemas parecidos com esse, cabe lembrar

também que o STJ criou a súmula 302, que proíbe que os planos de saúde limitem os

dias de internação em seus contratos.

Todos os casos acima citados servem para exemplificar algumas hipóteses

em que o fornecedor, por meio de atos abusivos, atua em detrimento do consumidor.

Todos os casos acima ferem o princípio da boa -fé objetiva. Pois são exemplos de

atitudes contrárias à conduta esperada nos padrões éticos. A conseqüência advinda das

práticas acima citadas é sempre a mesma: lesão à dignidade humana e dano moral.

Contudo, é importante não ver esses exemplos como casos isolados. Pois é

preciso lembrar que os fornecedores atuam no mercado com diretrizes padronizadas,

sendo que, se um caso de cláusula abusi va lesa um consumidor, a probabilidade é que

muitos outros estão e estarão em situação parecida. A prática de atos abusivos e suas

conseqüências lesivas no direito consumerista têm por característica se alastrar na

sociedade espalhando seus efeitos nefasto s. É por essa razão que o CDC é norma de

ordem pública.

Se uma empresa aérea vende mais passagens que vagas disponíveis no

mesmo vôo, ela dificilmente o faz esporadicamente e em casos isolados. Da mesma

forma, se o sistema de inscrição de nomes de devedore s nos serviços de proteção ao

crédito mantido pelas empresas não funciona bem e, por isso mantém ou inclui o nome

de quem não deve em seus quadros, esse evento não atinge uma ou outra pessoa

isoladamente. Na mesma linha, sabe -se que dificilmente apenas uma instituição

144
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 343698/SP. Abdon Cardoso de
Andrade, Recorrente; Marítima Seguro s S/A, Recorrido. Relator Min. Ari Pargendler. J. 05.12.2002. DJU
24.03.2003 p. 214.
104

financeira, num caso isolado incluiria no contrato de adesão de um de seus clientes uma

cláusula que permite à ela reter o valor correspondente ao salário do mesmo para fins de

pagar um financiamento contratado entre os dois. Ainda que seja um ou outro caso

isolado que chegue às portas do poder judiciário, o jurista não pode ignorar que a

prática, por ser padronizada, tem efeitos muito maiores que os que se apresentam na

demanda específica. É preciso desestimular as práticas abusivas.

Os motivos para a ocorrência dessa prática são puramente econômicos. Os

fornecedores procuram o caminho da eficiência máxima dos recursos financeiros. Se for

mais rentável permitir que o dano se ocasione, o ato abusivo se instalará. Caberá ao

judiciário combater as razões econômicas do abuso do direito, ajustando a conduta do

empresário à sua função social e aos princípios condicionadores de sua atividade, nos

termos constitucionais.

Verifica-se na hipótese duas espécies de dano. Uma experimentada

pessoalmente pela vítima e outro, de repercussão mais social. Cada caso particular que

apresenta a prática de ato abusivo por parte do fornecedor em detrimento do consumidor

traz em si um sinal de que outros tantos estão também sendo lesados. Conforme já

mencionado, as ações dos fornecedores são padronizadas e não personalizadas. E

quanto maior e mais abrangente for a atividade do fornecedor, maior ainda será a

padronização de suas atividades.

Nesse ponto, cabe ao direito influenciar nos acontecimentos econômicos e

sociais lançando mão das normas do ordenamento jurídico, com o escopo de proteger os

direitos fundamentais nas relações de consumo. Para essa outra face do dano moral, cuja

dimensão se dá em caráter mais social e solidário, adotar -se-á a nomenclatura criada por

Antônio Junqueira de Azevedo: o dano social. 145 Esta categoria de dano, quando

145
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme da Co sta; GONÇALVES,
105

configurada, cria a necessidade de se atribuir à indenização uma parcela extra de valor

monetário, cunhada no efeito punitivo e preventivo da indenização.

3.3.1 O Efeito Punitivo da indenização por dano social.

O efeito punitivo da indenização por dano social logo remete sua análise à

questão da pena privada. Já foi dito neste trabalho que não se deve admitir como regra

que a indenização tenha efeito punitivo, pois devido às novas t endências da

responsabilidade civil, que paulatinamente vem se socializando, cada vez mais a

conduta dos sujeitos tem menor relevância. Dá -se um maior destaque ao evento danoso

e sua vítima.

Hodiernamente, tem-se notado uma necessidade de se retomar o deba te a

respeito da pena privada, haja vista que, nos casos de dano social, o instrumento

meramente ressarcitório tem se mostrado ineficaz.

Antônio Junqueira de Azevedo disserta sobre as penas privadas, lembrando o

leitor de que “não é verdade que o direito c ivil não puna”. 146 Em seguida, lembra de

alguns exemplos, como o do herdeiro que sonega bens da herança (art. 1992 do CC),

cuja penalidade corresponde à perda dos direitos que tinha sobre eles. Já Gustavo

Tepedino e Anderson Schreiber, mencionam que, apesar da norma constitucional e do

Código Civil serem omissos quanto à possibilidade de se atribuir um efeito punitivo às

indenizações por dano moral, outras leis mais antigas como a de telecomunicações

(4117/62) e a lei de imprensa (5250/67), empregam quatro cr itérios no arbitramento do

dano moral, que são “(i) a gravidade do dano; (ii) o grau de culpa do ofensor; (iii) a

Renato Afonso (coords). O Código Civil e sua Interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
370.
146
Autor cit. op.cit. p. 372-373.
106

147
capacidade econômica da vítima; (iv) a capacidade econômica do ofensor.” De todos

os critérios mencionados, apenas um não tem caráter punitiv o. Mesmo assim, os

autores, em seu artigo, deixam claro que a melhor doutrina deve considerar como base

para a fixação da indenização as condições pessoais da vítima, desconsiderando tais

aspectos punitivos.

Pela restituição dos efeitos punitivos ao dano m oral, Ricardo Luis Lorenzetti

afirma que:

O criticável na tese punitiva dentro desta matéria foi que pretendia


ser excludente com relação a uma finalidade reparatória, e restritiva,
ao permitir somente alguns casos específicos de ressarcimento.
Consolidada a tese ressarcitória, revaloriza -se progressivamente a
possibilidade de utilizar a indenização como pena, recorrendo -se à
tese anglo-saxônica do dano punitivo. 148

O fato é que os problemas relativos à sociedade moderna, em especial na

área consumerista, faz com que a sociedade exija do Direito uma solução adequada e,

nesse sentido, o Direito e seus jurisconsultos devem se adaptar. Elucidando ainda mais a

questão, surge o comentário de Judith Martins -Costa:

Quando, no Direito, certo instituto é refuncional izado para atender a


novas necessidades ou a circunstâncias que, mesmo existentes, não
eram consideradas dignas de tutela, é preciso que a doutrina não se
aferre a dogmas que bem vestiam tão -só a função antiga, restando a
na nova, como roupas mal cortadas, em massa produzidas. É
precisamente o que ocorre com a insistência de atribuir -se à
responsabilidade civil, como se integrasse à sua própria natureza, um
caráter estritamente reparatório, sem nenhum elemento de punição ou
de exemplaridade. 149

147
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In:
SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio. Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor
Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 520
148
LORENZETTI, Ricardo Luis. op. cit. p. 458
149
MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa e a Natureza da sua Reparação. In: a reconstrução do
Direito Privado. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 440.
107

Antônio Junqueira de Azevedo, ao dissertar sobre o dano social, menciona

que o direito civil possui penas implícitas e explícitas 150. As explícitas, previstas em lei,

podem ser encontradas em passagens como o artigo 940, que determina que o credor

que demanda por dívida já paga será obrigado a restituir o devedor no valor dobrado ao

que houver sido cobrado. Aliás, essa é uma determinação que encontra correspondente

no CDC, que no parágrafo único do artigo 42 determina a mesma sanção ao fornecedor

que cobrar quantia indevida do consumidor.

Há também as penas civis implícitas, que nos dizeres daquele autor, “são tão

comuns na vida civil, que o caráter penal de certas disposições passam despercebido.”

Segundo ele:

O devedor em mora responde não apenas pelas conseqüências des sa


situação (perdas e danos) mas também arca com eventual
impossibilidade da prestação resultante de caso fortuito ou força
maior (perpetuatio obligationis – há pois, agravamento da situação
resultante da mora, que é ilícito contratual, art. 339). Situação
semelhante se encontra no art. 667 e seu § 1º., quando o procurador
substabelece seus poderes, apesar da proibição do mandante. Não
prosseguiremos com os exemplos para não cansar o leitor. A pena no
direito civil, como se percebe dos casos citados, não e xige a
tipicidade própria do direito penal. 151

No direito privado, as determinações oriundas das cláusulas gerais podem

resultar em espécie de pena também. É o que ocorre no caso em análise, quando se tem

em pauta a relação entre abuso do direito e respons abilidade civil nas relações de

consumo. Importante ainda afirmar que, mesmo Maria Celina Bodin de Moraes, uma

das maiores defensoras da inaplicabilidade dos danos punitivos no direito brasileiro, faz

ressalvas em relação a essa diretriz justamente quando analisa o caso que aqui se expõe:

150
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme d a Costa; GONÇALVES,
Renato Afonso (coords). op. cit. p. 372-373.
151
Autor cit. op. cit. p. 373
108

É de admitir-se, pois, como exceção, uma figura semelhante à do


dano punitivo, em sua função de exemplaridade, quando for
imperioso dar uma resposta à sociedade, isto é, à consciência social,
tratando-se, por exemplo, de conduta particularmente ultrajante, ou
insultuosa, em relação à consciência coletiva, ou ainda, quando se der
o caso, não incomum, de prática danosa reiterada. Requer -se a
manifestação do legislador tanto para delinear as estremas do
instituto, quanto para estabelecer as garantias processuais respectivas,
necessárias sempre que se trate de juízo de punição.
É de aceitar-se, ainda, um caráter punitivo na reparação de dano
moral para situações potencialmente causadoras de lesões a um
grande número de pessoas, como ocorre nos direitos difusos, tanto na
relação de consumo quanto no Direito Ambiental. Aqui, a ratio será a
função preventivo-precautória, que o caráter punitivo inegavelmente
detém, em relação às dimensões do universo a ser protegido. 152

Atualmente, apesar da importância de se prever um aspecto punitivo para a

indenização por dano moral, infelizmente o legislador tem -se mostrado resistente à

necessidade social da aplicação dos punitive damages. É o que se pode observar através

do insucesso do projeto a presentado pelo deputado Ricardo Fiúza, quando, segundo

narra Bruno Bartholo, se pretendeu acrescentar um novo parágrafo ao artigo 944 do

Código Civil, que determinava que “a reparação do dano moral deve constituir -se em

compensação ao lesado e adequado de sestímulo ao lesante”. 153 Infelizmente, o projeto

de lei 6.960/2002 não vingou. Apesar dos argumentos cont rários à sua aprovação,

dentre os quais se diz que o juiz passaria ter um poder desproporcional em mãos, a

aprovação da lei daria fim à celeuma. Ademais , conforme lembra Vítor Morais de

Andrade, citando Osny Claro, “diante da multiplicidade e complexidade das relações

estabelecidas no convívio social, é impossível enumerar, previamente, todas as condutas

omissivas ou comissivas revestidas de potencial a g erar algum dano moral e

correspondente obrigação de indenizar” 154. É de se notar que poder judiciário está

152
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit. p. 263
153
BARTHOLO, Bruno. Caráter Punitivo do Dano Moral. 2006. 99f. Monografia (Graduação em
Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 45
154
ANDRADE, Vítor Morais de. A condenação por dano moral e sua função de desestímulo. In: NERY,
Rosa Maria de Andrade (coord.). função do direito privado no atual momento histórico. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006. p. 82.
109

perfeitamente equipado de pessoas e estrutura capacitadas para aplicar a indenização

punitiva. Para os casos desviantes, há o duplo grau de jurisdição.

Nas relações de consumo, o aspecto punitivo do dano social é fundamental.

Conforme já afirmado, o motivo que movimenta alguns fornecedores à prática do ato

abusivo que enseja o dano social é econômico. Enquanto o custo das conseqüências das

práticas abusivas for menor que o custo de providências que tenham por objetivo sanar a

estrutura que dá origem ao dano social, o problema persistirá. Pode -se dizer que o

raciocínio gira em torno de opções econômicas em busca do menor custo. O que é mais

barato: manter o nome de alguns consumidores indevidamente nos cadastros de

proteção ao crédito, ou gastar com um serviço de controle de registro eficiente? Praticar

overbooking e pagar algumas poucas indenizações ou deixar de lucrar com essas vendas

e gastar com um controle eficiente de número de passagens vendidas? Suspender o

plano de saúde quando os dias de internação ultrapassarem o permitido na cláusula

abusiva do contrato ou manter o segurado dentro do plano pelo tempo necessário?

Cobrar as dívidas do fornecimento de energia elétrica de forma humana e adequada ou

ameaçar o bem estar e a saúde do consumidor? Executar um contrato de financiamento

ou descontar os valores a ele referentes do salário do servidor em conta -corrente?

Dificultar o encerramento de uma linha d e telefone, internet ou serviço de cartão de

crédito obrigando o consumidor a manter o serviço ou gastar com postos de

atendimento personalizados para que as pessoas possam exercer sua autonomia privada?

Em todos esses casos, a opção pelo dano causado aos consumidores tem se

mostrado mais lucrativas, basta observar a freqüência com que elas se apresentam no

poder judiciário e mesmo a quantidade de reclamações padronizadas existentes no

Procon. Tudo isso tem apenas e somente uma razão: do ponto de vista econ ômico, vale

a pena pagar pelas indenizações.


110

Em geral as situações acima demonstradas geram indenizações baixas perto

do custo de se manter um serviço adequado e respeitoso à dignidade humana. Cabe ao

poder judiciário não analisar cada caso apenas em seu u niverso particular, mas enxergá -

lo como uma pequena amostra de um todo muito mais abrangente. É preciso considerar

que a maioria dos consumidores sequer vai ao poder judiciário, pelas mais diversas

razões.

O poder judiciário não poderá ignorar a existência do problema econômico

social. É preciso garantir a eficácia da proteção ao consumidor, ainda que muitos deles

não procurem o poder judiciário. Na maioria dos casos, uma decisão já influencia o

mercado. É dever do poder judiciário, enquanto órgão estatal, promover também a

defesa do consumidor, nos termos do artigo 5º., XXXII. Como já se disse, e não custa

lembrar, essa é uma questão de ordem pública. O mercado de consumo deve ser

fundado na boa-fé objetiva e não no proveito econômico extraído de atos abusi vos.

Deve-se, por meio da indenização punitiva conduzir o autor do dano social a adequar -se

aos preceitos constitucionais do artigo 170, sob pena de, em última instância, ser

retirado do mercado.

Há regras claras e objetivas para se exercer atividade empre sarial no

mercado de consumo. Regras de ordem constitucional e regras derivadas da

constituição, presentes no CDC. Este, por sua vez, procura a manutenção de um

mercado saudável, livre de práticas abusivas.

Não é possível ignorar que o empresário, enquanto agente econômico, leve

em conta o custo do Direito em suas atividades. Por isso mesmo, este mesmo Direito é

que deve influenciar a atividade empresarial, nem que seja demonstrando seu peso

econômico. Em matéria de relação de consumo, não se pode fechar os olhos para o fato
111

de que a sanção mais adequada neste sistema é a civil, já que pessoas jurídicas não têm

muito que temer do Direito Penal.

Importante notar que a indenização nos casos de dano social não tem

também outra razão de ser além seu efeito punit ivo e desestimulador. Afinal, como já

afirmado no capítulo II, a dignidade não tem preço, razão pela qual é simplesmente

impossível medir a extensão do dano causado à vítima. Menor ainda é a possibilidade

de se medir em termos exatos a extensão do dano em sua repercussão social e

econômica. O que se faz preciso é interromper a prática que dá origem às lesões. Caso

contrário, o Direito estaria imputando preço aos direitos fundamentais.

Quanto aos aspectos técnicos, a ausência de previsão legal expressa para a

aplicação da função desestímulo não impede sua utilização. É preciso lembrar das lições

de Canotilho, citado supra, que afirma que, tendo em vista a aplicação direta dos

direitos fundamentais, os mesmos deverão se manifestar nas relações privadas de três

formas. Ou eles chegam por meio de cláusulas gerais, ou chegam diretamente por meio

das lacunas legais, ou se farão presentes mesmo que a interpretação formal lei

infraconstitucional os impeça. Nessa última hipótese, deve -se interpretar a lei

teleologicamente dando preferência às normas constitucionais.

Também é de se lembrar a já citada teoria crítica do Direito de Fachin, que

exige que se ponha o sujeito de direito acima das formalidades abstratas da lei. O sujeito

e sua dignidade devem prevalecer sobre a tipificação da relação jurídica codificada. No

caso do dano social, o que existe não é a proibição em lei, mas uma lacuna, tendo em

vista que nenhuma norma proíbe expressamente sua aplicação. Ao contrário o STJ , nos

Recursos especiais 245727/SE 155 e 578682/SC156, cujos relatores são, respectivamente,

155
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 245727/SE. Banco Bandeirantes
S/A, Recorrente; Márcio Mello Casado e outros, Recorridos. Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira.
J. 28.03.2000. DJU 05.06.2 000 p. 174.
112

o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira e o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito

já mencionam como critério para fixação do quantum devido nas indenizações por

inscrição indevida no SPC e SERASA e devolução indevida de cheques a busca de um

valor que venha também a “desestimular o ofensor a repetir o ato”. Sem dúvida é um

caso, ainda que embrionário, de indenização por danos sociais.

Ademais, a indenização punitiva por dano social adequa -se perfeitamente ao

sistema da responsabilidade objetiva, tomada como regra no Código do Consumidor.

Todos os critérios são objetivos. O abuso do direito é constatado objetivamente pelo

desvio de finalidade dos atos praticados, sendo que no caso da atividade empresarial, as

finalidades dos atos negociais devem estar sintonizados com a função social da

empresa. Qualquer prática que fuja da finalidade constitucional será abusiva. Ou seja,

não interessa o animus do empresário, mas o resultado de suas ações. Também o critério

utilizado para identificar o dano social é, por isso, objetivo. O dano moral, gênero do

dano social, ocorre sempre que há uma lesão à dignidade humana. Há então uma

presunção de que a prática abusiva tem proporções muito maiores daquelas que se

apresentam às portas do judiciário, e é dever dele também preocupar -se se a decisão

proferida nestas situações tem o impacto necessário não só para reparar o consumidor

demandante, mas também se a decisão será útil para coibir abusos contra os

fundamentos da República e d a ordem econômica.

O critério para estipular a penalidade é também dotado de razoabilidade e

advém da cuidadosa observação do poderio econômico, social, informativo e político do

fornecedor. O valor do desestímulo não deve ser fixado tendo em vista a má -fé do

fornecedor, mas sim a abrangência do ato abusivo no mercado, contrastando -o com o

poder econômico do ofensor. Este método não fere a isonomia constitucional, porque

156
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Recurso Especial n. 578682/SC. Banco do estado de
Santa Catarina S/A - BESC, Recorrente; José Everaldo Silva, Recorrido. Relator Min. Carlo Alberto
Menezes Direito. J. 29.06.2004. DJU 11.10.2004 p . 319.
113

promove a proporcionalidade, atacando o problema em sua origem. Deve -se considerar

que a motivação do fornecedor é econômica e somente uma contrapartida econômica

terá o condão de corrigir o comportamento empresarial desviante.

Mesmo a conseqüência do dano social por práticas abusivas do fornecedor

tem conseqüências nefastamente objetivas: o enriquecimento sem causa. Nestes termos,

o artigo 884 do Código Civil determina que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer

à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização

dos valores monetários.” O artigo fo i elaborado sob matrizes individuais, mas nem por

isso será impossível vislumbrar sua aplicação nos casos de danos sociais, afinal a

atividade empresarial que foge aos ditames da função social da empresa gera

exatamente o enriquecimento sem justa causa. Co ntudo, como calcular o valor que foi

indevidamente auferido? Provavelmente é um cálculo impossível de se fazer. Duas

razões, então, para se estipular a indenização por dano social: impeder o enriquecimento

sem causa e a lesão aos direitos fundamentais.

3.3.2 A destinação dos valores correspondentes à indenização por dano social

Por fim, cumpre enfrentar uma última questão: em favor de quem serão

devidos os valores referentes à condenação por dano social? Maria Celina Bodin de

Moraes, preocupada com a poss ibilidade de enriquecimento sem causa do consumidor,

afirma que:

Nesses casos, porém, o instituto não pode se equiparar ao dano


punitivo como hoje é conhecido, porque o valor a maior da
indenização, a ser pago “punitivamente”, não deverá ser destinando
ao autor da ação, mas, coerentemente com nosso sistema, e em
obediência às previsões da Lei 7.347/85, servirá a beneficiar um
114

número maior de pessoas, através do depósito das condenações em


fundos já especificados. (...) 157

No mesmo sentido, Vítor Morais de A ndrade afirma:

Portanto, parece-nos que destinar todo o numerário de uma


condenação por danos morais, em que se tenha considerado para a
fixação do quantum uma compensação pelo abalo moral e um efeito
desestimulante ao ofensor, daria ao lesado quantia sup erior àquela
que teria direito, já que, além de ter recebido a compensação pela dor
sofrida, receberia um plus, cujo fundamento é o desestímulo, e o
beneficiário, neste caso, não é mais o lesado, mas todos os indivíduos
de uma dada sociedade.
(...)
Parece-me que neste caso a destinação deveria ser feita a um fundo
que beneficiasse toda a população, tal como aquele criado pela Lei
7.347/1985 – Lei de Ação Civil Pública – Fundo de Direitos Difusos,
que recebe valores advindos de custas e condenações judiciais ou
administrativas, além de doações e rendimentos do próprio fundo,
destinados a Instituições Governamentais da administração direta ou
indireta, Organizações Não -Governamentais, brasileiras sem fins
lucrativos, que tenham nos seus estatutos objetivos rel acionados à
atuação no campo do meio ambiente, do consumidor, de bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e
demais interesses difusos e coletivos. 158

O posicionamento de ambos é bem razoável, contudo parece ser o pare cer de

Antônio Junqueira de Azevedo o mais adequado. Sobre o tema o autor afirma:

Todavia, ainda que não sejamos grandes admiradores da cultura


jurídica norte americana, pensamos que a indenização por dano social
deva ser entregue à própria vítima, que fo i parte do processo, eis que,
para a obtenção da indenização, foi ela quem de fato trabalhou. O
operário faz jus ao seu salário. Os danos sociais, em teses, poderiam
ir para um fundo como ressarcimento à sociedade, mas aí deveria ser
por ação dos órgão da sociedade, como o Ministério Público. As
condições concretas que vivemos não são, porém, favoráveis a
criação de mais deveres para o Estado. É irrealismo; o Ministério
Público já tem trabalho suficiente. Aqui, no caso, estamos, pois,
entendendo que o parti cular, na sua ação individual de
responsabilidade civil, age também como defensor da sociedade.
Exerce um múnus público que alguns autores americanos, a respeito
da mesma situação dos “punitive damages”, denominam de “private

157
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit. p. 263
158
ANDRADE, Vítor Morais de. A condenação por dano moral e sua função de desestímulo. In: NERY,
Rosa Maria de Andrade (coord.). op.cit. p. 85-87.
115

attorney general”. O autor, ví tima, que move a ação, age também


como um “promotor público privado” e, por isso, merece a
recompensa. Embora esse ponto não seja facilmente aceito no quadro
da mentalidade jurídica brasileira, parece -nos que é preciso
recompensar, e estimular, aquele que, embora por interesse próprio,
age em benefício da sociedade. Trata -se de incentivo para um
aperfeiçoamento geral. 159

Esta parece ser a opção mais ajustada. Apesar de polêmica, é mesmo

necessário levar em consideração que o particular, nos casos de dano soc ial, faz as vezes

do Ministério Público, auxiliando -o em suas funções. Contudo nem por isso o

tratamento jurídico pode ser o mesmo. A lei da ação civil pública tem em vista valores

advindos de ações cujos promotores são sujeitos que têm por função social, a defesa dos

interesses difusos. O particular não tem essa função.

Já é assente no ordenamento jurídico brasileiro que um particular não é

obrigado a suportar os benefícios da sociedade sobre suas costas. Sempre há uma

contrapartida. Haja vista o que ocorr e nos casos de indenização por ação estatal. Se um

indivíduo perder a vista panorâmica que valorizava seu apartamento devido ao fato de o

Estado ter construído um prédio público na frente de sua janela, o mesmo fará jus a

indenização. A responsabilidade ci vil do Estado neste caso se dá porque o apartamento

foi desvalorizado e a coletividade beneficiada. Neste sentido, o particular é indenizado,

porque os benefícios gerados para a coletividade deu a ele prejuízos.

Da mesma forma, aquele que se dá ao trabalho de agir onde o Ministério

Público teria o dever de fazê -lo, deve ser recompensado. Essa diretriz constitui uma

sanção positiva e estimula a cidadania do consumidor, que ficará mais alerta na defesa

de seus direitos. E antes que se diga que tal diretriz po deria gerar enriquecimento sem

159
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES,
Renato Afonso (coords). op. cit. p. 377
116

causa, banalização do dano moral ou excesso de demanda no poder judiciário, será aqui

demonstrado que o temor não procede por razões relativamente simples.

Não há enriquecimento sem causa porque o autor da ação trabalhou e ga stou

para fazer jus à recompensa. Se o raciocínio que argumenta o enriquecimento sem causa

prevalecer, então será necessário rever também o salário dos representantes do


160
Ministério Público, cujos profissionais atuam pela mesma motivação do particular.

Também não haveria banalização do dano moral, porque o poder judiciário

conta com os mais capacitados magistrados para identificar as hipóteses de dano social.

Com o tempo a jurisprudência fixará os parâmetros de sua configuração e os pedidos

desarrazoados diminuiriam, em que pese sua extinção ser impossível.

Também o tempo e a jurisprudência cuidariam do problema do excesso de

demanda, pois o dano social tem por objetivo exatamente cortar o mal pela raiz. O que

se tem visto atualmente (basta ver os exemplo de jurisprudência e hipóteses citadas

acima) é o aumento cada vez maior das demandas por abuso do direito por parte dos

fornecedores. Tal fato é sinal claro de que o sistema que desconsidera a função punitiva

do dano moral é ineficaz no aspect econômico e juridíco. O escopo do instituto da

indenização punitiva por dano social é desestimular o agente do dano pela via da

punição e seus concorrentes, pela via do exemplo positivo, a não praticarem atos

abusivos. Em médio e longo prazo o valor de desestímulo inve rteria a lógica atual e

seria mais lucrativo ajustar a conduta empresarial à função social da empresa. Com isso

os casos de indenização punitiva pela prática de ato abusivo diminuiriam. Ademais,

com a remuneração devida, todos os consumidores tornar -se-iam potenciais fiscais do

160
Não se quer dizer com isso que o Ministério Público não tenha função social, mas t ambém não se pode
ignorar que o salário e estabilidade do cargo tem atraído os melhores profissionais da área jurídica para a
função. O mesmo ocorreria no âmbito das demandas privadas cujas conseqüências sociais são de grande
repercussão.
117

equilíbrio nas relações de consumo, facilitando o trabalho de órgãos como o PROCON

e Ministério Público.

Caberá ao poder judiciário, por meio suas sentenças determinativas,

preencher o conteúdo das cláusulas gerais e das lacunas exis tentes no direito privado

com o peso das normas e princípios fundamentais para que se efetive a função social da

empresa, a eticidade, o equilíbrio das relações consumeristas e, principalmente a

dignidade humana dos consumidores. E para tanto, será necessá rio lançar mão da

indenização punitiva por dano social como sanção para o comportamento empresarial

desviante das finalidades constitucionais.


118

CONCLUSÃO

O Direito na sociedade pós -moderna passa por transformações estruturais .

Essas mudanças alteram o modo de se produzir e de se interpretar o sistema jurídico. A

sociedade atual tem necessidades diferentes de outrora. Num mundo onde a

globalização e o avanço das telecomunicações diminui a distância entre as pessoas,

grupos sociais organizam-se tendo em vista seus pontos em comum e reivindicam

direitos. Essa situação dá um novo peso à necessidade de inclusão social e de

solidariedade na sociedade civil.

Devido a essas mudanças, o Direito procura adaptar -se revendo suas técnicas

legislativas. Os microssistemas aparecem como uma das opções de que o legislador

lança mão para tentar fazer com que o Direito acompanhe a realidade social, para que

não se torne obsoleto. Também a Constituição da República passa a ter um papel

relevante e centralizador dos princípios orientadores a reger os microssistemas,

irradiando suas diretrizes seja no direito público ou no direito privado.

Essa dicotomia, ressalte-se, passa a não fazer muito sentido numa sociedade

onde os direitos fundamentais, outro ra incidentes apenas nas relações entre Estado e

cidadãos, fazem-se presentes também nas relações privadas. A dignidade da pessoa

humana e seus desdobramentos são aplicáveis diretamente em toda sorte de relações

jurídicas na sociedade brasileira, sejam ela s públicas ou privadas. O que difere são os

modelos. O modelo de incidência dos direitos fundamentais no direito privado é

diferente daquele utilizado no direito público porque nas relações privadas este conjunto

de direitos deve dividir espaço com a auton omia privada.

A dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade, a solidariedade e

outros valores e princípios constitucionais passam a influenciar as relações privadas de


119

duas formas. A primeira é a aplicação direta e imediata dos direitos fundamenta is, que

ocorre independentemente de previsão legal infraconstitucional. Nessa modalidade de

incidência, caberá ao poder judiciário analisar o caso concreto e decidir em que grau os

direitos fundamentais dividirão espaço com a autonomia privada.

Já na segunda forma, o legislador passa a ter também um papel importante e

prévio na aplicação daqueles direitos. Isso porque é o legislativo que, ao elaborar as leis,

criará nos diplomas legais normas com conceito aberto, abstrato, de interpretação ampla

que recebem o nome de cláusulas gerais. Através do exercício de interpretação dos

conceitos abertos contidos nas normas, o juiz aplicará então os direitos fundamentais.

No Brasil, adota-se a primeira metodologia. Os direitos fundamentais têm

aplicação imediata. Mesmo assim, existem várias leis no ordenamento jurídico,

incluindo-se aí o Código Civil, que trazem cláusulas gerais, facilitando ainda mais a

interpretação que favorece a dignidade humana.

Ao dividir espaço com os direitos fundamentais, questiona -se qual seria o

destino da autonomia privada. Daí decorre que a aplicação dos direitos fundamentais

depende do grau de vulnerabilidade e autonomia da vontade das partes envolvidas nas

relações privadas. Quanto mais vulnerável uma das partes, maior deverá ser a incidên cia

desses direitos nas relações privadas.

No caso em questão, um grupo de sujeitos de direito privado faz -se notar: os

consumidores. Vulnerabilidade, hipossuficiência são as principais características desse

grupo social. Nas relações consumeristas, o forn ecedor impõe suas condições

contratuais, seus produtos e serviços e o modo de apresentação das informações sobre

os mesmos. Ao consumidor, resta adquirir o produto ou serviço. Raríssimas são as

situações em que a expressão da vontade individual do consumid or faz diferença na


120

apresentação, oferta, celebração, execução, conclusão e conseqüências posteriores do

negócio jurídico.

Essa situação de vulnerabilidade justifica completamente a aplicação direta

dos direitos fundamentais, também presentes nos artigos d o Código de Defesa do

Consumidor e suas cláusulas gerais. Nas relações de consumo, além da incidência da

dignidade humana, chamam a atenção também a proteção do consumidor como direito

fundamental presente no artigo 5º., XXXII e a defesa do consumidor como princípio da

atividade empresarial, presente no artigo 170, V.

Pelas razões acima, o fornecedor, enquanto empresário, tem sua atividade

vinculada aos preceitos constitucionais do artigo 170 da Constituição da República.

Trata-se da função social da empres a, que tem deveres constitucionais e objetivos legais

a serem atendidos. Vale dizer, a livre iniciativa é condicionada a certos preceitos

constitucionais. Contudo, resta saber qual a conseqüência para o fornecedor que

desrespeitar as determinações constitu cionais e deixar de cumprir a função social da

empresa.

O fornecedor que abusar de seu poder privado para assumir práticas lesivas

no mercado de consumo deve ser desencorajado a repetir seu ato. Deve sentir as

conseqüências da prática do seu ato. Para isso , é preciso desenvolver e aplicar a figura

do dano social.

Ao adotar práticas fundadas em atos abusivos, o fornecedor lesa todo um

grupo de consumidores, mas nem todos chegam individualmente ao poder judiciário.

Também não são raras as vezes em que os órgã os responsáveis pelo interesses difusos e

coletivos ficam inertes ou por excesso de trabalho ou mesmo porque o problema não

chega até os mesmos.


121

Essas práticas têm reflexos extrapatrimoniais que normalmente atingem o

consumidor em sua dignidade, liberdade e outros direitos fundamentais e este dano é

normalmente objeto de debate em ações de reparação por danos morais. A atual

doutrina sobre danos morais é resistente à idéia de atribuir à reparação uma função

punitiva, a ser calculada tendo por base a culpa e o poder econômico do ofensor. A

respeito desse teor punitivo da indenização, o CDC silencia -se e o Código Civil

também, sendo que este último admite a análise da culpabilidade do ofensor como

elemento capaz de diminuir o valor indenizatório.

Tem-se assim uma lacuna na lei contrapondo -se à necessidade de aplicação

imediata dos direitos fundamentais e sua proteção jurídica. A ausência de sanção às

práticas abusivas gera no mercado um efeito de exemplo negativo, onde o fornecedor

passa a cogitar que, economic amente, vale a pena transgredir a norma. Lucra -se mais

assim. Por essa razão, cabe ao Estado intervir nas relações privadas para assegurar o

cumprimento dos direitos fundamentais.

Tal intervenção só é possível pela via da reparação com caráter punitivo. O

dano social é o reflexo que se apresenta em cada demanda consumerista. É uma espécie

do gênero dano moral. Para cada consumidor que reclama no poder judiciário, existem

outros tantos lesados que sequer chegam ao serviço de atendimento ao consumidor,

quem dirá mover um processo contra o fornecedor. O mau fornecedor, por sua vez,

sabendo disso, abusa de suas práticas em detrimento do consumidor. Ocorre que ao

condenar o fornecedor em valores irrisórios (tendo em vista o poder econômico dos

mesmos), o poder judiciário não desestimula a prática abusiva, consequentemente não

resolve o problema econômico -social, e cai em descrédito junto à sociedade. Já o

fornecedor, como não interrompe a prática abusiva, enriquece a cada fração de tempo

em que mantém a sua condut a. Pior: enriquece sem causa.


122

Deve-se utilizar a responsabilidade civil para adequar o comportamento do

fornecedor, impedir o ato abusivo e o enriquecimento sem causa, garantindo assim que

os preceitos constitucionais e infraconstitucionais sejam respeitad os. Para isso, o jurista

poderá utilizar os critérios da responsabilidade objetiva, do ato abusivo e o valor de

desestímulo na fixação da indenização. Ressalte -se: todos os elementos apresentados

têm critérios objetivos de interpretação, dispensando -se a análise da conduta culposa do

fornecedor, já que a regra geral de responsabilidade no CDC é a da responsabilidade

objetiva.

Por fim, resta dizer que o valor da parcela punitiva da indenização deverá

permanecer com a vítima da ação individual, já que este, a pesar de ter atuado em nome

próprio, beneficiará toda a sociedade de consumo. Ressalte -se ainda que este valor

estimulará a vigilância dos demais consumidores e o poder judiciário, ao condenar o

mau fornecedor em valores punitivos, diminuirá o número de aç ões cujo objeto é a

demanda por danos morais nas relações de consumo.


123

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128

DISSERTAÇÃO APRESENTA DA AO MESTRADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO

RIO DE JANEIRO , E APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA P ELOS SEGUINTES

PROFESSORES :

PROF. DR. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA


UNIVERSIDADE GAMA FILHO - UGF
(ORIENTADOR )

PROF. DR. RICARDO CESAR PEREIRA LIRA


UNIVERSIDADE GAMA FILHO - UGF

PROF. DR. PATRÍCIA RIBEIRO SERRA VIEIRA


UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES - UCAM

Rio de Janeiro, 04 de outubro de 2007

Prof. Dr. JOSÉ RIBAS VIEIRA


Coordenador do Programa de Pós -graduação em Direito

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