Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Marcos Faustino
Outubro de 2013
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul
Campo Grande – Mato Grosso do Sul
Capa: Cláudia Villela.
Revisão histórica: Luís Octávio Faustino Dias Brandão.
Ficha catalográfica
ÁGUAS ATÁVICAS. Marcos Faustino. Campo Grande, Institu-
to Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2013.
192 p. 15 x 23 cm.
ISBN
1. História. 2. Mato Grosso do Sul. 3. Paranaíba.
Índice
Meninos de porta de rua – 13.
. Valentia encomendada – 29.
. Começa a guerra com o Paraguai – 41.
. O italiano do realejo e o major gaúcho – 55.
. Pereirinha promovido a cabo – 69.
. A indicação do voluntário – 81.
. As delícias da guerra – 99.
. O desastre de Laguna 107.
. O rapto da bela índia – 125.
. Bagunças revolucionárias – 141.
. Bravura feminina – 165.
. Quase um arquétipo – 181.
Marcos Faustino 7
Valentia encomendada
era para quem podia se dar ao luxo de ter alguns para seu conforto
ou serviço e, mesmo, algumas para seu prazer.
– Povinho curioso. É um tal de abeirar assunto, querer saber as
novidades de fora. O intendente conservava o silêncio, aumentava a
expectativa. Sabia que correio e viajantes eram a ligação com o resto
do mundo. Conteúdo de correspondência não revelado, curiosidade
aguçada, mexerico na certa.
– Qualquer hora aparece a oportunidade, inventava explicação
de sua conveniência e pronto – pensava Braulino.
A indicação do voluntário
volta, quanto tempo afastado? Sertão bravo, terra mais dos índios,
perigos constantes na viagem demorada.
– Ele não! E a Menina aguentava a distância, já tão desacos-
tumada à ausência de homem? Medo da perda inevitável, irrecupe-
rável depois da primeira traição. Vó não ia dar conta, mesmo redo-
brando os cuidados.
E se apertassem, exigissem, recusar como? Conselho da Vó: se
mandarem, obedece e vai. Não tem outro recurso, sem jeito de contra-
riar quem garante o emprego. Descumprimento de ordem não é ati-
tude de cabo. Afronta é desobedecer o intendente, resto da vida des-
graçado sem serviço por aqui, só mudando de região, mesmo não
contando com perseguição mais cruel. O salário não é de jogar fora e
tem a vantagem extra da posição: polícia prende. Não pode errar é
na avaliação. Cadeia para sujeito metido, só a mando ou endossado.
Zé coitado pode, Pereira resolvia e pronto, esteja preso. Para soltar só
com ordem do intendente, favor devido. Vantagem grande para os
negócios da Vó, a autoridade do Pereira ajudava bem. A presença
eventual da farda impunha respeito aos abusos da bebida.
– Então ia, mas levava a Menina!
Bobagem, preocupação dobrada. E se encontrassem inimigos
poderosos, em maior número? As muitas barbaridades feitas nas mu-
lheres, contra a vontade, dominadas sem piedade. Besteira... morria
duas vezes: a primeira, natural por bala ou ponta de baioneta; a se-
gunda, pior, castigo no inferno por revolta descontrolada, protesto
esbravejado ali mesmo na porta do céu, desacordo manifestado direto
a Deus, por Ele ter permitido o malfeito à sua Menina indefesa.
Era aguardar e torcer para que tudo desse certo. Enquanto isso,
conversava daqui, ponderava dali, a mudança de opinião aparecia:
não queria, mas ia.
Não deu certo a torcida para que não se lembrassem dele. De-
cisão tomada: não ia, que se danasse tudo, queria a Menina. Depois
ia ver como ficava a situação. Talvez convencesse o manda-chuva, ia
alegar necessidade de garantir a ordem pública, prender bêbados
inoportunos, segurança dos prédios governamentais, continência na
hora certa. Fim da reunião, só o intendente, veio o berro: – Cabo Pe-
reira! Vem cá, apresente-se. Pressa do militar, continência batida. Às
suas ordens, meu comandante. A conversa foi curta e o assunto resu-
mido, só de conhecimento dos dois.
As delícias da guerra
O desastre de Laguna
25
25. Rafaela Barbosa de Lopes (1815-1913) nasceu em Sabará (MG), vindo
inicialmente para Paranaíba (MS), onde se casou com Gabriel Lopes e nasceram-
-lhe os primeiros três filhos. O esposo em viagem exploratória conhecera a região
da Vacaria, onde encontrou terras e gado selvagem, animais provavelmente re-
manescentes dos aldeamentos jesuítas. Seus relatos entusiasmaram os Lopes e
Barbosas, que em seis carros de bois deixaram Paranaíba. Rafaela e Gabriel
estabeleceram-se a três quilômetros do rio Apa, hoje incontestável divisa entre
Brasil e Paraguai, em local por eles denominado fazenda Monjolinho. Seu marido
foi assassinado por dois de seus escravos. Logo após, patrulha paraguaia incendiou
a fazenda e levou-a prisioneira com suas crianças e mais trinta pessoas, estratégia
para afugentar os brasileiros da região. Do degradante cativeiro em Assunção, por
Marcos Faustino 113
não temais, não recueis, nem lhes tenhais medo, porque o Senhor vosso
Deus está no meio de vós, e combaterá por vós contra vossos inimigos,
para vos livrar do perigo.
Novamente, Números: Quando te aproximares para o combate,
primeiramente lhe oferecerá a paz. Mas se ele não quiser aceitar as con-
dições e começar a guerra contra ti, cercará a cidade do teu inimigo. E
quando o senhor teu Deus te houver entregado, passarás ao fio da espada
todos os varões que nela há, poupando mulheres, meninos e animais.
Distribuirás toda a presa pelo exército e comerás dos despojos de seu
inimigo.
O belga não se lembrou de que os adversários eram também
cristãos, valendo também para eles tais exortações.
era ventura certa, como ela, Cuiabá tem poucas, reforço de ideia
com a vitória assegurada.
Às contas, à realidade.
Até agora tudo nos conformes: a mula Branca de volta com ele.
Vendera o rosilho paraguaio, animal gordo pelo descanso nos Morros,
bem zelado pelo besta do Miguel Arcanjo. Preção, valor absurdo de
alto, duzentos mil réis, dinheirão, a escassez de montarias elevava o
preço. Roubalheira mesmo era do Velhaco, pedir trinta mil pelo uso
exclusivo do carro confortável, mais setenta pela mentira do papel;
somando tudo, cem mil réis. A prenda era para o Toné explicou desde
o início. Não quis falar na hora, ia dizer depois, esperteza de negócios,
pagamento só no Rio de Janeiro, na entrega da mercadoria. Agora,
como o Velhaco não prestou atenção no embarque, com a troca da
índia, ele Pereirinha já não podia garantir o pagamento combinado.
Receber o dinheiro, problema do Velhaco com o Toné, lá no Rio de
Janeiro. Missão difícil para Pereirinha: passar a perna num velhaco.
Bagunças revolucionárias
do mesmo partido político. A liga- 27 27. Generoso Paes Leme de Souza Ponce (1852-
ção entre eles vinha da época em 1911), alguns anos após a Proclamação da Repú-
que o marechal prestava serviço blica, comanda 1.500 homens que invadem a ca-
pital Cuiabá para repor no cargo o governador Joa-
em nosso estado. Floriano foi pre- quim Murtinho, deposto por “revolução”. Foi
sidente de nossa província, ainda senador e governador do estado de Mato Grosso.
Comandou diversos episódios da violenta política
no período do império, amizade mato-grossense no início do século XX.
velha, antiga. E também a lei está 28 28. Manuel José Murtinho (1847-1917), advo-
gado, foi governador de Mato Grosso (1891), tendo
do lado deles: o vice do Murtinho sido deposto por “revolução” (1892) e reconduzido
é o próprio Generoso. Daí a “Repo- ao cargo por “revolução” contrária (1893). Foi
sição da Legalidade”, movimento ministro do Supremo Tribunal Federal. Seu irmão
Joaquim Murtinho, engenheiro e médico, três vezes
liderado por Generoso, à frente do senador, ministro da Viação foi também o ministro
seu bem armado Batalhão Floriano das Finanças a quem coube resolver a especulação
financeira conhecida por Encilhamento, criada no
Peixoto, puxa-saco. Vitorioso, deu mandato de seu antecessor, Rui Barbosa. Em Porto
nova posse ao Murtinho. Dizem Murtinho (MS), o porto fluvial no rio Paraguai foi
construído para escoar a produção da Companhia
que o Generoso quer é o Senado, Mate Laranjeira, que iniciando sua atividades no
ficar no Rio de Janeiro, perto de império, teve sua área de concessão ampliada até
atingir 5 milhões de hectares de ervais nativos em
Floriano, garantindo a proteção aos terras devolutas onde viviam os índios caiuás e
amigos do estado de Mato Grosso. guaranis, no início da República, quando então
passou a ser propriedade da família Murtinho. Os
A vitória de seu movimento foi herdeiros da Madame Lynch e do Marechal Solano
muito facilitada pela infeliz ideia López, tendo Rui Barbosa como advogado, preten-
deram na Justiça Brasileira a propriedade de gran-
do adversário de separar o nosso des áreas nesta mesma região, alegando que as
estado do resto do Brasil. Pelo jeito receberam do então presidente paraguaio, situadas
anteriormente em território do país vizinho. O STF,
o calor úmido de Corumbá afetou na década de 20 do século passado, resolveu contra-
a cabeça dos inimigos locais dos riamente às pretensões dos herdeiros.
Murtinhos, ideia ridícula a tal “Re- 29
29. Nascido em família humilde de Alagoas, Flo-
riano Vieira Peixoto (1839-1895) fez brilhante
pública Transatlântica de Mato carreira militar, participando do derradeiro episó-
Grosso”. Difícil até entender o no- dio da Guerra do Paraguai: a morte de Solano López
em Cerro Corá. Durante o império foi presidente
me, ironizou no final: – Deveria da província de Mato Grosso. Assumiu a presi-
ser “República Mesopotâmica de dência após a renúncia do proclamador da Repú-
blica, Marechal Deodoro da Fonseca. Tendo en-
Mato Grosso”. Estamos é cercados frentado 19 revoltas no seu curto mandato de três
de rios: Paraguai e Paraná e os da anos, seu estilo de ação rendeu-lhe o alcunha de
“Marechal de Ferro”, consolidando a República,
bacia amazônica ao norte, muito cuja proclamação foi o primeiro golpe militar
longe do oceano. Transatlântica... brasileiro.
ideia ridícula, febre mental pantaneira talvez...
Gargalhadas gerais para a República Transatlântica.
Marcos Faustino 145
* * *
Marcos Faustino 151
mais, evitando ruídos para não chamar a atenção dos assassinos. Manhã
seguinte da noite sem dormir, certeza da retirada dos malvados, a
revolta na visão: casa, curral, paiol, serviços de toda uma vida carbo-
nizados; mulher e filha mortas.
– Deus, rezou Nica, não peço justiça, quero é vingança. Que a
sua divina ira caia sobre quem foi capaz desta desgraça com a minha
família. Deus que tudo pode, ajudai-me nesta hora.
Vila vazia, quase sem viva alma, Benitez não encontrou nin-
guém. Fugiu quase toda a população da cidade que não era, diga-se de
passagem, muito numerosa em consequência das repetidas perturbações
da ordem, que então se verificavam no município bem como do regime
de força imposto pelos agentes do poder público. Onze carros de boi le-
vavam as munições, víveres e as bagagens dos retirantes31 para a fazenda
Perdizes do major Alves, lá para as bandas das Morangas.
Coronel Castro e companheiros de política, há muito preocu-
pados com a lida de gado nas suas afastadas fazendas, propalando
31. Pequena História de Sant’Anna do
31
nada saber, pretextavam inocência. Medo
Paranahyba, registros de dr. Wladislau negado a justificar também suas ausências.
Garcia Gomes, atualizados por Leal
de Queiroz, Paranaíba, 1949. Sargento Pereira, comandante do des-
tacamento local encarregado de zelar pela ordem pública, precaução
necessária, já estava em distantes diligências policiais, escapando assim
do confronto desigual e preservando a integridade física de seus dois
únicos comandados. Mantinha sempre disponível algumas ordens de
captura, bandidos ordinários sem perigo, caso precisasse sumir por
uns tempos. Preferência pelo mais improvável encontro, Pereirinha
escolheu o destino mais conveniente, anunciou o seu dever e saiu em
missão de captura. Os dois auxiliares, necessidade de amparar o chefe,
não podiam negar-lhe a solidariedade da companhia.
– Lembram do anúncio da Câmara, começo da guerra, ban-
deirinhas nas lanças de bambu, eu ainda era o cabo Pereira, dez ca-
valeiros esparramados por este sertão levando notícias dos aconteci-
mentos? Lembraram e riram.
– Lembram que lá pelos lados do rio Indaiá mora muita gente
miúda, hospitaleira, gado ralo, sem interesse para a arrecadação de
156 Águas atávicas
Benitez, raras visitas bem recebidas. Seguro para nós, comida boa e
repouso garantido.
No caminho, o sargento quis recompensar os subordinados,
maravilhando-os com suas histórias.
– Vez que eu, no tiro de cartucheira, abati uma vaca e dezoito
passarinhos com um disparo só. Acho que até já contei este caso, mas
posso repetir para melhor lembrança dos amigos. Pois é, foi na saída
de Coxim. Missão nossa descobrir o caminho para a tropa que vinha
atrás. Sem mantimento de nenhum tipo, perdido na travessia de um
rio, avançando cuidadoso, perigo de embate com o inimigo, arma de
fogo com uso restrito para estampido não revelar nossa posição, laço
de gado ninguém pensou em levar, dia inteirinho seguindo uma vaca,
como caçador. Já tinha a danada de vista, espera cuidadosa na mira.
Sem aviso, tiro irresponsável espantou a comida certa. Era um soldado
com prosa conhecida de mentiroso, falsa fama de bom atirador. Vaca
sumiu na capoeira. Mateiro bom que sempre fui, encontrei a fujona.
Esperei a oportunidade. Escurecendo, tropa afoita me apressando,
“vai logo sargento, mata nossa fome, acerta essa vaca”. Percebi melhor
situação, um bando de passarinhos perto da vaca. Caso possível, acertar
aves e animal, só preparando cartucho adequado: um chumbo grosso
para a vaca, chumbinhos miúdos para os passarinhos, bastante pólvora
para mais velocidade, economia de barulho, um só ao invés de dois
disparos, por causa dos paraguaios próximos. Caprichoso, ajeitei tudo
com muito carinho, espoleta, pólvora, chumbo e chumbinhos, rolha
de pano. Saraivada de palavrão a azucrinar meus ouvidos, pressa dos
companheiros. De minha parte, mantive a calma. Pronto o cartucho,
faltava o ângulo, posição certa para o disparo certeiro. Serenidade
minha, quase desespero dos outros. Demora mas aparece, na mesma
linha pássaros e vaca: disparo macio; vaca prancheada e dezoito
pombas para a panela. Recebi muitos cumprimentos, merecia mesmo,
finalizou Pereirinha, evitando a falsa modéstia. Alegres risadas enco-
briam o deboche incrédulo dos subalternos.
Povinho besta, pensou Pereirinha. Duvidar do quê? Que dife-
rença faz se um tiro ou dois? Chumbo grosso em um, fino no outro.
Caso mais ajeitado se juntar num só disparo. Rápidas lembranças do
Marcos Faustino 157
agora não peguei nenhum. Meu gado sumiu, é verdade, mas sei onde
tem mais aqui por perto, de gente que tem culpa comigo. Faça cumprir
a lei que eu providencio os recursos.
– Muito bem, respondeu Benitez, que tinha alguma prática
anterior em substituir autoridades nesta nova República dos Coronéis.
Manda a Câmara enviar ofício ao... nem sei quem está mandando
agora, põe aí: Excelentíssimo Senhor Cidadão Presidente do Estado de
Mato Grosso, achando-se impedido o Intendente Geral do Município,
assassinado o primeiro-vice e mudado o segundo, a Câmara nomeou o
Vereador Nicanor, para exercer o cargo interinamente. Ainda não se
acharam diversos livros, como o da receita-e-despesa e os documentos de
dinheiro que estavam na casa do Intendente impedido. Com a retirada
de todo o povo da cidade, falta ainda pessoal idôneo para diversos
empregos. Os habitantes da cidade que se retiraram induzidos por
maldosos comentários, não querem voltar, e as casas que foram
arrombadas, começam a se deteriorar. As plantações e os gados, além
dos que conduziram os revolucionários para além do rio Paraná, perecem
a mingua de trato.
– Mas, comandante, eu nem sou vereador como posso passar a
intendente. Quem vai assinar este ofício? Nica perguntou.
– Intendente e vereador, fica sendo você agora, Benitez retru-
cou com firmeza. Você assina o ofício, é claro; afinal é o intendente,
autoridade máxima do município, respondeu o comandante, res-
paldado na força da mais genuína lógica. Informa aí também que
foram destinadas diversas pequenas quantias para gratificar aos
cidadãos pobres que, abandonado seus lares vieram colocar-se ao nosso
lado na defesa dos brios ofendidos e na restauração da justiça. Afinal,
meus homens precisam de pagamento para seus estimados serviços,
e nada ganhando além da vazia promessa da entrega de seu gado,
Nica, é justo que o custeio desta força revolucionária seja levado à
alçada pública.
Achando-se o chefe do posto policial, sargento Pereira, em
lugar incerto e desconhecido e faltando pessoal idôneo à expedição
de ordens competentes, foi Manuel Marques, irmão do Bacurau, preso
sem mais formalidades, quando tentava escapar para Goiás e imedia-
Marcos Faustino 159
Reses gordas a menos nos pastos têm pouco valor comparado ao apreço
de todos vocês que aqui vieram procurar abrigo e proteção nesta
fazenda. A união demonstrada foi a única força a garantir nossas
vidas e propriedades. Que sumam para o inferno os bandidos que até
há pouco infestavam a nossa região. Aplausos e entusiásticos “Viva o
major”, alguns tiros para cima na falta de festivos rojões.
Sem Benitez, a região foi voltando ao normal, casas da vila reocu-
padas, comércio ressuscitando, intendência reanimada por novo ocupante.
Sem se dar conta, o correntino levara algumas bois do major Alves.
Poucos, mas roubados de poderoso homem. Dívida pecuniária
pequena, mas de grande valor moral, ofensa de difícil esquecimento.
Major Alves e Bacurau em Rio Preto, tentando recuperar o
gado roubado por Benitez. Com as autoridades da cidade, nenhuma
vantagem. Major se exaspera, prossegue até a capital paulista. De
São Carlos em diante, o trem de ferro, 34 34. Francisco de Paula Rodrigues Alves
poderosa invenção a devorar célere os (1848-1919) foi governador de São Paulo
por três vezes e presidente da República
muitos quilômetros de distância. É deste por duas. Riquíssimo plantador de café,
tipo de transporte que carece nosso esta- último paulista a ocupar a presidência
em 1919, na chamada República Velha
do, pedido já formulado por diversos par- caracterizada pela política do café (São
lamentares, em especial o general Osório Paulo) com leite (Minas Gerais) e que
durou até 1930 com a ascensão do gaúcho
que, herói de guerra, reconhece o valor Getúlio Vargas. Neste período, o poder se
estratégico de linha férrea ligando São expressava pela “Política dos Governa-
dores” , que podiam destituir deputados
Paulo a Corumbá. A facilidade de supri- opositores. Quando no governo estadual,
mentos e a rapidez no transporte de tropa Rodrigues Alves enviou tropas para o
oeste paulista por temer que tumultos em
teriam desencorajado a aventura de So- Paranaíba (MS), pudessem afetar São
lano López. Menor dispêndio, nenhuma Paulo, no início do século XX.
vida perdida. Com a estrada feita, o suor fica; com a guerra, só desper-
dício, valiosos recursos afogados em muito sangue.
Na capital, o major foi recebido pelo governador do Estado,
cortesia do plantador de café e parente Rodrigues Alves34. Retornou
a Rio Preto com promessas de enérgicas providências para a recupe-
ração do gado e a prisão dos facínoras. Balizamento claro do gover-
nador: não queria que bandoleiros e malfeitores foragidos de outras
plagas fizessem do estado de São Paulo o esconderijo de seus crimes.
Logo a notícia se esparramou, Benitez morto por bala de policial,
Marcos Faustino 161
Bravura feminina
feitiço das sete pragas para convencer o inimigo a deixar seu povo
partir. A separação das águas para a passagem dos seus e a destruição
dos perseguidores em seguida, com o fim do encanto. Moisés, um
grande Karaí.
O padre pensou: todo o esforço de evangelização, desde os je-
suítas das Missões até os nossos dias, resultar no reforço de crenças
indígenas. Talvez enganara-se ao tomar como certo que os índios não
possuíam uma religião, o que parecia facilitar o ensinamento da fé
católica. Entretanto, a sua curiosidade nas semelhanças apontadas o
emudeceu. Deixou que a índia prosseguisse.
– Mas que terra era esta que Moisés procurava? Perguntei há
muitos anos atrás na aula de catecismo, quando era ainda menininha.
Resposta: o lugar era Canaã, onde jorrava leite e mel, a comida, maná,
caía do céu. Vida de acordo com os mandamentos, sem pecado, sem
mal. Nova e eterna aliança com Deus. Deu errado, Moisés morreu
antes de chegar a tal terra, adoração ao bezerro de ouro, contrariedade
às leis de Deus, o pecado, o mal.
– Canaã, parecida com a Terra sem Males. Monte de árvores
intocadas, onde os animais procuram as flechas e o milho cresce sozi-
nho, comida garantida sem trabalho, território virgem, intacta floresta
dos antigos, espaço para o exercício da nossa maneira de ser. Cami-
nhada constante, sem permanência de lugar, a procura prazerosa de
abundantes caças, comida farta, trabalho nenhum.
– Outra história bonita era a de São Tomé, Pai Tomé, primeiro
padre que apareceu por aqui. Muitos caminhos, peabiru, em direção
a água grande, ao mar.
Procurando entender o imaginário da índia, na cabeça do pa-
dre surgiram imagens do Paraíso Perdido, do Jardim do Éden. Pensou,
talvez, simples desejo de retornar ao modo de seus ancestrais, a feli-
cidade primitiva da imensidão das terras, sem concorrência de espa-
nhóis e portugueses, bem coletivo de uso exclusivo dos índios.
Padre veste saia, mas é homem. Marido pode não gostar desta
conversa sem ele, Imbé então resolveu: – O senhor fica aqui na sala
que meu marido já vem. Enquanto isso preparo o café na cozinha.
Marcos Faustino 167
– Sei não, mas parece que a coisa anda feia para o lado de Co-
rumbá. Agitação com a volta do Generoso Ponce e dr. Correia da
Costa36 do exílio em Assunção, no Paraguai. Jun-
38
38. Antônio Correia da Costa,
engenheiro, ligado aos Murti-
taram as forças com os recentes adversários, os
nho e Generoso Ponce, acom- Murtinhos, criando uma frente política chamada
panhou este quando no exílio Coligação. Fato marcante foi a derrota genera-
em Assunção, Paraguai, onde
editavam jornal oposicionista lizada dos partidários de Totó Paes nas últimas
“A Reação”, distribuído em eleições para as intendências, Câmaras Munici-
Mato Grosso. Foi governador pais e Assembleia Legislativa. A Coligação oposi-
do estado de 1895-1898.
cionista venceu em quase todos os lugares. Insa-
tisfação com os desmandos do governo aparecendo nas urnas também
para o Senado e Câmara Federal. Do jeito que a coisa vai, Totó não
termina o mandato, mesmo com o apoio do presidente da república.
A notícia por todos esperada: revolução. Generoso Ponce saiu
de Corumbá, comandando a “Força Naval Libertadora”, dez vapores,
vinte chatas e cerca de quinhentos homens, subiu o rio Paraguai em
170 Águas atávicas
Quase um arquétipo
Outras leituras
. A CHAMA DA NACIONALIDADE, Marco Antonio Cunha, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exercito Editora, 2000.
. A RETIRADA DE LAGUNA, Visconde de Taunay, Edições de Ouro, 1972.
. CORONÉIS E BANDIDOS EM MATO GROSSO, Valmir Batista Corrêa,
Campo Grande, Editora UFMS, 1995.
. HISTÓRIA DE MATO GROSSO DO SUL, Hildebrando Campestrini,
Campo Grande, IHMGS, 7. ed., 2012.
. MALDITA GUERRA, Francisco F.M. Doratioto, São Paulo, Companhia
das Letras, 2002.
. MEMÓRIAS, Visconde de Taunay, Edição de Sérgio Medeiros, São
Paulo, Iluminuras, 2004.
. MULHERES COMUNS, SENHORAS RESPEITÁVEIS, Maria Teresa
Garritano Dourado, Campo Grande, Ed. UFMS, 2005.
. O BANDEIRANTE - PAI PIRÁ; ANTÔNIO PIRES DE CAMPOS E OS ÍNDIOS
CAIAPÓ, Marlei Cunha, Paranaíba, Editora Caiapó, 2005.
. ONDE CANTAM AS SERIEMAS, Otávio Gonçalves Gomes, Campo
Grande, 1988.
. PEABIRU: OS INCAS NO BRASIL, Luiz Galdino, Belo Horizonte. Editora
Estrada Real, 2002.
. PEQUENA HISTÓRIA DE SANT’ANNA DO PARANAHYBA, Registros do
Dr. Wladislau Garcia Gomes, atualizados por Leal de Queiróz, Paranaíba,
1949.
. SANTANA DO PARANAÍBA, Hildebrando Campestrini, Paranaíba,
Prefeitura Municipal de Paranaíba, 2002.
. SEISCENTAS LÉGUAS A PÉ, Acyr Vaz Guimarães, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército Editora, 1999.
. SENHORINHA BARBOSA LOPES, Samuel Xavier Medeiros, Campo
Grande, Editora Gibim, 2007.
“Incentivo do Fundo de Investimentos Culturais – FIC/MS –
da Fundação de Cultura
do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul
(Lei n. 2.645/03 – Campo Grande –
Mato Grosso do Sul – 2013)”.