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Campo Grande/MS
2011
Copyright © by Carolina Barbosa Lima e Santos (Org.)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (Org.)
Direitos Autorais reservados de acordo com a Lei 9.610/98
Coordenação Editorial
Valter Jeronymo
Assistente de Coordenação
Sheila Radich - CRB1 2208
Editoração
Mota Junior
Capa (Criação)
Maíra Espíndola
Revisão
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Impressão e Acabamento
Life Digital
Life Editora
Rua Américo Vespúcio, 255 - Santo Antonio
CEP: 79.100-470 - Campo Grande - MS
Fones: (67) 3362-5545 - Cel.: (67) 9297-4890
life.editora@gmail.com • www.lifeeditora.com.br
ISBN 978-85-63709-13-4
Apresentação..................................................................................... 05
Cinema (d)e Horror: histórico ....................................................... 11
Rosana Cristina Zanelatto Santos & Carolina Barbosa Lima e Santos
Introdução ......................................................................................... 11
Cinema (D)e Horror: fundamentação teórica .................................... 13
Metas que orientam o Cinema (D)e Horror ...................................... 17
Considerações Finais ........................................................................ 18
As Organizadoras.
Introdução
O Cinema (D)e Horror, que iniciou suas atividades em 2008, tem
por base de estudo e de reflexão filmes como: O cheiro do ralo, de Heitor
Dhalia; Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick; Johnny vai para Guer-
ra, de Dalton Trumbo; Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles;
Irreversível, de Gaspar Noé; Dançando no Escuro, de Lars Von Trier; A
Experiência, de Oliver Hirschbiegel, entre outros, procurando estabe-
lecer uma relação intersemiótica entre a linguagem cinematográfica e a
linguagem literária, para a compreensão da categoria “horror” nas artes
e no mundo contemporâneo. Para isso, é necessária uma leitura liberta
de julgamentos e de (pre) conceitos maniqueístas, uma vez que a arte
contemporânea retrata o horror como uma qualidade intrínseca à na-
tureza humana e, além disso, “[...] sua presença [do maniqueísmo] pode
eficientemente produzir condições para fortalecer preconceitos, ódios
e ressentimentos coletivos” (GINZBURG, 2008, p. 2). Com as discus-
sões em curso, pretende-se despertar o senso crítico acerca dos objetos
estéticos “cinema” e “literatura”, bem como reflexões sobre questões re-
lativas à violência na sociedade juntamente com docentes, discentes de
graduação e de pós-graduação e membros da comunidade externa, com
vistas ao diálogo e ao efetivo exercício do princípio de indissociabilida-
de, ou seja, a inextricável conexão entre o ensino e a pesquisa por meio
da extensão na universidade brasileira, no nosso caso, na Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) na cidade de Campo Grande.
O público alvo que o Cinema (d)e Horror visa abranger são to-
dos aqueles que possam vir a se interessar por sua proposta geral, que é
a de promover, por meio de debates e de reflexões, questionamentos a
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 11
partir de filmes que tratam de categorias que levem ao efeito de sentido
que denominamos “horror”. O objetivo maior do coletivo que compõe
o Cinema (D)e Horror é o de acolher um público diversificado, para que
haja a troca e o enriquecimento de experiências e de conhecimentos entre
diferentes concepções de mundo. Por isso, todas as sessões são gratuitas e
abertas à comunidade em geral e não somente ao público acadêmico. No
plano acadêmico, objetiva-se expor ideias e pesquisas feitas pelos respon-
sáveis pelas mediações dos debates sobre determinados temas de filmes ge-
radores de sentido(s) de “horror”. Dessa maneira, mesmo a própria equipe
(docente e discente) do coletivo faz parte do público alvo, uma vez que
a proposta é uma extensão do grupo de pesquisa – ainda informal – que
gravita em torno do projeto Os testemunhos de um horror desgraçadamente
humano: um estudo das obras de Joseph Conrad, António Lobo Antunes,
Mia Couto e Bernardo Carvalho, coordenado por nós. As discussões sur-
gidas durante as projeções também sevem para que possamos compreen-
der melhor o(s) efeito(s) (de) sentido(s) do “horror” no universo artístico
contemporâneo e na conflituosa natureza humana, numa leitura interse-
miótica desconstrucionista que procura fugir do maniqueísmo, que é de-
masiadamente disseminado no mundo contemporâneo.
A 1ª. versão do Cinema (D)e Horror, realizada em 2008, em parce-
ria de nosso grupo de pesquisa com a Pró-Reitoria de Assuntos Estudan-
tis (PREAE) da UFMS, o Programa de Pós-Graduação – Mestrado – em
Estudos de Linguagens da UFMS e o Museu de Imagem e do Som de MS
(MIS), onde as sessões eram realizadas quinzenalmente, às quartas-feiras,
a partir das 18h30min, sempre com entrada franca. Nas 2ª. (2009) e 3ª.
(2010) versões, tivemos o apoio, além da PREAE/UFMS e do MIS, do
Centro Cultural José Octávio Guizzo e da Fundação de Cultura do Esta-
do de Mato Grosso do Sul. O Centro Cultural nos cedeu a sala Rubens
Corrêa para a projeção dos filmes nos mesmos horários e condições da 1ª.
versão e a Fundação de Cultura nos facultou a impressão de prospectos,
filipetas e banners para a divulgação do Cinema. Outro objetivo (implíci-
to) do Cinema, desta feita, alcançado: que o poder público, para além da
universidade, se envolva com a arte como forma não somente de entrete-
nimento, mas meio de reflexão sobre si mesma e a sociedade.
12 Cinema (d)e Horror: Ensaios Críticos,
Cinema (D)e Horror: fundamentação teórica
Se o repulsivo também faz parte da nossa vida, por que não ser
matéria para os estudos de arte e de cultura? A negatividade, a sombra,
o feio, o mal formado, o desequilibrado e a maldade também têm lugar
na arte, que não seduz apenas pela atração, mas também pela repulsão.
Lembremo-nos de que foi em meio a um contexto de infelicidade,
de violência e de descontentamento que nasceu a arte moderna, uma arte
que tornou visível e questionável o mundo cotidiano e suas mazelas socio-
econômicas, além de atribuir-se a si própria visibilidade e questionamento.
[...] Ele usou o termo dramatismo para descrever sua visão en-
tre a literatura e o comportamento humano. O uso do drama
como modelo de comportamento humano marca a distinção
entre ação e movimento. A ação implica avaliação de situações
e de pessoas com as quais alguém interage. O dramaturgo e o
sociólogo devem tomar conhecimento da diferença entre mo-
vimento e ação (2011, p. 27. Os itálicos são da autora).
Considerações Finais
E la nave va... E o Cinema (D)e Horror já tem uma história
para ser contada, uma história feita e narrada por seres humanos:
problemas técnicos (sala lotada e com um único ventilador empres-
tado pelos funcionários do Octávio Guizzo, sob um calor de 30ºC;
a reforma da sala Rubens Corrêa, o que nos levou para o anfiteatro
do CCHS da UFMS, que precisa, por sua vez, de uma urgente refor-
ma); questões pessoais (o mediador que teve de socorrer um amigo no
Pronto Socorro e abandonou a sessão em meio à projeção; dois grupos
discutindo e tentando convencer a plateia sobre suas proposições; o
cidadão comum que veio a quase todas as sessões para, essencialmen-
te, discordar do que era dito pelos debatedores); o número reduzido
de sessões e o número inversamente proporcional de pessoas queren-
do ser debatedoras; o reconhecimento de quem participa do Cinema
desde o seu início; o fato de o Cinema ser, hoje, um dos cineclubes
ativos em Mato Grosso do Sul; e a formação de leitores-espectadores
capazes de acessar os filmes para além de sua proposta inicial, o horror
como efeito de sentido, passando a enxergar preceitos éticos e polí-
ticos que são varridos para baixo do tapete quando a banalização é a
tônica da comunicação de massa.
Referências
Bibliografia Consultada
_______. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
Introdução
Em dimensão ampla, o tema desta reflexão é o das conexões in-
tertextuais entre narrativas codificadas em linguagens literária e fílmica,
enfocadas em contextos culturais específicos. Pontualmente, o que se
analisará aqui é a natureza e o alcance representativo da categoria narra-
tiva de “horror/terror”, tal como foi desenvolvida e literariamente repre-
sentada por Edgar Allan Poe no conjunto de sua obra, tomando como
corpus analítico específico o emblemático conto “O coração delator”
(The tell-tale heart, 1843), comparada às nuances que ela vem apresen-
tando em textos cinematográficos, a partir do início do século XX.
Por meio de intersecção atualizadora, o filme de ficção O cor-
po (1990), de autoria do cineasta José Antonio Garcia, será enfocado
como exemplar para que se determine a natureza cambiante da noção
de horror, na passagem de um sistema narrativo a outro, bem como
as nuanças de sentido por que o termo vem passando, consideradas
as contexturas sociopolítico-culturais específicas. A investigação con-
trastiva examinará ainda, subsidiariamente, a interpretação metali-
terária operada por Clarice Lispector em duas ficções em que toma
como hipotexto o conto de Poe: a tradução interlinguística “O cora-
ção denunciador” (1974) e o conto “O corpo” (1974), atentando para
o fato de que foi desse último que partiu o cineasta para a sua tradução
intersemiótica.
Nessa trajetória analítica, o que se buscará compreender é a ma-
tização pela qual passou o sentido da categoria narrativa de “horror/
terror”, em seu deslocamento do literário ao fílmico, levando-se em
conta contextos culturais determinados, conformadores que são do
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 21
próprio sentido dos referidos termos; ou seja, da literatura universal
do século XIX (Poe) ao Brasil dos tempos da ditadura civil-militar
pós-golpe de 1964 (Lispector), bem como à época que se convencio-
nou denominar de “período de redemocratização cultural” do País, a
partir de 1985 (Garcia).
Conclusão
Como vimos, o epílogo fílmico recupera, de forma exemplar e
com eficácia narrativa, num outro código e em outro contexto histó-
rico, a intenção paródica do texto literário, unindo as duas pontas do
fio narrativo com que foram tecidas as histórias de um assassinato e
suas consequências sociais. De Poe a Garcia, entretecidas pelos textos
de Lispector, essas histórias contam ainda uma outra história: a do
deslocamento do sentido de um paradigma narrativo – o do horror/
terror. Nessas intersecções fílmico-literárias, evidencia-se o trabalho
criativo com linguagens estéticas, o qual, possibilitando a continuida-
de da linha evolutiva do gênero de horror tanto em literatura como
em cinema, atualiza, revigora e garante a permanência do gênero na
contemporaneidade, eis que conformado contextualmente.
Notas
1. Na noite de 28 de dezembro de 1895, numa cave do Grand Café, o “Salão Indiano”, no Boulevard des
Capucines, em Paris, foi realizada o que historicamente se convencionou chamar de “a primeira sessão
de cinema”: projeção de dez filmetes realizados pelos irmãos Auguste e Louis Lumière pela primeira vez
para um público pagante. No programa, exposto à entrada do Café, não constava a exibição de um filme
que iria marcar profundamente a exploração das potencialidades do cinematógrafo e do próprio cinema
como um todo. Poucas semanas após, em janeiro de 1896, os primitivos cineastas apresentaram o filme
(duração de 50 segundos) L’arrivée d’un train en gare de La Ciotat (A chegada de um trem à estação de
La Ciotat). Nele, via-se um trem vindo em direção à câmera (ou seja, em direção à plateia), parando
na estação ferroviária da pequena cidade de La Ciotat, e a descida dos passageiros. Tal foi o susto dos
espectadores, ao verem uma locomotiva vir em direção a eles, que se instalou o pânico: levantaram-se aos
Referências
ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
Referências
______. O real e seu duplo. Tradução José Thomaz Brum. São Paulo:
L&PM Editores, 1988.
[...] cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparen-
temente desvinculados na rua, está ligada a outras por laços
Notas
1. Babel. Direção: Alejandro González Iñárritu. Estados Unidos; México, 2006.
2. A ênfase de uma Geografia sobre elementos físicos do espaço (relevo, clima, vegetação, geomorfologia,
ambientes naturais etc.) e, de outra, sobre “sujeitos coletivos” na produção socioespacial (gêneros de vida,
sociedades, comunidades, classes sociais, Estado-nações etc.) redundaram na quase invisibilidade dos
corpos-territórios como parte de geografias da existência, de vida e também de morte. Aqui, entendemos
que tanto cada corpo é manifestação e participação de “multiterritorialidades” (cf. HAESBAERT, 2006)
como cada corpo é alvo de políticas sobre o corpo (como as disciplinas, de acordo com FOUCAULT,
2008b) e ao mesmo tempo expressão de uma “contra-política” de resistência aos “agenciamentos maquí-
nicos de corpos” e aos “agenciamentos coletivos de enunciação” (cf. DELEUZA e GUATTARI, 1995).
3. Por territorialidade entendemos “[...] nossos laços com o território [e que] pode ser definida como
‘o conjunto de relações que desenvolve uma coletividade – e, portanto, um indivíduo que a ela pertence
– com a exterioridade por meio de mediadores ou instrumentos’” (HAESBAERT, 1997, com base em
Claude Raffestin). E “As transterritorialidades são disputas, tensões, conflitos, mediações e negociações
entre territorialidades; a ideia se aproxima da de ‘transculturações’, podendo ser aquelas a expressão ter-
ritorial destas, configurando-se em uma espécie de ‘transmigração’ cultural e de poder na relação entre
territorialidades divergentes. Pessoas, grupos, classes e instituições transitam entre territorialidades como
trânsito entre sentidos de viver, muitas vezes opostos e em contradição, ao mesmo tempo que transpassam
e são transpassados por territorialidades, podendo, inclusive, potencializar e produzir entrecruzamentos
e/ou superposições através da “mistura” (oriunda do próprio choque), com a produção de territoria-
lidades cada vez mais híbridas. Esse trânsito é, quase sempre, carregado de disputas, tensões, conflitos,
mediações e negociações, geralmente exacerbadas em situação ou condição de migração. Por isso, a
transterritorialidade é uma situação/condição de ‘mal-estar’ porque, em movimentos de internalização/
externalização, os sujeitos (em sentido amplo) marcam e são marcados por processos de identificação/
diferenciação quase permanentes. Ou, se quisermos, a condição de transterritorialidade é a afirmação/
negação constante de nossas ‘fronteiras étnicas’ cotidianas. Isso, por outro lado, não deve significar que
as transterritorialidades sejam sempiternas, mas, ao contrário, sempre transitórias a depender das ‘figura-
ções’ em cada tempo e em cada lugar” (GOETTERT; MONDARDO, 2009, p. 117-118).
4. Esse aspecto faz com que nos aproximemos da ideia de “rizoma” de DELEUZE e GUATTARI (1995);
espacialmente, o rizoma poderia ser definido como possibilidade de espaço aberto a conexões ainda não
feitas, a relações ainda não estabelecidas, dispondo o espaço ao devir. De acordo com os autores, “Um
rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às
artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito
diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si,
nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais.
[...] Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentre de uma multi-
plicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital. Ela
faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de
ferro, espalha-se como manchas de óleo. Podem-se sempre efetuar, na língua, decomposições estruturais
internas: isto não é fundamentalmente diferente de uma busca de raízes. Há sempre algo de genealógico
numa árvore, não é um método popular. Ao contrário, um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a
linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros. Uma língua não se
fecha sobre si mesma senão em uma função de impotência” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15-16).
5. José Saramago (1988, p. 12) ajuda-nos a entender tal dificuldade: “Dificílimo acto é o de escrever, res-
ponsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os
acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso
Referências
_____. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. 35 ed. Petrópolis: Vozes, 2008b.
_____. Por uma geografia nova. São Paulo: EdUSP, 2002 [1978].
SILVA, Armando Corrêa da. O espaço fora do lugar. 2 ed. São Paulo:
Hucitec, 1988.
Suas ações são discursos, mas o que dizem eles, e por que falam
essa língua assustadora do crime?
Basta reconhecer a confusão que estas belas monstruosidades,
de um horror tão trágico, provocaram no discurso habitual-
mente tão pleno, tão seguro, dos magistrados e dos médicos,
para compreender que alguma coisa importante estava acon-
tecendo (2010, p.194).
Nota
1. Referimo-nos aqui ao vídeo-documentário Violentamente Pacífico, do diretor Gabriel Teixeira, reali-
zado no Bairro da Paz (Periferia de Salvador-BA), uma entrevista com um morador do bairro conhecido
como Ras Mc Léo Carlos.
Referências
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro: 7letras, 2007.
Preliminares
O título deste ensaio não anuncia que Eles Vivem (1988) será
abordado por meio de uma chave interpretativa fornecida pelo pró-
prio roteirista e diretor, John Carpenter. Preservando o distancia-
mento necessário à atividade crítica e certa desconfiança para com as
palavras do autor, a intenção é avaliar que imagem de intelectual a
narrativa fílmica em pauta cunha. O ponto de apoio para tanto é a
configuração de uma analogia entre o personagem central de Eles Vi-
vem e o próprio Carpenter, ambos diante de um contexto opressivo
que procura lhes barrar o potencial.
O filme é baseado no conto Eight o’clock in the morning, de Ray
Nelson. Trata-se de um texto bastante breve que acompanha a desco-
berta de uma infiltração alienígena por um velho e solitário homem
chamado George Nada. O conto principia com o fim de uma sessão
de hipnose em massa. O protagonista percebe que, para ele, o transe
de alguma forma se deu distintamente: como se um véu fosse tirado de
seus olhos, revelando o que acontece sob a fachada, passa a enxergar
criaturas de aspecto reptiliano se fazendo passar por humanos, incóg-
nitas para todos da cidade: “Eles estavam lá durante todo o tempo,
é claro, mas apenas George estava realmente desperto, então apenas
George os reconhecia pelo que eles eram”1. Mensagens ocultas, agora
desvendadas para o protagonista, ocupam pôsteres e programas de te-
levisão com palavras de ordem como: “‘Trabalhe oito horas, descanse
oito horas, durma oito horas’ e ‘Case e se reproduza’”2.
O personagem, mais tarde, recebe por telefone uma sugestão
hipnótica: “Você é um homem velho [...]. Amanhã de manhã, às oito
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 97
horas, seu coração vai parar. Por favor, repita”3. Ele repete como orde-
nado, mas não crê que a sugestão vá fazer efeito, dada a particularida-
de de sua condição. Tomando ciência de que Nada não está mais sob
efeito da hipnose coletiva, as criaturas reptilianas se empenham em
capturá-lo. Na conclusão do conto, o protagonista consegue transmi-
tir uma espécie de ordem hipnótica contrária àquela até então veicula-
da, imitando a voz dos invasores: “Despertem. Despertem. Vejam-nos
como somos e matem-nos!”4 Pela manhã, principia uma guerra, mas o
protagonista “[...] não viveu para ver a vitória que finalmente chegou.
Ele morreu de um ataque do coração exatamente às oito horas”5.
No conto, a fachada sob a qual se escondem os invasores, cha-
mados de “Fascinadores” pelo narrador, se mantém pela imposição de
uma letargia; “despertem” é a palavra de ordem que permite a revira-
volta final. Eight o’clock in the morning volta um olhar negativo não às
normas sociais, mas à irrestrita obediência a padrões comportamen-
tais rígidos. George Nada, não fosse o acidente na hipnose, permane-
ceria adormecido, destinado a um papel pré-estabelecido e reduzido
ao que seu sobrenome anuncia.
Em Eles Vivem, também é esse o nome do protagonista. Inter-
pretado por Roddy Piper, o personagem é um andarilho que chega à
cidade grande à procura de emprego, nas costas uma mochila com seus
únicos pertences. Em sua malfadada busca por emprego, Nada mantém
os ombros caídos e a música – composta por Carpenter – ecoa continu-
amente os mesmos acordes, demarcando que a falta de oportunidades e
a frustração se repetem com frequência, reiteradamente, para o andari-
lho. É com a condição desse personagem posto às margens que Carpen-
ter cria uma analogia com sua própria produção fílmica.
Nada acaba conseguindo um trabalho em uma construção e mo-
radia em um assentamento diante de uma igreja. Certa noite, policiais
destroem os barracos de forma violenta e expulsam os moradores à força,
no momento do filme em que o desconforto cede espaço ao horror fren-
te à condição do excluído. A igreja, que também fora invadida, é visita-
da por Nada na manhã seguinte. Nas paredes internas, a pichação “Eles
Vivem, Nós Dormimos” e, em um esconderijo, pares de óculos escuros.
98 Cinema (d)e Horror: Ensaios Críticos,
Quando Nada usa os óculos, enxerga mensagens ocultas na te-
levisão, nos jornais e nas revistas, nos cartazes de publicidade e mesmo
nos semáforos de trânsitos. São mensagens como “Assista TV”, “Obe-
deça”, “Permaneça adormecido”, “Durma” e “Case e se reproduza”. Nas
notas de dólares, a inscrição “Este é seu Deus”. Objetos flutuantes de
aspecto robótico verificam as ruas à procura de distúrbios, enquanto
alienígenas caminham incógnitos entre os humanos. As imagens dos
óculos são em preto e branco, conferindo às cenas uma remissão à dis-
topia clássica de molde orwelliano.
Posteriormente, o personagem vem a conhecer outras nuanças
da infiltração, como a cooptação de humanos por parte dos invasores.
Alia-se a um grupo de revoltosos, os mesmos responsáveis pelos ócu-
los escuros, e, na conclusão do filme, consegue, a custo da própria vida,
interromper o sinal que mantém ocultos os alienígenas.
Tanto o sistema que mantém letárgicos os humanos quanto o
contexto empírico ficcionalmente transfigurado podem ser compreen-
didos segundo o conceito de indústria cultural proposto por Theodor
W. Adorno e Max Horkheimer em Dialética do Esclarecimento. Em-
bora coesa, a indústria cultural se apresenta difusa e impessoalmente,
articulando os meios de comunicação em massa no intuito de impedir
a atividade intelectual dos consumidores. Tanto nos procedimentos
quanto nos objetivos, o controle das massas pelos alienígenas de Eles Vi-
vem é análogo ao conceito. Os óculos são responsáveis por desmentir o
engodo e demolir a fachada que oculta a real configuração de um estado
de coisas negativo – papel que cabe à arte, se atentarmos para o ensaio
“Posição do narrador no romance contemporâneo”, de Adorno.
Como assinala Sheila Johnston, em artigo publicado no London
Times, o trabalho de Carpenter com os grandes estúdios claramente o
deixou desconfortável. Oriundo de produções independentes de bai-
xo custo, como Dark Star (1974) e Assault on Precint 13 (1976), o
diretor trabalhou, entre 1981 e 1986, com orçamentos maiores, mas
retornando ao baixo custo com Eles Vivem. O filme custou, ainda de
acordo com Johnston, três milhões de dólares, quantia modesta para
o padrão cinematográfico norte-americano. Com o afrouxamento do
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 99
controle criativo sendo proporcional ao aumento nos orçamentos, o
filme representa uma tomada de posição.
Em 1987, Carpenter assina contrato com a Universal Pictures
para quatro filmes de baixo custo e lançamento restrito. Eles Vivem, o
primeiro deles, é um filme que se pode chamar de autoral, na medida
em que a própria característica coletiva da arte cinematográfica o per-
mite. Não apenas por ser escrito, dirigido e ter a música de autoria de
Carpenter, ou por conter traços reconhecíveis de seus filmes anterio-
res, como a música repetitiva acompanhando a cadência dos aconte-
cimentos, mas principalmente por apresentar uma reflexão acerca do
posicionamento político de sua filmografia.
Notas
1. Tradução nossa de: “They had been there all along, of course, but only George was really awake, so only
George recognized them for what they were” (NELSON, 1970, p, 214).
2. Tradução nossa de: “‘Work eight hours, play eight hours, sleep eight hours” (NELSON, 1970, p. 214).
3. Tradução nossa de “You are an old man [...]. Tomorrow morning at eight o’clock, your heart will stop”
(NELSON, 1970, p. 215).
4. Tradução nossa de: “See us as we are and kill us” (NELSON, 1970, p. 219).
5. Tradução nossa de: “[…] did not live to see the victory that finally came. He died of a heart attack at
exactly eight o’clock” (NELSON, 1970, p.219).
6. Tradução nossa de: “While science fiction is by no means reducible to Cold War allegory, such tensios were
manifested in films of the post-war era because the genre usually carries pointedly social reference and political
inference” (WORLAND, 1996. Acesso em: 17 out. 2010).
7. Tradução nossa de: “They Live was a movie made in direct response to my horror at the
Reagan years. Nobody had made a movie about that or like tha.” (CARPENTER, 2002.
Acesso em: 20 out. 2010).
8. Tradução nosssa de: “The 80s never left us” (CARPENTER, 2002. Acesso em: 20 out.
2010).
Referências
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 105
A monstruosidade em Old Boy
Juliana Ciambra Rahe
Notas
1. “[...] na maioria das vezes eles [monstros] são híbridos grotescos, recombinações unindo característi-
cas humanas e animais ou misturando espécies animais em uma forma sinistra” (Tradução nossa).
2. “[ ] o caos, atavismo, e o negativismo que simbolizam a destrutividade e todos os outros obstáculos
para a ordem e o progresso, tudo o que derrota, destrói, faz recuar, mina, subverte o projeto humano”
(Tradução nossa).
3. “[...] [eles] trocam as máscaras” (Tradução nossa).
4. “[...] Não importa quantas vezes nós os exorcizamos, os estilhaçamos ou os banimos para o espaço
sideral, eles continuam voltando para mais. Nossos monstros estão sempre tentando nos mostrar algo se
nós apenas prestássemos atenção” (Tradução nossa).
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 115
Referências
COHEN, Jeffrey. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.). Pedagogia dos monstros. Os prazeres e os perigos da
confusão de fronteiras. Tradução Tomaz Tadeu as Silva. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. p. 23-60.
Introdução
Tropa de Elite II: o inimigo agora é outro, lançado no Brasil em
2010 e dirigido por José Padilha, além de ter se tornado o filme de
maior bilheteria no País até então, foi escolhido para concorrer ao Os-
car de melhor película estrangeira em 2012, sendo a quinta produção
a representar o Brasil nessa categoria em toda a história do prêmio
norte-americano. O filme dá continuidade à saga do personagem Ca-
pitão Nascimento, de Tropa de Elite, lançado em 2007 e que recebeu
o Urso de Ouro no Festival de Berlim. A distância temporal entre o
lançamento das duas obras de Padilha é de três anos, mas há um salto
diegético na história de aproximadamente dez anos entre o primeiro
e o segundo.
Em Tropa de Elite, o protagonista é o Capitão Nascimento, co-
mandante de uma equipe tática do Batalhão de Operações Policias
Especiais (BOPE), da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
casado com Rosane e que está para ser pai. O principal objetivo de
Nascimento é encontrar um policial à sua altura para substituí-lo no
comando de uma das equipes táticas do BOPE, e esse é o mote em
torno do qual a trama se desenvolve. Entretanto, Neto, o homem que
Nascimento está treinando para substituí-lo, é assassinado numa ar-
madilha destinada a Matias, parceiro de Neto. O final é trágico para
Nascimento, que perde não só o substituto, mas também a própria
esposa, que sai de casa com o filho que acabara de nascer.
Em Tropa de Elite II, Nascimento, já promovido a Tenente-Co-
ronel, está no comando do BOPE até que um incidente na Penitenci-
ária de Bangu I desencadeia uma série de acontecimentos em sua vida.
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 117
Tudo começa com uma “guerra” interna, iniciada entre presidiários
de facções criminosas inimigas. O BOPE é acionado e Nascimento,
à frente da operação, quer aproveitar a oportunidade para eliminar
alguns presos perigosos, porém o governador não o autoriza, enviando
ao local Diogo Fraga, ativista de esquerda e defensor dos direitos hu-
manos, para tentar acalmar a situação. Fraga parece ter êxito na missão
até que Matias, policial do BOPE treinado por Nascimento, desobe-
decendo às ordens do Tenente-Coronel, entra no local e tenta surpre-
ender as facções. Beirada, líder do Comando Vermelho, toma Fraga
como refém, mas Matias mata o traficante sem que Fraga saia ferido.
O incidente vira notícia rapidamente e o governador quer exonerar
Nascimento, mas a população apóia a atitude do BOPE. Nascimento
é promovido a subsecretário de segurança pública do Estado do Rio
de Janeiro e é desse local que a nova trama se desenvolve.
Diogo Fraga, após o incidente no presídio, torna-se deputado
estadual e luta para implantar no congresso a CPI das milícias. En-
quanto isso, o Nascimento, em seu novo cargo, consegue dar todo
suporte necessário ao BOPE e acredita que conseguirá, desse modo,
enfrentar o sistema. Mas é justamente quando ele acaba com o domí-
nio dos traficantes nas favelas, que descobre que ajudou a criar outro
sistema, ainda mais poderoso que o anterior, que passa então a do-
minar esses locais: o sistema de corrupção dos milicianos. Ele, então,
percebe que sua luta foi em vão e admite que Fraga, seu antagonista,
fora o primeiro a notar o que estava acontecendo.
Pode-se dizer que a relação entre os personagens Nascimento e
Diogo Fraga “personifica” um embate entre dois enfoques diferentes a res-
peito de um mesmo tema: a violência. De um lado a ideologia do BOPE,
representada por Nascimento, que tenta acabar com a criminalidade a
seu modo, usando a própria violência como arma, e de outro, a defesa dos
direitos humanos, representada por Fraga, que desconfia da ação da po-
lícia e a acusa de ser tão violenta quanto os próprios criminosos. A virada
inicia-se quando Nascimento se dá conta de que Fraga estava certo e o
“jogo” vira de vez quando o Coronel resolve depor contra os milicianos e
políticos corruptos, apoiando, dessa forma, a CPI implantada por Fraga.
118 Cinema (d)e Horror: Ensaios Críticos,
Em vista disso, analisamos, por via de alguns conceitos aristoté-
licos sobre Retórica, tal como trabalhados por Santos (2007), como se
dá o percurso argumentativo em Tropa de Elite II, que é elaborado de
forma a colocar em discussão a própria questão pela qual o primeiro
filme se tornou sucesso de público: a temática da violência.
[...] por mim, o certo era fechar a porta, jogar a chave fora,
e deixar os caras se trucidarem lá dentro. Só que tem muito
intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 123
vagabundo, e o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita
gente” (PADILHA, 2010).
Onde o Fábio tirava 30 mil por mês, Rocha tirava 300, livre de
imposto. Em quatro anos o sistema tomou conta de quase toda
a zona Oeste do Rio de Janeiro. Antes, a gente invadia e os
traficantes voltavam, só que quando os corruptos começaram
a ocupar as favelas, os traficantes não voltavam mais. Por um
bom tempo eu pensei que o sistema estava ajudando o BOPE,
só que na verdade, era o BOPE que estava ajudando o sistema.
É, eu ajudei a criar o monstro que ia me engolir, e o pior, que
só uma pessoa percebeu isso, o Deputado Diogo Fraga (PA-
DILHA, 2010).
[...] é claro que eu não queria ouvir o que o Fraga estava dizen-
do sobre as milícias, era difícil separar as coisas, por isso eu não
consegui perceber o que estava acontecendo no Rio de Janeiro.
O sistema tava mudando, evoluindo. Antes, os políticos usa-
vam o sistema para ganhar dinheiro. Agora, eles dependiam
do sistema para se eleger. [...] No Brasil eleição é negócio e o
voto é a mercadoria mais valiosa da favela, não demorou muito
para o Guaraci, para o Genuíno e para o Fortunato percebe-
rem que a milícia montava a base eleitoral do governo, quanto
mais favelas as milícias dominavam, mais votos eles tinham
(PADILHA, 2010).
Referências
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/12/tropa-de-elite-2-e-
maior-bilheteria-da-historia-no-brasil.html Acesso em 20 de set. de 2011.
http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/tropa+de+elite+2+
e+o+representante+do+brasil+no+oscar+2012/n1597219136565.
html Acesso em 20 de set. de 2011
Ficha Técnica 1
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 135
Fantasia, realidade e estranhamento em
A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyasaki
Wellington Furtado Ramos
Introdução
Pensando a relação entre realidade e ficção no âmbito da arte
cinematográfica, pode-se dizer, sem dúvida, que o cinema de anima-
ção se consagrou como o lugar do fantasioso e da imaginação, mesmo
estando ancorado a isto que chamamos de realidade, num procedi-
mento análogo àquele apontado por Roland Barthes em “O efeito de
real” ([1971] 2004) acerca da Literatura.
Elegemos para as reflexões que seguem a animação intitulada
A viagem de Chihiro, do diretor japonês Hayao Miyasaki. Vencedor
do Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim e do Oscar 2003
de melhor longa-metragem de ani-
mação, A viagem de Chihiro (Sen to
Chihiro no kamikakushi – no origi-
nal japonês – ou Spirited Away – na
versão em língua inglesa, 2001), traz
a história de Chihiro, uma garota de
10 anos de idade que está se mudan-
do de cidade com seus pais.
Inicialmente, inconformada
com a mudança, Chihiro demons-
tra o comportamento de uma meni-
na mimada: desde o início do filme
quando, ainda no carro de seus pais,
reclama do buquê de flores que rece-
Fig. 1 - Capa do DVD A viagem de Chihiro bera pela primeira vez na vida justa-
(2001), de Hayao Miyasaki. Fonte: Acervo
do autor. mente no momento de uma despedi-
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 137
da. Ao ouvir as lamentações da menina, a mãe de Chihiro a lembra de
que já recebera uma rosa vermelha quando de seu aniversário, ao que a
personagem-principal do filme retruca que uma rosa era uma flor só e
não valia tanto quanto um buquê.
Em poucos minutos, a família se depara com uma estrada que
daria para a futura casa. Aparentemente perdidos, o pai de Chihiro
segue no caminho por meio da floresta em alta velocidade – o que
assusta Chihiro e sua mãe - confiante de que seu carro chegaria ao
objetivo, por conter “tração nas quatro rodas”. Ao final do caminho,
nossos personagens encontram uma construção antiga, parecida com
um túnel, e descem para verificar do que se tratava. Chihiro é relu-
tante em conhecer o lugar e percebe que “o vento entrava no túnel”,
além do fato de que o prédio parecia gemer, dando indícios de fatores
estranhos que, adiante na trama, a fariam sentir medo e horror.
Pai, mãe e filha percorrem o túnel e o acham parecido com uma
antiga estação de trem e, quando terminam de atravessar a construção,
se dão conta de um longo campo com casas ao longe. O pai de Chihiro
constata que aquela construção deveria ser um antigo parque temático
falido e segue adiante na descoberta do lugar desconhecido, enquanto
Chihiro insiste em ir embora de lá.
O estranho (Unheimlich)
Seguindo a linha que optamos para as reflexões aqui apresen-
tadas, tomando como ponto de referência a Psicanálise desenvolvida
por Freud, cumpre trazer à tona a noção de “estranho” (unheimlich).
Em “O estranho” (1919), o pai da Psicanálise resgata a origem etimo-
lógica do termo unheimlich, para dissertar acerca do efeito de estra-
nhamento componente da narrativa fantástica de Hoffman.
Segundo Freud, na tradução de unheimlich para outras línguas
pode-se encontrar acepções tais como: estrangeiro, hora ou lugar es-
tranho, inquietante, desconfortável, sombrio, obscuro, assombrado,
repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco. Assim, a reflexão
linguística que Freud faz no início de seu artigo reside em demonstrar
como, etimologicamente, o termo unheimlich é capaz de conter em si
termos opostos: heimlich, que quer dizer familiar, também significa
146 Cinema (d)e Horror: Ensaios Críticos,
algo secreto e oculto, o que, paradoxalmente, torna essa palavra próxi-
ma de seu oposto, unheimlich.
Em português, a palavra estranhar é comumente utilizada para
a situação em que o cão não reconhece seu dono ou alguém conhe-
cido, ou seja, uma situação que deveria lhe ser familiar. Devidas as
ambiguidades desse tipo, Freud aponta que o estranho, unheimlich,
é de alguma forma uma “subespécie” de heimlich, do familiar (que é
também o oculto, o secreto).
Ao retomar a proposição de Schelling de que “[...] chama-se
unheimlich tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, e se
manifesta” (apud FREUD, v. XVII, p. 242), Freud desenvolve a no-
ção de que nem tudo o que é assustador ou sinistro evoca o sentimen-
to do estranho, mas apenas aquelas situações em que, justamente, há
também subversão da lei do recalque, na qual aquilo que deveria ter
permanecido “secreto e oculto” vem à tona. Além disso, há também
outros aspectos ressaltados por Freud que apontam para a dimensão
infantil presente no estranho - o pensamento mágico e a repetição -
que, junto com o retorno do recalcado, são elementos sempre presen-
tes na experiência do estranho.
Essa proposição nos parece bastante útil para a leitura não
apenas da narrativa literária, mas também da obra de arte fílmica. A
viagem de Chihiro enquadra-se nas narrativas que podem ser conside-
radas fantásticas, na medida em que acontecimentos surpreendentes
tomam o primeiro plano da narrativa, causando no leitor/espectador
medo, surpresa e estranhamento diante do que lê/vê.
Em seu artigo, Freud enumerou uma série de fatores que, segun-
do ele, propiciam o efeito de estranho na narrativa. Todos eles podem
ser encontrados analogamente no filme que aqui analisamos. Segundo
Freud, a separação entre as realidades interna e externa, entre eu e outro,
é dos temas recorrentes ao estranho; trata-se do fenômeno do duplo:
ora utilizando seus poderes mágicos para atitudes que podem ser con-
sideradas maléficas. Segundo Lima,
Considerações Finais
Parece-nos que A viagem de Chihiro enquadra-se numa linha de
filmes cujo enredo pretende abordar os chamados ritos de passagem.
Assim como o bildungsroman, no qual o personagem (trans)forma-se
ao longo da história, o filme em questão nos apresenta a situação de
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 153
vulnerabilidade de Chihiro em relação ao seu destino ao deslocar-se
de uma cidade à outra. Chihiro precisa passar por uma série de provas
para que seja aceita no mundo que encontra em seu caminho.
Primeiramente, para que não desapareça, a menina precisa
aceitar a amizade de Haku e confiar nele quando ele lhe oferece uma
pequena fruta da região para que, ao comê-la, ela passe a fazer parte
daquele mundo e não se esvaia. Em segundo lugar, para conseguir re-
aver seus pais, Chihiro precisa ser aceita como trabalhadora. Para tal,
ela precisou enfrentar Yubaba e insistir para que fosse contratada; ao
fazê-lo, a menina precisou se render ao contrato imposto pela feiticei-
ra dona do lugar e que roubava seu nome, transformando-a em Sen,
como já vimos.
A seguir, é dada a Chihiro a pior tarefa do local: a menina de-
veria limpar a maior banheira da casa de banhos que era, justamente, a
que estava em piores condições de uso. Não bastasse isso, um “deus fe-
dido” chega à casa de banho e Chihiro é obrigada a recebê-lo e banhá-
-lo. A menina precisou encaminhar o visitante até a banheira e cuidar
para que ele fosse limpo, sendo ele uma espécie de gosma disforme,
feita de lama e detritos.
Referências
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 157
Nouvelle. Professor de Literatura no Centro de Letras e Comunicação da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel – RS), está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Le-
tras, Mestrado em Letras da UFPel, atuando principalmente nos seguintes temas: litera-
tura comparada; literatura e artes visuais; e literatura, cinema e autoritarismo. Participa
do Grupo de Pesquisa UFPel-CNPq “Literatura Comparada: interdisciplinaridade e
intertextualidade” e do GT de “Literatura Comparada” da ANPOLL. Publicou vários
livros, entre os quais: A tradução criativa: A hora da estrela – do livro ao filme: a intersec-
ção de duas narrativas (Editora Mundial/EDUFPel) e A lição aproveitada: modernismo
e cinema em Mário de Andrade (Ateliê Editorial), além de capítulos de livros e artigos
em revistas acadêmicas no Brasil e no exterior sobre as relações entre literatura e cinema.
Endereço eletrônico: jm_sc@terra.com.br.
Carolina Barbosa Lima e Santos e Rosana Cristina Zanelatto Santos (orgs.) 159
“Incentivo do Fundo de Investimentos Culturais – FIC/MS – do
Governo do Estado de Mato Grosso do Sul (Lei nº. 2.645/03 –
Campo Grande – Mato Grosso do Sul – 2011)”.