Turismo literário
OS C O R A Ç Õ E S
Em O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago faz Fernando Pessoa
Fernando Pessoa faleceu. Parto para
Glasgow.
Álvaro de Campos
Depois de receber o seco telegrama de Lisboa, o médico português
Ricardo Reis, há 16 anos radicado no Rio de Janeiro, decide regressar
a sua terra natal. Vai a bordo do vapor inglês Highland Brigade. O
navio, após enfrentar por longa jornada a imensidão do Atlântico,
atraca em 29 de dezembro de 1935 no Cais de Alcântara. Fernando
Pessoa morrera já havia um mês. Ricardo Reis instala-se num hotel no
início da Rua do Alecrim, na parte baixa da cidade. Faz questão de
um quarto com vista para o Tejo, o rio que corre pela Lisboa que não
deixa de ser uma aldeia. Uma de suas primeiras providências é procurar
mais notícias sobre a morte de Fernando Pessoa-Ele Mesmo. Notícias
que lê em antigos jornais, encontrados no Bairro Alto, aonde sempre terá
de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber.
Estão lá:
Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de
Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a
poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu anteontem
[30 de novembro de 1935] em silêncio, como sempre viveu [...]
Ou ainda:
Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação
nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-
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Reprodução
Reprodução
À esquerda, imagem
do Rossio no início
deste século.
Acima, retrato
do poeta
Fernando Pessoa.
o a morte num leito cristão do Hospital S. Luís, no sábado à noite, na poesia não
era só ele, era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis.
Não, não há engano nessa história. Pelo menos é assim que ela é
contada por José Saramago, em seu romance O ano da morte de
Ricardo Reis. Tecida com fina ironia, a história vale como guia de uma
viagem muito especial à Lisboa de Fernando Pessoa (e de seus
heterônimos). Não é nada difícil encontrar na cidade os sítios onde
a ficção de Saramago foi buscar cenário e clima. E não custa ao visitante,
que tem o livro como programa, se imaginar um espectador privilegiado
de mais uma encenação do “drama heteronímico” de Pessoa. Será um
feito testemunhar um finado (Fernando Pessoa) polemizando com uma
de suas criações e interagindo com a geografia de sua cidade e seus
personagens mais ou menos famosos.
Ricardo Reis, o heterônimo das rigorosas odes horacianas, embarca
num eléctrico – aquele bonde todo revestido de madeira que, em
Lisboa, resistiu ao tempo e à hegemonia dos automóveis. Seu destino é
o cemitério dos Prazeres. Vai conferir o jazigo de Fernando Pessoa (na
verdade o da avó, onde ele pegava carona). Está lá escrito, no alto do
rústico casinhoto: Dona Dionísia de Seabra Pessoa.
Mas o primeiro encontro de Ricardo com Fernando, pra valer, só
vai se dar mesmo dias depois, no Hotel Bragança, onde o autor das odes
sáficas se hospeda e já tem até uma amante chamada Lídia (uma camareira,
não aquela cantada nas poesias: [...] As rosas amo do jardim de
Adônis,/Essas vólucres amo, Lídia, rosas,/Que em o dia em que
nascem,/Em esse dia morrem [...]).
AGOSTO • 1997

D E
passear com seu heterônimo pela geografia literária da capital portuguesa
L I S B O A
Domingues/Divulgação
Reprodução
Antonio
José
Acima, José Saramago,
autor de O ano da morte
de Ricardo Reis.
À direita, a região da
Baixa, em Lisboa, com
o castelo de São Jorge ao fundo.
É no quarto 201 que Fernando aparece. Não se trata de um
fantasma. Ele não veste sobretudo, nem gabardina ou chapéu, mas está,
sim, com o indefectível fato preto. E explica: morreu, mas ainda tem
oito meses para zanzar por Lisboa.
À teoria de Fernando Pessoa, na pena de Saramago:
Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos os
que andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma
questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem
ver mas todos dias pensam em nós, depois de morrermos deixam
de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco...
Ricardo Reis retorna a Portugal num momento de avanço dos
governos totalitaristas na Europa, mas suas preocupações, pelo menos no
início da estada, são de outra ordem, existenciais.
Sai Ricardo Reis para a rua, esta do Alecrim, invariável, depois qualquer
outra, para cima, para baixo, para os lados, Ferragial, Remolares, Arsenal,
Vinte e Quatro de Julho, são as primeiras dobações do novelo, da teia, Boavista,
Crucifixo, às tantas cansam-se as pernas, um homem não pode andar por aí à toa,
nem só os cegos precisam de bengala que vá tenteando um palmo adiante ou de cão
que fareje os perigos, um homem mesmo com seus dois olhos intactos precisa duma
luz que o preceda, aquilo em que acredita ou a que aspira, as próprias dúvidas
servem, à falta de melhor.
Ricardo Reis ainda não tem certas as razões que o levaram
subitamente de volta a Portugal. Seria por causa da morte de Fernando
Pessoa e, com a deste, a de seus heterônimos todos? Regressa ao Brasil ou
arranja moradia e consultório para se fixar em Lisboa?
C U LT
José Guilherme R. Ferreira
Detalhe de poster feito pelo pintor soviético Alexander Rodchenko
Entra no Rossio e é como se estivesse numa encruzilhada, numa cruz de
quatro ou oito caminhos [...]
O Rossio não está no centro da cidade, hoje ramificada, mas consegue
ser um dos seus corações, uma espécie de clarão na região da Baixa
lisboeta, com seus casarões soturnos e suas ruas estreitas. Do Rossio,
passando pelo Arco Triunfal no final da Rua Augusta, se vai à Praça do
Comércio, o chamado Terreiro do Paço, aberto para o Tejo. Do Rossio
também se vai ao Chiado, afetado pelo grande incêndio de 1988, mas
que ainda carrega romantismo. Do Rossio, ainda, se chega fácil à Praça
da Figueira, se antes se consegue driblar os vendedores de loterias.
Vai Ricardo Reis a descer a Rua dos Sapateiros quando vê Fernando Pessoa
. Está parado à esquina da Rua Santa Justa [...] Traz o mesmo fato preto, tem
a cabeça descoberta, e, pormenor que Ricardo Reis não tinha reparado da
primeira vez, não usa óculos [...] Fernando Pessoa sorri e dá as boas-tardes [...]
e ambos seguem na direcção do Terreiro do Paço.
Parte da conversa:
Quem estiver a olhar para nós a quem é que vê, a si ou a mim.
Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma
soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto
da multiplicação de um pelo outro, Existe essa aritmética [...]
Tenho uma ode em que digo que vivem em nós inúmeros, Que eu me
lembre essa não é do nosso tempo. Escrevia-a vai para dois meses,
Como se vê, cada um de nós, por seu lado, vai dizendo o mesmo,
Então não valeu a pena estarmos multiplicados, Doutra maneira
não teríamos sido capazes de o dizer.
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 José Guilherme R. Ferreira
Reprodução
José Guilherme R. Ferreira
Ricardo Reis aluga casa no Alto de Santa Catarina, com vista para o
porto. Lisboa é pródiga em mirantes como esse, de onde a cidade pode
ser redesenhada e ganhar novos contornos mentais. É assim, por exemplo,
a partir do castelo mouro, sempre a nos vigiar...
É na casa em Santa Catarina que o doutor-poeta tem a sua Lídia
(agora a sua mulher a dias, não a ideal de suas odes). É também onde
recebe Pessoa.
Fernando Pessoa levantou-se, entreabriu as portadas da janela, olhou para
fora, Imperdoável esquecimento, disse, não ter posto o Adamastor
na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão clara lição simbólica,
Vê-o daí, Vejo, pobre criatura, serviu-se o Camões dele para
queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e
para profecias menos óbvias, anunciar naufrágios a quem anda
no mar [...]. O gigante Adamastor está mesmo ali no Alto de Santa
Catarina, entre uma fileira de palmeiras, aos pés da nova casa de Ricardo
Reis – um grande bloco de pedra, toscamente desbastado, que visto assim parece
um mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor [...],
quase esquecido.
O episódio de Adamastor, n’Os lusíadas, é clássico. Narra Camões
que Vasco da Gama, ao contornar o extremo sul da África, foi abordado
pelo Cabo das Tormentas na forma do gigante, que vaticinou uma série
de males aos portugueses que ousaram devassá-lo.
Outras estátuas também estão no caminho do português Ricardo
Reis e de outros de seus patrícios. A de Eça de Queirós, na Rua do
Alecrim, a de Camões, na Praça de mesmo nome, tomando conta do
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Na foto maior, desenhos do pintor
Almada Negreiros representando
os três heterônimos de Pessoa:
da esquerda para a direita,
Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos.
Acima, o Terreiro do Paço, aberto
para o Tejo, com o Arco Triunfal,
no final da Rua Augusta.
À esquerda, estátua do
gigante Adamastor.
largo das Igrejas da Encarnação e de Nossa Senhora do Loreto, e as
estátuas de reis, que destas há em todo lugar. O poeta das odes
alcaicas encontra emprego temporário e curto em clínica de cardíacos,
aos pés de Camões – este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D’Artagnan
premiado com uma coroa de louros e poleiro de pombos (Para que servem as
estátuas, afinal?). Mas o doutor Ricardo Reis parece já padecer de outro
mal e está prestes a seguir com Fernando Pessoa, porque este já tem
aquele seu tempo extra de nove meses a esgotar.
São horas de almoçar, o tempo foi-se passando nestas caminhadas e
descobertas, parece este homem que não tem mais que fazer, dorme, come,
passeia, faz um verso por outro, com grande esforço, penando sobre o pé e a
medida, nada que possa comparar ao contínuo duelo do mosqueteiro D’Artagnan,
só os Lusíadas comportam para cima de oito mil versos, e no entanto este também
é poeta, não que do título se gabe [...] mas um dia não será como médico que
pensarão nele, nem em Álvaro como engenheiro naval, nem em Fernando como
correspondente de línguas estrangeiras, dá-nos o ofício o pão, é verdade, porém
não virá daí a fama, sim de ter alguma vez escrito [...].
É claro que no ano da morte de Ricardo Reis – um 1936 fértil –
muita coisa aconteceu além dos encontros do doutor com Fernando
Pessoa e Lídia aqui bem resumidos – e Saramago soube como ninguém
nos relatar. Mas é que estávamos a falar o tempo todo da geografia da
poesia, essa que está nas esquinas de Lisboa aberta à decifração. c
José Guilherme R. Ferreira
jornalista, editor-assistente de Geral no Jornal da Tarde
AGOSTO • 1997