Vous êtes sur la page 1sur 4

Estudos de Psicologia, 16(3), setembro-dezembro/2011, 285-288

EDITORIAL DOSSIÊ:

Reforma psiquiátrica: integrando experiências brasileiras e


espanholas no coidado integral e territorializado em saúde mental
Magda Dimenstein
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E
ste dossiê reúne atores do campo da saúde mental A Espanha foi eleita como lócus de realização do estágio
espalhados em diversos países, contemplando pós-doutoral porque apesar de ter iniciado a reforma psiquiátrica
trabalhadores, usuários, docentes e pesquisadores, os tardiamente em comparação a outros países europeus, desde o
quais se disponibilizaram a contribuir com esta publicação, processo de redemocratização do país a partir de meados de
seja apresentando suas experiências ligadas ao cotidiano dos 1970, vem apresentando-se como uma referência no cenário
serviços de atenção psicossocial, seja na forma de avaliadores internacional por ter conseguido formular uma política pública
convidados, agregando novas perspectivas à discussão dos rumos inovadora, social e tecnicamente avançada (Desviat, 1999)1. Isso
do processo de Reforma Psiquiátrica. Gostaria de agradecer à significa um atrelamento a um processo mais amplo de reforma
imensa generosidade de todos pela colaboração. sanitária e de garantia de direitos e cidadania muito similar ao
Por ocasião do Estágio Pós-Doutoral realizado na Espanha que vem ocorrendo no Brasil.
entre agosto de 2009 e julho de 2010 foi possível conhecer De sua história, de seus acertos e erros, construíram os
algumas experiências e práticas no campo da atenção e pilares de uma rede de saúde mental de base comunitária e
reabilitação psicossocial que trazem contribuições valiosas ao participativa, cujos recursos de atenção sanitária e social vêm
cenário atual brasileiro, momento que se comemora 10 anos de ampliando-se progressivamente ao largo desses anos. Para
aprovação da Lei 10.216/01 e os inegáveis avanços em termos tanto, partiram de objetivos muito bem definidos: fechamento
da consolidação da rede substitutiva, não hospitalocêntrica e do hospital e a criação de uma rede de recursos com um amplo
manicomial. Contudo, simultaneamente, enfrentamos o desafio leque de programas interdependentes que garantisse assistência
de fazer ajustes e qualificar aquilo que vem sendo conquistado e suporte social a toda a população do território. Para pôr em
nesses 30 anos de luta para garantir a sustentabilidade de um funcionamento tal plano algumas cidades espanholas adotaram
processo que visa, acima de tudo, a desconstrução definitiva das uma série de medidas. Ressaltamos aqui o redirecionamento
estruturas asilares e segregadoras, a garantia de acesso a uma dos fluxos na rede, posicionando a atenção primária como porta
rede integral de saúde e a participação ativa de todos os atores de entrada e regulador do sistema; a redefinição da atenção
na formulação e implantação da política de saúde mental no especializada; criação de unidades de retaguarda à crise e atenção
país. Nesse sentido, os trabalhos aqui apresentados favorecem a às emergências e, principalmente, o investimento em programas
reflexão acerca de alguns aspectos desse processo que precisamos de reabilitação e apoio comunitário contemplando a questão da
nos debruçar seriamente daqui para frente, pois são pontos que moradia e do trabalho (Desviat, 2007)2. Essas iniciativas vêm
ainda estamos tentando encontrar saídas, formular propostas, produzindo impactos importantes, não só entre ex-usuários do
reavaliar modelos em curso, a saber: hospital, mas em toda a comunidade, e em particular, nas famílias
de portadores de transtornos mentais.
1. Diagnóstico precoce e tratamento de transtornos Entretanto, tal processo, especialmente na comunidade de
mentais na atenção primária. Madrid, vem sofrendo um retrocesso em função do acirramento
2. Estratégias de intervenção à crise, redução de danos, das políticas neoliberais com ênfase na privatização do sistema
serviços de urgência e hospitalização breve. sanitário e no desmantelamento da rede de atenção psicossocial
3. Experiências diversificadas de dispositivos residenciais construída em mais de 25 anos de luta democrática no país.
e atenção domiciliar. Durante a realização da “Jornada sobre modelos y estratégias
4. Suporte às famílias e autogestão dos cuidados. en salud mental”3 ocorrida em Madrid no final de 2008,
5. Ações intersetoriais de reabilitação e inclusão social houve consenso entre os participantes em termos da “pérdida
(geração de renda e garantia de direitos). del papel de lo público y cómo los grupos que manejan el
6. Continuidade de cuidados e estratégias multimodais presupuesto ponen en peligro el modelo volviendo a modelos
(boas práticas) integrando diferentes dispositivos de neo-institucionalizadores”.
cuidado. Ademais, que existem diferenças tanto no ritmo quanto

ISSN (versão eletrônica): 1678-4669 Acervo disponível em: www.scielo.br/epsic


286 M. Dimenstein

no grau de desenvolvimento do modelo comunitário no país; reabilitação psicossocial foram passando na Espanha a partir de
há riscos de uma super especialização na atenção em saúde 1986, data da promulgação da Lei Geral de Saúde, até discutir o
mental ficando encapsulada dentro de uma rede já fragmentada, cenário assistencial atual e as perspectivas de futuro nesse campo.
assim como o aumento da participação do setor privado com Na sequência somos contemplados com dois trabalhos da
diminuição do volume investido em saúde mental, contratação psiquiatra Ana González Rodriguéz focados na discussão dos
de pessoal e ausência de transparência em termos dos gastos. Programas de Continuidade de Cuidados, eixo fundamental
Ou seja, “el objetivo final es convertir la sanidad en un mercado na condução das propostas de cuidado e reinserção dos
rentable para intereses particulares” .
4
portadores de transtornos mentais na Espanha, e por que
O diagnóstico da situação em Madrid também é preocupante, não dizer, de articulador da rede. No primeiro deles, a autora
cujo panorama põe em risco a sustentabilidade do modelo faz uma revisão acerca da origem destes programas, seu
comunitário. Dentre os problemas identificados por esse coletivo desenvolvimento, assim como seus êxitos e fracassos. No
estão: a atenção primária está estrangulada financeiramente; segundo artigo, traz uma experiência em curso no Centro
o peso do hospital privado e das empresas sanitárias está de Salud Mental de Chamartín em Madri para ilustrar o modo
avançando; o conceito de território vem perdendo sua força como operam com esse dispositivo e as formas de intervenção
e função de ordenadora de rede frente ao novo marco de junto à população local. Acredito que o Programa de Cuidados
competência livre dos hospitais; além das dificuldades em dar Continuados/PCC e as correspondentes Equipes de Continuidade
seguimento a diversos programas em saúde mental como o de de Cuidados/ECC e de Apoio Social e Comunitário/EASC
Continuidade de Cuidados. fornecem elementos importantes, pois são responsáveis pela
No Brasil, vivemos tempos de contrarreforma também. Não elaboração e acompanhamento de um plano individualizado de
é preciso ir muito longe para reconhecermos que por trás dos intervenção ou Plano de Cuidados Continuados que envolve o
discursos atuais de certos setores da sociedade aparentemente acolhimento, avaliação, definição das estratégias de derivação
comprometidos com a mudança no modelo assistencial em para outros dispositivos de saúde mental e seguimento dos
saúde mental, há um nítido interesse na manutenção das formas processos em curso, inclusive, definindo critérios para a lista
asilares de tratamento e de todo o aparato teórico-prático de espera e alta. As equipes de Apoio Social e Comunitário
calcado em uma racionalidade científica que tem como eixos são parceiras nesse processo e constituem uma estratégia de
de sustentação a concepção de doença mental, a autoridade e atenção domiciliar e social. Esse modelo, bastante distinto do
o poder psiquiátricos, o enclausuramento e a contenção. Esse que operamos aqui, pode nos ajudar a fazer ajustes na lógica que
movimento de contrarreforma sempre existiu no país, mas vem hoje organiza a proposta dos Projetos Terapêuticos Singulares e
ganhando adeptos nos últimos anos pelo seu poder de articular o matriciamento em Saúde Mental.
forças alinhadas ao conservadorismo, aos interesses econômicos Outra experiência em destaque é o artigo de Alberto
dos empresários donos de hospitais e interesses corporativos dos Fernández Liria, Ana Moreno Pérez, Juan González Cases,
profissionais. Esse fato, entretanto, deve servir de alerta a todos vinculados à rede de atenção em saúde mental do município
nós envolvidos na luta antimanicomial de não esquecermos da de Alcalá de Henares e Torrejón de Ardoz, localizados na zona
necessidade de avaliação e invenção permanente das propostas metropolitana de Madri. Os autores descrevem a estrutura e
de reforma psiquiátrica, da política nacional de saúde mental, no funcionamento dessa rede que integra 26 dispositivos e 229
sentido de mantermos sua potência de ruptura com as ideologias trabalhadores, as fontes de financiamento e parceria com o setor
do medo, da exclusão e da intolerância tão avassaladoras nos privado, além das atividades de docência e investigação.
últimos tempos. Consideramos que o conhecimento e análise José Carmona Calvo e Francisco del Río Noriega apresentam
dessas experiências espanholas podem ampliar as perspectivas nos dois artigos seguintes o processo de transformação dos
de sustentabilidade do nosso processo local. recursos psiquiátricos na região da Andaluzia, sul da Espanha.
A primeira delas é uma análise feita por Manuel Desviat O primeiro deles faz uma análise histórica do processo de
acerca da situação da reforma psiquiátrica depois de três reforma psiquiátrica na região, relata os movimentos por parte
décadas de desenvolvimento na Espanha, seus êxitos e dos profissionais nos últimos anos da ditadura franquista e as
fracassos. O autor discute o grau de implantação do modelo de mudanças advindas a partir da instauração da democracia, a
saúde comunitária, bem como as insuficiências assistenciais, qual permitiu o desenvolvimento de políticas sanitárias e a
normativas e formativas. Por outro lado, analisa as conquistas tais implantação de novos modelos de atenção em saúde mental.
como o desenvolvimento dos recursos alternativos e a perda da O segundo trata de como se deu o processo de integração da
hegemonia do hospital psiquiátrico, assim como as ameaças ao saúde mental ao sistema de saúde geral, o desmantelamento dos
processo advindas, principalmente, das mudanças produzidas na hospitais psiquiátricos e a rede assistencial e social construída
gestão dos serviços sociais e sanitários, da crescente privatização para portadores de transtornos mentais na região. Finaliza com
dos serviços, da precarização teórica e das mudanças na demanda uma análise dos avanços e desafios postos na atualidade.
da população usuária. “El programa de atención psiquiátrica dirigido a enfermos
O segundo artigo trata do tema da Reabilitação Psicossocial, mentales sin hogar” é uma experiência inovadora em Madri
considerada um ingrediente chave na eficácia dos processos que vem sendo conduzida desde 2003 pela psiquiatra Maria
de desinstitucionalização, recuperação e inclusão social dos Isabel Vázquez Souza, responsável pelo oitavo artigo desse
portadores de transtornos mentais. Em função disso, Mariano dossiê. Aqui são apresentados os objetivos do programa:
Hernandez Monsalve descreve as etapas pelas quais as propostas atender moradores de rua portadores de transtornos mentais e
Reforma Psiquiátrica: integrando experiências brasileiras e espanholas no cuidado integral e territorializado em Saúde Mental 287

servir de ponte para os serviços sanitários e sociais, os quais estas estratégias e sua contribuição ao processo brasileiro de
essa população não tem acesso. A autora faz uma descrição dos reforma psiquiátrica.
modelos teóricos que orientam a proposta (outreach, tratamiento Os dois últimos artigos dizem respeito à experiências
comunitario asertivo y modelo de recuperación), bem como de usuários e equipes sintonizadas com a perspectiva do
o cotidiano da equipe multidisciplinar, suas atividades, as fortalecimento dos movimentos sociais e dispositivos
dificuldades e barreiras para a operacionalização do trabalho associativos, do empoderamento e participação de usuários e
junto a essa população de rua. Esse programa, apesar de distinto familiares no processo de reinserção social. O artigo de Juan
da proposta atual dos Consultórios de Rua, lida com usuarios Carlos Casal recorre suas experiências pessoais e de coordenador
de álcool e drogas, com pessoas vulneráveis à diversos tipos da Associação Alonso Quijano desde 2002. O autor faz uma
de violência, desvinculadas de redes de apoio social e familiar. discussão sobre estigma e o isolamento dos portadores de
Considero que a experiencia de trabalho dessa equipe com transtornos mentais e apresenta a proposta da associação, seus
moradores de rua é extremamente desafiante, impõe limites participantes e atividades regulares, bem como os desafios
concretos à atuação da equipe multiprofissional, requer uma enfrentados no sentido de dar sustentabilidade e vigor a mesma.
série de habilidades do ponto de vista de coordenação e gestão Nessa mesma linha de trabalho, apresentamos o artigo da equipe
do trabalho, assim como dificuldades técnicas e pessoais, pois profissional do Centro de Rehabilitación Psicosocial (CRPS) Los
exige dos profissionais uma visão ampliada, contextualizada e Cármenes que desenvolve desde 2004 um projeto que consiste
sensível acerca da problemática da rua, fortemente articulada à na realização de um programa de radio comunitária chamada
pobreza, à exclusão, à falta de acesso a recursos comunitários “Ábrete Camino”. Os autores apresentam a metodologia de
e sanitários. trabalho baseada na perspectiva da recuperação, a qual permite
A experiência na Espanha me pôs em contato com uma que os participantes sejam cada vez mais protagonistas, tanto
complexa rede de serviços sanitários e sociais que funcionam no programa, quanto em suas vidas. O artigo é um relato dos
de forma dinâmica e coordenada em um determinado território, próprios usuários que conduzem o programa semanal de rádio
garantindo a integração dos serviços de tratamento, reabilitação onde nos contam sua experiência através de um debate direto
e suporte social e, principalmente, evitando a fragmentação e franco.
entre os diferentes serviços e a dispersão do usuário na rede, Convidamos a todos para conhecer essas experiências, que
nos espaços comunitários, junto aos dispositivos de apoio social. apesar de se situarem em uma realidade bastante distinta da
Trata-se de um conjunto de ferramentas que vêm viabilizando nossa, podem aportar contribuições preciosas ao que estamos
mudanças consistentes na atenção em saúde mental, as quais produzindo no Brasil. Trata-se de inovações ou estratégias de luta
se articulam em grandes eixos: redefinição da gestão dos que proliferam no campo da saúde mental frente às demandas
dispositivos institucionais; a perspectiva de continuidade de cambiantes do próprio campo que nos exigem a reinvenção seja
cuidados; atenção primária como porta de entrada e regulador no âmbito das proposições, dos modelos e diretrizes da política
do sistema; criação de unidades de retaguarda à crise e atenção pública, seja nos níveis moleculares das relações cotidianas, das
às emergências e, principalmente, o investimento em programas práticas de cuidado, dos modos de sociabilidade e sensibilidade
de reabilitação e apoio comunitário contemplando alternativas de gestados nesses tempos onde os espaços de captura estão cada
moradia e trabalho. Este artigo de minha autoria visa apresentar vez mais ampliados.
288 M. Dimenstein

Notas.
1. Desviat, M. (1999). A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz.
2. Desviat, M. (2007). De loucos a enfermos. De la psiquiatria del manicômio a la salud mental comunitária. Ayuntamiento
de Leganés.
3. Jornada organizada conjuntamente pela AEN, FEARP e pela Plataforma por la Defensa de la Salud Mental Pública,
em 30 de novembro de 2008, no Colegio Oficial de Médicos.
4. Mesa de Debate promovida pela AMRP intitulada La situación de la atención en Salud Mental en Madrid, 13 de fevereiro
de 2008, Salón de Actos Hospital Niño Jesús

Magda Dimenstein
Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Departamento de Psicologia
Campus Universitário s/n, Lagoa Nova
Natal/RN, Brasil. CEP: 59094-010
Telefone: 55(84) 3215-3590.
E-mail: mgdimenstein@gmail.com

Vous aimerez peut-être aussi