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LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana.

(Seleção
de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti
Salgueiro). São Paulo: EDUSP^OOl.

8. A H I S T Ó R I A LEVA OS A T O R E S A S É R I O ? "

O ato e a ação por muito tempo foram preteridos em benefício das estruturas

de longa duração. O eclipse do ator parece chegar ao fim. A sociedade é agora vista

como produto da interação, como uma categoria da prática social Assistimos a uma

verdadeira reviravolta pragmática. A postura do historiador modifica-se quando ele

considera, no processo histórico, um presente cm andamento.

Partamos da superfície das coisas. Eis dois dicionários, cada um desti-

nado a desenhar os contornos e a especificar a organização de um campo

disciplinar, ambos editados na mesma série. O primeiro, o Dictionnaire criti-

que de la sociologie, publicado em 1982, contém relativamente poucos verbe-

tes (menos de uma centena), que podem ser qualificados, em sua maioria,

como conceitos analíticos 1 . Nele se encontra uma definição de sociologia

baseada na definição dos fatos sociais: "os fatos sociais devem ser interpreta-

dos como relações entre uma pluralidade de atores ou de agentes" (p. XIII);

* Thistoire prend-ellc les acteurs au séricux?", cm Espaces Temps, les cahiers, 1995, n. 59-60-61 (Le temps

reflechi, l'histoire au risque des historiem), pp. 112-122.

1. R. Boudon e F. Bourricaud, Dictionnaire critique de lã sociologie, Paris, PUF, 1982. [F.d. em português:

Dicionário Critico de Sociologia, São Paulo, Árica, 1993. (N. da Org.)]

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B E R N A R D I. E P E T I T

os dois primeiros verbetes intitulam-se respectivamente "ação" e "ação coleti-

va". O segundo, o Dictionnaire des sciences historiques, publicado quatro anos

mais tarde, é o produto do trabalho de um contingente muito numeroso

(quase uma centena de pesquisadores); é bastante representativo, portanto,

de uma prática modal da história da qual constitui a expressão consensual 2 .

Verbetes em quantidade (mais de duzentos e vinte) aproximam, ao acaso da

ordem alfabética, conceitos analíticos, áreas de civilização, subcampos disci-

plinares ou metodológicos, escolas históricas, autores (de Aries a Wõlfflin).

Poderíamos deduzir daí que se faria uma abordagem naturalmente menos

conceptualista e modelizadora da história, mas as diferenças que eu gostaria

de destacar estão cm outra parte.

Percorramos as entradas dos verbetes. Encontra-se, por exemplo, em

história, "estrutura" (no dicionário de sociologia também) e "conjuntura"

(ausente nos sociólogos), mas não se encontra "ato" ou "ação". Seus substi-

tutos possíveis também faltam: nem "prática", nern " c o m p o r t a m e n t o " , no

singular ou no plural. "Fato", se é que se pode considerá-lo p r o d u t o de

uma ação (intencional ou não, coletiva ou não), também não consta, mas

consta "história factual", que é um gênero e, desse m o d o , não define o

objeto, e sim a operação de conhecimento. E n f i m , observaremos, para

retomar adiante, que um importante verbete "mentalidades" está presente

e que o verbete "memória coletiva" não conduz às práticas (a que uma

leitura de Halbwachs, aliás ausente do sumário, poderia ter conduzido):

do p o n t o de vista do objeto, conduz à questão da identidade (correlato:

"história nacional"), e do ponto de vista dos métodos, à especificidade da

documentação (correlato: "história oral").

2. A. Bourguièrc (dir), Dictionnaire des sciences historiques, Paris, PUF, 1986.

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P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A

Dessa breve c o m p a r a ç ã o se c o n c l u i r á , e u f e m i s t i c a m e n t e , que a

historiografia francesa dedica à ação uma atenção limitada. Atendo-me apenas à

esfera dos esquemas explicativos que ela utilizou nas duas ou três últimas gera-

ções, tentarei indicar os motivos do longo eclipse do ator, antes de buscar as

implicações de sua possível reconsideração pela disciplina. Para isso, negligen-

ciarei voluntariamente a dimensão social das práticas intelectuais dos pesquisa-

dores: alianças disciplinares, organização da pesquisa, locais e modalidades de

comparação dos modelos historiográficos.

,/A análise interna dc uma produção diversificada corre vários riscos, dos

quais os mais importantes são estabelecer apenas posições relativas ou então

criar, de modo implícito, uma hierarquia normativa/Para fugira isso, a postura

constatativa que escolho obriga-me a adotar, de início, um ponto de referência

exterior. Eu o tomarei emprestado, como Vincent Descombes, de Kant 3 . Em

1798, idoso demais para lecionar, Kant publica o texto de seus cursos dos anos

anteriores. O pequeno livro que contém as aulas do semestre de inverno, reeditado

a partir de 1800, intitula-se Anthropologie du point de vuepragmatique. Nc\e se

encontra uma definição fundadora das ciências do homem distintas das ciências

da natureza:'"0 conhecimento fisiológico do homem tende à exploração daqui-

lo que a natureza faz do homem; o conhecimento pragmático, daquilo que o

homem, enquanto ser de livre atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mes-

mo". Baseada num postulado (o homem é um "ser de livre atividade"), essa

definição confere um objeto às ciências antropológicas: as modalidades práticas

da instituição do homem por ele mesmo. Ela também propõe, em poucas pala-

vras, as declinações dessas capacidades auto-institutivas: os atos ("fato"), os

poderes e os saberes ("pode fazer"), as normas e os valores ("deve fazer")^Não

3. V. Dcscombres, "Sciences sociales, sciences pragmatiques", Critique, 529-530, jun.-jul. 1991, pp 419-426.

'229
B E R N A R D I. E P E T I T

utilizarei essa definição da ciência pragmática nem como emblema (ela figuraria

então como exergo), nem como ponto de encontro (eu fingiria então descobri-

la ao fim de minha explanação), mas apenas, por sua feição sistemática, como

grade destinada a situar melhor, uns em relação aos outros, os diferentes ele-

mentos da paisagem historiográfica de hoje.

EXPLICAR SEM ATORES

oçada cm grandes linhas, essa paisagem organiza-se, desde o segundo

pós-guerra, em duas grandes correntes.

A primeira, d o m i n a d a pelos trabalhos de Ernest Labrousse e de

Fernand Braudel, propõe à história um programa: estabelecer como, con-

forme quais ritmos c com que conseqüências para os grupos cujo c o n j u n t o

formava a sociedade o desenvolvimento moderno se produzira ou, em cer-

tos m o m e n t o s e em certos locais, fracassara em produzir-se. A história

conjuntural, da qual os volumes da Histoire cconomiquc ct sociale de la France

constituem a aplicação completa 4 , e o modelo da e c o n o m i a - m u n d o extraí-

do dos t r a b a l h o s de Wallerstein e r e t o m a d o na s ú m u l a b r a u d e l i a n a

(Civilisatiori matérielle, économie et capitalisme^) constituem respectivamen-

te suas vertentes temporal e espacial^ A abordagem macroeconômica e o

£ s t u d o das estruturas espaciais, instrumentalizados pela estatística descriti-

va, constituem seus embasamentos.

j/ Nenhum apelo ao ator, aqui. Recordemos somente, à guisa de sintoma, a

primeira frase de um artigo emblemático dc labrousse," 1848-1830-1789. Como

4. F. Braudel e E. I.abroussc, Histoire cconomiquc ct sociale de la France, t.l, Paris, PUF, 1970.

5. F. Braudel, Civtlisation matérielle, économie et capitalismc, XVf-XVIIf süele, Paris, Armand Colin, 1979.

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P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A

nascem as Revoluções?": "as Revoluções se fazem apesar dos revolucionários" 6 /

^Esse mesmo artigo permite que se estabeleçam, de maneira empírica, os moti-


w vos de uma declaração propositalmente tão provocadora. O primeiro deve-se
tkí & v . . . .' '
buscar do lado do modelo de cientificidade escolhido. Contra uma história
r
, v'" í historicizante que limitava seu programa à reconstituição dos fatos tais como

' „ tinham "efetivamente acontecido" e dos motivos das personagens que estavam
e m s u a or
. "V ' g e r n » e s t e toma o essencial emprestado a Durkheim por intermédio
r
de Simiand. Trata-se de indicar variações concomitantes e regularidades estrutu-
y . o • j; ( ~~ , b
j ; ' 'jais, isto é, de submeter dados agrupados a tratamentos estatísticos adequados.
V
„-. V* J v U m segundo motivo deve-se buscar do lado do esquema causai adotado.

O artigo de Labrousse contém dois modelos explicativos não-contraditórios.

Um resulta de uma explicação pelo primeiro motor. Trata-se do ritmo da econo-

<> mia, que o autor, para efeito retórico e por referência à atualidade da época,
y
personifica e eleva à condição de personagem central: "Falou-se, a respeito de
' fV ~~~ ,

problemas recentes, de um misterioso 'maestro'. O maestro, em 1848 e quando

<_>' \ / \ d a s duas revoluções precedentes, não é senão o ritmo anônimo da produção

.g .V capitalista". O outro modelo é construído sobre a concordância das séries. A

, -j*- Revolução inscreve-se então como o efeito de uma conjunção de causas inde-

/ pendentes que se desenvolvem segundo suas temporalidades próprias: tempo

longo "quase desde sempre" das oposições sociais, tempo cíclico das evoluções
7
4sj>5=.
v
, econômicas, tempo curto das estratégias e das imputaçÕes políticas. Desde que

o tempo, como causa primeira ou como conjunção, é portador da explicação de

<y t suas próprias rupturas, torna-se possível concomitantementc construir um mo-

X; delo dinâmico e esquecer o ator. Poderíamos reler La Mediterranée de Braudel

6. F.. Ijbrousse, "Commenr naissene les Rívolutions?", em Actesdu congrcihistoriquede la Rívolution de 1848,

pp. 1-20.

'231
/ 1
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da mesma maneira: no fim do livro, a inortc do rei, ator derrisório, assume

valor emblemático 7 /

REPRESENTAÇÕES COMUNS

//

v- / A segunda corrente historiográfica, cuja descrição poderia ser orientada


y '
pelo conjunto da obra dc Jacques Le Goff e pelos trabalhos da segunda fase de

\ •v Emmanuel Le Roy Ladurie, caracteriza-se inicialmente pela predominância de

y c novos objetos. O corpo (e não mais a mortalidade), a vida amorosa (e não mais

,t a fecundidade legítima), as maneiras à mesa (c não mais as rações alimentares),


f as estruturas de parentesco e os ritos dc passagem (e não mais as categorias

sociais, ordens ou classes), as línguas, as imagens, os mitos (e não mais as

técnicas de produção, as condições das forças produtivas ou o produto) dese-

nham agora o verdadeiro estado desta ou daquela sociedade antiga. Dessa mu-
, - ^dança de objeto resulta uma desqualificação do método quantitativo em favor

da atividade interpretativa (para a qual a historiografia francesa, por tradição,


?% v
v^*

^ não estava muito equipada). Daí resulta ainda uma modificação dos esquemas
>J
V" y^ V <b temporais de
' "referencia: a inércia
. . das
. " categorias fundamentais das culturas leva a

f prestar menos atenção à variabilidade dos tempos sociais ou às rupturas de

( ps. ritmos do que à eficácia duradoura dc fenômenos extraídos de uma história Vv

>.-' quase imóvel. Braudel já escrevera: "as representações mentais são prisões de >.j

.: f longa duração".i1'!' J
X /AJ
m termo característico da historiografia francesa encabeça o catálogo dos S r "

objetos particulares cujo estudo se tornou então pertinente: as "mentalidades" Jé, ^ ' V'

em sua definição, completamente empírica, que se encontram sem dúvida os ,í>

7. J. Ranciire, Les noms de 1'histoire. Estai depoétiquedu savoir, Paris, Scuil, 1992.

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motivos do esquecimento do ator. Ela "privilegia o coletivo em vez do individual,

os processos culturais impessoais em vez da cultura dos atores e das obras, o

psicológico em vez do intelectual, o automático em vez do refletido"8; À questão

dos atores dissolve-se no postulado da indiferenciação de identidades culturais

partilhadas de que apenas a escala (ou seja, a identificação dos limites dos grupos

j- que a partilham) está por determinar. A natureza das relações entre a representação.

/ e a ação, embora não explicitada, está contida nessa definição. Representação e_


,f v
ação pertencem a esferas separadas: de um lado há normas, valores, categorias que
f . ;
dão sentido ao mundo; e, de outro, comportamentos e atos que os instrurnenta- s.
.r
jizam/Talvez porque a representação e a ação se estendem em temporalidades p

muito diferentes (à longa duração das mentalidades opõe-se a brevidade descontínua

das intervenções ativas), a primeira precede a segunda, motiva-a c lhe dá sentido.

Mais abrangente, a representação possui, assim, uma dignidade maior que justifi-

ca o fato de lhe darem uma atenção preferencial. JPor simetria, nessas condições, a .

S ação possui, em relação à representação, o estatuto de sinal ou de índice: quando


j* •

^ são repetidos, e por sua própria repetição, os comportamentos revelam represen-

j nf -vf y • taçÕes
* " do mundo que os sustentam (e, dessa forma, o número de missas que
° " • devem ser rezadas para o repouso da alma dos defuntos ou o das velas que devem
{T
ser acesas são tomados como indicadores pertinentes não da prática religiosa, mas

do grau e dos conteúdos da crença 9 )/'

É possível registrar as conseqüências que essas definições acarretam em

termos da contribuição dos atores para os processos históricos. Seja o grande

livro de Albert Soboul, Les sans-culottesparisiens en l'an II, publicado em 1958.


J Aqui ele tem valor emblemático na medida em que pretende relacionar um
? V
Of

8. Dictionnaireda sciences hisloriques, op.cit. n. 2, p. 456.

9. M. Vovellc, Piété baroqueetdéchristianisation en ProvenceauXVlIf tiècU, Paris, Plon, 1973.

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sistema de ações a um conjunto de representações sociais10. Na verdade, trata-

se, para Soboul, de "indicar o verdadeiro lugar dos sans-culottes parisienses, [...]

(de) recuperar seu papel nos acontecimentos da Revolução" e, para isso, de

examinar como se conciliaram, no decorrer das seqüências revolucionárias, "o

comportamento" e "as aspirações" próprias aos sans-culottes com as necessidades

da ditadura revolucionária c as exigências da burguesia. O fracasso (nesse ponto) ^

do projeto evidencia-se 110 âmbito mais geral, o do plano do livro.,Duas partes

inteiramente dedicadas à ação política e minuciosamente divididas em capítulos

cronológicos emolduram uma parte central toda dedicada à mentalidade sans-

culotte e tão bem desindexada do processo revolucionário, que pôde ser objeto,

em 1968, de uma publicação independente. De um lado, uma lógica do aconte-

cimento, e de outro um comportamento cotidiano atribuído a uma mentalida-

de tão distanciada dos registros dos valores familiares quanto normas econômi-

cas ou formas legítimas de intervenção política podem aparecer separadas. A

posição historiográfica do projeto autoriza esta solução: ressaltar a "especificidade"

da "corrente popular" 6 um modo de resolver as questões de escala que evocáva-

mos acima para definir a posição e a extensão de um grupo unificado cm torno

de um sistema de representações partilhadas. O quadro teórico cm que o traba-

lho é pensado permite-o igualmente: posições de classe explicam o conteúdo

dos dois níveis de análise ao mesmo tempo. Mas isso significa resolver de fora a

questão da contribuição mútua das mentalidades, da ação c do processo rcvolu-


í;
cionários".

10. A. Soboul, Lessans-culottesparisiens en 1'anll. Mouvementpopulaire etgouvemement révolutionnaire(1793-

1794), Paris, Scuil, 1958.

11. J. Guilhaumou, Manctlle rrpublicainr (1791-1793), Paris, Presscs de Ia FNSP, 1992.

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A S O C I E D A D E ? UM DECALQUE

Uma hipótese generalizante permitirá que se unam os dois momentos de

uma historiografia que nós separamos, mas que têm em comum o esquecimen-

to do ator/ As relações de produção e a referência ao produto constituíam os

elementos pertinentes de um quadro histórico no primeiro caso, e a referência

a si, aos outros e ao m u n d o no segundo: a uma abordagem econômica do social

sucedia uma abordagem cultural. Assim, as duas historiografías ocupavam po-


ff

sições simétricas. Nas duas figuras, a redução da opacidade do social resultava

de uma estratégia de contomamcnto, depois de redução ao idêntico. Em ou-

tros termos, a definição de qualquer sociedade antiga era obtida por dedução,

explícita ou implícita: as características de sua economia ou as de suas mentali-

dades forneciam, como por decalque, todos os seus elementos. A questão,

portanto - plagiando voluntariamente a definição kantiana da pragmática

não era saber o que a sociedade, sendo formada de seres de livre atividade, faz

ou pode ou deve fazer dc si mesma. A questão é saber o que a economia (em

Labrousse ou em Braudel) ou as representações do m u n d o (em Le Goff ou em

Le Roy Ladurie) fazem da sociedade e, concomitantementc, dizem a respeito

dela. O desaparecimento do ator e a desqualificação de fato dos modelos de

auto-instituição do social caminham juntos.

• O RESTABELECIMENTO DA CONFIANÇA

.fA análise, para ser completa, deve agora percorrer a vertente inversa para

apresentar, pelo exemplo e pelo fato, as características e as implicações

metodológicas de uma historiografia pragmática. O fato revolucionário poderá,

com essa finalidade, continuar servindo como fio condutor. O Diretório e o

sr
£3 5
B E R N A R D I. E P E T I T

início cio Consulado aparecem então como um período de crise: as desordens

políticas e financeiras, a desorganização dos circuitos da economia, a generaliza-

ção da pilhagem são seus aspectos descritos com mais freqüência. Juntos, eles

atestam o enfraquecimento das normas, impostas ou interiorizadas, que regula-

vam as diferentes formas do jogo social. No domínio da produção industrial,

por exemplo, a falsificação dos produtos, as rupturas de contrato, os furtos de

matéria-prima que se multiplicam, mostram que a Revolução fracassou em subs-

tituir por um novo conjunto de regras e de comportamentos aceitos a antiga

referência corporativa. A boa-fé desapareceu das relações sociais de produção.

jj' Em dois artigos, publicados cm 1987 e cm 1992, Alain Cottereau, cujas

v/ / análises sociológicas são sempre aplicadas à história, procurou analisar minucio-

^ v/ samente as modalidades de restabelecimento da confiança na esfera econômi-


r N
fi" ,V " ca^./Na origem disso estão os atores sociais, que negociam e experimentam
0
g^ ^ . localmente antes de obter a sanção do Estado. Instaura-se uma série de disposi-_

^ tX tivos novos que são ao mesmo tempo o contexto de elaboração, o ponto de


• ir- %
tf ancoragem e uma das condições da eficiência das novas normas. Dentre eles, os

.'• . conselhos de prud'hommes, destinados a regulamentar as relações entre patrões e

\
V^' O1"' - \fí operários, que se instalaram primeiro cm Lyon, em caráter experimental, cm

1806, e depois se generalizaram progressivamente nas cidades fabris até o fim

V do Império, fornecem um material particularmente rico para análise, fl

V^ /Na

origem de qualquer caso apresentado aos prud^ommes, situa-se uma

s ^ y questão particular, que nasce da prática cotidiana da produção, tomada em

12. A. Couttcreau, "Justice et injusticeordiniiresur les lieux de travail d'après les audiences prud'hommales

(1806-1866)", LeMouvement Social, out.-dci. 1987, pp. 25-59. e "Espace public et capacite dejuger. I j

stahilisation d'un espace public en France aux lendemains de Ia Révolution", Raisom Pratiquei n. 3, Paris,

1992, pp. 239-273.

236
P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A
Y

sua dimensão mais singular: um tecelão que sofreu uma redução de salário por

haver realizado um ato que não considera contrário aos regulamentos ou aos

hábitos locais do trabalho apresenta queixa diante dos prud'hommes. Q caso se

desenvolve como uma relação direta entre indivíduos, que não podem fazer-se

representar ou ser secundados por conhecedores da lei. As pessoas envolvidas

confrontam seus pontos de vista sobre o caso; cada uma reescreve, dotando-o

de u m sentido particular, o fato que as opõe. N a maioria das vezes, elas

chegam a conciliar seus pontos de vista e concordam em dar ao episódio uma

significação idêntica, isto é, em interpretá-lo com base na mesma regra dc

relação dc trabalho (em função da qual o comportamento de uma será julgado

desviante, e o da outra, adequado). A acomodação opera-se, assim, não só cm

benefício de uma solução do conflito, mas também (e sobretudo, por reitera-

ção) em benefício do princípio reconhecido de regulamentação social. Nos

casos — menos numerosos — de divergências irredutíveis, a intervenção dos

conselheiros prud'hommes que deliberam conduz a um resultado semelhante.

O procedimento recai, portanto, n u m uso localizado (a empresa em causa).

Mas, seja porque a conciliação reforça seu caráter de uso reconhecido, seja

porque a decisão do conselho lhe confere uma sanção jurídica, por generaliza-

ção, o uso torna-se uma ordem legítima, nascida da interação social, no âmbi-

to da jurisdição l o c a l /

/'Uma mudança de escala e de tipo de análise desqualificaria, se necessário,

qualquer idéia de uma geração espontânea desse dispositivo socioinstitucional/

A instituição reativa uma forma institucional do Antigo Regime. Vários memo-

randos propõem, a partir do ano VIII, que os conflitos do trabalho sejam arbi-

trados por júris formados de patrões e empregados: embora com grande pru-

dência retórica, eles estabelecem um elo entre esses júris e as jurandas de outrora.

Entretanto, o funcionamento dos conselhos deprud'hommes, ao mesmo tempo,

'237
B E R N A R D L E P E T I T

afasta a instituição das práticas do Antigo Regime. Poucos casos, como disse-

mos, chegam a julgamento. A conciliação é feita na presença de terceiros (um

conselheiro patronal c um conselheiro operário), mas não apela para sua arbitra-

gem.^)iferentemcnte do Antigo Regime, em que numerosos conflitos se resol-

^ viam com recurso a uma terceira pessoa em situação social superior à dos prota-
1
k^/yv ^ gonistas, a solução apóia-se numa dinâmica igualitária, em vez de reativar, e
o- A r
desse modo reforçar, a hierarquia social. Trata-se, pois, da duplicação de princí-

pios revolucionários? Poderíamos crer que sim, já que essa prática organiza um

espaço público onde a decisão resulta da deliberação de indivíduos cujas condi-

ções a instituição tem por função exatamente igualar por um momento. Mas a

escala em que se edifica e se regulamenta esse espaço público introduz uma

diferença decisiva: não mais a Nação, e sim o escalão local; não mais a delegação

* eletiva, e sim o frente-a-frente dos protagonistas; não mais a lei universal, e sim
a
o-' regra local,'A reativação na ação, à custa de uma espécie de bricolagem inter-
jjT • • • • I
0
' pretativa de experiências indexadas em passados diferentes, encontra-se assim

inserida no princípio de um elo social cujas condições de estabelecimento e

modalidades estão historicamente situadas./?

A S O C I E D A D E ? U M A C A T E G O R I A DA P R Á T I C A

Vê-se que há interesse em recordar mais longamente esse episódio analítico.

De um lado, trata-se desta vez "daquilo que o homem, enquanto ser de livre

atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mesmo": eis a diferença construída em

relação aos modelos historiográficos precedentes^De outro, graças a seu

detalhamento, esse modelo parece muito propício ao ajuste dos efeitos provocados
V ' .
P c l a inclusão da ação e do ator nas proposições interpretativas, Destacarei os prin-
cipais efeitos disso sobre duas questões: a do objeto c a do modelo interpretativo.

«T yV 238
P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A

/ E m primeiro lugar, a sociedade volta a ser o objeto privilegiado da histó-

ria. Ela não é mais definida como uma das dimensões particulares das relações

dej>rodução ou das representações do mundo, mas como o produto da interação,

como uma categoria da prática social. Para organizar suas estruturas ou regular

suas dinâmicas, a_s_ociedade não dispõe de jiçnhum ponto fixo (de natureza

econôr^ça_pu„cultural) que lhe seja exterior e quejt transcenda. No jogo entre

os atores que a formam e a instituem, ela encontra suas próprias referências.

Estas podem ser de natureza econômica ou cultural - é outra questão: a recons-

trução de uma dada ordem manufatureira passa pela ativação social, na esfera

econômica, de princípios e esferas de ação de natureza política e cultural. A

sociedade constitui para si mesma (ou seja, para todos eles) seu próprio motor e

suas próprias fontes.!

/A coerência do modelo analítico leva a tranferir para todas as escalas o

mesmo princípio pragmático fundamental. Os atores sociais inscrevem-se num

sistema de posições e de relações estabelecidas e definidas na situação, na interação

que os une por um momento. Também as identidades sociais (o tecelão, o

manufaturador) ou os elos sociais (instituídos, por exemplo, pela organização

técnica da produção ou por uma disciplina de ateliê) não têm mais natureza,

apenas usos. Isso significa que, dentro dos limites impostos pela situação, eles

efetivamente ocorrem de maneira não monótona 1 3 .^

/Definida desse modo,'a sociedade encontra-se privada de princípios de

coerência a priori. N e n h u m a determinação exógena, nenhuma estrutura

macroscópica essencial (o Estado, a empresa ou a família; a nobreza ou a bur-

guesia) assegura sua estabilidade, já que, a cada momento, elas se tornam aquilo

13- B. Lcpctic (dir.), Lesformes de 1'expér'ience, Paris, Albin Michcl, 1995.

Í23>
B E R N A R D I. E P E T I T

que, provisoriamente, os homens e as mulheres engajados na ação fazem que

elas sejam. Ao mesmo tempo, o que faz uma sociedade manter-se coesa (sem o

t „ que ela perderia, na anomia, seu caráter de sociedade) torna-se um mistério 1 4 ^.


nT , fT
^ ^ hierarquia das questões importantes e dignas de interesse encontra-se reorgani-
b f
zada em função disso: o acordo que sustenta o elo social, e não mais o desenvol-
r
vimento e sua partilha ou então as modalidades de uma relação coletiva com o

mundo, encontra-se alçado ao primeiro plano das interrogações 15 . As declina-

ções da questão são numerosas, pois trata-se de saber como se chega a um

acordo entre sujeitos, sobre sujeitos (por exemplo, o que é um desemprega-

do?16) ou sobre coisas (o que é um ateliê de caridade?); como o acordo se faz

(vejam-se os conselhos de prud'hommcs), fracassa em fazer-se, ou se desfaz (as

belas análises de Steven Kaplan sobre os pretensos complôs da fome mostram,

por exemplo, como, antes da Revolução, a adesão popular à monarquia foi

abalada e como o acordo sobre o papel eminente do monarca foi desfeito por

causa disso 17 ). A lista das ocorrências históricas ligadas à questão é interminável

em razão da multiplicidade dos objetos a que ela se aplica (desde a organização

da troca econômica até a natureza do regime político, passando pelas formas da

estratiftcação social e os canais da mobilidade, ou pelo teor dos questionários

cm determinado domínio do saber18) c cm razão da diversidade das escalas cm

que ela ocorre (desde o caso de rapto de crianças na Paris de 1750 19 até o

14. J.-P. Dupuy, Ijipanique, Paris, Synthc-l j b o , col. "Les cmpécheurs dc penser en rond", 1991.

15. L. Boltanskie L.Thévenot, De Ltjustification. Les économiei de la grandeur, Paris, Gallimard, 1991.
16. C.Topalov, Naissancedu chômeur, 1880-1910, Paris, Albin Michel, 1994.

17. S. Kaplan, l*complot defamine. Histoiredune rumeurau XVIlf siècle, Paris, ArmandColin, 1982.

18. A. Dcsrosières, Ijipolitique desgrands nombres. Histoire de lã rauon statistujue. Paris, I j Découverte, 1993;

E. Brian, Lã mesurede iÉtãt. Administniteurs etgéometres auXVTÍf silcle, Paris, Albin Michel, 1994.

19. A 1-argcc J. Revel, Logiquei delafoule. Lafjairedes enUvementsd'enfants. Paris, 1750, Paris, Hachetre, 1988.

240
P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A

problema da anterioridade francesa no domínio do controle da natalidade). As

mudanças de paradigmas são reconhecidas por sua capacidade para esse tipo de

reorganização de conjunto.

O P R E S E N T E DA A Ç Ã O

yf ^ /Seguindo Alain Cottereau, narrei a história do restabelecimento das nor-


vg-

r~' mas de relação na manufatura utilizando três cronologias. A primeira conta-se

em dias: vai da queixa, manifestação de um desacordo, ao estabelecimento com-

binado ou imposto de um acordo. A segunda conta-se em anos e desenvolve-se

em duas escalas geográficas - ela descreve, de um lado, o processo de reiteração

das soluções de conflitos que resulta, por acumulação, na formação de uma

quase-legislação regional do trabalho; de outro lado, o movimento de difusão

que, por imitação de experiências bem-sucedidas, leva a se criar uma instituição

semelhante no centro das principais regiões industriais. A última cronologia,

enfim, é menos precisa (seria mais difícil traduzi-la num sistema de datas, a

menos que espaçadas) e concerne a várias décadas: nela são evocados tanto o

momento revolucionário quanto um Antigo Regime com fronteiras não defini-

das/Tal disposição analítica não é exclusiva para os conselhos de prud'hommes.

Eu poderia ter adotado o rnesmo esquema para relatar o estabelecimento

concomitante de uma ordem comercial (as câmaras de comércio) ou civil (as

justiças de paz). Poderia narrar da mesma maneira o estabelecimento, hoje, de

uma nova ordem territorial na Europa central.


> /Es
ses modelos temporais diferem dos modelos historiográficos preceden-

^V tes cm vários pontos. Todas as cronologias que acabo de expor brevemente

^Vv revalorizam o curto prazo, o do acontecimento entendido «como ação• situadaii


'y - (tal atitude diante dos prud^ommes,
> em Lyon, em 1807; o "restabelecimento"

'241
B E R N A R D L E P E T I T

das câmaras dc comércio nas principais praças comerciais da República cm 1802),

o da experiência humana, direta ou indireta. Elas não desqualificam o longo

prazo (as jurandas dos protagonistas dos episódios da restauração de uma or-^
9
d e m econômica durante o Consulado são, em parte, desejadas, e suas virtudes

t, remetem a um antigo passado elaborado para as necessidades da causa: naquele

momento, e ainda quando de sua supressão no início da Revolução, e ainda

depois, quando das medidas tomadas por Turgot em 1776 e do debate feroz que

v
elas suscitaram...), mas um recorte feito do exterior, e apriori, das durações e de
Ur
sua articulação. Assim, essas cronologias fazem do presente da ação o tempo da

*
• .[
história20/

i / R e i n h a r d t Koselleck chamou a atenção, na antologia publicada em

-yT francês com o título Le futur passé, para a variação histórica dos modelos

, ""
y s -^
}J temporais empregados na ação e para a pluralidade das formas de articula-
í ção, no presente, do passado e do futuro 2 1 . Levar suas análises a sério é
1
>/* . v
' ^ esforçar-se por reconstituir o caráter dos horizontes temporais dos atores

V„ y
1
j f ^
da história. Estes põem à prova, na ação presente, formas passadas e valo-

. ; c res recebidos segundo modalidades que não são necessariamente as nossas,


J
' £ p o r q u e não são nem de sempre nem dc qualquer lugar. Eles arbitram, no

/ ç j presente, entre o interesse vindouro e o do m o m e n t o ; antecipam e tentam

reduzir a incerteza do f u t u r o dc maneira diferente (a recondução do passa-

do e o projeto constituem duas imagens possíveis disso). Assim, n u m

.modelo pragmático de análise do social, a determinação das escalas crono-

lógicas pertinentes passa pela reconstituição das categorias temporais au-

tóctones;/

20. B. Lepetit, "Le présent de 1'histoire", em La forma de 1'expérience, op. cit.. n. 13, pp. 273-298.

21. R. Koselleck, Lefutur passé. Contribution à Ia simantujue da temps historiques. Paris, Ed. de 1'EHE.SS, 1990.

242
P O R U M A N O V A H I S T Ó R I A U R B A N A

;ÍA postura analítica do historiador é responsável por isso. Ver no processo

e ^C^ histórico um presente em andamento, entender a história, cm razão da interação

social e da irreversibilidade do tempo, como "evolução criadora" (a expressão é

<r., de Bergson) coloca-o em posição constatativa. Como têm sua fonte na seqüên-

^ ^ cia das situações que instituem, os estados sucessivos da sociedade aparente-

mente não encontram sua razão de ser em nenhuma outra parte que não em seu

s y l próprio desenrolar. C o m o explicar, então? A explicação pela correlação perde a

Y,^ força a partir do momento em que a história é analisada em sua d i n â m i c a ^

t> explicação pelos fins esbarra no postulado da diversidade social e do caráter


tf* x? ~ ; I 7' ""
^ criador da interação.'A explicação pelas causas fica desqualificada, por ser
cryt •
v V/tautológica, quando os processos se mostram dependentes de sua própria mar-
r y ' \ -t r • iL
")f cha e das seguidas bifurcações que experimentam,j/Parece, então, que só resta

/*" dizer como as coisas aconteceram sucessivamente, e assim renunciar a várias


v<X ^ ~1

décadas de elaboração metodológica e de reivindicação de cientificidade, em

nome de uma vantagem pouco significativa para um regime interpretativo par-

ticularmente f r a c o /

ÍA proposição, entretanto, só é exata na esfera do modelo explicativo das

ciências sociais. Para fazer frente à objeção, uma solução consiste em explorar / V
6 *' y ^
s tf • _
nutras. O modelo descritivo, para o qual o sociólogo Louis Qucré, em especial,
> * 0 ^

0 y»/1 vem chamando a atenção há vários anos, é desse tipo 22 . Modelo mais fraco dc

apreensão do mundo? A questão merece aprofundamento coletivo. Notaremos

apenas, aqui, que esse modelo de inteligibilidade é mais precisamente

especificável, já que permite ao mesmo tempo responder à questão "como?"

(então se falará em descrição processual, que apreende a ação segundo suas coor-

denadas espacial e temporal) e à questão "por quê?" (então se falará que a descri-

22. l/>uis Quérec, "Le cournanr descriptifcnsociologic", Current Sociology, vol. -40, n. 1, 1992, pp. 139-165-

'243
B E R N A R D L E P E T I T

ção é semântica, uma vez que ela relaciona a ação a seus contextos de sentido). A

análise que apresentei dos conselhos de prud'hommes resultou sucessivamente

desses dois registros (em cuja articulação ainda é preciso pensar). Destaque-se

também, pois é preciso terminar, que suas capacidades heurísticas estão histori-

camente atestadas: ela constituiu no século XVIII uma das bases do projeto dos

Enciclopedistas 23 e suscita, nos confins da observação científica e das considera-

ções sobre as linguagens, uma reflexão cujo dossiê hoje valeria a pena reabrir/

23. Dcnis Reynaud, "Pour une théorie de Ia dcscriptiun au XVIII'sièclc", Dix-HuitibneSiècle, n. 22,1990, pp.

347-366.

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