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Águas atávicas

Série TERRA E GENTE

1. ESCRITOS – Arassuay Gomes de Castro.


2. FÁBULAS SUL-MATO-GROSSENSES – Ver Tylde de Castro Pinto.
3. SENHORINHA BARBOSA LOPES – Samuel X. Medeiros.
4. JOÃO NINA – UMA HISTÓRIA DE VIDA – José Corrêa Barbosa.
5. EDUARDO ELIAS ZAHRAN – Hildebrando Campestrini (org.).
6. ÁGUAS ATÁVICAS – Marcos Faustino.
Águas atávicas

Marcos Faustino

Outubro de 2013
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul
Campo Grande – Mato Grosso do Sul
Capa: Cláudia Villela.
Revisão histórica: Luís Octávio Faustino Dias Brandão.

Conselho Editorial do IHGMS:


Valmir Batista Corrêa (presidente)
Arnaldo Rodrigues Menecozi
Eron Brum
Lúcia Salsa Corrêa
Paulo Cezar Vargas Freire
Paulo Eduardo Cabral

Ficha catalográfica
ÁGUAS ATÁVICAS. Marcos Faustino. Campo Grande, Institu-
to Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2013.
192 p. 15 x 23 cm.
ISBN
1. História. 2. Mato Grosso do Sul. 3. Paranaíba.

Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul


Av. Calógeras, 3.000 – 79002-004 – Campo Grande – MS
Fone (67)3384-1654
ihgms@ihgms.org.br
Marcos Faustino 5

Índice
Meninos de porta de rua – 13.
. Valentia encomendada – 29.
. Começa a guerra com o Paraguai – 41.
. O italiano do realejo e o major gaúcho – 55.
. Pereirinha promovido a cabo – 69.
. A indicação do voluntário – 81.
. As delícias da guerra – 99.
. O desastre de Laguna 107.
. O rapto da bela índia – 125.
. Bagunças revolucionárias – 141.
. Bravura feminina – 165.
. Quase um arquétipo – 181.
Marcos Faustino 7

Já contados por outros mais competentes, no final rela-


cionados, os acontecimentos históricos são de conhecimento
geral dos brasileiros. A História aparece aqui como desenca-
deadora dos trágicos fados sempre adversos, que a todos en-
volvem, transformando em joguete das circunstâncias os
que nenhuma importância têm na construção dos fatos.
Os episódios de maior significado são protagonizados
por gente de pouca ou nenhuma relevância. Preservados
apenas na memória dos já raros e velhos moradores sul-
-mato-grossenses, correm apressados para o esquecimento,
levados com os que partem. Sem outra serventia além do
registro, que este relato vá junto, se falhar nesse intento.
Quando o tempo se espicha longo, preguiçoso e distan-
ciado, antigos sentimentos enfraquecidos toldam a distante
memória; quando se encolhe curto, vivo e próximo, fortes
paixões turvam rapidamente as lembranças recentes. Tudo
se entrelaça no presente do contar: a pretensa realidade e
as fantasias acordadas pelas emoções se esfumaçam na apa-
rente ficção. Os fatos no altar dos sentimentos, estes confun-
dindo aqueles. Vã tarefa tentar separá-los, melhor sorvê-
-los misturados.
Parte ficção, parte realidade, o todo ultrapassando a
soma das parcelas; lógica só restaurada apreendendo-se
de todos os episódios o original tipo de comportamento que
moldou toda a região.
À minha avó
Maria Vitória Dias,
nascida dos Paula às margens
do ribeirão das Morangas, sertaneja analfabeta,
cartesiana por institinto, eloquento no uso do silêncio.
Não quero ter a terrível limitação de quem
vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.
Clarice Lispector
Marcos Faustino 13

Meninos de porta de rua

Meninos de porta de rua da vila esquecida.


Mãos cruzadas por trás, segurando os batentes das portas, mo-
leques descalços e sem camisa, calção rebaixado na frente pelo avolu-
mado da barriga d’água. Banhos de córrego ocasionais, bagunças
n’água, cuidado onde não dá pé nas partes mais fundas. Correrias de
pique, alvoroço das disputas, brigas eventuais e medo constante de
tapas dos mais crescidos. Caçadas de passarinhos; periquito comedor
de roça, concorrente nas frutas maduras, merece pedrada de estilin-
gue; canarinho amarelo não, coitado, tão miúdo, dá dó, canta bonito,
matar para quê? Serviço de menino, subir nas árvores a mando de
adulto molengão. As grandes mangueiras, reservadas aos mais atre-
vidos na desobediência da mãe; alcançar a fruta mais elevada, recom-
pensa certa pelos perigos da altura. Mesmo a comum agrada; sorte,
se manga de qualidade. Laranjeiras, só as de pouco espinho, caso
contrário, as desculpas: laranja estragada, passou da época, madura
demais, não presta. Limão, pega no chão ou galho de baixo, ninguém
é trouxa de subir; nem dá, de tanto espinho. Goiabeiras, facilidade
em trepar, ir pisando nos galhos de baixo e segurando nos de cima.
Pouca vantagem porém: se goiaba branca, geralmente bichada; se
vermelha, periquito chegou na frente, do alto vê mais fácil. Estraga
muito e come pouco, quando a gente pega, goiaba já está bicada.
Vêm em bando, barulhentos, pedrada neles. Livres, crianças crescendo
sem eira nem beira, sem laço nem cabresto, sem guia, sem um rumo
aparente como convém a esta idade.
Só as mais ilustres portas da frente, rentes ao alinhamento da
rua, mereciam a presença dos meninos. Preferência pela porta da
movimentada venda do major Melo Taques, estórias de todos os tipos.
Fazendeiros em raras e grandes compras no atacado; povinho da vila
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no varejo das miudezas frequentes, pouco interesse na vez; viajantes


quase nenhum, raridade. A da farmácia, só pela curiosidade, quem
será o adoentado? A da coletoria, imposto só para adversário que não
merece consideração, ao amigo devedor dá-se um jeito. Bom admirar
quem está por cima. Concorrida mesmo era a portona do prédio que
abrigava a Câmara de Vereadores e a sempre vazia cadeia pública,
acessórios a ornamentar a vizinha sala do intendente, único e verda-
deiro poder ali existente. A meninada, aparentemente distraída, gosta-
va de apreciar o desfile de figurões importantes e de sonolentos funcio-
nários apadrinhados.
A da igreja, porta maior de todas, pouco interesse. Mesmo assim,
só ele lá não podia ficar. Era sempre notado pelas beatas rezadeiras.
De longe, só a ele viam, a bronca vinha rápida.
– Ó moleque! Some daí, casca fora, desaparece! Vai caçar
serviço.
Os outros garotos podiam ficar, não era com eles.
Obedecia, como de resto, era mesmo mandado em tudo. Sua
simples presença na porta da igreja ofendia a todos, menos ao vigário
Sales. Gordo, suado e de muito respeito, o padre nunca o olhou feio.
Parecia não se incomodar, tolerava sua presença.
Ruas da vila, quase sem existência de tão secundárias; mesmo
a principal, apenas um trecho da estrada boiadeira, ornamentada
por esparsas habitações de ambos os lados. Uma casa aqui, depois
mato sem cerca com o vizinho, em seguida um casebre, mais um lá,
outro rancho de pau a pique acolá. No meio, os poucos prédios im-
portantes. Raros quintais de mandioca, pés de muitas frutas por todo
lado. Leito da rua, areia escaldante na hora do sol a pino, proibição
para os pés descalços; melhor ficar em casa, almoçar e dormir um
pouco. Antes e depois da vila, o mesmo caminho de conduzir boiadas;
sem casas, ranchos ou casebres, só mato de ambos os lados.
A vila de Sant’Anna, após a abertura da estrada do Piqueri e do
abandono da rota fluvial dos bandeirantes paulistas em busca do ouro
de Cuiabá, tornou-se passagem obrigatória para os sertões inexplo-
rados da vasta província de Mato Grosso. Mais terra de índios caiapós
do que comarca da capital Cuiabá a setecentos quilômetros ao norte.
Marcos Faustino 15

Crenças variadas prevalecendo sobre o bispado de Corumbá a oito-


centos quilômetros para o poente, ao qual pertencia a paróquia de
Sant’Anna. Cerca de dois mil habitantes, a quase totalidade residindo
em distantes fazendas. No meio desse deserto de gente, mundão de
população rarefeita, lembrada só por Deus, a vila era a primeira
aglomeração humana depois da difícil transposição dos rios Paranaíba
e Paraná, ambos avalistas do meridiano das Tordesilhas, tratado antigo
celebrado entre distantes reis europeus.
Terra brasílica, vila esquecida em isolada província de exótico
império tropical, reinado com menos de trinta anos de idade.
Mundo em formação, modo de vida a ser inventado nos arranjos
entre as pessoas, geral das coisas a consolidar, história por escrever.

Meninos de porta de rua, só espiando o que se passava por


dentro. Não que vissem, apenas olhavam sem perceber. Como todos
os da vila, ninguém nunca reparava neles, tão naturais como as portas,
talvez só adereços indicando a importância das pessoas no interior
das casas. Diferença só com ele.
Um dia, de dentro da venda alguém berrou: – Moleque, quem
é seu pai?
Pelos olhares dos outros meninos, percebeu que a pergunta
era para ele, respondeu desembaraçado: – Sei não, moro com a Vó.
Lá-em-Baixo.
O homem da pergunta berrada ficou algum tempo fitando o
moleque. Parecia pensar, recordar-se de que a Vó lá de baixo era a
Celeste, retirada das atividades, já velha. Nessa ocupação, perdidos os
encantos, só resta a gerência das outras mais novas. Tivera oportuni-
dade, juntara dinheiro, alguns trocados sobrados das roupas e vaidades
femininas, freguesia farta. O finado Eliosório, sorte transformada na
casa humilde, pequena, lá embaixo, na beira do rio. Casa própria em
nome dela, dada, presenteada. Eliosório exigia, só com ele, paixão
enrabichada. Apartou das outras. Nenhum outro homem por perto.
Muito tempo, um tempão. Cama, penteadeira, depois armário no lu-
gar do baú das roupas. Na cozinha, vieram a mesa, as cadeiras, panelas
de ferro, pratos de porcelana, tralha completa, de primeira, granfa.
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Vinha só de dia. Quando a esposa esfriou, Eliosório gelou, já


não animava com a patroa. Com Celeste, nova, muitos truques da
profissão, o velho fervia, ficava até mais tarde, já noite. Perdeu a con-
sideração com a oficial, já dormia. Com a morte da mãe dos seus fi-
lhos, mudou-se para a beira do rio. Celeste impôs condição: aumento
da casa para abrigar novo morador, tão ilustre, não aceitava porcaria,
ampla sala, varanda na entrada, nos fundos mais um quarto. Mobília
completa. Afinal, seria a morada do sr. Eliosório, sendo quem era,
precisava dar-se o devido valor. Celeste argumentava e conseguia.
Difícil foi o primeiro, depois outro, depois mais dois, vários quartos.
Celeste calculava o sustento futuro: seria uma pensão, a vila precisava,
carecia de um lugar para pernoite dos viajantes, dos mascates, ou
mesmo das pessoas ilustres que não quisessem o compromisso da
acolhida na casa de um amigo, ou pior, na hospitalidade de um parente,
atenção devida nas muitas conversas de pouco interesse, uma chatice
para uma pessoa cansada, só à procura do necessário repouso. Uma
pensão, a vila merecia.
Uma madrugada, Eliosório, em vez de se levantar para urinar,
acordou arretado. Celeste surpresa, feitiços, agrados, carinhos, velho
danado, animou, penetrou, gemia de gozo, suspirava, de amor morria.
Dor aguda no peito, fulminante. Em cima dela, dentro dela. Estava
morto, sem apelo, teve certeza. Chamou os filhos. Culpa nenhuma
dela, sempre fiel, exclusiva, lavando a roupa dele direitinho, cueca
fedida, às vezes mais suja; comidas prediletas na hora certa. Culpa
nenhuma, acontece, aconteceu, morreu sorrindo, feliz.
Levaram o corpo e deixaram a ordem: nem no velório, nem no
cemitério. Celeste que ficasse longe, agora acabou. O que o pai dera,
a casa, a mobília, tudo era dela. Vontade do pai respeitavam, mas era
só. Que não quisesse mais nada; se não, sumiam com ela, rapidinho.
Sozinha, com a saída do morto, procurou a antiga gravura de
Nossa Senhora Sant’Anna, vó do Deus Jesus. Encaixou-a no espelho
da penteadeira, ali no local mais nobre de seu quarto. Olhou o santinho
por muito tempo. Pela vida que levava, nunca tivera coragem de
olhar para a Virgem tão pura, nem para seu Filho sempre tão severo.
Mas, pensava, coração de vó é grande, cheio de perdão, de aceitação
Marcos Faustino 17

dos erros, dos pecados inevitáveis. Sant’Anna era a padroeira da vila


onde Celeste nascera e crescera, era dali e por isso, talvez descontadas
as necessidades da vida, merecesse também a proteção da santa.
O dia passou junto com a hesitação, no fim já se resolvera. A
santa ficaria no seu quarto, agora reservado só para sono e descanso
solitários, sem profanação de nenhuma indecência. No lugar santi-
ficado por estas intenções, à noite, acendeu uma vela e rezou o pouco
que sabia, porém repetidas vezes, para mais valia das orações.
Só a luz da vela testemunhou uma única lágrima escorrida,
menos pelo falecido já em processo rápido de esquecimento, mais
pelo imprevisto de uma despensa quase vazia de mantimentos.
Com o perdão antecipado da santa, no dia seguinte cedo, já lá
moravam a Menina, Flor, Lili e a Nega Ditinha. Assim começou o
movimento da casa lá embaixo, há alguns anos, até o lugar chamar-
-se Lá-em-Baixo, nome surgido menos por falta de opção, mais para
resolver o embaraço de denominação mais precisa.

O tempo voa rápido quando só na memória. O homem da


venda ordenou então ao moleque: – Vem cá, leva este bilhete para a
Menina, você sabe quem é, não? Diz que fui eu quem mandou, ela
sabe quem é. Corre moleque, vai lá.
Lá foi ele, contente. Corria como mandado, tinha alguma ser-
ventia. Depois de muitos bilhetes e outros tantos recados, continuava
o moleque para cá, o moleque para lá, ainda sem nome, mas já na
admiração dos outros meninos. Já não se encostava no batente das
portas, tinha lugar de destaque na frente das outras crianças, aguar-
dando ordem para sair correndo, sempre para Lá-em-Baixo. Vai,
moleque, depressa. Obedecia, corria.
Um dia voltava lá para baixo, devagar, despreocupado sem
recado, na última volta do caminho divisou ao longe um homem quase
ajoelhado, gemendo, contorcendo-se, procurando encosto na grossa
paineira; parecia sofrer. O menino apressou o passo, favorecido pela
descida, quase correndo. Perto viu: era o soldado Pereira, baixo, atar-
racado. Sangrava, e muito; sangue na mão, mão no cabo do punhal,
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barriga rasgada desde baixo até em cima, espetado no encontro das


costelas, no meio do peito. Menino perto, parado sem ação, o soldado
procurando apoio com a outra mão no ombro do menino. Em vão,
sem força para o apoio, sem força para arrancar o punhal, desistiu;
mas ainda conseguiu arrancar de seu próprio pescoço a corrente
dourada, a medalhinha, e antes de cair de vez no descanso da morte,
estendeu-a em direção ao menino.
Carreira abaixo, quase sem fôlego, chegou à casa, passou pela
varanda, na sala vazia começou o berro Vóóóóóóóóó, que terminou já
no quarto da assustada vó.
– Calma, moleque! Cruz credo, viu o capeta? Que foi?
– Ali, ali, ali na curva mataram um.
Escutando, já todas as meninas, nestas horas paradas, deso-
cupadas, acorreram ansiosas, curiosas:
– Quem? Quem? Fala menino!
– Soldado Pereira, à paisana.
– Matou ou morreu?
– Morreu!
– Nossa Senhora, mãe de Deus, coitado!
Choros de todas, mais forte o da Ditinha; o falecido era dela.
Correram a subida, cansaço na respiração, chegaram; estendido
sem vida, inerte o corpo do soldado. Na barriga, o cabo do punhal re-
luzia. Ditinha ajoelhou primeiro, as outras em seguida; rezavam todas.
O cabo denunciava: o punhal era do Nego Tião. Ditinha pediu,
o lençol apareceu; cobriram o corpo, escondido o punhal.
Rolo feio, outro homem dela. Noite passada, Tião não escondeu,
pelo contrário, mostrava, exibia a todas, lâmina fina, comprida, um
perigo, cabo de madrepérola, vaidade do possuído, arma cara. Na
coragem da pinga, falou mundaréu de besteira: que era mais homem,
preto que nem ela dá mais certo, soldado nega fogo, bate-pau de gente
rica; roncou valentia, tudo na ausência do ofendido. Ditinha ao seu
lado, quieta, sem diferença entre um e outro, só o seu sustento, o resto
sem interesse, exceto na cor. Se fosse para ter filho, queria negrinho,
pretinho, muito mais bonito, gosto dela, por enquanto luxo proibido.
Marcos Faustino 19

Dia seguinte, cabeça doída de ressaca, Tião pensou: agora a


besteira já está feita, já falei, notícia vai esparramar; é ele ou eu.
Sobra quem fizer a tocaia primeiro. Frente a frente, no limpo, ninguém
encara. O risco é grande, não se sabe o resultado. Tocaia é o certo,
aparecer de surpresa, arma pronta sem tempo de reação, é garantido,
certeza que o desgraçado morre. Ficaria escondido atrás da grossa
paineira, na beira da estrada, a caminho da Ditinha. Sem chance de
errar, lugar bom. Depois era só sumir no mundo, por uns tempos.
Não muito, pouco tempo. O safado do soldado era defunto sem choro.
Bem pensado e melhor executado!
Choros já poucos, rezas esparsas, cessados os “para morrer basta
estar vivo”, “que Deus o tenha”, “o primeiro foi Caim”, agora as
providências práticas. O falecido era autoridade, encarregado da or-
dem pública. O intendente municipal veio logo que informado. Or-
denou a remoção do corpo, caixão de primeira por conta dele, suben-
tenda-se, pago pelos cofres públicos com sua autorização, e missa de
sétimo dia pelo sufrágio da alma do falecido. Apenas fez constar na
necessária ocorrência que o zeloso servidor público se dirigia para a
pensão às margens do rio, em atenção a chamado dos pacatos mora-
dores das chácaras vizinhas, gente honesta e laboriosa, na ocasião
importunados por algazarras e bebedeiras promovidas por elementos
estranhos e desconhecidos da população, em trânsito por nossa ordeira
vila. Com a firme determinação de fazer prevalecer o sossego de
nossos conterrâneos foi o soldado Pereira covardemente atacado e
cruelmente esfaqueado, vindo a falecer no cumprimento do dever.
A Vó, que observara, desde o início, a medalha ensanguentada
na mão do menino, com o sentimento do pouco valor da vida, da
bobagem sem serventia dos segredos longamente guardados, disse ao
moleque: – Depois você limpa e põe no pescoço. Agora a correntinha
com a medalha é sua. O soldado Pereira era devoto desta santa. Nome
dela está escrito atrás, pergunte pra quem conhece letras. Única posse
do falecido, deve ficar com você. A medalhinha era da sua mãe que
eu não conheci, mas chamava Madalena, segredo guardado pelo
soldado, só revelado a mim numa noite de tristeza curtida na pinga.
Ele nunca me falou que era seu pai. Só desconfianças, achava pa-
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recenças. Uma vez chamou você de semente. Celeste continuou: –


Era homem bom, mesmo arrancando dinheiro das meninas, proteção
delas, desculpava. Careciam da assinatura dele no alvará da inten-
dência para funcionamento da pensão. Só na bufunfa para encobrir
a vida das meninas. Todo mundo sabia e aproveitava. Chefe policial é
quem atestava: pensão para viajantes. Tinha de fazer valer sua auto-
ridade, caso contrário, qual a serventia do cargo? O que tirava delas,
devolvia. Um tecido para a Menina, um brinco para a Flor e muito,
muito adorno para a Nega Ditinha: roupas de baixo, íntimas, vestidos,
lençóis macios, ouro legítimo para a pulseira, anel, brinco e colar.
Para a Lili, nada, respeitava o Tonhão, seu macho, podia não gostar.
Era a festa dos mascates. Para mim, o pagamento das taxas municipais
e das despesas de conservação da casa. Os impostos, dizia, gentileza
do intendente, a pedido dele, o soldado encarregado da ordem pública.
Estimavam a casa também de uso deles.

Fato passado, vida continuada.


Na venda, conversa animada lá dentro; o menino na porta,
notaram, olhadas, cochichos, pequenos risos, era com ele, falaram: –
Ooooooh, Pereirinha...
Grandes risadas, quase deboche. Mas era com ele, aprovou,
gostou envaidecido, conhecido e nomeado por gente importante, quase
um batismo. Desde então tivera nome, Pereirinha, não mais apenas
Moleque.
Já entrava nos doze anos. Com a ajuda de alguns trocados, a Vó
fizera-lhe camisas. Coberto o peito, Vó lembrou de proibir-lhe o banho
com as meninas, já era mocinho, primeiras penugens. O certo era
separar, autorizou quarto próprio, lá no fundo, quase fora de casa.
Crescia de importância.

O vigário Sales lembrava-se que o tinha batizado, quase em


segredo, cerimônia separada. Redenção do pecado original, criança
inocente, insistência de padrinho, o padre consentira. Para ter certeza
e não ser enganado agora pela memória, o padre, solitário na vazia
sacristia, consultou o livro das certidões de batismo, Tomo I. Lá estava:
Marcos Faustino 21

Nome do batizado: Salvador Pereira.


Nome do pai: Osório Santos da Silva.
Nome da mãe: Maria da Graça Silva.
Nome do padrinho: Soldado Pereira.
O padre se lembrou bem das suas dúvidas no preenchimento
do livro, caso único na paróquia, talvez não previsto na jurisprudência
canônica, a filiação desconhecida. Fingiu esquecimento, deixou em
branco, primeiro. Depois pensou: melhor preencher com nomes
desconhecidos. Não chama atenção, quem poderia conhecer todo
mundo? Nome falso de um esconde outro que não quer se revelar.
Dúvidas e angústia o padre teve mesmo foi no registro de seus
próprios filhos, um deles a menina Vicência, quase na mesma época.
Resolveu do mesmo jeito, já tinha aprendido como fazer.
O vigário viera falar com ele. Pereirinha aproveitou a oportu-
nidade, aumentou propositadamente sua devoção a Nossa Senhora
Sant’Anna. Sabido no seu relato, fez suas as histórias que ouvira da Vó
sobre as virtudes da santa. Na conversa com o padre, achou por bem
transferir o santinho da penteadeira da Vó para a cabeceira de sua
própria cama. Contou da medalhinha de sua estimação, a quem rezava
sempre em busca de proteção e aconselhamento. Ganhou convite
para fazer a primeira comunhão. Modesto, alegou pobreza, dificul-
dade em fazer o terninho branco, camisa, gravatinha, tudo na pureza.
Calçado, nem mesmo de outra cor tivera, quanto mais branco, tudo
indispensável a tão importante solenidade. O padre, surpreso no
inesperado da descoberta, viu no menino a inocência pura no meio
da lama, alma boa clamando pelo socorro do importante sacramento
cristão. Vocação de firme pastor, passou do convite para a quase ordem:
– Todas terças e quintas feiras, na missa, você vai se sentar nos bancos
da frente, reservados para os meninos e meninas que estão se pre-
parando para a primeira comunhão. Quero ver você lá.
Com o consentimento da Vó, Pereirinha foi. A primeira vez,
entrou tímido na igreja, procurando aceitação na cara dos outros. Viu
surpresa nos sorrisos maliciosos dos meninos e reprovação no altear
das sobrancelhas femininas. Famílias alertadas, algumas contrariadas,
difícil aceitar a mistura dele com as crianças de família bem consti-
22 Águas atávicas

tuída. O padre aguentou firme, sem resposta. Com o tempo Pereirinha


já se sentia quase um deles, não fosse a indiferença sisuda das meninas,
menos a Vicência, rabo de olho curioso, filha da D. Joaquina e do
vigário.
Dona Joaquina, no começo, era a Neguinha da casa paroquial.
Comprada barato, pouca idade, serventia só mesmo na ajuda das ou-
tras escravas. Refugo de um lote importado, africana legítima, das úl-
timas levas. Alta, feiosa na magreza exagerada. Quase muda, só falava
o essencial. Dissimulada, entretanto, reparava, punha atenção em
tudo. Sumida no zelo da arrumação da casa e da igreja: encerar as-
soalhos, vassoura nos pedrados e quintais, batinas lavadas, passadas;
engomados só os mantos sagrados. Por último, o feijão com arroz e
carne de sol, galinha e ovo do quintal, o trivial, saboroso. Ligeira,
ainda menina, dava conta de tudo.
Cresceu, encorpou, avolumou, inocentes saliências por sob a
blusa, sinuosidades abaixo da cintura. O padre notava, suava, negava,
o padre rezava. Que dentes tão brancos, que pele tão lisa, tão flor da
idade, bela criatura de Deus. Penitência, te esconjuro tentação, vade
retro, satanás. Voto de continência. Conter-se.
Muitas escravas sem precisão, mandar todas para fazenda, bas-
tava a Joaquina. Frei Vitto, ajudante chato, sempre crítico, a lembrar
obrigações. Que fosse dormir lá na sacristia, que cuidasse da igreja.
Montasse na sua mula e fosse levar os sacramentos pelas fazendas. Só
o padre e a Joaquina na casa tão grande, vazia. Uma graça, beleza, a
danada percebia, o padre escondia, disfarçavam.
Belo dia, barriguda.
– De quem?
– De ninguém! Curiosidade besta de povinho falador.
Bebê mulata clarinha, recebeu o nome de Vicência. Não é
bom que o homem esteja só – está na Bíblia, justificava-se o padre a
si mesmo. Frei Vitto, o padre ajudante, remoía-se na certeza do malfei-
to; recordava o Concílio de Latrão, obrigação do celibato eclesiástico.
Numa ocasião em que o frei Vitto ministrava o batismo, Joaquina
apareceu com a menina, o vigário mandou. Criaturinha inocente,
Marcos Faustino 23

merecia a redenção do pecado original, não se poderia negar. Escla-


receu não precisar da certidão, formalidade dispensada na sua con-
dição de escrava.
O vigário já tinha deliberado que adiante poderia alforriar a
negra, ato cristão pondo fim a uma vida de sacrifícios. Se, depois de
liberta, quisesse continuar na mesma casa, sem exigir pagamento de
nenhuma diária pelos serviços prestados, talvez pudesse destinar ofi-
cialmente, em cartório, uma casa para moradia de Vicência, no futuro.
Até lá, que morassem com ele, casa paroquial imensa tem lugar para
todos. Repartir o pão, fácil em sua mesa farta.
Certidão de batismo, não; criava direito. Melhor depender só de
sua bondade futura. Tantas boas intenções redimem pecados, permi-
tem outros, um total de mais cinco: todos filhos do vigário e de Joaquina.
Logo a principal ocupação de Joaquina era cuidar da prole do
vigário. Para a cozinha e demais serviços, justificadas pelo resguardo
dos partos sucessivos, as negras de volta. Agora, as mulheres da família
só se ocupavam das coisas mais finas e respeitosas. Cuidavam mesmo
era de tirar a poeira nos santos da igreja, dar brilho aos cálices sagrados,
fazer reluzir as poucas pratarias do tabernáculo e caprichar nas re-
feições esmeradas para o vigário.
No trato social da filha primeira e da mulher do padre, o devido
respeito à singular posição. Quietas e humildes, em todas as missas,
andar rápido pelas ruas, olhar no chão. Caminho da igreja, volta
para casa. Só uma concordância geral: eram bonitas, mas que nin-
guém se atrevesse. Quase uma profanação pensar nisso.
Na confiança da intimidade do leito, na quase cumplicidade
conquistada, Joaquina permitia-se a maiores revelações com seu com-
panheiro. Contava-lhe suas infantis lembranças da África, a organi-
zação de seu povo. O senhor de seus pais era quase um rei. Poderoso,
sustentasse quantos pudesse para seus serviços, para seus luxos. Es-
posas, só quatro já lhe garantiam a necessária prole. Trabalhavam e
tinham moradia, comida e poucos pertences. Tinham a proteção, sem
intenção de troca, de venda, de comércio. Eram servos, porém se
sentiam todos integrados em uma linhagem da qual poderiam se
orgulhar. Gente, enfim, diferente de mercadoria.
24 Águas atávicas

O padre ouvia mais as delícias da companhia nua. Pensava no


tempo perdido, nos prazeres negados, em benefício de quem? Por
acaso se esquecera de suas obrigações eclesiásticas? Fora menos cristão
em tratar bem uma pobre criatura como esta negra? Sobressalto; e
quanto à alma da Joaquina? Lembrava os tempos de convento, das dis-
cussões sobre o antigo e curioso tema da existência ou não de alma nos
índios. Em bom tempo a Igreja se pronunciara, oficialmente, em con-
cílio: sim, os índios tinham alma, era possível a catequese. Que fossem
os religiosos atrás dos silvícolas a convertê-los. Levassem armas, efetivos
militares, pois eram conhecidas as barbaridades dos gentios. Se resis-
tissem, que os obrigassem, escravizassem, se necessário. Mas quanto
aos negros, já escravos em sua distante terra, continuavam nesta situa-
ção, era só uma questão de mudar de dono, não conhecera qualquer
dúvida sobre a existência de suas almas, aliás a preocupação nunca
existira. Curiosa diferença, concluiu. Tinha de discutir este assunto
sério com seus distantes superiores eclesiásticos, algum dia no futuro.
As infantis recordações da África. A correria de todos, o barulho
de armas de fogo pela primeira vez ouvido. Desespero, negros des-
conhecidos agarrando-a, forçando-a a seguir viagem, muitos outros
de sua linhagem na mesma situação, pai também; mãe, mais ligeira,
sumiu na mata, escapou. Muitos dias andando, terras distantes. Final-
mente o descanso, grande aldeia de Uidá, Reino de Daomé, Costa dos
Escravos. Mar, água salgada a perder de vista. Espanto na visão do
primeiro branquelo. Português, brasileiro ou baiano, uma coisa só:
agudás. Feiura na cor da pele do rei deles, o Chachá. Muros altos de
prisão, primeiro nome guardado: Forte de São João Batista de Ajudá.
Treino para aprender palavras da fala estranha. São João Batista, di-
vindade dos agudás, o santo ajudava a quem? Importante aprender,
guardar as palavras, evitava ser jogada no mar e morrer afogada,
diziam. Ameaças por incentivo, medo a garantir o aprendizado.
O padre escutava mais as delícias da pele escura. Sobressalto.
Joaquina tentação do demo, lembrança imediata do castigo eterno.
Falou do fogo do inferno, escutou mármore. Insistiu fogo, escutou
mármore. Livro sagrado Bíblia; não, Alcorão. Estranhou, desistiu,
tentaria outro dia.
Marcos Faustino 25

Nos afagos noturnos, Joaquina contava as dores. A longa viagem,


sofrimento atroz. Porão mais abaixo das mercadorias, montoeira de
gente. Balançando para lá e para cá, enjoo, mal-estar, vômitos sobre
as pessoas, sem querer. Caganeira geral. Inevitável imundice. Ficar
em pé, só para crianças; adultos batiam a cabeça no teto. Ração min-
guada, água pouca. Calor, suor e chicote. Dias e dias com a esperança
da morte libertadora. Subir ao convés, só pequenos grupos de doentes
escoltados. Sangrias, limão e laranja curavam alguns; outros não: o
mar por túmulo. Que felicidade poder ver a claridade, refrescar-se
ao vento, talvez vivesse para chegar a algum lugar. Pavor dos ingleses,
proibição de escravos em viagens de navio. Todos os negros jogados
ao mar para esconder o tráfico proibido: preferível o prejuízo à prisão
do comandante, lógica cruel. Ajudava exibir alguns negros com fala
aprendida de branco, negava o tráfico.
As gostosuras da companheira nua. Sobressalto. Falou de seu
Deus de infinita misericórdia e justiça. A escravidão talvez fosse algum
castigo merecido para todo um povo, quem haveria de conhecer os
desígnios da divina providência? Ouviu: quem permite tais barbari-
dades não pode ser justo. Alá é grande, seu castigo aos infiéis fará
justiça sem misericórdia. Como entender a vontade de um Deus que
nem se dera a conhecer a este povo assim punido, nem muito menos
anunciara suas regras na África Negra? Não pode existir punição por
inobservância de preceitos desconhecidos. O padre desistiu da cate-
quese, por enquanto; tentaria novamente mais tarde.
A negra relatava mais segredos. Valongo, nome a evocar
lembranças agradáveis: fim da viagem, do cansaço, mais espaço.
Mesmo na degradante situação, a alegria ainda era possível, restara-
-lhe ainda o bem maior da própria vida. Festas no reencontro de se-
melhantes, muitos negros no tal do Valongo, todos na espera.
Agora melhores tratos, água farta, comida para engordar, bon-
dades para conseguir melhor preço na venda. Fora, gente parecida
com o Chachá, rei dos agudás, em Daomé. Dois brancos a conversar
por longo tempo, desacordo de preço; mercadoria boa, no final, o
acordo. Levava os cinco pelo preço pedido e mais esta negrinha, eu,
de lambuja. Adeus Valongo, na cidade do Rio de Janeiro. Muitos dias
26 Águas atávicas

de viagem, a pé, a cavalo, em carro de bois e eis-me aqui, servindo o


feiticeiro da aldeia, o padre.
Mas não reclamava, fora enfeitiçada por encantos que só a ela
sensibilizava, e se dava por feliz, em vista da sorte dos outros negros.
São João Batista, primeiro nome aprendido, prisão, fortaleza do vice-
-reinado brasileiro na África, divindade lembrada só muito mais tarde,
logo depois do nascimento de Vicência, primeira filha com o padre.
Feitiço de água na cabeça, sal na boca e vinagre no peito, batismo,
cruzinhas com o polegar, ajuda para a criança nascida cristã. Filhos
seus, cor de Chachá, criados juntos dela, sem sofrimento, já eram
consolo suficiente para suas desgraças pretéritas.
Merecia mais era viver as delícias da companhia. Resolveu só
rezar pela alma da companheira. Deus, na sua infinita misericórdia,
haveria de se compadecer da herege, perdoando-a no seu derradeiro
alento de vida. Em compensação, daquele ventre só nasceriam cristãos
praticantes, consolara-se o padre, com certa ironia.

Uma semana antes, na importante missa de domingo, quase


toda a vila lotando a igreja, Pereirinha prestou atenção na inquietação
dos presentes e no capricho do vigário, falando exaltado, sermão a
contar o caso da primeira pedra, quem iria atirar a primeira pedra?
Falou do primeiro pecado de Eva. Contou o caso da mulher que lavou
os pés de Jesus, a mesma senhora na frente do Salvador Crucificado,
a mesma fiel seguidora saindo do sepulcro, anunciando a boa nova
da ressurreição. Uma pecadora, e como! E Jesus a perdoou, deixou
que o tocasse. A casa do Senhor, a Igreja, tem de estar aberta a todos
os pecadores. Acolher a todos. Pereirinha, distraído, só guardou o no-
me da prostituta arrependida, Madalena, o mesmo da sua santa mãe.
Lá-em-Baixo, o sermão do padre, entendido como uma espécie
de licença para as meninas assistirem ao sacramento, clamou pela
urgência dos preparativos. Tudo que havia de pano branco foi trans-
formado em longos vestidos, blusas de mangas compridas, sem decote,
botão a lhes fechar o pescoço. Na semana que antecedeu a primeira
comunhão, a única atividade das meninas foi recortar modelos de
roupas, alinhavar, costurar, pregar botão, disfarçar nos cerzidos os
Marcos Faustino 27

pequenos defeitos da pobreza. A freguesia ficou esquecida pela rara


oportunidade de afazeres mais santificados.
O sermão também provocou no Pereirinha muita curiosidade.
Nas aulas seguintes foi quem mais se atreveu nas perguntas. Era
perguntar e o padre avermelhar, suar, responder custoso, sofrido.
Mais perguntas, os meninos nos sorrisinhos e as meninas na seriedade.
– O que era uma prostituta? Era um tipo de santa?
– Onde que a pecadora tocou Jesus?
– Mesmo assim, ainda teve o privilégio de anunciar a boa nova?
Parou de perguntar quando um marmanjão amigo cochichou
para ele: – Cala boca, Pereirinha, você está dando é fora, fica quieto.

No dia certo, lá estavam todas, a Menina, a Lili, a Flor e a Nega


Ditinha, além da Vó, enfileiradas no mesmo banco. Sérias, sem per-
missão da Vó para olhar à esquerda ou à direita, só para frente, para
cima do altar, na figura do crucificado. Faziam questão de acom-
panhar as orações, mesmo não sabendo a maioria, mexiam os lábios
silenciosos com a disfarçada competência.
O padre, nesse dia, falou da importância do arrependimento,
da acolhida de Jesus, mesmo àqueles ou àquelas que mais pecam. E
foram tantas as graças citadas por conta dos sinceros arrependimentos
que a Vó precisou cutucar a perna da Flor quando percebeu nela um
começo de emoção, prejudicando a combinada feição séria, que todas
deveriam manter até o fim.
Hora deles, duas filas, meninos de um lado, meninas do outro.
Pereirinha era o quinto, ao lado da Vicência. Cabisbaixos, compene-
trados, na orientação do padre, passo a passo em direção ao altar, à
santa hóstia consagrada. Rabo de olho dos dois; os enjeitados se reco-
nheciam, se aceitavam, inocentes punidos por pecados alheios, a filha
do padre e o menino das meninas Lá-em-Baixo. Comunhão, partici-
pação, particular, só deles, não para as outras crianças! Foi só.

Fim, igreja vazia. Chuva fina, indecisa, envergonhada das gotas,


começava e parava, mesmo assim molhava. Pereirinha pensava: água
28 Águas atávicas

tira pecado, purifica, catecismo recente ensinava. Agora, água deli-


cada, leve sentimento de aceitação, restrito por ser começo, inevitável
pela força do sacramento. Sentimentos a inundar a alma, chuva fina
continuada a carregá-los na procura da comunhão com iguais.
Molhava também Joaquina, escrava africana e mulher do
padre, gotas de memória do humilhante cativeiro, navio negreiro de
atroz sofrimento, a sobrevivência como prêmio. A vida familiar de
agora, sentimento de vitória, tudo misturado pela fina chuva.
As meninas sem perceber, chuva de molhar bobo, elas não,
desciam para Lá-em-Baixo, despreocupadas em alegres comentários.
Pareciam pertencer à santidade há pouco presenciada. Engano, mo-
lhavam, enjeitadas, excluídas. Garantiam a iniciação dos rapazes da
vila nos prazeres mundanos, colaboravam para a hipocrisia alheia na
continuidade de matrimônios capengas dos Eliosórios da vida. Re-
compensa quase nenhuma, pouco pagamento e muito desprezo, raras
sortes com enrabichados ricos. .
Chuva rala, mesmo assim, molhava. Em breve, pequenos filetes
aparecendo, água a escorrer pela terra transportando a mistura das
pessoas, tudo junto, em direção ao riacho, logo abaixo.
Marcos Faustino 29

Valentia encomendada

Anos depois, na porta da intendência, foi chamado em reser-


vado. Quase em sussurro, cuidando que não houvesse outros ouvidos
por perto, o intendente disse: – Pereirinha, o recado é de importância,
é pra homem. Diz pra Flor que eu não quero saber daquele turco
safado rondando por lá. Tive notícia que o danado anda por aqueles
lados. Quero o mascate longe.
Pereirinha, agora nos seus quinze anos, ruminando o recado,
pegou a direção lá de baixo. Devagar, tinha tempo, o turco só chegava
à noite.
O recado era do próprio, o Braulino, fazendeiro mandão nas
políticas, chefe na intendência. Sério, ia pouco à venda, apenas quando
os outros graúdos, o vigário, o coletor e o farmacêutico apareciam. Os
mais elevados assuntos, respeitoso no tratamento aos presentes, sempre
a favor de providências tomadas por sua excelência o fulano, sua
eminência o beltrano. Reverência maior para sua Alteza, o Imperador,
alma boníssima!
Dava importância falar dos importantes, citar-lhes os nomes,
aprendeu Pereirinha.
“Recado é pra homem”. Pereirinha tratado como homem, gos-
tou vaidoso. Recado é missão, ainda mais quando a mando do próprio
Braulino, pensou.
“Não quero saber daquele turco safado rondando por lá”. Sa-
fado era mesmo, rico cheio de mercadoria, deixava uma mixaria. A
Flor merecia mais. Ela tentou uma vez descobrir onde o danado amoi-
tava o dinheiro das vendas em outras vilas, mas nada conseguiu. Ban-
dido esperto, sua vez chega. Na hora de acertar os pernoites, a cama
gostosa, as muitas refeições caprichadas, as merendas sortidas, Vó ti-
nha de querer comprar mercadoria baratinha, porcariada que nin-
30 Águas atávicas

guém queria. Vó desconversava, dizia não, compromissos a saldar,


precisava de dinheiro limpo. No fim aceitava, vendia depois, mais
trabalho, poucas vezes lucro maior. Bandido sovina, sua hora chega.
Jeito estrangeiro, língua enrolada, curiosa no início, depois fica pare-
cendo fala esquisita de Belzebu. Bandido capeta, sua vez chega.
“Quero o mascate longe daqui”. O safado vem é comprar muito
prazer por pouco dinheiro. Em troca do serviço de primeira, merca-
dorias de segunda. Que ficasse longe. A vila merecia coisa melhor.
Sua hora chegou, resumiu Pereirinha.
Entrou na casa da Vó, foi atrás da Flor. Contou, deu o recado. A
moça escutou; logo, dor de cabeça, ranzinza, aborrecimentos, coisas
daqueles dias do mês, indisposta. Fácil para ela cumprir a ordem: fi-
cava bem com o Braulino, se safava por conta do necessário resguardo,
sem precisar inventar outras desculpas. Ela naquele estado, o turco ia
mesmo querer outra, direito dele.
“Não quero saber daquele turco safado rondando por lá”. Se a
Flor não podia, outras também não. Precavido com a manha da Flor,
Pereirinha avisou a todas, ordem do Braulino, deixou claro.
– Nem quero saber daquele turco sujo, nunca me deu nada.
Além do mais, hoje à tarde, tenho a visita do meu Tonhão – disse Lili.
– Eu mesma quase não entendo o que ele fala – rebateu a Me-
nina. Se insistir, minto que estou igual a Flor, uma sangueira só. Quero
ver ele querer...
– Pro meu lado, só requisição de serviços: Ditinha um café, Di-
tinha lava minha roupa; pensa que ainda sou escrava. Tenho papel
de alforria, sou livre, nem que seja para continuar na mesma traba-
lheira de sempre, mas obrigações, só as que a minha precisão mandar.
– Digo que não quero nenhum tipo de mercadoria. Mas se,
por milagre, quiser pagar em dinheiro, não posso recusar o quarto,
pernoite sem diversão, só tirar a canseira da viagem, sentenciou a Vó.
“Quero o mascate longe daqui”. Que adiantava toda aquela
mulherada? Recado é pra homem de importância cumprir. Homem
só tinha ele ali na pensão. Turco safado, sua hora chegou. Pensou na
sua figura, tinha de impor respeito. Camisa, servia a que usava para
Marcos Faustino 31

fora da calça; abriria os botões de baixo. Calça, também servia a que


usava. Calçado, o da primeira comunhão, o único. Punhal na cintura
aparecendo o cabo no desabotoado da camisa.
Achou primeiro o punhal. Tirou da bainha e olhou por um
bom tempo a lâmina fina, comprida, pontuda, perigosa. Pouco tempo,
o que está vivo, morre, pensou em muda contemplação. Conhecia, já
vira. Pôs de volta na bainha e ajeitou o cabo de madrepérola apare-
cendo na cintura. Experimentou os sapatos, apertados, não servem
mais, melhor descalço, facilita a rapidez do pulo, se necessário.
Vó fez pedidos, contou histórias de mortes violentas, desneces-
sárias, mal-entendidos, que mudasse de ideia, terminava. Pereirinha
mudo, sério.
Insistiu, até a tardinha quando chegou o Tonhão, na sua montaria
preferida. Apeou e foi direto para o quarto de sua enrabichada. Vó,
de imediato, pediu-lhe conversa reservada, Lili atalhou: – Pode entrar,
Dona Celeste, ainda estamos nos boas-tardes.
Alegou muitos anos de conhecimento, fez apelo, que ele Tonhão,
homem de bem e de posses na vila, não deixasse aquilo acontecer.
Tão novo o menino, na flor da idade, criatura que Deus mandara
para o sustento da sua velhice. Mesmo sem parentesco nenhum, só
estima, criou Pereirinha como uma mãe, considerava-o filho, todas
as meninas gostavam muito dele. Chorou, implorou pelo amor de
Deus. Comovidas, Lili e todas as outras meninas nesta hora desocupadas,
pela desgraça pressentida.
Pereirinha na sala mal escutava, mas entendia o sentido da
conversa. Imaginou justificativas para manter a sua intenção. Tinha
de demonstrar logo a firmeza que o assunto final merecia.
Tonhão escutava, parecia interessado. Virou para a Vó e falou:
– Pode ficar despreocupada, não vai acontecer nada com o rapaz,
tem a minha garantia. Amigo é para essas horas.
Em seguida saiu do quarto, entrou na sala, olhou por um tempo
para Pereirinha, mediu, avaliou, saiu mudo. Foi até a sua montaria,
voltou e perguntou:
– Rapaz, onde você vai falar com o turco?
32 Águas atávicas

A pergunta não era a esperada, mas sem vacilar Pereirinha


respondeu: – Fico na porta de entrada da sala. Da varanda ele não
passa.
– Lili, traz duas cadeiras. Põe ali na varanda, ao lado da entrada.
Afasta um pouco mais da porta, aí tá bom. Sento meio de lado, meio
de frente, de esgueia, sem visão de primeira por parte do turco na
chegada. Nesta posição, mesmo com um pulo bem dado, o danado
não me alcança. Se não obedecer ao Pereirinha, acerto o turco, sem
erro, pensou Tonhão. Lili, senta aqui do meu lado, vamos conversar
fiado, ordenou. Hora que o turco apear da montaria, depois que ele
notar você sentada comigo, sai naturalmente, vai para seu quarto.
Não precisa rebolar gostoso, que isto é só pra mim, finalizou malicioso.
Lili gostou do papel que lhe reservara seu homem, talvez por
conta do comentário final, sem atenção na gravidade da tragédia
que se armava.
Discreto volume por sob a camisa, uma garrucha, explicação
segura para o que buscara no arreio de sua montaria. Tirou a arma
da cintura e a pôs no colo, chapéu por cima. Voltando-se para o Pe-
reirinha, deu a ordem: – Fale firme, mas respeitoso com o Abdula. Só
quero que você comece dizendo para ele não passar da entrada da
varanda. Isso é o mais importante para mim: não passar da varanda.
O resto, vai por sua conta, o que for de seu agrado.
“Sr. Abdula, não entra na varanda. Fica fora”. É o que tinha de
acrescentar ao que ia dizer. Repetiu o discurso várias vezes na sua
cabeça, com a nova frase introduzida, memorizando tudo para evitar
erros no momento crucial.
Algum tempo depois, despontou o mascate na curva da estra-
dinha. Eram três mulas, a de montaria de Abdula e duas cargueiras.
Ajudante a pé puxava as bestas com as malas amarradas por sobre o
lombo e pendidas uma de cada lado.
Inicialmente lentas na descida, cansadas do longo dia de mar-
cha, as mulas animaram o passo, quase adivinhando o alívio do peso
no certo fim da jornada. O ajudante não mais puxava as mulas, o
contrário acontecia: o homem descia ligeiro rebocado pelos animais.
* * *
Marcos Faustino 33

O comerciante, aproximando-se, viu Pereirinha no portal da


entrada; interpretou como sinal de boas-vindas. Notou também a
presença de Tonhão. Pensou no interesse, ia puxar conversa de bati-
zados, de casamentos, não sabia aonde, comentário escutado, notícia
certa, espalhava logo a boa-nova. Fácil vender; preço maior, só nestes
acontecimentos. Quem sabe, talvez a sorte de uma freguesa mais
endinheirada, gente do Tonhão. Quem sabe, arriscando a mentira, a
venda bem feita como recompensa. Animou-se.
Apertou o passo do animal, desceu, amarrou a corda do cabresto
no galho de baixo da jabuticabeira, ordenou ao ajudante que descar-
regasse as mulas e dirigiu-se à varanda, rumo à porta de entrada,
imaginando boas vendas.
Lili levantou-se e entrou. Nervosas, ansiosas, todas as meninas
estavam no quarto da Vó. Vela acesa junto à gravura encaixada no
espelho da penteadeira, começo da noite, devoção, pedidos à Sant’An-
na. Vó continuava a implorar, agora em silêncio, a intercessão mila-
grosa; que nada acontecesse ao seu querido moleque, rezava.
Antes que o primeiro pé do turco pudesse alcançar a varanda,
a voz de Pereirinha trovejou forte: – Abdula, não entra na varanda,
fica fora. Por ordem do seu Braulino não é pra entrar. É pra desaparecer
daqui, sua excelência mandou.
Moleque besta, pensou o turco. Pouco tempo atrás, frangote,
recadeiro de sem-vergonhas. Mas as palavras Braulino, sua excelência
e desconfiadas prudências, seguraram-lhe os passos. Estranho o
frangote se ajeitar, sair do encosto desleixado, se aprumar, tomar o
meio do portal, posição atenta. E o punhal na cintura?
Sentado, serenidade fingida, o Tonhão ouvindo aquele atrevi-
mento, quieto, mudo, consentindo. Na cabeça de Abdula sumiu o To-
nhão das notícias de freguesas, apareceu o Tonhão de uma morte e
um sumiço a mando do Braulino. Estranhou o olhar fixo no vazio a
um palmo atrás de sua cabeça. Caçador atento à caça. E por que a
mão embaixo do chapéu, segurado no colo e não na cabeça?
Situação era séria, parado, sem entrar na varanda, tentou con-
versa com voz amigável: – Paro onde mandou, venho na paz. Só
quero pouso por uma noite.
34 Águas atávicas

–Por ordem do seu Braulino, não é pra entrar. É pra desaparecer


daqui, sua excelência mandou – repetiu nervoso o Pereirinha, en-
quanto o turco ainda falava.
– Venho na paz, mandou não entrar, não entro. Tenho amigos
na vila, procuro pouso por lá. Tentou consolo nesta explicação.
– Sua excelência mandou desaparecer daqui.
Sem saída, nenhuma brecha para acordo.
Manter a calma, importavam mais meus interesses, pensou
rápido o turco. Afinal, por que visitava aquela vilinha decadente,
cheia de doenças, maleitas? Nunca uma venda boa. Gentinha pobre,
miudeza de pessoas. Nas fazendas vizinhas também, gente alegre e
hospitaleira, mas só; nenhuma grande riqueza. Mulher para ele, Ab-
dula, nunca faltou nem ia faltar, ainda mais nesses cafundós de mundo,
onde um brinquinho de pérola falsa, ou qualquer porcaria dourada
pagava muitas raparigas. Consideração, simpatia, nunca sentira por
parte desse povinho. Moleques imitando seu sotaque na rua, moças
debochando de sua careca. Vantagem insistir? Nenhuma.
Certo o sócio, seu irmão, que nunca quis passar por estas bandas.
Separavam-se em São Francisco, logo ali atrás, no Triângulo Mineiro.
O mano levava as mulas com as melhores mercadorias, as mais caras,
ajudantes só os de provada confiança, segurança na comitiva maior.
Dinheiro das vendas escondido em vários lugares, segredo só dos dois
e da cunhada libanesa arrastada nas andanças. Cortava o caminho
por Goiás e em Baús ou Coxim encontravam-se e seguiam em direção
a Cuiabá. Esta sim, cidade de muito ouro, riqueza fácil, gente impor-
tante, alguns até com passagens na corte do imperador.
Vantagem de enfrentar, nenhuma. O moleque ainda dava, pu-
nhal, arma de pobre, ligeireza no corpo ainda tinha. Bobagem de
enfrentar pelo Tonhão, próximo demais para erro no disparo, longe
bastante para alcance de ágil resposta. Sem outra arma, morria fácil.
Decisiva a presença do Tonhão, fiança cristã a garantir um possível
defunto muçulmano.
A impaciência do Pereirinha abreviou os pensamentos do turco.
– Sua excelência mandou desaparecer daqui.
Marcos Faustino 35

Morrer por mulher, vai lá, romântico, muitos morreram. Mas


por sem-vergonha, burrice, mau negócio. O mascate desistiu de vez,
vagaroso, deu meia-volta.
O polaco das mulas a tilintar novamente, afastando-se, anunciou
às meninas o fim do suspense. Pereirinha foi macho de verdade. Cor-
reram todas a cumprimentar o moço. Já encontraram o Tonhão de
chapéu na cabeça e o mesmo discreto volume sob a camisa, na cintura.
– Não fiz nada, só assisti à valentia do rapaz, colosso!
A Menina era a mais agitada, queria ouvir mais relatos, escutava,
falava, perguntava. As outras saíram, Tonhão acompanhou Lili. A
Menina e o Moleque entusiasmados falavam, olhavam-se. Depois
olhar prolongado, sem conversa. Pereirinha sentiu a valentia fugir,
avermelhou o rosto, saiu, foi para seu quarto, quis dormir, sua porta
entreabriu-se, braço delicado estendido na meia penumbra, a voz
meiga disse: – Vem.
Automático, levantou, mão na mão, seguiu a moça. No quarto
escuro dela, ainda sem jeito da novidade, ouviu o complemento do
convite anterior: – Vem, deita.
Sem dinheiro, sem caridade, apenas por admiração, presente
para o vencedor. Prazer primeiro de Pereirinha, gozo há muito não
sentido pela Menina. Repetições. Na madrugada, adormeceram.
Tonhão foi o primeiro a relatar o feito do Pereirinha na inten-
dência. Omitiu a sua participação por querer, valorizando o rapaz.
Não convinha ligar seu nome a tais fatos, papel secundário, só endosso,
sem ação. Repetiu, em dias seguidos, para admiração e grata surpresa
dos ouvintes o quase discurso de Pereirinha, com as adaptações per-
mitidas pela memória e convenientes falhas nos pequenos detalhes.
– Abdula, por ordem do seu Braulino não é pra entrar. É pra
desaparecer daqui, sua excelência o intendente mandou.
Cada vez que contava, realçava mais a firmeza da abordagem,
a fidalguia das palavras, o respeitoso tratamento a quem merece “sua
excelência o intendente”.
Quando depois de uns dias reapareceu na repartição pública,
o sr. intendente Braulino, ouviu o caso com muita atenção. À tarde, já
36 Águas atávicas

sem esperança da espontânea presença do Pereirinha, despachou


emissário até Lá-em-Baixo: que o Pereirinha viesse imediatamente.
O inusitado do cavalo já com arreio, cabresto puxado pelo
emissário, chamava atenção, despertando todo tipo de curiosidade
por onde ia passando. – Buscar o Pereirinha, ordem do Braulino –
explicava o cavaleiro.
Para saber mais, um número anormal de pessoas dirigiu-se à
intendência, disfarçando o interesse com a lembrança de alguma
pretérita pendência a resolver na repartição pública. Cada uma que
chegava, ouvindo comentários sobre o Pereirinha, esquecia o fingido
motivo da vinda e passava logo para o mesmo assunto.

Para Pereirinha, o resto do mundo tinha acabado. Desde o dia


que pôs o turquinho safado para correr, com ajudante e tudo, sem
nem tempo para arrumar as malas dependuradas, capengas, quase
caindo no trote ligeiro das mulas, Pereirinha invernou-se no quarto
da moça. Encanto mesmo, coisa que prestasse, era só ali, com a Menina.
Vó levou a notícia: – Seu Braulino mandou te chamar com ur-
gência.
O rapaz preocupado perguntou: – Coisa boa ou coisa ruim, Vó?
– Sei não, mas deve ser coisa boa. Se fosse ruim, não tinha
gentileza de cavalo arreado.
O emissário esclareceu, contou das muitas repetições do Tonhão,
da grata surpresa da fala recitada, já decorada por muitos, da admira-
ção causada pela insuspeitada valentia. Por fim, tendo agora chegado
ao conhecimento da autoridade maior, a honra da montaria.
Pereirinha com sua melhor roupa, achando agora seus únicos
sapatos não tão apertados, montou e lá se foi, fisionomia séria a
esconder-lhe a felicidade interior.

No caminho, instruído pelo intendente, o emissário perguntou:


– Pereirinha, lembra o que você falou praquele turco nojento?
– Lembro, uai!
– Então repete, vamos ver.
Marcos Faustino 37

Vendo a gagueira do Pereirinha, ensinou: – Ooooh! Tem de


falar assim: “Abdula, por ordem do seu Braulino é para desaparecer
daqui, sua excelência o intendente mandou”. Lembrou agora da sua
fala? Vamos ver, repete.
Sem esquecimentos, treino até a frase soar convenientemente
perfeita. Muito importante repetir que era ordem do seu Braulino.
Já na mais longa rua da vila, com o séquito de muitos meninos,
daqueles mesmos encostados nas portas das casas, imaginou garbo no
cavalgar, esperando acompanhantes mais ilustres. Não teve, ficou só
nos moleques. Molecada sem ocupação, devia caçar serviço, pensou
Pereirinha, em rompante de orgulho, julgando-os indignos do glorioso
cortejo.
Do lado de fora da intendência contou sete, sem os moleques;
dentro mais doze pessoas, além dos funcionários, estes fora da conta.
Demora pequena, logo o seu Braulino apareceu, passo lento, altivo,
importantoso, atenção só nele. Pompa à altura da ocasião, passou às
palavras, em meio ao silêncio logo feito:– Sr. Pereirinha! Chegou ao
conhecimento desta intendência que em..., em..., em lugar que não
vem ao caso, num gesto de destemida valentia, o senhor pôs a correr
um mascate trapaceiro, que há tempos vinha abusando da confiança
de nosso laborioso povo. Para que não pese dúvida quanto à veracidade
dos fatos, o senhor deve repetir as próprias palavras, ditas em tão me-
morável evento. Vamos, sr. Pereira, repita.
Pereirinha tinha medo de não dar conta do recado. Com o tur-
co safado foi fácil. Mas agora, qualquer erro era uma afronta, teste-
munhada de corpo presente por ele mesmo, seu Braulino, sem chance
de conserto. Precavido, no caminho a cavalo, já tinha invocado a
proteção de sua santa Madalena, lembrança que o livraria do vexame
do esquecimento.
Foi rápido no aprumo do corpo e voz ríspida, militar: – Abdula,
por ordem do seu Braulino é para desaparecer daqui, sua excelência
o intendente mandou.
Entusiásticas palmas explodiram no recinto, puxadas inicial-
mente pelo intendente, depois pelos funcionários e logo seguidas por
todos os presentes. Braulino conhecia o exercício do poder, a liturgia
38 Águas atávicas

das circunstâncias. Sabia as vantagens no exagero dos casos de engran-


decimento pessoal.
O turco safado tinha deixado muitos na dúvida do engano. Ca-
recia de providência o seu atrevimento: oferecer para suas santas fi-
lhas, o mesmo artigo vendido para as meninas Lá-em-Baixo. A lição
viera melhor que a encomenda. Bastava, concluiu em pensamento o
Braulino, que retomou a palavra: – Estas palmas mostram bem o
agradecimento de toda a população ao grande serviço prestado pelo
senhor. Tal ato de bravura cívica substituiu o enérgico planejamento
já traçado por esta zelosa intendência. Evitam-se, assim, desnecessários
gastos. Como é dado a todos conhecer, as providências legais são sem-
pre onerosas e demoradas, pois dependem de muitas considerações,
todas elas perfeitamente dispensáveis quando a oportuna valentia toma
o lugar da jurídica burocracia.
Continuou: – Certamente, na bela frase dita pelo sr. Pereirinha,
todos hão de perceber que a simples menção ao meu honrado nome,
associado ao poderoso cargo de intendente que exerço, por especial
graça do presidente de nossa província e do imperador, por si só já
seria suficiente para provocar o pavor no meliante, pondo-o em de-
sesperada fuga.
Voltou-se, fitou mudo alguns segundos a figura de Pereirinha,
elevou o tom da voz e arrematou: – Entretanto, é necessário reconhe-
cer, sr. Pereirinha, a sua inspiração na execução de minhas ordens,
razão por que em nome do povo de Sant’Anna do Paranahyba, que
eu represento, receba os mais efusivos cumprimentos.
Anos de convívio tinham ensinado aos funcionários que o inten-
dente costumava elevar o tom da voz e os braços no final de qualquer
discurso. Quando caíam abruptamente era o sinal para o início das
derradeiras palmas. Reservadamente, na sinceridade para os mais
próximos, o Braulino explicava que o costume fora-lhe inspirado na
corte: maestro em regência de orquestra. Bobagem, todos sabiam que o
intendente nunca passara além de Uberaba, cidade separada da corte
imperial do Rio de Janeiro por um mês inteiro de viagem a cavalo.
Terminadas as palmas, Braulino rumou solene para sua sala,
levando o Pereirinha pelo braço. Sentou-se, peito cheio esvaziado,
Marcos Faustino 39

tom de voz comum, perguntou ao jovem amarelado, ainda surpreso


de tantos agrados impensados: – Diz uma coisa, aquele dia eu mandei
um recado para Flor ou eu dei uma ordem para você cumprir?
Encorajado pelos sucessos recentes, Pereirinha sentia-se à von-
tade para explicações mais longas que o engrandecessem, merecia,
conforme testemunhos.
– O recado era para Flor. Mas ela não estava. Tinha sumido rio
abaixo em farra de pescaria sem freguês. Não dava tempo de voltar
correndo, pegar nova orientação, o safado chegou quase junto comigo.
Pensei, importante era o turco sumir, pegar outro rumo, ali não. Sem
tempo para outras ideias, deliberei, com o punhal na cintura: peitava
o homem. Que ele respeitasse a vontade do seu Braulino por bem. Se
fosse contrariado, era comigo.
A resposta tirou as últimas dúvidas do intendente, perguntou:
– Você assina com o dedo ou com a pena?
– Por bondade do padre e da minha Vó, rabisco minha assina-
tura. Com prazo, com paciência dos outros, até leitura faço, coisa
pouca.
Enquanto Pereirinha caprichava na resposta, Braulino tirava
da gaveta de sua mesa três folhas de papel em branco. Com a régua
riscou uma linha embaixo de cada folha.
– Vamos ver se atende aos conformes, assina aqui, três vezes,
uma em cada folha, embaixo, aqui nessa linha. As assinaturas têm de
conferir, uma igualzinha à outra.
Pereirinha pegou a caneta, rabiscou o nome. Demorou na
primeira, animou, confiança maior na segunda, a terceira, ligeirinho.
Mostrou ao Braulino.
– É, aprovado. Uma assinatura confere com as outras – disse
Braulino fingindo interesse no olhar.
Devolveu as três folhas para a mesma gaveta, apontou para o
cômodo no fundo, onde funcionava a prisão e ordenou: – Pereirinha,
ali atrás tem uma farda, vê se te serve.
Serviu com folga, até as botas. Duas fardas, só um par de cal-
çados. Pertenciam ao finado Pereira.
40 Águas atávicas

– Embrulha suas roupas, as de paisano, e pode voltar para sua


casa. Amanhã mesmo, ponho no correio para o comandante na capital,
o ofício de sua nomeação. Na ausência dele, quem manda em você
sou eu. Soldo, sabe-se lá quanto e quando, depende da bondade deles
e das finanças públicas, coisa complicada. Quando chegar, quem vai
te pagar sou eu. Pode sair.
Pereirinha aprumou-se e bateu rápido a sua primeira continên-
cia; tinha treino, brincadeiras de moleque imitando militar.
– Dispensado – respondeu o Braulino, surpreso pela de-
monstração.
Braulino queria há tempo novo soldado, de confiança, fiel
cumpridor de ordens, que substituísse o falecido. O rapaz servia, cão
de guarda, bom na puxada de saco, temente a quem manda. Na
curta frase, duas citações: ordem do seu Braulino, a mando de sua
excelência. Sua excelência, bonita referência, respeitosa. Acompa-
nhar e ver se o rapaz não desaponta. Meses à frente, tudo correndo
bem, assino pelo comandante, vejo quanto o rapaz vale e mando o
coletor pagar.
Os três recibos já assinados, preencho depois, lanço como “carpa
de logradouros públicos”, três datas diferentes, de antes da nomeação,
passa tranquilo.
Pereirinha, embrulho na mão, cruzou o salão já vazio, procurou
a montaria do lado de fora. Não viu mais o cavalo; era querer demais.
Soldado anda é a pé, concluiu para si mesmo. Na rua, já no lusco-
-fusco, pouca atenção deu às raras saudações.
Pensava mesmo era na Menina, no quarto.
Mais a frente, pouco adiante das casas do Lá-em-Baixo, o riacho
corria manso, pouca água anunciando seca próxima. Levava folhas,
finos gravetos, matéria inanimada, junto com ambições miúdas, hu-
mildes sonhos, realizações pequenas, teimoso curso d’água a cumprir
sua missão de carrear só o que merecia juntar-se ao amálgama
coletivo.
Marcos Faustino 41

Começa a guerra com o Paraguai

A ocupação dos vastos campos e cerrados mato-grossenses deu-


-se principalmente por sucessivas levas de mineiros e paulistas que,
do Triângulo Mineiro, transpuseram o rio Paranaíba, em passagem
estreita no porto Alencastro, junto à cidade de Sant’Anna do Para-
nahyba.
O flagelo da maleita era o comum encontrado pelos que segui-
ram por terra em direção ao poente, até as margens do rio Paraguai,
diminuindo as imensidões vazias na conquista deste território. O perigo
ficava nas baixadas, no vadear dos rios, contornar brejos, dar volta
nas nascentes úmidas. Na viagem de ida, pouca cisma, muita animação
a gastar; raras desistências, muitos sonhos a empurrar adiante o aven-
tureiro. Insidiosa, a doença vinha devagar, levava primeiro os mais
fraquinhos, almas inocentes. Dava para continuar. Fora duro reunir
todos os possuídos, dizer adeus e deixar os parentes e amigos. Adiante,
coragem na procura por terras tão distantes.
– Desistir agora, no meio do caminho, mortes em vão? Era
provação divina, logo acertamos – argumentavam os decididos. Morte?
Morte tem por toda banda: é aqui, é ali, sem escolha, consolavam-se
os mais obstinados.
Era só achar um lugar e apossar-se, construir os ranchos nas
baixadas, próximos aos ribeirões, aproveitando a água para as necessi-
dades das pessoas e do pouco gado trazido. Pegadas de caça, catetos,
queixadas, antas, na beira do rio, na trilha batida, o ardil da ceva.
Cartucheira carregada, na espreita, silêncio, que todo bicho tem lá
suas espertezas. Mudo, escondido na espera atenta, um tiro e pronto:
carne na panela.
Abóbora, moranga, quiabo, sorte as sementes trazidas, nasciam
logo no quintal. Ramas de mandioca nas covas. Roçar na foice primeiro,
42 Águas atávicas

depois com o machado derrubar a mata, trabalho duro. Atear fogo.


Plantio, primeira e segunda carpa, colheita por derradeiro. Arroz,
feijão e milho, fartura na terra bem escolhida, sobrevivência garantida
com os mantimentos no paiol.
Permanência mais demorada: tremedeiras, febres altas e fra-
quezas variadas acabavam encontrando as pessoas. A doença atacava,
judiava, matava, levava. Sentimento dobrado pelos que se iam, menos
braços fortes para o trabalho enfraquecendo a defesa dos que ficavam.
Depois, vinha o medo de não sobrar ninguém. Combatido e negado
quando surgia, mas inevitável.
Tinha também o perigo dos índios, amigos ou inimigos? As
respostas dependiam do relato, do caso contado, confundiam.
– Terra deles, os cavaleiros guaicurus, os canoeiros paiaguás,
terenas, caiapós e vários outros. Vestígios de assentamentos, Reduciones
Guaranys, sonho de padres jesuítas.
– Que nada, terra de ninguém. Cadê sinal de roça, de posse,
de gado? Malocas mudando de lugar, milhinho sem vergonha, plan-
tação miserável só mesmo para aguardente. Mandioca muito pouca.
Fartura, só a pesca, presente de Deus para todos, sem dono, garantindo-
-lhes o sustento.
– No meio da mata, chegam pertinho; você nem nota, quando
vê, estão na sua cara. Querem isso, querem aquilo, necessidade de
fome. Porrete esquisito na mão. Terra de caça pra eles. Dá isso, dá
aquilo; por medo, vamos dando. Esconde para não ficar sem nada.
Fácil enganar na manha, sorte nossa. Falsidade deles ou nossa?
– Índio é sempre preocupação. Deus deles é outro. Indecências
de mulher com peitaria de fora, bonito nas novas, nas velhas, cruz
credo! Gente preguiçosa, só reparando, na espreita. Notícia de um ou
outro feito escravo, convertido na fé, na marra. Sem serventia no tra-
balho, não prestava para nada. Africanos eram melhores. Captura de
índios, logo um negócio abandonado, sem lucro, mercadoria sem valor.
O contágio atingia mesmo as povoações em terrenos mais altos,
no divisor d’águas de importantes bacias hidrográficas, Paraná e Pa-
raguai. A vila de Camapuã se desmanchou, resultando lugar de casas
Marcos Faustino 43

abandonadas, algumas até muito boas, com passado de festas impor-


tantes. Restaram apenas negros escravos sem alforria, esquecidos.
Desanimada de curas, muitos remédios tentados em vão, gente
voltando, deixando covas ermas de entes queridos, perdidas as ilusões
da vida sonhada. Entretanto, alguns ficavam, ocupando assim o vasto
território ao sul da província de Mato Grosso.

Já para o norte, Cuiabá teve sorte diferente. Há mais de século,


notícias de ouro atraíram primeiro bandoleiros de todo tipo, depois,
tropeiros, mascates, gentalha miúda sem pressa, chegando por terra.
Por uma rota, de São Paulo, em Franca, pulavam o rio Grande, passando
por Uberaba, Triângulo Mineiro, travessia pelo porto Alencastro,
Sant’Anna do Paranahyba e a imensidão dos sertões dos Garcias, em
direção a Coxim. Outra rota, mais longa, preferida por bandeirantes,
era descer o rio Tietê, entrar no caudaloso Paraná, contornar as ca-
taratas de Itapura, rumo ao sul, deixando à direita, primeiro, o rio
Sucuriú, desprezando em seguida o Verde, só então, no terceiro afluente
importante, subir, contra a correnteza ligeira do rio Pardo. Já no divisor
das bacias do Paraná com o Paraguai, no varadouro de Camapuã,
distância vencida no seco, barcos e batelões rebocados na força bruta,
até Coxim. Depois descer pelas águas do Taquari, subir o rio Paraguai,
Cuiabá no fim.
Gente da corte, autoridades à cata de tributos e militares de al-
ta patente chegavam a Cuiabá por água, desde o Rio de Janeiro. Volta
comprida, navegação costeira até o mar do Prata, subindo pelo rio
Paraná e depois rio Paraguai acima. Correnteza quase nenhuma,
passava-se a capital Assunção. De volta ao Brasil, Forte de Coimbra,
Corumbá, região afundada, baixios alagados a emendar muitos veios
d’água, o Pantanal. Por fim, pelo rio Cuiabá até a capital da província
mato-grossense, nome do rio emprestado à cidade.

De adiante dos campos de Vacarias, para além de Nioac, nas


nascentes do rio Miranda, dos Dourados, Apa, proximidades do Para-
guai, Forte de Coimbra e Corumbá, lonjuras de muitos dias de viagem,
meses até, há tempo vinham notícias de gente fugindo, sentido inverso
44 Águas atávicas

ao dos povoadores. Relatos de ruindades, massacres, judiação sem


piedade. Sem respeito por família, barbaridades com as mocinhas e
mesmo com as senhoras. Roubos descarados nas fazendas, saque de
gado, pilhagem de todo tipo de mantimentos.
Eram os paraguaios invadindo o Brasil, difícil acreditar!

Entretanto, continuaram a transitar comitivas de pessoas magras,


esqueléticas algumas, com fome e desesperança a clamarem por
ajuda do distante imperador. Pouco ou nenhum possuído, deixado
para trás na pressa da fuga. Voltavam para Minas, Goiás e São Paulo.
Esta espécie de mesopotâmia latina, imensa região entre as
partes altas dos rios Paraná e Paraguai, agora se esvaziava pela debanda
da já esparsa população, afugentada pela guerra. Os índios, sem co-
nhecimento de outro lugar para retirada, ficaram na terra que, antes,
só a eles pertencia. Uns atacando brasileiros, outros fustigando para-
guaios, alguns, os dois tipos de brancos.

Difícil acreditar, mas já sem possibilidade de negar: os para-


guaios invadiam o Brasil!
Brasil, um império de caranguejos a beira-mar, andando
sempre de lado nas areias das suas compridas praias, sempre com os
olhos para além do Oceano Atlântico, na distante Europa ou na
longínqua África, ambas abandonadas contra vontade. Seu vasto
interior, mero fornecedor de riquezas minerais a serem transportadas
para o litoral e de lá para o exterior. Mas, aqui também acontecia
uma mistura de cores. Além dos nativos índios e dos genuínos brancos
e negros, surgiram os mamelucos, mulatos e pardos, acidentes de
cama. Sem chance de retorno a qualquer outra pátria, criaram fortes
compromissos com os novos meridianos. O apego à terra apareceu,
após algumas gerações, nos corações desses moradores distantes dos
ares marítimos. Autoridades ausentes, defesas precaríssimas
A República do Paraguai era diferente.
Com a desgraça política dos jesuítas na Europa, culminando
na sua expulsão aqui e lá, os índios foram transformados em escravos
de fácil captura, já reunidos num só local, as reduciones. Fugindo do
Marcos Faustino 45

humilhante cativeiro imposto pelos bandeirantes paulistas, a mando


da coroa portuguesa, milhares de guaranis foram recuando à procura
de proteção. Primeiramente para a margem direita do rio Uruguai e
depois mais ao norte, na região do rio Paraguai, no isolamento dos
seus mais distantes afluentes vindos dos Andes ou, mesmo, nos baixios
inundáveis da região do Chaco.
Ao longo de séculos os jesuítas ensinaram o convívio pacífico
entre nativos e recém-chegados, sem perseguição de qualquer tipo.
A união entre índias e brancos era incentivada e muito apreciada a
poligamia, pecado que os colonizadores logo aprenderam a perdoar
nas selvagens. No convívio doméstico forjava-se uma fala nacional
própria, o jopara, preservando-se a língua guarani enriquecida por
hispanismos. Falhou a declarada intenção de introduzir logo o idioma
do conquistador porque este é o meio mais eficaz de desterrar destes po-
vos o barbarismo.
Assimilaram também as técnicas rudimentares de fundição e
tecelagem, passando a se comportar como autossuficientes e uma po-
pulação com algumas características urbanas. No intuito da conversão
dos gentios, os padres missionários valeram-se de peculiar organização
1. Carlos Antônio López (1792-1863),
social, com a bênção dos reis espanhóis a
filho de alfaiate, através dos estudos galgou quem recolhiam ricos tributos. Nas suas
melhor posição social, chegando à oligar-
quia crioula graças ao casamento com
reduciones, o uso da terra era coletivo, os
Juana Pabla Carrillo, rica proprietária. frutos da colheita guardados em paióis
Segundo presidente da República do Pa-
raguai , de 1841 até sua morte, sendo su-
comunitários. Veleidades de uma socieda-
cedido por seu filho Francisco de caracterizada por de cada um segundo
Francisco Solano López (1827-1870), sua capacidade, para cada um de acordo
general aos dezoito anos, após o fale-
cimento de seu pai, sucedeu-o na presi-
com suas necessidades, com a administra-
dência da República. El Mariscal, na
ção nas mãos dos padres de santas inten-
guerra grande contra a Tríplice Aliança,
ções e, posteriormente, na batuta dos Ló-
resistiu até o fim. Morto em Cerro Corá,
pez1. Quase tudo pertencia ao Estado. O
foi enterrado junto com seu primogênito
por sua esposa, a irlandesa Elisa Lynch.
Estado pertencia aos López e a seus raros
amigos. Sem reis, surgiu uma peculiar república hereditária, bem no
meio do continente sul-americano.
Em poucas gerações, uma nação mestiça, isolada, mais guarani
que europeia, mistura de raças com identidade própria, grata a seus
46 Águas atávicas

benfeitores materiais, jesuítas primeiros e posteriormente os López, a


quem era muito fiel.
Francisco, o segundo López no poder, foi à Europa e de lá trouxe
técnicos habilitados. Consolidou a fundição própria em Ibicuí, montou
arsenal com bom estoque de munição e criou estaleiros competentes
na fabricação de embarcações com casco raso, mais apropriadas para
a navegação fluvial, de baixo calado. Também trouxe de Paris uma
companheira e um sério problema: a irlandesa Elisa Lynch era sepa-
rada do primeiro marido, oficial do exército francês com quem já
tinha filhos. Não poderia, pois, receber o indispensável sacramento
do matrimônio, tornando-se esposa oficial. Mulher nova, bonita e
separada sempre excita a maledicência pública. Mais ainda já tendo
provocado comentado duelo entre nobre russo e o comandante militar
do distraído marido que, ao tomar conhecimento dos fatos, abandonou
a disputada esposa. “Como receber semelhante pessoa em nossa casa,
com sua respeitável mãe e puras irmãs?” – ponderou-lhe o velho
pai, na época ainda no poder.
Firme na defesa de um tal “equilíbrio político” que espelhasse
sua crescente influência na região, o Grand Paraguay, precisava de
saída para o oceano, o mundo escancarado, sem regras de ninguém,
exceto as da Inglaterra, naturalmente. Mas como, se a Argentina de
um lado e o Uruguai do outro dominavam a entrada do rio do Prata?
A República progredia, crescia em armamentos e recrutamento
militar, precisava de mais espaço. Em volta o vazio de uma província
brasileira, presa fácil. Em Assunção bloqueou o rio Paraguai para
embarcações brasileiras que seguiam em direção a Cuiabá. Transpor-
tavam armamentos, justificou-se López. Corumbá sem defesa, sem
provisões; alguns tiros de canhoneira, bispo e guarnição militar em
fuga, cobardes brasileños. Cuiabá ficaria para mais tarde. Também
por terra cruzou a fronteira; resistência pífia, massacre de poucos
militares brasileiros, atrevimento de locos brasileños. População civil
em fuga, cidades arrasadas pelo fogo.
Províncias vizinhas, recentemente rebeladas, talvez pudessem
gostar de novas fronteiras e rearranjos geográficos. Contava com Cor-
rientes e Entre Rios na sua luta contra o poder de Buenos Aires, talvez
Marcos Faustino 47

até com a República Piratini, veleidade derrotada na recente Guerra


dos Farrapos, na província brasileira do Rio Grande do Sul e com o
apoio dos blancos uruguaios. Território argentino desrespeitado, nume-
roso exército paraguaio a caminho da cidade brasileira de Uruguaiana,
com intenção de seguir até a foz do rio do Prata, no Uruguai.
2. Justo José de Urquiza y Garcia O sonho do jovem Mariscal Francisco
(1801-1870), rico estancieiro do Solano López logo viraria pesadelo. Urqui-
norte da Argentina, vendeu milhares
de cavalos para as partes envolvidas za2, mandão-chefe de Corrientes preferiu
na guerra. Foi o todo-poderoso cau- continuar argentino, o Rio Grande do Sul não
dilho de Entre Rios, Corrientes e Mis-
sões, opondo-se ao poder centrali- aderiu e no Uruguai, os blancos continuaram
zador da província de Buenos Aires. a odiar os colorados, mas ainda patrícios.
Tendo o Brasil e os colorados uru-
guaios como aliados, chegou a pre- Lá para as bandas Sant’Anna o assunto
sidente da Confederação Argentina
era outro. O intendente bazofiava: – Covar-
(1854- 1860). Manteve-se no poder
dia não aceito, eu mesmo não arredava pé!
em sua província de Entre Rios, até
ser assassinado. Defenderia, a mim e a meus companheiros,
com a necessária energia. Sempre há jeito!
– Estou a seu serviço, para o que der e vier – acrescentou rá-
pido o Pereirinha.

Entretanto, bastou a notícia de que um destacamento militar se


aproximava de Sant’Anna, para que todos se lembrassem de distantes
afazeres, disfarçassem obrigações a atender em outras regiões. Em
curtos dias a vila estava quase deserta, porque, junto à notícia verda-
deira da presença de militares, veio o boato muito temido: recruta-
mento forçado.

Um informante, a mando de Braulino, foi levar as novidades


ao patrão escondido em uma de suas fazendas, esta perto da divisa de
Goiás: – Posso garantir, excelência, tropa pequena e em bagaço, deslo-
camento muito lento. Não vê que cheguei na frente para melhor avi-
sar-lhe? Aliviado com as notícias, o intendente perguntou: – Quantos
homens? Conversou com eles?
– Nem quarenta, uns dez oficiais a cavalo, tropa magrela; res-
tante, soldadesca rasa a pé. Falei direto com o coronel, medo de tudo,
querendo dar adeus à nossa terra, desculpa de urgências, necessidade
48 Águas atávicas

de relato ao nosso imperador, que certamente tomará imediatas pro-


vidências na defesa do solo pátrio invadido.
Mesmo que seja recrutamento, não vão querer levar um velho
como eu, raciocinou o Braulino. Levo o Pereirinha comigo, confere
mais importância e em última instância posso cedê-lo como voluntário.
Recebendo a tropa assim, só eu e o soldado, fico mais à vontade para as
versões convenientes. Arroto mais valentia, coragem desmedida, pró-
pria do intendente, dirão todos. Respondeu ao informante: – Pois então,
compadre, volta lá e comunica que eu aguardo na intendência estes
bravos brasileiros – ordenou com os devidos ares de importância.
Avisa também o Pereirinha que partiremos imediatamente para a vila.
Braulino a cavalo, Pereirinha, soldado raso, a pé. Meio dia de
viagem e lá estavam na vila.
– Pereirinha, pega meu animal e esconde; poderia até ajudar
a tropa cedendo este cavalo. Entretanto, o grande apreço que minha
filha caçula nutre por esta montaria impede-me deste gesto; lembrei
disso na vinda.
Pereirinha, que agora servia também de guarda pessoal do
intendente, montou e foi em direção a Lá-em-Baixo. Esconderijo para
o cavalo não era a sua única preocupação. Vendo a Vó, perguntou: –
Cadê a Menina?
– Fugiu junto com as outras, ninguém é bobo de esperar sentado.
Vó Celeste cuidava da casa, velha sem atrativos para os homens
em retirada.
– Eu e o intendente viemos oferecer as boas-vindas à numerosa
tropa que se aproxima. Povinho da vila sumiu tudo; nós não, estamos
aí na firmeza de quem nada teme. Que rumo tomou a Menina, para
que lado foi?
– São Francisco, logo ali em Minas, poucos dias de marcha, zo-
na boa e movimentada. Certeza, as comadres acolhem. A concorrência
entre elas fica esquecida pela precisão do agasalho. Notícia do que se
aproxima serve de alerta às amigas, serventia a ser retribuída. Vó
continuou: – Medo mesmo, sumiu todo mundo. Caso delas é diferente
do meu. O corpo delas ainda sustenta a boca; judiado, prejudica a
Marcos Faustino 49

comida. Sem falar nas barbaridades, nos exageros de muitos homens


de uma vez só, esquecendo o pagamento pelos serviços prestados no
atacado. Aconselhei mesmo: desaparece todo mundo, amoita. Roupa
boa e decente, para disfarçar na estrada; companhia do Tonhão, se
ofereceu, garantia de mais respeito; São Francisco logo ali em Minas,
repetiu.

Aborrecimento de Pereirinha era a ausência da Menina.

Logo a coluna chegou; vinte e sete a pé e dez a cavalo. Homens


esquálidos, tropa magra de dar dó. Era a prova final da seriedade dos
acontecimentos, a realidade da guerra sangrenta. Seu comandante, o
3. José Antônio Dias da Silva, tenente- tenente-coronel José Dias da Silva3 contou
-coronel, comandante da Colônia Militar a triste sina de seus compatriotas: – A inva-
de Miranda. Dois anos antes da eclosão
da guerra, enviou o tenente Antônio João são veio sem aviso, gesto covarde e ines-
Ribeiro, da Colônia de Nioaque, ao en- perado, nos dias de Natal, dezembro úl-
calço de coluna militar paraguaia que
intimidara a Colônia dos Dourados. Não timo. Quase oito mil paraguaios em dire-
a encontrando, o tenente apresentou pro- ção à nossa capital Cuiabá.
testo formal, por escrito, à guarnição pa-
raguaia do Forte Bella Vista. Com a inva- Prosseguiu: – Uma frente coman-
são ofereceu resistência compatível com dada pelo coronel Barrios4, cunhado do
as disparidades das forças em confronto,
tendo passado por Paranaíba, a caminho ditador, subiu o rio Paraguai com mais
do Rio de Janeiro, com declarada intenção 4.000 soldados embarcados. Encontrou
de levar notícias.
resistência no Forte de Coimbra, 115 sol-
4. Vicente Barrios (1825- 1868), co-
ronel, casado com irmã de Solano López, dados com 17 canhões se defenderam até
comandou a invasão paraguaia de Mato quase acabar a munição. Sem serventia
Grosso. Promovido a general, chegou a
ministro da Guerra. Como muitos outros, maior ficar até o último cartucho, suicí-
foi “julgado” por traição e fuzilado, em dio. Fuga para Corumbá, onde se junta-
San Fernando, após a passagem das tropas
aliadas pela “inexpugnável” fortaleza de ram a mais 400 militares brasileiros, con-
Humaitá, no rio Paraná. tinuando rio acima em direção a Cuiabá,
debandada geral. Esquadra paraguaia seguia atrás, em impiedosa
perseguição. Havia os que queriam resistir, seguindo as ordens ex-
pressas do governador da nossa província. Farto armamento e mu-
nição aprisionados, mais 23 bocas de fogo abandonadas.
Sem perder o ânimo, o tenente-coronel foi adiante no seu relato:
– Outra frente por terra somando quase quatro mil homens, duas
colunas em pinça sob o comando do coronel Resquin5. A primeira
50 Águas atávicas

coluna, contando com mais de trezentos soldados, sob o comando do


major Urbieta6, contornou as nascentes do Apa para atacar a mais
avançada sentinela de nossas fronteiras 5. Francisco Isidoro Resquin (1823-
ao sul: a Colônia Militar às margens do 1882), coronel, comandante militar de
Concepción, norte do país, atacou com a
rio dos Dourados, já na bacia do rio Pa- cavalaria a província de Mato Grosso.
raná. Vendo do alto da serra as fardas Como general , resistiu com Solano López
até o final em Cerro Corá. Prisioneiro de
vermelhas se aproximando, o tenente An- guerra foi trazido ao Brasil. No regresso
tônio João Ribeiro7 compreendeu a inuti- reorganizou o Exército paraguaio. Deixou
a obra “Dados Históricos da Guerra do
lidade da resistência: ordenou a retirada Paraguai”.
dos índios e civis e liberou os seus para a 6. Martin Urbieta, major, subordinado
fuga também em direção a Nioac. Ficaria ao coronel Resquin, aniquilou a Colônia
Militar dos Dourados, no início das hosti-
para morrer sozinho ou com quem qui- lidades, e novamente fustigou os brasi-
sesse acompanhá-lo. O tenente e não mais leiros na Retirada de Laguna, infligindo-
-lhes pesadas baixas na batalha de Nhan-
de quinze heroicos voluntários respon- dipá, após a travessia do rio Apa, em Be-
deram à bala ao ultimato de rendição. la Vista (MS).
7. Antônio João Ribeiro (1823-1864),
Antônio João preferiu morrer a ver sua tenente, natural de Poconé (MT). A então
terra nas mãos de estrangeiros. Sei que Colônia Militar dos Dourados situava-se
próximo à fronteira com o Paraguai, nas
morro, mas o meu sangue e de meus com- cabeceiras do rio Dourados, onde hoje
panheiros servirá de protesto solene contra está a cidade de Antônio João, homenagem
a seu nome. À frente de 16 soldados não
a invasão do solo de minha pátria era o se rendeu a 220 paraguaios, tendo res-
que dizia sua última comunicação militar pondido : “Sei que morro, mas o meu
sangue e de meus companheiros servirá
despachada previamente para mim, seu de protesto solene contra a invasão do so-
comandante. Nobre cidadão de Poconé, lo de minha Pátria.”

próximo à capital de nossa província, este bravo tenente.


Continuou: – A outra coluna, mais numerosa, sob o comando
direto do coronel Resquin, atravessou o rio Apa penetrando no Brasil,
nas imediações do forte paraguaio de Bella Vista, subiu para o norte,
passando pela colônia militar às margens do rio Miranda. Na condição
de chefe desta Colônia recusei infame ultimato de me render em
meia hora. Pífia resistência, retirada em direção a Nioac, ainda assim
tentei retardar a marcha do inimigo, dando-lhe combate esporádico,
onde a situação permitia, como foi o caso às margens do rio Feio, a-
fluente à direita do rio Miranda. Com meus cento e trinta soldados
resisti pouco, mas resisti; ordenei retirada e queimei a ponte para re-
tardar o avanço do invasor.
Marcos Faustino 51

– Fuga geral da população de Nioac em direção aos Morros,


na serra de Maracaju, refúgio mais seguro. Na vila de Miranda tam-
bém, debanda total em direção ao Salobra e depois Coxim. Por onde
o exército paraguaio passava, tocava fogo em tudo; foi assim nas
cidades de Nioac, Miranda e Coxim.
Breve pausa no seu relato e o militar avançou: – Problema é
que eu não sabia dos acontecimentos em Corumbá para onde segui à
procura de proteção e para me juntar às tropas brasileiras. Nosso
mais importante porto fluvial já estava tomado há mais de semana.
Quase fui ao encontro dos inimigos. Não fosse a determinação de um
companheiro de voltar e avisar-me dos acontecimentos, a esta hora
8. Frederico Carneiro de Campos acho que já estaríamos todos mortos.
(1800-1867), coronel, nomeado pre- – Na flotilha inimiga que aportou em
sidente da província de Mato Grosso,
Corumbá chamava atenção a presença de
quando, a caminho de Cuiabá, a bordo
do vapor Marquês de Olinda, foi a-uma embarcação brasileira, o vapor Mar-
prisionado ao passar por Assunção. O
quês de Olinda. Soubemos, então, que, há
navio foi utilizado pelos paraguaios na
invasão de Mato Grosso. Morreu como
mais de mês, o barco fora interceptado
prisioneiro no Forte de Humaitá, pou-
quando passava pela capital Assunção, por
cos dias antes de a fortaleza cair em
poder dos brasileiros.
ordem expressa de Solano López. Prisão pa-
ra todos seus tripulantes e passageiros, entre os quais a ilustre figura
do coronel Frederico Carneiro Campos8, que se dirigia a Cuiabá, on-
de tomaria posse como presidente da província de Mato Grosso.
Mesmo um pouco embaraçado pela descrição de sua retirada,
prosseguiu na sua já longa exposição dos fatos. – O inimigo, em avas-
saladora superioridade numérica e de armamentos, farto de supri-
mentos e montarias, obedecendo à estratégia há muito estabelecida,
ia levando de vencida toda a gente brasileira que quase não lhe opunha
resistência. O coronel Resquin por terra e Barrios por via fluvial se-
guiam em direção a Cuiabá, deixando um rastro de destruição pelo
caminho. Canhões, armas e munições aprisionados de nossas tropas
em retirada.

– Saiba, sr. tenente-coronel – atalhou o intendente, já cansado


de tão demorada explicação – tudo que posso oferecer é um pouco
de comida na minha já desfalcada despensa, pois já ajudei a muitas
52 Águas atávicas

famílias em retirada. Só mesmo carne de sol e rapadura, mas o que


tem nesta intendência é de sua tropa. Sirvam-se.
O que já era pouco, acabou de vez. Pelo menos o tenente-co-
ronel alimentou-se bem, convidado que fora para comer na sala do
intendente. Satisfeito, retribui com conversa amena e desinteressada.
– Por ora, da fome me livrei. Esta desgraçada mata devagar.
Lembro-me das duas últimas mulheres que foram para a Colônia
Militar de Dourados. Eram bonitas na ida; na volta, fugindo do mas-
sacre, só feiura envolta em trapos. Uma tinha ido como voluntária,
outra foi mandada para lá por má conduta.
– Má conduta?
Antes que o Braulino prosseguisse na pergunta o outro escla-
receu: – O senhor sabe, meu caro intendente, em termos militares
podemos considerar isto como um mal necessário. A danada era sabida,
boa de aritmética: destacamento de quinze, excluídos três acompa-
nhados de esposas, menos dois sovinas contentes com serviço avulso,
esporádico, sobraram dez no rodízio permanente. Noite exclusiva
para cada um, sem promiscuidade. Faturamento diário para ela, sa-
tisfação garantida três vezes ao mês para cada homem, o que pode
ser considerado de razoável aproveitamento, em termos militares,
naturalmente – finalizou irônico.
Braulino, sem interesse na curiosa matemática, apenas esboçou
um pequeno sorriso. Pereirinha, nunca afeito à tabuada, manteve o-
lhar vago e distante, pretextando não ouvir conversa entre pessoas de
maior patente.

Logo as despedidas, rapapés de costume e eis o nosso bravo


tenente-coronel a caminho da corte, em busca de reforços e proteção
do imperador. Quase um mês a cavalo!

– Muito distante para incursões paraguaias, muito longe para


me incomodar – proclamou Braulino. Mesmo assim, nossa segurança
é grande, proximidade de Goiás e Minas ajuda em caso de qualquer
retirada estratégica. Exagero este povinho do Paraguai querer chegar
até aqui, mais ainda prosseguir adiante. Podemos ficar tranquilos.
Marcos Faustino 53

– Muito bem pensado – adulou Pereirinha. Militar de muita


importância, duas patentes numa só, tenente e coronel. Se me permite
a pergunta, sr. intendente, depois de soldado vem o quê?
– Cabo e depois sargento. Braulino, rápido, entendeu a re-
ferência à dupla patente, camuflagem do intento principal do subal-
terno: orientar suas futuras pretensões. Cortou o mal pela raiz. – Para
chegar a cabo – prosseguiu – precisa ter pelo menos dez soldados
para comandar.

O danado do Braulino esqueceu minha pergunta e respondeu


minha intenção, pensou Pereirinha; nem queria tanto, dez homens
para comandar, demais. Imediato, em retirada estratégica, desviou o
assunto: – Mal necessário? Se me permite a humilde opinião, exce-
lência, entendo logo a necessidade, mas a maldade não. Melhor dizer
bem necessário.
O contido sorriso na face do intendente mostrou o acerto da
manobra. Aproveitou, voltou, concentrou a carga no alvo principal,
certeiro: – Soldado nunca anda a cavalo?
A quase risada indicou a capitulação.
– Anda sim, Pereirinha, anda sim! Depende da arma; na Infan-
taria vai a pé, chamado mesmo pé de poeira; na Cavalaria, até o mais
raso soldado vai montado. Sendo sincero, pode tirar o cavalinho da
chuva, em intendências não há a arma de Cavalaria, só Infantaria.
Lei nacional, amenizou. Como já é tarde, dispensado, concluiu em
tom ríspido, militar.
Pereirinha se retirou. No caminho, a pé, ia pensando: – Lei
nacional uma ova! Velho mentiroso, muxiba; tem muitas, só uma
montaria bastava para mim. Deixa estar, agora o que interessa é saber
que destino levou a Menina. Saudades do bem necessário.
Lá-em-Baixo, Tonhão e sua Lili conversavam na varanda.
Pereirinha, surpreso: – Já de volta de São Francisco?
– Que São Francisco nada ! Muito longe, tapera do finado Negro
Tião serviu bastante. Falecido recente, bica de água farta, calabouço
para o banho, monjolo para descascar arroz, tudo em perfeito fun-
cionamento. Só levamos os apetrechos de cozinha, mínimo mesmo,
54 Águas atávicas

só o necessário para o arroz e feijão, lata de banha com a carne,


redes para dormir e pronto. Tapera afastada de tudo, sem o menor
perigo. Só eu lá no meio da mulherada, um rei!
– No meio de nós, sim. Na cozinha e nas conversas, todo mundo.
No banho e na cama, só eu; de homem meu ninguém tira casca, ata-
lhou a ciumenta Lili. Vendo a pergunta na cara do Pereirinha, indicou:
– Tá no banho.
Ouvindo os passos conhecidos, a Menina abriu a porta do chu-
veiro. – De roupa e tudo, credo que pressa! Molha, precisa mesmo
de um banho.
Distração, acabou a água. Na carretilha amarrada no caibro
do baixo telhado, fina e puída corda abaixou o balde do chuveiro
para a verificação. Nada de água, acabou mesmo.
– Liga não – sussurrou a Menina. Não precisa buscar mais
água no poço; nosso quarto na frente, corredor escuro, passa de fi-
ninho, sem barulho. Vamos.
Ambos molhados, os quentes lençóis, ao invés de enxugar, só
aumentavam a transpiração dos corpos. Gotas de suor e do curto
banho, misturadas, apenas água exacerbando o desejo, fluindo imper-
ceptível na intermitência amorosa.
Assim passavam-se os dias na mais prazerosa paz, pelo menos
na Vila de Sant’Anna do Paranahyba. Águas do banho de Pereirinha
e da Menina, do suor dos lençóis lavados no dia seguinte, em volume
inexpressivo e incapaz de continuar, infiltravam-se no solo seco.
Mesmo assim, irrigavam raízes, impregnavam plantas com partículas
de seus prazeres, juras amorosas e projetos futuros. Sementes vindou-
ras contagiadas, características transmitidas.
Situação diversa, em época de muitas chuvas, as águas chega-
vam ao pequeno riacho perto do Lá-em-Baixo, prosseguindo até o rio
Santana. Depois alcançavam o Paranaíba, afluente do caudaloso Pa-
raná, chegando por fim ao rio Paraguai, carreando tudo, sem distinção
de origem, sem consideração do tempo, o passado desaguando no
presente e almejando o futuro.
Marcos Faustino 55

O italiano do realejo e o major gaúcho

Por esta época, apareceu, na vila, feliz novidade nunca vista: o


realejo.
Veio das bandas do Triângulo Mineiro, Uberaba. Trouxe-a um
italiano de fala alegre, animada. Amore, mama, quando não era mio,
era mia, na frente ou atrás das palavras. Mama, a mãe com todo res-
peito; não, a teta nooon, esclarecia o italiano, quando provocado. Padres
eram todos os pais, não só o vigário. Argumento mais forte: era assim
que se falava na Itália, terra santa do Papa. Simpático, aceitação geral.
No mais, quem haveria de resistir a melodias tão bonitas, preços tão
baixos para conhecer a sorte, o futuro próximo revelado de maneira
poética, nas mensagens dos bilhetinhos?
Junto do italiano, veio estafeta com uma só correspondência,
há meses aguardando no correio de Uberaba. Envelope grande, ende-
reçado ao intendente. Tratava-se apenas de interesse comercial. Nego-
ciantes estabelecidos na praça do Rio de Janeiro lembravam aos antigos
clientes que continuavam importando todo tipo de mercadoria das
melhores procedências. Eram especializados em escravos. Tinham
mudado de mercadoria, em face da proibição das viagens africanas
em 1850. Para continuar a bem servir aos distintos fregueses, espa-
lhados por todo o imenso país, aumentaram o leque de ofertas – be-
bidas europeias, seda chinesa e mil artigos, a que só os requintados
poderiam dar valor. Há anos, os filhos do Braulino, a seu mando,
foram até o porto distante, na capital, compraram e trouxeram alguns
negros para as lides da pecuária. Boa compra: pela saúde, vigor no
trabalho e índole obediente dos negros. Por isso, agora a lembrança
de seu nome, a correspondência inesperada. Não carecia de resposta,
não interessava mais lembrar tal compra. Pensava: – Hoje a simpatia
está com quem liberta escravos. Até há pouco tempo atrás, a admiração
56 Águas atávicas

era para quem podia se dar ao luxo de ter alguns para seu conforto
ou serviço e, mesmo, algumas para seu prazer.
– Povinho curioso. É um tal de abeirar assunto, querer saber as
novidades de fora. O intendente conservava o silêncio, aumentava a
expectativa. Sabia que correio e viajantes eram a ligação com o resto
do mundo. Conteúdo de correspondência não revelado, curiosidade
aguçada, mexerico na certa.
– Qualquer hora aparece a oportunidade, inventava explicação
de sua conveniência e pronto – pensava Braulino.

Lá-em-Baixo, na casa da Vó, muitas más sortes previstas,


presságio natural do ofício, fatalidades aceitas. Nas casas mais ricas,
entusiasmos de moças casadoiras a suspirar pelos quase príncipes
prometidos pelo realejo.

O italiano confirmara logo as informações de que estava no


meio de gente boa, pessoas de respeito. Diferente de São Francisco, em
Minas Gerais, onde gatunos furtaram-lhe o dinheiro guardado de muitas
andanças, má sorte não prevista em tempo pelo seu próprio realejo.

Na casa do Braulino, depois de cansado o interesse pelo realejo,


o italiano, contrariando sua índole falastrona, vendo-se ao lado do
intendente, sem outra pessoa por perto, disse-lhe muito gravemente,
na sua fala enrolada: – Signore mio, segreto molto, molto importante!
Carecia de sigilo, assunto militar, estrangeiro como ele precisava
de cuidado redobrado. O italiano rogava compreensão, expunha sua
obrigatória deferência com o intendente, mas reserva, pedia segredo
ao poderoso amigo, jamais revelar a fonte informativa.
A palavra “militar” provocara a mais viva atenção de Braulino.
Desconfiado como de costume, afinal gente humilde gosta de
puxar assunto importante com ele, para se fazer também de impor-
tante, valorizar-se, colocar-se na altura do intendente. Porém “assunto
militar” não era comum alguém se atrever a tanto, merecia escuta.
Na sua fala enrolada, excitado, aos trancos, preocupado em se
fazer entender, o estrangeiro falou de tropas em deslocamento, muita
Marcos Faustino 57

gente, notícia de mais de três mil pessoas em armas. Exército mesmo,


oficiais de alta patente, batalhões de cavalaria, de infantaria, dúzia
de canhões montados em carretas de duas rodas, enormes, grossos,
puxados por parelhas de bois. Guarda Nacional presente, gente de
todos os tipos agrupados no batalhão de Voluntários da Pátria, vindo
de Ouro Preto, a capital de Minas Gerais. Também, engenheiros para
exploração dos terrenos, para a construção de pontes, médicos para
as desgraças inevitáveis, todos de patente militar. Um exército inteiro.
Carros de bois com mantimentos para o sustento de tanta gente.
Destino final: reforçar a defesa de Cuiabá. Depois da captura
do barco Marquês de Olinda, depois da queda das cidades de Nioac,
Miranda e Corumbá, a capital da província de Mato Grosso não
poderia cair nas mãos dos pérfidos paraguaios, o imperador não
permitiria, por isso mandou tropa para reforçar as defesas.
Tudo em desfile cansado, mas decidido. No início amedrontando
com exibição de tanto poder, logo causando admiração e orgulho
pelo mesmo motivo, afinal a mando de nosso imperador, tão distante.
Vindo em socorro para libertar as vilas tomadas pelos invasores para-
guaios. Enérgicos nas requisições de animais, reses para a comida;
tudo pago, é verdade, mas sem chance de recusa. Passando sem aviso
antecipado, nem mesmo o devido às autoridades locais. Soldadesca
sem cuidado no respeito às pequenas coisas alheias.
Algumas senhoras de respeito, de oficiais. Muita, muita mulhe-
rada à toa, seguindo na retaguarda, para diversão à noite. Tantos
homens longe de casa, saudosos alguns de suas esposas, outros solteiros
na lembrança de distantes amores, careciam de apoio, reduzia o ner-
vosismo na tropa.
E o italiano prosseguia com sua cachoeira de palavras. Cada
vez mais detalhes da tal mulherada, animava-se ao descrever o encanto
particular de uma ou outra. Na força de seus quarenta e poucos anos,
idade em que cresce o encanto por mulheres dessa laia, não se sabe
se pelo desinteresse das jovens fêmeas pela visível erosão da aparência
do macho no limiar da senilidade ou pela maturidade financeira a
propiciar-lhe facilidades neste ramo, o homem prosseguia na excitação
de frases inteiras na sua língua nativa. E como falava! Já cansava o
58 Águas atávicas

pensativo Braulino, passado de seus setenta, agora pouco interessado


nos pormenores de seios, lábios, olhos...
Preocupava-o a descortesia, a falta do devido respeito à autori-
dade local, a ele. Nenhum aviso antecipado. Por aquelas bandas, por
aqueles muitos sertões afora, Braulino sempre fora o sol, astro-rei,
ninguém a lhe rivalizar o brilho. Tantas patentes militares elevadas,
muito mais poderosas, vizinhas a ele, causavam-lhe certo embaraço,
reduziam-lhe a importância, tão zelosamente cultivada. Três mil ho-
mens armados por ali e ele, Braulino, sem mandar em nenhum, nem
sequer a gentileza da notificação. Que se cuidasse, esta era a nova
realidade, mudanças poderiam vir.
Solicitar audiência, expor sua queixa da falta de aviso, funda-
mentá-la na possibilidade de melhor prestar ajuda. Ridículo! Três
mil homens, muito acima de seu tamanho. E se quisessem seu gado
para carne, seus carros de bois para ajudar no transporte, seus man-
timentos de passar o ano? Pagavam, era verdade, mas quanto? E depois,
onde iria conseguir reposição? Pior, poderiam querer recrutar seus
filhos ou mesmo seus netos. Melhor: prudência, cuidado. Além do
mais, dirigir-se a quem? A quem?
Esta última pergunta a si mesmo tirou Braulino do silêncio em
que há muito se encontrava. Interrompeu bruscamente o falatório do
italiano: – Se eu não me engano o nome do comandante é...
Deu certo, o falastrão acrescentou rapidamente, sem perceber
a ignorância do outro: – Dragô.
– Ah, sim, lembrei-me, comandante Dragão.
– No, non, Dragô, Dragô, e non Dragon, corrigiu o italiano.
– Dragão na sua conhecida valentia, Drago no nome correto, é
claro– saiu-se o Braulino com desculpa salvadora, insinuando conhe-
cimentos que na verdade não tinha.
Atrevido este italiano, ainda ousou contrariar, retrucando que
não. Valentia de dragão não parecia ser o forte do comandante. Vinha
andando em marcha muito devagar. A tropa saiu da capital imperial,
Rio de Janeiro, embarcada até o porto de Santos. Subiu a serra do Mar, em
direção a Jundiaí, pela linha de trem em construção pelos ingleses. Em
Marcos Faustino 59

Campinas, festas elegantes para os oficiais, com a presença da mais


alta sociedade local, senhoras e senhoritas a suspirar pela elegância
dos jovens oficiais. Sucesso maior de um tenente de origem francesa,
família muito estimada pelo imperador, diziam. Imagine quatro meses
e meio para vir do Rio até Uberaba! Parecia que ia estabelecer quartel,
parava, descansava. Demorava tanto nos preparativos que a soldadesca
9. Manuel Pedro Drago, tenente-coronel,
já dizia que o comandante só ia chegar
em abril de 1865 comandou a força depois de terminada a guerra, sem preci-
expedicionária que partiu do Rio de
janeiro para defender Cuiabá da ameaça
sar dar tiro, sem correr risco. Melhor!
paraguaia, tendo sido designado pelo Tinha defesa em alguns pontos, a
imperador para assumir a presidência da
província de Mato Grosso, em substituição tropa era muito mal preparada, treino de
ao nomeado anteriormente, que fora guerra só o exército, pouco mais de mil
aprisionado por Solano López junto com
o barco Marquês de Olinda. Em junho homens. A Guarda Nacional poderia ser-
passou por Campinas, então com nove vir só para policiar ruas desertas. Os vo-
mil habitantes. Em Uberaba, recebeu
reforços da Brigada dos Voluntários da luntários mal conheciam armamento,
Pátria vinda de Ouro Preto, de onde saiu maioria fugida de Ouro Preto por desa-
com cerca de 3.000 homens, em se-
tembro. Em Goiás, Drago recebeu ordens vença qualquer. Recrutamento obrigató-
de retornar à corte, sendo substituído no rio, com opção do branco senhorio enviar
comando pelo coronel Galvão. Em fins
deste ano, não havendo mais perigo para escravo em seu lugar, resultando em
Cuiabá, a tropa foi direcionada para o negros alforriados com obrigação de morrer
Paraguai. As forças expedicionárias
deixaram Coxim em abril de 1866, agora por uma pátria que mal lhes pertencia.
com 2.600 homens, alcançando Miranda Africanos aniquilando guaranis, em pleno
em setembro com apenas 2.000, após a
sofrida travessia das águas pantaneiras. coração sul-americano. Matando e mor-
Em janeiro de 1867, partiram de Miranda rendo em benefício de descendentes de
com 1.700 homens, sob o comando de
Camisão, adentrando o Paraguai, em abril portugueses e espanhóis. Coronel Res-
de 1867, dois anos após o início da partida quin, comandante paraguaio, dispunha
no Rio de Janeiro. Daí retiraram-se em
condições dramáticas e heroicas, só então
de um efetivo bem treinado de mais de
fustigados pelos paraguaios, sobrando quatro mil homens, aguerridos, motiva-
efetivo de 700 pessoas, em episódio que
ficou conhecido como Retirada de Laguna.
dos; prudente a marcha demorada, pen-
Poucos combates, Nhandipá o maior, a savam todos.
maioria das mortes pela fome e cólera.
O confronto imaginado foi evitado
pela mudança da tática paraguaia. Estratégica demora na marcha
dos brasileiros. Resquin já tinha sido deslocado para o sul do Brasil,
onde se armava grosso conflito. Novo cenário, na medida em que
Drago9 avançava, aparecia o verdadeiro inimigo dos brasileiros: o
60 Águas atávicas

abastecimento, a escassez de linhas de suprimentos, a ausência de


víveres, cada vez mais flagrantes.

Era hora de mandar o italiano embora. – Muito bem, caro amigo,


antes de o senhor se despedir, faça-me o favor de tirar um bilhetinho
da sorte para mim – disse Braulino em tom amigável, desabotoando a
bolsa à procura de algum vintém. Vendo o italiano girar a manivela
da música, acrescentou: – Dispenso a música, só a sorte, grato.
Desconsolado, porque privado de uma exibição completa de seu
realejo, o italiano orientou o periquito para um lado, através de suces-
sivas batidas à direita da caixa de madeira que continha os bilhetes.
Neste canto só bons presságios para agrado das pessoas. Tirou a mensa-
gem da boca do canário e, com sorriso de satisfação, estendeu ao Brau-
lino, que, abrindo, leu primeiramente em silêncio e depois em voz alta,
prazeroso: – “Se tudo está bem, mude com as mudanças, para que nada
mude”. Sábio conselho acrescentou, levantando e despedindo-se.

Ligeira ponta de aborrecimento pelo tratamento recebido do


intendente, a recusa em ouvir a melodia, fez o italiano dirigir-se à
venda do major Melo Taques. Só o solícito major lá estava. Pereirinha
ia passando a caminho de casa, fim do dia. O italiano queria conversa,
chamou: – Vene, vene qui, prego, signore Pereirinha, acerca-te de nói.
Pareceu ao Pereirinha ter ouvido seu nome, talvez um convite. Quis
continuar, mudou de opinião, afinal convinha escutar quem tinha
acabado de sair da casa do intendente.

O major Melo Taques era o recepcionista obrigatório de todo


viajante mais incomum. Novidade na caixa de música, no periquito
tirando a sorte, nos bonequinhos a dançar e nas frequentes conversas
sem fim dos dois. Uma única bottiglia de vinho, trazida de tão longe,
mas vendida a preço de amigo, quem conhece sabe dar valor, alegra-
va-se o italiano. O major pagou a quantia pedida, sem pechinchar;
generoso, abriu a botella e em animada prosa sorveram toda a garrafa,
só os dois. Embalados antes pela brasileiríssima caninha, agora pelo
bom vinho, cresciam os assuntos, aumentava o vermelho das caras e
dos olhos; animação dos dois, linguajar entendido só por ambos.
Marcos Faustino 61

– Ha capito? Perguntava um...


– Si, yo hay comprendido muy bien – respondia o outro.
Mais bebiam, mais falava o baixote e gorducho major, já agora
mentiras de caçador e aumentos de pescador, mais o italiano parecia
10
10. Guiseppe Garibaldi (1807-1882),
desatento da conversa, imerso em distan-
herói de dois mundos, nascido francês tes recordações.
em Nice, chegou ao Brasil fugindo de
condenação à morte em Gênova, por ati- – Banheiro, volto já – desculpou-
vidades revolucionárias (Carbonária). No -se o major.
Rio Grande do Sul, foi o comandante da
marinha farroupilha, em luta contra o Só, Pereirinha não contava, o ita-
imperador brasileiro. Em Santa Catarina, liano bonachão voltou ao tempo de suas
conheceu sua primeira esposa, Anita.
Depois, no Uruguai, lutou contra a mari- andanças pelo sul do país. Pensou em co-
nha argentina. De volta à Itália, começou mentar que ajudara a fundar a República
pelo norte do país, tendo obrigado o papa
a fugir de Roma. Derrotado fugiu para os Juliana em Santa Catarina, diferente da
EUA. Regressando, com os “miles” libertou República de Piratini, no Rio Grande.
Nápoles transformando-se em herói da
unificação italiana. or último defendeu a Outra guerra, semelhança no ideal, pro-
França na guerra franco-prussiana. ximidade de locais, mas outra guerra, ou-
Morreu na Itália.
tra guerra! Triste, olhar distante, o italiano
11
11. Anita Garibaldi (1821-1849), heroína 10
de dois mundos, após o primeiro casa- arrematou, misterioso: – Giuseppe , A-
mento infeliz aos quatorze anos, aos de- nita11! Bruta ideia deixá-los.
zoito encontrou Guiseppe, em Laguna
(SC), a quem acompanhou por toda vida, O italiano começou a girar lenta-
tendo cinco filhos. Corajosa e destemida, mente a manivela do seu realejo. A me-
faleceu junto com o seu recém-nascido e
último filho, no norte da Itália, em cam- lancolia da música disfarçava a de seu
panha militar. Está enterrada em Roma, rosto, escondia seus segredos. Lembranças
em monumento que a homenageia.
da juventude, a Itália dos ideais esqueci-
dos. Um tal de Mazzini a pregar um mundo possível de justiça, mais
igualdade, a república nascendo do povo. A admiração ao marinheiro
Giuseppe Garibaldi, origem modesta, homem de ação, nascido em
Nizza, em tudo igual a ele. Perseguidos menos pelas suas ideias e
mais por alguns tiros em defesa delas; a fuga de todos para Marselha,
a vinda para a América. Do Rio de Janeiro para mais ao sul.
Laguna, belo nome a evocar Veneza, republicanos em revolta.
Aninha, filha do Bentão, tropeiro afamado a inspirar respeito que a
garota ia gastando em trejeitos maliciosos e beleza provocante. Sereia
pelada em banho de mar, espumas das ondas lambendo-lhe o corpo
nu. Era gostoso, confidenciava a inocente moça. Ninguém vira, ela
62 Águas atávicas

mesma comentava para as amigas incrédulas. Direito dela, ninguém


tem nada com isso, mal nenhum, protestava com a veemência dos
justos. Estava certa a moça. Depois, órfã. Mesmo com o tio Antônio
por perto, aumentava a ousadia da tara descontrolada: tentativas de
estupro evitadas pela destreza da amazonas, inútil queixa na polícia.
Em vez da proteção da lei, as insinuações torpes, a vítima se trans-
formando em suspeita, quase culpada de sua própria desgraça. Depois,
a preocupação da boa mãe e a insistência do padre: casasse que sos-
segava. Marido arranjado, um quieto sapateiro, coitado. Não virou
nada na cama, a moça continuando inquieta. Homem recusado, sepa-
ração inevitável, mulher livre sem compromisso.
Tio Antônio, irmão de Bentão e também tropeiro de muitas an-
danças, conhecia mais das ideias. Por culpa delas e da língua falastrona
perdera há pouco a casa de sua família queimada por ordem da polí-
cia safada do rei. Fala exaltada e revoltada nas rodas de conversa,
eloquente em defesa de um mundo melhor com a república iminente.
Aninha escutava o tio com entusiasmo.
Com o advento da república viria o predomínio da lei e da
maior igualdade entre as pessoas. Certamente seria mais respeitada
pelas autoridades locais, coibidas as tentativas contra ela, assegurado
o direito de seus prazeres inocentes. Aninha pensava e se animava,
quem sabe ela também poderia lutar por 12 12. David Canabarro (1796-1867) par-
esta causa. ticipou de todas as lutas no sul do Brasil.
Na condição de comandante em chefe do
Podia, assegurava Giuseppe, outro exército da República Rio-Grandense (Pi-
velho na vida dela. Este era diferente, ela ratini), recusou ajuda argentina decla-
rando-se brasileiro antes de republicano.
o amava e o admirava. Herói de seus so- O Massacre de Porongos, última batalha
nhos, respeito imediato de toda a popula- da Revolução Farroupilha, onde os Lan-
ceiros Negros, ex-escravos gaúchos, foram
ção, mulher do comandante militar. Aci- dizimados, constitui mancha em sua bio-
ma dele só o Canabarro12. Talvez nem grafia. Assinou a rendição dos farrapos às
tropas imperiais em 1845 e esteve na
este; mandava um na terra, outro, o Giu- rendição dos paraguaios ao imperador
seppe, no mar. brasileiro em Uruguaiana, em 1865.

Ambos instalaram a república na região; a segunda, já havia


outra mais ao sul. Impossível resistir aos encantos de suas camisas
sempre vermelhas, cor vibrante a prenunciar também seus méritos
debaixo dos lençóis. Podia participar também, garantia-lhe o apai-
Marcos Faustino 63

xonado Giuseppe; que cuidasse dos enfermos e dos feridos, nobre


missão à espera de alma dedicada. Assim fez a jovem Anita.
Exército de outra república, a de Piratini, mais ao sul nos pampas,
e marinheiros estrangeiros a garantir a nova ordem. No início en-
tusiasmo dos locais, depois a desilusão insuflada pelos que não gostaram
das novidades. Breve, a menor contrariedade era logo transformada
em arrogância praticada pelos dominadores de fora. Armas poderosas
sufocando a incipiente revolta. Violência exagerada no intuito de dar
exemplo e inibir a rebeldia: pessoas aprisionadas e queimadas sem
piedade, estimado padre assassinado com várias facadas no peito,
degolado e seus olhos arrancados. Resultado oposto; aumento da
simpatia pela causa do imperador, ocaso da República Juliana. Fim
dos compromissos com os farrapos de Bento Gonçalves.
Boa recompensa para Giuseppe, pagamento de mil e seiscentas
cabeças de gado a serem conduzidas até Montevidéu, no distante
Uruguai. Na longa marcha, logo a percepção: quando o caminho
passava por dentro de matas, diminuía a quantidade de bois; mais
fácil conduzi-los em campo aberto de maior visibilidade. Mesmo na
vegetação mais rala, um ou outro animal mais cansado parava para
descanso e, não raro, o condutor também exausto nem reparava.
Perdas inevitáveis de gado, desgarrando-se da boiada, iam ficando
para trás, sem dono, o conhecido gado de arribada. Providência ado-
tada, mais vaqueiros na retaguarda, ao cruzar matas ou terrenos muito
íngremes. Desconfiado Giuseppe colocou patrício de sua confiança
na culatra, último homem.
Posição incômoda para o agora italiano do realejo. Idealista
transformado em vaqueiro a zelar pela retaguarda do rebanho de
Giuseppe, antigo lobo do mar transformado em candidato a estancieiro.
Cruzar o Atlântico com muitos riscos, deixar a distante pátria, não
uma maravilha, mas a sua terra; abandonar seus amigos e familiares
para quê? Para ser transformado em peão de gado, a mando de um
patrão receoso de roubos? Giuseppe ainda sonhava em comandar
esquadras, agora para o caudilho da margem de cá do rio do Prata
em luta contra o outro da margem oposta, bobagem! E ele que nunca
passara de marinheiro, o primeiro a morrer com a espada em punho
64 Águas atávicas

na abordagem do barco adversário. Sobrava para ele o cansaço das


muitas viagens e as constantes mudanças. Bobagem continuar, que
ninguém se iluda: aos humildes as balas e as atrocidades, aos maiorais
as glórias, é a lei da guerra. Bobagem! Era esquecer o antigo idealismo.
Melhor tomar outra direção. Adeus, Montevidéu; adeus, sonhos cole-
tivos, a escolha agora era pelo individual, ele mesmo. Pegasse o seu e
fosse construir a vida no interior de São Paulo, Sorocaba, cidade muito
comentada pelos peões, último pouso da rota de tropeiros saídos desde
Viamão, no Rio Grande do Sul.
Logo o italiano e mais dois vaqueiros cúmplices seguiam em
direção oposta, para o norte, conduzindo arribada de sessenta cabeças
surrupiadas. Melhor seguir outro rumo, buscar novos horizontes. É a
lei de uma outra guerra.
Quando o som do realejo parou, Pereirinha foi trazido de volta.
O italiano continuava a resmungar na sua fala incompreensível. Excesso
de pinga, pensou o soldado, mesma conclusão do major já de volta.
– Periquito pode saber meu futuro? Duvido que acerta o dia
que viro cabo – pensou
Vendo-o de olhos abertos, o major chamou: – Pereirinha, chega
mais perto, a pinga agora é por conta da casa.
Aproximou-se, com receio que notassem seus pés descalços.
Cautela, vai que o danado do periquito é sabido mesmo e já contou a
novidade. Não era certo um cabo descalço; o major poderia reparar.

– Bruta idea, bruta idea!


No caminho, o italiano ouvira falar de patrícios seus, quase
duzentos, saídos da ilha da Sardenha, que ganharam pequenos lotes
de terra, em projeto de colonização particular no Brasil. Lembrou
deles quando cruzou o rio Tijucas próximo à sua desembocadura no
mar. Subindo pelo seu vale verdejante logo encontraria a Colônia de
Nova Itália, onde sardos estavam construindo a nova vida. Pensou em
levar seu gado, talvez conseguir também um pedaço de terra neste
paraíso, uma linda e santa ragazza e a felicidade estaria completa.
Mas foi adiante, tutti buona gente, porém pacatos e conformados na
vida rural; não era o feitio dele.
Marcos Faustino 65

Mais adiante, no porto de São Francisco do Sul, uma inacre-


ditável colônia socialista: o Falanstério de Saí e a semelhante Colônia
de Palmital. Vivas experiências sociais em andamento logo ali tão
perto. – Gente como o Mazzini13: fala, fala e não faz nada.
13
13. Guiseppe Mazzini (1805-1872), Um francês chamado Fourier14 era
ideólogo da unificação italiana, procurou o inspirador da novidade. Dizia que a li-
insuflar o aparecimento de várias jovens
repúblicas na Europa, que via como uma berdade e o prazer são as mais profundas
espécie de confederação de estados inde- paixões humanas. A religião e a economia
pendentes, no futuro. Exilado em Londres,
colaborou na fundação da 1.ª Internacional baseada no lucro dos comerciantes obri-
Socialista, onde Karl Marx foi secretário. gavam as pessoas a abandonar estas legí-
Aceitou a monarquia como solução política
para o ressurgimento de sua pátria. Viveu timas aspirações. A propriedade comuni-
a maior parte de sua vida fora da Itália, tária libertava da opressão e propiciava o
mas morreu em Pisa.
trabalho e o consumo prazerosos, abolido
14
14. Charles Fourier(1772-1837), filósofo
francês defensor da organização econô- o vínculo religioso entre prazer e culpa.
mica baseada em falanstérios, coopera- Seguidor local destas ideias era o
tivas voluntárias e sustentáveis de cerca
de 1.800 pessoas no máximo. Neles, a fe- dr. Benoit15, médico original que também
licidade seria alcançada pela satisfação defendia novas teorias de colega alemão.
dos sentidos e do prazer, eliminando-se a
hipocrisia das proibições; as uniões mono- Fundamental na nova medicina era o
gâmicas só conduzem ao tédio, pregava. princípio da semelhança: não é o amargo
Na época, surgiram diversos falanstérios,
todos de curta existência. Expoente do do quinino que cura a malária, mas o fa-
chamado socialismo utópico, suas ideias to de que o medicamento provoca iguais
repercutiram na psicanálise e nas diversas
colônias hippies da década de 70, nos EUA. sintomas da doença quando tomado pelas
15
15. Benoit Mure (1809-1858), médico pessoas sadias. O mal deve ser tratado
francês introdutor da homeopatia no Bra-
com pequenas doses da substância causa-
sil. Devidamente autorizado pelo impera-
dor , fundou o Falanstério de Saí, na atual dora, diluição exagerada, a memória da
divisa de Paraná e Santa Catarina. Dois água preserva o princípio. Tratamento
anos depois, retornou ao Rio de Janeiro.
De volta à França, casou-se com renomada pelos iguais, homeopatia. Cada louco com
homeopata, indo viver no Egito, Sudão e sua mania. Além do mais, o italiano nunca
Itália, de onde foi processado por exercí-
cio ilegal da medicina. Retornou ao Cairo, gostara dos franceses, pelo domínio re-
onde morreu. cente de sua terra natal e menos ainda
dos alemães, parentes dos austríacos, opressores da outra parte norte
de seu país. Ficasse São Francisco no porto a ver navios, ele iria adiante.
O gado, vendido no varejo, de pouco; o dinheiro repartido.
Litoral abandonado em direção ao interior, à vila da Lapa, no Paraná,
passagem obrigatória em busca da rota dos tropeiros. De quando em
66 Águas atávicas

vez estranho caminho de aparência mais antiga, trilha de pequena


largura, afundada na terra batida, caminho de índios chamado pea-
biru. Na vila de Castro moravam muitas pessoas bem situadas com o
sobrenome Taques, prováveis parentes do major falastrão. Mais tarde
em Itu, já em São Paulo, outros Melo Taques.
Consultando sua própria experiência, o italiano lembrou das
barbaridades, da rápida transformação de pessoas bem intencionadas
em facínoras sanguinários. Para as pessoas comuns, a pouca ou nenhu-
ma serventia dos motivos alegados para o início do conflito; depois
dos primeiros absurdos sobrava só a necessidade da defesa ou a von-
tade da vingança. Daí em diante, a violência engendrava sua própria
lógica. Lembrou do fracassado recrutamento que presenciara em
Uberaba, recentemente. O batalhão dos Voluntários de Minas, convo-
cado pelo governador da província, chegou miudinho, pequenininho,
só com cento e vinte pessoas. Arrefecido o entusiasmo da graudagem
local, a miudagem incorporada aos batalhões militares, ganhando
fardas, armamento e munição, foi diminuindo, dia após dia, de sorte
que na partida da cidade a força contava com armas e fardas a menos,
e nenhum soldado a mais: desertaram todos. Deteve-se, poderia ser
mal interpretado, afinal era um estrangeiro. Se os ventos insuflavam
a insensatez de nova guerra, que se danassem os candidatos a heróis;
ele tinha entendimento diferente: ficaria longe desta nova sangueira.
Reteve na lembrança as boas intenções, os projetos de Giuseppe
Garibaldi, a beleza de Anita, a abandonada experiência cristã das
missões jesuítas, a Colônia de Saí, os sardos da Nova Itália, velhos
sonhos vividos em pleno mundo novo. Definitivamente os ideais da
juventude tinham ficado pelo caminho. Se tivesse acompanhado Giu-
seppe, mesmo sobrevivendo aos azares das muitas batalhas, certa-
mente hoje estaria do mesmo jeito: ouvindo tolas conversas em algum
fim de mundo.
No realejo, desanimado, o periquito da sorte dormia.
Em passado recente, italianos transpondo oceano, romances
com nativas, miragens sociais na cabeça. Guiseppe Garibaldi, bem
sucedido, leva consigo a bela Anita, persegue seus sonhos, não descui-
dando do sustento material necessário a futuros embates. O outro
Marcos Faustino 67

patrício, o tocador de realejo, vencido pela desilusão, toca a vida guiado


pelo periquito da sorte, com sua alma grande e coração enorme,
vindo dar na Vila de Sant’Anna.
Agora, milhares de homens na canseira de demorado desloca-
mento, primeiro na defesa de seus patrícios depois na procura dos
embates com os inimigos. O suor de pressentidas batalhas impreg-
nando o ar, condensando-se, voltando em chuva aos rios, teia capilar
das bacias hidrográficas, Paraná e Paraguai, a disseminar atitudes
violentas, resposta inevitável ao pavor da guerra que se avizinha.
Marcos Faustino 69

Pereirinha promovido a cabo


Dia seguinte, Pereirinha teve a ideia: – Paissandu! Paissandu!
Sim, tinha o Paissandu, como fui me esquecer dele? Perguntava a si
mesmo o alegre Pereirinha, animado com a repentina lembrança. O
Zé do Correio comentou das baldas do burro. Ficou sem uso, meses
de correio parado, ninguém montando o animal, não deu outra.
Veneteiro, foi só o estafeta subir no arreio, um pulo certeiro, volteado,
pronto, rapaz no chão; preferiu voltar na mesma montaria da vinda.
Agora sem pressa, justificou. Tonhão, conhecedor das manias adqui-
ridas por animais de serviço, arrotou sabedoria para cima do inte-
ressado Pereirinha. Era só apertar muito bem a barrigueira, arrochar
no último, pronto o animal entrega a valentia, não pula, sai mansinho
na marcha batida.
– Ceder animal próprio era prejuízo para o Braulino. Mas o
Paissandu, com fama de pulador, ninguém mais queria, quem sabe
poderia sobrar para mim. Vou abeirar, assuntar. Se não cair, peço ao
Braulino o uso do burro para melhor serviço da intendência. Aguardo
a oportunidade, hora certa a escolher.
Com permissão do Zé do Correio, tralha de montaria emprestada
do Tonhão, aproveitou manhã muito cedo, sem testemunhas pelo temor
do fracasso, arriscou! Conseguiu, burro quase sem respirar de tão
apertado em marcha picada, ligeira, Pereirinha em cima, orgulhoso
da façanha. Guardou para si o feito solitário.

A coisa é grave. Por alguns dias Braulino remoeu-se em dúvidas


e hesitações. Até que lhe veio a ideia salvadora. Lembrou da conversa
do italiano e ao mesmo tempo recordou a correspondência recebida.
– Eureca, mato uma onça e uma cobra com um tiro só, usando
os bichos do mentiroso major Melo Taques. Refletiu por instantes,
logo resoluto, berrou para a sala ao lado: – Soldado Pereirinha!
70 Águas atávicas

– Pronto, às suas ordens.


– Vá imediatamente à procura dos vereadores, todos, não se
esqueça de nenhum. Participe-lhes que estou convocando reunião
extraordinária da Câmara, para depois de amanhã, dezessete horas.
Comunique também que, pela relevância da pauta a ser tratada, re-
quisito a presença do major Melo Taques, do vigário Sales, do coletor
Gervásio e do Januário da farmácia. Assunto: Guerra do Império do
Brasil contra a República do Paraguai.
Coisa que o soldado tinha aprendido era repetir todas as palavras
empoladas que o intendente ordenava. Braulino também sabia e era
por isso que Pereirinha se tornara seu áulico. Gostava da presteza do
subordinado, da seriedade quase solene que emprestava a cada fala,
dom nato. Notou a farda gasta, mal lavada e os pés descalços. Ordenaria
compra de novo uniforme, exigiria maior cuidado com a sua apresen-
tação e que passasse a andar calçado. A dignidade do cargo pedia e a
repetição da fala do patrão exigia.
Estava certo o Braulino. Depois de contar-lhe primeiramente, o
italiano repetira a mesma história em todas as casas da vila. Comentá-
rios gerais, todos já sabiam. Amigos ligaram as novidades do linguarudo
com a reserva da correspondência recebida pelo intendente.
Com todos os convocados presentes, exceto o vereador major
Jesuíno, cuja esposa, já na mesma manhã, apresentara explicações
pessoais ao intendente: o marido encontrava-se em distante fazenda,
um dia de marcha, quase trote, para chegar até lá. Mas se preciso
fosse, despacharia enviado, agorinha mesmo, para a convocação tão
inesperada, porém muito honrosa.
– Carece não, comadre. Sua atenção já é o bastante. Que ficasse,
assistisse à reunião e, posteriormente, informasse ao marido, com a
urgência que as deliberações sugerissem.
Meia hora após o combinado, muitos populares acotovelando-
-se fora do prédio, Braulino tomou seu acento na presidência do le-
gislativo. Simulando contrariedade ordenou silêncio, aguardou breves
segundos e com a sala lotada na mais absoluta expectativa, levantou-
-se e falou em tom irado, bravo, raivoso mesmo, quase aos berros:
Marcos Faustino 71

– Levantemo-nos, senhores, unamo-nos na sagrada defesa de


nosso solo pátrio, cerremos fileira sob o comando de nosso imperador
e expulsemos o vil estrangeiro de nossa querida terra.
Todos se levantaram. Baixou o tom e, na falta de inspiração,
pediu aos presentes que voltassem a se sentar e prosseguiu: – Por
especial graça de sua Alteza Imperial, fui encarregado pelo tenente
-coronel Drago, comandante da intrépida coluna militar, de comu-
nicar-lhes a disposição de nossas mais altas autoridades em pôr fim às
barbaridades que têm vitimado nossos irmãos brasileiros residentes
na região de fronteira.
Palmas calorosas, espontâneas, sem pedido de ninguém, vindas
mais do pessoal que estava fora da sala de reuniões. Pausa, continuou
com as explicações: – Revelo, agora, que há dias recebi correspon-
dência solicitando-me o devido esclarecimento à população em geral.
Antes ofereci a nossa hospitalidade às tropas em deslocamento, já
imaginando a adequada recepção a tão valorosos militares. Entretanto,
conselhos teóricos vazios de conhecimentos práticos, fizeram o coman-
dante Drago preferir o caminho de Goiás em direção a Cuiabá, descul-
pando-se não poder aceitar as singelas, porém patrióticas, homenagens
de nossa Vila de Sant’Anna. Razões de esforço militar, compreensíveis
nas circunstâncias. Talvez na volta passem por aqui.
Levantando os braços para finalizar, com a voz ligeiramente
mais elevada a indicar o final, prosseguiu: – Conclamo a todos em
geral, e a nenhum em particular, a levarem estas boas notícias aos
nossos amigos distantes: os Marianos nas Pedras, os Alves Dias e Latas
nas Morangas, os Camargos e os Otonis no Indaiá Grande, os Tostas
no Alto Sucuriú, os Pereiras no Rio Verde e mesmo os mais longínquos
Barbosas, Lopes e Rosas, além do rio Pardo, lá pelos Campos de Va-
carias. Que podem estar confiantes: o vil paraguaio não tentará mais
contra os nossos, pois o imperador nos defenderá.
Ao sinal dos braços abaixando, aplausos pedidos na senha
conhecida. A sessão estava encerrada.
Quase todos tomaram o caminho da venda do major Melo Ta-
ques. Exceção para o Braulino, que foi para sua residência, pois não
apreciava essas reuniões. Conversa fiada, mentiras e bebedeira, racio-
72 Águas atávicas

nalizava sua incapacidade de permanecer em local onde sua figura


não fosse a principal. Na venda, o major, falastrão, engraçado e aces-
sível, sempre dominava a cena. Não foi entretanto uma típica reunião
a que estavam acostumados os frequentadores habituais. Salão cheio,
opinião em excesso, gente demais a propiciar apenas boa venda de
mercadorias. Melhor voltar no dia seguinte, recolheram-se apressadas
as pessoas mais distintas. As menos permaneceram em considerações
diversas até que suas próprias tolices as cansassem de vez, levando-as
para suas casas.
Exceção também para Pereirinha, que urdia engenhoso plano.
– Todos em geral e nenhum em particular, matutava no seu
caminho para Lá-em-Baixo, a pé. Amanhã chego cedo, tento a sorte.
Pego o velho sozinho, faço o contrário, sem nenhum por perto do
particular; todos não digo, mas pelo menos dez pessoas em geral, sob
meu comando, hei de conseguir.

Manhã seguinte, pensamento em execução, já na intendência,


calculara certo, fama de trabalhador, austero no seu horário, na ver-
dade velho levanta é cedo mesmo, Pereirinha saudou com sua melhor
continência a chegada do Braulino.
– Dispensado. Muito bem, primeiro a chegar.
– Para poder estar sempre às suas ordens, começou o ataque
flanqueando as defesas do vaidoso adversário. Tática traçada, Perei-
rinha adiantava-se e escancarava todas as portas para a passagem do
Braulino. Já na sala principal, mal o intendente tomou assento, veio a
primeira carga.
– Sorte de nosso povo ter um grande homem no comando. À
altura da necessidade a conclamação feita por Vossa Excelência. No
meu humilde entendimento, obrigação de quem o serve, percebi lo-
go a ordem de levar as boas notícias ao geral do povo e em particular
às dez mais importantes e numerosas famílias esparramadas neste
vasto Sertão dos Garcia.
Sentindo o efeito benéfico, estratégia de sucesso, disparou a
segunda, a decisiva: – Arranjo logo dez cavaleiros, todos no meu co-
mando, para levar a mensagem para cada uma das distantes famílias.
Marcos Faustino 73

Com sua devida permissão, explico que é ordem do intendente, arrumo


os homens na boa educação e apelo patriótico, sem pagamento de
nenhuma espécie, só pela honra de servir.
– E a sua montaria, Pereirinha?
– Se me permite, pego o burro bravo do correio. Pode deixar
que chego ele na mansidão, acabo com as manhas dele, sem pulo
nenhum, ou então, não me chamo Pereirinha. Animal respeita quem
é do ramo.
Intento conseguido, partiu para o seguinte: – Na hora da solene
partida desta cavalaria, com a sua devida autorização, em frente à
intendência, como seu comandado, preciso da patente de cabo para
melhor mandar nos dez cavaleiros.
16
16. Luís Alves de Lima e Silva, Marquês
Silêncio do Braulino, breve a de Caxias (1803-1880), já tendo lutado
rendição. na Guerra da Independência e Cisplatina,
teve seu primeiro comando militar na
– Cabo não ganha mais que sol- repreensão à Balaiada, revolta popular
apoiada por muitos negros libertos pelos
dado, cabo tem mais cuidado com o revoltosos, em Caxias no Maranhão. Por
uniforme e só anda calçado, bota lus- este campanha recebeu o seu primeiro
título nobiliárquico: Barão de Caxias.
trosa de preferência – arrematou o Pacificou as províncias de São Paulo e
intendente. Minas Gerais. Negociou a rendição dos
revoltosos gaúchos, na Guerra dos Far-
– No momento, o soldo pouco rapos, mostrando grande habilidade
importa, uniforme novo e bota lustro- política e respeito pelos vencidos. Na
Guerra do Prata, desfilou vitorioso em
sa, aguardo a bondade do patrão. Buenos Aires. Na Guerra da Tríplice
Maior preocupação é cumprir bem a Aliança, empregou balões para observação
aérea do inimigo e comandou as tropas
missão, meu dever! aliadas na passagem de Humaitá e tomada
de Assunção. Não vendo razões militares
Ao se retirar, pensou: velho so- em perseguir Solano López no norte do
vina, Deus ainda te castiga! Paraguai, retornou ao Rio de Janeiro.
Recebeu o único e maior título de nobreza
À tardinha, sem os curiosos na a agraciar um brasileiro: Duque de Caxias.
venda, só os graúdos habituais, as a- É o Patrono do Exército Brasileiro e Pa-
cificador do Brasil.
tenções se dirigiam inicialmente ao
major. Gaúcho, sobrevivente da Revolução Farroupilha, lutou sob o
comando do Marquês de Caxias16, dizia. Falastrão, conhecedor deste
mundo, muitas andanças passadas, dos pampas até o Rio de Janeiro.
Jurava ter estado, até mesmo, na Corte Imperial da Quinta da Boa Vista.
Mostrava sempre muito acerto nas geografias e histórias de lugares
74 Águas atávicas

distantes. Roupas bem tratadas e o gosto de quem conhecia outros


ambientes, apreciava vinhos. Recusava a fama de mentiroso; justificava
os notórios exageros nos casos de caçadas e pescarias pela necessidade
de aumentar o interesse dos ouvintes. Estudo regular nunca mencio-
nou. Físico a não impor respeito, gordo, baixinho e atarracado, a face
avermelhada pela bebida era um convite às costumeiras brincadeiras.
– Vinhos... coisas de europeu ou gaúcho metido a besta, garga-
lhava acrescentando, que nem eu chê, suspirava saudoso; na falta
destes, qualquer aguardente servia. Talvez fosse apenas um jovem
viajante curioso, agora um velho sedentário.
O major continuou: – Isolados aqui há séculos, separados a
leste da imensa faixa litorânea por altas serras cobertas de matas
intransponíveis e por cordilheiras escarpadas cobertas de neve, a
oeste, fizemos desses rios as artérias das vidas que tentamos construir,
nem sempre pacificamente, nesta vasta região. Pelas águas vem o
que precisamos, por elas vão o que nos sobra. Riqueza maior, a extraída
das profundezas das minas bolivianas de Potosi, um mar de prata
chega ao oceano em benefício de distantes colonizadores.
Celebrou a erudição histórica e a inspiração das citações lite-
rárias em mais um gole. O major percebia que seu discurso impres-
sionava. Pela plateia poderia falar quantas asneiras quisesse, mas que
o fizesse com a necessária eloquência.

Surpresa geral: a chegada do intendente acompanhado do Pe-


reirinha. Braulino foi direto até o major, que costumeiramente ficava
atrás do balcão da venda, aperto de mão mudo, cadeira gentilmente
oferecida, assento tomado. Pereirinha permaneceu junto a uma das
portas de entrada. Tomava conta dos indesejados moleques de porta
de rua que espreitavam o interior da venda, sem permissão de entrada.
Casca moleque, some daqui, vai caçar serviço, em voz baixa, Perei-
rinha cumpria sua obrigação. Certo constrangimento pela presença
inesperada, vencida a natural hesitação, permanecendo calado o
Braulino, o major continuou: – Meus amigos, ontem ouvimos o nosso
ilustre líder ordenar que se levassem as boas notícias aos distantes
moradores das margens dos rios das Pedras, Morangas, Indaiá Grande,
Marcos Faustino 75

Sucuriú, Verde, Pardo e Vacarias. Muitos outros rios poderiam ser


citados, se quiséssemos nomear todos os nossos amigos usufruindo as
dádivas dos numerosos afluentes do majestoso rio Paraná. Mais ainda
falaríamos, lembrando-nos dos distantes Barbosa, Lopes e Rosa, alguns
já agora em águas do manso rio Paraguai. Assim como todos nós, ir-
manados, formamos um mundão isolado no que se chama bacia do
Prata, estes dois grandes caudais, Paraná e Paraguai, juntos e por si
sós, constituem as principais artérias do nosso próprio coração, aqui
no meio do continente sul-americano.
Não se aguentando mais, o intendente Braulino, visivelmente
irritado com o lero-lero do major, interrompeu bruscamente: – Caros
amigos, muito oportuna a lembrança de minhas palavras por parte
do major. Em continuação ao que anunciei ontem, ordenei ao Perei-
rinha que recrutasse um total de dez cavaleiros, para que, sob o co-
mando de nosso dedicado soldado, esta pequena tropa fosse levar as
boas-novas aos mais distantes rincões de nossa província. Depois de
amanhã cedo devem deixar nossa cidade para cumprir tão importante
missão, em solene despedida em frente ao prédio da intendência.
Plateia quase em uníssono: várias interjeições de aprovação,
curtas frases de “muito bem”, “providência muito correta”, “do
Braulino sempre vem coisa boa”, etc.
Recado dado, amanhã já todos saberão; depois de amanhã na
intendência, formada a plateia de curiosos, Braulino bem calculou.
– Vim aqui só mesmo para dar esta boa notícia e não querendo
mais ocupar os ouvidos dos amigos com outros sérios assuntos, deixo-
-os com as costumeiras histórias, os casos divertidos, contados pelo
major, que muito divertem a todos. Dito isso se levantou e saiu resoluto.
Tão logo o Braulino saiu, um cutucão no major.
– Casos divertidos, eh major? Então o homem já conhece sua
fama! De certo se referia àquela da cobra e da onça abatidas com
um tiro só.
– Que nada, o homem falou das minhas costumeiras histórias.
Se ele é sério, eu também posso ser. Sou mesmo é militar de carreira
de muitas façanhas.
76 Águas atávicas

– Ouvi dizer que carreira fez muita, principalmente da frente


do inimigo – cutucou outro. Risadas dos presentes. Já vermelho pelo
álcool, aproveitou o breve silêncio, pediu inspiração num gole da
amarelinha, substituta do ausente vinho, ia continuar, mas deu meia-
-volta na disposição e tomou outro rumo na conversa.
– Escuta aqui, oh! Acho que vocês nunca entenderam o fun-
damento dos casos que eu conto. Pego por exemplo o de maior sucesso:
a cascavel e a pintada abatidas com um só tiro. Pura verdade; detalhe,
a cobra abatida num dia usando a coronha como porrete, noutro dia,
a onça morta com tiro certeiro, entre os olhos. Uma cobra e uma onça
mortas, que interesse têm estes dois fatos isolados, separados por um
dia? Eliminando este dia, colocando na mesma hora; dou uma coro-
nhada na cobra, a arma dispara e acerta o felino, o caso cresce na
atenção de todos, agrada, diverte, ganha fama, atrai mais gente para
ouvir. E então pergunto eu, que diferença um dia faz? Não é melhor
a atenção geral, o agrado, a diversão, a fama do caso atraindo mais
amigos? Empolgado continuou: – Se vocês concordam comigo, con-
tinuamos a conversa. Se não cambada.., o baixote vermelho de raiva,
vão todos pra.., pra..., pras casas de vocês, que já está muito tarde,
passado da hora.
Gostosas gargalhadas encerraram a reunião, iniciada na maior
seriedade e terminada em divertida camaradagem.
Para o último gole da saideira, os três retardatários. Pereirinha
lamentava para si: mesmo mandando em dez, nem assim promovido;
também pudera, descalço, quem haveria de citar o cabo Pereira?
Major falou: – Pois é, faltou o principal. Com tanta gente de
valor, nenhuma lembrança de aumentar o efetivo da nossa patriótica
coluna em direção a Cuiabá. Que seja um destacamento simbólico,
pelo menos nossa vila já estaria nesta página tão brilhante da história
pátria que ora se escreve. Amanhã procuro o Braulino e ajeitamos a
situação. Nem que vá só, por exemplo, o Pereirinha, soldado em sim-
ples missão de levar as malas do correio, retidas há meses na vila, a
espera de mensageiro. Afinal o coronel Drago é também o presidente
de nossa província, nomeado que fora pelo imperador, a caminho de
sua posse na capital. Com o envio deste simbólico destacamento, o
Marcos Faustino 77

intendente estaria expressando seu sempre incondicional apoio a


qualquer autoridade superior. O italiano lembrou logo de seu enun-
ciado antigo: é a lei da guerra, ao soldado as balas, aos maiorais a
glória. Para bucha de canhão o soldado Pereirinha foi lembrado, a
superior patente de major esquecida, terminou o pensamento..
Finda a reunião dos retardatários, já a caminho de casa, Perei-
rinha repetia, “ao soldado as balas, aos maiorais a glória”.
Memorizava a frase, na repetição: – Ao soldado as balas... Ao
soldado as balas, aos maiorais... Major podia se apresentar, dava
exemplo. Mas não, bala no soldado, meu nome apareceu. Maioral
agradando maioral, intendente puxa-saco de presidente da província,
eu levo bala. Bruta ideia, o italiano conhecia o mundo. Pereirinha
voluntário, uma ova !!! Não vou nem...
Já Lá-em-Baixo, Pereirinha reparou na animação das meninas,
pensou no uniforme novo que, torcia, faziam em segredo. Uma cortava,
outra alinhava e a terceira costurava... pequenas flâmulas verde-ama-
relas espetadas em varas de bambu. Roupa nova, uma ova, nada
para ele em especial; decepcionado, foi dormir sem se importar com
a Menina. Fingiu sono, recusou contato, raiva da ingrata.
Dia seguinte cedinho, burburinho de gente, agitação de homens
no lado de fora da casa, combinação de reunir-se Lá-em-Baixo, ordem
dele. Sonolento, Pereirinha levanta, sobre a cadeira, uma farda nova.
Sem acreditar, aproxima-se, toma a roupa, abre; com os braços esten-
didos aprecia a novidade; surpresa maior, nos ombros, duas fitas dou-
radas. Cabo? Menina chega, explica, não podia contar. Duas fitas,
ordem do intendente, recado que Tonhão trouxe. Vó Celeste na frente
das meninas, aproxima-se, mãos nas costas escondendo embrulho,
mais uma surpresa, um par de botas, novinhas, reluzentes no verniz.
Encomenda chegou semana passada, não podia contar antes; segredo,
combinação de todas. Ele Pereirinha, cabo? Não, Cabo Pereira, mais
respeito.
Já com uniforme novo e de botas, Pereirinha, ao sair foi saudado
com simpáticos sorrisos e breves comentários dos companheiros. Era
pouco, cara séria mal escondendo o orgulho, ordenou: – Cabo quando
aparece, soldado bate continência!
78 Águas atávicas

Os dez, meio sem jeito, obedeceram, recebendo a nova ordem


de montar. Explicou: – Estandarte para cada um, cores da pátria pa-
ra lembrar que a missão é oficial. Ponta do bambu no pé do estribo,
bandeirinha no alto. Quatro pessoas portavam espingarda de chumbo,
cartucheiras, arma de caça.
O bambu do cabo era meio metro maior. Hierarquia bem ob-
servada pelas meninas que já de longe admiravam tão bonita partida.
A Menina, costureira do uniforme, avaliava seu trabalho: folgado no
ombro, apertado na barriga, meio comprido na perna; pouca prática
nas medidas, justificava-se. Mesmo satisfeita, uma ponta de despeito,
a ingratidão do amado: ela costurando em segredo até tarde da noite
e ele indiferente à companheira. Ingrato! Liga não, homem é assim
mesmo, complicado, consolou-se.
A passos, chegou à primeira rua, correria de moleques, acompa-
nhando a tropa. Marcha picada, das poucas janelas, olhares admirados.
Meio galope na chegada da intendência, Braulino proclamou bem
claro: – Cabo Pereira, leve a todos a boa notícia de que o imperador
envia socorro aos nossos irmãos da fronteira. Assuma o comando da
cavalaria.
– Avançar – berrou o cabo. Galope, marcha picada, depois
montarias em passo, em breve a vila para trás. No primeiro córrego,
água para os animais. Já distante do povoado, no terceiro morador,
pausa para descanso.
Dois assuntos Pereira esclareceu logo, os estandartes, só para a
saída na frente da intendência; depois ficarão guardados na primeira
casa. Canseira inútil, carregar bambu. Campos das Vacarias, muito
distante e perigo de patrulhas paraguaias, ninguém precisa ir. Cada
cavaleiro pega um rumo, não precisa todo mundo junto. Pode escolher,
por amizade sua ou do patrão, conhecido morando por lá, cada qual
para uma direção.
Com a exclusão de Vacarias, dez cavaleiros, nove destinos. Baús
é o mais longe, cabeceira do Aporé, divisa com Goiás, vão dois, por
segurança. O segundo alega que encontrou comitiva a caminho de
Goiás, vinda das Vacarias, onde já tinha chegado a notícia, por isso
arrepiou carreira.
Marcos Faustino 79

Alguém lembrou: – Sobrou o cabo, vai para onde Pereira?


– Fico na retaguarda, aqui mesmo, cuidando dos estandartes.
Máximo em seis dias, todo mundo de volta, topamos de novo. Aos
soldados as balas, aos maiorais.... ao chefe cabo a glória do descanso,
filosofou Pereira.
Na intendência, Braulino chamou o guarda-livros e ordenou:
– Recibos em nome do Pereira, cabo ganha um pouco a mais que sol-
dado; se perguntar o salário, diga que isto é assunto meu com ele.
Data de uns dez meses atrás. Dez recibos, na volta ele assina. Ajuda a
fechar as contas, pensou satisfeito.
Melos Taques derramados, desde o Rio Grande do Sul até Cuia-
bá, sempre se encontrava um. Pitadas de mentiroso e animado fanfar-
rão, virtudes muito apreciadas. Já Braulino, sério e sisudo em solenes
aparências, benefício próprio com o dinheiro da intendência, confusão
secular entre o patrimônio público e o seu. Pereirinha, a construir sua
vida, isenção total de juízo de valor, apenas a percepção rápida do funcio-
namento das coisas no seu entorno, valendo mais tirar proveito das circuns-
tâncias, malícia proveitosa no vislumbre das pequenas vantagens.
Glória maior no descanso do cabo Pereira era lembrar as pa-
lavras bonitas que aprendera, a atenção despertada pelo bem falar.
Se o que ouvia ou dizia era verdade ou não, pouca ou nenhuma di-
ferença fazia. Importante era a magia das palavras, o encanto das
histórias bem contadas, as viagens por mundos distantes, a realidade
dos sonhos possíveis... a promoção a cabo. A todos em geral, e a nenhum
em particular, aos nossos amigos distantes no ribeirão das Pedras, no
córrego das Morangas, no Indaiá Grande, no rio Sucuriú, no Verde e
mesmo os mais longínquos, além do rio Pardo. Repetiu a fala do major
“aqui no meio deste continente fizemos desses rios as artérias das
vidas que tentamos construir; pelas águas vem o que precisamos, por
elas vão o que nos sobra”. Atitudes e características se misturando nos
meandros dos muitos rios, difundindo a peculiar maneira de ser dos
habitantes desta região.
Marcos Faustino 81

A indicação do voluntário

O problema verdadeiro aparecia na cabeça do cabo Pereira,


de modo bem claro e resumido: apartar-se da Menina, neste tempo
frio, separar-se do quentinho das cobertas asseadas, tudo no perfume
gostoso do corpo dela, fingimento bom de sono disfarçado, esperan-
çosa no quase escuro do quarto, olhos na espreita da chegada dele.
Fêmea de encantos chamativos, vaidade de mulher no realce dos
atrativos, prende o homem em volta, mesmo tendo tudo tão miudinho.
Detalhes sem defeitos das partes à mostra e das outras tantas escon-
didas, ainda mais bonitas. Vantagem no tamanho só no par da frente.
Lugar certo de repousar a cabeça, ajuntar os dois no carinho das
mãos subindo de lado, desde a cintura, leve aperto, aumento dos mor-
rinhos, afundar o rosto no vale estreito, cheiro bom. Desce mais, barriga
macia, cheiro diferente espanta o nariz; sobe então, procura na boca
as loucuras dos beijos, suga em cima, engata embaixo, natural, quase
sem perceber. Fala doce, melodia nos gemidos. Contorcem-se em re-
petições, movimentos rápidos, vigorosos, bestialidade pura, inexistência
do entorno. Depois, fogo apagado, descanso da cabeça nas duas almo-
fadas, sono solto. Ela acordada, no sentimento prazeroso da conquista
garantida: Pereira era dela, único bem possuído.
– Que mandassem outro, ele, Pereira, não ia.
Vida organizada com mulher na espera diária. Recebia o paga-
mento, entregava tudo para a Vó, sem preocupação. Vó tomava conta,
enxotava rivais, espantava interessados: a Menina tinha dono, a Menina
era dona. Vó não cobrava mais o quarto dela; comida em troca da
ajuda na cozinha e na arrumação da casa, futura patroinha, a Menina,
candidata a herdeira; obrigação transferida da roupa lavada do neto.
Sumir no mundo, lonjuras de muitas léguas, talvez até Cuiabá,
meses de viagem no lombo de burro empacador. Mesmo se tivesse
82 Águas atávicas

volta, quanto tempo afastado? Sertão bravo, terra mais dos índios,
perigos constantes na viagem demorada.
– Ele não! E a Menina aguentava a distância, já tão desacos-
tumada à ausência de homem? Medo da perda inevitável, irrecupe-
rável depois da primeira traição. Vó não ia dar conta, mesmo redo-
brando os cuidados.
E se apertassem, exigissem, recusar como? Conselho da Vó: se
mandarem, obedece e vai. Não tem outro recurso, sem jeito de contra-
riar quem garante o emprego. Descumprimento de ordem não é ati-
tude de cabo. Afronta é desobedecer o intendente, resto da vida des-
graçado sem serviço por aqui, só mudando de região, mesmo não
contando com perseguição mais cruel. O salário não é de jogar fora e
tem a vantagem extra da posição: polícia prende. Não pode errar é
na avaliação. Cadeia para sujeito metido, só a mando ou endossado.
Zé coitado pode, Pereira resolvia e pronto, esteja preso. Para soltar só
com ordem do intendente, favor devido. Vantagem grande para os
negócios da Vó, a autoridade do Pereira ajudava bem. A presença
eventual da farda impunha respeito aos abusos da bebida.
– Então ia, mas levava a Menina!
Bobagem, preocupação dobrada. E se encontrassem inimigos
poderosos, em maior número? As muitas barbaridades feitas nas mu-
lheres, contra a vontade, dominadas sem piedade. Besteira... morria
duas vezes: a primeira, natural por bala ou ponta de baioneta; a se-
gunda, pior, castigo no inferno por revolta descontrolada, protesto
esbravejado ali mesmo na porta do céu, desacordo manifestado direto
a Deus, por Ele ter permitido o malfeito à sua Menina indefesa.
Era aguardar e torcer para que tudo desse certo. Enquanto isso,
conversava daqui, ponderava dali, a mudança de opinião aparecia:
não queria, mas ia.

Lá pelas tantas, surgiu o agenciador de mantimentos para a


tropa, despenseiro, aventureiro, Pablo Bellaco. Acompanhando a tropa
desde o desembarque em Santos, sem dinheiro algum, começara suas
atividades em Goiás comprando fiado e vendendo à vista. Logo,
fornecedor do Exército. Curioso do caso: o homem era argentino.
Marcos Faustino 83

Tríplice aliança, justificava sua presença. Pablo Bellaco, Pablo Belhaco,


logo Pablo Velhaco pelas aptidões demonstradas. No começo só um
burrico, agora já muitos carros de bois, comboio, na procura de todo
tipo de mantimento. O quanto tivessem para vender, Velhaco compra-
va. Necessidade de suprir mais de três mil bocas no total; haja comida.
Carência de carne não existia, sobrava gado em Goiás. Dificuldade
era no arroz, feijão e milho, por conta de safras ruins nos dois últimos
anos. Culpa da fraca chuva na hora certa, no plantio; depois, muita
chuva na hora errada, na colheita. Lavoura era mais sustento próprio,
subsistência, sem costume de comércio. Falta maior dos temperos,
sal, pimenta. Açúcar só de rapadura, agora em quantidade pequena.
Mandioca encontrava bastante; já a farinha, escasseava no exagero
da quantidade pedida.
Ia negociando, primeiro no apelo ao patriotismo; não funcionava
por aqui, terra em que o maior ainda era pequeno, comparado com
as necessidades da encomenda. Depois, o preço irrisório, culpa do
comissário da repartição fiscal, encarregado de receber e pagar as
compras feitas. Exigente demais nas mercadorias, sovina com o di-
nheiro público, cheio de tabelas e impedimentos legais. Ainda na
província de São Paulo, o primeiro fornecedor desistiu do contrato e
foi embora reclamando reembolso de despesas nas muitas mercadorias
entregues e não pagas, dizia.
Imposição de mesmos preços, pagamento igual em regiões di-
ferentes, tabelas idiotas. Nas mais habitadas, facilidade para reunir os
mantimentos, largueza de oferta, abastecimento garantido na organi-
zação existente. Neste deserto de gente e de lavoura tinha de receber
mais para poder suprir, aguentar as distâncias maiores de transporte,
mercadorias mais rarefeitas, reunidas em menor quantidade. O preço
baixo desencorajava, mas tinha brios: não ia deixar tantos soldados
na derrota da fome; continuava até quando pudesse. Reclamava, mas
aceitava o preço pedido; por último, dinheiro limpo, à vista.
Do prejuízo tinha certeza, mas ainda confiava evitar a sua ruí-
na financeira, recebendo as quantias retidas, pendências resultantes
também de pesos divergentes, aguardando conclusão dos vários in-
quéritos instaurados.
84 Águas atávicas

Pablo pensava na fraqueza escandalosa do comissário, oficial


encarregado de receber as mercadorias e fazer-lhe os pagamentos: a
paixão pela Cuiabana, sua enrabichada desde Uberaba. O homem
se expunha a todo tipo de chacotas e mexericos da tropa carente de
assuntos picantes. Começava pela disparidade das belezuras. Ele, feio
bastante para dispensar desagradável descrição; ela, exposta a con-
corrência pública e fazendo janela na sua casa, promovia garbosos
desfiles das mais altas patentes pela sua rua. Morena vistosa beirando
os trinta, tinha sobra de encantos, ainda o bastante para tirar o fôlego
de marmanjos em caminhos de guerra esforçados, passados muito
além das várias privações, inclusive as destes gênero, número e grau.
Quando jovem, novidade debutante, a Cuiabana fora a sensação dos
ricaços da cidade, agora interessados já em outras preciosidades, ainda
não reveladas a forasteiros.
Pelo contraste, a especulação maior: o que a mulher ganhava
para ficar creúda e manteúda do comissário, homem mal acabado
com fama de sovina e muxiba? Dispensara ofertas vantajosas como a
do tenentinho francês. O engenheiro Taunay, jovem fogoso e atirado
com fama de aristocrata amigo do imperador, teve recusado rico co-
lar de esmeralda, ofertado em troca de exclusividade durante a estada
na cidade. Brios feridos, o rapaz ficou inimigo e difamador do comis-
sário, que acabou levando a prenda de longos cabelos negros, a Cuia-
bana, pela estrada afora.
O que a Cuiabana ganhava? Respostas diversas. A explicação
mais aceita foi esparramada pelas coleguinhas moradoras da mesma
casa, cochichos em segredos de fim de noite: vingança à desonra, até
então irreparável. Queria voltar à sua terra natal ao lado de importantes
figuras militares. No baile de recepção ao comandante Drago, que
certamente haveria, os puxa-sacos sempre promovem, ela, esposa
digníssima do renomado comissário da repartição fiscal. No momento
dos cumprimentos oficiais, a recusa em estender a mão enluvada
para um determinado sujeitinho de rica família. Na frente da mais
alta sociedade, a humilhação suprema para o mancebo causador do
fim de sua virgindade e início da vida fácil, que envergonhado nunca
mais frequentaria os salões do palácio. No dia seguinte, à frente de
Marcos Faustino 85

militar comitiva, iria ao pobre bairro de seus pais. Há tantos anos


expulsa de casa pelo comportamento então reprovável, agora de volta,
reabilitada pelo imponente séquito a provocar correrias de incrédulas
curiosas. Abraços e lágrimas de reconciliação, perdão silencioso; no
fim, o convite irrecusável de mudança para a rica mansão da filha.
Na longa vida de felicidade, a Cuiabana tinha certeza: ia aparecer a
lembrança do nobre francesinho, tão bonito e metido. Paciência, a
vida impõe sacrifícios e renúncias, pensava ela.
Havia muitas outras explicações, mas nenhuma rivalizava em
popularidade com esta. Certo que em conversa de putas não se fia,
mas a versão tinha lá seu sabor, de manei-
17
17. Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-
1899), Visconde de Taunay, descendia ra que acabou sendo verdade cristalina.
de artistas vindos para o Brasil com a
Missão Francesa. Seu pai tornou-se pro-
Pablo Velhaco ruminava estes a-
fessor e amigo pessoal do imperador, contecimentos na certeza de que o comis-
sendo designado barão. Na Guerra do Pa-
raguai, com vinte e dois anos de idade, o sário mostrava o seu ponto vulnerável,
tenente da Artilharia saiu do Rio de Janeiro detalhe importantíssimo para fornecedor
com a força expedicionária designada
para defender Cuiabá e que, depois de encrencado em repartição pública. Ficas-
penetrar o território mato-grossense, re- se para o futuro, acabava achando jeito
cebeu ordens de marchar em direção ao
país inimigo. Com inegáveis dotes literários de tirar proveito da fraqueza do homem.
descreveu o dramático episódio militar
em ARetirada da Laguna, originalmente O momento aguardado por Pereira
publicada em francês. Ao retornar ao Rio,
chegou: reunião na sala do intendente.
passando por Paranaíba, MS, ficou pro-
fundamente impressionado com beleza Zé do Correio informou que um só burri-
da sertaneja Jacinta Garcia que o inspirou,
co carregava as caixas de correspondên-
anos depois, a escrever Inocência, espécie
de Romeu e Julieta brasileiro. Voltou ao
cia acumulada no correio de Sant’Anna,
Paraguai, já capitão, acompanhando o
retidas sem prosseguir viagem, por falta
Conde d’ Eu na fase final da guerra. Foi
deputado por Goiás, governador de Santa
de portador autorizado. Disse também:
Catarina e Paraná e senador por Santa
– A carta de envelope mais distinto, com
Catarina. Iniciado no fim do império e
estourado já na República, o escândalo
caligrafia caprichada, de papel mais caro,
financeiro conhecido como Encilhamento,
é esta, exibida a todos os presentes e en-
devorou grande parte de seu patrimônio.
Já no fim da vida, foi designado visconde,
tregue ao intendente, que a analisou com
pouco antes da Proclamação da República.
atenção. Além da carta, o envelope con-
tinha, visivelmente, mais alguma coisa a aumentar-lhe o peso e volume.
Braulino leu em voz alta e pausada: – Destinatário: tenente Alfredo
d’Escragnolle Taunay17, Comissão de Engenheiros. Remetente: “Barão
86 Águas atávicas

de Taunay”. A escolha da carta fora criteriosa. Parece gente impor-


tante, merece receber em mãos. Era só um tenente, podia nem valer
a pena, mas vinha de um barão. Na falta de outra mais prestigiosa, foi
decidido, aquela seria entregue em mãos. Nunca se sabe, mas o pro-
veito, se há, só pode sair de quem tem.
– Quando o Pablo Velhaco partir, o cabo Pereira vai junto, en-
carregado de entregar o correio e de se apresentar como voluntário,
contingente simbólico da nossa vila. Se alguém mais quiser seguir em
defesa da pátria, ou mesmo indicar um escravo de sua propriedade
para esta honra, terá nossos aplausos.
A reunião terminou sem candidatos à honra, sem aplausos.

Não deu certo a torcida para que não se lembrassem dele. De-
cisão tomada: não ia, que se danasse tudo, queria a Menina. Depois
ia ver como ficava a situação. Talvez convencesse o manda-chuva, ia
alegar necessidade de garantir a ordem pública, prender bêbados
inoportunos, segurança dos prédios governamentais, continência na
hora certa. Fim da reunião, só o intendente, veio o berro: – Cabo Pe-
reira! Vem cá, apresente-se. Pressa do militar, continência batida. Às
suas ordens, meu comandante. A conversa foi curta e o assunto resu-
mido, só de conhecimento dos dois.

Saíram às cinco horas da manhã do dia seguinte, com ordem


de encontrar a Força Expedicionária, parada em Coxim. Major Taques
à frente, depois Pereira montado na Branca, mula baia que até há
pouco era a montaria de uso só do intendente; empréstimo honroso
ao cabo a caminho da guerra. Em seguida, puxado por longo cabresto,
o burrinho Paissandu, vivo, esperto, com fama de prestativo, esquecida
a notícia de balda. Levava duas malas de correio no lombo, uma de
cada lado. Em seguida a longa comitiva; quatro carros de bois cheios
de mantimentos, sacos de arroz, feijão, milho, açúcar e rapadura,
pouco sal e por fim muitos bois e vacas, provisão ambulante de carne,
tocada por peões de confiança. Por último, Pablo Velhaco a garantir a
culatra, atrás de tudo, preocupado com as possíveis arribadas surru-
piando seus bens, por desleixo de boiadeiro, má-fé de safado, ou
mesmo por obra de índio ladrão.
Marcos Faustino 87

A vila já toda desperta assistia à heroica partida. Major à frente,


respondia aos acenos de mão dos mais ilustres. Pereira, em sua farda
com dois traços dourados nos braços, sério como convinha à impor-
tância dos fatos. Cabeça longe, na verdade, pensamentos na Menina.
A despedida valeu a noite. Juras eternas, que se cuidasse dos malvados
paraguaios, ia rezar muito, Deus ia atender, Pereira voltava. Ela es-
perava, ocupação mesmo só na ajuda da Vó. Resguardo completo,
não queria outro homem pelo resto da vida.
– Resto da vida... Pereirinha pensou na frase da amada. Vida
dela ou minha? Quanto sobra para quem vai à guerra? Anos ou me-
ses? Semana não, tinha de ser mais, até porque demorava para chegar
ao campo de batalha. Primeira vez que o medo bateu. Espantou a
covardia, imaginando volta mais triunfal ainda. Agradou a si mesmo
pensando nos três meses de adiantamento de seu vencimento de cabo,
gentileza do intendente, para caso de necessidade no caminho. Pro-
messa do Braulino é dívida paga, tinha mais o soldo de voluntário da
guerra, dez mil réis todo mês entregue a Vó. Na volta, recompensa
de vinte soldos e o terreno ao lado da casa da Vó. Voltava rico.
– Que volta? E se não tivesse a volta? Pensão para o resto da
vida para Vó, garantia do intendente, bondade afiançada pelo próprio
imperador, era lei. Combinação de Pereirinha com a Vó, a Menina
por testemunha, as duas repartiam a pensão. Merejo de lágrima nos
olhos da amada, gratidão insuspeita, ponta de tristeza por morte pres-
sentida, desconfiada. Bobagem, ia voltar, rico, muito rico, mais ainda
se aprendesse as artes do comércio com o Pablo Velhaco.

Após a partida, o intendente mandou chamar a Vó, causando


grande curiosidade. Putona velha recebida na intendência, só a guer-
ra explica... Porta de sua sala escancarada para favorecer os ouvidos
alheios, Braulino falou alto e pausadamente, ajudando mais ainda a
divulgação de seus atos: – Dona Celeste, convoquei a senhora a esta
respeitosa repartição, negligenciando, por enquanto, seu endereço
que apesar do conhecimento público, em nada diminui a consideração
de nosso povo ao Pereira. Levo mais em conta sua condição de avó de
nosso valoroso Voluntário da Pátria.
88 Águas atávicas

Estendendo a mão com o dinheiro, continuou: – Aqui está o


soldo do primeiro mês de voluntário, que prometi ao soldado entregar
à avó, e cumpro. O adiantamento é bondade desta intendência. Todos
os meses, a senhora pode vir buscar igual quantia, até que no regresso
Pereira possa vir pessoalmente retirar o que lhe é devido. São dez mil
réis todo mês, por toda a vida do Pereira. Tenha a bondade de colocar
o dedão aqui neste recibo; a senhora sabe, coisas de governo sério,
fiscalização por desconhecidos, gente de fora, necessidade de recibo
provando a despesa: fosse só entre nós, não carecia de sua assinatura.
Pensou em mandar entregar Lá-em-Baixo, todo o mês. Mudou
de ideia. Tinha a questão do recibo. Rolando de mão em mão, alguém
podia pôr maldade na diferença. Recibo de quinze mil réis; pagamento
menor, só de dez. Muita gente não compreendia a diferença: necessi-
dade de cobrir outras despesas da intendência, diversas sem especi-
ficação, não oficiais, mas inevitáveis.
Mania de desconfiança desse povinho safado.
Outra assinatura da Vó. Dedo borrado, analfabeta, vendeu para
a intendência uma mula baia de nome Branca e um burrinho de no-
me Paissandu, doados ao voluntário a caminho da guerra, levando o
correio. Só não viu o dinheiro...
De volta para Lá-em-Baixo, Celeste pensava nas frases do Brau-
lino. “No regresso, Pereirinha possa vir pessoalmente retirar o que
lhe é devido por toda a vida”.
– O velho não falou nada do terreno prometido ao Pereira. Pu-
xei conversa, quem sabe cumpria logo a promessa, lembrei da casa
do finado Eliosório, sem serventia para os filhos morando agora nas
fazendas, casa fechada na vila, estragando, aleguei economias, podia
pagar uma parte, ajudava, assinava qualquer recibo, mas nada, sem
resposta, silêncio.
– Tinha entendido “pensão por toda vida” como sendo a minha
vida. Agora, na nova fala do Braulino parece que “por toda vida”, é
a do Pereira. Neste caso, o pagamento é só enquanto meu neto respirar.
A conversa do homem já tinha sido torcida, modificada. Desconfianças
de safadezas. Se não tiver regresso, fico sem nada a mais?
Marcos Faustino 89

– Deixa pra lá. Pereira ia voltar, tinha certeza, devoção de


muitas rezas, bondade da Nossa Senhora Sant’Anna, vó protetora que
nem ela. O neto garantiu, era lei do imperador: pensão para o parente
indicado, no caso indesejado de morte.
Só, em sua sala, Braulino avaliava os acontecimentos recentes.
A mula Branca e o burrinho Paissandu, vendidos, bem vendidos, di-
nheiro embolsado. A primeira, animal grande, comprada de um tro-
peiro paulista; pertencera a gente importante, garantiu o vendedor.
O burrinho, servindo ao Correio, pequeno mas vivo, presente do Pablo
Velhaco, esperto que nem o antigo dono. Parecia de grande estima do
argentino, começara a vida de comerciante só com ele. Mudou o
pensamento para a ambição da Celeste: então se o Eliosório não morre,
ficava sem a casa da vila. A mulher já estava de olho na propriedade
do trouxa apaixonado.
Escondido na gaveta de sua mesa, o jornal emprestado do major
Taques com o decreto do imperador instituindo os Voluntários da Pá-
tria. Fixava pagamento mensal de quinze mil réis para quem se apre-
sentasse. Na baixa do serviço militar, garantia alqueire de terra e
gratificação final de trezentos mil réis. Surto de patriotismo popular.
Alistamento intensificado, um sucesso! Em Sant’Anna, lei desconhecida,
entusiasmo nenhum pela guerra, trezentos mil réis no final, negócio
bom demais para ser de conhecimento geral, notícia guardada. No
futuro pensava na questão, resolvia como fazer, embolsava na certa.
A primeira baixa foi do major Taques. O homem ia mesmo era
para sua fazenda nos Baús, cabeceira do rio Aporé, perto da divisa
com Goiás, caminho comum só até ali.
Dali em diante, território vazio, terra dos índios caiapós. Viagem
sem novidades, só canseira de muito chão. Índios seguindo à distância,
observando na espreita, sem intenção de ataque. Vez por outra, dis-
cretos, pequenos grupos de soldados, em direção contrária. Desculpas
de cumprir ordens, emissários de coisa nenhuma, desertores fugindo
do pau. Deixasse, sustentar poltrões, covardes a correr antes do pri-
meiro tiro, nem compensa, não vale nem a comida; que levassem a
farda e os armamentos para suas casas, bocas a menos para o impe-
rador sustentar, concluiu Pereira.
90 Águas atávicas

Três semanas depois, eis Coxim. Acampamento na margem


direita, confluência dos rios Coxim e Taquari, quilômetros de confusão
de barracas, gente e armamentos. Depois de seis meses de espera e
hesitação, tudo agora em febril agitação com a ordem de partir e ex-
pulsar o pérfido invasor paraguaio. Novidade no rumo, sul em vez do
norte. A capital Cuiabá nunca sofrera assédio estrangeiro, não carecia
de ajuda militar. Já Corumbá, Miranda e Nioac continuavam em mãos
inimigas, urgente libertá-las.
Para alguns, animação pela chegada do correio do Pereirinha,
“malas e malas e malas” de correspondência. Alegria maior de todos
pelos mantimentos e gado do Pablo Velhaco, fome adiada.
O barracão que abrigava a Comissão de Engenheiros, tenente
Alfredo Taunay entre eles, ficava no fim do acampamento. Era o te-
nente Toné, o francês, caprichado nas aparências, namorador conhe-
cido, explicaram ao Pereira. Fácil achar. Na companhia da mula Bran-
ca e do burrinho Paissandu, esperou a tarde inteira; nada do oficial.
Noite também, ordem do intendente era entregar em mãos. De madru-
gada, dia clareando, chegou, farda meio em desalinho, vestida às pressas.
– Vejo que o carteiro me espera. Tive notícia, na vinda, apressei
o passo. Ah, carta do meu pai... Entrou no barracão.
Tudo muito rápido sem chance de nenhuma palavra para Pe-
reira. Pensou em bater continência, filho de barão, nunca tinha visto!
Rápido demais o tenente. Abriu o envelope com cuidado. Antes de
qualquer leitura, tirou outro envelope, mais fino e derramou seu
conteúdo, um pó branco, com o maior cuidado, medo de perdas,
dentro de pequena garrafa já cheia mais da metade. Explicou: –
Sulfato de quinina, raridade, remédio eficaz para maleita, voltando
a esconder a garrafa entre seus mais preciosos pertences. Sempre
recebo junto com a correspondência. No começo achei exagero de
pai, depois entendi a importância: quando a febre ataca, o quinino
muitas vezes é a diferença entre a vida e a morte.
Em seguida, papel aberto, leitura demorada. Seriedade alter-
nando com sorriso discreto, às vezes aberto; voltava ao sério, mudanças
no rosto. Notícias da família, cara melada; de moças amigas, rosto
aceso; da guerra, sobrancelhas cerradas. A leitura do Pereira era
Marcos Faustino 91

pela cara do tenente. Nem mesmo pequenos trechos da carta lidos


em voz baixa, quase sussurro, ajudavam o entendimento: era uma
fala estranha, enrolada. Francês, de certo, pensou Pereira.
Repetiram a leitura, o cabo da cara do tenente, este do papel;
entendimentos garantidos.
– Boas novas, boas novas, disse o tenente. Bem... novas de quase
quatro meses atrás. Mesmo assim boas notícias. Na frente do rio do
Prata, a guerra vai caminhando com vitórias nossas. Importante é lá.
Parou e, pela primeira vez, prestou atenção no Pereira. Ordenou
ríspido: – Apresente-se.
– Sargento Pereirinha. A solene continência, aprumado na ri-
gidez militar exigida. Escapou a palavra sargento, sem pensar, quase
distração. Mas saiu, clara, boa altura, sem chance de volta. Temeu
por segundos, rápido resolveu, agora era sargento e acabou.
– Descansar. Sargento de que arma, perguntou o oficial mais
graduado. Relaxada a continência, respondeu imediato.
– De qualquer arma, senhor. Luto com faca, rápido no punhal,
ligeiro no facão, esperto na baioneta; bom mesmo no tiro certeiro,
quando a arma é boa. Percebendo o começo de embaraço do tenente,
melhor esclareceu: sargento da ordem pública, a serviço da intendência.
A cômica resposta confirmou o absoluto despreparo do “sar-
gento”. Lembrou da notícia do carteiro à sua procura. Mais ainda da
maldosa revelação do mascate Abdula, discreta, quase confidencial:
conhecera o carteiro em Sant’Anna do Paranahyba. O rapaz era va-
lente, atrevido, fiel no cumprimento de ordens superiores, mesmo as
de má-fé, um perigo, disse o turco. Perigoso não parece; talvez provo-
cado, braveza aparece, concluiu Taunay.
A atenção de Taunay passou para a mula: parecida, muito, com a
que lhe roubaram em São Paulo. Nome informado, suspeita aumen-
tada. A outra era a Dona Branca, esta era só a Branca. Certo o ani-
mal perdera o respeitoso título de Dona por servir a gente mais comum,
pensou irônico. Marca de fogo nenhuma, como a outra. Levantar
suspeitas, não convém. Muito cedo, melhor a diplomacia por ora.
– Caso queira vender esta mula branca, eu me interesso.
92 Águas atávicas

– O senhor me desculpa, mas esta eu não posso, rebateu Perei-


rinha. É de uso do intendente. Foi só emprestada para meu uso, na
volta preciso devolver, o animal é dele. Então se ele quiser me dar,
agradeço e aceito, mas primeiro tenho de devolver o que até agora
não é meu. Não parece mas este outro animal, o burrinho Paissandu,
é dos melhores que já possuí. Até malas do correio trouxe nele. Neste
tratamos de negócios, se o animal lhe atender.
Conversa demorada e o preço acertado, cento e cinquenta mil
réis. Paissandu no lugar do antigo cavalo do tenente, atacado pelo
mal das cadeiras, magreza continuada, febres sem fim, pernas endu-
recidas até não andar mais, mal de quebra-bunda, como a doença
era conhecida.
– Dez meses de meu soldo. Melhor vender mercadoria do que
trabalhar, concluiu Pereirinha, descobrindo as vantagens do comércio.
Volto rico.
Conversa demorada e novo acerto: Pereirinha, valente, atrevido,
porém fiel, contratado como ajudante de ordens. Pequeno pagamento,
mas o terceiro, pelo mesmo serviço de ir para a guerra, agora ao lado
do tenente. Voltava rico, se voltasse.

Comissão de Engenharia reunida, parecer unânime dos nove


oficiais: partindo de Coxim, melhor caminho para Miranda era flan-
quear a serra de Maracaju, no lado da bacia do rio Paraguai, enfren-
tando e transpondo numerosos cursos d’água. Esforço de guerra exi-
gindo pressa, sem possibilidade de aguardar o período das secas, era
preciso enfrentar água barrenta pelas canelas, às vezes até a cintura,
quatrocentos quilômetros de terreno alagado pelas enchentes do mês
de fevereiro. Maleitas inevitáveis.
Ordem do comando maior: dois engenheiros, a escolha da pró-
pria comissão. Decisão no sorteio, igualitária, os azarados Taunay e
Lago, os indicados. Que seguissem na frente, marcando o caminho
para o restante da expedição. Levariam como escolta soldados da an-
tiga cavalaria que fugiram da morte certa na tomada de Miranda
pelos invasores. Recado da nova chefia, Coronel Galvão18, que não
gostava nem confiava na capacidade dos engenheiros: levassem os
Marcos Faustino 93

cavalarianos, únicos conhecedores da região, presumia-se, chegariam


até Miranda. Não dito, porém sabido, os soldados eram mal falados
na tropa, mistura de desertores, covardes
18
18. Coronel José Antônio da Fonseca Gal-
vão (?-1866), comandante da Brigada dos mal encarados, perigosos, traiçoeiros mes-
Voluntários da Pátria provenientes de Ouro mo, era a fama. Boa cautela, avaliou o
Preto, que se juntara à força expedicio-
nária em Uberaba, a caminho de Cuiabá. tenente Taunay, era levar o sargento Pe-
Assumiu o comando geral com o retorno reirinha, fiel e destemido cumpridor de
do coronel Drago à corte, no Rio de Janeiro,
em outubro de 1865, quando a tropa já se ordens, mesmo as esquisitas. Consolo era
encontrava em Goiás. Morreu entre Coxim a provisão de comida, suficiente.
e Miranda atacado por terrível inimigo da
tropa brasileira: beribéri, doença causada – Que tristes as tardes de Coxim,
pela simples ausência de vitamina B-1.
repetia de vez em quando o francês. Era
consolo por deixar o acampamento, no cumprimento da missão, já
vadeando, novamente, o rio Taquari, voltando à margem esquerda.
Ao longe o barulho da cachoeira, as ruínas da antiga vila de Beliago,
incendiada pelos paraguaios do coronel Resquin.
Direção ao sul, bússolas indicando, serra de Maracaju à esquer-
da confirmando. Junto à serra, mata trançada de cipós, terreno pedre-
goso, logo escarpado, dificuldades de marcha para a tropa que viria
atrás. Mais para o lado da baixada, água lodosa, insalubre, atoleiros,
dificuldade de locomoção para a infantaria que viria em seguida,
necessário estiva para a passagem dos pesados canhões La Hitte. Eram
doze; agora só quatro, os outros oito ficaram para defesa de Coxim.
Escolha tinha de ser feita, foi sendo feita. Picada, galhos quebrados,
vários truques a indicar o caminho. Dos céus, aguaceiros toda tarde,
sem qualquer compaixão.
Três dias depois, transposto o rio Verde, afluente do Taquarimi-
rim, o terreno começa a subir, torna-se pedregoso e entra-se no Portal de
Roma, péssima e dificultosa passagem embaraçada com grandes lajes de
rocha. A paisagem é muito pitoresca e o caminho segue por um grande
rasgão na serra coberta de plantas. Resquin, comandante inimigo, pas-
sara por aqui com toda sua tropa há cerca de um ano atrás, também
puxando canhões, vestígios encontrados. Certeza da rota, confirmação
macabra: um soldado paraguaio fuzilado por seus próprios compa-
nheiros, empalado em fina porém resistente estaca de madeira, ca-
veira e fardas resistentes, carnes comidas. O caminho que serviu para
94 Águas atávicas

eles, servirá para nós, mesma trilha, sentidos diferentes. Dificuldade


era achar a batida nas baixadas. Com as chuvas, rastros apagados,
impossível encontrar.
19
19. Perdigão, conhecedor da
– Portal, vá lá, parece, mas porque de região entre Coxim e Miranda,
Roma? Talvez algum saudosista da grandeza ajudou como guia prático na in-
dicação dos caminhos mais ade-
romana perdido por estes rincões, perguntou quados para a passagem da força
Lago e um soldado respondeu. expedicionária brasileira, nesta
região do Pantanal. Hoje, dá no-
– Nada..., nome dado por Perdigão19, ma- me a um distrito do município
teiro afamado; sorte nossa se encontrarmos o de Rio Negro (MS).
homem. Conhece tudo quanto há de passagens de rios, desvios de
matas e contornos de morros. Fosse orientação dele, a tropa tinha
vindo direta de Uberaba, passando por Sant’Anna, Camapuã rumo a
Miranda, na picada aberta pelo Perdigão.
Taunay, em costumeiros devaneios, provocou Lago: – Em aten-
ção aos seus conhecimentos de história militar, vejo semelhança maior
com o Desfiladeiro de Termópilas. Imagino milhares de índios inimigos,
no alto. No fundo da passagem, indefesos, poucos de nós, muito menos
que os heroicos trezentos de Esparta. O recado: Nossas flechas são
tantas que se disparadas de uma só vez cobririam a luz do sol – e a cé-
lebre resposta – melhor, lutaremos a sombra – agora pronunciada
pelo meu amigo, capitão Lago Leônidas. A junção de seu nome com o
herói grego fez Lago explodir em gostosa gargalhada, humor tão raro
pelas circunstâncias, tônico revigorante para todos que a ouviram.

Império das águas, deserto de gente, começava o Pantanal.


Reino das onças, veados mateiros e capivaras na terra firme.
Nos ares, multidão de pássaros variados, belas garças e os grandes e
desajeitados tuiuiús, jaburus. Por baixo, no esconderijo das águas, o
perigo dos jacarés traiçoeiros, sucuris imensas e peixes aos milhares.
Brejão úmido de imensas planuras. Esparsas ilhas de terrenos pouco
mais elevados, maiores na vazante da seca em setembro, menores nas
enchentes de fevereiro.
O primeiro obstáculo sério, a travessia do rio Negro. Taunay
perguntou: – É esta a divisa da recém-proclamada província de Mbo-
teteí, agora e para todo o sempre pertencente à República do Paraguai?
Marcos Faustino 95

– Acho que há engano na cor do rio, a divisa pretendida é o rio


Branco, bem mais ao sul, respondeu o capitão Lago. Pode ser que
agora, devido aos sucessos militares iniciais, ficaram com ambição
maior, aumentaram o território cobiçado. Vamos perguntar ao pri-
meiro paraguaio que encontrarmos. Talvez ele saiba responder onde
fica esta província.
– Este nome esquisito que o tenente falou é como os paraguaios
chamam o rio Miranda, que vamos encontrar lá na frente, se Deus
permitir – respondeu um soldado.

Tristeza de Taunay, aniversário de vinte três anos, neste fim


de mundo. E se morresse nestes cafundós? Tão jovem e cheio de
vida! Nem família, amigos ou rabo de saia na dor do derradeiro
pranto, sem despedida. Cova rasa esquecida, existência sem sentido,
tantos sonhos acalentados, nenhum realizado. Uma bala inimiga,
maleita traiçoeira, beribéri, perneira sem cura, bastava. Era o fim de
quem não começou. O amigo Lago acode: – Vida de militar é assim,
você é pago para isto, nada mais. Dureza de raciocínio, aspereza de
amigo, dor de Taunay curada.
Transpor as águas fundas do rio Negro, sem dar pé, pessoas e
suprimentos compartilhando embarcações improvisadas. A tragédia
inesperada, gente nadando e mantimentos afundando, sem esperança.
Salvam-se todos, menos da fome inevitável, única inimiga certa a-
diante. Gado arisco, sem permitir aproximação, nem bala garantia a
carne. Comida, só palmito gosmento de macaúba, frutos de jatobá,
pequenos pássaros, pegos em arapucas ou nos chumbinhos da espin-
garda de caça. Sem carne e outras vitaminas, fraqueza, perneira,
comichão primeiro nas pernas, doença do beribéri. Desespero da fo-
me, o tamanduá fácil de pegar, porrete comprido na mão, bater sem
dó, cuidado em evitar suas longas garras, seu abraço mortal. Panela
assando, longo focinho fatiado, outras partes do corpo também, um
horror só, impossível comer, ânsia de vômito, gosto insuportável. De-
pois o jabuti, melhor, alguns até comeram bem. À noite, pavoroso
urro de onça, pela potência do berro infere-se o tamanho da fera.
Quem é a caça, quem é o caçador? Medo danado do sono largado, a
96 Águas atávicas

onça poderia chegar. De dia, numa sombra, debaixo de alguns galhos,


a carcaça de um garrote, quase fresca, meio comida pelo felino. Há-
bito é este: mata e come um pouco, em seguida amoita a carniça; dia
seguinte volta para continuar a refeição. A inicial repulsa da insólita
sociedade se transforma em feliz achado, carne bovina saborosa, fome
saciada, barriga cheia, estufada pelo excesso da quantidade, luxo
permitido.
Continuaram, dias de mais fome.
Finalmente a glória do maior feito d’armas em tão esdrúxula
campanha: a vaca abatida por dois tiros, um certeiro e o outro de
mera confirmação. Gado pastando distraído, o mais competente arti-
lheiro é convocado para a missão salvadora: garantir a carne, matar
a vaca. Caçador experiente nos costumes da terra, despe-se de suas
roupas fétidas, nu por completo, caminha contra o vento, evita o animal
pressentir a aproximação, avança em direção à presa. Mira demorada,
caprichada e a surpresa: Pereirinha voltava com três passarinhos para
a refeição, espingardinha na mão. Gado o percebe primeiro, se assusta,
foge em disparada. Dois estampidos e nenhuma rês abatida. Imediatos
xingatórios, torrente de insultos, injúrias das mais pesadas. Mãe, rabo,
virilidade, nada esquecido, tudo em direção ao Pereirinha. Sem ação,
sem resposta, situação embaraçosa. De repente, a salvação berrada
vinda de onde o gado estava.
– Tem uma vaca atirada, morta, corre todo mundo aqui!
Dos insultos à disputa pela autoria da gloriosa façanha, de quem
fora o disparo que atingiu a vaca? Após receber tantos impropérios,
não se poderia esperar simpatias por Pereirinha, razão por que o
veredicto foi-lhe contrário. Mesmo porque o parecer era embasado
em provas técnicas, a causa mortis fora projétil de grosso calibre, o
mesmo da arma do artilheiro convocado, constatando-se a presença
de pequenos chumbinhos que mal transpassaram o couro.
– É que o meu tiro foi de reforço, para a vaca entender que ti-
nha de morrer, obrigação dela nos salvar da fome, explicou Pereirinha,
colhendo mais xingamentos.
Aberta a vaca, sua mais fina iguaria, o lombinho de dentro, foi
oferecido aos oficiais. “Petit filet” no dizer do tenente francês.
Marcos Faustino 97

Depois de um mês de viagem, a vanguarda, a Comissão de En-


genheiros chegara aos Morros, onde encontrara antigos moradores
de Miranda, Nioac e fazendas da região, fugitivos da invasão para-
guaia. Muitos, muitos índios também. Situado no alto da serra de Ma-
racaju, o aprazível lugar era seguro pela dificuldade de acesso e se
constituía também em sentinela avançada graças à longa visão pro-
porcionada pela elevação do terreno.
A tropa ainda em Coxim, nos preparativos para a partida. Tau-
nay e Pereirinha aguardariam nos Morros por alguns meses.
Para trás ficara o Pantanal, imensidão de águas com dificuldade
de escoar, hesitantes na busca de menores latitudes, calha de peque-
níssima declividade a retardar o aparecimento do rio Paraguai. Repo-
sitório de muitas formas de vida, digno túmulo para onças-pintadas
ou pardas, jacarés de papo amarelo, desengonçados tuiuiús e garças
de variadas cores, pacus e piranha decantando-se no final da existên-
cia. Matéria inorgânica arrancada das margens, cor lamacenta dos
terrenos alagadiços, desce também ao fundo junto com as árvores e
vegetação ribeirinhas. Paradouro natural, encontro derradeiro se-
pultando em si tudo que a água traz, abrangente simbiose, prestes a
se disseminar na descida do rio Paraguai.
Canoeiro atrevido, deslizando em fina casca de árvore por sobre as
águas na sua caça e pesca da comida diária. Lição ensinada aos que vem,
ensinamento recebido dos que se foram, a sobrevivência garantida.
Chuvas, cheias justificando o aumento das áreas alagadas, sorte
dos peixes. Secas criando mais terras, azar dos peixes, agora apri-
sionados em diminutas lagoas, presas fáceis para as esfomeadas e co-
loridas aves apinhadas nos galhos das árvores vizinhas, parecendo
coloridas flores.
Chuva e seca, repetição do ciclo, o vaivém da vida e da morte
perenizando características, águas atávicas ambicionando a eternidade.
Marcos Faustino 99

As delícias da guerra

Sem ocupação anterior, nos Morros surgiu curioso aldeamento.


Escapando da perseguição paraguaia, índios e brancos em har-
monioso convívio. Índios em muito maior número, dez contra um,
sem outra preocupação além do hoje. Para os brancos, pensamento
único era o retorno a suas casas ou fazendas, após a expulsão dos in-
vasores. Em comum, o ódio mortal aos paraguaios. Estes novos mora-
dores trouxeram muitas histórias interessantes e por aqui criaram outras,
já que, na ausência de melhor diversão, o fuxico interesseiro e os
mexericos da vida alheia transformaram-se em passatempo preferido.
No desejo de regresso, exceção para o Jaburu foragido de antigo
crime em Cuiabá. Revolta popular contra os bicudos, portugueses de
nascimento mas morando há muito em Cuiabá, a Rusga foi uma
espécie de Noite de São Bartolomeu tropical, matança generalizada
de comerciantes lusitanos. Arredio no trato, sempre precavido de pos-
sível vingança, o velho carregava o pejorativo apelido e se outorgara
a responsabilidade pela defesa militar do local.
Não fosse a louvável intenção, a rotina diária da milícia do
velho Jaburu seria cômica. Não mais que quarenta índios, pobres es-
farrapados, nem mesmo a elementar noção de ordem unida assimi-
lavam, em ridículos exercícios militares dirigidos por um trôpego
desengonçado. Varas compridas, lanças pretendiam, como armas. Mis-
são única: defender os Morros de eventual ataque paraguaio. Todos
concordavam com tão constante treinamento.
Da feiura à beleza, espetáculo bonito foi a chegada de Miguel
Arcanjo, índio batizado, e sua família. Pequena comitiva, olhares atô-
nitos, atentos, fixos em sua filha mais nova. Em uma espécie de arreio-
-cama feito de cipó e gravetos na lateral do lombo do boi, sacolejando
com o andar lânguido do manso animal, a beldade no frescor de seus
100 Águas atávicas

quinze anos ia quase adormecida. Alta e magra, porém de boas carnes


onde interessava, cintura afinada, cabelos negros e compridos, lábios
carnudos, delicados seios sugeridos sob a fina roupa. Pereirinha viu
primeiro, animou, rápido desanimou: Taunay olhava também. Defe-
rência à patente superior explicando a desistência. Boniteza do macho
a explicar a preferência dela. Taunay reconheceu: era a amante do
tenente Lilico. O besta contara vantagem, falara dos sem jeito da
pouca idade, do sabor virginal, das surpresas nas habilidades logo
demonstradas, instintivas, sem professor, faceirices impensadas. Exa-
gero de falastrão, contador de vantagens, coisa nenhuma: a visão da
moça superava a descrição feita. O jovem corpo em balanços sensuais,
sonolentos e suaves contorções no caminhar indolente do boi. Calmo
desfile a evocar sonhos eróticos na plateia masculina submetida a
longa abstinência. Taunay olhava, desejava.
Após noite mal dormida, muitas reviradas na cama, chamou o
Pereirinha e foi rápido: – Vai lá e pergunta ao pai, negocia, arremata
mesmo por alto preço. Vai lá e vê o que ele quer, só não pode perder
o negócio ou voltar com negativa final, inapelável.
Moça de compromisso, recusa enérgica à proposta apresentada.
Pereirinha desconfiou, manha de negócio; insistiu, o tenente queria.
Conversa daqui, proseia dali, negaceia em seguida e finalmente a
contraproposta embrulhada em aparente negativa. – Nem por um
saco de milho, outro de feijão, colheita de dois alqueires de arroz,
mais uma vaca e um boi poderia entregar a Tonha, disse o pai. Mesmo
assim, traz ele aqui. Aprecio conhecer gente ilustre.
Pereirinha explicou a Taunay. – Oferta traiçoeira, soma rápida
deu mais de cento e vinte mil réis. Por este preço, meu patrão, trago
uma tribo inteirinha só de mulheres. O patife fez pouco caso de mim,
não quer emissário, prefere direto com o interessado. Vai lá não que
o exagero já é muito grande, um despropósito de pedido.
Mulherengo, conhecedor das almas femininas que almejam
ganhos nesta curta existência, Taunay se lembrou do colar de esme-
raldas baratas, folheado a ouro, que comprara em Uberaba. – Não
serviu para a Cuiabana, vai servir para esta índia. Mato-grossenses
da mesma estirpe, suspirou Taunay levando junto o vistoso colar.
Marcos Faustino 101

Negociação finalizada com o acréscimo do colar. Pai reluta,


filha mostra interesse, pega, examina, encantos da transação. Colar
embeleza a Tonha, a índia enfeita o colar. – Até amanhã resolvo,
termina o pai prudente. Tonha retém o colar, Taunay permite, Perei-
rinha desconfiado tira-lhe o adorno. Precaução inútil, dia seguinte,
Tonha com as esmeraldas no pescoço é de Taunay.
Nada foi falado do tenente Lilico, de seu capital esbulhado,
nem de sua honra ultrajada por semelhante atrevimento. Logo ele,
amante zeloso que despachara a moça com a comitiva protetora, em
direção a Miranda. O conhecimento de nativo, fez seu pai preferir
caminho diferente do percorrido pelos engenheiros. Desceu para o
sul, pela parte esquerda da serra de Maracaju, que agora era atraves-
sada transversalmente em direção a Miranda. No trajeto, o sequestro
financeiro da bela quase adormecida.
Longe, com água muitas vezes até a cintura, atoleiros de engolir
gente, a força expedicionária descia demorada, em direção a Miran-
da. Tenente Lilico, junto, suspirando de saudades por sua Tonha.
Taunay, a balançar na rede o inesperado afeto pelas meiguices
da moça. Pereirinha em animados banhos de cachoeira com variadas
índias. Assim corriam os dias de descanso para os dois sortudos.

Ali nos Morros, o galo Patriarca era figura muito respeitada.


Com a aproximação do invasor, procurando garantir, pelo me-
nos a próxima refeição para a sua família, em desespero de fuga no-
turna, seu dono correu ao galinheiro agarrando a primeira ave que
pôde. Engano só reparado muito adiante, em vez de galinha veio o
galo velho, de carne dura, macho sem serventia de ovos. Safou-se
pois da panela certa e depois, nos Morros, uma franguinha do vizinho
com treze pintinhos, outra com quatorze e logo numerosos galináceos,
centenas agora na região, entre filhas poedeiras, netas e bisnetas, a
garantir ovos e carne nos arredores. Poucos filhos rivais de quintal.
Por bondade de seu dono agradecido, vivia agora em terreiro cercado,
território delimitado, exclusivo, livre da concorrência dos mais jovens
sem respeito. Galinhas escolhidas para sua companhia, selecionadas;
poucas entretanto, como convém a sua idade de mais de dez anos,
102 Águas atávicas

justa recompensa. Respeitosa deferência dos demais galos, era dele


ainda o canto primeiro nas madrugadas. O imponente Patriarca pas-
seava solene; na sua plumagem vistosa, o orgulho indisfarçável de
tão profícuo geriarca. Pereirinha admirava o galo, pensava na Tonha,
sonhava com ela fazer muitos indiozinhos.
As semanas corriam mansas. Taunay nas descobertas de vários
encantos da índia. Pereirinha, nos banhos de cachoeira, sabia que
nenhuma outra tinha a beleza da Tonha. Lilico, distante, sem nada
saber, sonhava.

Deu-se então o estouro de formidável mexerico.


Fogo de morro acima, água de morro abaixo e mulher quando
quer dar, não há quem segure. Falta de homem para comer é que
nunca teve. Muito menos, beirar mulher, propor, insistir e, obtido o
consentimento, recuar, recusar. Jamais existiu notícia semelhante. Mas
desta vez era o caso. Unanimidade, concordância geral, o culpado
era o médico. Já entrado nos cinquenta, o médico se apaixonou perdi-
damente, no seu próprio dizer, por jovem donzela de pai cuidadoso.
Problema era a falta de padre, não havia na região. Propôs então: le-
vava a mocinha para sua casa, dava do bom e do melhor que possuía
e na primeira oportunidade, em igreja consagrada e com os bons ofí-
cios do padre, sacramentava tudo nos mais rigorosos conformes. Mãe
topou logo, baseada no seu próprio exemplo; pai não, queria o melhor
para a filha, não assim de qualquer jeito, só pegar e levar, usufruir
sem nenhuma obrigação perante os santos ou na lei dos homens.
Sem querer o bom pai levou o assunto ao conhecimento de to-
dos ao procurar a ajuda do Negro Fortunato, antigo coletor de impostos.
Com mais de oitenta anos de sabedoria em assuntos oficiais e suboficiais,
era também uma espécie de advogado prático, sábio ao prevenir de-
savenças, ou juiz a resolver disputas dos casos mais adiantados. O
rábula pediu logo dois mil réis apenas para estudar o inusitado caso.
Preço final dos serviços após a solução proposta, no máximo até o fim
da próxima semana. Antes do final do prazo estipulado, perante as
partes convocadas, anunciou solene: – O caso enquadra-se com per-
feição em jurisprudência aceita. Recomendo a celebração de contrato
Marcos Faustino 103

particular de prestação de serviços domésticos entre os interessados,


bastando para isto a correta redação aqui apresentada e a assinatura
de duas testemunhas idôneas por mim conhecidas. Estipulo meus ho-
norários em dez mil réis. O médico recusou assinatura, pulou fora,
pretextou afronta no descrédito à sua palavra empenhada. Alegou des-
confianças descabidas, impossível começo para a nova família. Sem
aceite, sem pagamento, sua palavra era de graça e mantinha a sua oferta,
mas exigência de papel era ofensa. Dando os trâmites por findos, con-
cluiu o pai: – Fica o senhor com sua palavra, fico eu com minha filha.
Longas conversas tentaram em vão entender o inesperado acon-
tecimento. Melhor o assunto que a explicação, uns achando atitude
correta, manter a palavra e recusar o documento; outros, a maioria
esmagadora, concluía pelo falso pretexto, desculpa para encobrir a
fama esparramada de rufião safado, que o médico desde então car-
regou por bom tempo. A donzela esquecida amargou a solteirice por
muitos anos até que outro pretendente surgisse, já em tempos futuros
em que se encontrava padre com mais facilidade.
Pachorrentos, os meses passavam. Taunay nos encantos da pai-
xão descoberta. Pereirinha nas delícias dos banhos a calcular seu fu-
turo. Certeza, a Tonha ia sobrar no regresso do tenente ao Rio de Ja-
neiro. Lilico, distante, nem contava.
Guerra de verdade não, só raras escaramuças, entrevero ine-
vitável de índios caçando gado bravio e topando alguns paraguaios.
Ou ao contrário, no vice-versa. Baixa, quase nenhuma, sempre evitada
pela sábia fuga dos menos numerosos. Exceção a morte de infeliz pa-
raguaio. Tocaia preparada pelos soldados, erro de avaliação, mais ín-
dios não percebidos, fuga dos companheiros de farda e um só cavaleiro
retardatário no meio de tantos inimigos. Trucidado, postas de carne
moída em meio a sangueira, hematomas, o troféu de guerra foi amar-
rado ao rabo de sua montaria e assim puxado para os Morros. A milí-
cia apressada, já sem seu comandante Jaburu, de velhice falecido,
correu a fazer círculo ao redor do corpo inerte. Animal seguro, parado,
lanças, facas, porretadas, selvageria de ódio destramelado, tudo em
cima do paraguaio já morto. Demais, Pereirinha não aguentou o cruel
espetáculo e berrou: – Para, para, aaaaalto, seentiiido. Firme o sar-
104 Águas atávicas

gento, voz de comando logo obedecida, aproximou-se do infeliz. Quase


uma criança, não muito além dos quinze, ainda dava para perceber.
Lembrou de seu pai, judiado, ensanguentado, morto, tristeza da Vó
Celeste. O paraguaio deveria ter pai, mãe e avó também. Sentiu pena,
para que isso, guerra de quem? Dispersar, ordenou, levando o cavalo
para mata, corpo atrelado. Já só, mais uma vista, o mesmo profundo
pesar. Rebateu, não convinha. É a vida, mereceu paraguainho! Desa-
marrou o corpo e voltou com a montaria, agora sua. Consolou-se em
definitivo calculando o aumento de ca- 20 20. General Osório (1808-1879), o
pital, com a aquisição do cavalo para- mais experiente militar brasileiro. Como
voluntário, aos quinze anos de idade,
guaio, que recebeu o nome de Rosilho. participou de batalha contra os portugue-
ses, pela independência pátria. Lutou no
O fazendeiro Faustino do Prado Uruguai até a separação deste país, após a
contou surpreendente estória: já tinha derrota brasileira. Na província do Rio
Grande do Sul, na Guerra dos Farrapos,
hospedado o coronel Resquin, o coman- ficou com os revoltosos até discordar das
dante da invasão paraguaia, em sua pró- tendências separatistas da recém-criada
República de Piratini. Comandou a cavala-
pria casa. Poucos meses antes da invasão, ria brasileira, na batalha de Caseros, Bue-
apareceu fidalgo espanhol, gentilíssimo nos Aires, que levou o aliado Urquiza a
presidente da Confederação Argentina.
no trato, a oferecer cavalos da raça cri- Na Guerra da Tríplice Aliança, já no co-
oula. Dois motivos, primeiro sabia que a mando das tropas brasileiras, retomou à
cidade de Uruguaiana, obrigando os para-
peste das cadeiras tinha dizimado a tropa guaios à rendição. Na continuidade do
da região; segundo era amicíssimo de conflito, desentendeu-se com frequência
com o argentino Mitre, chefe supremo
Urquiza, grande criador argentino da das forças aliadas. Ferido na batalha de
província de Corrientes, que já tinha Tuiuti, em território paraguaio, voltou ao
Brasil. Tendo seu amigo Caxias à frente
vendido trinta mil cavalos para o general das tropas aliadas, retornou ao Paraguai e
chefiou a tomada da fortaleza de Humaitá.
Osório20, do Exército brasileiro. Visitou Participou das batalhas de Itororó e Avaí,
várias fazendas, anotando nomes, cami- onde novamente foi ferido, voltando ao
Brasil. Retornou ao Paraguai mais uma
nhos e todas as informações pertinentes. vez, na derradeira fase da guerra, mas
Conversa para enganar trouxa, o homem não ficou até o final devido a seu estado
de saúde. Ao falecer, era ministro da
queria mesmo era informação onde es- Guerra. É o patrono da Cavalaria do
tava o gado para abastecer sua tropas, Exército Brasileiro.
conhecer os caminhos. Espião traiçoeiro, agora não mais espanhol,
mas comandante de estrita confiança do ditador paraguaio. Só então
pudemos entender a misteriosa frase, sua preferida nas despedidas:
A República fará como o rio de que tem o nome; inundará centenas e
centenas de léguas e breve aqui voltarei, trazendo alguns amigos e
Marcos Faustino 105

companheiros. Na inocência, sem malícia na referência à república


inundando, invadindo, a menção à volta com os amigos e compa-
nheiros soava aos nossos ouvidos desavisados como promessa de breve
retorno, gentil retribuição da amigável acolhida. O tom não muito
claro da fala era entendido como elegância verbal da língua de Cer-
vantes. A República inundando..., devia ser a invasão. Fidalgo uma
ova! Cascavel venenosa de muitos guizos!

Em setembro, já na seca, a tropa chegou a Miranda. Lentidão


pantaneira nos seis meses para vencer os quatrocentos quilômetros
de terrenos alagados desde Coxim. Tenente Lilico, junto, já não sus-
pirava pela sua Tonha. Sabia do caso, bronca agora era deste tenen-
tinho francês, metido. Taunay desceu dos Morros, Pereirinha atrás.
Maleitas, apesar de já curadas, minara a vontade do ofendido.
Outros amores talvez, mas restava a questão pecuniária. Conversa
tensa, Taunay e Lilico, duas patentes iguais, um jagunço de lá e Perei-
rinha de cá. Hora e meia de entendimento amigável; o francesinho
reembolsava um pouco do dinheiro mal investido por Lilico, parcos
mil réis, assunto encerrado.
Volta aos Morros para a despedida final. Cinco dias de folga,
dois para ir, dois para voltar, só um para ficar. Maldade da chefia do
francesinho, impondo a curta licença. Pouco tempo para usufruir as
belezas da índia. Juras mentirosas de retorno, Taunay queria mas sa-
bia difícil o romance no distante Rio de Janeiro. Paixão exótica mal
entendida pelos amigos, um nobre e uma selvagem, impossível.
– Pois é, seu Toné – disse o Miguel Arcanjo, em comentário re-
servado para o tenente – o senhor, homem de muitas sabedorias, co-
nhecedor de muitas verdades, deve atentar para mais uma. Não que
eu negue as suas, mas faz bem aceitar a verdade alheia, mesmo só
em rápido pensamento. Nem de brasileiros nem de paraguaios, menos
ainda de espanhóis ou portugueses. Dono antigo sem conhecer anterior,
o guarani é dono desta terra. Proclamação de valoroso guerreiro, Sepé
Tiaraju21, morto há mais de cem anos na defesa do que é nosso, ver-
dade transmitida por nossos avós. Taunay achou curiosa a fala do
índio. Julgando inoportuna qualquer discussão sobre assunto que
106 Águas atávicas

motivara tão longa marcha de tantos companheiros, preferiu encerrar


o assunto com simpatia. – Pois é, seu Miguel, de agora em diante lu-
tarei dobrado, primeiro pelos brasileiros 21 21. Sepé Tiaraju (?-1756), líder da re-
e agora pelos índios de sua tribo. sistência indígena (Guerra Guaranítica,
1754-1756) à desocupação da região es-
Pereirinha, prático, confiou seus panhola dos Setes Povos das Missões,
passando-a ao domínio da Coroa Portu-
dois animais, a Branca e o paraguaio guesa, conforme estabelecia o Tratado de
Rosilho, aos cuidados de Miguel Arcanjo. Madri (1750) que em troca deu a lusitana
Colônia de Sacramento, no Uruguai, aos
Se a arma da Cavalaria ia seguir desmon- espanhóis. Cerca de 30 mil índios viviam
tada, por falta de animais, desconfiou logo nesta região, chegando a 80 mil os demais
aldeamentos jesuíticos na Argentina e
que suas preciosas montarias seriam re- Paraguai. Em batalha de uma hora e meia,
quisitadas por oficiais, ficando ele para em Caiboaté, São Gabriel, RS, 1.500 ín-
dios morreram, entre eles Sepé Tiaraju,
receber a paga do imperador, no dia de com apenas 10 baixas nas hostes inimigas.
São Nunca. Ato de confiança no futuro Sua mítica liderança ensejou devoção
religiosa, sendo hoje uma espécie de santo
sogro, sonhava, era recado para a Tonha, popular, homenageado com estátuas e
pelo menos ele voltava. No derradeiro nomes de logradouros públicos, na região.
Os jesuítas foram expulsos do Brasil e
olhar à bela índia avisou seus desejos. demais possessões portuguesas em 1759,
Todas as maravilhas vividas na casa da pelo Marquês de Pombal.
Vó Celeste já não tinham mais o rosto de sua Menina. Era de Tonha, a
face que agora surgia em seus devaneios amorosos.
Meiga, intuindo a necessidade de plano alternativo para o fu-
turo, a índia se aproximou de Pereirinha estendendo-lhe singelo pre-
sente. Era um dente de queixada, bem polido por ela, preso a fino
barbante de couro, um colar. “Põe no pescoço, vai te proteger”, disse.
Pereirinha obedeceu, percebeu afeto, gostou.
Definitivamente, os banhos de cachoeira ficavam para trás.
Sem a presença da Tonha, exclusividade de Taunay, quase inocentes
brincadeiras de jogar água, passar a bucha com sabão de cinzas, uns
nas outras, umas nos outros, breves correrias, jogos amorosos apenas.
Afastadas, indiazinhas mais novas olhavam, aprendiam. Morros de
muitas grotas a justificar tantas cachoeiras. Minas a brotar da terra,
escassos veios, em curtas distâncias já amenos regatos, lajeados em
forte desnível, despencam as águas nas cascatas, lavando a sujeira
dos corpos, levando os pensamentos às gerações futuras.
Marcos Faustino 107

O desastre de Laguna

Lá atrás, em Coxim, tropa de três mil homens; agora em Mi-


randa, apenas dois mil. Nenhum feito militar glorioso a justificar tantas
baixas. Maleita, beribéri e fome explicando as perdas. Já quase dois
anos em deslocamentos, por último, em regiões insalubres, impossi-
bilidades de abastecimento regular. Cavalaria sem cavalos, todos aba-
22
22. Carlos de Morais Camisão (1821-
tidos pela peste das cadeiras.
1867), coronel, em janeiro de 1867, assu-Em Miranda, entendimento geral,
miu o comando da Força Expedicionária.
Em Miranda, com 1.700 homens, sem deixar o pantanal para trás, avançar em
cavalaria, quatro canhões puxados por
direção ao sul, Nioac mais saudável. Mes-
juntas de bois e sem garantia de supri-
mo assim, mais de três meses de hesitação
mentos, decide invadir o norte do Para-
guai. A força vai até Laguna, de onde re-
até a chegada do novo comando, coronel
torna fustigada pela cavalaria paraguaia,
Camisão22. Disposição renovada, reagru-
doenças e fome. Morre de cólera. Só resta-
ram cerca de 700 brasileiros no final da
pamento da tropa, desejo de caminhar,
heroico episódio, conhecido por Retirada
imediata saída de Miranda. Mais vistosa
da Laguna, imortalizado pelo Visconde
de Taunay, que participou dos fatos.
que a própria careca era a fama de covarde
fujão que acompanhava o coronel, por culpa de retirada apressada,
sem luta, em Corumbá. Verdade que obedecia patente mais elevada,
comandante local não era ele. Entretanto, valia mais a conhecida
ordem do presidente da província para resistir, pois assim haveria
mais tempo para melhor organizar a defesa da capital de presumido
ataque inimigo, que acabou não acontecendo. Enfim o arrojo do novo
comandante parecia querer apagar a má fama passada, talvez injusta.
A coluna, uns 1.700 soldados, avançava com moral elevado,
boa farda, armamento e munição fartos à procura do inimigo. Doentes
eram levados em redes e cangalhas. Estrada seca, pantanal para trás.
Pereirinha seguia, agora de farda nova, segundo-sargento, ajudante
de ordens do tenente Taunay, presente da Tonha no pescoço, o pe-
queno colar com dente de queixada, escondido por baixo do uniforme.
108 Águas atávicas

Nioac, incendiada pelos inimigos em recuo estratégico, foi


alcançada depois de duas semanas de marcha, quase um alegre pas-
seio ao som das clarinetas e do rufar marcial dos tambores em terrenos
secos e saudáveis. Geral arrumação do vilarejo, mês inteiro até ser
transformado em ponto de apoio para a
23
23. José Francisco Lopes (1811-1867), o
tropa acampada em disposição cautelosa, Guia Lopes de Laguna, saiu de Minas,
dificultando presumido ataque inimigo. comitiva de toda a família, ficando por
dois anos em Paranaíba (MS), onde se ca-
sou a primeira vez. Próxima à divisa com
Nesta altura, apresentou-se ao co- o Paraguai, a família encontrou as terras
ronel Camisão, como voluntário, um tal para apossear-se. Já viúvo, ficou sete anos
sumido, período de sua vida que nunca
Zé Lopes23, pioneiro na região, abastado quis comentar com ninguém. Ao voltar,
senhor de muitas terras, maior delas a fa- casou-se com a cunhada, Sinhazinha,
também viúva, pois seu irmão fora assassi-
zenda Jardim. Quando os paraguaios pas- nado por escravos.Anteriormente, Sinha-
saram por lá, Zé estava ausente, fora ven- zinha já fora sequestrada e levada ao
Paraguai e, quando a Força Expedicioná-
der quase mil bois em Miranda. Nada ria passou pela região, Sinhazinha tinha
põde fazer pela sua família, mulher e os sido novamente sequestrada. No desejo
de encontrá-la, Zé Lopes se apresentou
filhos, o mais novo ainda mamando no como voluntário. Grande conhecedor dos
peito, levados prisioneiros. Bom para a terrenos passou a guiar o deslocamento
da tropa. No retorno do Paraguai, morreu
tropa ter conhecedor da região, melhor de cólera, depois de enterrar o filho, viti-
ainda se capaz de fornecer centenas de mado pelo mesmo mal. Sem seu conheci-
mento do local, sem a carne de seu re-
bois para o rancho, indicando onde tem banho, que alimentou a tropa, sem a sua
mais. Ótimo para ele ter mais de mil com- astúcia sertaneja das queimadas no capim
seco, provavelmente a Força Expedicio-
panheiros em armas ajudando na procu- nária teria sido totalmente aniquilada. É
ra de sua família, até mesmo no Paraguai. nome de cidade em Mato Grosso do Sul.

– Avante, ordena Camisão, para o sul em direção à fronteira.


Haveremos de beber água limpa do rio Apa no próximo sábado de
aleluia, ato digno da primeira coluna brasileira a adentrar território
inimigo. Provisão de comida e munição para um mês, abastecimento
futuro duvidoso, nada porém a segurar o ânimo belicoso do coronel.
Humilde no trato, respeitoso com todos, amigável na boa con-
versa, Zé logo foi promovido a Guia Lopes. Preciso na indicação dos
melhores caminhos para a tropa, conselheiro seguro do coronel Ca-
misão, era admirado por todos oficiais, principalmente por Taunay,
com quem mantinha longas conversas à noite. Até Pereirinha recebia
atenção da fala franca, escancarada, sem tranca.
Marcos Faustino 109

– Sargento, ainda tem por lá um certo vigário Sales? O danado


fez o casamento de meu irmão Gabriel com a Rafaela, quando pas-
samos pela Vila de Sant’Anna. Tinha outro, um baixinho gordo, muito
conversador, gaúcho morador em belo sobrado, Melo Taques, se não
me engano era o nome dele, foi o padrinho convidado. Boa ideia
embolar em matrimônio Barbosa e Lopes, mesmas ideias, juntas na
procura de lugar para construir novas famílias. Tristeza, na época,
eu tinha só uma: era viúvo. Morrera a Maria, minha primeira esposa,
deixando-me a responsabilidade de três filhos, uma menina no meio.
Silêncio por curto tempo escondeu o sentimento. Guia Lopes
continuou, porém: – Animação da juventude a vencer fácil os obs-
táculos, reunir os possuídos, tudo em cima de carros de boi, tanger o
gado, comitiva grande, duas famílias a perseguir os sonhos das novi-
dades. Terra sem dono, era chegar e tomar posse, bastava escolher a
melhor. Campos da Vacaria, já conhecida de parentes, a nos chamar
para a ventura da nova vida. Primeiro, a roça para garantir o sustento,
mantimento brotando das sementes trazidas. Virava fazenda só com
a casa construída, galpão para as tralhas de arreios, galinheiro para
ovos e carne miúda, chiqueiro na distância certa de evitar o mau
cheiro dos porcos, currais montados. Depois, arrebanhar o gado bravio,
marcar a ferro, aumentar as posses. Perigo tinha, preocupação com
os índios, terra deles? Nada, zanzando sempre daqui para ali, atrás
de caça, pouca importância na lavoura, sem morada fixa, firmeza
por lugar nenhum. Atrás também de uma terra dos avós, Terra sem
males, que nem mesmo sabiam onde era, mas procuravam, parecia
o sentido da vida deles. Coisa estranha!
– Se não dão valor à posse, alguns males sempre há, então a
terra fica para nós: riqueza a criar, bens a usufruir, patrimônio a au-
mentar. Acabei posseando mais perto de Nioac, chamei de Estância
Jardim. Gabriel foi mais para o sul, estabelecendo sua fazenda Mon-
jolinho e seu retiro mais afastado às margens do rio Apa, divisa com
o Paraguai. Trabalhador enérgico; estopim curto, foi seu mal: assas-
sinado por dois escravos, desentendimento em serviço. Rafaela perdera
o marido e dois contos de réis, valor dos escravos fugidos do crime.
Jovem viúva com quatro criancinhas, foi tocando a fazenda sem
110 Águas atávicas

pedido de ajuda. Brava mulher, montava a cavalo, percorria os pastos,


dava ordens, homens obedeciam, sobrevivia ela!
– Não era com índios, mas a terra tinha disputa. Pior, desavença
de gente graúda: El Supremo de um lado, imperador24 de outro. Isso
a gente sabia um pouco, mas não descon- 24 24. Órfão de mãe antes de completar um
fiava da seriedade do caso. Parecia só ano e abandonado pelo pai aos seis, Dom
cobiça dos paraguaios com os que se es- Pedro II (1825-1891)assumiu um contur-
bado trono aos quinze anos de idade após
tabeleciam na região da fronteira. Mas aceitar a diminuição de sua maioridade.
não era só implicância de vizinhos miú- Contrariando os políticos, esteve pessoal-
mente na retomada de Uruguaiana, rece-
dos. Chegaram mesmo a levar a viúva Ra- bendo a rendição do comandante para-
faela e filhos para Assunção, distante ca- guaio. Com sua atuação firme e discreta,
soube angariar o respeito e admiração de
pital, em cruel cativeiro. Roubalheira e seus súditos, sendo extremamente popular
depredação na fazenda, tudo queimado, até sua morte em Paris, no exílio. Pro-
mulgou a abolição mesmo sabendo que
rapidez na destruição de anos de labuta. lhe custaria o reinado. Homem culto e
Tropa agora estacionada na antiga letrado, exerceu com grande habilidade
o Poder Moderador em todas a questões
colônia militar, fortificação destruída pe- de seu longo reinado. Foi o grande artífice
los paraguaios, quase nas nascentes do rio da grandeza territorial brasileira.
Miranda. Escassez da comida sem mistura, carne nenhuma. Inimigo
evitando embates, recuando à espera de reforços, dispondo entretanto
de rápida e numerosa cavalaria. Incapaz de decidir sozinho, Camisão
convoca o conselho de guerra. Posições inconciliáveis: para frente, o
desejo da glória militar e o arrojo da impaciência, a vontade de perse-
guir o inimigo fugidio; para trás, a prudência reconhecendo a impos-
sibilidade do abastecimento regular, carne acabando, munição sem
sobra. Repentino acontecimento acabou com a hesitação. A própria
comida, centenas de bois em marcha poeirenta chegando ao acampa-
mento, trazidos pelo Guia Lopes, recepcionados com grande entusias-
mo pelas tropas, decidiu a questão: atacar o país vizinho concluiu o con-
selho de guerra. Pereirinha, do lado de fora, guardou a frase ouvida.
– Deixo a viúva e seis órfãos. Terão como única herança meu
nome honrado.
Parecia a voz do coronel, fala de quem tremia na hora da onça
beber água. Pereirinha pensou na serventia de guardar a frase e
usar na volta. Besteira, na hora fazia conta mesmo era do valor das
duas montarias deixadas com o sogro Miguel Arcanjo, mais os soldos
Marcos Faustino 111

guardados e o terreno prometido pelo intendente. Seis órfãos tudo


bem, deixava até mais, era só a Tonha topar; um nome honrado como
única herança era pouco.
A tropa gastou uns dias nos preparativos, sem sair do lugar.
Novidade bonita foi a chegada de brasileiros fugidos de cativeiro em
terras paraguaias, entre eles filho e genro do Guia Lopes. Da mulher
nem notícia.
– Deus tudo faz, Deus assim quis. Fui outrora feliz, tive casa e
família. Hoje durmo ao relento, estou só. Nunca mais será minha a
Estância de Jardim. Era a ladainha do Guia nas suas noites de insônia.
Difícil dormir assim, tristezas antigas, encurraladas, a martelar na me-
mória. Prometia contar, mas só lamentava a constante dor de cabeça.
Pensava mesmo era na sua sina, na sua Maria Ana, primeira
mulher morta tão cedo, ainda em Minas Gerais. Primeira pá de terra
sobre o corpo inerte foi dele, não queria, mas deram-lhe a honra:
vamos Zé, entregue a Deus e a pá foi-lhe estendida; quanta dor no
gesto, na terra jogada na cova. Beleza mórbida, o melhor vestido, o
do casamento, ideia da mãe, que viajasse para o céu com a melhor
roupa, véu branco sobre o rosto moreno já sem brilho. Arremesso de
terra, lágrimas na hora a não suportar o segundo, entregou a pá; que
outro continuasse o pesaroso dever. Recusa em deixar a sepultura só.
Contrariou chamados, desconsiderou ponderações, queria permane-
cer ao lado, prolongar a impossível companhia. Penumbra da tarde,
tristeza avermelhada do próprio horizonte, lusco-fusco da alma, Maria
Ana no seu coração, Estrela Dalva no céu distante. Foi embora, pro-
curou distância, mudança para Franca, no Estado de São Paulo. Lem-
branças ficariam em Minas. Qual nada, recordação permanente com
os três órfãos, parecidos na fisionomia, puxaram a mãe, os três, sem
jeito de não pensar nela. Depois, pegou esta vontade sem cura de su-
mir pelo mundo, caminhar sempre adiante rumo ao poente, estrela
vespertina a guiar, novas terras, novos ares, à procura incessante,
talvez dela, a amada adolescente. Agora, choro seco no coração, dor
de cabeça e insônia, revirar na cama sem jeito nem conserto, difícil
explicação para os outros. Por isso o silêncio, o assunto evitado, dor
para carregar sozinho sem repartir com ninguém, pensava Zé Lopes.
112 Águas atávicas

Tinha agora o tenente francês, sabido nas engenharias, letrado


nos informes oficiais e ordens do dia. Entendiam-se bem na mútua
admiração, repartiam o rancho improvisado para os pernoites. Taunay
apreciava o instintivo senso de orientação do rude guia, a decidida
busca da esposa sequestrada. Zé Lopes olhava curioso as agulhas da
bússola do oficial sempre a confirmar o rumo indicado, Quem sabe
ele tinha a resposta? Arriscou pergunta:
– Toné, a Estrela Dalva é a maior do céu?
– Não, nem mesmo é uma estrela. Na verdade é Vênus, o planeta
gêmeo da Terra. Planeta, em grego, quer dizer corpo errante. Vênus,
repetiu pensativo o nome do astro, deusa do amor para os romanos.
Amor, quantas boas recordações este nome evoca! Mas deixemos de
lado as prazerosas lembranças tão impróprias para a atual situação.
Abandonemos também as esferas celestes, os céus, talvez logo nosso
destino, o combate com o inimigo parece iminente, finalizou.
Quem quer comprova. Nas noites mal dormidas, agora as pa-
lavras de Taunay martelavam com mais vigor a cabeça de Zé Lopes.
Alma gêmea da terra, corpo errante, deusa do amor, destino certo,
Estrela Dalva. Suspeitas renovadas.
Hinos patrióticos, palavras de incentivo à coragem e à valentia,
assim a disciplinada tropa cruzou o rio Miranda alcançando o Retiro,
ponto de apoio nas atividades pastoris da fazenda Monjolinho.
Local de muitas lembranças do irmão ali apunhalado e de Ra-
faela Barbosa, jovem viúva de muita fibra. Desanimou do lugar na
volta do primeiro cativeiro. Nunca se soube o porquê, mas veio do
Paraguai com o apelido de “La Senhoriña”25; ninguém indagou o

25
25. Rafaela Barbosa de Lopes (1815-1913) nasceu em Sabará (MG), vindo
inicialmente para Paranaíba (MS), onde se casou com Gabriel Lopes e nasceram-
-lhe os primeiros três filhos. O esposo em viagem exploratória conhecera a região
da Vacaria, onde encontrou terras e gado selvagem, animais provavelmente re-
manescentes dos aldeamentos jesuítas. Seus relatos entusiasmaram os Lopes e
Barbosas, que em seis carros de bois deixaram Paranaíba. Rafaela e Gabriel
estabeleceram-se a três quilômetros do rio Apa, hoje incontestável divisa entre
Brasil e Paraguai, em local por eles denominado fazenda Monjolinho. Seu marido
foi assassinado por dois de seus escravos. Logo após, patrulha paraguaia incendiou
a fazenda e levou-a prisioneira com suas crianças e mais trinta pessoas, estratégia
para afugentar os brasileiros da região. Do degradante cativeiro em Assunção, por
Marcos Faustino 113

pressões diplomáticas, foi libertada, retornando à fazenda Jardim do sogro após


quase um ano. Na mesma fazenda encontrava-se o cunhado José, depois conhecido
como Guia Lopes de Laguna e vieram a se casar, pois José também era viúvo. A
cerimônia religiosa foi oficiada na própria fazenda por Frei Mariano de Bagnaia,
capuchinho italiano vigário de Miranda. Após quatorze anos de feliz matrimônio,
aos seis filhos que trouxeram dos casamentos anteriores, nasceram-lhes mais seis.
Esta felicidade foi interrompida por notícias de guerra trazida por mascates. José
decidiu levar cerca de mil cabeças de gado para vender em Miranda, temendo o
pior. Mal sabia que a invasão já se efetivara, estando as tropas paraguaias em
Coxim, bem ao norte. Marido ausente, Senhorinha e filhos levados prisioneiros
novamente, cativeiro humilhante que amargou por cinco anos, em Assunção,
desta vez sozinha e separada dos filhos. José apresentou-se como voluntário à
força expedicionária brasileira que se dirigia ao Paraguai , na esperança frustrada
de encontrar a esposa e filhos, morrendo de cólera na Retirada da Laguna. No fim
da guerra retornou à fazenda. Faleceu em Bela Vista, MS. Maria Tomé, freira por-
tuguesa que conviveu com Rafaela nos seus derradeiros anos, deixou comovente
relato, publicado por Samuel Xavier de Medeiros. (“Senhorinha Barbosa Lopes,
uma história de resistência feminina na Guerra do Paraguai”, IHGMS, 2011).

motivo, nem ela algum dia comentou. Assunto desagradável, reservado,


a ser esquecido, sem resposta, pergunta evitada. Quatro órfãos, poucos
agregados conhecidos, região de fronteira disputada, melhor procurar
abrigo na antiga família. Mais ao norte, Estância Jardim, fim do ca-
minho. Começo, propriedade do sogro, depois o cunhado Zé tomou
conta. Alta, esbelta, ainda na elegância juvenil de seus vinte e sete a-
nos de idade. Ficou na sede, casarão principal da fazenda; Zé em mo-
rada distante, no meio da peãozada, constante em muitas andanças pelo
mato à procura de gado bravio; caçadas de antas para a banha e fartura
de carne; veados campeiros e mateiros, petiscos de primeira; tiro preciso
em cateto, almôndegas na certa. Panela cheia em todos os casos.
Vez ou outra, rara visita, simpático, falastrão animado nos casos
contados. Gosto tomado, amiudou as vezes, agora frequentes. Ela
abandonou o luto, roupa alegre já quase vistosa, ao invés do colarinho
fechado o discreto decote. Risadas fartas, prosa gostosa entre os dois.
– Garanto a caça, prometia Zé.
– Pois traga, que eu preparo, respondia ela.
Doce de carambola no caldo de rapadura, fruta fatiada em
estrelas amarelas.
– Como adivinhou o gosto?
– Segredo, não conto, puro agrado! Risadas.
114 Águas atávicas

Breve hesitação dele, estrela amarela remetendo a distantes


lembranças. Sufocou, não convinha na hora deixar escapar, melhor
o esquecimento. Novo amor tomando o lugar da outra mulher. Apro-
vação geral, torcida de todos. Velho problema: cadê o padre? Em Mi-
randa tinha, frei Mariano, capuchinho. Dois dias no lombo de burro
à toa, o religioso estava viajando em missão pastoral; deixou o recado.
Logo a resposta: fazia questão de oficiar o sagrado matrimônio de tão
ilustres figuras, contassem com ele.
No dia e hora marcados, eis o padre. Mesa na varanda serviu
de altar, fora de casa, todos os dali, sem necessidade de convites,
presença obrigatória na raridade da festança, dois deixando a viuvez.
Mesmo todos reunidos dava pouca gente. Cólera, doença cruel. Vestido
de noiva no terceiro casamento. Feito primeiro para Maria Vitória,
mãe de Rafaela, ambas altas e magras na juventude. Ajeita daqui, ar-
ruma dali, o segundo uso em Sant’Anna, primeira vez para Rafaela,
serviu bem. Agora mais alargado, na Estância Jardim, já usado sem
véu. De volta ao baú, quem sabe das necessidades futuras de filhas?
Três anos depois mais três filhos, regularidade do instinto no bem
bom do conjugal. Como convinha, a matrona respeitável passou a ser
conhecida por Dona Senhorinha.

De longe, vistosos casacos vermelhos paraguaios observavam a


nossa tropa. Abusados na curta distância, certos da ausência da cava-
laria brasileira, contavam o número dos nossos. Avaliavam o risco do
embate, evitavam o combate; ao alcance do tiro recuavam para posição
mais segura, aguardavam na espreita. Tática usada: tirar vantagem
da cavalaria; surrupiar o gado da coluna, matar os soldados na fome,
sem desperdício de bala. Melhor aguardar os reforços prometidos
pelo Mariscal López. Até lá, a ligeireza do cavalo permitia a rápida
emboscada; lugar indicado, à beira de mata, mais fácil o esconderijo.
Atrevidos nas mensagens deixadas, impossível alcançá-los na fuga
com seus animais velozes. A nossa marcha se fazia lentamente no
andar dos cansados bois, puxando os quatro canhões, e na cadência
dos “pés de poeira” da infantaria. Na antiga sede da Monjolinho, só
destroços, lembranças incendiadas do trabalho de Gabriel Lopes.
Marcos Faustino 115

Adiante, a Machorra, provocativa propriedade do “El Supremo”, em


território brasileiro, quase na divisa. Resistência esboçada, fraca, logo
o continuado recuo paraguaio; queimadas algumas casas, as maiores
não. Saques sem escrúpulos, primeiros os índios terenas e guaicurus
esqueceram a indolência do andar; depois sem nenhum pudor, o
grosso da soldadesca brasileira carregava o que julgasse de valor,
ambiente de festa. Enfim o butim dos vencedores. Gado para comer,
os paraguaios levaram; ausente a melhor recompensa, não deixaram
a presa maior.
Objetivo tão sonhado, por fim alcançado, cruzado o rio Apa.
Festivos clarins a anunciar, bandeiras novas de vivas cores a comemorar,
os dois anos de marcha a pé para a maioria dos soldados, cada um
envergando seu mais preservado uniforme azul para tão significativa
ocasião. Goles d’água solenes, não qualquer água, mas a do Apa, di-
visa de países. Agora, guerra em território adversário, devastação e
saques permitidos, terra alheia a ser arrasada, patriótico sentimento
de desforra.
Sábado de aleluia, sem padre na tropa, impossível a missa. Na
saída do Rio de Janeiro, eram três; um voltou de Uberaba, outro morreu
no caminho e o terceiro e último atrasou-se na saída de Miranda,
veio atrás, mas acabou capturado pelos paraguaios. Só mesmo orações
particulares.
Na condição de mecânico especialista, um belga participava
da expedição a mando das forjas Hitte, a fabricante dos canhões. Fla-
mengo de nascimento, lia constantemente uma surrada Bíblia, em
atitude discreta por se saber o único luterano naquelas plagas. Lem-
brou-se do versículo 9, Capítulo X, Números do Antigo Testamento:
Se sairdes de vosso país para fazer guerra contra os inimigos que vos
atacam, fareis soar interrompidamente as trombetas, e o Senhor vosso
Deus se lembrará de vós, para vos livrar das mãos de vossos inimigos.
Associou o som interrompido das trombetas, ao barulho infernal
dos disparos dos canhões de seu patrão, e mais uma vez reconheceu
que o livro sagrado estava certo.
Agora Deuteronômio, capítulo XX, versículo 3: Vós que estais
hoje para combater contra vossos inimigos, não atemorize vosso coração,
116 Águas atávicas

não temais, não recueis, nem lhes tenhais medo, porque o Senhor vosso
Deus está no meio de vós, e combaterá por vós contra vossos inimigos,
para vos livrar do perigo.
Novamente, Números: Quando te aproximares para o combate,
primeiramente lhe oferecerá a paz. Mas se ele não quiser aceitar as con-
dições e começar a guerra contra ti, cercará a cidade do teu inimigo. E
quando o senhor teu Deus te houver entregado, passarás ao fio da espada
todos os varões que nela há, poupando mulheres, meninos e animais.
Distribuirás toda a presa pelo exército e comerás dos despojos de seu
inimigo.
O belga não se lembrou de que os adversários eram também
cristãos, valendo também para eles tais exortações.

O comandante Camisão, com o moral da tropa elevadíssimo,


enviou emissário ao chefe paraguaio propondo-lhe incondicional
rendição com todas as honras militares. Como de costume a valente
resposta paraguaia propunha prosseguir o diálogo pelas baionetas e
ponta de sabre e alertava que se pensavam que iam a Concepción,
vão na verdade caminhando para sus tumbas.
– Insolências e bravatas não nos intimidarão, declarou solene o
comandante, que teve o firme apoio do capitão Lago e do Guia Lopes,
companheiros no mesmo raciocínio. Os dois primeiros na ânsia da
glória militar, o terceiro por interesse em libertar sua família. Lago
continuou: – Marchemos em direção a Concepción e depois até
Assunção. Nesta altura o exército aliado, vindo do sul, já deve estar se
aproximando da capital. Pode ser que até mesmo o ditador paraguaio
já esteja em fuga em direção ao norte de seu país. Caminhando ao
seu encontro, poderemos persegui-lo e talvez mesmo prendê-lo. Pense
no feito heroico, pondo fim a este sangrento combate, com o coronel
Camisão entrando para a história com os créditos de tão especial
aprisionamento. A formidável notícia chegando a Cuiabá, Camisão
ao lado de Caxias, companheiros de armas em glorioso feito.
– E como haveremos de suprir nossos soldados se escasseiam os
víveres e a munição já é contada? Nossos companheiros em Nioac
dizem ser impossível garantir as linhas da retaguarda na ausência de
Marcos Faustino 117

nossa cavalaria, dizimada por cruel doença, rebateu o comandante


com a lógica das evidências.
– Problema nenhum, atalhou o Guia Lopes. Perto daqui tem a
fazenda Laguna, propriedade do “El Supremo”. Farturão de gado
pastando, mesmo a pé poderemos capturá-lo. Quem sabe, com a
divina ajuda, poderemos mesmo achar cavalos, aumentando a veloci-
dade de nossa marcha em direção ao sul. A chegada recente do carre-
teiro Pablo Velhaco, com várias carretas de mantimentos, acabou de
provar que é possível passar pelos nossos inimigos. Apertando, esses
paraguaios não são de nada. São bons, mas é na traição e na covardia.
O sonho de glória, a desforra da honra ultrajada em Corumbá
impelia o comandante adiante. As evidências da realidade seguravam-
-no, aconselhavam a prudente retirada. Na dúvida, retardava a marcha
em procedimentos corriqueiros, hesitava.

Logo à frente, no alto de belo morro, aguardando o ataque


brasileiro, o forte de Bella Vista, mera paliçada de madeira, frágeis
estacas.
Tarde de temperatura agradável, neste final de abril. O tenente
Taunay descansava rabiscando desenho da fortificação ao longe,
pensando na índia Tonha, puxou conversa com Pereirinha: – Saudades
dos Morros. Na falta de um daguerreótipo, o jeito é desenhar este
outro morro. Deveríamos ter trazido um profissional para registrar,
com sua máquina, a nossa façanha de vir do litoral até aqui, coração
da América do Sul.
– Saudades do Morro, digo eu, respondeu Pereirinha. Naquela
época eu não andava a pé, tinha montaria para economizar a sola da
bota. Agora mudo, continuou em pensamentos. Vontade era de voltar,
além dos Morros, para Sant’Anna, levando a Tonha. Quanto ao da-
guerre..., Pereirinha nem imaginava o que poderia ser, jeito é ficar
quieto e concordar depressa, mudando rápido de assunto.
– Toda razão tem o bravo tenente, melhor a profissão de
registrar o coração daqui, longe do litoral, façanha no sul da América.
Taunay olhou o ajudante, procurando melhor explicação no
que acabara de ouvir. Na falta de outro entendimento, concluiu ser
118 Águas atávicas

hábito do sargento repetir bonitas palavras, em tom solene e curiosa


ordenação, resultando significado diferente do dito original. Continuou
no seu desenho a lápis, crayon: barranco alto, casas da vila fora da
paliçada; no topo do morro, alta palmeira, a torre de vigia e o quartel.
– Por que não? Registrar o coração daqui, descrever a natureza
intocada deste imenso sertão, seus rios, campinas e matas, animais
raros e diferentes pássaros. O inusitado sentimento de toda esta gente
no coração da América. A inesperada beleza oculta em mulheres tão
primitivas, alheias a culta conversação, mas de carinhos e meiguices
a inferiorizar a mais doce das julietas.
– Talvez pudesse me transformar em um Shakespeare do sertão.
Preciso apenas de uma tragédia pessoal, inconciliável destino, talvez
Rafaela, a Dona Senhorinha, ótima heroína para um relato comovente.
Estória pungente, pretexto a ser usado para a descrição desta parte
do país, praticamente desconhecida na corte de nosso imperador.
Não serve a personagem, falta a paixão própria do autor a inspirar os
acontecimentos. Mais apropriada jovem heroína, Tonha talvez. Pena
Rousseau não estar vivo para fazer o prefácio, tecendo loas sobre a
boa selvagem. Problema seria expor-me como Romeu.
Na verdade, Taunay mesmo reconhecia, sua maior serventia
sempre fora redigir ordens do dia, fazer relatórios para autoridades,
enfim produzir papel. Grande cuidado com os manuscritos sobre a
expedição. Relataria tais peripécias com tal competência que muitos
haveriam de indagar se os fatos realmente aconteceram ou só imagi-
nação sua.
De longe, fumaça negra subindo no forte de Bella Vista anun-
ciando mais um recuo do adversário, deixando livre o território.
Estranha tática militar brasileira transformava a campanha em
pastoreio armado, pois a procura de gado para a imediata alimentação
passava a ditar a direção da marcha. Grosso da tropa para o pasto no
qual engordavam os bois. Sorte na caçada a pé, mais de cinquenta
cabeças capturadas, comida para três dias. Na sede da fazenda, defesa
fraca, fuga dos paraguaios, retorno desanimado do pequeno desta-
camento brasileiro.
Marcos Faustino 119

Melhor voltar, prudente retirada organizada e não fuga de-


sesperada, foi a decisão do coronel Camisão. Apa cruzado no retorno,
volta ao território pátrio. Surpresa, um índio morre depressa; diagnós-
tico médico escondido para evitar pânico do inevitável contágio.
Segundo, terceiro, já vários casos, a verdade da cólera aparece.
O belga continuava a procurar na leitura de sua Bíblia uma
explicação para os acontecimentos que presenciava. Achou em São
João. Em curto e intenso tempo, os quatro cavaleiros do Apocalipse
passaram a ditar os acontecimentos, a presidir o destino de todos: a
guerra, a fome, a peste, a morte.
A primeira besta, a guerra neste fim de mundo. E saiu o cavalo
vermelho, rosilho; e ao que estava montado sobre ele foi dado o poder de
tirar a paz da Terra, a fim de que os homens se matassem uns aos
outros, e foi-lhe dada uma grande espada. Grande carnificina deu-se
num lugar chamado pelos paraguaios de Nhandepá, com mais de
duzentos e trinta mortos. Sem batedores adiantados a tropa brasileira
não pôde perceber os oitocentos inimigos escondidos em depressão
do terreno, logo adiante de seu caminho. Ataque rápido, avanço fulmi-
nante da infantaria paraguaia seguida de pesada carga de cavalaria
bem no centro da coluna brasileira com o claro objetivo de cortá-la,
dividi-la. Inimigos no meio, dificuldade da mira para evitar atingir
companheiros. Hesitação passageira, logo a necessidade de salvar a
pele trazendo o tiroteio intenso, canhão vomitando fogo, chão se
enchendo de cadáveres estraçalhados e moribundos a gemer de dor;
a visão do inferno estendia-se por todo o campo de batalha. A tudo
somava-se a desordem do rebanho de bois, em fuga desabalada enlou-
quecidos pelo barulho dos estampidos. Cessada a refrega, a pilhagem
dos cadáveres, de suas roupas ensanguentadas e de seus objetos, mesmo
os de mínimo valor; mulheres e mascates a frente desta tarefa. Vin-
gança dos índios, impiedosos na mutilação de inimigos mortos.
Do único prisioneiro paraguaio ainda vivo veio a confirmação
aos presságios do comandante Camisão: a passagem de Humaitá no
rio Paraguai continuava inexpugnável, impedindo a entrada de nossas
tropas, vindas do sul, em solo adversário.
120 Águas atávicas

Aos nossos, a dignidade da cova; aos diabos vermelhos, que


deles se encarreguem os urubus, foi a ordem logo cumprida.
Coluna brasileira avançando e deixando o local. Logo atrás, os
paraguaios passando pelo campo de batalha, presenciam a nova dis-
puta: bichos do mato e aves de rapina tendo nos companheiros mortos
o farto banquete. Enterrem todos, foi a ordem do capitão Urbieta.
Alta cruz de madeira conferindo respeito ao lugar e a inscrição acción
de guerra, 120 bravos aqui pereceram, assinalavam o feito militar.
A segunda besta, a fome no seu cavalo negro. Pablo Velhaco,
pura sorte, novamente foi o único a furar o cerco inimigo e levar
comida aos brasileiros, ainda em território paraguaio. Os demais foram
todos dizimados e saqueados em suas azaradas tentativas. Espalhada
a notícia do corte das linhas de suprimento, a cavalaria paraguaia
dominando os caminhos, cessaram as tentativas dos comerciantes. Iam
todos parando, à espera da definição militar, receosos de tudo perder
no encontro da patrulha inimiga. Eficiente tática, deixar a fome dizi-
mar a coluna brasileira. No recuo paraguaio, preocupação evidente
de conduzir o gado para fora do alcance dos brasileiros andarilhos.
Mesmo em Nhandepá, alvo certeiro foi o bem sucedido estouro da
boiada, tirando dos pé de poeira o seu mais precioso alimento. A
fome matava devagar, enfraquecia primeiro o organismo, permitindo
a entrada da doença, que completava o sinistro trabalho.
A peste, a morte natural em grandes levas. Cólera-morbo era o
nome do mais fatal adversário brasileiro. Para as vítimas, vômitos,
intensa diarreia, caganeira branca incessante, cãibras alucinantes,
sede insuportável, desidratação aguda, voz desaparecendo e morte
em alguns dias. Para os sadios, obrigação de quatro pessoas a conduzir
um enfermo na padiola, revezando dois a dois, fedor de intestinos
nas roupas já imundas, repulsa instintiva à magreza cadavérica das
faces murchas e olhos esbugalhados, dores, gemidos e pedidos constan-
tes de água a anunciar o provável contágio, proximidade a ser evitada.
Número crescente de coléricos, quase insubordinação dos soldados
em cumprir a ordem de ajuda aos companheiros enfermos, sem re-
médio conhecido. Já mais de cem pestilentos, perto de quinhentos
sadios na obrigação da ajuda, finalmente a ordem cruel, única possível
Marcos Faustino 121

nas circunstâncias: abandonar os 134 enfermos. Inevitável fim, com


ou sem transporte, morram eles, salvemo-nos nós. Diminui o contágio,
aumenta a velocidade da caminhada livre das macas. Clareira de
mata próxima à estrada, ali ficaram à espera da morte, deixados
pelos próprios companheiros. Apenas uma placa: “COMPAIXÃO
PELOS COLÉRICOS”.
Sensibilizados, os paraguaios de pronto atenderam ao pungente
pedido. Compaixão e misericórdia na ação de silenciosas punhala-
das, baionetas e sabres encurtando o atroz sofrimento: compaixão na
morte rápida.

É ordem natural das coisas, o filho enterrar o pai. O inverso é


mais doloroso. Guia Lopes prostrado, cova sendo aberta para o filho.
Chuva no rosto do velho pai confundia as lágrimas e inundava
a singela sepultura. Corpo leve, magreza doentia do falecido, baixa à
terra. Outro buraco, mais seco? Desnecessário. Pouco importa, entrego
a terra o que lhe pertence. Nada importa doravante. Longa procura
para assim terminar minha semente. Sem continuidade, estirpe em
vão interrompida. Mão hesita na dolorosa obrigação; sem alternativa,
a primeira pazada. Curtas claridades de coriscos iluminando: via os
olhos fechados do filho, quase saltados da face chupada. Semelhanças
fisionômicas, lembranças da mãe, a amada Maria Ana, parecidos de
cara, sempre achou. Não mais a busca daquela adorável face, tão
cedo desaparecida, prazer de revê-la nos desenhos das nuvens no
céu a tardinha, de adivinhá-la na silhueta dos capões de matas distantes,
de ouvir sua voz no borbulhar dos regatos correndo sobre pedregulhos.
Nunca mais o motivo para vagar solto nas memórias prazerosas, pro-
curando o inexistente em desconhecidas regiões. A antiga busca perdia
o sentido também... Estância Jardim igual ao Monjolinho do irmão
Gabriel, abandonada, sem prosseguimento; mato a transformar a casa
em tapera, apagando o vestígio da existência, ficando sua passagem
sem testemunho. A oportunidade perdida quando da volta do filho;
chegou e se apresentou: prisioneiro fugido dos paraguaios, filho do
Zé Lopes, junto com cunhado ali presente também. Notícia corre
pelo acampamento, pai logo presente; a cavalo passa montado sem
122 Águas atávicas

apear, apenas o patriarca aceitando o beija-mão respeitoso, tropa


toda emocionada assistindo, frustrada a expectativa de longo abraço.
Vontade de se jogar sobre o filho, sentir-lhe a vida pulsando, agitada.
Nada, mais fácil segurar as emoções, mantê-las aprisionadas, aparentar
segurança em estúpido orgulho, medo da lágrima desatada em pú-
blico. Para quê? Para nada. Derradeira oportunidade, filho abaixo
na cova, pai mais alto, a mesma vontade se jogar sobre ele, sentir seu
coração já inerte, lembranças da face tão amada. Lágrimas soltas,
abundantes, rendidas ao irremediável da viagem sem volta. Choro
convulso, soluçar de afetos, borbulhar de emoções em comunicação
impossível; tarde agora, mudo o filho amado.
E eis o cavalo alazão, amarelado, e o que estava montado sobre
ele tinha o nome de Morte, e seguia-o o inferno, e foi-lhe dado o poder de
matar à espada, à fome e à morte natural pela doença.

Zé Lopes vinha escondendo o ressentimento de abandonar o


rumo de Concepción; resignado, aceitara o retorno. A libertação de
Rafaela e seus filhos mais novos da cruel prisão paraguaia ficaria
para mais tarde. Mesma estrada de volta era suicídio, inimigo conhecia
bem as passagens. Contando com a vantagem da cavalaria, fácil se
adiantar tomando os suprimentos brasileiros vindos de Nioac, fácil
armar sucessivas emboscadas nos lugares mais convenientes, rapi-
dez em infligir a morte ou fugir dela em surpresa adversa. Retirada
mais segura era passando pela sua Estância Jardim, caminho conheci-
do só dele, vinha o Zé Lopes insistindo nesta ideia. Sorte ajudando,
talvez até encontrassem umas poucas cabeças de gado vadio para
comer, certeza da sobremesa no imenso laranjal de sua fazenda,
maio mês da fruta.
Depois do desastre de Nhandepá, o comando aceitou o novo
caminho sugerido. Campos das Cruzes, vastidão de capim-flecha,
alto, sem pastoreio, poucos arbustos de cerrado, raros capões de mata
seguindo os rios. Uma ou outra árvore mais alta, solitária referência a
indicar o rumo correto ao único conhecedor destas paragens. Índios
palpiteiros a não merecer confiança, afinal apenas índios. Nada de
bússolas, agulhas, direção norte-nordeste, graus de azimute, conversa
Marcos Faustino 123

boba de engenheiros. Direção certa era o morro da Margarida, visto


das partes altas. Dificuldade nas baixadas sem divisar o morro-guia.
Terrível quando nada se via; nos dias secos, fumaça das queimadas,
labaredas altas na macega do capim seco, arma fustigante dos para-
guaios a nos perseguir; nos dias chuvosos, o nublado encurtando o
alcance dos olhos. Dúvida surgia: vai este caminho dar em seguro
lugar ou a esmo seguimos à procura da morte em mãos inimigas, caso
sobrevivamos da insidiosa cólera?
Pior ainda o guia morria, cada dia um pouco. A doença agia.
Levou Camisão, levou Juvêncio, chefes enterrados com uniforme
completo, botões reluzentes, testemunhos duradouros da importância
dos falecidos na humilde cova rasa, cruz singela marcando o lugar.
Zé Lopes previa; não chegaria à sua estância. Pensamento nos seus,
pediu: – Toné, chegando de volta ao Rio de Janeiro, não se esqueça
de providenciar junto ao Ministério o pagamento de mais de quinhen-
tos bois de minha propriedade que forneci à tropa. Fraco, ainda
auxiliou o vacilante genro, que assumira o lugar de guia. Não, não,
não corta este capão de mata, contorna, vai por fora, última volta,
derradeira instrução, último pensamento, Rafaela, os filhos, que Deus
os proteja, já que eu não pude; quase na chegada da sua estância, a
morte o encontrou, cova rasa para quem salvara a todos.
Imenso laranjal, doçuras amarelas penduradas, insuspeito
remédio as frutas, bando de famintos a devorá-las. Taunay contou
mais de vinte e oito laranjas engolidas, só ele, bagaço e tudo. Ribeirão
de águas límpidas sorvidas fartas em grandes goles pelos coléricos
sedentos, demorado banho coletivo; abandono da proibição de evitar
as águas, fim do medo do contágio nos rios. Dali em diante, ainda uns
poucos morreram, nenhum novo caso surgiu. Em breve, a doença
desapareceu.
Última presença da guerra na chegada a Nioac: igreja transfor-
mada em armadilha explosiva, jogando pelos ares alguns brasileiros,
profanação de lugar sagrado, sacrilégio condenável.
O final da sofrida marcha da Coluna Guia Lopes foi no porto
Canuto, travessia do rio Aquidauana, próximo aos Morros.
124 Águas atávicas

Longa caminhada dos guerreiros brasileiros para quê? Para


nada! Ataque a Cuiabá não estava mais nos planos inimigos. Penetração
pelo norte paraguaio deu em retirada desde Laguna. Pouca impor-
tância no geral da guerra, teve o heroico episódio. Sangue de apenas
mil em carnificina maior, quase o holocausto para o atrevido Paraguai.
Pelo menos uma lição da maldita guerra: vias diplomáticas, na mar-
cação da restante fronteira oeste brasileira.
Bella ou Bela Vista, para os montes vizinhos tanto faz. Rio Mi-
randa ou Mboteteí, rio Branco ou Blanco, mesmas águas indiferentes
aos nomes que lhe dão, alheias à cor dos casacos, nenhuma diferença
se azul ou vermelho, sangue levado sem distinção.
Marcos Faustino 125

O rapto da bela índia

Tonha sabia impossível, mas queria todos os seus homens.


Apreciava as muitas gostosuras da rede, as variadas delícias do
rolar no chão, sem preferência por nenhum. Lilico safado aceitava os
demais; não ligava, apenas se divertia. Taunay, mais sério na sua im-
portância, não desconfiava, nem podia. Pereirinha, coitado, tão pidão.
Outros, nem dava conta da conta, Antônia nem gostava deles, secun-
dários; queria era a rede, o chão, os prazeres da pouca idade, o prin-
cipal. Para escolher um, parava em três, difícil prosseguir. Natureza
de fêmea, instinto sem peias, índia. Longe dos sonhos, perto da prática:
retirada das tropas terminando, procura por ela diminuindo. Pegava
um branco ou ficava com um guerreiro de poucas caças e longas au-
sências, sem posses nem pose. Pegava um, decidiu.
Lilico safado, nem apareceu. Homem casado, mas com recursos
para manter mais uma mulher; será que ia querer? Taunay mandara
notícia: podia ficar tranquila que não a esqueceria. Pereirinha apa-
receu atrás do rosilho paraguaio e a mula baia, a Branca, que pai
guardou para ele.
– Animal paraguaio, sem dono coisa nenhuma, era do Perei-
rinha, Miguel Arcanjo garantia. Na hora, interesse de ninguém, só
furar o coitado do soldado paraguaio morto, maldade de muitas pontas.
O sargento levou o rosilho, cuidou, ficou sendo dele. A Branca já era
dele mesmo, Pereirinha chegou com ela.
Pai não saía de perto e o Pereirinha a espichar conversa de mon-
tarias, em vez de assunto só com ela.
Aguentava, falavam de Taunay.
– Saiba o sr. Miguel Arcanjo que o tenente Toné foi encarregado
de escrever para o imperador, apresentando o relato oficial do nosso
bravo feito em território inimigo. Já há dias que se dedica a tão impor-
126 Águas atávicas

tante tarefa, ficando mesmo impedido de aqui comparecer como era


seu mais ardente desejo.
Pereirinha, satisfeito por sua própria eloquência, sentiu ligeiro
incômodo pelo discreto sorriso de Antônia ao ouvir as suas últimas
palavras. Ardente desejo, associado ao tenente Toné. Antônia não pôde
deixar de notar o leve cerrar das sobrancelhas em Pereirinha. Ciúmes
do bobo, gostou mais ainda, aumentou o sorriso, só provocação.
– Consta mesmo que, após concluir o relatório, o tenente deverá
partir imediatamente para o Rio de Janeiro e entregá-lo nas mãos do
imperador, ocasião que apresentará, solenemente, sua esposa Antônia
a toda a corte reunida. Pressa do comando certamente impossibilitará
a vinda do tenente aos Morros, merecida deferência a sua ilustre
pessoa, sr. Miguel, como era intenção de Toné.
Intenção e não desejo ardente, pensou Pereirinha, desta vez
acertei. Percebendo a contrariedade no semblante do velho índio,
deu volta na conversa.
– Imagine o senhor que até belo desenho o meu chefe fez, re-
trato da quase invencível fortaleza de Bella Vista, em território inimigo,
e que graças à valentia de nossos soldados em pouco tempo a tomamos,
pondo em fuga o vil inimigo e abrindo caminho até Laguna, de onde
por falta de interesse acabamos regressando. Na pressa de terminar o
relatório, imagine o engano de Toné, chamou o desenho, verdadeiro
retrato, de Retraite de Lagune.
– Converseira comprida demais, sargento, rude atalho do índio.
Ou este tenente vem aqui ou minha filha não vai. Não entrego para
qualquer um. Além do mais, fala bonita não me convence, chega de
prosa boba. Fico mais dois dias na espera dele, depois vou caçar bichos
para encher a panela, sem prazo de volta.
Raiva rápida no Pereirinha, o velho não gostava dele mesmo,
dificultava seus propósitos. Doutra vez também exigiu presença de
Toné, não negociava a filha com intermediário. Exagero falar de corte
reunida, apresentação de esposa ao imperador. O homem desconfiou:
vantagem demais, falsidade revelada. Arranjou a saída, humilde con-
tinuou: – Levo o recado, sr. Miguel, levo o recado, e saiu cabisbaixo.
Marcos Faustino 127

– Prosa boba deste sargento, pensa que me engana, disse o pai,


assim que Pereirinha se afastou. Notícia correu rápida, Toné seguiu
para a corte ontem de manhã, comitiva dele passou aqui perto, muitos
comentários, fiquei logo sabendo da partida. Sofri calado a desfeita,
nenhuma satisfação; não é caso de orgulho, só amor de pai, filha mi-
nha não é cana que vem um, chupa, chupa, aproveita, depois deixa
o bagaço sem serventia. Bobagem dar dois dias de prazo, claro que o
Toné não vai arrepiar caminho, voltar, deixar a pressa de sua missão
militar para buscar uma índia. Povo sem coração, essa gente da corte.
Lilico não vai esquecer de você, minha filha, arrematou, consolo final
revelando a preferência de pai.
Antônia nada podia falar, para ela valia a decisão alheia. Podia,
isto sim, em silêncio anunciar suas vontades. Foi o que fez com Pe-
reirinha: sem corresponder aos olhares, permaneceu junto do pai,
não deu chance de conversa particular.
– O bobo com o colarzinho que dei na despedida pendurado
no pescoço. Mão toda hora alisando o dente de queixada, querendo
mostrar para mim, se exibindo, olhos de quem pede um particular,
sonha com a rede. Quero não, escolha difícil, mas este estava fora,
sem serventia na frente, acabou. Mesmo assim, que encanto, o carinho
do homem com o presente conservando por tão longo tempo. Alisava
era ela, sentia, mas não queria corresponder; permaneceu na fingida
indiferença. Por ela, ficava com o Lilico, mais divertido nas gostosuras,
riso farto, engraçado nos deboches, despreocupação é bom tempero
para o passar do tempo. Prudente terminava no correto juízo: não
posso é ficar sozinha, no meio de tanto homem.
Três dias depois, estando Taunay já longe, Lilico se preparava
para acompanhar o que restou da tropa para Cuiabá, seu destino fi-
nal. Os quatro canhões La Hitte intactos mais os deixados em Coxim,
total de doze; artilharia ainda de impor muito respeito. Agora de vol-
ta, saudosa esposa esperando por ele, filhos mais crescidos... Tonhas
para aventuras, Cuiabá tem muitas, pensou Lilico, consolo antecipado
de desvantagem presumida.
Miguel Arcanjo mandou recado, assunto encerrado, negócio
fechado, a bela índia seguia a serviço do Lilico. Tonha à disposição,
128 Águas atávicas

era ventura certa, como ela, Cuiabá tem poucas, reforço de ideia
com a vitória assegurada.

Pablo Velhaco, o comerciante, chega aos Morros. Comitiva de


vários cavalheiros protegendo a melhor carroça, guarnecida de almo-
fadas e limpo colchão à espera de ilustre passageira, alguns andarilhos
na retaguarda. Pelos altos da serra de Maracaju, segue em direção a
Cuiabá, anunciou na chegada ao rancho grande dos índios. Pretex-
tando não saber do paradeiro, perguntou por Miguel Arcanjo.
– Sumido na caçada. Saiu ontem, volta ninguém sabe; só ficou
mulher e criança, respondeu triste a mãe de Tonha.
Velhaco contrariado, pura encenação, impaciência calculada.
– Tenho de prosseguir, responsabilidade grande no abasteci-
mento da tropa. Pudesse esperava a volta do pai; sem prazo estipulado,
demora longa demais prejudica minha tarefa. Devagar aproximou-
-se da mãe, estendendo uma bem dobrada folha de papel. Rápidas,
índias e crianças formam meia-lua em volta da mãe, todas incapazes
da leitura a fitar a indecifrável folha, agora aberta.
Velhaco continuou a farsa.
– Está à disposição da noiva o melhor e mais confortável carro
para levá-la até o remetente destas bem escritas linhas endereçadas
ao sr. Miguel Arcanjo.
Índias se retiram, confabulam.
– Trouxe também alguns tecidos da melhor chita, para vestido
das senhoras. O comerciante sabia que alguns presentinhos ajudavam
na decisão prestes a ser tomada.
Hesitação aparente aumentava o preço, simulavam.
Outra combinada encenação, derradeira ordem do Miguel Ar-
canjo antes de partir para a caça: se aparecer outro bobo atrás da To-
nha, se tiver jeito, entrega a enjeitada, a Imbé. Interessado tem de ter
boas falas, condições; para qualquer pé de poeira não. Qualquer
coisa a mais já compensa ficar livre do estorvo, da indiazinha.
No comando da mãe da Tonha, continuaram a farsa. Tinha a
boa fala, escrita mesmo, condição demonstrada pelas carroças, tecidos,
pés de poeira só os guardas; arriscou pedido.
Marcos Faustino 129

– Situação nossa muito difícil, dependendo só da caça para


comer. Deixa saco de arroz e milho para ajudar a gente.
Concordância anunciada, lágrimas silenciosas, breve choro
convulso, alto, logo solidariedade de todas anunciando a despedida.

Assunto resolvido, a moça vai; papel recolhido de volta, resgate


de prova incriminadora, quem sabe o futuro? Atuação comedida,
teatro perfeito, sem citar nomes que justificassem interpelação futura.
Não falou em Taunay, apenas citou Rio de Janeiro, associação de um
com outro por conta de quem ouviu. Poucos pertences na pressa re-
colhidos, comitiva a caminho.
– Sem jeito de reclamação futura. Não falou na Tonha. Noiva?
De quem? Ninguém sabe. Parece coisa do besta do Pereirinha. Riram
todas as índias.

Imbé já dorme no balanço do carro de boi em movimento. Es-


teira lateral evitando curiosos olhares masculinos, pano grosseiro pro-
tegendo do sol e do sereno à noite. Ordens expressas: nenhum homem
chega perto.
Derradeiro ato da mentira, urgência na busca de novos supri-
mentos, novas ordens recebidas, mudanças no destino, agora Minas
Gerais, picadão direto a Sant’Anna do Paranahyba. Acompanhando a
comitiva, Pereirinha matutava. Parada difícil foi enganar o sogrão;
no limpo, a descoberto, franqueza escancarada, não levava. Perdia a
disputa com dois de patente mais elevada, se houvesse interesse dos
tenentes em ficar com a índia. Melhor a malícia, a moita oportuna, o
bote preciso, a ideia do bilhete lido pelo Velhaco sem falar de quem
era; autoria sugerida, do Toné, homem de muitas leituras e escrita
fácil. No fim, a sós com Tonha, comunicava o repentino descaso do
Toné, inventava desculpa na hora. Sensação de vitória, ardil bem
sucedido.
Pereirinha nada desconfiava; tenente francês sem interesse; o
outro, Lilico, cutucou no lugar certo, na ambição do sogro, na prefe-
rência da Tonha, ganhou fácil. Deixou de lambuja uma enjeitada,
raiva certa na descoberta futura do logro sofrido.
130 Águas atávicas

Imbé ansiosa, viaja a esmo, sem dono conhecido, na espera.


Terceira noite, do lado de fora da esteira, homem sussurra. Promete
voltar amanhã. Volta. Fala com ela, esteira separando, visão da moça
negada. Que graça, que encanto no sono largado. Fruta madura a
despencar do pé, bem na minha mão. O enganado ainda sonhava.
Imbé reconhece Pereirinha, o mais animado nos banhos de
cachoeira; gosta da novidade. Beleza cansada da espera, a moça ar-
ranja a solução. Noite alta, madrugada distante, novidade na entrega,
vez primeira. Diferença aparece, era outra. Esperteza nenhuma, es-
pontaneidade pura de quem ama, sem prática alguma. Era outra, se-
melhança nenhuma, ela querendo mais do que ele, nunca aconteceu,
bater acelerado de coração, sob os seios menores. Seios menores?
Outra mesmo. Diferença, pé com pé, pouco acontecendo, raros toques,
mulher menor. Abrir os olhos? Bobagem, aproveitasse o bem bom do
vaivém. Cabelos lisos, fartos, bom de alisar com as mãos, corte mais
curto, fácil notar. Outra. Caprichos no cheiro bom, cuidado nos raros
enfeites; pele mais lisa, macia. Lábios mais finos, molhados na dose
certa, boca apressada na variação dos lugares, só gemidos delicados,
muitos, muda de palavras. Ombros mais estreitos, corpo apressado,
braços espertos nas ligeirezas dos apertos, mãos em variados locais,
coxinhas mais grossas. Outra sem dúvida. Abrir os olhos? Reconhecer?
Bobagem, ficasse nas delícias. Não aguentou, abriu: era bela, calor
das circunstâncias aumentando, vaivém crescendo, mil estrelas nos
olhos escuros dela, reluzentes, brilho raro, intenso, carinha de criança,
gozo barulhento, movimento diminuindo, preguiça aparecendo. Re-
conhecer? Para quê? Melhor o repouso largado, mais vale o sonho
acordado que o viver preocupado. Não pode evitar a recordação: era
a indiazinha, distante nos banhos, observando atenta, sem permissão
de participar. Proibição da idade pouca, pensou. Que nada, agora
entendia, medo das outras, inveja de rival mais ajeitada. Impressão,
pareceu que a indiazinha olhava para ele, jogou água nele, muito
distante, a indiazinha sonhava, as outras mais perto, impressão, deixou
para lá. Mais vale o sonho acordado!
Dormiu, pesadelo apareceu: Pereirinha enganado, passado
para trás, comprou a melhor, levou a pior. Deixou a preferida, levou
Marcos Faustino 131

a enjeitada. Acordou agitado. Porém, prazeres recentes, recordações


agradáveis, sentimentos aflorando, julgamento surgindo: a indiazinha
era melhor que a Tonha, e muito! Quem podia saber da trapaça esta-
va muito longe. Bobo quem aprontou. Verdade era outra, gostara da
troca. A indiazinha, sem concorrência de terceiros, a precisão dela
enrolando-se nele como um cipó à procura da seiva. Mais vale o
sonho acordado! Adormeceu, prazer do descanso despreocupado.
Dia seguinte, calor incômodo no pescoço, quase sufoco; lembrou,
arrancou apressado, cordão arrebentado, contas e dentes esparrama-
dos, com raiva jogou longe o que restou do colar da Tonha. Bandida,
pensou com desprezo, apagando da memória o nome infame.
– Mulher, seu nome agora é Imbé, decretou para si.

Às contas, à realidade.
Até agora tudo nos conformes: a mula Branca de volta com ele.
Vendera o rosilho paraguaio, animal gordo pelo descanso nos Morros,
bem zelado pelo besta do Miguel Arcanjo. Preção, valor absurdo de
alto, duzentos mil réis, dinheirão, a escassez de montarias elevava o
preço. Roubalheira mesmo era do Velhaco, pedir trinta mil pelo uso
exclusivo do carro confortável, mais setenta pela mentira do papel;
somando tudo, cem mil réis. A prenda era para o Toné explicou desde
o início. Não quis falar na hora, ia dizer depois, esperteza de negócios,
pagamento só no Rio de Janeiro, na entrega da mercadoria. Agora,
como o Velhaco não prestou atenção no embarque, com a troca da
índia, ele Pereirinha já não podia garantir o pagamento combinado.
Receber o dinheiro, problema do Velhaco com o Toné, lá no Rio de
Janeiro. Missão difícil para Pereirinha: passar a perna num velhaco.

Dois problemas reclamavam solução imediata: primeiro pela


dificuldade de resolver, a Menina na casa da Vó Celeste esperando
por ele. Segundo, a mula baia, a Branca, tinha de devolver ao inten-
dente, não vendeu antes agora é capital perdido.
Ah, a Menina. De vez em quando a saudade batia. Mesmo nos
banhos, fartura de oferta, a lembrança surgia. Mas agora, a Menina
parecia velha, muito usada, sem vergonha de ofício se comparada
132 Águas atávicas

com a Imbé de uso exclusivo desde o início. Mesmo assim, doces


lembranças... Resolvia depois. A hora chega.
– Pereirinha, estive pensando. A guerra acabou, valor de mon-
taria caiu. A necessidade fazia o preço; agora, só quem vai viajar
muito paga bem, como é meu caso. Mesmo assim ainda tenho coragem
de oferecer cem mil réis na sua mula baia, a Branca. Mais uns dias
de marcha, em Camapuã, separamos. Eu sigo para Goiás e você para
Sant’Anna, onde vai encontrar o tenente Toné. Você entrega a encomenda,
a índia. Aí, você recebe os cem mil que ele me deve pelos serviços do
jeitoso emissário, luxuoso transporte e segurança da comitiva. Embolsa
os cem mil depois e eu fico com sua mula agora, disse o Velhaco.
Osso duro, este Velhaco.
Ficar sem a sua única montaria, não podia. Afinal saíra de lá a
cavalo. Entrar na Vila de Sant’Anna a pé, acompanhado só de uma
índia descalça, mesmo bonita, perdia a importância; mais um zé
ninguém de volta da guerra. Imaginação era outra: solene na montaria
de passo lento, farda de sargento, espingarda atravessada nas costas,
escoltando comitiva de carros de boi, mais cavaleiros, algumas pessoas
a pé. Na frente de seu futuro lar, longe do Lá-em-Baixo, casa na vila
mesmo, do carro mais rico desce a linda morena, recompensa de
guerra, provocando inveja de muitos e admiração de todos. Ele e ela
ficam, comitiva parte, povo se aglomera curioso das novidades.
Pereirinha abandonou a imaginação e falou: – Depois do rio
Sucuriú, tem a fazenda do João Garcia. Recomendação geral é evitar
o lugar, motivo da lepra, doença brava. Mas o homem é rico de
gado. Pouca procura por medo da morfética. Cumprimenta de longe,
desvia de aperto de mão, recusa agrados de comida ou café. O João
entende a precaução, já é conformado com a desgraça da família; foi
Deus quem quis. Sem apear do cavalo faz negócio. Pode oferecer por
baixo que ele aceita, difícil aparecer interessado. Outra coisa que é
bom lembrar, é das patrulhas paraguaias. Desgarrados da tropa, bando
de desertores, fugindo da morte por bala ou por doença, rondam por
aí roubando e judiando de quem anda em pouca gente, presa fácil.
Defesa fraca incentiva estes carniceiros dos infernos. Levam tudo,
matam todos, não sobra nada.
Marcos Faustino 133

A menção a negócio lucrativo com o infeliz João Garcia levou


brilho ao olhar do Pablo Velhaco. Entretanto, o medo da morte e da
possibilidade da perda repentina da riqueza conseguida com a guerra,
calou-o. Vivas lembranças de perigos recentes, de quase morte! Quis
esquecer estes assuntos, por isso mudou a conversa.
– Pereirinha, acho que você conheceu meu pai lá em Sant’An-
na. Lembra do italiano do realejo? Pois é, meu pai! O homem nasceu
para ser pobre. Não aproveita as oportunidades, sempre roubado pe-
los outros, cheio de bondades e de ideias extravagantes de como deveria
ser diferente este mundo. Imagine você que depois de muito esforço
em comércio miúdo, eu consegui comprar meu primeiro carro com
três juntas de bois; enchi de mercadoria comprada fiado em Goiás e
levei para Coxim, onde estava a tropa. Pai ficou muito satisfeito, pri-
meira vez que vi nele orgulho, peito estufado, por este filho desgarrado
que ele custou a reconhecer. Também pudera, acabei nascendo na
Argentina, culpa da cabeça vazia de minha mãe. Logo a decepção,
quase desespero: pensou que os mantimentos fossem para saciar os
famintos, as mercadorias para atender aos necessitados. Pechincha
no preço era coisa vergonhosa pelo estado de carências das pessoas,
lucrar com a situação era quase um crime. Queria que eu desse tudo
de graça, sem lembrar das minhas dívidas na compra. Cobrasse eu
alguma coisa, então, retrucou desgostoso. Que nada, meti a faca: com-
prei cigarro a um e vendi a cinco, adquiri tecido muito fraco e entre-
guei a preço de seda pura. Eu queria mesmo era sair da vida miserável
que tive com a minha mãe. Pai distante, sem moradia fixa, sempre
viajando atrás de sonhos impossíveis. Confusão de tiros e revoluções,
amigo de um tal de Garibaldi. Vieram da Itália juntos, fugidos de
perseguição política, pelo que entendi depois. Garibaldi, velho danado,
arrumou belo rabo de saia, marinheiro virou tropeiro, levou uma
grande boiada sua para o Uruguai e deixou meu pai na mão. Não
podia acatar os conselhos de meu pai, em Coxim, vendi tudo à vista,
na bufunfa, dinheiro na hora. Voltei a Goiás e comprei mais quatro
carros cheios. Daí para frente, foi só guardar o lucro em lugar seguro,
segredo só meu. Se morrer na guerra, mais um tesouro enterrado a
ser descoberto muito no futuro.
134 Águas atávicas

Prosseguiu: – Guerra é só ganância de ricos e poderosos. Vê o


caso do Solano. O maior fazendeiro do Paraguai quem é? Ele, claro.
A fazenda do Urquiza, mandachuva político do norte da Argentina,
fronteira com o Paraguai, não tem medida de tão grande, gado e
ovelhas em centenas de milhares, cavalos em dezenas de mil. Posição
dele decide a briga. Hesita, pende para um lado, agrado do outro. No
começo, López contava com ele. O gaúcho general Osório, antes do
início dos tiroteios, foi lá e comprou trinta mil cavalos do gringo.
Imagine, trinta mil cavalos. Povo fala demais, mas ninguém prova
nada; mas dizem que o preção pago foi pelos animais e pela simpatia
do caudilho. Só sei que quando o Solano pediu permissão para cruzar
seu território e invadir o Rio Grande do Sul, o sabido disse não. Resul-
tado, a Argentina entrou na guerra, ofendida pela passagem de exér-
cito estrangeiro em seu território. Lucro para os comerciantes de Bue-
nos Aires, mantimentos de todo tipo saindo das estâncias e depósitos
portenhos. Até costureiras andaram enriquecendo por lá, fardamento
para milhares de soldados. Fácil entregar, só pôr no barco, rota segura,
garantida.
Continuou: – Agora eu e você, Pereirinha, negociamos apenas
uma mula; o Urquiza vendeu trinta mil cavalos. Pensa agora em quem
vende canhões e barcos de guerra! Povo fala demais, mas dizem que
o Solano pagou sinal na encomenda de muitos navios na França, de-
morou para dar a segunda parcela; brasileiros pegaram dinheiro
emprestado na Inglaterra foram lá e ficaram com as embarcações.
Resultado: o Brasil manda nas águas do mar e dos rios. Solano, filhinho
de papai rico, vai se complicando cada vez mais. Para os ricos e po-
derosos, os lucros, para nós, a carnificina, o patriotismo!
– Calma lá, retrucou bravo o Pereirinha, voz alta, alterada.
Nem todo mundo vê a guerra com olhos de urubu. Se território pa-
raguaio, sem jeito de expulsar exército, aliás nem invasão seria. Você
mesmo, argentino, italiano ou sei lá o quê, viu que até os índios de cá
há muito preferem o português ao espanhol. Lutamos pela terra que
entregaremos aos nossos filhos. Isso é o nosso patriotismo. Lembrei foi
do seu pai, o do realejo, acho que ele tem razão para não se orgulhar
de filho tão urubu.
Marcos Faustino 135

Aprovação geral dos que ouviram, no silêncio grave e nos


ligeiros meneios de cabeça. Era um sargento se levantando em defesa
dos companheiros, muitos mortos, outros mutilados, todos muito
sofridos. A maior patente militar era ele, obrigação dele. Reforçado e
percebendo o proveito da ocasião, continuou já em tom de ameaça: –
O senhor, que nem brasileiro é, vê como fala da minha gente. Respeito
é bom e devido para quem o acolheu. Isso eu exijo. Levantou e retirou-
-se. No estalo, os seis soldados presentes também se levantaram e se-
guiram o Pereirinha. Tinham todos os ares de ofensa reparada, da
injúria rebatida. “Muito bem falado, sargento”, disse um soldado com
a aprovação dos demais.
Como resultado deste conveniente arroubo patriótico, Perei-
rinha passara então a comandante daquela coluna em direção à Vila
de Sant’Anna. Pressa em chegar, pernoites curtos, boias rápidas e de
novo em marcha, eram as ordens do novo chefe.
Miguel calculou que sua fala inconveniente iria custar-lhe per-
das financeiras. O assunto da dívida, que era só do conhecimento de-
le e do Pereirinha, tornado público, passou a ser entendido pelos de-
mais como retaliação à defesa enérgica feita por Pereirinha em nome
dos companheiros de farda.
Passaram pelo entroncamento de Goiás, todos em direção a
Sant’Anna, sem lembrança de outros destinos. Às margens do Sucuriú,
viajantes em sentido contrário e a boa-nova: encontraram há um dia
de marcha importantes militares em direção ao Rio de Janeiro; à
frente, um garboso tenente. Era o Taunay. Sem alarde, Branca, a
mula baia, foi trocada por um roliço e saudável cavalo, pampa de
pelagem, que pertencia a um dos viajantes. Pereirinha justificou: –
Animal descansado rende mais na estrada. O pampinha aguenta a
marcha batida, sem descanso. Já no silêncio pensou: o pampa que
agora é meu, pela mula que era do intendente. Livro-me da obrigação
de devolver a Branca, negócio bom, salvação na última hora!
Passaram pelo rancho do morfético João Garcia. Tinha a neta,
Jacinta26, beleza rara muito comentada. Mas o medo de pegar o mal?
Risco de contágio desviou a rota, espantou todos, ninguém pensou em
ir lá propor negócio.
136 Águas atávicas

Logo adiante, deixando a comitiva estacionada, ficassem ali


até sua volta, Pereirinha partiu apressado; só parou na frente do te-
nente, já na Vila de Sant’Anna. Alegre
26. Jacinta Garcia Leal inspirou Taunay
26
nos cumprimentos, efusivo nas camara- em “Inocência”, assim descrita por ele,
dagens, conversa amigável, até aparecer que, tendo parado no rancho do avô
inadvertidamente, só a viu uma única vez:
a oportunidade, a ocasião do particular. “Fisionomia doce, suave, sedutora, cútis
O motivo da pressa, do adiantado sobre a acetinada e alva, olhos aveludados, gran-
des, cintilantes, o nariz de inexcedível
comitiva, era o assunto reservado, há mui- correção quer de frente, quer de perfil, os
to pensado. Foi claro; mais pela bondade lábios purpurinos a deixarem entrever
dentes deslumbrantes!” Como ocorria
do tenente do que pelos seus próprios com muitos povoadores iniciais, a han-
méritos, pedia grande favor. Em troca, seníase era causa para se isolarem nas
imensidões vazias da região. Taunay
no futuro ou agora, se Toné precisasse, também observou:“Que admirável con-
contasse com ele. Humilde, reconhecia junto.Toda esta radiosa e extraordinária
formosura estava condenada a ser pasto
a pequena força, mas o coração no máxi- da repugnante lepra.” (“Memórias”, p.
mo empenho, isto sim, passava a dever 366, Editora Iluminuras, 2005).
obrigação pelo obséquio solicitado. Que Toné falasse com o vigário,
lembrasse dele na missa do dia seguinte.
Referência a qualquer feito, verdadeiro ou inventado tanto faz;
não precisava ser ele o autor único, servia mesmo participação discreta.
Importava a menção ao seu nome em público, diante das autoridades
locais, com o melhor da sociedade presente. Só um elogio, pequeno
que fosse. Fácil para Toné que sabia engrandecer; Pereirinha conhecia
as muitas ordens do dia escritas pelo tenente, o entusiasmo nas palavras
bonitas das proclamações militares.
Dia seguinte, cinco horas da manhã, cara amassada de sono,
contrariado com o costume local de missa tão cedo, Taunay estava na
igreja matriz. Toda vila presente, também Vó Celeste e as moças de
Lá-em-Baixo. Tendo chegada a hora do sermão, vigário Sales falou: –
Encontram-se entre nós bravos brasileiros que muito ajudaram a ex-
pulsar de nossas terras os pérfidos paraguaios. Povo este excomungado,
pois há alguns anos a Igreja teve seus bens confiscados por seus gover-
nantes infiéis. Porém, resta a tênue esperança de salvação, pois ainda
se proclama católico e, graças às vitórias dos nossos exércitos, está
próximo o fim dos déspotas que se pretendem esclarecidos, mas que
não passam de tiranos a escravizar todo um povo.
Marcos Faustino 137

Continuou: – Com a autoridade moral de pastor das almas,


permito-me ainda chamar carinhosamente de Pereirinha, o mais ilustre
filho de nossa vila, que daqui saiu com a humilde condição de mero
voluntário, para, em nosso nome, juntar-se ao esforço nacional de
rechaçar os invasores. Cumpriu sua missão com tal denodo e valentia,
demonstrando rara e inata aptidão para as artes guerreiras, que em
reconhecimento aos seus heroicos feitos nas batalhas de Bela Vista,
Laguna e na trágica Nhandepá, seus superiores militares promoveram-
-no a sargento. Fatos valorosos que certamente seriam esquecidos no
calor das batalhas não fosse o testemunho desinteressado de seu chefe
imediato, o tenente Taunay, o dileto amigo de nosso imperador, que
muito nos honra com sua presença nesta casa de Deus. Levantemo-
-nos e a uma só voz demos:
– Vivas ao sargento Pereira!
– Vivas ao tenente Taunay!
– Vivas a Dom Pedro II, Imperador do Brasil!
– Oremos. Em voz baixa, elevemos nossas preces a Deus para
que o altíssimo continue a iluminar os que nos protegem.
À exaltação dos vivas, seguiu-se o silêncio da constrita oração.
De canto de olho, Taunay reparou na satisfação estampada no rosto do
sargento. Sentiu-se recompensado em atender tão comezinho pedido,
mesmo tendo de exagerar os relatos da noite anterior na casa do
vigário. Ficasse o exagero por conta do bom vinho servido pelo religioso.
Na saída, todos os militares em direção a Minas Gerais, travessia
pelo porto Alencastro. Na primeira oportunidade, sargento Pereira
pegou o rumo oposto, de volta ao encontro da comitiva que desde
então ficara aguardando suas ordens de prosseguir.
No finalzinho do terceiro dia depois da partida de Taunay, or-
ganizada comitiva entra na Vila de Sant’Anna. Alvoroço de moleques
em correria anunciando a novidade, agitação de todos conferindo
importância ao majestoso séquito. Sargento Pereira á frente, montado
em belo animal pampa, uniforme militar impecável no brilho dos
botões, em seguida seis soldados a pé escoltando o primeiro carro.
Neste, os melhores bois e a elevada cobertura de couro cuidadosamente
138 Águas atávicas

zelada insinuavam a importância da passageira, curiosidade atiçada.


Na rua principal, na do Comércio, para em frente de boa casa de
taipa e telhas de barro. Os menos importantes se acotovelam ao redor
do carro, espichando o pescoço para melhor ver, das janelas de suas
casas o olhar atento, porém distante, dos graúdos da população. Apeia
do carro a bela moça, Dona Imbé Pereira.
– Arreda, molecada, deixa a dona entrar na casa, ordenou um
soldado.
– Vai caçar serviço, moleque, praga de gente, disse em voz
baixa o sargento. Derradeira continência dos soldados e a comitiva
prossegue seu caminho, deixando o casal recolhido à sua nova re-
sidência.
Na retaguarda, último da fila, o italiano, argentino, cabisbaixo
levava suas mágoas adiante. Velhaco repetia para si mesmo Qui
pagliaccio sono io. Língua descontrolada, defeito da raça, quem fala
demais, ouve o que não quer nem recebe o que lhe é devido.
Mal o povo em frente à casa se dispersou, noite avançada, ho-
mem e mulher na nova moradia se aproximaram. Fim dos perigos,
entrelaçaram-se por muitos dias nas delícias repetidas.

Mas havia a Menina, assunto pendente; uma sabia a outra não.


Fácil justificar a recusa, demora prolongada, descuido da Vó, traição
inevitável, afinal ofício é ofício, necessidade explicando. Uma sabia
outra não, melhor começar pela outra; foi visitar a Vó.
Escolheu depois do almoço, hora parada, sem movimento Lá-
-em-Baixo. Vó radiante, orgulho pelo neto, as meninas alvoroçadas, o
herói de guerra em pessoa. Menina sem aparecer. Conversa comprida,
casos engraçados relatados por elas, Pereirinha mais sério. Menina
sumida, ausência cada vez mais notada, uma atrás da outra com
obrigações a cumprir, roupa para passar, calça precisando lavar e
por último a Vó com as panelas para limpar. Antes as notícias: esperou
certinha, Vó sustentou este tempo todo, dando de tudo, só falando
nele. Esperou santinha, homem nenhum. Quando soube, desabou,
choradeira no quarto, consolo das outras, recusa enérgica de aceitar
explicação do tipo homem não presta, tudo igual, protestava, chorava,
Marcos Faustino 139

choravam todas, em breve choro só dela, em breve só no quarto. Pe-


reirinha sozinho, discreto como convinha, a caminho do quarto da
Menina. Para, nada escuta, empurra a porta devagar, só ela, dentro
como convinha repousa na cama. Chega Pereirinha, mudos se abra-
çam, chora ela, logo ele também, pura solidariedade nas lágrimas.
Calados nos assuntos que os separavam, vão se entendendo naquilo
que os unia. Fim dos choros, sorrisos de satisfação.
Arranjo estabelecido, repetido em vários dias. Pendência encer-
rada, assunto resolvido bem no gosto de Pereirinha. Ficava com as
duas, almoçava uma, jantava a outra; quem sabia, a Menina, tolerava;
Imbé, a outra, nem desconfiava.
E assim, viveram felizes por muitos anos, os três.
Ao norte da província, rios Cuiabá e Taquari, lentos e mansos,
comportados e navegáveis, à procura do rio Paraguai, para continuar
a vagarosa descida para o mar. Em breve, suas águas levarão novos
desentendimentos de duas repúblicas brasileiras, difícil de acreditar
ou mesmo entender.
Marcos Faustino 141

Bagunças revolucionárias

Medindo-se a passagem do tempo pelo intervalo de dois eventos,


nada acontecendo o tempo não corre, razão por que a vila de Sant’An-
na continuava na mesma. Nem o intendente enfraquecido, mal po-
dendo desempenhar suas funções, dificuldade nas pernas, moleza
nos braços, derrame, prenúncio do fim, agilizou o tempo. Fato menor
na recente organização das coisas. Importante era a visível bagunça
desde o enterro da falecida ordem, decretado pela passada guerra,
precipitando os acontecimentos, abreviando os fatos.
Desaparecidas as leis que impediam de fazer isto, proibiam de
fazer aquilo, passou tudo a ser permitido, resultando que só fazia
quem podia, só podendo quem muito mandava no geral da confusão.
Na falta das velhas regras, surgiram as novas, baseadas no ordenamento
jurídico da carabina nas costas, dos revólveres nas cinturas, na quanti-
dade de cavaleiros bem armados que, em bandos, percorriam a região.
Resulta daí o mais respeitado artigo desta estranha jurisprudência, o
44, cláusula pétrea desta desordem, não simples coincidência numé-
rica, o mais temido calibre de mortal arma de fogo.
Atrocidades, barbaridades e afins; pilhagens, roubos e asseme-
lhados, praticados por enormes bandos armados, passaram a ser os
mais significativos capítulos da história local, acontecimentos estes
chamados de revoluções, meros ecos de acontecimentos no país ou
na província.
No país, o exército organizado no maior efetivo em armas,
tentação inevitável de reclamar o mando da nação. Prestígio recente
de quem garantiu a integridade nacional ameaçada por agressivo
vizinho. A prolongada insatisfação com a persistência da negra escra-
vidão. Os “escravos da nação” tão valentes na recente guerra, mere-
ciam a liberdade. Império terminal dominado por escravocratas.
142 Águas atávicas

Chefe das tropas, comandante da nação, era só proclamar a República,


ideia tão conveniente.
Na questão social, pouco progresso, seis por meia dúzia: sem
gastos com moradia e refeição, dispensado o valor da aquisição, só o
salário abolicionista para a brava gente italiana, trabalhando nos ca-
fezais paulistas. A República deveria garantir o progresso, tendo a or-
dem por base, pensavam os militares em inusitado acúmulo de função
pública e arroubos de filosofia positivista, na moda.
Os civis mais ricos, tão bacharéis em seus entendimentos,
organizavam falsas mudanças: sai o rei entram presidentes, militares
os primeiros; o estado substituiu a província, ficando entretanto o
presidente estadual e o intendente municipal, para terem seus nomes
trocados para governador e prefeito, respectivamente, só muito mais
tarde. Direito divino, pensamento arcaico; agora o poder emana do
povo; sucessão hereditária dá lugar à escolha em sufrágio universal,
impedidos os votos de analfabetos e mulheres, congênita incapacidade
de bem escolher. Resultado contrário aos correligionários? Surpresa
nos currais eleitorais dos coronéis? Comissão eleitoral, cinco deputados
sabiamente escolhidos, corrigia a rebeldia, decretando a anulação do
pleito adverso. Outra votação, desta vez o resultado favorável das
urnas preparadas por amigos interessados. Seis por meia dúzia, sá-
bias mudanças!
Contribuição brasileira às ideias republicanas: o presidente en-
cobria os desmandos dos líderes estaduais, em troca queria os votos
fiéis de deputados e senadores enviados ao Parlamento Federal por a-
quele estado da Federação. Idêntica relação de favores dos presidentes
de estado com os mandões municipais, a mesma permissão de ilícitos
aos correligionários. Era dando que se recebiam favores; ordem para
os outros e progresso para os amigos, era o lema da nova bandeira.

Nem a morte da Vó Celeste contava no geral da vila. Foi secando,


emagrecendo sem parar, cada vez mais leve, dores insuportáveis na
barriga; quando veio, a morte foi bálsamo para suas dores, alívio.
Herança a ser resolvida pela nova jurisprudência, revólver na cintura,
autoridade da farda, Sargento Pereirinha esclareceu: agora mandava
Marcos Faustino 143

ele, herdeiro da Vó. Único e universal. Quarto dela, agora escritório,


necessidade de guardar papéis, gerência das coisas, recibos diversos,
explicou.
Na vila tudo igual, o seis por meia dúzia aparecia nas reuniões
da farmácia do dr. Neves, prático nas artes farmacêuticas que com-
prara o então decadente comércio do falecido major Melo Taques.
Em vez de secos e molhados, agora a venda era de poções curativas e
remédios consagrados, porém o interesse principal eram os mexericos
e as notícias distantes. Atento às queixas apresentadas, aos sintomas
relatados, às dores declaradas e às outras perguntadas, logo o dr. Neves
anunciava o correto diagnóstico, medicamento vendido com a concor-
dância do paciente. Podendo ou não pagar, levasse pela necessidade,
importante era o socorro na hora do aperto; venda fiada, no futuro
acertava; não podia é bobear, deixar o mal avançar, dos sete palmos
de fundura ninguém sai, aí então não tem mais jeito. Junto ao medi-
camento ia o mais importante princípio ativo de todos os remédios:
acreditar em quem os prescreve.
Transmitir confiança era a mais visível qualidade do dr. Neves,
admirável também sua capacidade em apaziguar as variadas opiniões
em assuntos divergentes. Ponto de passagem obrigatório na rua prin-
cipal, o local permaneceu o preferido para divulgação das novidades,
para comentários abalizados dos importantes da vila. Mesmo com o
inevitável atrasado de semanas, as notícias trazidas pelo Jornal do
Comércio do Rio de Janeiro motivavam sábios comentários dos mais
acatados moradores. Destaque sempre para a opinião do farmacêutico,
geralmente o último a se pronunciar, por isso mesmo a palavra mais
aguardada.
Na calçada, rente a fachada, os mesmos moleques, meninos de
porta de rua, simples adornos a revelar a importância dos presentes.

– A coisa andou feia lá na nossa capital, em Cuiabá, disse o dr.


Neves, já agora centro das atenções. Generoso Ponce27 reuniu gente,
não aceitou a revolução que depôs o amigo Murtinho28 do governo
do estado. Tem força para não tolerar tal afronta, pois é amigo pessoal
do marechal Floriano29, o atual presidente da nossa república. São
144 Águas atávicas

do mesmo partido político. A liga- 27 27. Generoso Paes Leme de Souza Ponce (1852-
ção entre eles vinha da época em 1911), alguns anos após a Proclamação da Repú-
que o marechal prestava serviço blica, comanda 1.500 homens que invadem a ca-
pital Cuiabá para repor no cargo o governador Joa-
em nosso estado. Floriano foi pre- quim Murtinho, deposto por “revolução”. Foi
sidente de nossa província, ainda senador e governador do estado de Mato Grosso.
Comandou diversos episódios da violenta política
no período do império, amizade mato-grossense no início do século XX.
velha, antiga. E também a lei está 28 28. Manuel José Murtinho (1847-1917), advo-
gado, foi governador de Mato Grosso (1891), tendo
do lado deles: o vice do Murtinho sido deposto por “revolução” (1892) e reconduzido
é o próprio Generoso. Daí a “Repo- ao cargo por “revolução” contrária (1893). Foi
sição da Legalidade”, movimento ministro do Supremo Tribunal Federal. Seu irmão
Joaquim Murtinho, engenheiro e médico, três vezes
liderado por Generoso, à frente do senador, ministro da Viação foi também o ministro
seu bem armado Batalhão Floriano das Finanças a quem coube resolver a especulação
financeira conhecida por Encilhamento, criada no
Peixoto, puxa-saco. Vitorioso, deu mandato de seu antecessor, Rui Barbosa. Em Porto
nova posse ao Murtinho. Dizem Murtinho (MS), o porto fluvial no rio Paraguai foi
construído para escoar a produção da Companhia
que o Generoso quer é o Senado, Mate Laranjeira, que iniciando sua atividades no
ficar no Rio de Janeiro, perto de império, teve sua área de concessão ampliada até
atingir 5 milhões de hectares de ervais nativos em
Floriano, garantindo a proteção aos terras devolutas onde viviam os índios caiuás e
amigos do estado de Mato Grosso. guaranis, no início da República, quando então
passou a ser propriedade da família Murtinho. Os
A vitória de seu movimento foi herdeiros da Madame Lynch e do Marechal Solano
muito facilitada pela infeliz ideia López, tendo Rui Barbosa como advogado, preten-
deram na Justiça Brasileira a propriedade de gran-
do adversário de separar o nosso des áreas nesta mesma região, alegando que as
estado do resto do Brasil. Pelo jeito receberam do então presidente paraguaio, situadas
anteriormente em território do país vizinho. O STF,
o calor úmido de Corumbá afetou na década de 20 do século passado, resolveu contra-
a cabeça dos inimigos locais dos riamente às pretensões dos herdeiros.
Murtinhos, ideia ridícula a tal “Re- 29
29. Nascido em família humilde de Alagoas, Flo-
riano Vieira Peixoto (1839-1895) fez brilhante
pública Transatlântica de Mato carreira militar, participando do derradeiro episó-
Grosso”. Difícil até entender o no- dio da Guerra do Paraguai: a morte de Solano López
em Cerro Corá. Durante o império foi presidente
me, ironizou no final: – Deveria da província de Mato Grosso. Assumiu a presi-
ser “República Mesopotâmica de dência após a renúncia do proclamador da Repú-
blica, Marechal Deodoro da Fonseca. Tendo en-
Mato Grosso”. Estamos é cercados frentado 19 revoltas no seu curto mandato de três
de rios: Paraguai e Paraná e os da anos, seu estilo de ação rendeu-lhe o alcunha de
“Marechal de Ferro”, consolidando a República,
bacia amazônica ao norte, muito cuja proclamação foi o primeiro golpe militar
longe do oceano. Transatlântica... brasileiro.
ideia ridícula, febre mental pantaneira talvez...
Gargalhadas gerais para a República Transatlântica.
Marcos Faustino 145

Sintonia com o grupo de pessoas importantes da vila era o que


valia. Sargento Pereira, sorrindo na hora certa, sério quando convinha,
tudo na perfeita aceitação do que ouvia. Não que julgasse curto seu pró-
prio entendimento em tão elevados assuntos; importante nestes casos
sem muito interesse imediato era mostrar a concordância com a fala
dos presentes, companheiro político atento e aprovando o que ouvia.
Triste conclusão do Pereirinha: com o fim do império, seu
prestígio caíra. Quantas e quantas notícias foram lidas do jornal e Pe-
reirinha festejado. Bastava surgir o nome do amigo e protetor, o te-
nente, capitão e por fim Visconde de Taunay e logo o sargento era ci-
tado, admirado. Sua atitude de humilde aceitação, pensada aparência,
consolidou a pretensa amizade: um faz de conta que se foi firmando
como verdade, aceita principalmente pelos mais novos ou menos in-
formados. Na dúvida, havia o fato público, notório, de conhecimento
de todos, a missa aqui nesta igreja da vila, o visconde pede a palavra
e elogia o sargento, todo mundo escutou, não é mentira não. Depois
foi embora para o Rio de Janeiro, nunca mais voltou.
O sargento Pereirinha gostava da ligação, dava-lhe importância,
único morador da vila com amigo de tão nobre estirpe. Com o tempo
permitiu-se contar intimidades, nas conversas da farmácia, local apro-
priado para as revelações de vulto.
– Vez que o cavalo deixou o Toné a pé no meio da batalha. O ani-
mal se espantou com os muitos tiros; o tenente sem as manhas de aguen-
tar no arreio, gente mais de salão sem as nossas rudes práticas, foi lo-
go para o chão. O cavalo covardão, em disparada, sumiu no meio das
balas. De pronto, ordenei que soldado vizinho apeasse e pus o Toné
sobre a montaria. Protegendo a retaguarda, dei-lhe cobertura para a
estratégica retirada. Era tanta bala adversária me procurando, can-
seira doida, trabalheira danada; tiro à direta, negaceava para a esquerda,
inverso, invertia eu, bala no alto, abaixava rápido, tiro rasteiro, pulava
depressa. A única bala sem escapatória, Deus desviou. Só de pensar
no perigo, hoje, fico arrepiado. Na hora, a força da amizade falou
mais alto, quando vi já está no meio do foguetório para salvar o amigo.
Em casos assim, a plateia acusava o exagero com discretos sor-
risos, imperceptíveis para Pereirinha.
146 Águas atávicas

De dia, preocupações. Assunto que o sargento Pereira não con-


seguia afastar da sua cabeça era o fato de não ter filhos. Imbé nada,
a Menina também não. Podia ser ele? Tirou a prova, só para efeito de
confirmação, de ter certeza; tentativas com terceira, quarta, quinta,
várias outras, facilidades de gerente Lá-em-Baixo. Nada, o problema
era ele, sem semente. Outro assunto triste também, a desimportância
para a qual caminhava apressado o pouco valor atual aos seus atos
heroicos do passado, ingratidão. Bagunça só, esta tal de República;
sem mais viscondes, amigos seus.
À noite sonhava: tantos meninos nas portas de rua; quem não tem
de verdade, adota no pensamento, mais fácil. Todos filhos seus e as gos-
tosas tentativas de tê-los. Imaginava nomes, lista interminável de par-
ceiras, quase todas as da vila, as mais novas com exclusão das feias.
Dia seguinte, às vezes se confundia; já não sabia se tinha filhos
ou se eram todos seus. Duas mulheres só, ou se todas da vila. Impor-
tância crescente, igual o galo Patriarca que povoara toda a região dos
Morros. Uma ou duas franguinhas, no começo, só no seu quintal,
logo, as dos terreiros vizinhos, orgulho de produtor, fama de patriarca.
Verdade num canto, em outro, as sensações prazerosas dos sonhos.
Vida curta, mais valem os sentimentos firmes que a verdade duvidosa!

Revolução lá, confusão certa por cá. Lembrança imediata da


presença de Dionísio Benitez, perto e sem pressa, no porto Tabuado,
travessia no rio Paraná, a conduzir numerosa boiada para São Paulo.
Origem era a distante Cáceres, fazenda Descalvado. Benitez e Descal-
vado, dois nomes a impor medo e respeito.
Benitez justificava a merecida fama. Argentino da província
de Corrientes, bandoleiro admirado por conhecidas façanhas, há mais
de dez anos à frente de valentes jagunços, prestando seus serviços em
diversos pontos do estado. Antigo companheiro de armas de Generoso
Ponce. Sua presença por perto preocupava, sua demora em seguir
adiante ensejava suspeitas.
Descalvado, latifúndio a se rivalizar com impérios; portugueses,
os donos primitivos se orgulhavam de possuir mais terras que o rei de
Portugal. Hoje, charqueada dos Cibils Buxáreo30, uruguaios enrique-
Marcos Faustino 147

cidos pela guerra, sangue catalão a justificar-lhes a esperteza comer-


cial. Cibils marca de carne conhecida na Europa, exportada de nosso
estado com a apreciada embalagem uruguaia.
30
30. Cibils Buxareo.. No fim do século XIX, Mesmo tomando a origem do gado
era uma numerosa e próspera família como certa, estranha a destinação. Por
uruguaia que mantinha uma eficiente
rede de distribuição de derivados de carne que não abater na moderna indústria mo-
na Europa, com a matéria-prima produzi-
da na América Latina. Em 1881, a família
vida com máquinas a vapor e instalada
adquiriu em Cáceres, junto a porto fluvial na própria fazenda Descalvado? Paga-
no rio Paraguai, uma charqueada que,
modernizada, veio a se transformar na
mento ao Benitez por serviços de sua es-
fazenda Descalvado, exportadora de toda pecialidade ou ajuda vitoriosa em movi-
sua produção com a “griffe” Cibils. Em
1895 a fazenda foi vendida para um grupo mentos revolucionários? Ou será que an-
belga, que tentou desenvolver a região gariou este gado no caminho, roubo por
nos moldes do Congo Belga, colônia afri-
cana. Em 1912, Descalvado foi vendida onde passava. Explicação mais preocu-
ao americano Percival Faquhar, cuja em- pante esta última. Aumentava o medo e
presa Brazil Landing & Cattle foi desapro-
priada pelo ditador Getúlio Vargas já na justificava a demora do bandoleiro.
Segunda Guerra Mundial. Alegre, brincalhão e ruidoso nas
saudações, o Zé Marques, conhecido mais por Bacurau, passou em
frente a farmácia. As muitas cachaças tomadas dificultavam-lhe o
equilíbrio na montaria. Fama de mulherengo, arruaceiro conhecido,
destino certo era a zona, a julgar pela hora do quase noite.
– Vai para Lá-em-Baixo, comentou o sargento Pereirinha,
concordância de todos.
Fosse viva a sua Vó Celeste, no tempo que era dona, não aceitava
semelhante comportamento desaforado. Tonicão garantia a boa or-
dem, pois o lugar era de respeito, acolhendo gente estimada. Outros
tempos, agora; que acorde curado amanhã. Pereirinha não se dava
ao trabalho. No íntimo, calculava o aumento da receita. Reparava era
nos moleques de porta da rua, podiam ser seus filhos, pela idade...

Menos de uma semana depois, a notícia de barbaridades com


a família de Nicanor, filho da finada Dona Eudócia, o Nica da Don-
dócia. Fazenda queimada, mulher e filha, retidas pelo pavor das balas,
acabaram carbonizadas na casa incendiada. Nica, mais corajoso,
escapou do tiroteio; esperto, furou o cerco de mais de vinte jagunços
e procurou proteção com coronel Castro, na vila.
148 Águas atávicas

– Coronel, escapei por graça de Deus que não se apiedou da


minha mulher e filha. O capeta do Bacurau, o Zé Marques, juntou os
peões e me atacou de surpresa, na covardia sem aviso. Desse jeito a
coisa não fica, começou a mortandade, a conta tem de aumentar,
agora com os dele. Dá um jeito, coronel, procuro conselho.
– Uai, vocês não são compadres? Eu mesmo estive no batizado
da menina; vizinhos de fazendas, divisa no córrego Figueira, quase
na barra do Santana, não é? No dia pensei, este povo dos Marques
não é boa bisca, ainda mais o tal de Bacurau. Fiquei quieto, fui con-
vidado e não consultado. Apesar de leal companheiro político, você,
Nica, não tirou opinião comigo. Tivesse perguntado, alertava claro o
amigo: fria, gentinha traiçoeira, conheço bem esta raça, melhor
guardar distância. Escolhesse outro compadre, honrasse com o convite
pessoas mais de acordo, amigos têm muitos, era só falar.
– Sendo compadre do Bacurau, pensei, ajudava a amizade,
aumentava o natural respeito de vizinho. Que nada, estrago foi grande
e pede vingança. Único conserto é acabar com ele.
Prosseguiu: – Culpado mesmo da desgraça é o Agenor, peão
meu. Tanto é que ferveu jagunço em cima do paiol onde o coitado
dormia, bala à vontade. Reação pouca, só uma espingardinha de
calibre fino, tiro de cartucho, um tiro só para cada recarga; ficou foi
crivado de bala, uma peneira só, imagino. Também, biscateiro e
falador, duas coisas que não combinam. Comeu, fica quieto, aprecia
no silêncio; mas não, tem de contar vantagem, esparramar a notícia
do malfeito. Tem gente que pensa que a fama muito ajuda com as
demais mulheres; chama a atenção, as que querem dar, procuram
macho que se divulga. Besteira, azar dele, deu no que deu. Foi se
engraçar com a Neguinha da Dona Lucinda; alerta dos amigos, cuidado
que é de estima da patroa do Bacurau, cria da família, desde pequena
na serventia da cozinha. Quando encorpou, apareceu interessado.
Casou e mudou, agregado de fazenda lá para as bandas do rio Sucuriú.
Primeira filha, segunda filha, notícias comemoradas pela Dona Lu-
cinda. Aí veio a desgraça, morte rápida do marido, nem benzedeira
dá jeito quando é cascavel. A Neguinha viúva, duas crianças passando
necessidade, sem proteção de ninguém. Dona Lucinda pediu, Bacurau
Marcos Faustino 149

consentiu; carro de boi despachado nesta lonjura toda só para buscar


a Neguinha, as meninas e a tralha quase nenhuma, pobreza de coisas.
Chegada com choros, até de Dona Lucinda, promessas de nunca mais
ir embora, pagava a salvação com ajuda na cozinha, o resto da vida;
preocupação era só na criação das filhas. Moradia separada, no rancho
do monjolo. Logo o primeiro caso, que a carne é fraca. Peão despedido
com severa advertência do Bacurau, o segundo já sem severidade, do
terceiro em diante nenhuma advertência. Não que a Neguinha não
prestasse, mas quem prova aprova, sem jeito de evitar as já conhecidas
gostosuras da cama. Bacurau fingia contrariedade, mas era só. Se
não tem remédio, remediado está, aproveitasse ele também; pouco,
só de vez em quando, desculpa de bebedeira mal curada na volta da
vila. Que ninguém contasse para a Lucinda, aí não; não ia aceitar
traição de linguarudas solidárias com a esposa; patrão era ele, que
observassem este fato.
– O filho da puta do Bacurau aproveitou para resolver outra
disputa, desavença pequena, não carecia de valentia, dava para re-
solver na conversa, documento incompleto. Papel rezava a divisa su-
bindo pelo córrego do Ramiro até sua forquilha, depois por um galho
deste até a nascente e daí seguia em linha reta até o espigão. Fosse o
galho da direita, aumenta a minha terra; fosse o outro, aumentava a
gleba dele. Cada qual escolheu o que melhor lhe apeteceu, ambos
crescendo sua propriedade. Divergência adiava a construção da cerca
de arame, gado passando de um lado para outro. Peão chiava mas a
chaleira não fervia. Reclamação surgia, falatório frequente recrimi-
nando a falta de solução. Estava assim parado o caso; prejuízo só no
aumento de serviço na busca do gado alongado, desimportância incluí-
da no salário do peão.
– Como já disse, fácil resolver, área de terra pequena para
justificar confusão, ainda mais com mortes. Aceitava o par ou ímpar,
palitinho ou outro meio qualquer de desempate, desde que sem impo-
sição ou humilhação. Bacurau não quis, escolheu a afronta e fez o
que fez, agora que aguente as consequências. Espera que vem!
Coronel tudo escutou. Calado, urdia um plano: – Nica, procura
o Benitez, ainda deve estar arranchado lá no porto Tabuado. Não vai
150 Águas atávicas

sozinho; mostra força, leva pelo menos uns vinte companheiros, em


boas montarias e armamento bem exibido. Chega primeiro, distancia-
do da turma para o homem entender logo que a visita é de paz, pede
um particular com ele, diz que vai a mando meu, coronel Castro;
pode usar meu nome. Conta esta história que você acabou de relatar
para mim. Sem gastar tempo com a Neguinha, fala mais da disputa
de terra, engrandece sua propriedade e demais possuídos. Diz que se
não fosse a covardia do Bacurau você nem estaria ali; tinha condições
de se defender de qualquer ataque, menos dos traiçoeiros. Não espe-
rava a maldade sem aviso, pois tinha o vizinho na conta de homem
honrado. Fala da sua mulher e filhas torradas no incêndio da sede da
fazenda, expressa com muita raiva o seu desejo de vingança e termina
confessando ser portador de um recado meu: ele, o Benitez, sabe o
que fazer, o que fizer está muito bem feito e tem meu apoio.
– Então o recado é este? Eu sei o que fazer e o que eu fizer está
muito bem feito e tem a gratidão dele? Perguntou Benitez.
– Perfeitamente, Nica confirmou.
– Tenho o coronel Castro na mais elevada estima e a vontade
dele para mim é ordem a ser cumprida. Vejo claro o que fazer, não
sei ainda o meu ganho, arriscando minha vida e a de meus homens,
nesta empreita inesperada.
Benitez ficou sem entender a moleza deste Nica da Dondócia,
sem providências prévias para evitar a dita surpresa. Antes da chuva
tem sempre a ventania, trovão, relâmpago, algum aviso sempre aparece;
difícil não perceber, mesmo sendo muito tapado, o que não parecia
ser o caso. Aí tem mais história, só me contaram parte dela, avaliou.
Guardou a desconfiança para aumento de preço no futuro acerto.
– Desforra para mim é o que vale, o gado que tenho passa a
ser seu. Se ainda for pouco, não posso dar o que não me pertence,
mas depois de acabar com o Bacurau, o dele fica sem dono, portanto,
aumenta o seu pagamento.
Manhã seguinte, quarenta cavaleiros do bando do Benitez
acompanhavam os vinte de Nica, em direção a Vila de Sant’Anna.

* * *
Marcos Faustino 151

Dormir com um e querer casar com outro, é confusão na certa.


Era o que fazia a Neguinha. Agenor, atrevido nas iniciativas, prefe-
rência mais antiga, era conforto na satisfação, saciava mais de perto.
Josias, novidade respeitosa, respeitosa até demais, era promessa de
futuro lar, namoro espichado de muitas visitas e nenhum carinho;
escurinho como ela, cor preferida para continuidade dos filhos. Pre-
cisava dos dois, somavam-se para ela.
Prudente, Agenor escolhia a noite conveniente. Com o Bacurau
em casa, proximidade perigosa, não dava. Cachorros do quintal latindo
acordavam o homem; previsível na suas reações, só a violência repen-
tina. Patrão distante, na farra da vila, hora boa; ninguém a indagar
por uns latidos a mais no quintal. Fácil explicação, raposinha rondando
o poleiro das galinhas, cachorro espantou logo.
Zeloso e dormindo no mesmo paiol, Josias notava as ausências
noturnas do companheiro de trabalho. Coincidência intrigante, mes-
mos dias do Bacurau fora. Rápido o estalo, a conclusão na cabeça do
ingênuo enamorado: santa Neguinha, não era com ela; safada era a
velha, Dona Lucinda. Seria possível uma coisa desta? Mas era, só po-
dia ser! O patrão não merece traição do peão ordinário. Ia contar, na
primeira oportunidade, ferrava o sem-vergonha do Agenor; ponta
de ciúme negada na cabeça, mas aceita no coração.
A oportunidade surgiu na volta do Bacurau do Lá-em-Baixo.
Mal se equilibrando no andar da vistosa mula, reluzente peitoral,
boa tralha de arreio, macio pelego vermelho, como convinha a homem
de posses. Apeou em frente a porteirinha de entrada do terreiro. Jo-
sias chegou junto, causando susto pela companhia inesperada, raiva
pela surpresa indesejada, resultando em enxurrada de palavrão.
– Nego desgraçado, não vê que estou chegando cansado da
viagem. Vem você, seu filho do capeta, tição escondido no breu da
noite, sem barulho ou aviso de nenhum tipo, parecendo traição. Escuta
aqui, seu filho da puta, quem te mandou aqui, perguntou chegando
já bem perto do peão.
– Calma, calma, seu Zé Marques, disse um Josias respeitoso,
procurando aumentar a já curta distância, afastando do perigoso bote.
152 Águas atávicas

Da traição dos outros é que venho avisar o senhor. Problema é o Age-


nor que anda abeirando muito a sua casa nas suas ausências. Lealdade
ao bom patrão é a minha obrigação, não escondo. Perdão se a hora é
imprópria para o amigo.
– Amigo uma ova, sou lá amigo de peão, pau-rodado que nin-
guém sabe de onde veio, atrevido a pensar maldade da minha santa
esposa, mãe de família, só preocupada na criação dos filhos! Bacurau
aproximando-se, Josias recuando, vagarosos. A raiva na cabeça de
Bacurau, frustração com as mulheres da vida, noite mal dormida na
farra, misturada no cheiro de pinga. Pavor na boa alma de Josias. Ra-
pidez do ato, comprido punhal de fina lâmina prateada no estômago
enterrado uma vez, duas vezes, três, lenta a quarta estocada, prazerosa,
esticada. Morre, desgraçado!
Morria. Josias obedecia à derradeira ordem. Vida inútil, sem
chance de proteção de seus distantes deuses ancestrais. Pedir justiça,
vingança, a quem? Melhor a revolta na hora certa, acabasse com a
vida de algum branquelo, queijo azedo, fugisse do humilhante cati-
veiro. Mas não, acreditou na ponderação errada, aceitou o jugo con-
tinuado da branca abolição. Tarde demais, antes que desse tempo de
uma solitária lágrima molhar seus olhos, sua vida sem sentido se esvaía.
Só o cabo do punhal do lado de fora de seu corpo, desfaçatez consu-
mada. Mais um crime sem punição.
Autoria de quem? Indagou alguém, passado o susto e a revolta
com tamanha barbaridade. Certo que só podia ser o Agenor, tinha
motivo conhecido, todos sabiam da disputa amorosa. Agora, fugiu
para a fazenda do Nica, seu padrinho sempre muito louvado por ele.
– Arreda, respeita o falecido, espantou o cachorro de focinho
avermelhado pelo sangue lambido do infeliz, poça grande junto ao
corpo inerte. Some daqui, atirando-lhe pedaço de pau e pedrinhas
de cascalho. Patrão avisado, veio ordem a ser seguida: limpassem o
corpo, fornecia a melhor roupa para o enterro no campo-santo da
fazenda, velassem o dia todo, hoje ninguém trabalha, à tardinha o
sepultamento. Amanhã, passada a emoção, tratamos do culpado, com
dispensa de autoridade de qualquer tipo, polícia, delegado ou juiz:
nas terras dele resolvia ele.
Marcos Faustino 153

O velório foi na casa do monjolo, onde a Neguinha e os dois


filhos moravam. Curiosidade das crianças, tão sem mexer o coitado
do Josias em cima da mesa; camisa, calça e botina no capricho, choros
e rezas compridas das mulheres, novidades de toalhas brancas e san-
tinhos pendurados, montoeira de gente, sem graça nenhuma. Fora
da casa, molecada de toda a fazenda em correrias de alegre algazarra.
Depois do enterro, mexericos, suspeitas e histórias reveladas,
depressa o veredicto unânime, sentença sem apelação possível: foi o
Agenor. Agravante maior era a folga do peão, ficar na vizinhança em
permanente desaforo, temor nenhum da justiça dos homens. Sumisse
no mundo, dificultasse a punição; mas não, ali perto, quase uma pro-
vocação. Quem mata um, pode querer matar outro, se a moleza for
grande; assim não podia ficar, prejudicava segurança dos demais.
Depois, encontravam-se sem querer, num boteco da vila, em algum baile
de fazenda, ou pior em caminho deserto, e aí? Agenor vinha em paz,
ou era outra covardia? Melhor prevenir, perigoso deixar como estava.
Armaram-se todos, mais de vinte homens e em expedição pu-
nitiva dirigiram-se para a fazenda vizinha, do outro lado do córrego
Figueira. Notícia chegou na frente, recado da Neguinha: foge que
vão te matar, Agenor.
– Me matar por que, qual é o caso? Eu não, nada a ver com a
morte do Josias, nem arredei o pé daqui, nem ontem nem antes de
ontem. Nica consultado, conselho prudente: “Melhor sumir por uns
tempos, deixa a poeira assentar, depois o culpado aparece”. Tarde
demais, já o bando armado aparecia. Agenor correu para o paiol
atrás de sua carabina, sem prazo de fuga. Nica depressa para dentro
de sua casa, dois ou três ajudantes mais chegados, armas dadas nas
mãos deles: “Só atira se eu atirar”, ordem bem clara. Portas e janelas
fechadas, tramelas, travas e ferrolhos passados, tudo muito bem cerrado.
Pelas frestas das paredes de madeira, a visão de quem chegava. Espreita
nervosa e silenciosa.
– O compadre Bacurau não ia fazer uma desfeita desta, fazenda
aqui é minha, cá mando eu; a justiça dele só vale de lá do rio Figueira.
Se precisar, se o compadre fizer questão, pode levar o Agenor, entrego
para evitar derramamento de sangue inocente dos demais.
154 Águas atávicas

– Chico, adianta com cuidado e procura o compadre Nica, le-


va meu recado de paz, só quero o Agenor, disse Bacurau, sóbrio e deci-
dido em pleno uso de suas faculdades maliciosas. Bacurau esqueceu
de propósito da ordem que o primeiro tiro fosse seu. Não gostava do
vizinho e desconfiava do Chico, seu próprio agregado, pé rapado em
constantes graças com sua filha mais velha. Dupla serventia no esqueci-
mento, primeiro tiro dele, ordem não dada, ordem não obedecida.
Primeiro disparo, outros vários, na direção do paiol, Agenor o
alvo. Raiva da peãozada.
– Então é assim, sem conversa, na base da bala. Vou mas levo
uma porção junto, berrou Nica, anunciando sua intenção de revidar.
Mulher, pega as crianças, leva para o fundo da casa, depressa, reúne
algumas roupas, poucas só uma ou duas trocas, dentro de saco, prepara
a fuga.
Chico parou na entrada do curral da frente, indeciso, temeroso
da reação, agora, ele mesmo, alvo fácil. A primeira bala do Nica,
pontaria nervosa, só na perna do Chico; a segunda e as seguintes dos
agregados, peneira no peito e na cabeça do infeliz. Tombou morto na
hora. Na retaguarda, total visão do campo de batalha, Bacurau gritou
a ordem de comando: – Acode na casa da sede, ajuda o Chico, mais
gente com ele. Este Nica é louco, quer morrer, morra logo, fogo em
cima dele!
Quis dizer fogo de bala, entendimento ampliado, melhor; logo a
primeira tocha complementando os tiros a queimar o telhado de sapé.
Resistência suicida, desproporcionais as forças em combate,
melhor a retirada, pensou Nicanor.
– Mulher rápido, pelos fundos; já muita fumaça, barulheira
de tiros, difícil entendimento; Nica saiu, pulou o rego e escapou pro-
tegido pela moita de bambu do quintal. Companheiros também; mu-
lher e filha medrosas, não. Sufoco da fumaça, desmaios, madei-
ramento desmoronando, ambas queimadas até a morte. Logo o fogo
tudo consumiu.
Filha e mulher devem estar escondidas neste capão de cerrado
onde estou, não adianta procurar hoje, qualquer barulho amoitam
Marcos Faustino 155

mais, evitando ruídos para não chamar a atenção dos assassinos. Manhã
seguinte da noite sem dormir, certeza da retirada dos malvados, a
revolta na visão: casa, curral, paiol, serviços de toda uma vida carbo-
nizados; mulher e filha mortas.
– Deus, rezou Nica, não peço justiça, quero é vingança. Que a
sua divina ira caia sobre quem foi capaz desta desgraça com a minha
família. Deus que tudo pode, ajudai-me nesta hora.

Vila vazia, quase sem viva alma, Benitez não encontrou nin-
guém. Fugiu quase toda a população da cidade que não era, diga-se de
passagem, muito numerosa em consequência das repetidas perturbações
da ordem, que então se verificavam no município bem como do regime
de força imposto pelos agentes do poder público. Onze carros de boi le-
vavam as munições, víveres e as bagagens dos retirantes31 para a fazenda
Perdizes do major Alves, lá para as bandas das Morangas.
Coronel Castro e companheiros de política, há muito preocu-
pados com a lida de gado nas suas afastadas fazendas, propalando
31. Pequena História de Sant’Anna do
31
nada saber, pretextavam inocência. Medo
Paranahyba, registros de dr. Wladislau negado a justificar também suas ausências.
Garcia Gomes, atualizados por Leal
de Queiroz, Paranaíba, 1949. Sargento Pereira, comandante do des-
tacamento local encarregado de zelar pela ordem pública, precaução
necessária, já estava em distantes diligências policiais, escapando assim
do confronto desigual e preservando a integridade física de seus dois
únicos comandados. Mantinha sempre disponível algumas ordens de
captura, bandidos ordinários sem perigo, caso precisasse sumir por
uns tempos. Preferência pelo mais improvável encontro, Pereirinha
escolheu o destino mais conveniente, anunciou o seu dever e saiu em
missão de captura. Os dois auxiliares, necessidade de amparar o chefe,
não podiam negar-lhe a solidariedade da companhia.
– Lembram do anúncio da Câmara, começo da guerra, ban-
deirinhas nas lanças de bambu, eu ainda era o cabo Pereira, dez ca-
valeiros esparramados por este sertão levando notícias dos aconteci-
mentos? Lembraram e riram.
– Lembram que lá pelos lados do rio Indaiá mora muita gente
miúda, hospitaleira, gado ralo, sem interesse para a arrecadação de
156 Águas atávicas

Benitez, raras visitas bem recebidas. Seguro para nós, comida boa e
repouso garantido.
No caminho, o sargento quis recompensar os subordinados,
maravilhando-os com suas histórias.
– Vez que eu, no tiro de cartucheira, abati uma vaca e dezoito
passarinhos com um disparo só. Acho que até já contei este caso, mas
posso repetir para melhor lembrança dos amigos. Pois é, foi na saída
de Coxim. Missão nossa descobrir o caminho para a tropa que vinha
atrás. Sem mantimento de nenhum tipo, perdido na travessia de um
rio, avançando cuidadoso, perigo de embate com o inimigo, arma de
fogo com uso restrito para estampido não revelar nossa posição, laço
de gado ninguém pensou em levar, dia inteirinho seguindo uma vaca,
como caçador. Já tinha a danada de vista, espera cuidadosa na mira.
Sem aviso, tiro irresponsável espantou a comida certa. Era um soldado
com prosa conhecida de mentiroso, falsa fama de bom atirador. Vaca
sumiu na capoeira. Mateiro bom que sempre fui, encontrei a fujona.
Esperei a oportunidade. Escurecendo, tropa afoita me apressando,
“vai logo sargento, mata nossa fome, acerta essa vaca”. Percebi melhor
situação, um bando de passarinhos perto da vaca. Caso possível, acertar
aves e animal, só preparando cartucho adequado: um chumbo grosso
para a vaca, chumbinhos miúdos para os passarinhos, bastante pólvora
para mais velocidade, economia de barulho, um só ao invés de dois
disparos, por causa dos paraguaios próximos. Caprichoso, ajeitei tudo
com muito carinho, espoleta, pólvora, chumbo e chumbinhos, rolha
de pano. Saraivada de palavrão a azucrinar meus ouvidos, pressa dos
companheiros. De minha parte, mantive a calma. Pronto o cartucho,
faltava o ângulo, posição certa para o disparo certeiro. Serenidade
minha, quase desespero dos outros. Demora mas aparece, na mesma
linha pássaros e vaca: disparo macio; vaca prancheada e dezoito
pombas para a panela. Recebi muitos cumprimentos, merecia mesmo,
finalizou Pereirinha, evitando a falsa modéstia. Alegres risadas enco-
briam o deboche incrédulo dos subalternos.
Povinho besta, pensou Pereirinha. Duvidar do quê? Que dife-
rença faz se um tiro ou dois? Chumbo grosso em um, fino no outro.
Caso mais ajeitado se juntar num só disparo. Rápidas lembranças do
Marcos Faustino 157

major Melo Taques, noites em sua venda, assuntos bons de ouvir,


mas... como era mentiroso o major, concluiu.
À noite, as preocupações. Quando almoçava uma, não mais
jantava a outra, falta de apetite. Invertendo a ordem, o mesmo resul-
tado. Decaindo a vontade, dores aqui dores ali aparecendo, cansaço
sem explicação. Jejuava mais amiúde. Ao dia sim dia não, seguiu-se o
dois não um sim, três, quatro... não e um sim! Breve o semanal, medo
do quinzenal; depois do mensal nunca mais, receava. Temia as fra-
quezas próprias da idade.
De dia, acordado, já não se confundia. É de sonhos que a vida
é feita, entre um e outro se esvai nossa curta existência, filosofava Pe-
reirinha, frase ouvida de Taunay que também a emprestara de outro.
Eram os filhos, todos chamando de pai quem nunca pôde assim chamar
alguém. Muitas mães, todas deles, mulheres agora suas. Mãe sua, só
uma, santa Madalena. Melhor esta realidade.
Crença generalizada de que Benitez agia amparado pelo coro-
nel Castro e amigos no poder em Cuiabá. Falta de resistência aos ca-
valeiros armados revelava o respaldo do governo estadual.
Nica indicou o caminho do Figueira, lugar da sua fazenda e do
inimigo a ser justiçado. Lá também, já não havia mais ninguém.
Fugiram todos os amigos do Bacurau, fazendeiros, peões e
agregados, para a fazenda Perdizes do major Alves, longe, no ribeirão
das Morangas, afluente do rio Sucuriú. Contados mais de duzentos
homens bem armados, à espera de Benitez. Que o gringo trouxesse
os reforços deixados no porto Tabuado, só os seus sessenta combatentes
que entraram na vila mal dariam para o começo da briga, vanglo-
riavam-se os arranchados na fazenda do major.
Nica quis bancar o esperto. Mandou misturar seu gado com o
do Bacurau e em seguida esparramar todo o duplo rebanho nos mais
distantes e sujos pastos, dificultando assim a pilhagem de Benitez.
O sério da questão é que não se trabalha de graça, muito menos
o Benitez que sentenciou: sem jeito de levar a empreita adiante, paro
por aqui. Pelo que fiz, espantando todo mundo, quero receber.
– Com todo o respeito, meu comandante, respondeu Nica,
interesse meu é a justiça para os assassinos da minha família. Até
158 Águas atávicas

agora não peguei nenhum. Meu gado sumiu, é verdade, mas sei onde
tem mais aqui por perto, de gente que tem culpa comigo. Faça cumprir
a lei que eu providencio os recursos.
– Muito bem, respondeu Benitez, que tinha alguma prática
anterior em substituir autoridades nesta nova República dos Coronéis.
Manda a Câmara enviar ofício ao... nem sei quem está mandando
agora, põe aí: Excelentíssimo Senhor Cidadão Presidente do Estado de
Mato Grosso, achando-se impedido o Intendente Geral do Município,
assassinado o primeiro-vice e mudado o segundo, a Câmara nomeou o
Vereador Nicanor, para exercer o cargo interinamente. Ainda não se
acharam diversos livros, como o da receita-e-despesa e os documentos de
dinheiro que estavam na casa do Intendente impedido. Com a retirada
de todo o povo da cidade, falta ainda pessoal idôneo para diversos
empregos. Os habitantes da cidade que se retiraram induzidos por
maldosos comentários, não querem voltar, e as casas que foram
arrombadas, começam a se deteriorar. As plantações e os gados, além
dos que conduziram os revolucionários para além do rio Paraná, perecem
a mingua de trato.
– Mas, comandante, eu nem sou vereador como posso passar a
intendente. Quem vai assinar este ofício? Nica perguntou.
– Intendente e vereador, fica sendo você agora, Benitez retru-
cou com firmeza. Você assina o ofício, é claro; afinal é o intendente,
autoridade máxima do município, respondeu o comandante, res-
paldado na força da mais genuína lógica. Informa aí também que
foram destinadas diversas pequenas quantias para gratificar aos
cidadãos pobres que, abandonado seus lares vieram colocar-se ao nosso
lado na defesa dos brios ofendidos e na restauração da justiça. Afinal,
meus homens precisam de pagamento para seus estimados serviços,
e nada ganhando além da vazia promessa da entrega de seu gado,
Nica, é justo que o custeio desta força revolucionária seja levado à
alçada pública.
Achando-se o chefe do posto policial, sargento Pereira, em
lugar incerto e desconhecido e faltando pessoal idôneo à expedição
de ordens competentes, foi Manuel Marques, irmão do Bacurau, preso
sem mais formalidades, quando tentava escapar para Goiás e imedia-
Marcos Faustino 159

tamente entregue a pessoal de confiança para o devido interrogatório.


Laço comprido sob seus braços e circundando a avantajada barriga;
do alto da ponte do rio Santana, afrouxava a corda, o homem afogava,
puxando, o coitado respirava; breve, a confissão do paradeiro de
gado do Nica e do mano Bacurau. Segredo revelado, sem serventia
futura: laço solto, correnteza levando, o coitado lutando para não
submergir de vez e a diversão permitida aos capangas: tiro ao alvo.
– Podiam ao menos avisar que o homem gostava de nadar; sal-
vava o meu laço, reclamou o jagunço que o emprestara para a sinistra
brincadeira.
Em breve o estoque do gado disponível para arrecadação se
esgotou. Só pequenos lotes chegavam ao porto Tabuado, pouco
acrescentando ao grande rebanho aguardando para cruzar o cauda-
loso rio Paraná com destino a Rio Preto, praça
32
32. Tenente Mamede e major
Idelfonso. Com a vitória de Genero- boa para a venda de animais em pé.
so Ponce, na reposição do governador
Murtinho, em Cuiabá, estes militares
Sem serventia futura, Nica foi fuzilado,
contrários se renderam, sendo em seu corpo lançado ao rio. Besta confiança
seguida trucidados quando eram nas pessoas erradas, Benitez recordava do
levados à prisão.
tenente Mamede e major Idelfonso32, na
rendição de revolucionários em Cuiabá para Generoso Ponce Diante
de um ofício de garantia de vida renderam-se Mamede e Idelfonso que
desarmados e escoltados por seus companheiros foram estrangulados a
caminho de seu quartel para o Arsenal de Guerra, por correntinos e
paraguaios para este fim contratados, sendo os cadáveres, saqueados,
despidos e por fim arrastados.
Os duzentos cavaleiros reunidos na fazenda do major Alves
tinham a convicção de que se partissem para o combate, o Benitez pulava
o rio Paraná e desaparecia São Paulo adentro; se dispersassem, ficavam
à mercê do adversário. Permaneceram acantonados na fazenda até a
efetiva confirmação da retirada do bandoleiro. Só quando o merce-
nário e seus jagunços partiram para São Paulo, o major Alves passou
a calcular suas próprias despesas com a comida farta para tantos amigos.
A numerosa tropa debandou logo, com a saudação de despedida.
– Nesta hora difícil, não faço conta das despesas para o sustento
dos companheiros, mantimentos a minha despensa ainda tem de sobra.
160 Águas atávicas

Reses gordas a menos nos pastos têm pouco valor comparado ao apreço
de todos vocês que aqui vieram procurar abrigo e proteção nesta
fazenda. A união demonstrada foi a única força a garantir nossas
vidas e propriedades. Que sumam para o inferno os bandidos que até
há pouco infestavam a nossa região. Aplausos e entusiásticos “Viva o
major”, alguns tiros para cima na falta de festivos rojões.
Sem Benitez, a região foi voltando ao normal, casas da vila reocu-
padas, comércio ressuscitando, intendência reanimada por novo ocupante.
Sem se dar conta, o correntino levara algumas bois do major Alves.
Poucos, mas roubados de poderoso homem. Dívida pecuniária
pequena, mas de grande valor moral, ofensa de difícil esquecimento.
Major Alves e Bacurau em Rio Preto, tentando recuperar o
gado roubado por Benitez. Com as autoridades da cidade, nenhuma
vantagem. Major se exaspera, prossegue até a capital paulista. De
São Carlos em diante, o trem de ferro, 34 34. Francisco de Paula Rodrigues Alves
poderosa invenção a devorar célere os (1848-1919) foi governador de São Paulo
por três vezes e presidente da República
muitos quilômetros de distância. É deste por duas. Riquíssimo plantador de café,
tipo de transporte que carece nosso esta- último paulista a ocupar a presidência
em 1919, na chamada República Velha
do, pedido já formulado por diversos par- caracterizada pela política do café (São
lamentares, em especial o general Osório Paulo) com leite (Minas Gerais) e que
durou até 1930 com a ascensão do gaúcho
que, herói de guerra, reconhece o valor Getúlio Vargas. Neste período, o poder se
estratégico de linha férrea ligando São expressava pela “Política dos Governa-
dores” , que podiam destituir deputados
Paulo a Corumbá. A facilidade de supri- opositores. Quando no governo estadual,
mentos e a rapidez no transporte de tropa Rodrigues Alves enviou tropas para o
oeste paulista por temer que tumultos em
teriam desencorajado a aventura de So- Paranaíba (MS), pudessem afetar São
lano López. Menor dispêndio, nenhuma Paulo, no início do século XX.
vida perdida. Com a estrada feita, o suor fica; com a guerra, só desper-
dício, valiosos recursos afogados em muito sangue.
Na capital, o major foi recebido pelo governador do Estado,
cortesia do plantador de café e parente Rodrigues Alves34. Retornou
a Rio Preto com promessas de enérgicas providências para a recupe-
ração do gado e a prisão dos facínoras. Balizamento claro do gover-
nador: não queria que bandoleiros e malfeitores foragidos de outras
plagas fizessem do estado de São Paulo o esconderijo de seus crimes.
Logo a notícia se esparramou, Benitez morto por bala de policial,
Marcos Faustino 161

gado recuperado e vendido na região, dinheiro no bolso dos donos


primitivos: major Alves e Bacurau.
A paz voltou a reinar. Neste ambiente, a vida prosseguia.

Freguês costumeiro nas reuniões vespertinas da farmácia, o


padre Jacques era o substituto do finado vigário Sales nas funções pa-
roquiais. Nascera em Cavarzere, região de Veneza, na Itália. Semina-
rista em Aix-en-Provence, sul da França, seu nome sugerindo, Frère
Jacques, os moradores da vila tinham-no por francês. Não que co-
nhecessem a diferença entre francês ou italiano, tudo estrangeiro, de
longe, das europas.
Estranheza das carolas, o novo padre tinha novidades nas suas
ideias, diziam contrariadas devotas. Com o tempo estas esquisitices
somem, torciam. Talvez só discussões acadêmicas de jovens semi-
naristas interrompidas por sua vinda para o Brasil, opinavam os mais
letrados, assuntos da moda lá pelas europas.
Rebatia o frei: coisas novas ditadas pela sede de inovações que
há muito tempo se apoderou das sociedades e as têm em febril agitação.
Sede de inovações? Onde o padre viu isso? Só se for por lá, aqui não.
Febril agitação? Vai ver o padre anda doente, pegou maleita!
O frei insistia em suas esquisitices. Os novos tempos exigiam
uma Igreja que não se contenta só em esclarecer seus ensinamentos,
mas também se esforça para regular a vida e os costumes através de ins-
tituições sensíveis à sorte dos pobres. Regular a vida e os costumes? Só
se forem os costumes e a vida das moças que não arrumam casamento!
Pobres sem sorte têm aos montes, precisam mesmo de instituições
sensíveis: orfanatos, hospitais, santas casas com freiras a cuidar de
doentes. Aí está certo, boa coisa! Vai ver é isso!
Há que se considerar a influência da riqueza nas mãos de um
pequeno número e a indigência da multidão. Agora acertou, para acabar
com a multidão de indigentes, quem tem a riqueza nas mãos, precisa
ter influência, opinavam os mais graúdos.
Entretanto, o padre a todos cativava com sua simpatia. Ria sur-
preso com as absurdas conclusões às suas ideias, o que era entendido
como aprovação aos comentários apresentados.
162 Águas atávicas

Em assuntos locais pouco ou quase nada opinava, gostava mesmo


era de assuntos de pouco interesse aos frequentadores da farmácia
do dr. Neves.
Infalibilidade papal, novo dogma recém-proclamado. Argu-
mentos contrários e a favor, tudo na mesma cabeça do padre. Infalibi
o quê? Credo, demorou a conclusão de que o papa não erra quando
opina em assuntos de fé. É isto? Quase dois mil anos pensando, pensa
devagar demais, falou um mais desbocado. Fica quieto, pode estar
ofendendo o Papa, seu herege, Deus te castiga, opinou outro.
– Roma locuta, causa finita. Se é dogma não há mais discussão,
questão de fé, encerrava o padre, no que era entendido por todos,
respeitosamente, como lição de catecismo.
O padre exaltava-se com seus próprios comentários sobre a reu-
nificação de sua terra natal, a Itália. Simpáticas referências ao patrício
Garibaldi, que lutara no Brasil, não na Guerra do Paraguai, antes
numa revolta no sul, esclarecia. Tinha também o caso da bela Anita,
brasileira a morrer na Itália, lutando ao lado do marido Garibaldi.
Neste caso, apoio na memória dos mais velhos: era o mesmo caso
contado pelo antigo dono deste comércio, lembranças do major Melo
Taques. Alguém comentou também sobre um certo italiano do realejo.
– Virou verdade, o padre falou a mesma coisa. Mais um fato a
comprovar as aparentes fantasias do major. Padre Jacques lamentava,
entretanto, que o bravo casal de idealistas tivesse colaborado para a
diminuição dos territórios do papa. Em compensação ajudaram a reuni-
ficar sua pátria italiana, mesmo sob reinado e não a sonhada república.
Haviam também constantes referências à preocupação do Papa
Leão XIII à situação dos operários nas fábricas, à humilhante pobreza
em que vivia a maioria da população. Entretanto, permanecia a defesa
da propriedade particular como recompensa pelo esforço individual.
Concordância geral na defesa da propriedade. Direito divino susten-
tavam alguns, prova da tal infalibilidade papal recentemente procla-
mada, opinou um mais convicto.
Eram estas as coisas novas, Rerum Novarum, assuntos tidos,
poucas vezes, como naturais em um condutor de almas, geralmente
Marcos Faustino 163

entendidos como claros temas políticos. Inteligente e atento, o padre


sabia voltar a assuntos mais locais, ou pelo menos tinha a intenção,
quando a generalidade de seus comentários ameaçava o interesse de
sua fala.
Pereirinha matutava “mania deste povo torcer a fala alheia,
trocando o significado. As palavras eram do padre, a frase de quem
queria mudar o sentido do afirmado”.
– Li La Retraite de la Lagune, disse o padre dirigindo-se a Pe-
reirinha. Seu amigo Taunay escreve muito bem em francês, talvez
algum dia o livro seja traduzido para o português e possa ser lido por
vocês. Dramático relato de tragédia militar, a Retirada de Laguna, no
meio do drama maior de uma guerra absurda entre vizinhos pobres.
Finalizando, simpático a todos os presentes, a respeito da tran-
quilidade reinante na vila, usou a sua incompreensível língua de se-
minarista. A paz que reina na nossa vila deverá ser per omnia secula
seculorum.
Reina a paz. Uma paz nervosa que não decorre da tranquilidade
dos espíritos, mas do cansaço e das provações. Há desânimo, e ao mesmo
tempo, ávidas preocupações de restaurar energias combalidas e fortunas
arruinadas. Prevalecem e se avolumam ódios antigos. Os chefes políticos
já não são, como outrora, simples adversários, mas inimigos rancorosos
e irreconciliáveis. Nos céus de Sant’Anna há prenúncios de borrasca.
A paz durou dois anos em vez dos séculos almejados pelo padre.
Pereirinha tinha mudado para a beira do córrego da vila, lá
embaixo. Casa separada para ele e Imbé, mas vizinha do Lá-em-
-Baixo. Chácaras de vazios separando as duas construções, os acessos
se faziam por caminhos separados, como convinha às diferentes
finalidades.
Paca, tatu, cotia não. Barulho retumbante de majestoso salto,
altíssima cachoeira; depois, Morangas, Indáia, Jararaca sim, Sucuriú
engolindo as águas de todos os afluentes. Bichos, frutas, palmitos, cobras
e gente, longa serpente em sucessivas voltas, rastejo rápido à procura
do Rio Paraná, vai o Rio Sucuriú disseminando a discórdia futura,
letal veneno humano.
Marcos Faustino 165

Bravura feminina

Primeiro foi a Imbé que parou de ir às missas; desanimou.


Muitos olhares, desconfiança das mulheres. Justificavam a hostilidade:
índia não respeita marido das outras, costumes diferentes, fé só de
fingimento, melhor ficar em casa ao invés de exibir a formosura na
igreja; distrai, tira a atenção do sagrado, fuxicavam as carolas.
Imbé gostava mesmo era das histórias do padre contadas na
missa. Algumas lembravam as de sua gente das florestas. Noé e os ca-
sais de animais salvos da chuvarada na arca abençoada; inundação
total, destruição geral provocada pelos pecados da carne. O ramo da
árvore no bico do primeiro pássaro atrevido a levantar voo depois de
quarenta dias, o arco-íris da aliança divina com seus descendentes.
Parecido com o imenso fogaréu que destruiu a terra, trazendo depois
chuva sem parar; todos morrendo, menos o Karaí e a sua tia namorada
que treparam na palmeira. Água subindo, palmeira crescendo mais
depressa, salvando o casal. Noé se safou por ser temente e obediente
a Deus. Karaí, ao contrário, se salvou por igualar-se aos deuses, atre-
vido, sem regras nem proibições. Povoaram toda terra novamente.
Depois Pereirinha decretou: – Se ela não vai, também não vou.
Ambos passaram a rezar em casa, no começo. Logo esqueceram as
orações. Padre Jacques notou a ausência do casal nas missas. Razões
apresentadas pelas carolas não convenceram. Apareceu sem anúncio,
lamentou a falta à santa missa, cobrou devoção. Respeitosa, a índia
respondeu: – História que eu gostava de ouvir, era a de Moisés
conduzindo o povo em busca da Terra Prometida: Dize aos filhos de
Israel que marchem. As muitas mágicas para provar o conhecimento,
a fala com os deuses. O pedaço de cipó transformado em cobra na
presença de muita gente, na frente de um rei distante de nós, do
outro lado da grande água, para lá de onde vinham os negros. O
166 Águas atávicas

feitiço das sete pragas para convencer o inimigo a deixar seu povo
partir. A separação das águas para a passagem dos seus e a destruição
dos perseguidores em seguida, com o fim do encanto. Moisés, um
grande Karaí.
O padre pensou: todo o esforço de evangelização, desde os je-
suítas das Missões até os nossos dias, resultar no reforço de crenças
indígenas. Talvez enganara-se ao tomar como certo que os índios não
possuíam uma religião, o que parecia facilitar o ensinamento da fé
católica. Entretanto, a sua curiosidade nas semelhanças apontadas o
emudeceu. Deixou que a índia prosseguisse.
– Mas que terra era esta que Moisés procurava? Perguntei há
muitos anos atrás na aula de catecismo, quando era ainda menininha.
Resposta: o lugar era Canaã, onde jorrava leite e mel, a comida, maná,
caía do céu. Vida de acordo com os mandamentos, sem pecado, sem
mal. Nova e eterna aliança com Deus. Deu errado, Moisés morreu
antes de chegar a tal terra, adoração ao bezerro de ouro, contrariedade
às leis de Deus, o pecado, o mal.
– Canaã, parecida com a Terra sem Males. Monte de árvores
intocadas, onde os animais procuram as flechas e o milho cresce sozi-
nho, comida garantida sem trabalho, território virgem, intacta floresta
dos antigos, espaço para o exercício da nossa maneira de ser. Cami-
nhada constante, sem permanência de lugar, a procura prazerosa de
abundantes caças, comida farta, trabalho nenhum.
– Outra história bonita era a de São Tomé, Pai Tomé, primeiro
padre que apareceu por aqui. Muitos caminhos, peabiru, em direção
a água grande, ao mar.
Procurando entender o imaginário da índia, na cabeça do pa-
dre surgiram imagens do Paraíso Perdido, do Jardim do Éden. Pensou,
talvez, simples desejo de retornar ao modo de seus ancestrais, a feli-
cidade primitiva da imensidão das terras, sem concorrência de espa-
nhóis e portugueses, bem coletivo de uso exclusivo dos índios.
Padre veste saia, mas é homem. Marido pode não gostar desta
conversa sem ele, Imbé então resolveu: – O senhor fica aqui na sala
que meu marido já vem. Enquanto isso preparo o café na cozinha.
Marcos Faustino 167

Da janela gritou algumas vezes o nome do marido que, longe, não


ouviu. Café pronto e servido, Pereirinha sem aparecer, padre Jacques
falou, dirigindo-se já para a saída: – Então espero a senhora e o marido
na missa, domingo que vem.
Padre longe, porta fechada, cadê o Pereirinha? Foi atrás, pro-
curando pelo quintal. Perto da bananeira, esforço de cortar o cacho,
marido exausto, cansado, dores no peito. Aguardou longo tempo, dor
passando, agora mais fraca, vamos para dentro, descansa que melhora.
– Padre pediu para a gente ir à missa dele.
– Domingo nós vamos, encerrou Pereirinha já no quarto.
35
35. Coronel Antônio Paes de Barros, com As reuniões vespertinas na farmá-
sua Usina Itaici, foi exemplo de industrial
visionário. Generoso Ponce e Murtinhos
cia do dr. Neves continuavam a única ati-
já haviam deposto o primeiro governador vidade social da vila. Na calçada, rente
do estado, Antônio Maria Coelho, reposto
o segundo, José Murtinho. Em seguida a
às portas de entrada, os mesmos mole-
dupla se desentendeu, os Murtinhos apoi- ques, singelos enfeites, continuavam a
ados pelas armas de Totó Paes “anularam”
eleição vencida por correligionário de revelar a importância dos presentes.
Generoso Ponce e empossaram outro
governador, Antônio Pedro de Barros,
De Cuiabá, o coronel Totó Paes35,
agora governador do estado, mandou pa-
vencedor da “nova” eleição adrede con-
vocada. Ao debelar um foco de insurgên-
ra Sant’Anna o parente e correligionário
cia em usina de seu próprio irmão, Totó
Olímpio Ribeiro. O numeroso contin-
Paes foi responsabilizado pelo massacre
da Baía do Garcez, dezessete cadáveres.
gente policial que o acompanhava dava
Com prestígio assim angariado e apoiado
pelos Murtinhos venceu tranquila elei-
o necessário respaldo aos plenos poderes
ção, sendo empossado sem divergências.
políticos de que fora investido na missão
No governo desagradou aos Murtinhos que
voltaram a se unir a Generoso Ponce, agora
governamental de assegurar a continui-
com apoio do coronel Pedro Celestino, o
dade do sossego local. Sargento Pereira e
que provoca sua destituição por nova “re-
volução”. È assassinado (1906) em se-
seus dois comandados foram reduzidos a
guida com dois tiros. Generoso Ponce as-
vigias do prédio da intendência, sem ne-
sumiu e depois Pedro Celestino Correia
da Costa é eleito governador..
cessidade de armas, mas sem prejuízo dos
seus vencimentos, detalhe significativo que resultou na imediata
aceitação da menor responsabilidade, já que vinha acompanhada de
menos trabalho.
– Totó Paes é o progresso. O homem é incansável, levou o nome
do nosso estado até para uma exposição internacional nos Estados
Unidos, numa tal cidade de São Luís. Sua Usina Itaici é um primor,
168 Águas atávicas

máquinas importadas diretamente da Alemanha, eletricidade própria


e tudo, disse um.
– Conversa, rebateu outro. Quem trabalha na sua usina de
açúcar recebe em dinheiro que só vale dentro da fazenda. Trabalho
escravo. Foi é passear no estrangeiro com 36
36. Percival Farquhar (1864-1953),
nosso dinheiro, procurar sócio para ele. engenheiro de Yale, EUA, foi o maior in-
vestidor estrangeiro no início do século
Foi atrás de americanos arrojados, cheios XX, no Brasil. Quase todos os ativos físicos
da grana, Sindicato Farquhar36. Conver- de suas numerosas empresas se deterioram
rapidamente (Mineração de Ferro em
seira de escoar riquezas do norte do esta- Itabira, MG, Ferrovia São Paulo-Rio Grande
do passando pela Amazônia. A estrada de do Sul, Sorocaba Railway, Grande Hotel
de Guarujá, SP), muitos hoje sendo con-
ferro Madeira-Mamoré já teve sua cons- siderados desastrosos passivos históricos
trução iniciada. Até a pobre da Bolívia (Estrada de Ferro Madeira- Mamoré, na
Amazônia, e a Madeireira do Contestado,
vem pagando pela estrada, deu um peda- em Santa Catarina). A seu favor ficaram
ção de terra, o nosso Território do Acre, as pioneiras Rio Light e a Companhia
Telefônica Brasileira.
ganhou até agora só um cavalo, dizem. 35 35. Antônio Moreira César(1850-1897),
Objetivo é chegar até ao oceano Atlântico filho de um padre, foi militar brasileiro
protagonista de episódios violentos em sua
e de lá ao resto do mundo. careira. Ao combater a Revolução Fede-
– Nada disso, retrucou o primeiro. ralista, no sul do país, ocorreu o Massacre
de Anhatomirim, em Florianópolis, donde
Tem muitos intelectuais, escritores, jorna- lhe veio o apelido de “corta-cabeças”. Co-
listas, gente capaz de ideias novas junto mandou o fracassado terceiro ataque a
Canudos, vindo a falecer devido a feri-
do Totó Paes. mentos dos seguidores do místico sertanejo
– Cambada de fresco, gente deso- Antônio Conselheiro.
cupada, isto sim! Certos estão os Murtinhos, apoiando no sul de nosso
estado a Companhia Mate Laranjeira. Mundaréu de hectares, perto
do milhão, muito mate nativo, ocupação farta para índios e paraguaios,
catadores das folhas. Por último, vem aparecendo uma gauchada atre-
vida, praga nociva, querendo até a posse de pequenos lotes de terra.
Fora com estes gaúchos, tudo criador de caso. Só aprontam confusão,
a última deles, uma tal de Revolução Federalista, maragatos contra
chimangos. Terminou com muitas degolas, comandante Moreira
César37, o corta-pescoço, matou muitos em Santa Catarina, o Massacre
de Anhatomirim.
A citação ao corta-pescoço chamou a atenção de frei Jacques.
O mesmo comandante enviado para fracassada tentativa de arrasar
a vila de Canudos, no distante nordeste brasileiro. Rápidas na memória
Marcos Faustino 169

do padre, as lembranças dos fatos. A sua preferência pelos místicos e


fanáticos em sua miserável ignorância, mas homens de santa intenção,
tementes a Deus. Frei simpatizava com eles, sem entender a posição
da mais alta hierarquia da Igreja. Nada dizia por medo dos superiores
eclesiásticos; talvez não fosse bem informado das verdadeiras causas
do sangrento conflito, reconhecia com a humildade que jurara ter ao
ser ordenado padre. Mudo estava, mudo continuou. Pensamento nin-
guém controla, o do padre estava na gauchada atrevida, de curta
menção. Pequenos lotes de terra queriam. Porque não? Na sua Itália,
muitos viviam em área diminuta; aqui, imensidão de hectares ainda
era insuficiente para uns poucos. Longe de praga nociva, talvez ideia
a se alastrar no futuro, hoje só semente: a terra para quem nela tra-
balha. O caso já estava criado, graças a esses gaúchos. No seu canto,
também mudo, Pereirinha pensava no terreno prometido pelo inten-
dente, lei do imperador alegou na época, quando queria um voluntário
para a guerra. Depois, o terreninho até hoje na promessa. Ligeira
impressão do padre, na cabeça dele e na de Pereirinha, pensamentos
semelhantes. Mudos estavam, mudos continuaram.

– Sei não, mas parece que a coisa anda feia para o lado de Co-
rumbá. Agitação com a volta do Generoso Ponce e dr. Correia da
Costa36 do exílio em Assunção, no Paraguai. Jun-
38
38. Antônio Correia da Costa,
engenheiro, ligado aos Murti-
taram as forças com os recentes adversários, os
nho e Generoso Ponce, acom- Murtinhos, criando uma frente política chamada
panhou este quando no exílio Coligação. Fato marcante foi a derrota genera-
em Assunção, Paraguai, onde
editavam jornal oposicionista lizada dos partidários de Totó Paes nas últimas
“A Reação”, distribuído em eleições para as intendências, Câmaras Munici-
Mato Grosso. Foi governador pais e Assembleia Legislativa. A Coligação oposi-
do estado de 1895-1898.
cionista venceu em quase todos os lugares. Insa-
tisfação com os desmandos do governo aparecendo nas urnas também
para o Senado e Câmara Federal. Do jeito que a coisa vai, Totó não
termina o mandato, mesmo com o apoio do presidente da república.
A notícia por todos esperada: revolução. Generoso Ponce saiu
de Corumbá, comandando a “Força Naval Libertadora”, dez vapores,
vinte chatas e cerca de quinhentos homens, subiu o rio Paraguai em
170 Águas atávicas

direção a Cuiabá, recebendo adesões por onde passava. Chegou a


capital com mais de dois mil homens. Do norte, em seu apoio, o coronel
Pedro Celestino38 veio com mais de mil pessoas armadas, a “Coluna
do Norte”. Totó Paes fugiu para a Fábrica de 37 37. Coronel Pedro Celestino Correia
Pólvora, região do Coxipó, onde se julgava da Costa (1860-1932) foi duas vezes
governador do estado. Este mesmo
sob a proteção do exército. Governo Federal sobrenome já havia ocupado a pre-
enviou reforços, saídos do Rio Grande, muito sidência da província, no império. Até
meados do século XX, dois outros da
longe, não chegaram a tempo. Um tiro no família foram governadores em qua-
peito sugerindo suicídio, outro também no tro mandatos, sendo o último o dr.
Fernando Correia da Costa, médico,
peito negando a sugestão, fim do Totó. Desfile prefeito de Campo Grande (1947) e
da vitória foi na Praça do Arsenal de Guerra, filho de Pedro Celestino.
com numerosos populares aplaudindo. O vice-presidente eleito com
Totó Paes, o coronel Pedro Osório, gente de Generoso Ponce, assumiu
a administração do estado.

Confusão lá, revolução certa por cá, a paz terminada. Coronel


Castro discreto, ativo só nos planejamentos
Acabasse com o major Alves, arrumava tudo, resolvia um mun-
daréu de problemas. A executante da punição: Capitoa Paraguaia e
seu bando. Notícias de tropeiros davam conta da presença dela, lá
para as bandas do espigão além do rio Sucuriú. Emissário de confiança
enviado, viajando à noite e amoitando durante o dia, bases do serviço
acertadas, caro mas compensa. Combinado: sem contraordem do co-
ronel dentro de quinze dias, negócio fechado, ela, a Capitoa Paraguaia,
escolhia dia e hora mais no jeito. Casca do ovo cada vez mais fina, a
traiçoeira serpente crescendo, prestes a romper a delgada proteção
que ocultava seu veneno. Seu nome oficial Juanita, porém mais co-
nhecida por Capitoa Paraguaia, ou Ruanita Tomba-Homem.
Ligeira, cascos de sua montaria mal encostando no chão, pressa
desconfiada na travessia da mata, lá ia a Capitoa Paraguaia à frente
de seus jagunços temidos, na estrada que, para além do Sucuriú, se-
guia para Sant’Anna. Botas compridas e grandes rosetas de espora
prateada. Perna para cada lado no arreio, vestido rodado de pano de
muitas cores por sobre a calça comprida de cor branca, quando la-
vada. Vistosa, bem conservada e limpa, a casaca vermelha do valoroso
Marcos Faustino 171

exército paraguaio, galões e bordados antigos do tempo da guerra,


patente de capitão a justificar o adotado nome. Duas winchester calibre
44 atravessadas nas costas, uma de cano mais curto, favorecendo a
destreza, para as necessidades de mais perto, outra normal para alvos
mais distantes, pontaria mais demorada. Na frente, amassando avolu-
mados peitos, em cruz, duas cartucheiras de couro cheias de reluzentes
balas novas. Na gorda cintura, perímetro de balas menores, legítimo
Smith & Weston de estimação, calibre 38, cano de seis polegadas.
Árvores a ralear na transição do capão de mato para arbustos
espaçados, por fim, a plana campina permitindo visão distante; ausente
a oportunidade da tocaia traiçoeira. Cessa o galope, passa ao trote,
em seguida a marcha demorada, lenta, arrastada; descanso para os
animais, relaxo para seus espertos companheiros de arma, Ruanita
despreocupada em distantes devaneios. Campos abertos, planícies da
sua terra natal, Encarnación, margem do rio Paraná, lonjura de léguas
sem conta, lembranças de quase quarenta anos atrás.
Primeira infância feliz, curto período a merecer doces recorda-
ções. Pai orgulhoso da farda, quase guarda pessoal, próximo de El
Supremo. Mãe, importante nos serviços domésticos, honra maior servir
Madame Lynch. Juanita e dois irmãos assombrados pelos luxos e
importâncias das pessoas, seguiam a mãe nos afazeres, ajudavam.
Outros meninos, distantes nas roupas ricas, modos diferentes, refinados
diziam. Papito (morreria em Cerro Corá, defendendo o pai) o maior
deles, mais outros quatro, filhos de Madame e dele, El Supremo, El
Mariscal López.
Guerra, única brincadeira possível no castelo de Humaitá,
invencível fortaleza às margens do rio Paraguai. Papito, comandante
dos oficiais da mais elevada patente. Juanita e os seus irmãos, soldados
honrados com a glória maior de morir pela pátria. Súbita dúvida,
mulherzinha pode brincar de batalha? Pode, salvou-a Papito. Juanita
caprichava na representação dos atos valorosos, nas fingidas valentias,
exagerava maldades com os adversários, los macaquitos brasileños.
Esperta, adotou a calça comprida e a camisa vermelha; logo a promoção
decretada por Papito: És capitoa de mi exército, nome logo consagrado
pelo frequente uso.
172 Águas atávicas

Mais de ano nas brincadeiras inocentes, até a chegada da rea-


lidade: bombardeio inimigo, estrondos sem fim, dias e noites, mortes
de verdade presenciadas. Rompidas as correntes que atravessavam o
rio, imediata transposição fluvial dos barcos de guerra inimigos, vul-
nerável a capital Asunción, perto, rio acima. Salvou-a o grande canhão
El Criollo, diziam. A culpa da passagem dos barcos inimigos por Hu-
maitá só podia ser traição de paraguaios sem Deus, sem patriotismo,
desleais a El Supremo. Castigo para os homens traidores, a morte; para as
mulheres, las destinadas, o desterro. Perda de suas casas, ricas pratarias
e outras riquezas recolhidas e enviadas para Humaitá. Madame
recebia, separava as melhores, bens necessários ao esforço de guerra.
Começo da desgraça, o abandono do forte, travessias de brejos,
pântanos úmidos, conforto findado. Capital Assunção saqueada,
roubalheira e depravação dos macaquitos. Mantida firme, entretanto,
a esperança de vitória. Madame enérgica nas tratativas domésticas e
contábeis. Papito cada vez mais no comando de uma brincadeira que
ia perdendo a graça. Fuga, retirada, batalhas menores, montanhas
em quantidade, as cordilheiras. Pai sumido, nunca mais. Muito mais
gente no lado deles, soldados paraguaios diminuindo; mesmo assim,
um só valia por dez cobardes brasileños, crença a justificar o exagero.
Las residentas, como a mãe, mulheres com o sentimento de que sua
casa, sua residência, estava onde estivesse El Mariscal e Madame,
por isso, os seguiam, para onde fossem.
Logo a escassez de homem reconhecida. Sem mais brincadeiras,
meninos com barba e bigodes pintados escondendo a pouca idade, a
manejar espingardas, trabucos e outras armas improvisadas, primitivas.
Meninas a servir no transporte das munições até se transformarem
em guerreiras, as últimas e terríveis amazonas do Paraguai. Capitoa já
não brincava, matava de verdade, quando podia.
Batalha de Acosta-Ñu, vinte mil macaquitos do exército regular
brasileiro contra seis mil paraguaios, muitos deles, crianças. Artilharia
primeiro, fogo de canhão em cima de nós. Depois, a numerosa ca-
valaria, tiros e golpes de espadas. Por fim, coronel Deodoro da Fonseca
(que mais tarde proclamaria a república) no comando da infantaria
brasileira: soldados a pé no massacre final, baionetas e estocadas de
Marcos Faustino 173

punhal penetrando em nossas carnes. Avultado número de soldadinhos


cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, mas como eram valentes
para o fogo, os pobres meninos. O desfecho final de Cerro Corá, a lança de
Chico Diabo no peito de Solano López, tragédia do ribeirão Aquidabã:
Muerro com mi Pátria. Adeus Mariscal López, adeus Paraguai.
Fofinha nas carnes juvenis, olhos verdes, Juanita servia, era um,
eram dois, eram três, pareciam mil para ela. Juanita aguentava, de
fome não morria, para isto servia seu corpo: pagamento, restos de co-
mida. Outras crianças, mulheres desnudas e espectrais vagando nas
matas escondidas, mastigando raízes e folhas silvestres, bebendo nos
arroios. O pai morto em batalha, a mãe semimorta, talvez escondida
não se sabe onde, irmãozinhos massacrados, inexistentes amigas.
Alegria impossível, mergulho na desesperança; única amiga, a
amarga tristeza. A tristeza mais triste que tem é a das putas. Despenca
o mundo no início da fama divulgada. Cai, decai, precipita na má re-
putação, sem nada levar, deixando mais longe as imprestáveis lem-
branças. O pó de arroz da inocência, o batom da virgindade, os sonhos
mais puros, todos desaparecem, até sobrar uma única realidade: a con-
dição de fêmea sobrevivente. Nada mais além do rosto atraente, das coxas
lascivas, dos seios de anteparo e sobretudo do depósito de sêmen de
variada procedência. A mulher chega, então, à derradeira trincheira de
sua desesperada resistência. Pura fêmea, nada além do atávico, só instinto
de sobrevivência animal, prazer para os outros, sobrevivência para ela,
escancarar as pernas para abrir a boca. Desprovida deste muito antigo
ofício, sua mísera existência se esvai por absoluta falta de sustento.
Companheira inseparável, insondável e profunda característica, a
tristeza mais triste nasce da desesperadora impossibilidade de escapar
do cruel dilema: prostituição ou morte, sem heroísmos.
Mas era daí que Juanita extraía suas forças. A contrapartida do
jugo era seu valor para os machos. De estuprada inocente a mercadoria
disputada por seus encantos e habilidades, boa de ofício e competente
profissional. Incansável, era um, eram dois, eram mil, que fossem.
Cansados, saindo de cima, caíam de lado, tombavam exaustos: ficou
sendo a Ruanita Tomba-Homem muito apreciada pela sua resistência
paraguaia.
174 Águas atávicas

Sobrevivência garantida, dinheiro guardado aos poucos, cavalo


comprado, revólver adquirido, plano na cabeça. Em acerto de preço,
depois do ato, pagamento negado, a primeira morte; outras depois. O
dinheiro que lhe davam, sabia, muitas vezes vinha de roubos e saques,
a guerra deixou tudo sem dono. Poucos a defender, muitos nas pilha-
gens diversas. Fazer o mesmo, por que não? Bastava a coragem, o
atrevimento para liderar. Ruanita no comando, era um só companheiro
no começo, logo dois e três, em breve quase cinquenta. Macho nas
ordens, severa nas maldades com a desobediência alheia, castigo certo
para as contrariedades. Ruanita mandava, Capitoa Paraguaia prestando
serviços, empreitas variadas, fuga rápida, deslocamento constante.
Homem preferido ao lado, variados, trocados com frequência, ajudante
de ordens, lugar-tenente, à sua disposição, agora abria as pernas para
saciar o prazer, não mais a fome
Notícias de batizado na fazenda do major Alves corriam pela
região. Escolha do dia e da hora mais no jeito, prerrogativa da Capitoa.
Passados os quinze dias de prazo, a contraordem do coronel Castro
não apareceu, a hora é esta.
No dia do sacramento religioso não podia, profanação a ser
evitada; data da véspera era boa escolha, certeza do major na fazenda.
Festança de muita gente, presença de numerosos amigos dificultava
o serviço, mas a surpresa resolvia. Depois do feito, saírem atrás dela,
procurarem vingança, que nada: choro pelo defunto importante
ocuparia todos.
Presença do bando da Capitoa pressentida nas proximidades,
festa esvaziada antes do começo, debanda de amigos e parentes. De-
cisão errada, o orgulhoso major não quis fugir com os seus. Ficou,
podia negociar, conhecia bandoleiro mercenário, interesse era só na
riqueza. Podia propor negócio, Capitoa aceitava, vida dele e da família
acrescentada às riquezas oferecidas. Mas não, orgulho besta, major
reagiu, chuva de balas, entrincheirado nas casas com poucos amigos.
Quantas casas, quantos homens? Capitoa não sabia.
Fogo em todas as casas forçando a saída, ordenou a Capitoa.
Saíram atirando. Balas neles, queima tudo. Barulho, só das chamas
crepitando, labaredas. Crianças morrendo, desta vez brasileiras, ligeiro
Marcos Faustino 175

sentimento de vingança, mesmo tardia. Casas de agregados também,


acaba com tudo, sem deixar nada e ninguém. Culpa não tenho. Mal-
dita resistência, origem de muitas desgraças, rápido pensamento na
cabeça da Capitoa, lembranças do final da guerra, de Solano López,
El Supremo não se entregando.
– Sobrando duas crianças na casa perto do riacho. Homens
com dó das inocentes.
– Inocência neste mundo morreu faz tempo. Embora todos,
serviço feito, deixa as duas comigo, decretou a Capitoa, fama de cruel.
Viu-se na menina, viu seu irmãozinho no bebê, ordenou à apavorada
moreninha: se alguém chegar, corre depressa e esconde; entra naquele
baú velho. Se descobrirem diga depressa: bênção, madrinha Capitoa,
diz que tem a minha proteção. Dois tiros nas brasas da casa encobriram
a rara fraqueza da paraguaia: as crianças permaneceram vivas, o
bando seguiu adiante. Outro ovo de serpente, duas inocentes ainda
sem o veneno da desforra. Grossa casca de proteção a ser rompida, o
tempo afina, inevitável o desejo de vingança.

De volta às missas, sob o olhar dos santos, Pereirinha lembrava


da primeira comunhão, Vicência, filha do finado vigário Sales, enjei-
tada que nem ele. Parceira na fila dupla em direção ao altar, agora
em cortejo nupcial, já não mais crianças, tão bonita ela, no mesmo
véu antigo da primeira comunhão. Inventava sua realidade. Mais
uma companheira; mais uma não, a principal por ser a primeira. E a
Imbé passava para segunda? E a Menina onde ficava? Muito compli-
cado este assunto de mulheres, resolvia depois. Tinha os outros pares,
meninos e meninas; fácil encaixar, eram seus filhos também, já agora
um montão de pereirinhas, vontade de Deus a ser respeitada.
À noite na cama, pesadelo de muitas fraquezas e desânimos va-
riados. Pior, a presença constante do Lilico ao lado da Tonha, sua outra
índia amada, conservada sempre nova e vistosa. Sargento Pereirinha
sofria íntimas frustrações, ressentimentos da vida, agora o ciúme do
rival, longe no tempo, em lugar distante, será que ainda vivo? Entre-
tanto, atual e perto no coração da índia. Que desgraça para Pereirinha.
176 Águas atávicas

De dia, a realidade ajeitava a vida: o safado do ladrão de índias,


Lilico, saúde no fim, sífilis corroendo, arruinado por negócios malfeitos
e escolhas políticas indevidas não conseguiu mais sustentar a jovem
companheira. Imaginação agora, Tonha o abandona, empreende longa
viagem de Cuiabá até Sant’Anna. Corpo jovem no sacolejo dolente do
carro de boi, desce na frente da casa de Pereirinha. A formosa alega
inocência, sequestro contra sua vontade, nunca conseguiu esquecer
dele, nem por um segundo, suplica, chora; Pereirinha aceita. Precisava
mesmo de uma amante muito mais nova. Impôs condição: do Toné
seu amigo, ele podia lembrar, ela não. Lilico não perdoava, este tem
culpa no meu cartório. Quanto ao seu pai, que Deus o tenha, já deve
ter acabado o Miguel e ficou só a arcanjo no céu. Referência respeitosa
a seu pai, causou profunda impressão na jovem Tonha que, comovida,
estendeu delicada mão a Pereirinha, entregando-lhe fino colar de
reluzentes dentes polidos de queixada, ligados por linda corrente de
ouro. Arranjo lugar exclusivo para você, aqui em casa não pode fi-
car. Precisa entender, meu amor, obrigações de família, responsa-
bilidade de homem casado. Posição privilegiada, primeira amante, o
que sempre fora, consolou-se Tonha. Do Lilico não queria recordar,
já do jovem Taunay....
Das conversas na farmácia já andava afastado; primeiro raleou
sua presença e depois parou de vez. Indiferença dos outros, falta não
fez, ausência pouco notada e jamais lamentada. Ficava longe, agora
além de todas, ainda tinha a jovem Tonha, gostosuras escondidas como
convém às amantes.
Pesadelo recorrente era seu amigo Toné. Pelo que tinha no
nascimento, agora era até pobre. Amigo do rei, político de muitas
eleições, até mesmo presidente da província de Santa Catarina, no
sul do país, o Visconde de Taunay amargava a perda de seus títulos
de nobreza com o advento da República. A fortuna, tomou-lhe um
tal de Encilhamento, bagunça de dinheiro promovida por ministro
incompetente, um baiano, Rui Barbosa parece que era o nome dele,
Pereirinha ouvira falar na farmácia do dr. Neves. Podia ajudar o Toné,
passava lá na intendência, ordenava ao tesoureiro o envio de pequena
quantia, alguns contos de réis apenas, singela ajuda a amigo, outrora
Marcos Faustino 177

abastado agora necessitado, lançasse a despesa em reparação de guer-


ra; Pereirinha mandava. Nem para o pior inimigo, talvez o Lilico,
queria destino assim.
Mentira! Pereirinha queria sim a desgraça do distante Taunay,
coisa boa, justiça divina, matutava em silêncio. A bronca crescia quanto
mais lembrados eram os modos refinados, a elegância e os muitos ou-
tros aspectos físicos do jovem guapo. Logo o ódio e o veredito final:
comeu a minha Tonha e a danada nunca mais esqueceu dele, france-
sinho filho da puta!
– Presente de casamento, que lindo colar trouxe desde Uberaba
só para mim, agrados para toda a família, tudo por minha causa.
Francesinho filho da puta. O sargento pensava baixo, não por conta
do ausente, mas por temer que, contrariada, Tonha entrasse em mais
detalhes que não gostaria de ouvir, não convinham.
– Que modos, quantas finuras, rosto brilhando, olhos reluzentes,
que garbo militar...
Veado, francesinho filho da puta, resignava-se o mudo Perei-
rinha, procurando viver as gostosuras imaginadas da Tonha na rede.

Reinava paz na vila, entretanto desavenças perduravam, de


gestação demorada, discórdia antiga, anterior mesmo ao massacre
na fazenda do major.
Os Paula amigos do pranteado major, de um lado e os Tosta
leais ao coronel Castro do outro, separados por rios de desavenças
miúdas. Fazendas contíguas, cortadas pelo ribeirão das Morangas,
afluente do Sucuriú. Toras de madeira de lei amontoadas na margem
dos Tosta anunciando a construção da ponte. Na outra margem os
Paula, ponte de jeito nenhum, não queriam; alegavam aumento inde-
sejado de trânsito de desconhecidos por suas terras. Impedir não iam,
mas ajuda na construção ou pagamento pelo uso nem pensar.
Desavença verdadeira vinha desde a época da divisão do imóvel
Morangas. Agrimensor contratado, mais de cem mil hectares de terra
representados no mapa estendido na mesa, numerosos Paula e vários
Tosta com direitos proporcionais aos respectivos mil réis de compra
178 Águas atávicas

documentada. Audiência na própria fazenda, deferência especial


do juiz da comarca, ali chegado em lombo de burro. Dúvidas e de-
sacertos nas conversas logo encerrados pela fala grossa de um Paula:
– Divisa nossa tem de ser nesta linha. Decisiva argumentação
do fino e comprido punhal deslizando vagarosamente por sobre o
mapa, indicando o rumo desejado. Olhar baixo do Paula, ainda com
a penetrante arma na mão, pronta para rápidos arrazoados a qualquer
objeção levantada. Constrangimento e prudência na aceitação cor-
data dos Tosta. Havendo a plena concordância, deu o juiz a sessão
por encerrada. Ficou a mágoa, a certeza do negócio mal resolvido.
Em terreno adubado por ressentimentos, a semente da desforra
tarda mas não falha. Fácil o fuxico neste caso.
Nenhuma diferença para as tramas urdidas em passado re-
cente. Injetado o veneno do confronto, era esperar seus efeitos. A
ignorância da valentia acrescentava sua parcela à antiga desavença
entre os Paula e os Tosta.
Ponte no ribeirão das Morangas em andamento, os Tosta cons-
truindo e divulgando o preço do pedágio: dois mil réis para o povo,
vinte mil se for para os Paula.
Estes, sob o comando da enérgica matriarca Dona Maria, ce-
diam apenas o barranco. Ponte em rio é benfeitoria pública, passavam
a hora que quisessem, sem nenhum tipo de pagamento, garantiam.
Ponte concluída, o embate aguardado. Recriminação pela falta
de iniciativa dos Paula, suspeitas de covardia na demora em resolver
o passa-não-passa. Enfim a dura reprimenda de Dona Maria em seus
filhos vacilantes:
– Vocês me dão as calças e vestem minha saia. Quem usa cal-
ça não tem medo de outro homem. Se o problema é este, vocês ficam
cuidando do fogão, que eu levo os jagunços para honrar o nosso nome.
Resultado do pito bem passado pela Dona Maria: os Paula mar-
caram o dia e a hora. Recado comunicando a travessia, só mais tarde
enviado aos Tosta, deixado para mais perto da hora. Malícia proposital
na falta de prazo, curto demais para o adversário se ajuntar, bem
planejar o enfrentamento.
Marcos Faustino 179

Cumprindo a data, hora mais cedo que a anunciada, carro de


boi com a esteira lateral e couro por cima escondendo Dona Maria e
seus jagunços chega à cabeceira da nova ponte. A pé, na frente de
todos, Joaquim, o filho mais velho. Logo atrás Lindolfo, Daniel, quatorze
pessoas ao todo.
No outro lado do rio, nenhum Tosta.
– Ninguém? Espera, não atravessa, manda recado, aguarda a
chegada, quero ver se aparecem, cadê os Tosta? Cambada de medro-
sos, Dona Maria, arrotou vantagem, confirmando a valentia.
Margem oposta, só um peão trabalhando despreocupado, ma-
chado lavrando madeira, sobra da ponte. Possibilidade de tocaia ne-
gada pela observação atenta dos Paula, mais ninguém mesmo.
Armas à mostra, os irmãos Paula atravessam a ponte.
O carapina para o serviço, encosta o machado. Sabia do assunto,
ouvira falar, pele preta negava parentesco com os Tosta, agregado há
poucos anos. Fazia cobrança de pedágio na ponte a mando dos Tosta,
é verdade; mas só de quem quisesse cooperar. Negócio dele era o
aproveitamento da sobra das toras, serviço de peão sem opinião em
outros assuntos. Conversa tensa para mais de hora. Certo, levava o re-
cado; mas era só, não se metia em problema alheio. Razão? É de
quem tem, não sabia quem, mas não fazia desfeita a ninguém, negando
o que não podia afirmar, nem afirmando o que tivessem de negar
logo adiante. Conversa de quem quer se safar, enrolava bem. O negro
esperto defendia a pele. Agora, a conversa já parecia amigável para
quem observa de longe, como fazia a Dona Maria.
O lavrador saiu em andar normal, cabo do machado às costas,
sem pressa; o recado pegou caminho.
Nove quilômetros depois o mensageiro chegou a casa do patri-
arca Zé Tosta. Conversa comprida também. Qual o recado? De quem?
Zé não entendeu bem, pediu confirmação: ele tem de ir até a ponte,
agora, problema com os Paula, sem precisão do carapina retornar ao
serviço, é isso? Era mas não era, o negro enrolava. Se preciso, retornava,
mas só não via necessidade, não era parte do recado. Perceptível o
desconforto do carapina no detalhe de voltar à ponte na companhia
180 Águas atávicas

do Zé. Chamou a gente sua e despachou recomendação de urgência:


viessem todos os Tosta que a hora da travessia fora antecipada.
Sem esperar pela ajuda dos demais familiares, na pressa em
honrar a palavra empenhada, Pai Tosta chegou à ponte na frente dos
demais, sem o negro que julgava seu capanga. No limpo, peito aberto,
espingarda na mão mostrando firmeza. Sem palavras, o primeiro tiro
em cheio no Zé Tosta, mesmo assim reação de muitos estampidos,
uma bala fatal atingindo o Joaquim Paula, que ensanguentado ainda
teve força para esperar o falecimento no dia seguinte. A comitiva atra-
vessou a ponte duas vezes, na ida e no regresso imediato para a fazenda
dos Paula. O carapina não foi encontrado nem vivo nem morto.
Passar ou não passar, nunca foi a questão. Valia mais honrar a
posição assumida, o entendimento afirmado. A palavra dada é a pro-
clamação do que se pensa ser, a revelação do em si para o outro. O
ser é a sua palavra. Recuo é a negação, a pessoa nada vale sem o re-
conhecimento alheio, mesmo que na força bruta.
Disputa sem vencedores, semente de futuros embates.
Abraçado ao cadáver do pai, Pedro Tosta jurou vingança. Preci-
sava matar seis, conta feita na hora. Disposição anunciada, temor es-
palhado, o respeito pela sua figura acompanhou-o por toda a vida.
Familiares garantem que matou sete, aumento numérico do negro
carapina, posteriormente tido como traidor e o último a ser vingado,
em um bar do interior de São Paulo.
De sua parte, os Paula juram que falecimento de seus familiares
só por morte natural. Versões em disputa, insensatez a vencedora
presumida.

O ribeirão das Morangas, antiga regra geral, não vê duas vezes


a mesma água; as suas margens, também, transformam-se no assistir
à contínua passagem. Imutável só o “rio abaixo, rio acima, rio adentro
– o rio”. O próprio rio, memória das águas, fixando “as bagagens da
vida”. Na terceira margem inventada, o canoeiro paiaguá, arredio,
carrega as lembranças criadas. Tenta o isolamento, contato raro. Inútil
a luta. Pouco, mas o contágio ocorre: inevitável a transmissão da he-
rança. A água arranca de um, passa ao outro, a matula repartida.
Marcos Faustino 181

Quase um arquétipo

Meninos de porta de rua, descalços, sem camisa, calção rebai-


xado pela barriga saliente. Aos montes, apinhados, agora na janela do
quarto de Pereirinha, rente à calçada. Imbé chora sobre seu homem
deitado. Dores do peito maiores, moleques curiosos, à espreita da
novidade. A ordem, quase um grito de socorro: – Vai, menino, corre,
chama o padre. Pedido do sargento, depressa.
Carolas na frente, curiosas. Vencida a demora na cuidadosa
preparação dos santos óleos dos enfermos e da delicada bolsa da eu-
caristia, viático, raramente usados, chega o padre Jacques. Reparou
logo, Pereirinha nas últimas: palavras sem sentido, brincadeiras infantis
relembradas em voz alta, frequentes gemidos e muita suadeira.
– É desse jeito agora, caducando; de vez em quanto volta, maio-
ria das vezes fica longe. Quando mandei chamar o senhor, padre
Jacques, ele ainda estava bom.
– Tinha consciência então? O padre pediu a confirmação.
– Tinha, respondeu Imbé.
Pereirinha, olhar vazio na claridade da janela; cabeças na con-
traluz, saía uma, entrava outra; meninos apenas.
– Vai caçar serviço molecada, ralhou sem resultado. Consciência
clara, notou o padre, confirmada pelo aceno afirmativo da cabeça à
pergunta se queria confissão. O padre mandou, saem todas as mu-
lheres, meninos do lado de fora, mais calor com a janela fechada.
Confissão do Pereirinha, católico por costume, sem jeito de não ser,
quase obrigação coletiva de quem nascera por ali.
– Padre, pequei demais minha vida afora, reconheço. Pensa-
mento danado ninguém controla, palavra maldosa na hora da raiva escapa,
ato de safadeza então, uma porção. Meu arrependimento é sincero,
sei que Deus perdoa, mais pela bondade dele, misericórdia pedi.
182 Águas atávicas

– Sim, sim, concordou o atento padre, sinceros arrependimentos


Deus perdoa, é a contrição.
– Padre, padre, o problema é que tem uma culpa sem jeito de
arrependimento. Ódio difícil de apagar, bronca do tenente Toné,
francês... francês... francesinho desajeitado! Tentei, arrependimento
não veio, difícil lembrar dele sem bronca, culpada foi a índia bonita,
a Tonha. Já rezei, pedi, implorei, rezei de novo, mas nada, continua
a mesma raiva. Este, padre, só chego ao perdão por sua intercessão,
por isso pedi sua presença na hora de minha morte. Guardei este
ensinamento do meu catecismo de criança. Sua trêmula mão fez
ligeira menção de exibir ao padre o antigo livrinho.
– Sim, sim, novamente concordou o padre, reparando na sabe-
doria do moribundo em guardar o que poderia lhe interessar para
hora final. Tem a atrição, outro tipo de perdão, só escapa do inferno
por intermédio da Santa Igreja por mim representada. Mais medo
do fogo eterno e dos demônios, sem arrependimento da falta cometida,
diferente de contrição. Confessai-vos antes de morrer... (....), àqueles a
quem perdoardes, ser-lhes-ão perdoados os pecados.
Gemidos, palpitações maiores, alma saindo, pressa do padre
nas orações. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis, repetição
três vezes e o final mais solene: Ego te absolvo peccata mundi. Alma
ainda no corpo, rápido, o sacramento dos agonizantes: o viático, a eu-
caristia dos enfermos, provisão para a passagem desta para a outra.
Hóstia na boca de Pereirinha. Este é o meu corpo que é dado por vós,
tomai e comei. Fazei isto em memória de mim (....). Isto é o meu sangue
da nova e eterna aliança, que será derramado para a remissão de vossos
pecados. Vida nos olhos, tempo ainda para a extrema-unção – os
apóstolos expeliam muitos demônios e ungiam com óleo muitos enfermos
(....). Por esta santa unção e pela sua grande misericórdia, Deus te per-
doe tudo que fizeste de mal com os teus olhos, Pereirinha apertou os
olhos, talvez ardesse; com tua boca, sentiu o gosto doce do azeite; com
tuas narinas, com teus ouvidos, com tuas mãos e teus pés. Não trago a
morte, mas a vida eterna que é Jesus na alma, a partida não é o fim, é
o começo da passagem para a terra prometida, para o Reino de Deus –
finalizou. Deveres sacerdotais cumpridos, nada mais a fazer.
Marcos Faustino 183

O padre sentiu o calor da grossa batina e dos paramentos litúr-


gicos, mesmo assim preferiu a janela fechada, evitava a presença dos
moleques. Chamou a esposa, vieram também as carolas. Terço puxado,
“Ave Maria, cheia de graça...”, “Ave Maria cheia de graça...”. Imbé
chorava. Último chamado de Pereirinha prontamente atendido, o
padre se aproximou, mais um pouco, ajoelhado, seu ouvido quase na
boca do moribundo, a derradeira palavra, talvez. Ouviu, fraco no
começo,.. francesinho... francesinho..., alto no fim, francesinho fiiiiiilho
da puuuuuuta, grito comprido.
– Atrição, atrição padre, perdoa de novo, livrai-me do fogo
eterno. O religioso de joelhos, orações rápidas. Interrupção do terço,
senhoras indignadas se retirando, se benzendo, “vade retro Satanás”,
moleques de ouvidos atentos. Imbé em sonoro pranto, culpada ela,
enfeitiçou o marido, enterro no campo santo não devia, sacrilégio da
bruxa; obra do capeta, xingar o padre francês naquela hora sagrada,
concluíram as carolas.
Sozinho, o padre continuou com as rezas fervorosas, Ego te
absolvo..., até concluir que a alma de Pereirinha subira aos céus. Fi-
tou o cadáver por longo tempo, alheio ao desespero da índia. Por fim
saiu, rua deserta, começo de noite, hora da janta. Nunca entendera a
confusão que faziam com sua nacionalidade: um italiano de vero,
conhecido como francês, pouca importância agora. Sentimento maior,
o dever religioso cumprido, reforço de três sacramentos: Confissão,
viático e extrema-unção, céu o destino certo de Pereirinha, tudo nos
mais perfeitos cânones. Sem ele, a perdição certa. Só o padre pode
perdoar a atrição, a falta de sincero arrependimento pelo pecado do
ódio ao tenente Taunay, o francês. Alma salva exclusivamente por
ele. Valeu a vocação e a viagem à terra tão distante da sua Itália; gra-
tificantes pensamentos passavam pela cabeça do padre Jacques.

Só Imbé chorava o abandonado defunto.


Lembranças do companheiro de toda uma vida, único a lhe
dar valor. Homem sem igual na rede, elogio nunca falado, pirraça de
mulher ou medo da comparação; agora era tarde, Pereirinha partiu
sem o agrado dessa revelação.
184 Águas atávicas

– Ingratidão deste povo, negar sepultura no cemitério. Índia


velha banguela que nem eu, sem serventia alguma, antipatia geral
da vila, melhor partir junto. Agora quem não aceita o enterro do jeito
deles sou eu, disse Imbé a si mesma.
Já noite escura, relâmpagos anunciando a chuva forte, enchente
das goiabeiras. Na beira do rio, próxima às águas já avolumadas, en-
xadão na terra úmida, cova larga aparecendo.
– Xamã põe nome certo nas crianças índias, logo ao nascer.
Mágica de adivinhar a alma, marca futura nos atos das pessoas.
Pequena Imbé, cipó de folhas vistosas, poucas flores, raríssimas se-
mentes, raízes ao vento, dependência do tronco que lhe comunica a
vida. Ausência do tronco, Pereirinha morto, Imbé fenece. Sem o sentido
do nome, desaparece a individualidade, só resta o regresso à unidade
do todo, destino final dos povos das matas, era a crença ancestral
conservada por Imbé. Uma cova para dois na beira do rio. Cadáver
do marido arrastado até a margem, descida do terreno facilitando.
Aguardente para espantar o frio, exagero na quantidade bebida, ga-
rantia contra arrependimento no ato final. Uma viva e um morto
dentro do buraco. Águas de março, dia de São José, enchente das
goiabeiras, a última do ano. Águas do rio transbordando e entrando
no derradeiro refúgio. A imersão impede a emissão da voz, do nome
pronunciado, afogamento e morte da índia. Imbé desaparece no im-
pessoal da unidade, no geral de tudo, fim da individualidade.
Água barrenta, escura, finas argilas se decantando, buraco
tapado, nenhum vestígio de cova. Sumiço inexplicável confirmando
a suspeita das carolas, evidente bruxaria da índia.
Choviam relâmpagos e trovões.
Muito além das aparências, no inegável âmbito de fenômenos
pouco conhecidos, num desses raios que partem da terra para as nu-
vens, lá se foram os dois. Intensa claridade e formidável barulho
divulgaram a partida. Velocidade crescente dos viajantes a rivalizar
com as sucessivas ondas de luz; tempo encolhido, dobrado em túnel,
Pereirinha e Imbé, agora, já em outra dimensão. Primeiro obstáculo,
a Graça que os trouxe, para a índia não valia, proclamou canônico o
particular tribunal. Só pela intercessão da Igreja se chega aos céus.
Marcos Faustino 185

Pereirinha poderia prosseguir, a herege não. Pairava sobre todo o jul-


gamento, a excelsa figura de Sereníssimo Senhor de volumosa barba
e fartos cabelos encanecidos pela eternidade. Paternal e acolhedor, o
Sereníssimo Senhor, perante tão doutos luminares, concedeu a Perei-
rinha, que ali chegava muito bem provisionado pelo viático, a inspi-
ração da defesa. Inicialmente, Pereirinha apelou para que aceitassem
a índia como reconhecimento da centenária catequese que abnegados
padres realizaram no continente sul-americano; possuía a humilde
criatura de Deus, o completo currículo de devota, desde o inicial ba-
tismo até a derradeira extrema-unção. Não poderia exibir a certidão
de batismo pois fora queimada, junto com a igreja incendiada pelos
paraguaios durante a insana guerra; quanto ao sagrado matrimônio,
a certidão deveria ser cobrada ao padre Jacques quando aqui chegasse,
ficando também pelo testemunho futuro deste religioso, a confirmação
da dupla sagração dos santos óleos no final simultâneo da vida terrestre
de ambos. Iluminado sorriso de aceitação na face do Sereníssimo e
eis que o egrégio conclave dá razão ao apelante: a índia poderia a-
dentrar a Terra Sem Males. Esplendorosos cenários desfilando a es-
colha dos dois até o lugar reservado aos sonhadores que na terra
transformaram seus sonhos em realidade. Muita gente, coletivo de
variadas pessoas, pois lutar por seus sonhos é inato em muitos, re-
sultando em multidão os adeptos de tal prática. Por último o lugar
exclusivo, individual, reservado a quem vive intensamente seus so-
nhos, sem preocupação com a aparente realidade. Dominando o re-
cinto, única e imponente cadeira de madeira escura, entalhada, seme-
lhante às usadas por intendentes e vereadores, os importantes do
mundo anterior. No seu topo a inscrição PATRIARCA PEREIRINHA.
A pedidos, Vó Celeste, a mãe Madalena e o pai foram transfe-
ridos imediatamente para a nova morada do Patriarca. Menina, Tonha,
Vicência, Lili, Neguinha e todas as bonitas que conhecera, chegada mais
adequada por ocasião da ressurreição da carne. Os milhões de filhos
e filhas do Patriarca, todos os brasileiros nascidos entre os rios Paraná
e Paraguai, moldados à sua imagem e semelhança, foram chegando
no curto intervalo de alguns poucos segundos da eternidade. Cabiam
todos no espaço de amplidão infinita, dimensões físicas abolidas.
186 Águas atávicas

Ali viveram felizes por todo o sempre.


Nunca se soube se foi este o derradeiro lampejo da fértil ima-
ginação de Pereirinha ou o primeiro caso real vivido por ele no reino
do além, pois os poucos que de lá retornam nem sempre produzem
relatos confiáveis.

Na realidade dos outros, ondas de enchente chegando. Matas


ciliares de muitas goiabeiras, alimentação farta, festa de peixes pró-
ximos às margens. Março, frutas temporonas, goiabinhas caídas e
carregadas pela correnteza em quantidade a justificar o nome, en-
chente das goiabeiras.
A água molhava primeiro as matas, as folhas mais altas dos
bingueiros, perobas, ipês e as palmeiras de terra fértil: guarirobas,
macaúbas e bacuris. Depois as árvores mais baixas dos cerrados: caraí-
bas, pequis e carobas. Por fim, os campos de gabirobas, capins-flecha,
assa-peixes e muitos arbustos menores; várzeas de rala vegetação:
capim-mumbeca para enchimento de arreios, sapé para telhados de
ranchos.
Escorria pelos cabelos das criaturas, peles encharcadas, poros
ativos, ingerida por bocas úmidas, a tudo molhava, por fora e por
dentro, pessoas e animais, sem respeito por supostas diferenças.
Embebia os bichos ligeiros no meio da vegetação: onças pintadas,
mateiros, antas, queixadas e catetos na selvagem disputa pela sobre-
vivência. Céus de muitos pássaros na mesma luta. Peixes e anfíbios
nas lagoas e rios.
Passava pelas argilas compactas que o chão não engolia, ume-
decia as areias porosas. Leves grãos e partículas carreados na pressa
da enxurrada. As pedras pesadas, banhadas, ficavam.
Descia, penetrava na terra, buscava as raízes.
O que cada gota de chuva carreava era o primitivo de todas as
coisas, arrancado da molhada intimidade. Do chão, a matéria ina-
nimada; das plantas, o cerne; dos animais, o instinto. Dos pensantes,
carregava a canseira difícil dos sonhos realizados, o sangue inútil das
quimeras impossíveis e o odor das baixarias praticadas. Tudo junto,
Marcos Faustino 187

sem mais distinção ou hierarquia, a genuína mescla do essencial


moldando o original comportamento humano. Desencadeada a ação,
afrouxa as rédeas, perde a condução dos acontecimentos, culpa a re-
beldia dos fatos. Dissimula o confuso enredo de atores em caprichosas
paixões. Cedo, distorce as vontades alheias, redescobre as suas, doma
os rumos, encontra a trilha desejada. Só com proteção garantida gosta
da animação das tempestades. Se pressente o revés esconde-se das
borrascas, na espreita da inevitável bonança dos próximos episódios.
População rarefeita, a escassez valoriza seu semelhante com
atenciosos cuidados nos primeiros encontros. Saboreia mesuras e
rapapés, galante estilo de aproximação. Precavido, adota primeiro o
tratamento respeitoso em excesso, prefere o silêncio ao melindre da
palavra errada. Segue em sucessivos entendimentos até a aceitação
final, a intimidade selada com o convite para a passagem da sala à
cozinha. Se porém a cautela aconselha prudência, fácil a desculpa
para o mais seguro distanciamento.
Pôr em casa mantimentos, roupas e demais apetrechos neces-
sários à vida é a tarefa masculina; preparo doméstico é obrigação fe-
minina. Repartindo território nas lidas diárias, atraídos pelos mesmos
desejos e vantagens, homens e mulheres descobrem-se iguais. Funções
diversas, entretanto. Regra bem clara: da porta para fora é a lei dele;
dentro, a rainha do lar é a autoridade. Nos domínios masculinos, às
mulheres tolera-se a sutil influência da alcova e o raro matriarcado.
Oficialmente negada, a presença feminina na construção dos fatos
não aparece na versão pública, prevalecendo, entretanto, no divulgado
boca a boca. Na intimidade doméstica, uma única exceção: na cama,
manda ele, na hora que cismar, do jeito que quiser, prerrogativa do
macho. Para os homens, escapadas permitidas preservam o matri-
mônio. Às mulheres nada é permitido, exceto para as viúvas de muitos
alqueires de terra, quando então se igualam aos homens, em direitos
e prerrogativas. Rígidos tabus preservam os totens deste arranjo social.
Na primeira contrariedade, porém, amizades, fidelidades e a-
mores são rapidamente trocados por malquerenças, traições e ódios,
no torvelinho de volúveis conveniências momentâneas. Fortes doses
de rancor, inveja e ressentimento misturados pela insensatez, no
188 Águas atávicas

rodamoinho dos acontecimentos. Picuinhas transformam-se em ques-


tões fundamentais. Arroubos de valentia na pressa de bem resolver,
logo a desavença azeda o frágil convívio: surge o progressivo distan-
ciamento. Pequenezas outrora negligenciadas, intenções maldosas
pressentidas e desconfianças guardadas, todas agora confirmadas na
pressa de condenar. Relaxada das cautelas, a índole bravia destrava
as paixões, liberta a vontade; amarras rompidas, libido à solta, reage
rápido: não engole desaforo. Topa a parada, dá o boi e provoca a bri-
ga, joga toda sua boiada no aumento da confusão, expele-se o não di-
gerido: aparece o violento conflito.
Variadas porções do patriarca Pereirinha aparecem em todos;
dose mínima resulta na seriedade enrustida, irrecuperável, sem pos-
sibilidade de tratamento; em quantidades maiores surge a esperta
velhacaria, hábil ferramenta no convívio diário; em doses mais ele-
vadas chega-se à divertida e inofensiva loucura, vivida como mero
passatempo de uma prazerosa existência.
A íntima verdade carreada pelas águas, a mescla do essencial,
dissimulação, violência e paixão, quase um arquétipo, coletivo, incons-
ciente em todos, desce às profundezas, molda tudo em sucessivas
gerações. A teia capilar dos muitos rios desta mesopotâmia brasileira
dissemina o singular comportamento das pessoas deste amplo território.
Fortes sentimentos juntam-se às águas e descem velozes pelo
ribeirão das Morangas. Seguem depois sem pressa, raras corredeiras,
pelo Sucuriú, até atingirem o solene deslizar do rio Paraná. Estrondosas
cachoeiras, precipício de águas volumosas, em Itapura, Sete Quedas
de Guaíra e Yaciretá. Ajuda dos rios Paraguai e Uruguai na demorada
descida para a imensidão oceânica do mar do Prata.
Tipo de vida assentado, arranjo estabelecido entre as pessoas,
geral das coisas consolidado, reagrupam-se os mais próximos para a
repetição dos mesmos procedimentos, águas de março em enchentes
de anos vindouros disseminando a continuidade destas histórias.

Meninos de porta de rua, curiosos, casa vazia sem ninguém,


entrada desimpedida, quintal escancarado, árvores a disposição. Tre-
par nas mangueiras, escolhidas as mais altas, sem mando dos adultos,
Marcos Faustino 189

só pela aventura do perigo. Algazarra de periquitos, nuvens deles na


procura das frutas maduras, nem merecem pedrada de estilingue,
fartura de mangas, dá para todos. Livres crianças, meninos de porta
de rua, agora sem a proibição da tramela, barulhento bando de
pereirinhas, sem serviço, como convém à alegria inicial da vida.

E nada se passa sobre a Terra.


O que se passa é a nossa terra, que não passa.
Nem jandaia, nem carnaúbas. Nos ocos dos buritis, acasala-
mentos diversos, da seriedade monogâmica das araras aos alegres
periquitos em animada festa.
Papagaio quando fala é para enganar bobo: voltar para Lisboa,
assunto besta, muita água no meio, travessia cansativa, sem sentido.
Bicho conhece seu lugar, sabe que é aqui.
Meio do mundo, isolado por lonjuras do que não merece aten-
ção, não em toda parte, muito menos no coração da gente, nem cabe
de tão grande.
Sem tempo de acabar, centro deste universo de pereirinhas,
mediterrâneas e atávicas: Morangas, águas do Sucuriú.
Rios a semear discórdia e esconder paixões, pontes a celebrar
a vida em explosivas doses.
Marcos Faustino 191

Outras leituras
. A CHAMA DA NACIONALIDADE, Marco Antonio Cunha, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exercito Editora, 2000.
. A RETIRADA DE LAGUNA, Visconde de Taunay, Edições de Ouro, 1972.
. CORONÉIS E BANDIDOS EM MATO GROSSO, Valmir Batista Corrêa,
Campo Grande, Editora UFMS, 1995.
. HISTÓRIA DE MATO GROSSO DO SUL, Hildebrando Campestrini,
Campo Grande, IHMGS, 7. ed., 2012.
. MALDITA GUERRA, Francisco F.M. Doratioto, São Paulo, Companhia
das Letras, 2002.
. MEMÓRIAS, Visconde de Taunay, Edição de Sérgio Medeiros, São
Paulo, Iluminuras, 2004.
. MULHERES COMUNS, SENHORAS RESPEITÁVEIS, Maria Teresa
Garritano Dourado, Campo Grande, Ed. UFMS, 2005.
. O BANDEIRANTE - PAI PIRÁ; ANTÔNIO PIRES DE CAMPOS E OS ÍNDIOS
CAIAPÓ, Marlei Cunha, Paranaíba, Editora Caiapó, 2005.
. ONDE CANTAM AS SERIEMAS, Otávio Gonçalves Gomes, Campo
Grande, 1988.
. PEABIRU: OS INCAS NO BRASIL, Luiz Galdino, Belo Horizonte. Editora
Estrada Real, 2002.
. PEQUENA HISTÓRIA DE SANT’ANNA DO PARANAHYBA, Registros do
Dr. Wladislau Garcia Gomes, atualizados por Leal de Queiróz, Paranaíba,
1949.
. SANTANA DO PARANAÍBA, Hildebrando Campestrini, Paranaíba,
Prefeitura Municipal de Paranaíba, 2002.
. SEISCENTAS LÉGUAS A PÉ, Acyr Vaz Guimarães, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército Editora, 1999.
. SENHORINHA BARBOSA LOPES, Samuel Xavier Medeiros, Campo
Grande, Editora Gibim, 2007.
“Incentivo do Fundo de Investimentos Culturais – FIC/MS –
da Fundação de Cultura
do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul
(Lei n. 2.645/03 – Campo Grande –
Mato Grosso do Sul – 2013)”.

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