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Introdução
“A consideração feita por Aristóteles na sua Poética de que tanto o poeta quanto o
historiador eram narradores, diferenciando-se um do outro na natureza do fato contado –
o primeiro contava os que poderiam ter acontecido, sendo, portanto, verossímeis –, foi o
ponto de partida para um tipo de comparação que se faz até hoje entre o poeta e o
historiador. Este trabalho não poderia passar ao largo da questão. [...], faz-se nele um
acompanhamento das diversas posições assumidas o longo do tempo por autores,
críticos e teóricos.” (BASTOS, 2007, p. 9).
“[...], a grande distância temporal entre Homero e a Guerra de Tróia, acontecida três ou
quatro séculos antes, favoreceu amplamente a elaboração mítica, pois não havia
registros escritos que pudessem contrapor-se à versão do poeta, [...]. Naturalmente, não
terá ocorrido a Homero distinguir, na matéria por ele narrada na Ilíada, o que era de
procedência histórica do que era de procedência mítica. Ambas as matérias são tratadas
pelo poeta-narrador com aceitação plena de sua veracidade. Essa receptividade por igual
ao que hoje denominamos de real e de maravilhoso, para designarmos respectivamente
a dimensão histórica e a dimensão mítica da matéria narrada na epopéia homérica, é
certamente responsável pela identificação, por parte de Auerbach, de um realismo
essencial em Homero, [...].”. (Nota: Apear de persistirem dúvidas quanto à historicidade
do evento, a maioria dos estudiosos inclina-se hoje a aceitar que de fato tenha ocorrido o
conflito entre aqueus e troianos, por volta do século XII a.C. E a descobertas das ruínas
de Tróia, no século XIX, por Heinrich Schliemann, ainda que também neste caso
persistam dúvidas, pois na verdade foram encontradas não uma, mas diversas Tróia,
reforça consideravelmente a veracidade de um fundo histórico sobre o qual Homero
teria espalhado suas marcantes personagens)” (BASTOS, 2007, p. 15-16).
“Afirma Veyne ser impossível determinar o momento certo e que o mito teria sido
superado por algo mais forte: razão, por exemplo. Aponta, porém, determinados
momentos desse percurso em que se tentou separar “o joio do trigo”, isto é, “extrair da
lenda de Teseu [por exemplo] o núcleo de autenticidade” (P.26), como o fez Pausânias
(autor da Descrição da Hélade, provavelmente escrita na segunda metade do século II
d.C.). [...]. De qualquer modo, os gregos antigos, incluindo Homero, nunca tiveram
consciência tão clara dos limites entre mito e história, quanto a que temos hoje. Daí a
completa espontaneidade com que os poetas da Antiguidade lidaram com as duas
matérias, sem se colocarem o problema de uma parecer mais verdadeira que a outra.”
(BASTOS, 2007, p. 17).
“Esta distinção entre o poeta e o historiador tem sido retomada ao longo do tempo por
inúmeros escritores e/ou teóricos da literatura, às vezes com quase as mesmas palavras.
Os irmãos Edmond e Jules Goncourt (1972), por exemplo, enfatizando a função
documental, realista do romance, que neste caso seria equivalente à da história,
afirmavam no seu journal de 24 de outobro de 1869: <<O romance depois de Balzac
não tem mais nada em comum com aquilo que nossos pais entendiam como tal. O
romance atual se faz com documentos narrados, ou extraídos da natureza, como a
história se faz com documentos do passado; os romancistas, narradores do presente>>.
Concluindo: “A história é um romance que foi, o romance é a história que poderia ter
sido”.” (BASTOS, 2007, p. 19).
“[...], as preocupações de Fielding eram de outra ordem, mas não deixavam de ressaltar
também a superioridade do Romance sobre o historiador, pois lhe parecia que <<o
romancista pode até cometer erros quanto aos detalhes factuais, mas pinta as pessoas
como verdadeiramente são, ao passo que aqueles [os historiadores], obrigados a aderir
aos fatos, acabam discordando em matéria de interpretação, o que torna suas obras
ficção>> (p.93). A estranheza com a atribuição, por Fielding, de um caráter ficcional à
obra dos historiadores é explicada, a seguir, como recurso para “emprestar mais
dignidade ao gênero” e apartá-lo de uma vez por todas do mal reputado romance.”
(BASTOS, 2007, p. 22).
“Uma afirmação oblíqua da diferença entre o poeta e o historiador fora, antes mesmo de
Balzac, proposta por Alfred de Vigny (1930), em “Réflexions sur la vérité dans l’art”,
prefácio ao seu Cinq-mars, primeiro romance histórico francês, publicado em 1827. Em
caixa alta mesmo, Vigny afirma: “L’histoire est um Roman dont le peuple est l’auteur”,
[...]. A aproximação entre história e romance vê-se consagrada nessa fórmula enfática
que traz para a cena a dicotomia autoria individual (romance) / autoria coletiva, povo
(história), mas serve muito mais para que Vigny estabeleça a diferença que lhe interessa,
qual seja entre “a Verdade da Arte e o Verdadeiro do Fato”. [...]. Isto é, Vigny se
interessa pelos fatos históricos apenas pelo que eles contêm de exemplaridade, pelo que
neles escapa de sua precária realidade e se irradia para a existência generalizada dos
homens. Nesse componente abstrato reside a verdade da arte, e somente a ela deve
aspirar o romancista. Esse afastamento da função documental é de tal ordem que Vigny
considera irrelevantes até mesmo os nomes próprios das personagens, isto é, suas
marcas registradas: <<Ela não se corromperá, porque a verdade da qual deve se nutrir é
a verdade da observação sobre a natureza humana, e não a autenticidade do fato. O s
nomes das personagens não fazem nada à coisa. A idéia é tudo. O nome próprio nada
mais é que o exemplo e a prova da idéia>> (p. XIII). Contudo, há nas palavras de Vigny
ainda uma aceitação de que na história reside o verdadeiro. Consequentemente, se esse
lugar já está ocupado, a arte deve deslocar-se para outra esfera. A desqualificação da
matéria verídica, inclusive os nomes próprios, em favor da ideia, se reserva para a arte
um espaço próprio, dispensando-a da competição com a história, também a desabilita
como instrumento para dizer a trajetória objetiva dos homens. O jogo de palavras entre
verdade da arte e verdadeiro dos fatos é, com mudança sinuosa de terminologia, a antiga
distinção aristotélica entre contar o que aconteceu, tarefa do historiador, e o que poderia
ter acontecido, tarefa do poeta. Em outro momento, aliás, curiosamente o texto de Vigny
ecoa a restrição platônica à mimese artística.” (BASTOS, 2007, p. 24-25).
“Em reforço à afirmação de que a Poética de Aristóteles “funda uma tipologia que,
grosso modo, tem-se mantido até nossos dias na tradição ocidental”, Michel
Vanoosthuyse (1996, pp. 2-3) cita, entre vários teóricos, nada menos que Cervantes.
Trata-se de uma passagem do capítulo III da segunda parte do Dom Quixote, quando o
protagonista Sancho e o bacharel Sansão Carrasco envolvem-se numa discussão sobre a
fidedignidade da versão apócrifa das aventuras do Quixote, que circulava, com notável
êxito de vendagem, aliás, paralelamente à primeira parte. Ao comentário do bacharel
quanto à opinião de muitos leitores que prefeririam que tivessem sido omitidas as
“infinitas pauladas que em diferentes recontos deram no senhor Dom Quixote”, Sancho
retruca, em tom de cobrança: “E a verdade da história?”. O próprio Quixote então
pondera que “as ações que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não
há motivo para se inscreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista.”
(BASTOS, 2007, p. 26).
“Essa dicotomia implicita certo julgamento de valor quanto à essência dos fatos: uns
deveriam ter acontecido outros não. O Quixote é tolerante com a omissão de alguns
fatos verdadeiros de sua estória que “redundem em menosprezo do protagonista” – no
caso, ele mesmo –, desde, é claro, que “não mude nem altere o fundo verdadeiro da
história”. Defende, assim, uma poética da veracidade essencial, enquanto Sancho
representa a vertente defensora da rigorosa fidelidade aos fatos “como foram”,
independentemente de tratar-se o narrador de um poeta ou de um historiador.”
(BASTOS, 2007, p. 27).
“O problema não estaria, portanto, na natureza alheia da matéria narrada, mas sim na
“peculiar atitude do criador literário ante a matéria histórica” (p. 10). Os romancistas
históricos, diz Amado Alonso, relegaram a segundo plano a criação poética e se
esmeraram na “elaboração e apresentação artística de um material intelectualmente
conhecido” (p. 11). Dito de outro modo, empenharam-se pouco em ser romancistas, e
muito em ser historiadores.” (BASTOS, 2007, p. 28).
“Para E. M. Forster, “a função do romancista é revelar essa vida oculta na sua fonte:
contar-nos mais sobre a Rainha Vitória do que se poderia saber e, desse modo, compor
uma personagem que não é a Rainha Vitória da história” (p. 35).” (BASTOS, 2007, p.
30).
“[...] a ênfase posta pela história nas “causas externas” faz com que ele seja “dominada
pela noção de fatalidade; ao passo que no romance ao há fatalidade” (pp. 35-36). Forster
concede que todas essas considerações correspondem àquilo que “qualquer colegial
britânico sabe: o historiador registra, enquanto o romancista deve criar”. Trata-se, como
é fácil de perceber, da reafirmação da dicotomia aristotélica, apoiada agora na oposição
entre registrar e criar. Forster serve-se dela não para expor especialmente as diferenças
entre o poeta e o historiador, mas para provar que há diferenças entre o poeta e o
historiador, mas para provar que há diferenças entre as “pessoas na vida cotidiana e as
pessoas nos livros” (p. 36), dado que no romance, justamente por ser possível penetrar
na interioridade das pessoas, temos delas um conhecimento completo, irrestrito. Esse
conhecimento pleno da personagem, além de ser marca da superioridade do romancista
sobre o historiador, é também condição para sua realidade, [...].” (BASTOS, 2007, p.
31).
“Por vezes, a diferença entre o poeta e o historiador não é vista como inteiramente
favorável ao poeta. Há romancistas e teóricos que admitem a liberdade de invenção para
o ficcionista, condicionada, porém, à observância de um limite instransponível: o
respeito à “verdade histórica”. O poeta pode / deve suprir as lacunas da história mas
nunca se afastar dela a ponto de tornar irreconhecíveis os fatos registrados e tidos
consensualmente como verdadeiros. A função do romancista histórico é, assim,
complementar à do historiador, não somente em termos cronológicos, mas também na
tarefa de construir uma imagem verdadeira do passado.” (BASTOS, 2007, p. 31-32).
“No que diz respeito à eficácia informativa do romance histórico, A. Pereira Ribeiro (O
romance histórico brasileiro, 1976) é condescendente: admite o direito de o ficcionista
poder suprir “as falhas documentais, com o produto de sua fantasia”, também aqui,
porém, sob a condição de qual tal se dê apenas “na falta de documentação idônea”,
porque o “romancista histórico, na verdade, enfeita o passado, sem contudo negá-lo,
pois a verdade histórica deve ser sempre a sua bússola e a sua diretriz” (p. 21). [...].
Apesar de mais consistente que a de Ribeiro e a despeito de mostrar-se atenta à
reciprocidade das duas formas discursivas, a argumentação de Cunha converge para
uma tácita subordinação do poeta ao historiador, mais grave ainda por acontecer no
espaço da mesma prática discursiva.” (BASTOS, 2007, p. 33-34).
“Nenhuma reflexão sobre as relações entre o poeta e o historiador foi tão melancólica
quanto a de Alessandro Manzoni. O autor de Os noivos, tido como o maior romance
histórico de todos os tempos, começa por anotar que algumas pessoas lamentam que,
<<neste ou naquele romance histórico, nesta ou naquela parte de um romance histórico,
o vero positivo não seja bem distinguido da parte inventada, de que resulta faltar a esse
romance histórico um dos efeitos principais dum tal componente, qual seja o de nos dar
uma representação verdadeira da história>>. Os que assim procedem, diz Manzoni,
pertenceriam ao grupo dos que privilegiam, mesmo no romance histórico, o componente
documental, em desfavor da invenção ficcional. Para maior clareza da argumentação,
Manzoni dá voz ao suposto defensor do vero positivo, que compara a história
propriamente dita a um “mapa geográfico”, no qual estão assinalados os acidentes
geográficos e a estrada principal de uma vasta região, enquanto o romance histórico que
não distingue com nitidez o vero positivo do ficcional inventado se assemelharia a um
“mapa topográfico”, no qual tudo é particularizado. No caso do “mapa topográfico”, o
retrato é mais rico, porque se trata da “representação mais geral do estado da
humanidade num tempo, num lugar naturalmente mais circunscrito do que aquele ao
qual se aplica ordinariamente o trabalho da história”, e, assim, proporciona mais
prazer.” (BASTOS, 2007, p. 35-36).
“Assim sendo, como acusar o romancista histórico de fazer ou não fazer uma coisa que
já está indicada na gênese do próprio romance histórico, isto é, seu hibridismo
inevitável? Tendo razão num ponto e não em outro, ambos os inquiridores do
romancista histórico estariam certos e errados ao mesmo tempo. Logo, o próprio
romance histórico seria uma impossibilidade: não se realizaria como histórico, isto é,
não cumpriria a promessa, implícita no designativo, de reconstituir uma determinada
época, prestando tributo ao vero positivo, dado que a parte inventada macula esse vero
positivo; nem se realizaria como romance, pois a presença indisfarçada de elementos
provenientes da realidade no seio de uma construção que, sendo artística, deveria
pautar-se pela submissão ao verossímil, impede sua fruição poética. Segundo Amado
Alonso, essa conclusão pessimista é devida à concepção “herética’ que Manzoni tem do
verossímil aristotélico: <<A heresia está na interpretação que Manzoni dá ao
‘verossímil’ como ‘o historicamente possível’, com o qual, em lugar de pôr no
acontecido e no verossímil dois critérios heterogêneos, duas medidas, como o metro e o
litro, são dois valores diferentes de uma mesma medida, como o metro físico e o metro
industrial>>.” (BASTOS, 2007, p. 38-39).
“Realmente, a triste conclusão a que chega Manzoni resulta dessa hipertrofia do vero
positivo. Contudo, ninguém colocou com tanta propriedade o hibridismo incontornável
do romance histórico. Ao chamar o leitor para o centro das especulações, quando
adverte para a inutilidade de qualquer tentativa de tornar indistintos os componentes
históricos os componentes poéticos, isto é, ficcionalmente inventados, porque o leitor já
o faz independentemente dos esforços do autor do romance histórico, Mazoni tocou na
questão crucial da procedência da matéria narrada. Uma parte considerável dessa
matéria é de extração histórica, supondo-se, portanto, alguma familiaridade do leitor em
relação a ela, e por mais hábil que seja a mistura do vero positivo com o ficcionalmente
inventado, o conhecimento anterior impõe, em princípio, a dualidade de
“assentimento”.” (BASTOS, 2007, p. 40).
“[...] no âmbito da própria historiografia não se tem mais a reverência integral às fontes
documentais como o lugar onde foi depositada a verdade histórica, mas é impossível
varrer de seu horizonte de expectativas a memória consolidada contra a qual se projeto a
criação literária. A ficção contemporânea tem justamente explorado essa fenda entre o
que hipoteticamente seria a verdade histórica incontrastável e o delírio fantasista do
autor de ficção histórica, [...].” (BASTOS, 2007, p. 40).
“No âmbito da história, por exemplo, destaquemos dois pontos. O primeiro diz respeito
à relativização do conceito de verdade histórica, nascida, sobretudo, da consciência cada
vez maior de ser a escrita histórica uma construção cultural, contaminada, dependente
do peso a ser atribuído às fontes, e quase sempre interessada numa versão, em
detrimento de outras. O segundo ponto tem a ver com o alargamento do conceito de fato
histórico, que agora não é mais apenas o fato político-econômico, mas também o social,
o cultural e até o mental. Esses dois pontos mudaram o rosto da disciplina de modo
radical. As próprias fontes, que tradicionalmente eram entendidas apenas como os
documentos escritos, tiveram ser alcance semântico notavelmente ampliado, primeiro
com o reconhecimento da chamada “história oral”, depois com a incorporação de
processos de registro audiovisuais e, mais recentemente, com a internet.” (BASTOS,
2007, p. 41).
Linda Hutcheon: “A história “não existe senão como texto”, e o acesso ao passado está
condicionado pela textualidade” (p. 34). A expressão literária por excelência dessa
escrita pós-moderna, a “metaficção historiográfica”, recusa “a visão de que apenas a
história tem uma pretensão à verdade’ (p. 127) e ela mesma “se aproveita das verdades e
das mentiras do registro histórico” (p. 152).” (BASTOS, 2007, p. 44).
Da historicidade dos rastros: “Ademais, a afirmação de que a história não existe senão
como texto deve ser relativizada, pois se de fato é impossível recuperar integralmente
um evento, a própria reconstituição discursiva parte da premissa de que tal evento
ocorreu de fato, mesmo que também seja irrecuperável sua integridade identificadora.
Se como fato histórico entendermos algo além de sua ocorrência e de seu completo
deperecimento, algo que se deposita numa espécie de superfície temporal e jamais se
extingue de todo, permanecendo tanto nos resíduos materiais – objetos, ruínas – quanto
nos imateriais – o mais poderoso dos quais a memória transmitida –, então a história
existe sim.” (BASTOS, 2007, p. 44).
“[...], a mais produtiva das considerações feitas por Hutcheon parece ser mesmo a do
estatuto comum de discurso, atribuído tanto à história quanto à metaficção
historiográfica e, extensivamente, à ficção histórica e, extensivamente, à ficção
histórica, em qualquer de suas modalidades. É ela que flexibiliza a ideia de que o
registro histórico seja o lugar único da verdade, pois coloca em evidência a
impossibilidade do discurso verbal cientificamente objetivo, neutro e incontestável. Não
que o discurso historiográfico deve integrar-se à irresponsável acolhida de toda e
qualquer versão, mas pela consciência necessária de que o acesso ao passado só pode
dar-se discursivamente. Eticamente, o historiador está muito mais comprometido com a
busca da verdade que com a própria verdade.” (BASTOS, 2007, p. 45).
“Para Hayden White, longe de representar uma diminuição da história, sua “degradação
ao status de ideologia ou propaganda”, a radicação num fundo comum à “sensibilidade
literária” traria o benefício de permitir a identificação do “elemento ideológico, porque
fictício, contido em nosso próprio discurso [do historiador]” (p. 116).” (BASTOS, 2007,
p. 46).
“Mas para fins de reflexão teórica, a distinção básica – fundada, como se viu, na
oposição verdadeiro x verossímil – permaneceu válida, mesmo após o surgimento de
outras modalidades narrativas em prosa” (BASTOS, 2007, p. 48).
“Contudo, nem todos os teóricos aceitam esse parentesco em linha direta entre o
romance e epopéia. Roger Callois (1942), por exemplo, afirma haver poucas
probabilidades de que o romance do século XIX seja herdeiro do romance “clássico”,
parecendo mais provável que descenda do folhetim, ou que o tenha acompanhado
quando do seu nascimento como produto da imprensa cotidiana. [...]. Recusa, portanto,
que os elementos observáveis na epopéia aos quais chama de “lado romanesco
incontestável” (grifo nosso) possam ser, embrionariamente, matrizes do futuro
romance.” (BASTOS, 2007, p. 57).
“[...], apesar dos divergentes enfoques quanto à origem do romance, Lukács e Bakhtin
estão de acordo: o romance é um gênero não-acabado. Na sua Teoria do romance,
Lukács afirma: “Assim, enquanto que a característica essencial dos outros gêneros
literários é repousar numa forma acabada, o romance aparece como alguma coisa que
devém como um processo” (p. 80).” (BASTOS, 2007, p. 61).
“No que Bakhtin chama de “pré-história da palavra romanesca”, dois fatores teriam sido
o mais importantes: “um deles – o riso –, o outro – o plurilinguismo” (p. 372). E dentre
as modalidades literárias ancoradas no riso, Bakhtin ressalta uma tradição
“carnavalesca’, a que pertenceriam as formas cômico-sérias, lembrando que mesmo no
mundo antigo as formas “elevadas” tinham os seus duplos paródicos.” (BASTOS, 2007,
p. 61).
“[...], teria decorrido a vitória final do romance, uma modalidade aberta, justamente
receptiva a muitas outras, ao contrário da epopéia, fechada em suas exigências. [...]. A
relevância da matéria de extração histórica para o romance foi atestada e, de certo
modo, hipertrofiada, com o surgimento de uma modalidade especifica de romance, no
início do século XIX, com Walter Scott (1771-1832) e seguidores, o romance histórico,
combinação de duas fortes tendências do Romantismo: a revalorização evasionista do
passado e o nacionalismo exaltatório dos valores, das figuras e das tradições locais.”
(BASTOS, 2007, p. 62).
“[...], muito cedo se colocou o conflito entre o histórico e o inventado ou, em termos
“horacianos”, entre a utilidade da história, que impedia o deleite da ficção, e o deleite da
ficção, que impedia a utilidade da história. Na verdade, Alonso atribui tal conflito a uma
propensão “arqueológica” do romance histórico. Para que melhor se entenda em que
consistiria tal propensão “arqueológica”, Alonso estabelece diferença entre histórico e
arqueológico. [...] a correção documental não é mais que um dado da arqueologia,
menos importante para a reconstituição artística da história.” (BASTOS, 2007, p. 67).
“Manzoni, dando razão aos que lamentavam no romance histórico a indistinção entre o
verdadeiro e o inventado, mas lamentando também os autores que explicitavam essa
distinção e assim destruíam a unidade da obra, entendeu, por fim, que o romance
histórico era uma impossibilidade, já que não podia ser história – trazia consigo,
congenitamente, o inevitável fracasso –, e não podia também ser poesia (entenda-se:
romance ficção).” (BASTOS, 2007, p. 68).
“[...], para muitos estudiosos o romance histórico teria herdado da epopéia uma das duas
dimensões constitutivas da matéria épica – a história – e substituído a outra – o mito (e
seu corolário, o maravilhoso) – pelo ficcional.” (BASTOS, 2007, p. 68).
“[...], à tese de Hegel é a de que o romance é a “epopéia burguesa, já perfilhada por
Lukács, como vimos. [...]. No verbete sobre a “épica”, no seu Dicionário de termos
literários, afirma Massaud Moisés: “Nem todo poema épico pode ser classificado de
epopéia, mas esta é sempre um poema épico”. Parece claro, portanto, que a epopéia
seria uma modalidade de poema épico. A diferença consistiria no seguinte: “Quando um
poema épico alcança representar a totalidade de seu povo no instante supremo de sua
história, torna-se epopéia”. No entanto, logo a seguir é dito que o poema épico, sem ser
especificado que tipo de poema épico, “seria aquele que se frustou no empenho de
realizar-se como epopéia”, como nos casos de “Prosopopéia, O Uraguai, Caramuru,
Ulisséia etc.”. Parece-nos que há evidente contradição: ou a epopéia é uma modalidade
do poema épico e se distingue das demais pelas características acima mencionadas –
“representar a totalidade de seu povo etc.” –, sem nunca perder sua condição primeira
de poema épico, ou o poema épico, ao lograr ser a representação da “totalidade do seu
povo etc.”, eleva-se à condição superior de epopéia, que deve ser vista, então, como o
gênero do qual o poema épico não-epopéia seria apenas uma modalidade.” (BASTOS,
2007, p. 69).
“A Idade Média, por exemplo, foi recuperada apenas em seus aspectos de positividade –
grandeza, bravura, lealdade, fé extremada, amor cortês –, e o protagonista, cumulado de
virtudes que, se não o elevavam à condição de sobrenaturalidade do herói da epopéia,
pelo menos o faziam muito superior à média dos homens com quem se relacionava.
Assim, a idealização superlativa processada no romance histórico europeu terá servido
como uma espécie de aval ao projeto de criação de um passado mítico nacional nos
nossos românticos, especialmente Gonçalves Dias e José de Alencar, os nomes tutelares
do movimento.” (BASTOS, 2007, p. 70).
“Por outro lado, o realismo, com seu apelo programático à contemporaneidade, sepultou
o romance histórico à moda romântica. Em seu lugar, produziu o romance arqueológico,
de que Salambô (1862), de Flaubert, foi o exemplo mais expressivo. No dizer de Lukács
(p. 223), fiel à sua aversão ao descritivismo, já que, no seu entender, a descrição
caracterizaria uma postura discursiva passiva, de mero observador, contrariamente à
narração, que corresponderia à postura discursiva ativa, de quem participa, Salambô foi
também o exemplo perfeito do declínio do romance histórico: nele estariam
concentrados os traços essenciais do romance arqueológico: desumanização da história,
reduzida a simples cenário de eventos privados, íntimos e subjetivos. Sem a dicção
triunfalista e nostálgica de Scott e seguidores, esse romance arqueológico, para
aceitarmos a designação de corte pejorativo proposta por Lukács, era uma ficção que
apenas reconstruía o passado histórico com requintes de erudição descritiva e crueza na
representação dos costumes “primitivos” dos antigos, além de ausentar-se por completo
de qualquer propósito nacionalista. Deve ser notado, aliás, que o caráter arqueológico de
Salambô foi intencional e, portanto, desprovido de negatividade, por parte do próprio
Flaubert (1993), como pode ser constatado em algumas de suas cartas. Segundo elas, a
redação do que Flaubert chamou inicialmente de “conto egípcio”, começada cerca de
dez anos antes da publicação do livro, foi trabalhosa. Exigiu do autor uma viagem de
pesquisa à África, onde esteve por quase dois meses, em 1858. Exigiu-lhe também a
tomada de incontáveis notas e a leitura de volumosas obras que lhe serviriam de fonte,
como uma “memória de 400 páginas sobre o cipreste piramidal”, isso “porque há
ciprestes no pátio de templo de Astarté”. A essas coisas o próprio Flaubert chamava de
“formidável trabalho arqueológico”. (BASTOS, 2007, p. 73-74).
“Em carta ao crítico Saint-Beuve, sustenta não apenas a veracidade das descrições, mas,
sobretudo, sua funcionalidade: “Não há em meu livro [Salambô] nenhuma descrição
isolada, gratuita; todas servem a meus personagens e têm uma influência longínqua ou
imediata sobre a ação”. E a despeito do “formidável trabalho arqueológico” a que se
entregara, garante: <<Eu zombo da arqueologia! Se a cor não existe, se os detalhes
destoam, se os costumes não derivam da religião e os fatos das paixões, se os caracteres
não são seguidos, se os costumes não são apropriados aos usos e a arquitetura ao clima,
se não há, numa palavra, harmonia, eu estou em erro. Senão, não. Tudo se mantém>>.”
(BASTOS, 2007, p. 74-75).
“Na segunda metade do século XX, [...], pode-se falar de um novo romance histórico
(Marguerite Yourcenar, Umberto Eco, José Saramago etc.) que é, curiosamente, até
certo ponto, também arqueológico, no sentido do rigor documental e da ostensiva
erudição demonstrada em campos do conhecimento tão díspares entre si como o sejam a
semiologia, a retórica, a teologia, a arquitetura etc. Essa ficção histórica nossa
contemporânea discrepa do modelo romântico em muitos aspectos, como a ausência de
triunfalismo, a diversificada perspectiva temporal do narrador, a explicitação de sua
natureza ficcional e consequente caráter auto-reflexivo, intertextual, além da frequente
recorrência à paródia.” (BASTOS, 2007, p. 75-76).
“[...], a caracterização proposta por Seymour Menton (1993) pode, sem abuso de nossa
parte, ser entendida à parcela que lhe parece mais significativa da ficção histórica
produzida nas últimas décadas do século XX e neste início de século XXI, da qual
seriam os traços mais expressivos: 1) “a subordinação, em distintos graus, da
reprodução mimética de certo período histórico à apresentação de algumas ideias
filosóficas, difundidas nos contos de Borges e aplicáveis a todos os períodos do
passado, do presente e do futuro” (p. 42), como o sejam “a impossibilidade de conhecer
a verdade histórica ou a realidade; o caráter cíclico da história e, paradoxalmente, o seu
caráter imprevisível, ou seja, que os acontecimentos mais inesperados e mais
assombrosos possam ocorrer” (p. 42); 2) “a distorção consciente da história, mediante
omissões, exagerações e anacronismos” (p. 430; 3) “a ficcionalização de personagens
históricas, diferentemente da fórmula de Walter Scott – [...]; 4) “a metaficção ou os
comentários do narrador sobre o processo de criação” (p. 43); 5) “a intertextualidade”
(p. 43), com “alusões frequentes a outras obras, miudamente explícitas, em tom de
zombaria” (p. 44); e 60 “Os conceitos bakhtinianos do dialógico, do carnavalesco, da
paródia e da heteroglossia” (p. 44).” (BASTOS, 2007, p. 77).
“As formas da ficção histórica do século XIX persistem até hoje: <<Eu definiria a
ficção histórica como aquela que segue o modelo da historiografia até o ponto em que é
motivado e posto em funcionamento por uma noção de história como força modeladora
(na narrativa e no destino humano).>> (p. 151). [...]. a metaficção não segue esse
modelo de historiografia que tomava a história como “força modeladora”, tanto na
“narrativa” quanto no “destino humano”. Ainda como traço caracterizador da
metaficção historiográfica, reiteremos, Hutcheon afirma que ela refuta a tese de Lukács
segundo a qual “o romance histórico poderia encenar o processo histórico por meio da
apresentação de um microcosmo que generaliza e concentra”, de modo que o
protagonista “deveria ser um tipo, uma síntese do geral e o particular” (p. 151).
Decididamente, segundo Hutcheon, tal não acontece na metaficção historiográfica. Aqui
os protagonistas “podem ser tudo, menos tipos propriamente ditos: são os ex-cêntricos,
os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional” (p. 151).” (BASTOS,
2007, p. 80-81).
Peregrinação de Barnabé das Índias: “Em primeiro lugar, o fato de que a matéria
narrada no romance histórico deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos
que a constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou não, a
apresentar satisfatório grau de familiaridade para o leitor medianamente informado
sobre a história de uma determinada comunidade.” (BASTOS, 2007, p. 84).
“A ser verdadeira a má intenção que lhe atribuíram, há que se reconhecer que lhe foi
possível alcançar tal objetivo sem precisar desviar-se grandemente dos registros
históricos, apenas fazendo uso de analogias entre personagens e situações, de modo que
logrou realizar, simultaneamente, ficção histórica conforme à história oficial e sátira aos
seus desafetos políticos.” (BASTOS, 2007, p. 94).
“Mesmo em nossos dias, há quem só reconheça como histórico o romance que trata de
fatos não-contemporâneos do autor, dele distanciados no tempo, portanto. É o caso de
Seymor Menton (1993), que acolhe a definição dada por Anderson Imbert, contista
argentino segundo a qual romances históricos são os que “contam uma ação ocorrida em
época anterior à do romancista” (p. 33).” (BASTOS, 2007, p. 95).
“Uma alternativa à recusa liminar de que um romance seja histórico quando “os
acontecimentos narrados transcorrem durante a vida ao autor”, como propôs
equivocadamente Seymour Menton, amparado em Anderson Imbert, poderia ser a
aceitação provisória do mesmo romance como político, quando de sua publicação, à
espera de que o tempo passe e o transforme em romance histórico.” (BASTOS, 2007, p.
99).
“Nada impede que o narrador escolha livremente o tempo de onde narrará a estória de
sua eleição. Daí que Umberto Eco (1985), no seu Pós-escrito a O nome da Rosa, é
peremptório ao quebrar o distanciamento temporal do narrador em relação à matéria
narrada e fazê-lo contemporâneo dos fatos: [...].” (BASTOS, 2007, p. 102).
“A identificação muito próxima das duas entidades, autor e narrador, ainda observável
em alguns ficcionistas históricos de hoje, é resíduo da perspectiva temporal típica do
narrador do romance histórico romântico, que, como já observados, não hesitava em
marcar ostensivamente o seu tempo – no caso, o século XIX – como momento
privilegiado para o exercício de recomposição das épocas distantes. O domínio que tal
narrador ostentava da época objeto da reconstituição resultava num congelamento do
passado, visto como objeto sobre o qual tudo já era suficientemente conhecido. Esse
narrador do romance histórico romântico não cogitava a inevitabilidade de também ele,
tão fortemente datado quanto se apresentava ao leitor seu contemporâneo, tornar-se
remoto para os leitores da posteridade.” (BASTOS, 2007, p. 103).
“Claro está que, em última instância, a matéria narrada é ou não histórica para o leitor,
mas o problema está em que esse leitor nunca é o mesmo, em qualquer sentido do
termo, por mais que se tenha avançado no desenho do seu perfil hipotético.” (BASTOS,
2007, p. 105).
Ver
Alcmeno Bastos. Ali e outrora, aqui e agora: romance histórico e romance político,
limites”. In: LOBO, Luiza (org.). Fronteiras da literatura: discursos transculturais. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 1999, pp. 151-157.
Otto Maria Carpeaux. Romantismo e evasão. In: História da literatura ocidental. Rio de
Janeiro: O Cruzeiro, 1966, v. 4, pp. 1725-1766.
Carlo Ginzburg. Entrevista a Jean Marcel Carvalho França. Folha de São Paulo. 1º dez.
2002. Mais!, p. 6.
FIM