Vous êtes sur la page 1sur 20

BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico.

Rio de Janeiro: EdUERJ,


2007.

Introdução

“De fato, na epopeia homérica – a Ilíada e a Odisséia –, a matéria narrada combinava


uma substância mítica, que carregava consigo o dado maravilhoso, e tinha, para os
antigos, o valor de história e o investimento literário da poesia.” (BASTOS, 2007, p. 9).

“A consideração feita por Aristóteles na sua Poética de que tanto o poeta quanto o
historiador eram narradores, diferenciando-se um do outro na natureza do fato contado –
o primeiro contava os que poderiam ter acontecido, sendo, portanto, verossímeis –, foi o
ponto de partida para um tipo de comparação que se faz até hoje entre o poeta e o
historiador. Este trabalho não poderia passar ao largo da questão. [...], faz-se nele um
acompanhamento das diversas posições assumidas o longo do tempo por autores,
críticos e teóricos.” (BASTOS, 2007, p. 9).

“As relações entre o poeta e o historiador, perceptíveis desde os tempos de Aristóteles,


como já dito, tornaram-se mais evidentes quando, por fim, surgiu o romance histórico
no início do século XIX. [...] nesse caso formaram-se partidos: de um lado, os que
viram o romance histórico como versão amena da historiografia, concedendo que ao
romancista cabia o reduzido direito de preencher as lacunas eventualmente deixadas
pelo registro histórico, nunca, porém, afastando-se do consagrado. De outro lado, os que
reivindicavam liberdade ilimitada na manipulação do dado histórico, sob o argumento
de que se tratava, em última instância, de ficção, logo, invenção, servindo a história
apenas como matéria-prima sobre a qual deveria exercitar-se a imaginação do escritor.”
(BASTOS, 2007, p. 11).

“A ficção histórica produzida no realismo, por exemplo, por apresentar-se despojada


daqueles atributos retumbantes, foi batizada pelo teórico marxista Georg Lukács como
uma ficção “arqueológica”. Segundo Lukács, essa ficção “arqueológica” estaria
marcada por um descritivismo frio e distante, predominantemente interessada na
recuperação estática do passado longínquo; em suma, uma espécie de negação do
verdadeiro romance histórico. E na modernidade, mais especialmente na pós-
modernidade, ante a quebra de inúmeros padrões da ficção histórica tradicional, como a
franca acolhida dada ao inverossímil ou a violação das fronteiras de tempo e espaço,
foram reformulados os conceitos e propostas novas denominações, uma das quais a de
“metaficção historiográfica”, cunhada por Linda Hutcheon.” (BASTOS, 2007, p. 11-
12).

Objetivo: “Finalmente, avançamos até a formulação de uma tipologia caracterizadora do


romance histórico. Não se trata de propor um quadro esquemático, aprisionador da
singularidade das obras, nem se pretende reduzir o romance histórico a apenas essa
dimensão. Contudo, uma rotulação, qualquer que seja, não pode ser o resultado de um
simples capricho, e a classificação de um determinado romance como histórico deve ser
feita em respeito a um conjunto de traços caracterizadores que o irmanam a outros
romances igualmente merecedores do título. Alguns desses traços são mais fortes que
outros, como, por exemplo, a exigência de que a trajetória das personagens principais se
vincule de modo irrecorrível ao destino da comunidade histórica de que fazem parte; ou
que os fatos e as figuras históricas aludidas não cumpram função apenas incidental na
trama, mas sejam elementos definidores da natureza dos eventos e da sorte das
personagens, de procedência histórica ou não.” (BASTOS, 2007, p. 12).

“O verdadeiro propósito é o de estimar sobre a natureza do romance histórico, no


pressuposto de que nenhuma outra modalidade de romance coloca tão claramente o
problema fundamental da referencialidade, isto é, o problema das relações da narrativa
de ficção com a realidade empírica, por motivos que serão declinados no corpo do texto.
[...]. A despeito de algumas vezes ter sido decretada a sua morte, a ficção histórica
continua seduzir-nos com a memória dos homens e dos fatos que vieram antes de nós.”
(BASTOS, 2007, p. 13).

Ficção e história: entre o poeta e o historiador

O poeta e o historiador – juntos e separados:

“[...], a grande distância temporal entre Homero e a Guerra de Tróia, acontecida três ou
quatro séculos antes, favoreceu amplamente a elaboração mítica, pois não havia
registros escritos que pudessem contrapor-se à versão do poeta, [...]. Naturalmente, não
terá ocorrido a Homero distinguir, na matéria por ele narrada na Ilíada, o que era de
procedência histórica do que era de procedência mítica. Ambas as matérias são tratadas
pelo poeta-narrador com aceitação plena de sua veracidade. Essa receptividade por igual
ao que hoje denominamos de real e de maravilhoso, para designarmos respectivamente
a dimensão histórica e a dimensão mítica da matéria narrada na epopéia homérica, é
certamente responsável pela identificação, por parte de Auerbach, de um realismo
essencial em Homero, [...].”. (Nota: Apear de persistirem dúvidas quanto à historicidade
do evento, a maioria dos estudiosos inclina-se hoje a aceitar que de fato tenha ocorrido o
conflito entre aqueus e troianos, por volta do século XII a.C. E a descobertas das ruínas
de Tróia, no século XIX, por Heinrich Schliemann, ainda que também neste caso
persistam dúvidas, pois na verdade foram encontradas não uma, mas diversas Tróia,
reforça consideravelmente a veracidade de um fundo histórico sobre o qual Homero
teria espalhado suas marcantes personagens)” (BASTOS, 2007, p. 15-16).

“Afirma Veyne ser impossível determinar o momento certo e que o mito teria sido
superado por algo mais forte: razão, por exemplo. Aponta, porém, determinados
momentos desse percurso em que se tentou separar “o joio do trigo”, isto é, “extrair da
lenda de Teseu [por exemplo] o núcleo de autenticidade” (P.26), como o fez Pausânias
(autor da Descrição da Hélade, provavelmente escrita na segunda metade do século II
d.C.). [...]. De qualquer modo, os gregos antigos, incluindo Homero, nunca tiveram
consciência tão clara dos limites entre mito e história, quanto a que temos hoje. Daí a
completa espontaneidade com que os poetas da Antiguidade lidaram com as duas
matérias, sem se colocarem o problema de uma parecer mais verdadeira que a outra.”
(BASTOS, 2007, p. 17).

“Aristóteles (1981) no capítulo IX de sua Poética, foi o primeiro a demarcar limites


entre o historiador e o poeta. Aristóteles desprezou as diferenças formais manifestas
quando afirmou: “Não é em metrificar ou não que diferem o poeta e o historiador: a
obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história do que sem ele”.
Preferiu enfatizar o princípio da verossimilhança: “a diferença está em que um [o
historiador] narra acontecimentos e o outro [o poeta], fatos que poderiam acontecer”. O
balanço final é favorável ao poeta, que assim se aproxima do filósofo, por tratar do
universal, enquanto o historiador dele se afasta, por limitar-se ao particular: “a poesia
encerra mais filosofia e elevação do que a história; aquela encerra verdades gerais; esta
relata fatos particulares. Essa valorização do poeta frente ao historiador, tendo como
ponto terminal de excelência o filósofo, constitui clara refutação da tese platônica de
não ser o poeta mais que um imitador de simulacros, que por isso mesmo está muito
distante da verdade. Sobretudo, liberta-o da subordinação estrita ao verídico. Aristóteles
deixa claro que há da parte do poeta uma intencionalidade seletiva.” (BASTOS, 2007, p.
18).

“Esta distinção entre o poeta e o historiador tem sido retomada ao longo do tempo por
inúmeros escritores e/ou teóricos da literatura, às vezes com quase as mesmas palavras.
Os irmãos Edmond e Jules Goncourt (1972), por exemplo, enfatizando a função
documental, realista do romance, que neste caso seria equivalente à da história,
afirmavam no seu journal de 24 de outobro de 1869: <<O romance depois de Balzac
não tem mais nada em comum com aquilo que nossos pais entendiam como tal. O
romance atual se faz com documentos narrados, ou extraídos da natureza, como a
história se faz com documentos do passado; os romancistas, narradores do presente>>.
Concluindo: “A história é um romance que foi, o romance é a história que poderia ter
sido”.” (BASTOS, 2007, p. 19).

“A fórmula dos irmãos Goncourt inscreve-se no esforço comum a tantos ficcionistas do


século XIX de conferir respeitabilidade ao romance, não mais relatos fantasiosos e
inverossímeis, conforme a acepção antiga da palavra romance. O próprio Balzac, no seu
prefácio à Comédia humana, de 1842, reconhece inicialmente que Walter Scott elevara
“ao valor filosófico da história a literatura”, numa curiosa inversão da fórmula
aristotélica, mas censura-o por não haver pensado em “ligar suas composições umas às
outras com o fim de coordenar uma história completa da qual cada capítulo formasse
um romance e cada romance uma época”. Então, para sanar tal falha, Balzac (1955) se
propõe a “escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes” (p. 14).
Para tanto, retoma a diferença entre o poeta e o historiador, agora, porém, em novas
bases. Ao compor um quadro da sociedade francesa no qual as “ações repreensíveis, as
faltas, os crimes, dos mais leves aos mais graves, nele encontram sempre o castigo
humano ou divino, ruidoso ou secreto”, diz ter feito “melhor que o historiador” (p. 17),
pois lhe parece que a “história não tem por lei, como o romance, propender para o belo
ideal” (p. 18): <<A história é ou deveria ser o que foi, ao passo que o romance deve ser
o mundo melhor, disse Mme. Necker, um dos mais notáveis espíritos do século passado.
O romance, porém, nada seria se, nessa August mentira, não fosse verdadeiro nos
pormenores>> (p. 18). [...], a versão de Balzac já comporta alguma dose de suspeita
quanto ao poder da história de efetivamente contar o que aconteceu. A condicional
“deveria ser” implica consciência de que nem sempre o historiador consegue a exata
reconstituição do “que foi. [...].Balzac queria distinguir-se dos historiadores, mas
também na prerrogativa de corrigir a própria história.” (BASTOS, 2007, p. 20-21).

“[...], as preocupações de Fielding eram de outra ordem, mas não deixavam de ressaltar
também a superioridade do Romance sobre o historiador, pois lhe parecia que <<o
romancista pode até cometer erros quanto aos detalhes factuais, mas pinta as pessoas
como verdadeiramente são, ao passo que aqueles [os historiadores], obrigados a aderir
aos fatos, acabam discordando em matéria de interpretação, o que torna suas obras
ficção>> (p.93). A estranheza com a atribuição, por Fielding, de um caráter ficcional à
obra dos historiadores é explicada, a seguir, como recurso para “emprestar mais
dignidade ao gênero” e apartá-lo de uma vez por todas do mal reputado romance.”
(BASTOS, 2007, p. 22).

“Esse movimento do romance “moderno” em direção à suposta objetividade da história


é visto por Stephen Bann (1994) como sinal de um processo simultâneo: enquanto
historiografia do século XIX postulava um paradigma científico, libertando-se de ser
considerada um gênero literário entre outros, a própria literatura libertava-se da retórica
e adotava um paradigma histórico, como no romance histórico e no romance realista ou
naturalista. Segundo suas palavras, “produtos indisfarçadamente literários faziam-se
passar como se tivessem aquela transparência do real que o historiador havia afirmado
programadamente” (p. 55). Por sua vez, Luiz Costa Lima, na argumentação que
desenvolve em torno do “veto ao ficcional”, vê o romance que se consolida no século
XIX, especialmente o romance realista, como uma espécie de contraparte da história:
[...].” (BASTOS, 2007, p. 22-23).

“Contudo, devemos observar, de passagem, que um preceito canônico do romance


realista – a onisciência do narrador em terceira pessoa, que, em princípio, o dotaria da
objetividade e da neutralidade do historiador – constituía, na verdade, a hipertrofia da
natureza ficcional do relato, pois raia ao absurdo a aceitação de uma consciência à qual
não se impõem limites de qualquer ordem, capaz de penetrar em todas as outras
consciências, fazer-se presente em vários lugares ao mesmo tempo, atravessar os
tempos para muito além da duração da existência de uma pessoa de carne e osso.
Decididamente, um narrador com tais atributos não poderia pertencer ao universo
humano; não poderia ser visto como réplica do historiador (ou de qualquer outra espécie
de narrador preso às limitações de sua identificação com uma individualidade humana),
pois este se impõe limites à captação da interioridade psicológica das figuras históricas,
e deveria ser rejeitado liminarmente por qualquer leitor que consumisse seu relato a
partir de pressupostos de rigidez “histórica”.” (BASTOS, 2007, p. 24).

“Uma afirmação oblíqua da diferença entre o poeta e o historiador fora, antes mesmo de
Balzac, proposta por Alfred de Vigny (1930), em “Réflexions sur la vérité dans l’art”,
prefácio ao seu Cinq-mars, primeiro romance histórico francês, publicado em 1827. Em
caixa alta mesmo, Vigny afirma: “L’histoire est um Roman dont le peuple est l’auteur”,
[...]. A aproximação entre história e romance vê-se consagrada nessa fórmula enfática
que traz para a cena a dicotomia autoria individual (romance) / autoria coletiva, povo
(história), mas serve muito mais para que Vigny estabeleça a diferença que lhe interessa,
qual seja entre “a Verdade da Arte e o Verdadeiro do Fato”. [...]. Isto é, Vigny se
interessa pelos fatos históricos apenas pelo que eles contêm de exemplaridade, pelo que
neles escapa de sua precária realidade e se irradia para a existência generalizada dos
homens. Nesse componente abstrato reside a verdade da arte, e somente a ela deve
aspirar o romancista. Esse afastamento da função documental é de tal ordem que Vigny
considera irrelevantes até mesmo os nomes próprios das personagens, isto é, suas
marcas registradas: <<Ela não se corromperá, porque a verdade da qual deve se nutrir é
a verdade da observação sobre a natureza humana, e não a autenticidade do fato. O s
nomes das personagens não fazem nada à coisa. A idéia é tudo. O nome próprio nada
mais é que o exemplo e a prova da idéia>> (p. XIII). Contudo, há nas palavras de Vigny
ainda uma aceitação de que na história reside o verdadeiro. Consequentemente, se esse
lugar já está ocupado, a arte deve deslocar-se para outra esfera. A desqualificação da
matéria verídica, inclusive os nomes próprios, em favor da ideia, se reserva para a arte
um espaço próprio, dispensando-a da competição com a história, também a desabilita
como instrumento para dizer a trajetória objetiva dos homens. O jogo de palavras entre
verdade da arte e verdadeiro dos fatos é, com mudança sinuosa de terminologia, a antiga
distinção aristotélica entre contar o que aconteceu, tarefa do historiador, e o que poderia
ter acontecido, tarefa do poeta. Em outro momento, aliás, curiosamente o texto de Vigny
ecoa a restrição platônica à mimese artística.” (BASTOS, 2007, p. 24-25).

“Em reforço à afirmação de que a Poética de Aristóteles “funda uma tipologia que,
grosso modo, tem-se mantido até nossos dias na tradição ocidental”, Michel
Vanoosthuyse (1996, pp. 2-3) cita, entre vários teóricos, nada menos que Cervantes.
Trata-se de uma passagem do capítulo III da segunda parte do Dom Quixote, quando o
protagonista Sancho e o bacharel Sansão Carrasco envolvem-se numa discussão sobre a
fidedignidade da versão apócrifa das aventuras do Quixote, que circulava, com notável
êxito de vendagem, aliás, paralelamente à primeira parte. Ao comentário do bacharel
quanto à opinião de muitos leitores que prefeririam que tivessem sido omitidas as
“infinitas pauladas que em diferentes recontos deram no senhor Dom Quixote”, Sancho
retruca, em tom de cobrança: “E a verdade da história?”. O próprio Quixote então
pondera que “as ações que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não
há motivo para se inscreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista.”
(BASTOS, 2007, p. 26).

“Essa dicotomia implicita certo julgamento de valor quanto à essência dos fatos: uns
deveriam ter acontecido outros não. O Quixote é tolerante com a omissão de alguns
fatos verdadeiros de sua estória que “redundem em menosprezo do protagonista” – no
caso, ele mesmo –, desde, é claro, que “não mude nem altere o fundo verdadeiro da
história”. Defende, assim, uma poética da veracidade essencial, enquanto Sancho
representa a vertente defensora da rigorosa fidelidade aos fatos “como foram”,
independentemente de tratar-se o narrador de um poeta ou de um historiador.”
(BASTOS, 2007, p. 27).

“O problema não estaria, portanto, na natureza alheia da matéria narrada, mas sim na
“peculiar atitude do criador literário ante a matéria histórica” (p. 10). Os romancistas
históricos, diz Amado Alonso, relegaram a segundo plano a criação poética e se
esmeraram na “elaboração e apresentação artística de um material intelectualmente
conhecido” (p. 11). Dito de outro modo, empenharam-se pouco em ser romancistas, e
muito em ser historiadores.” (BASTOS, 2007, p. 28).

“Para tanto, Amado Alonso ensina, deve o romancista histórico relacionar a


reconstituição do passado, no que ela tem de arqueologia, isto é, de apenas documental,
à história propriamente dita, ou seja, o movimento vivo que permite a apreensão de um
sentido, de modo a tornar esta última a matéria-prima de que se valerá o poeta. [...].
Observa que a matéria do historiador são os “acontecimentos passados, recolhidos e
documentados pela erudição”, aos quais ele dá uma “forma”, “ao estruturá-los com um
sentido” (p. 17), enquanto a matéria da poesia é já a história, à qual o poeta imprime
uma “forma” peculiar, “pondo nela um profundo sentido novo, para além do particular
histórico”, alcançando, portanto, a universalidade de que falava Aristóteles.” (BASTOS,
2007, p. 29).

“Para E. M. Forster, “a função do romancista é revelar essa vida oculta na sua fonte:
contar-nos mais sobre a Rainha Vitória do que se poderia saber e, desse modo, compor
uma personagem que não é a Rainha Vitória da história” (p. 35).” (BASTOS, 2007, p.
30).

“[...] a ênfase posta pela história nas “causas externas” faz com que ele seja “dominada
pela noção de fatalidade; ao passo que no romance ao há fatalidade” (pp. 35-36). Forster
concede que todas essas considerações correspondem àquilo que “qualquer colegial
britânico sabe: o historiador registra, enquanto o romancista deve criar”. Trata-se, como
é fácil de perceber, da reafirmação da dicotomia aristotélica, apoiada agora na oposição
entre registrar e criar. Forster serve-se dela não para expor especialmente as diferenças
entre o poeta e o historiador, mas para provar que há diferenças entre o poeta e o
historiador, mas para provar que há diferenças entre as “pessoas na vida cotidiana e as
pessoas nos livros” (p. 36), dado que no romance, justamente por ser possível penetrar
na interioridade das pessoas, temos delas um conhecimento completo, irrestrito. Esse
conhecimento pleno da personagem, além de ser marca da superioridade do romancista
sobre o historiador, é também condição para sua realidade, [...].” (BASTOS, 2007, p.
31).

“Por vezes, a diferença entre o poeta e o historiador não é vista como inteiramente
favorável ao poeta. Há romancistas e teóricos que admitem a liberdade de invenção para
o ficcionista, condicionada, porém, à observância de um limite instransponível: o
respeito à “verdade histórica”. O poeta pode / deve suprir as lacunas da história mas
nunca se afastar dela a ponto de tornar irreconhecíveis os fatos registrados e tidos
consensualmente como verdadeiros. A função do romancista histórico é, assim,
complementar à do historiador, não somente em termos cronológicos, mas também na
tarefa de construir uma imagem verdadeira do passado.” (BASTOS, 2007, p. 31-32).

“No que diz respeito à eficácia informativa do romance histórico, A. Pereira Ribeiro (O
romance histórico brasileiro, 1976) é condescendente: admite o direito de o ficcionista
poder suprir “as falhas documentais, com o produto de sua fantasia”, também aqui,
porém, sob a condição de qual tal se dê apenas “na falta de documentação idônea”,
porque o “romancista histórico, na verdade, enfeita o passado, sem contudo negá-lo,
pois a verdade histórica deve ser sempre a sua bússola e a sua diretriz” (p. 21). [...].
Apesar de mais consistente que a de Ribeiro e a despeito de mostrar-se atenta à
reciprocidade das duas formas discursivas, a argumentação de Cunha converge para
uma tácita subordinação do poeta ao historiador, mais grave ainda por acontecer no
espaço da mesma prática discursiva.” (BASTOS, 2007, p. 33-34).

“Nenhuma reflexão sobre as relações entre o poeta e o historiador foi tão melancólica
quanto a de Alessandro Manzoni. O autor de Os noivos, tido como o maior romance
histórico de todos os tempos, começa por anotar que algumas pessoas lamentam que,
<<neste ou naquele romance histórico, nesta ou naquela parte de um romance histórico,
o vero positivo não seja bem distinguido da parte inventada, de que resulta faltar a esse
romance histórico um dos efeitos principais dum tal componente, qual seja o de nos dar
uma representação verdadeira da história>>. Os que assim procedem, diz Manzoni,
pertenceriam ao grupo dos que privilegiam, mesmo no romance histórico, o componente
documental, em desfavor da invenção ficcional. Para maior clareza da argumentação,
Manzoni dá voz ao suposto defensor do vero positivo, que compara a história
propriamente dita a um “mapa geográfico”, no qual estão assinalados os acidentes
geográficos e a estrada principal de uma vasta região, enquanto o romance histórico que
não distingue com nitidez o vero positivo do ficcional inventado se assemelharia a um
“mapa topográfico”, no qual tudo é particularizado. No caso do “mapa topográfico”, o
retrato é mais rico, porque se trata da “representação mais geral do estado da
humanidade num tempo, num lugar naturalmente mais circunscrito do que aquele ao
qual se aplica ordinariamente o trabalho da história”, e, assim, proporciona mais
prazer.” (BASTOS, 2007, p. 35-36).

“Existem, porém, continua Manzoni, pessoas que se queixam exatamente do contrário,


isto é, do fato de que “neste ou naquele romance histórico, nesta ou naquela parte de um
romance histórico, o autor distingue expressamente o vero positivo da invenção”, de que
resulta ser destruída “aquela unidade que é a sua condição vital, como em qualquer obra
de arte”. Outra vez Manzoni dá voz ao suposto reclamante, que começa por perguntar
qual seja “a forma essencial do romance histórico”. A resposta é: a estória. Assim sendo,
como imaginar alguma coisa que seja mais contrária à desejada unidade de uma obra de
arte que essa divisão, explicitada no próprio texto, entre parte verdadeira e parte
inventada? No interior da obra, na essencialidade da estória, haveria parte às quais o
leitor daria o assentimento que deve ser dado ao vero positivo e parte às quais daria o
assentimento que deve ser dado ao apenas “verossímil”. Distinguir o vero positivo da
parte da estória inventada é procedimento censurável, pois significa que o próprio artista
se encarregara de desfazer “materialmente aquilo que se havia reunido formalmente”,
quebrando, portanto, a “unidade essencial” que deve existir em toda obra de arte.
Manzoni, nesta parte da exposição, dá razão a ambos os queixosos, mas para chegar a
uma terceira verdade, feita com pouco de cada uma das duas.” (BASTOS, 2007, p. 36-
37).

“Assim sendo, como acusar o romancista histórico de fazer ou não fazer uma coisa que
já está indicada na gênese do próprio romance histórico, isto é, seu hibridismo
inevitável? Tendo razão num ponto e não em outro, ambos os inquiridores do
romancista histórico estariam certos e errados ao mesmo tempo. Logo, o próprio
romance histórico seria uma impossibilidade: não se realizaria como histórico, isto é,
não cumpriria a promessa, implícita no designativo, de reconstituir uma determinada
época, prestando tributo ao vero positivo, dado que a parte inventada macula esse vero
positivo; nem se realizaria como romance, pois a presença indisfarçada de elementos
provenientes da realidade no seio de uma construção que, sendo artística, deveria
pautar-se pela submissão ao verossímil, impede sua fruição poética. Segundo Amado
Alonso, essa conclusão pessimista é devida à concepção “herética’ que Manzoni tem do
verossímil aristotélico: <<A heresia está na interpretação que Manzoni dá ao
‘verossímil’ como ‘o historicamente possível’, com o qual, em lugar de pôr no
acontecido e no verossímil dois critérios heterogêneos, duas medidas, como o metro e o
litro, são dois valores diferentes de uma mesma medida, como o metro físico e o metro
industrial>>.” (BASTOS, 2007, p. 38-39).

“[...], quando conclui pela impossibilidade de que o romance histórico “chegue a


adquirir validez de história, nos deixa definitivamente convencidos”, mas o mesmo não
acontece quando tenta provar-nos a impossibilidade de o romance histórico ter “validez
poética, pois em lugar de o fazer com critérios poéticos, segue obcecado pelos mesmos
interesses históricos que empregara no estudo do primeiro aspecto” (p.108).”
(BASTOS, 2007, p. 39).

“Realmente, a triste conclusão a que chega Manzoni resulta dessa hipertrofia do vero
positivo. Contudo, ninguém colocou com tanta propriedade o hibridismo incontornável
do romance histórico. Ao chamar o leitor para o centro das especulações, quando
adverte para a inutilidade de qualquer tentativa de tornar indistintos os componentes
históricos os componentes poéticos, isto é, ficcionalmente inventados, porque o leitor já
o faz independentemente dos esforços do autor do romance histórico, Mazoni tocou na
questão crucial da procedência da matéria narrada. Uma parte considerável dessa
matéria é de extração histórica, supondo-se, portanto, alguma familiaridade do leitor em
relação a ela, e por mais hábil que seja a mistura do vero positivo com o ficcionalmente
inventado, o conhecimento anterior impõe, em princípio, a dualidade de
“assentimento”.” (BASTOS, 2007, p. 40).

“[...] no âmbito da própria historiografia não se tem mais a reverência integral às fontes
documentais como o lugar onde foi depositada a verdade histórica, mas é impossível
varrer de seu horizonte de expectativas a memória consolidada contra a qual se projeto a
criação literária. A ficção contemporânea tem justamente explorado essa fenda entre o
que hipoteticamente seria a verdade histórica incontrastável e o delírio fantasista do
autor de ficção histórica, [...].” (BASTOS, 2007, p. 40).

“O problema da diferenciação entre o poeta e o historiador, levantado pela primeira vez


por Aristóteles na sua Poética, permanece irresolvido. Na verdade, poucos sustentariam,
hoje, uma distinção tão nítida quanto a que foi por ele estabelecida entre uma e outra
prática discursiva. Não apenas pela constância do reconhecimento do elemento comum
narrativa (com todo peso da discussão daí derivada sobre a entidade narrador) –
justamente o que autorizou Aristóteles a propor a comparação, pois tanto o historiador
quanto o poeta narram fatos –, mas também pela constatação de que ficção e história
permutam entre si diversos processos discursivos e ainda pelas alterações qualititativas
processadas no interior de cada uma delas.” (BASTOS, 2007, p. 41).

“No âmbito da história, por exemplo, destaquemos dois pontos. O primeiro diz respeito
à relativização do conceito de verdade histórica, nascida, sobretudo, da consciência cada
vez maior de ser a escrita histórica uma construção cultural, contaminada, dependente
do peso a ser atribuído às fontes, e quase sempre interessada numa versão, em
detrimento de outras. O segundo ponto tem a ver com o alargamento do conceito de fato
histórico, que agora não é mais apenas o fato político-econômico, mas também o social,
o cultural e até o mental. Esses dois pontos mudaram o rosto da disciplina de modo
radical. As próprias fontes, que tradicionalmente eram entendidas apenas como os
documentos escritos, tiveram ser alcance semântico notavelmente ampliado, primeiro
com o reconhecimento da chamada “história oral”, depois com a incorporação de
processos de registro audiovisuais e, mais recentemente, com a internet.” (BASTOS,
2007, p. 41).

“[...], no âmbito da literatura, o renovado interesse pelo passado histórico e a


permanência teórica da questão da referencialidade – que, no caso do romance histórico,
caracteriza uma situação-limite, pois nele (como também no romance político) não
apenas as personagens, eventos e ambientes reais, mas são personagens, eventos e
ambientes reais, na medida em que muito frequentemente conservam suas marcas de
identificação, em especial os nomes próprios, [...].” (BASTOS, 2007, p. 43).

Linda Hutcheon: “A história “não existe senão como texto”, e o acesso ao passado está
condicionado pela textualidade” (p. 34). A expressão literária por excelência dessa
escrita pós-moderna, a “metaficção historiográfica”, recusa “a visão de que apenas a
história tem uma pretensão à verdade’ (p. 127) e ela mesma “se aproveita das verdades e
das mentiras do registro histórico” (p. 152).” (BASTOS, 2007, p. 44).

Da historicidade dos rastros: “Ademais, a afirmação de que a história não existe senão
como texto deve ser relativizada, pois se de fato é impossível recuperar integralmente
um evento, a própria reconstituição discursiva parte da premissa de que tal evento
ocorreu de fato, mesmo que também seja irrecuperável sua integridade identificadora.
Se como fato histórico entendermos algo além de sua ocorrência e de seu completo
deperecimento, algo que se deposita numa espécie de superfície temporal e jamais se
extingue de todo, permanecendo tanto nos resíduos materiais – objetos, ruínas – quanto
nos imateriais – o mais poderoso dos quais a memória transmitida –, então a história
existe sim.” (BASTOS, 2007, p. 44).

“[...], a mais produtiva das considerações feitas por Hutcheon parece ser mesmo a do
estatuto comum de discurso, atribuído tanto à história quanto à metaficção
historiográfica e, extensivamente, à ficção histórica e, extensivamente, à ficção
histórica, em qualquer de suas modalidades. É ela que flexibiliza a ideia de que o
registro histórico seja o lugar único da verdade, pois coloca em evidência a
impossibilidade do discurso verbal cientificamente objetivo, neutro e incontestável. Não
que o discurso historiográfico deve integrar-se à irresponsável acolhida de toda e
qualquer versão, mas pela consciência necessária de que o acesso ao passado só pode
dar-se discursivamente. Eticamente, o historiador está muito mais comprometido com a
busca da verdade que com a própria verdade.” (BASTOS, 2007, p. 45).

“Para Hayden White, longe de representar uma diminuição da história, sua “degradação
ao status de ideologia ou propaganda”, a radicação num fundo comum à “sensibilidade
literária” traria o benefício de permitir a identificação do “elemento ideológico, porque
fictício, contido em nosso próprio discurso [do historiador]” (p. 116).” (BASTOS, 2007,
p. 46).

“Para ele, os acontecimentos históricos em si “são de valor neutro” e só acabam


“encontrando o seu lugar numa estória que é trágica, cômica, romântica ou irônica”,
conforme a decisão do historiador em “configurá-los de acordo com os imperativos de
uma estrutura d enredo ou mythos, em vez de outra”. [...]. << distinção mais antiga entre
ficção e hsitória, na qual a ficção é concebida como a representação do imaginável e a
história como a representação do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que
só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável>> (p. 115).
As diferenças, portanto, desaparecem com o reconhecimento de um princípio discursivo
comum. Real e imaginável, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, verdadeiro e
inventado, todos esses pares opositivos procedem de uma mesma origem e são faces de
um mesmo investimento. Perturbador, no entanto, na proposta de White, é o emprego de
uma terminologia que se consagrou no âmbito dos estudos literários – metáfora,
metonímia, sinédoque e ironia; trágico, cômico, romântico e irônico –, a qual deve
desagradar aos historiadores muito mais que aos teóricos da literatura, como reconhece
White, e traz consigo a incômoda impressão de que, de fato, o discurso histórico possa
ser visto como subproduto do literário. A não ser assim, não há como escapar da
consideração metafísica de uma essência que precederia tanto o discurso historiográfico
quanto o discurso literário, ficcional, o que representa no mínimo, censura à idéia
mesma de discurso como processo.” (BASTOS, 2007, p. 47-48).
Romance e epopéia: relações de parentesco épico, aproximações e diferenças

“Mas para fins de reflexão teórica, a distinção básica – fundada, como se viu, na
oposição verdadeiro x verossímil – permaneceu válida, mesmo após o surgimento de
outras modalidades narrativas em prosa” (BASTOS, 2007, p. 48).

“Aconteceu, porém, que as transformações processadas no modelo épico ocidental em


suas várias fases – epopéia latina, epopéia renascentistas, epopéia neoclássica –
resultaram em que o elemento histórico foi progressivamente sobrepujando o
componente mítico. Para tanto, contribui acentuadamente a proximidade temporal entre
o poeta e a matéria narrada. É o caso, na épica de língua portuguesa, de Camões e Os
lusíadas (1572) e, mais tarde, no Brasil, das tentativas épicas de Bento Teixeira
(Prosopopéia, 1601) e Basílio da Gama (O Uraguai, 1769). O poeta épico continuava a
cantar feitos gloriosos do passado nacional de um povo, mas já não tão remotos nem tão
recamados de lendário que aceitassem, sem controvérsia, a excessiva mitificação que,
na epopéia dos antigos, afastava o herói de sua condição humana e o aproximava dos
deuses, além de admitir, sem incredulidade, a intervenção ostensiva dos próprios deuses
nos conflitos dos homens. Essa espécie de veto parcial ao mítico decorria da crescente
familiaridade dos contemporâneos com a substância histórica da matéria narrada. [...].
Desse modo, à proximidade temporal do poeta em relação à matéria narrada somou-se o
poderoso ingrediente das restrições impostas pelo pensamento católico: o poeta cristão
não deveria recorrer ao maravilhoso pagão – como o faziam os antigos –, o que tornava
a recorrência ao aparato mitológico, em grande parte, apenas artifício retórico, dado que
sua aceitação como matéria verídica era agora praticamente impossível.” (BASTOS,
2007, p. 48-49).

Sobre a origem épica do romance: “A par das transformações acontecidas no âmbito da


epopéia e indiferente ao modelo homérico, até por desconhecê-lo, constituíra-se durante
a Idade Média, na Europa, toda uma tradição épica de outra espécie: as canções de gesta
(em versos) e as novelas de cavalaria (em prosa). De base predominantemente cristã,
apesar da permanência residual de elementos celtas – “pagãos”, portanto –, essas
modalidades épicas resistiram à redescoberta das formas greco-latinas, ocorrida durante
o Renascimento, e deitariam sementes na modalidade narrativa que viria a ser
considerada sucessora da epopéia, o romance, surgido em fins do século XVIII e
consolidado no decorrer do século XIX. De que modo o romance sucedeu e substituiu a
epopéia? Eis aí motivo de grande controvérsia. Hegel, na sua Estética, refere-se ao
romance como “essa epopéia burguesa moderna” (p. 190).” (BASTOS, 2007, p. 51).

Nota: “Hegel menciona, como “ramificações secundárias do gênero épico”, além do


romance “no sentido moderno da palavra”, o “idílio” (poesia bucólica), os “diversos
poemas didáticos”, os “romances e as baladas, produtos da Idade Média e dos tempos
modernos”, que são “em parte épicos, pelo seu conteúdo, mas a maior parte das vezes
líricos, pela forma como este conteúdo é tratado”.” (BASTOS, 2007, p. 51).

“Contudo, o romance careceria da “poesia do mundo primitivo que é a fonte da epopéia.


Isso porque o romance, “no sentido moderno da palavra, pressupõe uma realidade já
prosaica”, contrariamente à epopéia, que se liga a uma realidade “poética”, no sentido
de que o tempo a que alude corresponde a uma época “intermédia em que um povo,
saído da sua ingenuidade e sentindo o seu espírito despertar, se põe a criar um mundo
que lhe seja próprio e no qual se sente à vontade” (p. 131).” (BASTOS, 2007, p. 52).
“Lukács, na esteira de Hegel como expressamente o admite num prefácio à sua Teoria
do romance, escrito em 1962, no qual afirma que na primeira parte de seu trabalho “a
influência de Hegel é determinante” – influência que consistira na “oposição dos modos
de totalidade na arte épica e na arte dramática, concepção histórico-filosófica da
dependência e da oposição mútuas das epopéias e do romance” (p. 12) –, preocupa-se
em estabelecer os pontos de contato entre o romance e a epopéia, “as duas objetivações
da grande literatura épica”.” (BASTOS, 2007, p. 52-53).

“[...], a correlação existe. Romance e epopéia são ambos “objetivações da grande


literatura épica”. Em outros termos, são realizações diferentes de um mesmo gênero
literário: o épico. [...]. E por uma óbvia determinação histórica (o romance surge em
tempos de afirmação da sociedade burguesa, quando o mundo “infantil” de que falava o
poeta da epopéia não mais existe), mais do que a noção de simultaneidade, entre
romance e epopéia impõe-se a de sucessividade: “o romance é a epopéia burguesa”
(grifo nosso). Dito de outro modo, o que foi a epopéia para os antigos, especialmente os
gregos, é o romance para a sociedade burguesa dos séculos XIX e XX. [...]. Essa
passagem nos lembra irresistivelmente Aristóteles, quando este afirma que a obra de
Heródoto, posta em versos, continuaria sendo obra de historiador, não de poeta.”
(BASTOS, 2007, p. 53-54).

“Ainda com Lukács, o romance é a epopéia portuguesa, sim, desprovida, porém, da


antiga grandeza, pois agora o poeta não mais pode ser o cantor de uma comunidade, já
que a sociedade de que faz parte está dividida em classes que se antagonizam a partir de
interesses divergentes. Diferentemente do herói da epopéia, que nunca é propriamente
“um indivíduo”, pois sempre foi “característica essencial da epopéia o fato de o seu
objeto não ser um destino pessoal, mas o de uma comunidade” (p. 73), a trajetória do
protagonista do romance não legitima as aspirações coletivas. Pelo contrário, a elas
frequentemente se opõe, já que se trata de um indivíduo “problemático”, exemplar de
um tipo de heróis que “estão sempre em busca” (p. 66).” (BASTOS, 2007, p. 54).

“Contudo, nem todos os teóricos aceitam esse parentesco em linha direta entre o
romance e epopéia. Roger Callois (1942), por exemplo, afirma haver poucas
probabilidades de que o romance do século XIX seja herdeiro do romance “clássico”,
parecendo mais provável que descenda do folhetim, ou que o tenha acompanhado
quando do seu nascimento como produto da imprensa cotidiana. [...]. Recusa, portanto,
que os elementos observáveis na epopéia aos quais chama de “lado romanesco
incontestável” (grifo nosso) possam ser, embrionariamente, matrizes do futuro
romance.” (BASTOS, 2007, p. 57).

“O teórico chega ao ponto de sugerir a exclusão do romance do campo da arte, pelo


menos no que diz respeito ao seu “destino”, na verdade, sua função social, que lhe
parece similar à do cinema, pois “a emoção essencial que procura a leitura de romances
não pertence à ordem do gozo estético desinteressado, senão que, pelo contrário, se
baseia numa participação e numa identificação” (p 33), de modo que pode ser estudado
“também fora das letras” (p. 26).” (BASTOS, 2007, p. 58).

Bakhtin e a pré-história do romance: “Bakhtin, contrariamente a Lukács, não vê o


romance como o correlato burguês da epopéia. Na verdade, traça um amplo histórico do
romance que remonta até mesmo à Antiguidade greco-latina, atravessa a Idade Média e
o Renascimento, alcança o “romance moderno” dos séculos XVIII e XIX. Bakhtin fala
de uma “pré-história da palavra romanesca”, e que “se formou e amadureceu nos
gêneros do discurso familiar ainda pouco estudados, da linguagem popular falada, e do
mesmo modo em alguns gêneros literários e folclóricos inferiores”. Seria impossível,
portanto, datar o início do romance de qualquer época determinada. Menos que
descendente e sucessor direto da epopéia, o romance seria um gênero compósito, por
isso mesmo não enquadrável na tipologia dos gêneros literários, tal como estabelecida
desde Aristóteles: <<O romance se formou precisamente no processo de destruição da
distância épica, no processo de familiarização cômica do mundo e do homem, no
abaixamento do objeto da representação artística ao nível de uma realidade atual,
inacabada e fluída. (...) O romance, deste modo, desde o princípio foi feito de uma
massa diferente daquela dos outros gêneros acabados>>.” (BASTOS, 2007, p. 59-60).

“[...], apesar dos divergentes enfoques quanto à origem do romance, Lukács e Bakhtin
estão de acordo: o romance é um gênero não-acabado. Na sua Teoria do romance,
Lukács afirma: “Assim, enquanto que a característica essencial dos outros gêneros
literários é repousar numa forma acabada, o romance aparece como alguma coisa que
devém como um processo” (p. 80).” (BASTOS, 2007, p. 61).

“No que Bakhtin chama de “pré-história da palavra romanesca”, dois fatores teriam sido
o mais importantes: “um deles – o riso –, o outro – o plurilinguismo” (p. 372). E dentre
as modalidades literárias ancoradas no riso, Bakhtin ressalta uma tradição
“carnavalesca’, a que pertenceriam as formas cômico-sérias, lembrando que mesmo no
mundo antigo as formas “elevadas” tinham os seus duplos paródicos.” (BASTOS, 2007,
p. 61).

“[...], teria decorrido a vitória final do romance, uma modalidade aberta, justamente
receptiva a muitas outras, ao contrário da epopéia, fechada em suas exigências. [...]. A
relevância da matéria de extração histórica para o romance foi atestada e, de certo
modo, hipertrofiada, com o surgimento de uma modalidade especifica de romance, no
início do século XIX, com Walter Scott (1771-1832) e seguidores, o romance histórico,
combinação de duas fortes tendências do Romantismo: a revalorização evasionista do
passado e o nacionalismo exaltatório dos valores, das figuras e das tradições locais.”
(BASTOS, 2007, p. 62).

“[...] – a revalorização evasionista do passado –, Otto Maria Carpeaux, ao tratar do


surgimento do romance histórico e de sua caracterização, no capítulo sugestivamente
intitulado “Romantismo de evasão”, de sua História da literatura ocidental (1966),
contrariamente à idéia de que o autor de Ivanhoé tenha sido o cantor nostálgico da Idade
Média européia, diz que ele “não é propriamente um medievalista”, pois “apenas cinco
dos seus muitos romances se passam na Idade Média”. Mais ainda: “Scott só parece
medievalista porque a cena preferida – a Escócia do século XVIII – era um país muito
atrasado, quase medieval” (p. 1727). Contudo, o fato de apenas cinco romances de Scott
terem a Idade Média como tempo da ação e a circunstância de a Escócia do século
XVIII viver, até certo ponto, ainda seu medievo, ao invés de desmentirem a preferência
passadista de Scott por esse momento histórico, parecem acentuá-la ainda mais: Scott
teria recuperado ficcionalmente Idade Média verdadeira nos cinco romances a que
alude Carpeaux. Na falta dessa Idade Média verdadeira nos demais romances, teria
desenhado uma Escócia, de tempos relativamente recentes, é verdade, mas com acentos
medievais.” (BASTOS, 2007, p. 62-63).
“Desse modo, outro reparo feito por Carpeaux – e de que Scott “não é o poeta de
exotismos históricos, mas o cronista de um país agonizante” (p.1729) –, ainda que
verdadeiro, não basta para negar inteiramente a Scott a condição de medievalista.
Curiosamente, essa simulação de medievalidade o aproxima de José de Alencar, por
exemplo, e de todos os outros romancistas históricos que, não dispondo de uma
verdadeira Idade Média na qual buscassem as origens da nacionalidade, nem por isso
deixaram de edificar, com a força do imaginário, um correlato seu. Quer se tratasse da
Idade Média legítima, quer da Escócia quase contemporânea de Scott, de um “passado
remoto” ou de um “passado recente”, sempre era passado e, como tal, contrapunha-se ao
presente do autor e de seus leitores. O evasionismo romântico, portanto, está na raiz do
romance histórico de Scott e, consequentemente, do romance histórico que se lhe seguiu
no mundo inteiro.” (BASTOS, 2007, p. 64).

“[No pensamento de Lukács] “é completamente falso ver em Walter Scott um escritor


romântico, a não ser que se estenda o conceito de romantismo a toda a grande literatura
do primeiro terço do século XIX” (p. 23), porque Scott, apesar de partilhar com os
românticos os mesmos temas históricos, dá a eles um tratamento muito diferente.
Segundo Lukács, essa diferença se manifesta, em primeiro lugar, naquilo que será uma
espécie de dogma do romance histórico “clássico”: a eleição de “heróis medíocres,
prosaicos, como figuras centrais” (p. 23) das estórias narradas. Somente essas figuras
medianas podem corresponder ao ideal lukacsiano da tipicidade histórico-social, não no
sentido hegeliano do herói que concentra em si o que está disperso no caráter nacional
de um povo, mas no sentido de que suas qualidades são “prosaicas’, desprovidas da
grandeza “poética” dos heróis da epopéia, o que os habilita a pôr em contato os
extremos da sociedade (p. 36). Daí a afirmação surpreendente de que Scott é um autor
“realista”.” (BASTOS, 2007, p. 66).

“[...], muito cedo se colocou o conflito entre o histórico e o inventado ou, em termos
“horacianos”, entre a utilidade da história, que impedia o deleite da ficção, e o deleite da
ficção, que impedia a utilidade da história. Na verdade, Alonso atribui tal conflito a uma
propensão “arqueológica” do romance histórico. Para que melhor se entenda em que
consistiria tal propensão “arqueológica”, Alonso estabelece diferença entre histórico e
arqueológico. [...] a correção documental não é mais que um dado da arqueologia,
menos importante para a reconstituição artística da história.” (BASTOS, 2007, p. 67).

“Manzoni, dando razão aos que lamentavam no romance histórico a indistinção entre o
verdadeiro e o inventado, mas lamentando também os autores que explicitavam essa
distinção e assim destruíam a unidade da obra, entendeu, por fim, que o romance
histórico era uma impossibilidade, já que não podia ser história – trazia consigo,
congenitamente, o inevitável fracasso –, e não podia também ser poesia (entenda-se:
romance ficção).” (BASTOS, 2007, p. 68).

Romance histórico: do evasionismo romântico à recuperação crítica na


modernidade (com breve parada no “arqueologismo” realista)

“[...], para muitos estudiosos o romance histórico teria herdado da epopéia uma das duas
dimensões constitutivas da matéria épica – a história – e substituído a outra – o mito (e
seu corolário, o maravilhoso) – pelo ficcional.” (BASTOS, 2007, p. 68).
“[...], à tese de Hegel é a de que o romance é a “epopéia burguesa, já perfilhada por
Lukács, como vimos. [...]. No verbete sobre a “épica”, no seu Dicionário de termos
literários, afirma Massaud Moisés: “Nem todo poema épico pode ser classificado de
epopéia, mas esta é sempre um poema épico”. Parece claro, portanto, que a epopéia
seria uma modalidade de poema épico. A diferença consistiria no seguinte: “Quando um
poema épico alcança representar a totalidade de seu povo no instante supremo de sua
história, torna-se epopéia”. No entanto, logo a seguir é dito que o poema épico, sem ser
especificado que tipo de poema épico, “seria aquele que se frustou no empenho de
realizar-se como epopéia”, como nos casos de “Prosopopéia, O Uraguai, Caramuru,
Ulisséia etc.”. Parece-nos que há evidente contradição: ou a epopéia é uma modalidade
do poema épico e se distingue das demais pelas características acima mencionadas –
“representar a totalidade de seu povo etc.” –, sem nunca perder sua condição primeira
de poema épico, ou o poema épico, ao lograr ser a representação da “totalidade do seu
povo etc.”, eleva-se à condição superior de epopéia, que deve ser vista, então, como o
gênero do qual o poema épico não-epopéia seria apenas uma modalidade.” (BASTOS,
2007, p. 69).

“A Idade Média, por exemplo, foi recuperada apenas em seus aspectos de positividade –
grandeza, bravura, lealdade, fé extremada, amor cortês –, e o protagonista, cumulado de
virtudes que, se não o elevavam à condição de sobrenaturalidade do herói da epopéia,
pelo menos o faziam muito superior à média dos homens com quem se relacionava.
Assim, a idealização superlativa processada no romance histórico europeu terá servido
como uma espécie de aval ao projeto de criação de um passado mítico nacional nos
nossos românticos, especialmente Gonçalves Dias e José de Alencar, os nomes tutelares
do movimento.” (BASTOS, 2007, p. 70).

“Por outro lado, o realismo, com seu apelo programático à contemporaneidade, sepultou
o romance histórico à moda romântica. Em seu lugar, produziu o romance arqueológico,
de que Salambô (1862), de Flaubert, foi o exemplo mais expressivo. No dizer de Lukács
(p. 223), fiel à sua aversão ao descritivismo, já que, no seu entender, a descrição
caracterizaria uma postura discursiva passiva, de mero observador, contrariamente à
narração, que corresponderia à postura discursiva ativa, de quem participa, Salambô foi
também o exemplo perfeito do declínio do romance histórico: nele estariam
concentrados os traços essenciais do romance arqueológico: desumanização da história,
reduzida a simples cenário de eventos privados, íntimos e subjetivos. Sem a dicção
triunfalista e nostálgica de Scott e seguidores, esse romance arqueológico, para
aceitarmos a designação de corte pejorativo proposta por Lukács, era uma ficção que
apenas reconstruía o passado histórico com requintes de erudição descritiva e crueza na
representação dos costumes “primitivos” dos antigos, além de ausentar-se por completo
de qualquer propósito nacionalista. Deve ser notado, aliás, que o caráter arqueológico de
Salambô foi intencional e, portanto, desprovido de negatividade, por parte do próprio
Flaubert (1993), como pode ser constatado em algumas de suas cartas. Segundo elas, a
redação do que Flaubert chamou inicialmente de “conto egípcio”, começada cerca de
dez anos antes da publicação do livro, foi trabalhosa. Exigiu do autor uma viagem de
pesquisa à África, onde esteve por quase dois meses, em 1858. Exigiu-lhe também a
tomada de incontáveis notas e a leitura de volumosas obras que lhe serviriam de fonte,
como uma “memória de 400 páginas sobre o cipreste piramidal”, isso “porque há
ciprestes no pátio de templo de Astarté”. A essas coisas o próprio Flaubert chamava de
“formidável trabalho arqueológico”. (BASTOS, 2007, p. 73-74).
“Em carta ao crítico Saint-Beuve, sustenta não apenas a veracidade das descrições, mas,
sobretudo, sua funcionalidade: “Não há em meu livro [Salambô] nenhuma descrição
isolada, gratuita; todas servem a meus personagens e têm uma influência longínqua ou
imediata sobre a ação”. E a despeito do “formidável trabalho arqueológico” a que se
entregara, garante: <<Eu zombo da arqueologia! Se a cor não existe, se os detalhes
destoam, se os costumes não derivam da religião e os fatos das paixões, se os caracteres
não são seguidos, se os costumes não são apropriados aos usos e a arquitetura ao clima,
se não há, numa palavra, harmonia, eu estou em erro. Senão, não. Tudo se mantém>>.”
(BASTOS, 2007, p. 74-75).

“Histórico é também o fato contemporâneo. E não apenas as batalhas sangrentas, os


lances diplomáticos de envergadura, as calamidades dizimadoras cabem na
denominação, mas também a jornada cinzenta e cotidiana do homem comum, como já o
antevira Balzac ao falar de uma “história dos costumes”. O ficcionista já não se debruça
nostálgico sobre os tempos remotos, mas acompanha o nervoso pulsar da vida
contemporânea, às vezes antecipa o que a história propriamente dita confirmará (ou
não) depois. A substância histórica confunde-se com a substância política, e o romance
histórico, que passa a ser visto como um gênero menor.” (BASTOS, 2007, p. 75).

“Na segunda metade do século XX, [...], pode-se falar de um novo romance histórico
(Marguerite Yourcenar, Umberto Eco, José Saramago etc.) que é, curiosamente, até
certo ponto, também arqueológico, no sentido do rigor documental e da ostensiva
erudição demonstrada em campos do conhecimento tão díspares entre si como o sejam a
semiologia, a retórica, a teologia, a arquitetura etc. Essa ficção histórica nossa
contemporânea discrepa do modelo romântico em muitos aspectos, como a ausência de
triunfalismo, a diversificada perspectiva temporal do narrador, a explicitação de sua
natureza ficcional e consequente caráter auto-reflexivo, intertextual, além da frequente
recorrência à paródia.” (BASTOS, 2007, p. 75-76).

“[...], a caracterização proposta por Seymour Menton (1993) pode, sem abuso de nossa
parte, ser entendida à parcela que lhe parece mais significativa da ficção histórica
produzida nas últimas décadas do século XX e neste início de século XXI, da qual
seriam os traços mais expressivos: 1) “a subordinação, em distintos graus, da
reprodução mimética de certo período histórico à apresentação de algumas ideias
filosóficas, difundidas nos contos de Borges e aplicáveis a todos os períodos do
passado, do presente e do futuro” (p. 42), como o sejam “a impossibilidade de conhecer
a verdade histórica ou a realidade; o caráter cíclico da história e, paradoxalmente, o seu
caráter imprevisível, ou seja, que os acontecimentos mais inesperados e mais
assombrosos possam ocorrer” (p. 42); 2) “a distorção consciente da história, mediante
omissões, exagerações e anacronismos” (p. 430; 3) “a ficcionalização de personagens
históricas, diferentemente da fórmula de Walter Scott – [...]; 4) “a metaficção ou os
comentários do narrador sobre o processo de criação” (p. 43); 5) “a intertextualidade”
(p. 43), com “alusões frequentes a outras obras, miudamente explícitas, em tom de
zombaria” (p. 44); e 60 “Os conceitos bakhtinianos do dialógico, do carnavalesco, da
paródia e da heteroglossia” (p. 44).” (BASTOS, 2007, p. 77).

“Por um lado, o fato mesmo de tratar-se de “novo romance histórico”, e de o autor


estabelecer limites cronológicos nítidos, de 1979 a 1992, restringe o alcance da tipologia
proposta por Menton. Por outro, no entanto, incomoda o fato de Menton reconhecer a
existência, ao lado de novos, de “romances mais tradicionais”, em número amplamente
superior àqueles, publicados num período quase comum, pois a datação desses
“romances mais tradicionais” vai de 1949 a 1992. Menton justifica a inclusão desse
conjunto numericamente mais expressivo como prova da “proliferação de todo tipo de
romance histórico a partir de fins dos anos setenta” (p. 15), mas faz o reparode que os
romances históricos “mais tradicionais” são, em sua maioria, de qualidade bem menos
importante. Trata-se de um julgamento de valor não deveria ser tomado como
argumento decisivo para a instituição de uma tipologia, que deve ser neutra, na medida
em que identifica caracteres, não virtudes ou defeitos.” (BASTOS, 2007, p. 78).

“Parece, portanto, ser um erro excluir de um hipotético corpus de romance histórico


contemporâneo as obras que, por serem “mais tradicionais”, não se enquadrassem nos
parâmetro do “novo romance histórico”. Do mesmo modo que não seria correto
considerar como não pertencendo ao gênero um romance histórico do século XIX,
contemporâneo do romantismo e que não apresentasse aqueles traços imediatamente
caracterizadores do romance histórico “clássico”: representação de um passado remoto,
dicção triunfalista, heroicização idealizada do protagonista, nacionalismo exaltatório.”
(BASTOS, 2007, p. 78).

“Dada a diversidade de caminhos trilhados pela ficção histórica contemporânea, o termo


romance histórico já não é capaz, hoje, de dar conta do aproveitamento ficcional em
prosa da matéria de extração histórica. Legítima criação do romantismo, identificou-se,
talvez exageradamente, com o tipo de romance histórico praticado no período, a partir
do modelo scottiano – o romance histórico clássico no entender de Lukács –, e apesar
das diferenças observadas entre seus vários cultores. Daí o surgimento de termos
alternativos, como “romance de fundação” e “metaficção historiográfica”. (BASTOS,
2007, p. 78-79).

“Quanto à metaficção historiográfica, termo cunhado por Linda Hutcheon (1991) a


autora não nos dá uma definição formal, mas dela se aproxima em alguns momentos.
Um deles é quando diz que a “autoconsciência teórica” da metaficção historiográfica,
que a leva a reconhecer que tanto a história quanto a ficção são, por igual, “criações
humanas”, serve-lhe de base para repensar e reelaborar as formas e os conteúdos do
passado” (p. 22). Em outros termos, a metaficção historiográfica é uma modalidade
narrativa essencialmente metadiscursiva, que em momento algum pretende fazer-se
passar por outra coisa que não o que ela é de modo incontestável: texto. Daí que a
metaficção historiográfica repudia “os métodos naturais, ou de senso comum, para
distinguir entre o fato histórico e a ficção”, e não aceita que “apenas a história tem uma
pretensão à verdade” (p. 127). Também a ficção pode pretendê-la, na medida em que
ambas as modalidades, como já dito anteriormente, são “discursos, constructos
humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua
principal pretensão à verdade” (p. 127).” (BASTOS, 2007, p. 79-80).

“As formas da ficção histórica do século XIX persistem até hoje: <<Eu definiria a
ficção histórica como aquela que segue o modelo da historiografia até o ponto em que é
motivado e posto em funcionamento por uma noção de história como força modeladora
(na narrativa e no destino humano).>> (p. 151). [...]. a metaficção não segue esse
modelo de historiografia que tomava a história como “força modeladora”, tanto na
“narrativa” quanto no “destino humano”. Ainda como traço caracterizador da
metaficção historiográfica, reiteremos, Hutcheon afirma que ela refuta a tese de Lukács
segundo a qual “o romance histórico poderia encenar o processo histórico por meio da
apresentação de um microcosmo que generaliza e concentra”, de modo que o
protagonista “deveria ser um tipo, uma síntese do geral e o particular” (p. 151).
Decididamente, segundo Hutcheon, tal não acontece na metaficção historiográfica. Aqui
os protagonistas “podem ser tudo, menos tipos propriamente ditos: são os ex-cêntricos,
os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional” (p. 151).” (BASTOS,
2007, p. 80-81).

Romance histórico: por que é “romance” e por que é “histórico’’

“Sabendo-se embora da receptividade do romance a todas as misturas possíveis com


outras práticas discursivas, literárias ou não – como a filosofia, a religião, o ensaísmo, o
jornalismo, o memorialismo etc. –, deve-se reconhecer que nenhuma dessas associações
colocou, até hoje, tantos problemas conceituais quanto os que a mistura do romance
com a história provoca, obrigando os estudiosos, volta e meia, a se debruçarem sobre o
tema aristotélico das relações possíveis entre o poeta e o historiador.” (BASTOS, 2007,
p. 83).

Peregrinação de Barnabé das Índias: “Em primeiro lugar, o fato de que a matéria
narrada no romance histórico deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos
que a constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou não, a
apresentar satisfatório grau de familiaridade para o leitor medianamente informado
sobre a história de uma determinada comunidade.” (BASTOS, 2007, p. 84).

“Em primeira instância, no nível da textualidade, o que assegura procedência histórica


ao elemento objeto da representação ficcional – personagem, acontecimento, instituição
– é sua marca registrada, isto é, o designitivo próprio com que deu entrada nos registros
documentais. Tal privilégio concedido à marca registrada se justifica pela circunstância
de ser ela, do ponto de vista semiótico, o componente do signo elemento-histórico que
transita do universo da realidade objetiva – o mundo real – para o universo da ficção
sem perda da substância-significante, isto é, a marca é trasladada com todos os seus
compenentes gráficos (e fônicos) – [...].” (BASTOS, 2007, p. 87).

“A presença identificadora da marca registrada suscita, é claro, a questão do repertório


de informações de que deve dispor o leitor. Este reconhece naturalmente como histórico
o elemento a que já foi apresentado, e o grau de familiaridade varia de uma marca
registrada para outra de acordo com a riqueza maior ou menor do seu repertório de
informações.” (BASTOS, 2007, p. 89).

“Deve-se ressaltar, porém, que a ausência de marcas registradas verídicas não


invibializa de todo o reconhecimento da historicidade do elemento objeto da
representação ficcional. Pode-se falar de supostas marcas registradas, isto é, de marcas
que, mesmo não correspondendo a qualquer registro documental, permitem, ainda
assim, um processo de identificação análogo e são capazes de provocar um efeito de
historicidade. Isso decorre, em primeiro lugar, do investimento ficcional que nívea em
termos estritamente diegéticos, as personagens de extração histórica e as outras, [...].”
(BASTOS, 2007, p. 92-93).

“[...], que impedimento haverá à criação de uma terceira personagem indígena


igualmente seduzida pelo náufrago? Para o leitor menos bem informado, essa terceira
amante do Caramuru não se distinguirá notavelmente das outras duas. Trata-se,
portanto, de recorrência á invenção verossímil de nomes de figuras e/ou de eventos
supostamente históricos. Pode-se mesmo dizer que não há romance histórico que não
recorra a esse expediente e que tais elementos adquirem historicidade por
“contaminação”, a medida em que contracenam com os elementos de real extração
histórica.” (BASTOS, 2007, p. 93).

“A ser verdadeira a má intenção que lhe atribuíram, há que se reconhecer que lhe foi
possível alcançar tal objetivo sem precisar desviar-se grandemente dos registros
históricos, apenas fazendo uso de analogias entre personagens e situações, de modo que
logrou realizar, simultaneamente, ficção histórica conforme à história oficial e sátira aos
seus desafetos políticos.” (BASTOS, 2007, p. 94).

“Mesmo em nossos dias, há quem só reconheça como histórico o romance que trata de
fatos não-contemporâneos do autor, dele distanciados no tempo, portanto. É o caso de
Seymor Menton (1993), que acolhe a definição dada por Anderson Imbert, contista
argentino segundo a qual romances históricos são os que “contam uma ação ocorrida em
época anterior à do romancista” (p. 33).” (BASTOS, 2007, p. 95).

“Naturalmente, o postulado da remoticidade do evento histórico objeto da


ficcionalização aplicava-se bem melhor à epopéia que ao romance histórico. Naquela, o
consórcio entre a falta de documentação comprobatória e a exigência estrutural da
presença do maravilhoso conferia ao relato a necessária fusão do mítico e do histórico.
No romance histórico, porém, a prevalência do histórico e a virtual inexistência do
maravilhoso poderiam fazer caducar o princípio da remoticidade. Tal não aconteceu,
porém, no romance histórico romântico, cujo narrador, como já acentuado, primava por
afirmar-se superior ao leitor no conhecimento da matéria de extração histórica, lançando
mão do distanciamento temporal como recurso infalível para a ratificação dessa
superioridade.” (BASTOS, 2007, p. 98).

“Uma alternativa à recusa liminar de que um romance seja histórico quando “os
acontecimentos narrados transcorrem durante a vida ao autor”, como propôs
equivocadamente Seymour Menton, amparado em Anderson Imbert, poderia ser a
aceitação provisória do mesmo romance como político, quando de sua publicação, à
espera de que o tempo passe e o transforme em romance histórico.” (BASTOS, 2007, p.
99).

Quando o narrador apresenta-se como contemporâneo dos fatos narrados: “A arrumação


dos dados da estória é de tal ordem que, a despeito de não se deparar mais o leitor com
notações temporais do tipo “antigamente”, “outrora” e assemelhadas; a despeito de
desaparecer ou ser atenuado o exotismo resultante da pretensão didática do narrador de
estar a introduzir-nos num mundo diferente do nosso, é-nos impossível esquecer a
remoticidade da matéria narrada, de modo que não cabe nenhuma expectativa sobre o
devir. É possível sintetizar este traço definidor do romance histórico como a prevalência
do “ali e outrora”, por oposição ao “aqui e agora” que julgamos ver no romance
político.” (BASTOS, 2007, p. 101).

“Nada impede que o narrador escolha livremente o tempo de onde narrará a estória de
sua eleição. Daí que Umberto Eco (1985), no seu Pós-escrito a O nome da Rosa, é
peremptório ao quebrar o distanciamento temporal do narrador em relação à matéria
narrada e fazê-lo contemporâneo dos fatos: [...].” (BASTOS, 2007, p. 102).
“A identificação muito próxima das duas entidades, autor e narrador, ainda observável
em alguns ficcionistas históricos de hoje, é resíduo da perspectiva temporal típica do
narrador do romance histórico romântico, que, como já observados, não hesitava em
marcar ostensivamente o seu tempo – no caso, o século XIX – como momento
privilegiado para o exercício de recomposição das épocas distantes. O domínio que tal
narrador ostentava da época objeto da reconstituição resultava num congelamento do
passado, visto como objeto sobre o qual tudo já era suficientemente conhecido. Esse
narrador do romance histórico romântico não cogitava a inevitabilidade de também ele,
tão fortemente datado quanto se apresentava ao leitor seu contemporâneo, tornar-se
remoto para os leitores da posteridade.” (BASTOS, 2007, p. 103).

“Por diferentes caminhos, o narrador da ficção histórica de nossos dias desobrigou-se de


buscar a cumplicidade do leitor supostamente seu contemporâneo – equívoco do
narrador do romance histórico romântico, prisioneiro de uma concepção fechada de
temporalidade que só concebia duas dimensões: o passado dos fatos narrados e o
presente partilhado pelo autor com seus primeiros leitores –, recuperando o direito de
situar-se no tempo de sua livre escolha. Isso decorre, evidentemente, de uma concepção
de temporalidade diversa da anterior, da consciência semiótica de que a instância de
enunciação narrativa no texto de ficção histórica não se confunde com a sua similar na
historiografia.” (BASTOS, 2007, p. 103-104).

“Claro está que, em última instância, a matéria narrada é ou não histórica para o leitor,
mas o problema está em que esse leitor nunca é o mesmo, em qualquer sentido do
termo, por mais que se tenha avançado no desenho do seu perfil hipotético.” (BASTOS,
2007, p. 105).

“[...] do sucinto levantamento aqui feito quanto aos componentes definidores da


historicidade do romance histórico, podemos postular um conceito ancorado nos
seguintes pontos: a) a matéria narrada deve ser predominantemente de extração
histórica, como tal entendida a que já foi objeto de registro documental, escrito ou não,
e pode ser recuperada discursivamente. [...]; b) não basta a um romance, para ser
histórico, que a matéria narrada aluda de modo apenas incidental a fatos e personagens
reconhecidamente de procedência histórica. É indispensável que a trajetória das
personagens relevantes da trama seja associada de modo inextrincável ao destino
político da comunidade de que façam parte, quer seja atribuída a essas personagens a
função de elemento determinador do processo histórico, quer apareçam elas como
elementos determinados por esse processo histórico; c) alternativamente à natureza
documentada da matéria de extração histórica, pode haver a instauração de um efeito de
historicidade mediante emprego de recursos ficcionais substitutivos, como a criação de
personagens, eventos e instituições análogos – do ponto de vista da verossimilhança
externa – a personagens, eventos e instituições de extração histórica documentada; [...].
d) no nível imediato da textualidade, é imprescindível a presença de marcas registradas,
isto é, nomes próprios (de pessoas, de instituições, de eventos), datas históricas,
topônimos etc. que sejam reconhecíveis pelo leitor medianamente informado sobre a
história de uma determinada comunidade. [...], funcionam como detonadores do
processo de reconstituição de um campo de referências indispensável à historicidade da
matéria narrada; e) a matéria narrada deve ser “remota”, a despeito da impossibilidade
de se determinar com precisão cronológica a remoticidade de um fato histórico, [...]. f) a
narrativa deve apresentar um tom conclusivo quanto aos eventos históricos focalizados,
com a presença, explícita ou não, de um epílogo, de modo a não restarem pendências
quanto ao destino das personagens e ao desdobramento das ações narradas para além do
tempo cronológico objeto da reconstituição histórica.” (BASTOS, 2007, p. 106-107).

Ver

Amado Alonso. Ensayo sobre la novela histórica – el modernismo en La gloria de Don


Ramiro. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras de La Universidade de Buenos
Aires, 1942.

Alcmeno Bastos. Ali e outrora, aqui e agora: romance histórico e romance político,
limites”. In: LOBO, Luiza (org.). Fronteiras da literatura: discursos transculturais. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 1999, pp. 151-157.

Roger Callois. Sociología de la novela. Buenos Aires: Ediciones Sur, 1942.

Otto Maria Carpeaux. Romantismo e evasão. In: História da literatura ocidental. Rio de
Janeiro: O Cruzeiro, 1966, v. 4, pp. 1725-1766.

Carlo Ginzburg. Entrevista a Jean Marcel Carvalho França. Folha de São Paulo. 1º dez.
2002. Mais!, p. 6.

Seymour Menton. La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992. México:


Fondo de Cultura Económica, 1993.

José A. Pereira Ribeiro. O romance histórico na literatura brasileira. São Paulo:


Secretária da Cultura, Ciência e Tecnologia / Conselho Estadual de Cultura, 1976.

Selma Calazans Rodrigues. A narrativa e sua problemática: diálogo sobre a origem do


romance – Georg Lukács e Mikail Bakhtin. In: VASSALO, Lígia (org.). A narrativa
ontem e hoje. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, pp. 23-36.

Michel Vanoosthuyse. Le Roman historique: Mann, Brecht, Döblin. Paris : Presses


Universitaires, 1996.

FIM

Vous aimerez peut-être aussi