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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT
Introdução
A técnica é tão antiga quanto a humanidade. Para alguns antropólogos, o que
distinguiria os restos fossilizados de um homem em comparação com os de um hominídeo,
seria a presença, junto ao primeiro, de instrumentos por ele fabricados. Os seres humanos
sempre procuraram fabricar ferramentas e máquinas para melhorar suas condições de vida e
para serem eficazes em seu trabalho. Esses utensílios lhes permitiam realizar coisas que não
poderiam fazer apenas com o uso das mãos, ganhando tempo e reduzindo o sofrimento e a
fadiga do trabalho braçal.
Homo sapiens e homo faber seriam, portanto, dois aspectos da realidade humana.
Quando se refere ao homo sapiens, enfatiza-se a capacidade humana de conhecer a realidade,
de ter consciência do mundo que o cerca e de si mesmo. Já a denominação homo faber remete
à habilidade humana de fabricar artefatos e utensílios, através dos quais interage com a
natureza e a transforma.
Basta um olhar de superfície sobre a história, para notar que, durante séculos – e, por
que não dizer milênios – a técnica só foi empregada para ajudar os seres humanos em seus
trabalhos manuais e atividades físicas. Por muito tempo, ela se limitou a procedimentos
mecânicos que requeriam a intervenção direta das pessoas e não interferiam de forma tão
intensa na vida humana. Era uma fase em que o contato com a natureza era mais constante e
menos agressivo, permitindo ao ser humano um aprendizado mais direto com o meio natural.
A função primordial da técnica era tornar mais amena a sobrevivência, através da
transformação da natureza.
A partir do século XVI, porém, a técnica fez-se cada vez mais presente na vida das
pessoas, passando a constituir o coração das sociedades modernas. Tornou-se indispensável.
A invenção da tipografia de tipos móveis por Gutenberg, por volta de 1455, que fez com que a
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Centro Universitário Internacional – UNINTER. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR.
Centro Universitário Internacional – UNINTER. Doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela UFSC.
Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
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As técnicas primitivas
As origens mais remotas da técnica talvez se encontrem no temor que o ser humano
sentia diante das tempestades e do medo despertado pelos animais ferozes que o ameaçavam.
Sendo o animal mais indefeso da criação, necessitou buscar mais poder para enfrentar o
poderio maior das forças naturais. Aos poucos, as soluções mágicas e místicas e os rituais
religiosos foram sendo substituídos por conhecimentos e habilidades utilizadas na busca do
seu poder sobre a natureza.
A técnica primitiva permitiu que os seres humanos criassem as ferramentas e os
instrumentos necessários para intervir na natureza, transformando-a em seu benefício. No seu
estado inicial, o utensílio funcionava como um prolongamento do corpo humano: o martelo
aumentando a potência do braço, e o arado funcionando como uma poderosa mão capaz de
escavar o solo. Dessa forma, enquanto os demais seres vivos se adaptavam às condições
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oferecidas pela natureza, os humanos, embora necessitassem também dessa adaptação, foram
conseguindo com que ela se moldasse ao seu modo de vida.
Assim, para a sobrevivência humana, foi importante o desenvolvimento da técnica, no
inicio um simples fazer manual, uma atividade voltada para a fabricação de instrumentos
rudimentares e, que aos poucos proporcionou o bem estar dos grupos humanos.
O filósofo José Ortega y Gasset (1963:75-78), denominou a técnica em seu estado
mais primitivo, de “técnica do acaso”. Quando os homens pré-históricos viram o fogo saltar
do atrito de pedras ou de outros elementos, teriam adquirido a técnica de acender fogueiras
por um acaso. Nesse estágio, a fabricação dos instrumentos não se diferenciava muito dos atos
naturais, dessa forma, os atos técnicos não seriam privativos de certos indivíduos mais aptos,
mas igualmente efetuados por todos de uma mesma comunidade.
As técnicas primitivas provavelmente tiveram sua origem em descobertas como o uso
do fogo, o polimento das pedras, o cozimento dos alimentos, etc., surgidas ainda no período
Paleolítico (3,5 milhões a 10.000 a.C.). O período histórico seguinte, o Neolítico (8000 a 5000
a.C.), é o resultado de uma verdadeira revolução técnica, pois ao descobrir a agricultura, o
pastoreio, a domesticação de animais, a cerâmica e a fabricação do vinho e da cerveja, foi
possível ao ser humano constituir as primeiras formas de organização social. A descoberta,
talvez acidental (técnica do acaso?), do bronze e do ferro são novas conquistas técnicas que
promoveram a transformação do mundo e das sociedades rurais patriarcais em cidades
governadas. Todas essas descobertas técnicas eram, no entanto, tidas como presente dos
deuses, sendo que agricultores, pastores, ferreiros e cozinheiros eram, de uma forma ou de
outra, sacerdotes ou mágicos e seus saberes sagrados e secretos – só transmissíveis aos
escolhidos por eles.
Abordagem clássica
Para Heidegger (1998:206) a história ocidental e moderna remonta ao mundo grego,
particularmente no que diz respeito ao conhecimento e ao teor dos saberes ocidentais. O saber
romano, medieval e até mesmo moderno, existe em ligação direta com o que os gregos
desenvolveram, o que exige um diálogo renovado com a Grécia no sentido de compreendê-los
em sua totalidade.
Foi somente no mundo grego, por volta do século VI a.C., que as técnicas evoluíram
do estado de saberes sagrados e mágicos, do estado primitivo e mítico, no qual os segredos do
saber fazer instrumentos e utensílios eram revelados aos homens pelos “deuses”, até as techné
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(τέχνη) – um fazer puramente humano, transmitido de geração a geração pelo ensino leigo. De
acordo com Milton Vargas (1994:13-14), trata-se do estado artesanal, no qual o mestre,
conhecedor dos processos técnicos, passa a ensiná-los aos neófitos aprendizes, de geração em
geração, perpetuando dessa forma o conhecimento técnico. Se a técnica pode ser considerada
tão antiga quanto o ser humano, a techné só teria aparecido na Grécia clássica.
Ortega y Gasset (1963:79-81) denomina esse estágio da técnica, de “técnica do
artesanato” ou “técnica do artesão”. Característica da velha Grécia, da Roma pré-imperial e
até da Idade Média, essa técnica, já mais consciente e aperfeiçoada, tinha suas atividades
ensinadas de geração em geração, incluindo a invenção e o aperfeiçoamento dos instrumentos.
É exatamente nesse estágio que aparecem certos homens dotados de maior habilidade e que se
encarregam das funções técnicas, dedicando-se exclusivamente a elas. São os artesãos, com
seus mestres e aprendizes. O aprendizado progride até o ponto de escreverem-se tratados para
o ensino das técnicas às gerações futuras.
A techné é um conhecimento prático, as habilidades e procedimentos adotados num
ofício, de modo a se obter os resultados desejados. Aristóteles (1992:116-118), no Livro VI
da Ética a Nicômaco, afirma que a techné (arte), tal como a arquitetura, é essencialmente uma
“disposição racional da capacidade de fazer”. Toda arte visa à geração e se ocupa em inventar
e em considerar as maneiras de produzir alguma. Já o conhecimento científico (theoria) seria
“o julgamento acerca de coisas universais e necessárias”, os primeiros princípios (invariáveis)
apreensíveis apenas pela sabedoria, a mais perfeita forma de conhecimento.
Nesse ponto, torna-se interessante revisitar a classificação proposta pelo Estagirita
para os diversos saberes, com base nos fins a que se propunham. A episthéme (ἐπιστήμη),
termo grego para o conhecimento verdadeiro e que se opunha a doxa (δόξα), opinião, seria um
conjunto organizado de conhecimentos que estaria dividido em (1) episthéme poietike (ciência
produtiva), de poiésis (ποιήσις) – produção; (2) episthéme praktiké (ciência da ação), de
práxis (πραξις) – ação; e episthéme theoretike (ciência teórica), de theoria (θεωρία) –
teorização, especulação.
transmitir aos aprendizes como fazer bem e eficientemente a medicina. É um tratado que parte
do princípio de que, na medicina, não se deveria tomar como objeto de preocupação explicar a
doença, mas sim curar o doente, o que mostra a característica da techné como conhecimento
prático aplicado e que visa objetivos específicos. A medicina, vista sob este ângulo, tinha
como objetivo curar as doenças, e para isso se valia de preceitos e receitas baseados na prática
dos médicos experientes e era passada aos aprendizes do ofício. Hipócrates dizia que a
medicina filosófica, baseada na filosofia da natureza, era inútil, sem interesse para o doente, e
que fugia, inclusive, ao dever do médico que é curar.
Sendo a techné um saber prático, relacionado com “o que” fazer e, muitas vezes, com
o “porque” fazer – veja o caso da medicina, cuja finalidade era salvar os doentes – não seria
capaz de dar conta das causas e dos primeiros princípios das coisas. Já a episthéme theoretike,
o conhecimento teórico (theoria) tratava das coisas universais e necessárias buscando a
essência da natureza. Para Heidegger (1998:204) ela poderia ser traduzida como “entender-se
com alguma coisa”, tratando-se de um saber que, em sua origem, não se diferenciava muito da
filosofia (φιλοσοφία) – a posse de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido
e verdadeiro – pois era completamente realizado e se constituía numa visão (theoria)
competente de uma ordem de coisas (kosmos) previamente estabelecida. É o saber dos entes
em sua totalidade, em todos os seus graus, segundo as referências primeiras e mais simples.
Percebe-se, assim, que, na concepção grega clássica, existia uma dicotomia entre o
conhecimento teórico e prático. A concepção clássica de ciência, entendida como episthéme
theoretike privilegia o conhecimento e o saber (poder subjetivo), enquanto a técnica (techné)
privilegia a habilidade e o fazer (poder objetivo). A técnica, segundo essa visão, estaria ligada
a coisas a serem feitas e não a coisas a serem pensadas.
Posteriormente, durante o Império Romano e depois, por toda a Idade Média, o saber
técnico, a techné, não somente preservou-se como também se desenvolveu, sob o nome latino
de “artes”. Eram várias as artes e, a exemplo de gregos e romanos, nelas se incluíam, além da
arquitetura e medicina, a navegação, a caça, as artes militares e também o direito. Também
havia as belas artes, como a escultura e a pintura, bem como as artes “ocultas” ou “mágicas”,
como a mineração e a forjaria. Muitas dessas artes disputavam, entre si, a primazia da
formação humana, daqueles que tinham acesso aos saberes. Todas, no entanto, mantinham
aquelas características apontadas por Hipócrates, como necessárias para uma techné: um saber
dirigido não para a contemplação da realidade, mas um saber prático (VARGAS, 1994:19-
20).
Cabe lembrar que, tal como ressaltado pelo historiador William Bark (1985:100-
101), na Idade Média, a busca da verdade e o conhecimento especulativo (episthéme
theoretike), ficariam a cargo da Teologia. Numa época caracterizada pelo pensamento
religioso, o conhecimento clássico e as realizações intelectuais se adpatariam aos novos
objetivos da vida humana, uma vida na qual a salvação se havia tornado a principal finalidade
do homem educado, e a Filosofia caminharia atrelada à Teologia.
É importante ressaltar que há certa arbitrariedade na divisão entre techné e theoria
aqui apresentadas. Mesmo nas concepções clássicas, os limites entre o saber e o fazer, theoria
e techné, não eram assim tão definidos. A palavra techné representa muito mais do que uma
atividade profissional qualquer, fundada sobre um saber especializado, pois se trata de uma
atividade que não se apoia apenas numa rotina, mas sobre regras gerais e conhecimentos
seguros, permitindo assim aproximá-la mais da teoria do que da simples empeiría ou
“prática”. Para Heidegger (1998:213-216), a techné não significava, portanto, um modo de
atividade entendido apenas como finalização da produção, mas algo relacionado como o “pré-
paro” e prontidão de cada dimensão do “des-encoberto”. A episthéme theoretike, o entender-
se com alguma coisa, e a techné, o reconhecer-se em alguma coisa, encontram-se, desta
forma, num parentesco tão próximo, que muitas vezes uma palavra é usada para significar a
outra.
A tecnologização da epistemologia
Tecnologização é o termo utilizado por Edgar Morin (2013:109) para caracterizar a
infiltração da tecnologia na epistemologia da civilização hodierna. Trata-se da aplicação dos
esquemas tecnológicos, para além do trabalho manual e das máquinas artificiais, mas também
às concepções de sociedade, vida e ser humano. A tecnologização da epistemologia é,
portanto, a inserção do complexo de manipulação/simplificação/ racionalização, típicos da
tecnologia no âmago da vida social (Ibid, 112).
Como já abordado, o século XX presenciou o advento de uma nova etapa do
desenvolvimento técnico, isto é, da tecnologia, um conceito mais abrangente e com um
alcance maior do que o de técnica, pois envolve o conhecimento científico das operações
técnicas, uma “conjugação com as teorias científicas” (VARGAS, 1985:25). A tecnologia
começaria no ponto em que ciência e técnica se confundem, ou seja, “tecnologia é a junção de
técnica com ciência (logos em grego)” (FLORIANI, 2000: 226).
Ray Kurzweil eleva a tecnologia à categoria de fase evolucionária. Quando a vida
surge em um planeta, a emergência da tecnologia se dá como fato inevitável. Ela é a própria
“evolução acontecendo por outros meios”. A tecnologia segue além da simples criação e uso
de ferramentas, envolvendo um registro da fabricação e uma progressão no aprimoramento de
ferramentas. Da mesma forma como o código genético das formas primeiras de vida eram
compostos químicos, os registros das primeiras ferramentas utilizavam (e utilizam) a própria
linguagem escrita (KURZWEIL, 2007:34).
Neste sentido, Hans Jonas (1997: 22-23) assinalou que atualmente, o progresso
científico se desenvolve numa espécie de simbiose com o tecnológico, ou seja, para alcançar
seus objetivos teóricos a ciência necessita de uma tecnologia cada vez mais refinada. Ao
mesmo tempo, a tecnologia atuando no mundo, proporciona à ciência um laboratório em
grande escala, uma incubadora para novas perguntas, e assim sucessivamente, num imenso
circuito de retroalimentação.
Considerações finais
A “tecnologização da epistemologia” não é um problema de ordem apenas
especulativo, mas vital para o destino da humanidade. Sobre essa questão, Heidegger (1997)
ensinava que o mundo humano tinha se transformado em um universo técnico no qual todos
estão presos.
Se antes da revolução industrial a técnica era um tributo prestado à necessidade,
agora, como tecnologia, é a mais significativa tarefa humana. O domínio da natureza pelas
ciências e pelas tecnologias se transforma no projeto central das sociedades modernas. A
técnica, antes um simples meio, passa a ser, como moderna tecnologia a própria finalidade. A
tecnologia: “tem um impulso interior que lhe é próprio (KNELLER, 19890:259)”. “A
Tecnologia, filha dileta da Ciência, agora se posiciona como igual, em um amplexo tal que
novas formas de conhecimento são geradas, impulsionando o avanço científico de forma
exponencial, potencializado em suas manifestações interdisciplinares” (MEDEIROS,
2012:54).
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