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Motrivivência v. 27, n. 45, p.

84-101, setembro/2015

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2015v27n45p84

CRIANÇAS, INFÂNCIA E ESCOLARIZAÇÃO:


tessituras na transição da educação infantil
para o ensino fundamental de nove anos

Marciel Barcelos1
Wagner dos Santos2
Amarílio Ferreira Neto3

RESUMO

O presente artigo busca compreender as concepções de crianças, infância e escolarização


dos praticantes dos cotidianos (professores com formação em Educação Física, profes-
sora regente com formação em Pedagogia e coordenador de turno com formação em
Educação Física da EMEF “Espírito Santo”). Para tanto, caracterizou-se como um estudo
de caso etnográfico e utilizou, como fontes, narrativas produzidas por meio de registros
de campo, entrevista e grupos de conversa. Os dados evidenciam a criação de estraté-
gias para incorporar nas crianças culturas escolares. Esse caminho é produzido pelas
experiências dos autores cotidianos em produzir momentos que articulem as práticas
culturais das crianças com as intencionalidades do Ensino Fundamental de nove anos.

Palavras-chave: Educação Física; Cotidiano Escolar; Transição da Educação Infantil


para o Ensino Fundamental

1 Mestrando em Educação Física. UFES, Vitória/Espírito Santo, Brasil. E-mail: marcielbarcelos@gmail.com


2 Doutor em Educação. Professor do curso de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação
Física da UFES. Vitória/Espírito Santo, Brasil. E-mail: wagnercefd@gmail.com
3 Doutor em Educação. Professor do curso de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação
Física da UFES. Vitória/Espírito Santo, Brasil. E-mail: amariliovix@gmail.com
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INTRODUÇÃO produzidos sobre a inserção das crianças


com seis anos na Escola de Ensino Fun-
O cenário político que proporcio- damental (EMEF) “Espírito Santo”7 e como
nou a incorporação das crianças com seis suas experiências perpassam pelas ações
anos no Ensino Fundamental tem seu marco produzidas nos cotidianos, sobretudo nas
legal a partir da promulgação da Lei n° 11. aulas de Educação Física.
274 de 6 de fevereiro de 2006, estabelecen- Assim, ao nos debruçarmos sobre
do 2010 como prazo final para que todos os as práticas, procuramos conhecer as pro-
municípios brasileiros se ajustem à norma. duções cotidianas no período de transição
A partir desse momento, sua inserção tem da Educação Infantil para o Ensino Funda-
sido objeto de estudo do campo da Educa- mental, de modo a entender as tensões,
ção,4 no que tange às questões legais e de negociações, arranjos e ajustes existentes
financiamento, práticas docentes, letramen- nesse processo. Nossa intenção é contribuir
to e formação de professores. para o debate sobre esse tema por meio das
Chamamos a atenção para um análises das práticas de transição entre as
aspecto pouco explorado na transição da duas primeiras etapas da Educação Básica.
Educação Infantil para o Ensino Funda- Assim, poderemos entender como as expe-
mental, que são as relações construídas na riências são utilizadas no momento de rece-
complexidade cotidiana, que atravessam o ber e incluir as crianças com seis anos nas
fazer diário dos professores e seus modos culturas escolares do Ensino Fundamental.
de interagirem com as crianças de seis anos,
promovendo a criação de maneiras de fazer
(CERTEAU, 1994) que vão construindo o PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
trabalho pedagógico nos espaços e tempos
da escola. O método científico que utiliza-
O presente artigo5 analisa as con- mos foi o “estudo de caso etnográfico”
cepções de crianças,6 infância e escolari- (SARMENTO, 2003), que nos permitiu
zação dos praticantes (CERTEAU, 1994) do vivenciar e conhecer as práticas diariamente
cotidiano escolar (professora regente com construídas pelos autores escolares nos es-
formação em Pedagogia, professora com paços e tempos da instituição pesquisada.
formação em Educação Física e coordena- Para tanto, mergulhamos nos cotidianos da
dor de turno com formação em Educação escola de março a dezembro do ano letivo
Física) por meio das suas práticas, de forma de 2014, duas a três vezes por semana,
que nos possibilite compreender os sentidos conforme a complexidade nos chamava.

4 O mapeamento foi realizado no Portal de Periódicos da Capes, nas áreas da Educação e Educação Física com
revistas B3 a A2 no sistema WebQualis, escritas em língua portuguesa.
5 Esta pesquisa conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes).
6 Utilizamos a palavra “crianças” no plural por considerarmos que cada uma delas tem, em suas histórias, ex-
pectativas, desejos, medos e ansiedades que se configuram para a construção do seu repertório de práticas nos
espaços e tempos da escola.
7 No intuito de preservar a identidade dos participantes desta pesquisa, atribuímos nomes-fantasia para os en-
volvidos, bem como para a instituição educacional em que estivemos inseridos.
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Nesse sentido, dialogamos com os presente-passado, presente-presente e


sujeitos envolvidos: a professora regente, presente-futuro. Assim, as falas são produ-
Maria, que possui formação em Pedagogia zidas no presente, mas podem remeter-se
desde 1989, pela Universidade Federal do a uma experiência do passado ou a uma
Espírito Santo (Ufes), é efetiva da Prefeitura projeção do futuro, seja de uma ação, seja
Municipal de Vitória (PMV), desde 2005, de intenção.
atuando na EMEF “Espírito Santo” a partir Também utilizamos como aporte
de 2006 sempre nas séries iniciais do En- teórico os estudos do cotidiano (CERTEAU,
sino Fundamental, sobretudo na turma do 1994), observando as estratégias que con-
1º ano; o coordenador de turno, Marcelo, servam as intencionalidades dos lugares e
licenciado pleno em Educação Física pela as táticas que, sofisticadamente, são produ-
Ufes, em 1989, efetivo da PMV a partir de zidas pelos praticantes do cotidiano para
1991, atuando na Educação Infantil, nas transformar lugares em espaços praticados.
séries iniciais do Ensino Fundamental e Interpretarmos nossos dados de
na coordenação pedagógica, está nessa modo que as informações produzidas por
escola desde 2013, como coordenador de um instrumento não superestimassem uma
turno do 1º ao 5º ano; por fim, a professora informação em detrimento da outra, no intui-
com formação em Educação Física, Joana,8 to de compreender as práticas para além do
licenciada plena na mesma área pela Ufes, momento, entendendo os arranjos, tensões,
em 2005, efetiva da PMV desde 2012, lecio- acordos e negociações presentes no processo
nando para as séries iniciais do Ensino Fun- de transição da Educação Infantil para o En-
damental. Esse era seu primeiro ano letivo sino Fundamental, sobretudo pelas práticas
na EMEF “Espírito Santo”. A escolha desses produzidas nas aulas de Educação Física.
profissionais deu-se pela proximidade com A diversidade dos dados levou à
o objeto de estudo, a transição da Educação produção de três categorias de análise acer-
Infantil para o Ensino Fundamental. ca das concepções de crianças, infância e
Foi no tecer das relações cotidianas escolarização dos praticantes do cotidiano
que produzimos nossos instrumentos me- da instituição pesquisada. São elas: a) as
todológicos que captaram as narrativas por práticas de proteção: dissertam sobre os
meio de entrevistas, diário de campo e gru- dilemas na escolarização das crianças com
pos de conversas.9 Este último foi marcado seis anos; b) a criança na escola: aborda a
pela diversidade das falas que transitavam concepção de escola dos participantes da
entre as memórias, as experiências e as pesquisa e o modo como ela incide em
vivências pessoais. seu fazer diário; c) a criança “ainda não” e
Analisamos as narrativas produzi- “quase lá”: discute a compreensão dicotô-
das por meio de uma tripla perspectiva, mica das práticas infantis que classifica o
conceituada por Ricoeur (1994) como desenvolvimento escolar das crianças por

8 A professora com formação em Educação Física, Joana, embora efetiva da PMV, estava vinculada à EMEF
“Espírito Santo” em lotação provisória.
9 Os grupos de conversas se formavam entre uma aula e outra, nos minutos que antecedem o recreio, a hora da
entrada, a volta do recreio e a hora da saída.
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meio de suas práticas. Ressaltamos que as Entendemos a escola como um dis-


categorias de análise não representam a positivo de escolarizar (VEIGA, 2002), pois
total complexidade das relações de poder suas práticas são construídas com base no
cotidianas que constituem as compreen- projeto de escolarização, introduzindo con-
sões de crianças e infância dos praticantes dutas e saberes relevantes para a formação
do cotidiano, mas sim um recorte daquilo do cidadão. Nesse sentido, compreender
que encontramos nos cotidianos da EMEF a escola como dispositivo de escolarizar é
“Espírito Santo”. entender que ela se legitima pela sua inten-
cionalidade, que perpassa pela forma como
está organizada. No Ensino Fundamental, a
Nos cotidianos da transição: práticas, centralidade desse dispositivo encontra-se
memórias, dilemas e tessituras entre as na apropriação da escrita, leitura, cálculo
culturas escolares e infantis
e na incorporação das normas e condutas
produzindo uma dicotomização entre
O cotidiano escolar sofre influência
brincar e aprender, como se fossem ações
de diferentes culturas (religiosas, urbanas,
antagonistas no trabalho pedagógico com
populares etc.) que tensionam os modos
as crianças de seis anos.
de agir dos praticantes. Entretanto, as
A escola não se define apenas pela
concepções de crianças e infância agem
transmissão desses saberes; ela é um siste-
conjuntamente com as culturas presentes
ma, uma combinação de conceitos mais
na escola produzindo práticas que vão além
ou menos encadeados, que tem como
do prescrito, a partir do momento em que
intencionalidade formar aqueles inseridos
se percebem os atravessamentos existentes
no processo educacional por meio da sua
nos espaços e tempos da escola.
cultura própria e promover essa formação
Assim, um professor com uma
pela incorporação da disciplina, da ordem,
concepção de crianças norteada por um
do silêncio, da higiene, da leitura, da escrita,
olhar adultocêntrico compreende essas
das artes e das técnicas (CHERVEL, 1990).
crianças como seres incapazes de entender
Nesse sentido, dialogamos com as
os conteúdos de ensino, conceitos e regras
práticas produzidas cotidianamente pelos
presentes na escola. Já o professor que as
autores escolares que utilizam suas expe-
enxerga como produtoras e consumidoras
riências para trabalhar a transição entre as
de culturas potencializa seu fazer pedagógi-
duas primeiras etapas da Educação Básica
co ao compreender as demandas infantis, a
e, desse modo, entender suas concepções
inventividade de suas práticas, entendendo
de crianças, infância e escolarização.
como se apropriam dos conhecimentos
específicos de cada disciplina e do projeto
de escolarização contemporâneo. Práticas de proteção
Mas será que essas dimensões se
apresentam de forma dicotômica nas prá- Analisando as práticas, observamos
ticas cotidianas dos autores escolares? Ou como os autores escolares produzem ações
se complementam nos espaços e tempos da que vão conferindo sentido para a escola e a
escola por meio das experiências? configurando com um dispositivo escolarizar
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(VEIGA, 2002). Desse modo, destacaremos em experiências que se articulam com as


momentos que evidenciam como as práticas práticas, assumidas pela escola dentro de
de proteção ganham centralidade no projeto suas rotinas, sendo ressignificadas pelas
de escolarização e como são usadas para crianças como maneiras de ocupar os lu-
trabalhar a transição da Educação Infantil gares escolares.
para o Ensino Fundamental. As tensões postas em torno do cui-
O fazer pedagógico da aula de dar fazem com que a praticante Joana reor-
Educação Física na instituição pesquisada ganize seu método de trabalho, produzindo
é marcado pelas filas, ritual historicamente outra maneira de fazer (CERTEAU, 1994) as
presente nas instituições de ensino brasileiras, práticas, de modo que as crianças possam
que tem suas origens na incorporação de vivenciar as atividades sem se machucarem.
condutas disciplinares que fazem parte do Ao analisarmos essas ações, per-
modelo de aluno idealizado pelo projeto de cebemos, que, conforme, as crianças vão
escolarização da era moderna (CAMBI, 1999). se apropriando das condutas pretendidas
Mas o que nos interessa nesse con- pelas culturas escolares, elas as reproduzem
texto é entender como as filas evidenciam nas aulas de Educação Física. Por vezes
os dilemas entre cuidar e experimentar observamos essa prática sem a mediação
nas aulas de Educação Física. A professora direta da professora, na organização de
Joana, metodologicamente, organizava uma fila para ir ao pátio externo ou a quadra
seus alunos em filas, tanto para ir ao pátio poliesportiva.
externo quanto para o desenvolvimento de Isto repercute no modo como a pro-
um conteúdo. Segundo ela “Essa é a melhor fessora com formação em Educação Física
maneira para desenvolver o trabalho, sem Joana organiza suas intervenções, pois, ao
que as crianças se machuquem”. reconhecer quais crianças se apropriam das
Consideramos que as práticas cons- práticas de proteção, ela cria estratégias que
tituem a centralidade das ações pedagógicas vão se desenhando nas aulas, de modo que
da Educação Física. Nesse sentido, como as crianças que não se apropriam corporal-
uma disciplina que aborda seu conteúdo mente das culturas escolares, desenvolvem
por meio do corpo enfrenta o dilema entre atividades relacionadas a apropriação
cuidar e experimentar? As filas são mais que cognitiva do conteúdo, distanciando-se das
recursos metodológicos para a organização práticas que possam apresentar algum risco
das crianças, elas garantem a proteção, in- de se machucarem.
corporam condutas e atitudes conforme as Cambi (1999) contribui para o
intencionalidades dos dispositivos escolares entendimento da necessidade de cuidar
(VEIGA, 2012), configurando-se em uma e educar ao salientar que a família, na
prática que se constitui na mediação dos Modernidade, deixou de se preocupar ape-
conteúdos. nas em “pôr filhos no mundo” e passou a
Essa intencionalidade tem raízes dedicar-se a cuidar deles e educá-los. Assim,
históricas, mas, nos cotidianos da EMEF foram atribuídas à escola características de
“Espírito Santo”, desenha-se como uma ação extensão da família, cuidando e provendo
tática (CERTEAU, 1994) que busca proteger a preparação das crianças para a sociedade,
as crianças e, assim, vai se transformando rompendo com o modelo medieval que
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comportava crianças com idades diferentes Em relação ao recreio, quais sen-


no mesmo espaço e, por consequência, elas tidos têm sido produzidos pelas práticas
eram marcadas pela violência dos maiores nos cotidianos desse lugar? Entendemos o
contra os menores prejudicando o processo recreio como um tempo marcado pela brin-
educativo. cadeira, diversão, inventividade, merenda,
Analisando esse movimento no conflitos e desafios que o transformam em
Brasil, os programas e instituições de cunho espaço praticado (CERTEAU, 1994) pelas
assistencialista construíram um modelo de crianças de diferentes idades.
trabalho que pautava suas intervenções Para entendermos as sutilezas do
no cuidar, alimentar e higienizar, fato que recreio e como ele é usado (CERTEAU,
atravessa a história da Educação Infantil na 1994) na transição da Educação Infantil
contemporaneidade. para o Ensino Fundamental nos debruçamos
As diferentes formas escolares prati- sobre as narrativas:
cadas durante dois séculos de escolarização
“A aula de Educação Física, assim
produziram instrumentos e práticas para
como as outras aulas, na quarta feira,
mediar e evitar conflitos entre as crianças, termina 20 minutos mais cedo antes
que iam de castigos físicos até punições do recreio para dar tempo das crianças
pedagógicas. O desafio de combater essas irem para o refeitório, comer e depois ir
para o parquinho ocupar os brinquedos
práticas permanece nos dias de hoje, mas antes dos maiores” (JOANA).
ganha outros contornos a partir de docu-
mentos como o Estatuto da Criança e do “Sempre fazemos isso para evitar que os
Adolescente e a Declaração Universal dos maiores tomem conta dos brinquedos e
Direitos da Criança, deslocando a atenção acabem machucando os menores e tam-
bém porque eles estão mais acostuma-
da escola para outros lugares, colocando as
dos a ocupar esses brinquedos desde a
práticas em constante tensão com o cuidar. Educação Infantil” (MARCELO).
Portanto, proteger e evitar que as crianças se
machuquem é uma preocupação constante Nossas analises, buscam entender o
no fazer pedagógico da professora com que está por trás desses acordos tácitos que
formação em Educação Física e ganha cen- são construídos na complexidade cotidiana.
tralidade nas ações pedagógicas, tendo em Dessa forma, é interessante percebermos
vista as consequências que um machucado como as experiências cotidianas adquirem
pode ter nos cotidianos daquela instituição. contornos estratégicos no intuito de pro-
Com essa reflexão, começamos a duzir práticas voltadas para a inserção das
entender como o cuidar se apresenta na crianças com seis anos na lógica de escola-
EMEF “Espírito Santo”, em uma incorpo- rização do Ensino Fundamental.
ração de comportamentos que gera novos Sarmento (2005) chama a atenção
comportamentos, e também influencia as para a necessidade de se fomentar uma
práticas dos autores escolares em relação escola que dialogue com as necessidades
à proteção, sobretudo na Educação Física das crianças. Em nosso entendimento,
que têm na atividade corporal seu estatuto o acordo tácito entre os praticantes do
epistemológico. cotidiano escolar, evidenciado pela hora do
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recreio, reforça o compromisso da escola zando as experiências socializadoras das


em proporcionar o diálogo sugerido pelo crianças com seis anos mediante ao pro-
autor, criando momentos que possibilitem longamento dela por todo o ano letivo de
às crianças de seis anos interagirem entre 2014? A construção do seu repertório de
pares por meio da produção criativa de práticas não fica condicionada apenas às
práticas que identifiquem sua especificidade interações entre as crianças da mesma turma
e as reconheçam, sobretudo como crianças. ou às produzidas nas aulas de Educação
O entendimento dos praticantes Física? Essas questões precisam ser discu-
do cotidiano escolar de que na Educação tidas de modo que possam potencializar a
Infantil se brinca desprovido de intenciona- constituição do recreio, para que promovam
lidade pedagógica incide na configuração outras maneiras de fazer (CERTEAU, 1994)
dos tempos do recreio, que é alterada para esse espaço.
que as crianças se apropriem dos espaços Retomando as adequações e os
do Ensino Fundamental, criem hábitos e ajustes cotidianos, ressaltamos a presença
incorporem condutas de utilização con- do coordenador de turno, responsável por
dizentes com o esperado dos dispositi- mediar os conflitos e as práticas produzidas
vos escolares (VEIGA, 2002), mas que, no recreio. O registro de campo a seguir
sobretudo, garantam a integridade física nos apresenta pistas do que encontramos
delas num movimento de tessitura entre na complexidade das relações de poder
as intencionalidades da escolarização e as presentes no recreio,
demandas infantis.
Observamos que isso promove pau- William está no balanço e o está uti-
latinamente a apropriação dos espaços do lizando de modo incomum, pratica-
mente deitado, gritando que estava
recreio pelas crianças de seis anos. A sensa-
surfando. Kaique, Ricardo e Renato
ção de estranheza perde força no momento estão à sua volta incentivando sua prá-
em que elas os transformam em espaço tica como se estivessem esperando para
praticado (CERTEAU, 1994), empregando fazer da mesma forma. Contudo, Mar-
celo percebeu a brincadeira e achou
suas maneiras de fazer com os brinquedos
perigosa. Ele se dirigiu até as crianças e
do parquinho. Isso evidencia a estratégia pediu que parassem, pois poderiam se
astuciosamente montada para favorecer o machucar (DIÁRIO DE CAMPO, 2 de
processo de transição entre a Educação In- agosto de 2014).
fantil e o Ensino Fundamental, que surge da
reflexão produzida pelos autores escolares A produção cultural das crianças,
ao considerarem suas experiências cotidia- representada pelo seu modo de transfor-
nas com as crianças de seis anos. mar os lugares em espaços praticados por
Mas cabe aqui um questionamento meio das brincadeiras, evidencia os usos
baseado em Corsaro (2011) que sinaliza que e apropriações que as crianças realizam
as crianças aprendem por meio dos proces- no cruzamento das práticas vivenciadas
sos coletivos, que as trocas de experiências na Educação Física com os consumos nos
são fundamentais para a incorporação de demais espaços de ocupação infantil. Desse
novos saberes. Assim, será que as práticas modo, elas participam de diversos processos
de proteção não estariam despotenciali- de internalização cultural, que são sociali-
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zados nos cotidianos dos espaços e tempos ao Ensino Fundamental, por meio de sua
da escola pela reprodução interpretativa cultura própria. O registro a seguir fornece
(CORSARO, 2011) que consiste na ressigni- indícios dessa compreensão:
ficação de uma atividade cotidiana a partir
da produção cultural das crianças. “A gente faz um planejamento com-
A reprodução interpretativa do surf, partilhado com os demais professores
do ciclo [1º; 2º e 3º ano do Ensino
por William, evidencia um dilema enfren-
Fundamental], com o objetivo de re-
tado pela escola, anunciado por Cambi cepcionar/receber esses alunos, então
(1999), ao sinalizar que a escola moderna, fazemos muitas atividades na área ver-
que reclama para si o direito dos cidadãos de que possam envolver todos os alu-
nos. Fazemos bingo, piqueniques e etc.
e também a liberdade escolar dos alunos e
Nessa semana, cada dia após o recreio,
do pensamento, é instância incumbida de nós fazemos atividades diferentes, com
controle, juntamente com outras institui- o objetivo das crianças se sentirem aco-
ções, de cuidar e formar as crianças para o lhidas e terem maior facilidade de se in-
tegrar. Essa atividade não vem de fora;
convívio em sociedade.
ela parte daqui, desta escola” (MARIA).
É nesse ponto que o dilema entre
cuidar e experimentar se acentua, pois é
Ao narrar, rememoramos experiên-
preciso fazer para conhecer, para dominar
cias, deixando transparecer na fala os fatos
corporalmente uma atividade, para reco-
que marcam o momento vivido, trazendo à
nhecer seus limites e suas potencialidades.
tona instantes seletivos da memória. Desse
Assim, a questão que fica é maior que o
modo, a professora regente demarca o es-
“não pode fazer”, é olhar para as práticas
forço conjunto dos professores do primeiro
infantis e decidir entre permitir a vivência ou
ciclo para receber as crianças com seis anos
minimizar os problemas que podem surgir.
de idade na EMEF “Espírito Santo”, por
Nesse sentido, não queremos dizer
que a hora do recreio não deva ter orienta- meio de sua narrativa no presente-passado
ção externa, mas sim ressaltar os dilemas e (RICOEUR, 1994), evidenciando o uso
conflitos existentes na escola que desafiam das brincadeiras como para produzir um
os autores escolares cotidianamente a movimento de tessitura entre as culturas
produzir negociações e arranjos em suas escolares e infantis.
práticas que visam à construção de lugares, As experiências da praticante profes-
momentos e instantes destinados à apropria- sora regente com formação em Pedagogia
ção das culturas escolares. Esse movimento Maria lhe permitiram articular as necessi-
é possível a partir do momento em que os dades das crianças que entram no Ensino
praticantes recordam suas experiências e as Fundamental com as culturas escolares.
usam para produzir práticas voltadas para Assim, as brincadeiras produzidas dialogam
a incorporação das culturas escolares pelas entre si por meio do lazer e do cuidar e as
crianças com seis anos. práticas são ressignificadas mediante as
Nessa perspectiva, observamos, na objetividades dos dispositivos escolares.
primeira semana de aula, acordos, negocia- Em sua inventividade diária, os
ções, arranjos e tensões entre os praticantes professores se apropriam dos instrumentos,
professores na busca de integrar essa criança espaços e tempos da escola para produzir
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ações a partir de sua experiência que po- “Aqui não tem mais aquilo do brincar.
tencializam as metodologias assumidas, Isso vai se perdendo, porque aqui é es-
cola, tem o processo de alfabetização.
produzindo sentido para elas na media- Lá na Educação Infantil eles não têm
ção de suas intencionalidades educacio- essa obrigação de aprender; aqui eles
nais com a singularidade das crianças têm” (JOANA).
(BENJAMIN, 2002).
As práticas compartilhadas entre os “Aqui, ela [a criança] sai pra Educa-
praticantes do cotidiano produzem espaços ção Física, para a Informática e para
a biblioteca, mas sair para brincar só
de socialização coletivos para crianças e quando tem a brinquedoteca ou nos
professores, por entender que somente o momentos proporcionados pela Edu-
processo formal de escolarização não abar- cação Física. Aquilo do brincar espon-
ca a complexidade cotidiana do processo taneamente ela começa a perder. Isso
passa a ser papel da família, propor-
de transição entre a Educação Infantil e o cionar o lazer e a brincadeira. A escola
Ensino Fundamental. [Ensino Fundamental] proporciona sim
[o brincar], mas nos momentos destina-
dos a isso. Aquele brincar como eixo
A criança na escola central não tem. O eixo central agora
é a alfabetização, que a criança alcan-
ce o saber da escrita no tempo certo”
Conforme nos envolvemos com (MARCELO).
os praticantes do cotidiano escolar e nos
apropriamos dos espaços e tempos da es- “A Educação Infantil é muito diferente.
cola, escutamos atentamente as narrativas. As rotinas em si não permitem esse pro-
Nesse processo a expressão “aqui é escola” cesso sistematizado de alfabetização, é
nos chamou a atenção, por demarcar um muita brincadeira. Conversando com
a pedagoga de lá [CMEI], ela me disse
sentido próprio ao Ensino Fundamental,
que, se somados o tempo de aula na
uma identidade representada pela inten- Educação Infantil não chega a duas ho-
cionalidade do trabalho pedagógico que ras semanais, e aqui eles têm em um
busca-se diferenciar das ações dos demais dia quatro horas de aula” (MARIA).
níveis da Educação Básica.
Objetivamos entender, os sentidos As narrativas indicam o lugar ocupa-
atribuídos a essa frase e como as concep- do pelo Ensino Fundamental na concepção
ções de crianças e infância dos autores de escolarização dos praticantes, eviden-
escolares dialogam nesse sentido, na tran-
ciando que a centralidade do trabalho
sição da Educação Infantil para o Ensino
pedagógico dessa etapa é a apropriação
Fundamental.
cognitiva dos conteúdos. Elas também atri-
A expressão “aqui é escola” ganha
buem sentido ao trabalho produzido nas ins-
sentido na medida em que a entendemos
tituições de Educação Infantil, demarcando
como dispositivo de escolarizar, que per-
aquele espaço como local de brincadeira e,
mite às crianças uma leitura ampla dos
processos sociais em que estamos inseridos nesse caso, de uma brincadeira desprovida
nos cotidianos. As narrativas evidenciam de intencionalidades pedagógicas, como
quais sentidos os praticantes produzem reforça a narrativa da praticante professora
sobre seu lugar de trabalho: regente Maria: “O CMEI tem uma rotina
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completamente diferente da EMEF. É uma pedagógico com as crianças de seis anos


estrutura que é voltada para o lúdico, tudo que se encontram em um processo de
muito decorado, muito brinquedo e etc.”. transição de um modelo de escolarização
O deslocamento proporcionado onde a ludicidade constituía a centralidade
pela concepção de escolarização confere do trabalho pedagógico para outro que o
às brincadeiras o sentido de conteúdo de considera como meio para o ensino dos
ensino privilegiado na Educação Física conteúdos.
da Educação Infantil, conforme destaca a As tensões provocadas pelo brincar
narrativa de Joana: “Lá [Educação Infantil] no Ensino Fundamental aparecem nova-
é tudo brincadeira. As rotinas são curtas, mente na narrativa da praticante Maria:
eles dormem e brincam, o processo de
ensino-aprendizagem é reduzido”. Esse “É complicado aqui, na escola, por-
entendimento tensiona as práticas, a partir que aqui não tem mais isso de brincar,
dessas rotinas rápidas. Quando eles
do momento em que não se reconhece a
chegam aqui, eles precisam adaptar-se
brincadeira como patrimônio cultural ima- às normas e regras da escola que são
terial das crianças, que são usadas pelos pro- diferentes da Educação Infantil que tem
fessores como meio para desenvolverem o o brinquedo a toda hora, aqui é só às
vezes, ou do jeito que eu faço, usando
“ensino de”, sobretudo na Educação Infantil
para ensinar um conteúdo” (MARIA).
e nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
potencializando a incorporação das culturas
A dicotomia entre brincar e apren-
escolares no diálogo com as culturas infantis
der no Ensino Fundamental se constitui
e as práticas pedagógicas.
como um problema, na medida em que não
A praticante Joana atribui sentido
se reconhece a brincadeira como produção
às práticas da Educação Física no Ensino
cultural das crianças, que lhes confere
Fundamental, tomando como referência
identidade, mas sim como instrumento
o lugar de onde fala, considerando que
pedagógico que possui intencionalidades
“Aqui é escola. Eles têm regras, normas a específicas para a aquisição de conhecimen-
seguir, têm que estudar”, o que implica a tos que ajudarão as crianças na apropriação
apropriação cognitiva dos saberes da Educa- cognitiva dos saberes.
ção Física. Entretanto, os dados evidenciam Será que a utilização de brincadei-
que, no processo de ensino-aprendizagem ras, como meio para o ensino da escrita, da
existente nos espaços da Educação Física, leitura e do cálculo, também se configura
a apropriação corporal do conteúdo consti- como o aprendizado de uma “brincadeira”?
tuía a centralidade do trabalho pedagógico. As crianças não são consumidoras passivas;
A análise dos dados evidenciou que elas se apropriam das atividades lúdicas
os praticantes se ajustam às intencionalida- produzidas no interior da sala e as ressig-
des do projeto de escolarização da EMEF nificam para usá-las nos espaços da escola,
“Espírito Santo”, mas esse movimento não sobretudo na Educação Física, nas quais a
é produzido passivamente; eles usam suas apropriação corporal dos conteúdos cons-
experiências para transformar os lugares titui a centralidade do trabalho docente.
em espaços praticantes (CERTEAU, 1994), Com isso, não estamos afirmando
considerando a especificidade do trabalho que os jogos, brinquedos e brincadeiras
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não possam ser usados como meio para o vida, sobretudo na escola. Os professores
aprendizado de um determinado conteúdo, se apropriam da brincadeira para usá-la
mas que eles se constituem como um patri- como prática de ensino que dialoga com a
mônio cultural imaterial importante para as necessidade das crianças no entendimento
crianças, que tem função social, que estreita de que a aquisição dos saberes, por vezes,
relações cotidianas, confere identidade, ocorre coletivamente e, nesse sentido, sig-
cultiva brincadeiras populares e transforma nifica articular a prática pedagógica com
experiência em aprendizado. Assim, no aquilo que atribui identidade às crianças.
momento em que a criança brinca, ela se Interessante observarmos como o processo
constitui como sujeito, relaciona-se com de introdução dos jogos, brinquedos e brin-
o outro e conhece o mundo por meio de cadeiras foi adquirindo mobilidade no fazer
atividades que caracterizam a geração à cotidiano dos professores, sendo assumido
qual pertence. como instrumento pedagógico a partir das
Para entendermos como o jogo experiências vividas nos cotidianos da EMEF
é utilizado na aula da praticante Maria, “Espírito Santo”.
precisaremos confrontar a narrativa com Kramer, Nunes e Corsino (2011)
os registros de campo, na intenção de com- destacam que articular as culturas infantis
preender como a complexidade cotidiana e as culturas escolares são desafios encon-
confere lógicas transitórias, que evidenciam trados por professores na transição entre a
uma realidade diferente da encontrada nos Educação Infantil e o Ensino Fundamental,
discursos. Esses, por sua vez, são definidos haja vista que a criação de elos entre esses
por nossa memória, experiência e pelas conhecimentos reflete a necessidade de
apropriações das culturas presentes em produzir ações coletivas com as crianças
nosso fazer cotidiano. de seis anos, que auxiliem sua transição
e construção dos saberes dessas etapas da
“A professora regente ao perceber a escolarização.
dificuldade das crianças em aprender O praticante Marcelo evidencia,
o conteúdo – unidade, dezena e cen-
em sua narrativa, que esse movimento só
tena – criou uma brincadeira usando
canudos, onde cada aluno, ao falar um é possível nas rotinas de sala de aula, pois
número com um colega retira a mesma ele considera que, na Educação Infantil,
quantidade em canudos e, posterior- “Tem uma situação de rotina diferenciada.
mente, escreve no papel e tenta iden-
O CMEI tem uma rotina assim: café da
tificar se é unidade, dezena ou cente-
na. Quem acertar o maior número de manhã, brincadeira no pátio, momento
descrições vence a disputa para a sua em sala, brinquedoteca, Educação Física e
equipe” (DIÁRIO DE CAMPO, 18 de Artes. Então, quase não tem rotina de sala
junho de 2014).
de aula”, evidenciando as tensões existentes
na intencionalidade do trabalho pedagógico
No diálogo com Certeau (1994), no Ensino Fundamental: “Aqui querendo
entendemos que as práticas se configuram sim, querendo não, tem uma rotina de sala
na inventividade, a partir das apropriações de aula de um a cinco e meia”.
das experiências vivenciadas no cotidiano Marcelo confere sentido à escola
nas relações de poder que atravessam nossa (Ensino Fundamental) na oposição com a
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Educação Infantil, justificando que o lugar Porque ficar ali esse tempo todo senta-
da aquisição dos saberes privilegiados pela do, deve ser um problema muito gran-
de pra elas” (MARCELO).
sociedade é nas instituições de Ensino Fun-
damental. Isso significaria que os saberes
produzidos na primeira etapa da Educação Observamos uma preocupação
Básica não são importantes? Que os conteú- desse praticante em relação às ações das
dos da Educação Física não contribuem para crianças com seis anos nos cotidianos, de
a escolarização e constituição do repertório modo que ele busca compreender as angús-
de práticas? tias, expectativas, tensões e dilemas enfren-
Interessante percebermos como a tados por elas. Assim, a produção de uma
ludicidade acaba sendo o eixo mobiliza- rotina que não rompa com o entendimento
dor das práticas inscritas nos cotidianos da do que foi vivenciado pelas crianças na
instituição pesquisada. O coordenador de Educação Infantil, mas que se articule com
turno, ao repreender a prática de Miguel, a especificidade do trabalho pedagógico do
disse: “Por que você fez isso? Você ia gos- Ensino Fundamental constitui-se como uma
tar se alguém batesse em você? Não, né? ação produzida pelas suas experiências que
Imagina se o Homem-Aranha sai batendo procuram promover a transição de maneira
na cabeça dos coleguinhas”. Em um movi- paulatina, articulando as culturas e deman-
mento astucioso, Marcelo se apropria das das infantis com as intencionalidades do
culturas infantis e as ressignifica em sua fala, dispositivo de escolarizar.
produzindo um ajuste nas intencionalidades Corsaro (2011) reafirma a importân-
exigidas pela sua posição na escola, mas cia da brincadeira, ao sinalizar que, na in-
que leva em consideração a produção cul- teração, as crianças transformam experiên-
tural das crianças e aquilo que as identifica cias socializadoras em aprendizado, num
como crianças. movimento de desenvolvimento coletivo.
Isso revela como as experiências co- A partir desse pensamento, entendemos
laboram nos ajustes, negociações e acordos os espaços de socialização coletiva das
existentes nos cotidianos da transição, que crianças como momentos de fuga às rotinas
demandam dos autores escolares mais que escolares, com importância e intencionali-
a leitura dos documentos oficiais sobre a dade educacionais que, nos cotidianos, são
incorporação dessas crianças. A narrativa marcadas pela inventividade das crianças,
a seguir evidencia esse movimento que de modo que a socialização de suas expe-
perpassa pela sensibilidade e concepção riências e a construção dos seus repertórios
de crianças dos autores escolares: de práticas contribuem mutuamente no seu
processo de formação e escolarização.
“Eles ainda têm aquela coisa do brin- Dessa forma, a mediação entre o
car. Aí é assim, eles saem da sala para trabalho pedagógico e as demandas infantis
beber água, vão ao balanço, brincam produzem ajustes nos espaços e tempos da
um pouquinho e voltam pra sala, ou
escola, no intuito de incorporar nas crianças
ficam um tempo maior no pátio. Então,
a gente tem toda uma situação [no En- as culturas do lugar. Assim, a dicotomiza-
sino Fundamental] de ficar empurran- ção entre brincar e aprender, juntamente
do a criança pra sala. É o tempo dela! com a definição de espaços destinados ao
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aprendizado colaboram na concretização importante para a formação dessas crianças


de uma estratégia pensada para introduzir que chegam ao Ensino Fundamental.
comportamentos objetivados pelo projeto Nesse sentido, nossas fontes evi-
de escolarização. denciam um desacordo entre os jogos,
A escola, como dispositivo de es- brinquedos e brincadeiras produzidos na
colarizar, traz implicações para os lugares EMEF “Espírito Santo” que criam um anta-
destinados ao ensino, produz lógicas com gonismo entre o brincar (como atividade
a finalidade de introduzir nas práticas as culturalmente produzida pelas crianças) e o
culturas escolares que têm seu papel e sua aprender (entendido como apropriação do
função social, e esse movimento ocorre na letramento) produzindo brincadeiras que se
mediação entre as experiências dos prati- distanciam da atividade física privilegiando,
cantes, com especificidade das crianças da por vezes, apenas a dimensão cognitiva.
turma do 1º ano. Desse modo, a Educação Física se
Isso se revela nas ações didáticas da apresenta como um dos poucos espaços
praticante Maria, que destaca, em sua narra- onde as crianças têm sua produção cultural
tiva, que “Tem que fazer um planejamento reconhecida, mas, ainda assim, enfrentam
muito diversificado, com atividades interes- os dilemas entre o cuidar e o experimentar,
santes. Você tem que intercalar brincadeiras que acaba despotencializando suas práticas
com atividades de escrita”. As maneiras de nos cotidianos das aulas da professora Joana.
fazer da praticante revelam seu entendi- Portanto, os praticantes consomem
mento da especificidade das crianças com produtivamente as práticas infantis (re)
seis anos, de modo que os arranjos que ela criando os lugares e transformando-os
produz buscam contemplar as demandas em espaços praticados (CERTEAU, 1994),
infantis associadas às escolares. ressignificando seu fazer pedagógico,
Entretanto, ao analisarmos como as reconhecendo a subjetividade infantil e
brincadeiras são reconhecidas pela prati- as demandas das crianças que chegam ao
cante Maria, identificamos seu uso como Ensino Fundamental, para, assim, produzir
instrumentos pedagógicos ao assumir que maneiras e artes de fazer rotinas que in-
“A gente trabalha com jogos e brincadeiras cluam as crianças com seis anos conforme
que estejam voltados para a alfabetização”. suas concepções de crianças e infância.
Benjamin (2002) já anunciava a potencia-
lidade do trabalho pedagógico articulado
aos mundos infantis. A preocupação em A criança “ainda não” e “quase lá”
demarcar o Ensino Fundamental como lugar
da palavra, do saber sistematizado atravessa Estabelecemos relações cotidianas
a produção das brincadeiras pedagógicas, com os praticantes (professora regente com
de modo que só se perceba, ou considere formação em Pedagogia, professora com
sua dimensão didática, secundarizando sua formação em Educação Física e coordena-
dimensão cultural ou a própria apropriação dor de turno com formação em Educação
corporal do saber, pois não basta apenas Física), no intuito de conhecer suas histórias
“falar sobre”, “escrever sobre”; é necessário e trajetórias profissionais. Escutamos as nar-
reconhecer o “fazer com” como dimensão rativas e, à medida que as relações foram
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se estreitando, notamos uma concepção Essa ação é exclusiva das crianças


dicotômica de crianças com seis anos que com seis anos ou ela está associada ao pe-
as colocava como praticantes que “ainda ríodo de transição? Isso porque a entrada
não” se encontram adaptados às culturas em uma nova instituição gera insegurança,
escolares, mas que estão “quase lá”. incertezas, tensões e preocupações que se
A temporalidade narrativa de Ri- mesclam com as expectativas, ansiedade
coeur (1994) nos ajudou a compreender e curiosidade que são amenizadas confor-
a sua produção, ao destacar o movimento me criamos um sentimento de pertença
que permite ao praticante do cotidiano àquele lugar.
escolar falar sobre o seu presente-passado, Analisando as narrativas, perce-
projetando os acontecimentos no presente- bemos que os praticantes do cotidiano
-futuro. Nesse sentido, resgatamos as falas escolar projetam suas ações a partir das
dos autores escolares captadas nos “grupos experiências empíricas vivenciadas na com-
de conversa”, sobre as primeiras semanas plexidade cotidiana com outras crianças que
de aula das crianças com seis anos na EMEF compõem os espaços e tempos da escola.
“Espírito Santo”: Assim, eles buscam no compartilhamento
de experiências produzir momentos para
“Agora na coordenação eu não vejo que as crianças com seis anos se apropriem
diferença [da criança no CMEI e na dos lugares da escola.
EMEF], Eles são mais inseguros, neces-
Certeau (1994) destaca que, confor-
sitam mais de afeto, eles querem mais
colo, eles ainda não têm essa visão de me nos apropriamos dos lugares, imprimi-
escola [como local do saber sistemati- mos nossas marcas configuradas pelo nosso
zado] por isso ficam mais choronas nos repertório de práticas, vindas dos consumos
primeiros meses” (MARCELO).
produtivos que realizamos cotidianamente
e que transformam lugares em espaços
“Aqui eles chegam muito chorosos, es-
tranham a escola, dizem que na outra
praticados. Para Corsaro (2011), represen-
escola era melhor, que lá eles brinca- ta a ressignificação de uma atividade do
vam mais [...] e você tem que lidar com mundo adulto pelas crianças de reprodução
isso, mas é normal. Conforme eles ama- interpretativa. O autor esclarece que elas se
durecem, isso muda” (MARIA).
apropriam culturalmente de uma atividade
que atravessa seu cotidiano para produzir/
As narrativas rememoraram momen- inventar brincadeiras e jogos a partir da
tos que marcaram os praticantes na primeira interação entre elas nos diferentes espaços
semana de aula. O choro foi evidenciado da escola.
em suas falas, definido como característica Nesse sentido, ao dialogarmos com
das crianças com seis anos nas primeiras o conceito de reprodução interpretativa
semanas de aula associado à representação de Corsaro (2011) e com os estudos do
da infância como período de insegurança, cotidiano de Certeau (1994), entendemos
de imaturidade, em que a criança necessita como as crianças usam suas apropriações
de proteção e carinho para superar o desafio por meio da ressignificação de fatos que
de permanecer longe de seus pais ou do atravessam seu cotidiano que, por sua
contexto ao qual estava acostumada. vez, são interpretados pelos praticantes do
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cotidiano escolar conforme sua represen- -passado (RICOEUR, 1994) que consiste
tação de criança, infância e escolarização. na análise das dificuldades do trabalho
Durante uma aula na sala de ginás- pedagógico com as crianças de seis anos.
tica rítmica, três crianças pegaram as maças Ela as entende como praticantes que “ainda
(aparelho da ginástica artística) e começa- não” estão prontas para as intencionalidades
ram a brincar, duas simulando uma luta desse nível da Educação Básica, entretanto,
com espadas e a outra usando o aparelho essa concepção perde força no momento
como microfone (DIÁRIO DE CAMPO, 21 em que sua narrativa é ressignificada no
de maio 2014). A narrativa da praticante presente-futuro, ao projetar o restante do
ano letivo, estabelecendo a dimensão da
professora com formação em Educação
criança “quase lá”, por acreditar que elas já
Física evidencia seu entendimento sobre
estão se apropriando das condutas, normas
essa prática,
e regras do dispositivo de escolarizar.
Os tensionamentos provocados pela
“Tá vendo? [a professora mostra as
crianças brincando]. É difícil trabalhar
brincadeira também atravessam o cotidiano
com essa faixa etária porque eles ainda das práticas produzidas em sala de aula, de
não estão maduros suficientes, eles fo- maneira que permitem a produção de uma
gem muito, se perdem, perdem o foco categorização de seus alunos, de acordo
no que está sendo ensinado. Mas isso com os níveis de interesse e apropriação
já foi mais, agora está diminuindo”
(JOANA).
das culturas escolares.

“Têm três tipos de crianças aqui, nesta


O registro de campo evidencia um turma, as que querem aprender, que
momento de fuga, de inventividade, de gostam de aprender, as que gostam,
apropriação e ressignificação de uma ati- mas têm um pouco de preguiça porque
ainda não se acostumaram com o ritmo
vidade pelas crianças, transformando-a em
da escola e as que não estão interessa-
brincadeira (CORSARO, 2011). Para a pro- das em aprender, que querem brincar,
fessora com formação em Educação Física, ficam o tempo todo da aula brincando”
um instante que representa a inadaptação (MARIA).
das crianças às intencionalidades do Ensino
Fundamental. A reflexão da professora regente
Joana encara essa prática infantil marca os diferentes tipos de crianças que ela
como algo que demanda a atenção e que presencia no cotidiano de sua sala de aula:
evidencia a necessidade de produzir arran- umas que já se apropriaram dos objetivos
jos no seu trabalho pedagógico, de forma da escolarização, outras que estão no cami-
que o processo de ensino-aprendizagem nho, que entendem a importância do que
seja homogêneo e que as brincadeiras sejam está sendo produzido em sala, mas ainda se
parte do planejamento com intencionalida- encontram inadaptadas às rotinas escolares
des próprias, e não momentos estanques ou e, por último, as crianças que marcam seu
livres da aula. espaço, seu desejo de existir por meio de
A praticante professora com forma- jogos, brinquedos e brincadeiras.
ção em Educação Física resgata sua memó- A concepção de crianças “ainda
ria para produzir uma narrativa no presente- não” e “quase lá” permeia a narrativa da
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professora regente, atribuindo sentido às relações de poder presentes nos espaços


interações entre as crianças como algo que e tempos da escola.
demarca a não apropriação das culturas Nesse contexto, buscamos, nos co-
escolares, que atravessa seu trabalho peda- tidianos, compreender os sentidos que os
gógico tensionando o seu fazer diário para autores escolares atribuem à transição entre
outros caminhos, de modo que ela produz os dois primeiros níveis da educação básica,
uma conceituação das crianças conforme bem como suas maneiras e artes de fazer
suas maneiras de praticar a sua aula. com (CERTEAU, 1994) a inclusão das crian-
Portanto, as ações dos praticantes ças com seis anos no Ensino Fundamental.
professores e as do coordenador de turno Desse modo, destacamos os ar-
são atravessadas por suas concepções de ranjos estrategicamente produzidos pelos
crianças, em que concebem a criança praticantes do cotidiano escolar para ajus-
“ainda não” como aquela que brinca, que tar as rotinas da instituição no sentido de
produz momentos de resistências às rotinas, incorporar as crianças com seis anos aos
que se destaca por um comportamento in- espaços e tempos da EMEF “Espírito Santo”,
fantilizado, que marca sua existência nos es- produzindo tessituras entre as culturas esco-
paços e tempos da escola pela sua produção lares e as culturas infantis que encontraram
cultural. A criança “quase lá” é entendida nos dilemas vividos cotidianamente por
como aquela que está se apropriando das aqueles que trabalham a transição entre os
culturas escolares, que assumida condutas dois primeiros níveis da Educação Básica,
e comportamentos do Ensino Fundamental, momentos que reconfiguram as intenciona-
que entende o papel social da escola em sua lidades dos lugares, que buscam incorporar
vida, valorizando os conhecimentos e mo- as culturas escolares num processo paulati-
mentos vivenciados dentro da instituição. no de criação de um sentimento de pertença
ao Ensino Fundamental.
Portanto, o que vimos, nos espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
e tempos da instituição pesquisada, foram
práticas atravessadas pelas concepções de
Ao criarmos categorias de análise
que representam as concepções de crianças crianças, infância e escolarização nas quais
e infância internalizadas nos praticantes a preocupação de expressar a intenciona-
do cotidiano escolar, tomando como pano lidade do trabalho pedagógico do Ensino
de fundo a transição entre a Educação Fundamental como lugar da escrita, do
Infantil e o Ensino Fundamental e a concep- cálculo e da leitura e da Educação Infantil,
ção de escolarização operante na institui- como lugar do saber não escolarizado, traz
ção pesquisada, procuramos nos distanciar a necessidade de entender que os níveis
de pesquisa que busca analisar o cotidiano da Educação Básica têm intencionalidades
por meio de modelos metodológicos 10 distintas, mas caminham para a formação
que se distanciam da complexidade das humana das criança.

10 Trazemos como exemplos pesquisas de revisão bibliográfica e análise documental como modelos metodológicos
que não se debruçam sobre as práticas cotidianas.
100

Entretanto, apontamos a necessida- KRAMER, S; NUNES, M. F. R; CORSINO, P.


de de estudos pela área da Educação Física Infância e crianças de seis anos: desafios
que se proponham a ir a campo e observar das transições na educação infantil e
as práticas produzidas nos cotidianos do no ensino fundamental. Educação e
ano inicial do Ensino Fundamental de nove Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 69-85,
anos, tendo em vistas compreender como jan./abr. 2011.
as experiências configuram as práticas no RICOEUR, P. Tempo e narrativa, Campinas/
momento de transição da Educação Infantil SP: Papirus, 1994. t. 1.
para o Ensino Fundamental. SARMENTO, M. J. Gerações e alteridade:
interrogações a partir da sociologia da
infância. Educ. Soc., Campinas, v. 26,
REFERÊNCIAS n. 91, p. 361-378, maio/ago. 2005.
Disponível em: <http://www.scielo.br/
BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, pdf/es/v26n91/a03v2691.pdf>. Acesso
o brinquedo, a educação. 34. ed. São em: 13 jan. 2015.
Paulo: Duas Cidades, 2002. SARMENTO, M. J. O estudo de caso
CAMBI, F. História da pedagogia, São Paulo:
etnográfico em educação. In: ZAGO,
Editora Unesp, 1999.
N; CARVALHO, M. P; VILELA, R.A.T.
CERTEAU, B. A invenção do cotidiano: Artes
Itinerários de pesquisa: perspectivas
de fazer. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
qualitativas em sociologia da educação.
CHERVEL, A. História das disciplinas
Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 137-179.
escolares: reflexões sobre um campo
de pesquisa. Teoria & educação, Porto VEIGA, C. G. A escolarização como projeto
Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990. de civilização. Revista Brasileira de
CORSARO, W. Sociologia da infância. 2. Educação, n. 21, p. 90-103
ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.

CHILDREN, CHILDHOOD AND SCHOOLING: adjustment in the transition from


kindergarten to primary school nine years old

ABSTRACT

The following article aims to understand the concepts of children, childhood and
education of practitioners of everyday (Teachers graduated in physical education,
conductor teacher graduated in Pedagogy and coordinator graduated in Physical
Education EMEF “Espírito Santo”). Therefore, ethnographic study case became attributed
and used as narrative sources produced through record fields, interview and discussion
groups. The results show the creation of strategies to incorporate in the children the
school cultures. That path is produced by the author’s experiences in producing moments
that articulate the cultural practices of children with the intentions of the Nine Years of
Elementary School Education.

Keywords: Physical Education; School routine; Transition from Kindergarten to Primary


School
V. 27, n° 45, setembro/2015 101

NIÑOS, INFANCIA Y ESCOLARIZACIÓN: tesitura en la transición desde el educación


infantil hasta la Educación primaria de nueve años

RESUMEN

En este artículo se busca entender las concepciones de niños, infancia y escolarización


de los practicantes del cotidiano (profesora com formación en Educación Física,
profesora regente com formación en Pedagogía y coordinador de turno con formación en
Educación Física de la EMEF “Espíritu Santo”). Para ello, se caracterizó como un estudio
de caso etnográfico y utilizó como fuentes narrativas producidas a través de registros de
campo, entrevistas y grupos de discusión. Los datos muestran las estrategias utilizadas
por los practicantes para incorporar las culturas escolares en los niños es tensionada por
sus conceptos de niños e infancia produciendo una estrategia que articula las culturas
infantiles y escolares.

Palabras clave: Educación Física; Cotidiano Escolar; Transición da Educación Infantil


para Educación Primaria

Recebido em: julho/2015


Aprovado em: setembro/2015

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