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84-101, setembro/2015
http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2015v27n45p84
Marciel Barcelos1
Wagner dos Santos2
Amarílio Ferreira Neto3
RESUMO
4 O mapeamento foi realizado no Portal de Periódicos da Capes, nas áreas da Educação e Educação Física com
revistas B3 a A2 no sistema WebQualis, escritas em língua portuguesa.
5 Esta pesquisa conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes).
6 Utilizamos a palavra “crianças” no plural por considerarmos que cada uma delas tem, em suas histórias, ex-
pectativas, desejos, medos e ansiedades que se configuram para a construção do seu repertório de práticas nos
espaços e tempos da escola.
7 No intuito de preservar a identidade dos participantes desta pesquisa, atribuímos nomes-fantasia para os en-
volvidos, bem como para a instituição educacional em que estivemos inseridos.
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8 A professora com formação em Educação Física, Joana, embora efetiva da PMV, estava vinculada à EMEF
“Espírito Santo” em lotação provisória.
9 Os grupos de conversas se formavam entre uma aula e outra, nos minutos que antecedem o recreio, a hora da
entrada, a volta do recreio e a hora da saída.
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zados nos cotidianos dos espaços e tempos ao Ensino Fundamental, por meio de sua
da escola pela reprodução interpretativa cultura própria. O registro a seguir fornece
(CORSARO, 2011) que consiste na ressigni- indícios dessa compreensão:
ficação de uma atividade cotidiana a partir
da produção cultural das crianças. “A gente faz um planejamento com-
A reprodução interpretativa do surf, partilhado com os demais professores
do ciclo [1º; 2º e 3º ano do Ensino
por William, evidencia um dilema enfren-
Fundamental], com o objetivo de re-
tado pela escola, anunciado por Cambi cepcionar/receber esses alunos, então
(1999), ao sinalizar que a escola moderna, fazemos muitas atividades na área ver-
que reclama para si o direito dos cidadãos de que possam envolver todos os alu-
nos. Fazemos bingo, piqueniques e etc.
e também a liberdade escolar dos alunos e
Nessa semana, cada dia após o recreio,
do pensamento, é instância incumbida de nós fazemos atividades diferentes, com
controle, juntamente com outras institui- o objetivo das crianças se sentirem aco-
ções, de cuidar e formar as crianças para o lhidas e terem maior facilidade de se in-
tegrar. Essa atividade não vem de fora;
convívio em sociedade.
ela parte daqui, desta escola” (MARIA).
É nesse ponto que o dilema entre
cuidar e experimentar se acentua, pois é
Ao narrar, rememoramos experiên-
preciso fazer para conhecer, para dominar
cias, deixando transparecer na fala os fatos
corporalmente uma atividade, para reco-
que marcam o momento vivido, trazendo à
nhecer seus limites e suas potencialidades.
tona instantes seletivos da memória. Desse
Assim, a questão que fica é maior que o
modo, a professora regente demarca o es-
“não pode fazer”, é olhar para as práticas
forço conjunto dos professores do primeiro
infantis e decidir entre permitir a vivência ou
ciclo para receber as crianças com seis anos
minimizar os problemas que podem surgir.
de idade na EMEF “Espírito Santo”, por
Nesse sentido, não queremos dizer
que a hora do recreio não deva ter orienta- meio de sua narrativa no presente-passado
ção externa, mas sim ressaltar os dilemas e (RICOEUR, 1994), evidenciando o uso
conflitos existentes na escola que desafiam das brincadeiras como para produzir um
os autores escolares cotidianamente a movimento de tessitura entre as culturas
produzir negociações e arranjos em suas escolares e infantis.
práticas que visam à construção de lugares, As experiências da praticante profes-
momentos e instantes destinados à apropria- sora regente com formação em Pedagogia
ção das culturas escolares. Esse movimento Maria lhe permitiram articular as necessi-
é possível a partir do momento em que os dades das crianças que entram no Ensino
praticantes recordam suas experiências e as Fundamental com as culturas escolares.
usam para produzir práticas voltadas para Assim, as brincadeiras produzidas dialogam
a incorporação das culturas escolares pelas entre si por meio do lazer e do cuidar e as
crianças com seis anos. práticas são ressignificadas mediante as
Nessa perspectiva, observamos, na objetividades dos dispositivos escolares.
primeira semana de aula, acordos, negocia- Em sua inventividade diária, os
ções, arranjos e tensões entre os praticantes professores se apropriam dos instrumentos,
professores na busca de integrar essa criança espaços e tempos da escola para produzir
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ações a partir de sua experiência que po- “Aqui não tem mais aquilo do brincar.
tencializam as metodologias assumidas, Isso vai se perdendo, porque aqui é es-
cola, tem o processo de alfabetização.
produzindo sentido para elas na media- Lá na Educação Infantil eles não têm
ção de suas intencionalidades educacio- essa obrigação de aprender; aqui eles
nais com a singularidade das crianças têm” (JOANA).
(BENJAMIN, 2002).
As práticas compartilhadas entre os “Aqui, ela [a criança] sai pra Educa-
praticantes do cotidiano produzem espaços ção Física, para a Informática e para
a biblioteca, mas sair para brincar só
de socialização coletivos para crianças e quando tem a brinquedoteca ou nos
professores, por entender que somente o momentos proporcionados pela Edu-
processo formal de escolarização não abar- cação Física. Aquilo do brincar espon-
ca a complexidade cotidiana do processo taneamente ela começa a perder. Isso
passa a ser papel da família, propor-
de transição entre a Educação Infantil e o cionar o lazer e a brincadeira. A escola
Ensino Fundamental. [Ensino Fundamental] proporciona sim
[o brincar], mas nos momentos destina-
dos a isso. Aquele brincar como eixo
A criança na escola central não tem. O eixo central agora
é a alfabetização, que a criança alcan-
ce o saber da escrita no tempo certo”
Conforme nos envolvemos com (MARCELO).
os praticantes do cotidiano escolar e nos
apropriamos dos espaços e tempos da es- “A Educação Infantil é muito diferente.
cola, escutamos atentamente as narrativas. As rotinas em si não permitem esse pro-
Nesse processo a expressão “aqui é escola” cesso sistematizado de alfabetização, é
nos chamou a atenção, por demarcar um muita brincadeira. Conversando com
a pedagoga de lá [CMEI], ela me disse
sentido próprio ao Ensino Fundamental,
que, se somados o tempo de aula na
uma identidade representada pela inten- Educação Infantil não chega a duas ho-
cionalidade do trabalho pedagógico que ras semanais, e aqui eles têm em um
busca-se diferenciar das ações dos demais dia quatro horas de aula” (MARIA).
níveis da Educação Básica.
Objetivamos entender, os sentidos As narrativas indicam o lugar ocupa-
atribuídos a essa frase e como as concep- do pelo Ensino Fundamental na concepção
ções de crianças e infância dos autores de escolarização dos praticantes, eviden-
escolares dialogam nesse sentido, na tran-
ciando que a centralidade do trabalho
sição da Educação Infantil para o Ensino
pedagógico dessa etapa é a apropriação
Fundamental.
cognitiva dos conteúdos. Elas também atri-
A expressão “aqui é escola” ganha
buem sentido ao trabalho produzido nas ins-
sentido na medida em que a entendemos
tituições de Educação Infantil, demarcando
como dispositivo de escolarizar, que per-
aquele espaço como local de brincadeira e,
mite às crianças uma leitura ampla dos
processos sociais em que estamos inseridos nesse caso, de uma brincadeira desprovida
nos cotidianos. As narrativas evidenciam de intencionalidades pedagógicas, como
quais sentidos os praticantes produzem reforça a narrativa da praticante professora
sobre seu lugar de trabalho: regente Maria: “O CMEI tem uma rotina
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não possam ser usados como meio para o vida, sobretudo na escola. Os professores
aprendizado de um determinado conteúdo, se apropriam da brincadeira para usá-la
mas que eles se constituem como um patri- como prática de ensino que dialoga com a
mônio cultural imaterial importante para as necessidade das crianças no entendimento
crianças, que tem função social, que estreita de que a aquisição dos saberes, por vezes,
relações cotidianas, confere identidade, ocorre coletivamente e, nesse sentido, sig-
cultiva brincadeiras populares e transforma nifica articular a prática pedagógica com
experiência em aprendizado. Assim, no aquilo que atribui identidade às crianças.
momento em que a criança brinca, ela se Interessante observarmos como o processo
constitui como sujeito, relaciona-se com de introdução dos jogos, brinquedos e brin-
o outro e conhece o mundo por meio de cadeiras foi adquirindo mobilidade no fazer
atividades que caracterizam a geração à cotidiano dos professores, sendo assumido
qual pertence. como instrumento pedagógico a partir das
Para entendermos como o jogo experiências vividas nos cotidianos da EMEF
é utilizado na aula da praticante Maria, “Espírito Santo”.
precisaremos confrontar a narrativa com Kramer, Nunes e Corsino (2011)
os registros de campo, na intenção de com- destacam que articular as culturas infantis
preender como a complexidade cotidiana e as culturas escolares são desafios encon-
confere lógicas transitórias, que evidenciam trados por professores na transição entre a
uma realidade diferente da encontrada nos Educação Infantil e o Ensino Fundamental,
discursos. Esses, por sua vez, são definidos haja vista que a criação de elos entre esses
por nossa memória, experiência e pelas conhecimentos reflete a necessidade de
apropriações das culturas presentes em produzir ações coletivas com as crianças
nosso fazer cotidiano. de seis anos, que auxiliem sua transição
e construção dos saberes dessas etapas da
“A professora regente ao perceber a escolarização.
dificuldade das crianças em aprender O praticante Marcelo evidencia,
o conteúdo – unidade, dezena e cen-
em sua narrativa, que esse movimento só
tena – criou uma brincadeira usando
canudos, onde cada aluno, ao falar um é possível nas rotinas de sala de aula, pois
número com um colega retira a mesma ele considera que, na Educação Infantil,
quantidade em canudos e, posterior- “Tem uma situação de rotina diferenciada.
mente, escreve no papel e tenta iden-
O CMEI tem uma rotina assim: café da
tificar se é unidade, dezena ou cente-
na. Quem acertar o maior número de manhã, brincadeira no pátio, momento
descrições vence a disputa para a sua em sala, brinquedoteca, Educação Física e
equipe” (DIÁRIO DE CAMPO, 18 de Artes. Então, quase não tem rotina de sala
junho de 2014).
de aula”, evidenciando as tensões existentes
na intencionalidade do trabalho pedagógico
No diálogo com Certeau (1994), no Ensino Fundamental: “Aqui querendo
entendemos que as práticas se configuram sim, querendo não, tem uma rotina de sala
na inventividade, a partir das apropriações de aula de um a cinco e meia”.
das experiências vivenciadas no cotidiano Marcelo confere sentido à escola
nas relações de poder que atravessam nossa (Ensino Fundamental) na oposição com a
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Educação Infantil, justificando que o lugar Porque ficar ali esse tempo todo senta-
da aquisição dos saberes privilegiados pela do, deve ser um problema muito gran-
de pra elas” (MARCELO).
sociedade é nas instituições de Ensino Fun-
damental. Isso significaria que os saberes
produzidos na primeira etapa da Educação Observamos uma preocupação
Básica não são importantes? Que os conteú- desse praticante em relação às ações das
dos da Educação Física não contribuem para crianças com seis anos nos cotidianos, de
a escolarização e constituição do repertório modo que ele busca compreender as angús-
de práticas? tias, expectativas, tensões e dilemas enfren-
Interessante percebermos como a tados por elas. Assim, a produção de uma
ludicidade acaba sendo o eixo mobiliza- rotina que não rompa com o entendimento
dor das práticas inscritas nos cotidianos da do que foi vivenciado pelas crianças na
instituição pesquisada. O coordenador de Educação Infantil, mas que se articule com
turno, ao repreender a prática de Miguel, a especificidade do trabalho pedagógico do
disse: “Por que você fez isso? Você ia gos- Ensino Fundamental constitui-se como uma
tar se alguém batesse em você? Não, né? ação produzida pelas suas experiências que
Imagina se o Homem-Aranha sai batendo procuram promover a transição de maneira
na cabeça dos coleguinhas”. Em um movi- paulatina, articulando as culturas e deman-
mento astucioso, Marcelo se apropria das das infantis com as intencionalidades do
culturas infantis e as ressignifica em sua fala, dispositivo de escolarizar.
produzindo um ajuste nas intencionalidades Corsaro (2011) reafirma a importân-
exigidas pela sua posição na escola, mas cia da brincadeira, ao sinalizar que, na in-
que leva em consideração a produção cul- teração, as crianças transformam experiên-
tural das crianças e aquilo que as identifica cias socializadoras em aprendizado, num
como crianças. movimento de desenvolvimento coletivo.
Isso revela como as experiências co- A partir desse pensamento, entendemos
laboram nos ajustes, negociações e acordos os espaços de socialização coletiva das
existentes nos cotidianos da transição, que crianças como momentos de fuga às rotinas
demandam dos autores escolares mais que escolares, com importância e intencionali-
a leitura dos documentos oficiais sobre a dade educacionais que, nos cotidianos, são
incorporação dessas crianças. A narrativa marcadas pela inventividade das crianças,
a seguir evidencia esse movimento que de modo que a socialização de suas expe-
perpassa pela sensibilidade e concepção riências e a construção dos seus repertórios
de crianças dos autores escolares: de práticas contribuem mutuamente no seu
processo de formação e escolarização.
“Eles ainda têm aquela coisa do brin- Dessa forma, a mediação entre o
car. Aí é assim, eles saem da sala para trabalho pedagógico e as demandas infantis
beber água, vão ao balanço, brincam produzem ajustes nos espaços e tempos da
um pouquinho e voltam pra sala, ou
escola, no intuito de incorporar nas crianças
ficam um tempo maior no pátio. Então,
a gente tem toda uma situação [no En- as culturas do lugar. Assim, a dicotomiza-
sino Fundamental] de ficar empurran- ção entre brincar e aprender, juntamente
do a criança pra sala. É o tempo dela! com a definição de espaços destinados ao
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cotidiano escolar conforme sua represen- -passado (RICOEUR, 1994) que consiste
tação de criança, infância e escolarização. na análise das dificuldades do trabalho
Durante uma aula na sala de ginás- pedagógico com as crianças de seis anos.
tica rítmica, três crianças pegaram as maças Ela as entende como praticantes que “ainda
(aparelho da ginástica artística) e começa- não” estão prontas para as intencionalidades
ram a brincar, duas simulando uma luta desse nível da Educação Básica, entretanto,
com espadas e a outra usando o aparelho essa concepção perde força no momento
como microfone (DIÁRIO DE CAMPO, 21 em que sua narrativa é ressignificada no
de maio 2014). A narrativa da praticante presente-futuro, ao projetar o restante do
ano letivo, estabelecendo a dimensão da
professora com formação em Educação
criança “quase lá”, por acreditar que elas já
Física evidencia seu entendimento sobre
estão se apropriando das condutas, normas
essa prática,
e regras do dispositivo de escolarizar.
Os tensionamentos provocados pela
“Tá vendo? [a professora mostra as
crianças brincando]. É difícil trabalhar
brincadeira também atravessam o cotidiano
com essa faixa etária porque eles ainda das práticas produzidas em sala de aula, de
não estão maduros suficientes, eles fo- maneira que permitem a produção de uma
gem muito, se perdem, perdem o foco categorização de seus alunos, de acordo
no que está sendo ensinado. Mas isso com os níveis de interesse e apropriação
já foi mais, agora está diminuindo”
(JOANA).
das culturas escolares.
10 Trazemos como exemplos pesquisas de revisão bibliográfica e análise documental como modelos metodológicos
que não se debruçam sobre as práticas cotidianas.
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ABSTRACT
The following article aims to understand the concepts of children, childhood and
education of practitioners of everyday (Teachers graduated in physical education,
conductor teacher graduated in Pedagogy and coordinator graduated in Physical
Education EMEF “Espírito Santo”). Therefore, ethnographic study case became attributed
and used as narrative sources produced through record fields, interview and discussion
groups. The results show the creation of strategies to incorporate in the children the
school cultures. That path is produced by the author’s experiences in producing moments
that articulate the cultural practices of children with the intentions of the Nine Years of
Elementary School Education.
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