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METODOLOGIA FILOSÓFICA
Paulo A. F. Motta

2 O PENSAMENTO FILOSÓFICO-CIENTÍFICO MODERNO

2.1 FILOSOFIA MECANICISTA E RACIONALISMO RACIONALISMO


(CLASSICISMO RACIONALISTA): O DISCURSO DO MÉTODO, DE RENÉ
DESCARTES

O termo “mecanicismo” denomina uma filosofia formulada na primeira


metade do século XVII significando, sinteticamente, que “todos os fenômenos naturais
devem ser explicáveis, em última instância, por referência à matéria em
movimento...”, e que “a realidade física se identifica com um conjunto de partículas
que se agitam e se entrechocam” (JAPIASSU, 1991, p. 93). Tais pressupostos levaram
os pensadores mecanicistas a eleger a máquina como metáfora da nova filosofia, pois
consideravam que, “em seu conjunto, o mundo se apresenta como uma espécie de
sistema mecânico, (...) como uma gigantesca acumulação de partículas agindo umas
sobre as outras, da mesma forma que as engrenagens de um relógio” (JAPIASSU,
1991, p. 93). Define-se, assim, o objetivo da ciência, a partir de um conceito
mecanicista da natureza: “...qualquer que seja o fenômeno estudado, trata-se de
elucidar certo número de fenômenos últimos e de descobrir as leis que presidem às
suas intenções. A natureza nada mais é que uma máquina complexa, na qual a matéria
e a energia, cooperando e interagindo de diversos modos, desempenham o papel de
constituintes últimos.” (JAPIASSU, 1991, p. 93)1

1 JAPIASSU (1991, p. 93) prossegue afirmando que o mecanicismo tem duas acepções
básicas, a saber: “a) é um conjunto geral das leis que constituem, em sistema, os princípios da

mecânica; enquanto tal, seu papel e sua função ultrapassam, no pensamento, os limites de sua

aplicação técnica; b) para o mecanicismo metafísico, o movimento contínuo da matéria exige para se

conservar, não somente uma garantia de uma duração, mas um princípio de uma emergência; nesse
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O grande responsável por esta “guinada epistemológica” foi Galileu,


inscrevendo uma linguagem eminentemente matemática em um universo que, a partir
dessa época, passa a perder seus atributos míticos. No universo concebido por Galileu
não há mais lugar para anjos ou demônios ou para qualquer “esquema astrobiológico”
(predominante em sua época). Ao contrário, a visão de mundo galileana concebia um
“universo de relações inteligíveis, escrito numa linguagem cifrada, isento de todo e
qualquer pressuposto mágico, naturalista ou teológico”, denotando que umas das
principais preocupações de Galileu consistia em “decifrar o grande livro do mundo”.
Sendo que “a chave dessa interpretação é encontrada quando ele afirma que o mundo é
escrito em termos matemáticos.” (JAPIASSU, 1991, p. 94).
Galileu, considerado o pai da ciência quantitativa moderna assim como seu
grande “inspirador”, magistralmente uniu o raciocínio matemático à experiência,
diferenciando-se de Descartes – que superestimou o papel dedutivo da matemática
– e de Bacon, que reduziu os procedimentos científicos à experiência.
Obviamente, a ciência moderna e a filosofia mecanicista não foram criadas
por uma pessoa apenas, mas por um grupo de pensadores e filósofos, tais como
Gassendi, Mersena, Harvey e Descartes. Ao afirmarem que “a matéria é perfeitamente
inerte e desprovida de toda e qualquer propriedade misteriosa ou de forças ocultas”
automaticamente eliminam “da Natureza as simpatias e as antipatias”; pelo fato dela, a
Natureza, ser “totalmente desprovida de espírito e de pensamento: (...) os fenômenos
naturais só se explicam em termos de tamanho, de forma e de velocidade das
partículas”. (JAPIASSU, 1991, p. 98)
Descartes se destaca neste cenário por ter realizado “uma síntese entre uma
física abrindo caminho para uma exigência materialista e determinista, e uma

sentido, ele não é incompatível com uma metafísica, até mesmo com uma teologia, pela figura de um

Deus criador: ‘a origem do mecanicismo, diz Leibniz, não decorre do princípio material e da razão

matemática, mas de uma fonte mais profunda e, por assim dizer, metafísica’”.
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metafísica salvaguardando inteiramente os direitos de uma ontologia 2


espiritualista”.3 (JAPIASSU, 1991, p. 98):

O cartesianismo faz uma junção de uma ontologia da substância pensante e de um


mecanicismo para a substância extensa que compõe a natureza material. Os direitos
da metafísica ficam resguardados. Graças a Descartes, podia-se jogar, tanto em sua
época quanto na França pós-revolucionária, dos dois lados: do lado do
espiritualismo de inspiração religiosa e do lado do mecanicismo de estilo
científico. Fica mantida a unidade de duas reivindicações contraditórias.
(JAPIASSU, 1991, p. 97)

Hilton JAPIASSU (1991, 98-101) prossegue, destacando as seguintes


características do pensamento cartesiano:

2 Conforme BARROSO,1999, [De ont(o)- + -logia.] S. f. Filos. 1. Parte da filosofia que


trata do ser enquanto ser, i. e., do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a

todos e a cada um dos seres: "Com Kant (v. kantiano), o universo é uma dúvida: com Locke, é dúvida

o nosso espírito: e num destes abismos vêm precipitar-se todas as ontologias." (Alexandre Herculano,

Lendas e Narrativas, II, p. 107.)

3 “O dualismo do espírito e do corpo só faz repetir, em escala humana, essa justa posição
de dois domínios radicalmente exteriores uma ao outro. Descartes fala ao mesmo tempo duas

linguagens, dando satisfação tanto aos defensores da fé tradicional quanto aos partidários da nova

ciência. É o que explica o fato de sua herança ser reclamada tanto pelos puros metafísicos, atentos à

nova ordenação no reino das idéias, do qual ele modifica as articulações lógicas, quanto pelos

materialistas de estrita observância, para os quais as essências racionais, o cogito e a teologia não

passam de vãs fantasias.” (JAPIASSU, 1991, p. 98-99) “O pensamento cartesiano é aceito pelos

modernos e religiosos como o melhor para assegurar, nos pensamentos, a ordem reinante nas ruas [?].

O que mais seduzia no pensamento cartesiano eram o rigor e a clareza de um mecanicismo

susceptível de explicar os fenômenos físicos. Os bem-pensantes viam em sua metafísica o mais

perfeito e eficaz instrumento para demonstrar a existência de Deus e a imortalidade da alma. (...) A

filosofia cartesiana ‘fundada na rigorosa distinção do pensamento e do espaço, termina por afirmar,

como evidência primeira, anterior a todo raciocínio, a realidade do espírito.” (JAPIASSU, 1991, p. 96)
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1. A física cartesiana reduz a matéria à extensão.4


2. A sistematicidade de sua física se deve à unidade de seu objeto, ou
seja, o mundo. Esta unidade, por sua vez, significa que “a matéria de todos os
objetos visíveis ou invisíveis, de todos os fenômenos, é sempre idêntica”.
3. A tese fundamental e primeira dessa nova física é a da
homogeneidade da matéria, o que faz com que essa nova física dependa
inteiramente da idéia de espaço (diferentemente da física de Aristóteles, por
exemplo, que se sustenta sobre “o poder do lugar”) ou, mais exatamente, de
extensão.
4. A física cartesiana não só está ligada à metafísica 5, mas é de
inspiração metafísica, pois somente a metafísica confere à ciência e à moral
fundamentos certos.
5. Descartes abre caminho para a aceitação da idéia simétrica da
alma como puro pensamento ao “desespiritualizar a natureza e ao reduzir seu
conceito ao de matéria extensa em comprimento, largura e profundidade:
[segundo ele], ‘o mundo é composto de matéria como ou à maneira de uma
máquina’”. Ou seja, “com o modelo da máquina, o inteligível se torna visível”.

4 Segundo Descartes, a única propriedade da matéria é a extensão que, por sua vez, é
constituída por comprimento, largura e profundidade. Ver também a nota 5.

5 Conforme BARROSO, 1999, [Do gr. metà tà physiká, 'depois dos tratados da física'.] S.
f. 1. Filos. Parte da filosofia, que com ela muitas vezes se confunde, e que, em perspectivas e com

finalidades diversas, apresenta as seguintes características gerais, ou algumas delas: é um corpo de

conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que se procura

determinar as regras fundamentais do pensamento (aquelas de que devem decorrer o conjunto de

princípios de qualquer outra ciência, e a certeza e evidência que neles reconhecemos), e que nos dá a

chave do conhecimento do real, tal como este verdadeiramente é (em oposição à aparência). [Cf.

ontologia.] 2. Hist. Filos. Segundo Aristóteles (v. aristotelismo), estudo do ser enquanto ser e

especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. 3. Sutileza ou

transcendência do discorrer.
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6. O corpo humano é considerado uma máquina: os órgãos corporais,


assim como as engrenagens de um relógio, “não possuem neles mesmos nenhuma
disposição natural para se unir uns aos outros”. Em decorrência afirma que o corpo
não possui uma natureza, ou seja, “um conjunto de propriedades específicas e
inerentes a ele”.
7. “Os animais e os corpos dos homens são como máquinas, porque
não pensam e agem por automatismos. Só o homem pensa, porque somente ele
fala, possui uma linguagem”, o que possibilita que os homens se reconheçam
unicamente pela mediação da linguagem.
8. A tradição aristotélica afirma que o homem é um “animal racional,
um ser que possui, além das funções comuns aos seres vivos, a razão”. Mas, para
Descartes, “a razão não é uma faculdade que se acrescenta à natureza animal: ela
não é algo a mais que a natureza, mas algo de inteiramente outro (diferente),
uma não-natureza, uma liberdade de pensar.”
9. Segundo Descartes “...a perfeição do homem se deve à sua
imperfeição, enquanto que a imperfeição do animal se deve ao fato de ser, num
certo sentido, perfeito, acabado” (como uma máquina, pronto para funcionar). “...A
razão se encontra toda ela em cada homem que possui, pelo fato mesmo da
linguagem, toda a humanidade. O homem fala porque ele pensa, e não porque ele
sente a necessidade de falar.”
10. “Descartes afirma categoricamente que a única propriedade da
matéria é a extensão (comprimento, largura e profundidade)” e que “toda natureza
se reduz à matéria”. Em decorrência, “a única conduta que devemos ter em relação
à Natureza, é a de tornarmos seus ‘mestres e possuidores’, pois o objetivo da
filosofia é o de trabalhar a fim de fornecer aos homens os meios para se tornarem
seus ‘dominadores’”. Mas, apesar de ser um “intransigente mecanicista", Descartes
sente a imperiosa necessidade de provar previamente a imaterialidade e a
imortalidade da alma humana”, o que pode ser traduzido nas seguintes etapas: a)
“os seres humanos são seres que pensam e raciocinam”; b) “os animais não
pensam nem raciocinam” e, portanto, não possuem, “como os homens, uma alma
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imortal ou espírito. São simples autômatas”; c) partindo da demonstração de “que


todos os fenômenos da natureza são explicáveis pelo comportamento da matéria
inerte”, Descartes estabelece “tanto o caráter de autômata dos animais quanto a
natureza imaterial do espírito humano. O corpo humano, enquanto matéria, nada
mais é que uma máquina. O espírito, porém, substância inteiramente distinta do
corpo, é imaterial”. d) Desta forma, Descartes desencanta o mundo uma vez que
rejeita toda explicação que se sustente ou faça apelo às “forças ocultas ou
misteriosas: (...) Deus e os anjos não intervêm no mundo mecânico”.

2.1.1 Considerações sobre o método cartesiano

Hilton JAPIASSU (1991, p. 101) prossegue, tecendo uma sucinta descrição


do método cartesiano:

Para construir sua cosmologia, Descartes insiste na absoluta necessidade de apoiar-


se em princípios fundamentais “tão claros e tão evidentes que o espírito humano
não pode duvidar de sua verdade quando se aplica com atenção a considerá-los”.
Ademais, pretende possuir uma metodologia conduzindo infalivelmente à verdade
sobre o mundo natural. O espírito que procede com precipitação, sem um método,
jamais chega à verdade. Em contrapartida, aquele que avança com passos lentos e
seguros, com um bom método, terá um conhecimento maior do mundo natural.
Em síntese, a essência desse método consiste em reconhecer que, na resolução
de um problema, duas coisas devem ser evitadas: a precipitação e os
preconceitos. Somente as idéias claras e distintas devem ser aceitas como
verdadeiras: Deus, que não me engana, não permitiria que elas fossem falsas. Cada
problema deve ser dividido em tantas partes separadas quanto possível.
Devemos passar gradualmente das coisas simples às mais complexas. Enfim,
devemos nos assegurar, por recapitulação exaustiva, que nada de essencial foi
omitido. Uma vez estabelecidos esses princípios fundamentais de sua cosmologia,
Descartes declara que deles pode ser deduzido6 tudo o mais (2ª parte do Discurso

6 Conforme BARROSO, 1999, dedução: [Do lat. deductione.] S. f. 1. Ação de deduzir;


subtração, diminuição; abatimento. 2. O que resulta de um raciocínio; conseqüência lógica; ilação,

inferência; conclusão. 3. Lóg. Na lógica clássica, raciocínio que parte de uma ou mais premissas gerais

e chega a uma ou mais conclusões particulares. 4. Lóg. Na lógica formal contemporânea, raciocínio

cuja conclusão é necessária em virtude da aplicação correta das regras lógicas. [Cf., nas acepç. 3 e 4,

indução (2).] 5. Lóg. Método dedutivo. [Cf., nas acepç. 3 a 5, demonstração (6), prova (18) e
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do método).”

Prosseguindo com suas reflexões, Hilton JAPIASSU (1991, p. 101-105)


afirma que “a única idéia clara e distinta da matéria, em Descartes, é a que brota da
seguinte explicação: ‘A natureza da matéria, ou do corpo tomado em geral, consiste
somente em ser uma substância extensa em tamanho, largura e profundidade...’”. E
que “o fundamento da existência do mundo exterior repousa na veracidade divina” (o
que evidencia o aspecto metafísico do pensamento cartesiano). Segundo o autor,
Descartes “está convencido de que existem corpos que se encontram verdadeiramente
no mundo.” Trata-se, agora, de “conhecer as razões que levam a ter deles uma ciência
certa”. Descartes faz essas afirmações em um texto de Princípios de Filosofia (I, II):

Primeiramente, nós experimentamos em nós mesmos que tudo o que sentimos vem
de alguma outra coisa que nosso pensamento; porque não está em nosso poder fazer
que tenhamos um sentimento em vez de outro, e que isto depende desta coisa,
segundo ela toque nossos sentidos. É verdade que poderemos nos inquirir se Deus,
ou qualquer outro que Ele, não seria essa coisa; porque sentimos, ou antes, porque
nossos sentidos nos excitam freqüentemente a perceber clara e distintamente, uma
matéria extensa em longitude, largura, profundidade, cujas partes têm figuras e
movimentos diversos, donde procedem os sentimentos (percepções) que temos das
cores, dos odores, da dor etc., se Deus apresentasse à nossa alma imediatamente por
Ele mesmo a idéia dessa matéria extensa, ou somente se ele permitisse que ela
fosse causada em nós por alguma coisa que não tivesse extensão, figura nem
movimento, não poderíamos encontrar nenhuma razão que nos impedisse de crer
que lhe apraz enganar-nos; porque nós concebemos essa matéria como alguma
coisa diferente de Deus e de nosso pensamento, parece-nos que a idéia que temos
dela se forma em nós por ocasião dos corpos de fora, aos quais ela é inteiramente
semelhante. Deus não nos engana, porque isto repugna à sua natureza. Portanto,
devemos concluir que há uma certa substância extensa em longitude, largura e
profundidade, que existe presentemente no mundo com todas as propriedades que
conhecemos manifestamente pertencer-lhe. E esta substância extensa é o que
chamamos propriedade do corpo (matéria), ou de substância das coisas materiais.

No entender de Hilton JAPIASSU (1991, p. 105-106), esta passagem deixa


claro que:

raciocínio (4).
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Para Descartes [assim como para praticamente todos os filósofos mecanicistas do
século XVII], o Universo se apresentava como algo límpido aos olhos da Razão. E
excetuando-se Deus e o espírito humano, tudo o mais era explicado em termos
quantitativos. O mundo totalmente mecânico era um mundo despojado de toda
criatividade e de toda vontade imanente, de toda sensibilidade e de toda
consciência, de toda simpatia e de toda antipatia, de todo calor e frio, de toda
beleza e feiúra, de toda cor, sabor e odor. Numa palavra, era um mundo feito única
e exclusivamente de matéria em movimento. Mundo sem mistério e sem vida,
completamente estéril, no qual todos os fenômenos são explicados por um
mecanismo visível, não por forças ocultas como as utilizadas pela magia natural.
(...) [Portanto], se a matéria não tinha mais nem sensibilidade nem consciência,
tornava-se impossível uma apropriação do mundo por via imaginativa. A filosofia
mecanicista explicava a natureza de outro modo: deveríamos comandá-la pela
simples justaposição ou fracionamento da matéria.

Todas as características descritas acima dão indícios, portanto, de que é na


filosofia cartesiana que encontramos (a síntese) (d)os princípios teóricos em que se
baseiam o pensamento, a filosofia e a ciência modernas. Em sua principal e mais
importante obra, O discurso do método7, Descartes procura demonstrar, tendo como
ponto de partida a sua própria experiência, como se pode conhecer a verdade e como
colocar as nossas crenças e as nossas idéias à prova sem termos como referência
autoridades e diretrizes exteriores, através de um método rigoroso de
procedimento. Tal método teria como propósito fundamentar os princípios de todas
as verdades que o espírito humano tem capacidade de saber. Para a sua época essa
postura e essas idéias eram vistas como novas e revolucionárias 8.

7 Muito embora O discurso do método tenha se tornado um dos grandes “clássicos” da filosofia, sua proposição original não era ensinar filosofia, mas sim
um método que servisse de introdução à ciência.

8 Hilton JAPIASSU (1991, p. 95) questiona esta “originalidade revolucionária” da


filosofia de Descartes, afirmando que a lenda filosófica atribui a ele, equivocadamente, a invenção da

nova filosofia e a inspiração fundamental do mecanicismo. “[Mas ele] não pode ser [assim]

considerado nesse domínio como um criador. Quando ele começa a defender uma posição mecanicista,

notadamente em Discours de la méthode (1637), outros já vinham postulando-a com bastante vigor.

Mas é ele que leva a fama de fundador da filosofia mecanicista: um erro de interpretação histórica
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Descartes pretendia aplicar esse método (que se exemplifica pela geometria


analítica, disciplina esta que segue a ordem real das coisas e enumera com exatidão as
dificuldades) verificando se a idéia posta em questão é intrinsecamente coerente, e se
é, sobretudo, clara e distinta. A exatidão do conhecimento matemático é devida à
natureza mesma de sua terminologia, à ordenação de suas demonstrações e à
necessidade de suas conexões. Seguindo os mesmos procedimentos matemáticos da
geometria analítica, o método cartesiano traz todos as prerrogativas para a
formulação de certezas, sejam elas metafísicas, lógicas ou morais.
O método tem como principal objetivo o bem encaminhar e a procura da
verdade nas ciências e de um conhecimento seguro de todas as coisas. O universo
era considerado por Descartes o lugar onde toda a filosofia estava escrita em
linguagem matemática, sendo que a sua interpretação dependeria do fato de nos
familiarizarmos com os caracteres em que essa linguagem está escrita. A interconexão
existente entre todas as coisas do universo seria demonstrada pela Matemática
Universal; o mundo demonstraria ter uma ordem fundamental, uma ordem matemática,
apesar da aparente falta de sistema e da multiplicidade de detalhes. A resolução dos
problemas e das dificuldades seria alcançada pelo contínuo raciocínio ordenado. Pela
prática habitual do método o ser humano conheceria mais clara e nitidamente as idéias
fundamentais que são inatas na alma (assim como as da matemática) e que se
encontram num patamar superior àquele em que se encontram as idéias derivadas dos
sentidos ou criadas pela imaginação. O estatuto de sábio poderá ser alcançado se a
pessoa se propuser a seguir o método, utilizando-se de uma vontade forte e confiante e
fazendo uso da razão da maneira mais adequada possível. A sabedoria, assim, exige
duas disposições para que seja alcançada: a primeira, que a compreensão e o

torna-se uma verdade histórica. Na verdade, a ‘nova filosofia’ não é descoberta por Descartes. No

dizer do historiador das ciências Robert Lenoble, o mecanicismo surgiu ‘do encontro de um desejo do

espírito como os resultados que assegurariam as primeiras pesquisas matemáticas sobre a natureza.’”
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entendimento conheçam tudo o que é bom; e, segundo, que haja disposição da


vontade em seguí-los.
Mas, para o exame da verdade, faz-se necessário colocar todas as coisas em
dúvida (“dúvida sistemática”)9, tudo aquilo em que verificamos o menor resquício de
incerteza. O mínimo de dúvida já é condição suficiente para admitirmos
(qualificarmos) como falsa qualquer coisa que - caso descubramos ser manifestamente
verdadeira e apesar de tal precaução - consideremos muito certa e a mais fácil que é
possível conhecer.
Desta forma, ao duvidarmos de tudo quanto existe no universo, não
podemos, segundo o método cartesiano, supor que não existimos. Logo, conclui-se que
a proposição eu penso, logo existo seja necessariamente verdadeira, todas as vezes em
que seja possível enunciá-la ou concebê-la no espírito.
Descartes considerava que essa atitude se constituiria no primeiro passo para
o conhecimento da natureza da alma, enquanto substância inteiramente distinta do
corpo. Mas para a existência da alma não seria necessária uma extensão10, não se faria
necessário, também, o estar em algum lugar, bem como não seria necessário nada que
se pudesse atribuir ao corpo: “somos” e “existimos” única e simplesmente porque
pensamos.11 Este seria também o meio mais propício para se conhecer perfeitamente
todas as coisas que o ser humano tem capacidade de saber, tanto para o

9 O método cartesiano submete à dúvida todo o conhecimento tradicional, as impressões


dos sentidos e até o fato de termos um corpo, chegando a algo de que não se pode duvidar: ou seja, a

existência de si mesmo como pensador.

10 Em Descartes, a concepção de natureza inclui dois domínios separados: a res cogitans,


a “coisa pensante”, o domínio da mente; e a res extensa, a coisa extensa, o domínio da matéria.

11 Ou seja, no entender de Descartes, a essência da natureza humana reside no


pensamento.
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encaminhamento de sua vida, assim como para manutenção de sua saúde e a criação
de todas as artes.12
Para Descartes a idéia de um ser todo perfeito compreendia uma existência
necessária e eterna, não admitindo que o ser humano pudesse ser a causa de si mesmo:
atribuía essa causa a Deus, o “absolutamente outro”. Consequentemente, a ordem
universal e o fundamento máximo que explicaria a existência, seria o próprio Deus que
teria como atributos a verdade e seria a fonte de toda luz. Por esse motivo, seria
inconcebível que Ele nos enganasse, nos ludibriasse. 13 A clareza das coisas que
conhecemos, incluindo aqui o mundo sensível, nos capacitaria a considerá-las como
verdadeiras. No mundo percebido pelos nossos sentidos, cada substância teria uma
qualificação principal: a da alma, o pensamento; a do corpo, a extensão.14
Pelo fato de ter ressaltado o papel e a força da razão, colocando a clareza e a
distinção como critérios únicos para se chegar à verdade, e por ter mostrado interesse
pelas novas ciências da psicologia e da física, Descartes foi um dos primeiros filósofos
a valorizar o desenvolvimento dos princípios metodológicos que caracterizam o
pensamento científico-filosófico do mundo moderno e contemporâneo. Além disso, o
pensamento cartesiano influiu profundamente no humanismo científico, pois foi um
dos responsáveis pela inauguração de uma nova idéia e uma nova concepção acerca do

12 Ver nota 1.
13 “No entanto, o sistema de Descartes, apesar das intenções de seu autor, ‘prepara a
morte epistemológica de Deus’, pois doravante o homem se julga capaz de assumir,

independentemente de toda ajuda externa, a responsabilidade dos diversos sistemas epistemológicos:

ele reconhece, no universo do discurso científico, sua própria criação. A razão humana reduz o mundo

a um objeto epistemologicamente unificado. Mesmo quando fala de ‘Deus’, está pensando na

‘Natureza’. Tanto a magia quanto a astrologia e a alquimia são sistematicamente denunciadas.

Instaura-se uma cruzada do espírito crítico contra a tradição e a superstição.” (JAPIASSU, 1991, p.

99)

14 Ver nota 3.
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ser humano e da natureza, eminentemente distintas daquelas que prevaleceram durante


a Idade Média.

2.2 EMPIRISMO: O NOVUM ORGANUM, DE FRANCIS BACON

A partir do século XVII os trabalhos dedicados à questão metodológica


manifestam propensão a creditar a superioridade explicativa da ciência, por oposição
às pseudociências e à especulação, ao fato de se devotar a meticulosas e rigorosas
observações15 a partir das quais se formam, via indução 16, teorias fatualmente

15 Karl POPPER, em sua obra Teh Poverty ofm Historicism, Londres, Routledge anKegan,
1976, p. 131 assinala corretamente que “...os empiristas ingleses, de Bacon em diante, concebiam as

ciências como centradas na atividade de coletar observações a partir das quais são obtidas

generalizações via indução.”

16 [Do lat. inductione.] S. f. 1. Ato ou efeito de induzir. 2. Lóg. Raciocínio cujas


premissas têm caráter menos geral que a conclusão. [V. indução completa, indução incompleta,

indução matemática]. Indução científica. Lóg. 1. Na tradição clássica, indução incompleta cuja

conclusão, não obstante, é universal e necessária, pois se estabelece por meio de procedimentos

metódicos rigorosos, que levam à descoberta de relações constantes entre objetos de uma mesma

classe ou de classes diferentes; indução amplificante, indução baconiana. 2. Na lógica formal

contemporânea, indução incompleta caracterizada essencialmente pelo caráter provável da conclusão à

qual, não obstante, admite graus rigorosamente determinados de probabilidade mediante os

procedimentos metódicos (estatísticos) utilizados. Indução completa. Lóg. 1. Raciocínio cuja

conclusão é uma proposição universal e necessária que se estabelece pelo exame de todos os objetos

de uma classe; indução aristotélica, indução formal. Indução incompleta. Lóg. 1. Raciocínio pelo

qual se estabelece uma proposição universal a partir do exame de alguns dos objetos de uma classe. [V.

indução por enumeração e indução científica. Indução matemática. Lóg. 1. Raciocínio por recorrência

(q. v.). Indução por enumeração. Lóg. 1. Indução incompleta cuja conclusão é apenas provável, pois

se estabelece a partir do conhecimento parcial e não controlado (transmitido pela tradição, por crença
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enraizadas. O racionalismo, com sua tendência a caracterizar as ciências como


sistemas dedutivos, não exerceu tanta influência sobre o discurso metodológico
corrente em virtude de jamais ter dado proeminência à problemática do
estabelecimento de linhas divisórias entre o metafísico e o científico. 17
Já a resposta baconiana ao problema da demarcação pareceu por muito
tempo óbvia e inquestionável:

Compreendi porque a equivocada teoria da ciência que tem dominado a cena desde
Bacon – segundo a qual as ciências naturais são ciências indutivas e a indução é
um processo de estabelecer ou justificar teorias através de observações ou
experimentos repetidos [grifo nosso] – estava profundamente arraigada. A razão

ou fundado em dados circunstanciais) dos objetos de uma classe. [Cf. indução científica.] Indução por

enumeração. Lóg. 1. Indução incompleta cuja conclusão é apenas provável, pois se estabelece a partir

do conhecimento parcial e não controlado (transmitido pela tradição, por crença ou fundado em dados

circunstanciais) dos objetos de uma classe. [Cf. indução científica.].

17 Descartes, considerado o arauto do racionalismo afirma (na Carta do Autor em Les


Principes de la Philosophie) que, “desse modo, toda filosofia é considera como uma árvore cujas

raízes são a metafísica, o tronco a física e os ramos que saem desse tronco são todas as outras ciências.

H. Butterfield (em sua obra Le Origini della Scienza Moderna, Bolonha, 1962, p. 116-117) faz a

seguinte observação historiográfica: “na época de Newton, e em pleno século XVIII, eclodiu uma

controvérsia entre a Escola Inglesa, que foi em geral identificada com o método empírico, e a Escola

Francesa, que exaltava Descartes e tendia a adotar o método dedutivo. Todavia, na metade do século

XVIII, a Escola Francesa, com um charme que devemos caracterizar como mediterrâneo, não só se

submete à concepção inglesa, como também na sua famosa Encyclopedie a ela aderiu de modo

decisivo colocando Bacon num pedestal...” A. Koyré (em sua obra Estudos de história do pensamento

científico, Rio de Janeiro, Forense/EdUnB, 1982, p. 16) assinala que “Bacon era moderno quando a

maneira de pensar era empirista. Mas não o é mais, numa época de ciência cada vez mais matemática,

como a nossa. Hoje, é Descartes que é considerado o primeiro filósofo moderno. Assim, em cada

período histórico e a cada momento da evolução, a própria história está por ser reescrita e a pesquisa

sobre nossos ancestrais está por ser empreendida de maneira diferente.”


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era a de que cientistas tinham de demarcar suas atividades das pseudociências
[grifo nosso], como da teologia e da metafísica, e tinham tomado emprestado de
Bacon o método indutivo como critério de demarcação.18

A vigência de tal critério de demarcação fez com que a observação tendesse a


ser encarada como a única forma de refrear nosso pendor ao especulativismo
fatualmente [ao racionalismo cartesiano, por assim dizer], vazio e de garantir a posse
de um conhecimento que, por se basear na “lógica” intrínseca dos fenômenos
[grifo nosso], pode atuar sobre a natureza transformando-a sempre que possível e
desejável (“controle prático da natureza”). É interessante notar que as duas questões
fundamentais com as quais se envolve o discurso metodológico moderno de extração
empirista – o que torna a ciência conhecimento genuíno conferindo-lhe eficácia
praxiológica? Como distinguí-la de outros projetos cognitivos como a metafísica?
[grifo nosso] – recebem praticamente a mesma resposta. A adoção de seguros
procedimentos observacionais assegura que estamos conhecendo algo sobre o qual
podemos ter alguma forma de controle instrumentalizador do poder humano sobre as
“coisas”; e esse [procedimento] cognitivo situa-se nos antípodas [em oposição] do
especulativismo prisioneiro da apraxia antecipadora [do racionalismo cartesiano,
por exemplo] [grifo nosso]...
...Convém (...) ter presente que a observação e a indução, no (...) discurso
metodológico empirista, são ambivalentemente apresentadas como o que fazem e
como o que devem fazer os sistema explicativos que pretendem ser científicos. Aliás,
o discurso do método, que emerge com a filosofia moderna, tenta se legitimar
tanto como a humilde descrição do que se passa no campo da pesquisa científica
quanto como a incisiva regulamentação de como devemos agir se pretendemos
obter [um] autêntico conhecimento suscetível de justificação [grifo nosso].

18 Extraído de K. POPPER. Autobiography, in: The Philosophy of Karl Popper.


Illinois: The Open Court Publishing, 1974, p. 62.
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...Em sua versão pioneira, o empirismo metodológico [grifo nosso]


ambiciona prover o novo instrumental de regras de investigação em condições de ser
tanto uma ars inveniendi (arte inventiva) quanto uma ars probandi (arte
comprobatória). Por atribuir os resultados e inventos até então conquistados à
combinação fortuita de coincidências, tal concepção de método científico acalenta a
ambição de estatuir um conjunto de regras cuja adequada manipulação não tem
como deixar de gerar conhecimento [grifo nosso]. Com isso, a inventividade
interpretativa e a imaginatividade criativa são concebidas como desempenhando um
papel, quando muito, residual no processo de produção das teorias, [pois] “Francis
Bacon estava fortemente convencido de que suas contribuições ao estudo lógico da
inferência indutiva tornariam a descoberta científica independente da ‘acuidade e força
da imaginação.’”
[Mas a metaciência baconiana não levou em consideração “três ingredientes
decisivos” que participam necessariamente do processo de produção científica, a
saber]:
1. A formação de hipóteses orientadoras na definição de um contexto
problemático.
2. A veiculação matemática dos conteúdos interpretativos.
3. A imaginatividade inventora de teorias unificadoras de um campo
experiencial.

Segundo HULL19 (filósofo e historiador da ciência), “Bacon supunha que a


acumulação de dados empíricos deve levar automaticamente à descoberta dessas
uniformidades naturais buscadas pela ciência. A função da ciência consistiria em juntar
experimento com experimento e registrar os resultados.”
Não podemos perder de vista que a metodologia baconiana [grifo nosso]
além de pretender ser uma ilimitada arte de invenção se apresenta também como um

19 L. W. H. HULL. History and Philosophy of Science. 4ª ed. Londres: Longmans


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aparato de justificação rigorosamente legitimador das alegações empíricas de


conhecimento. Concedida simultaneamente como “arte da invenção” e como “arte da
comprovação”, a metodologia desponta como uma espécie de panacéia da
invenção e da justificação dos resultados científicos [grifo nosso]. Deixa de haver
criação para passar a existir apenas constatação: os resultados obtidos são
conseqüências inevitáveis da aplicação das regras estipuladas [grifo nosso]. E
como não há, para o empirismo, sujeito epistêmico, uma vez que o produtor ideal de
conhecimento é simples registrador/catalogador da racionalidade incrustada nos
fenômenos investigados, é evidente que o decisivo passa a ser a existência de regras
profícuas cuja adequada manipulação não tem como deixar de conduzir conhecimentos
novos. Essa exagerada confiança nas regras faz com que o ritual de produção de
conhecimentos seja submetido a rígidos procedimentos absolutizados em sua força
inventiva e em sua capacidade justificadora. Essa fé nas regras metodológicas, que
viria a se mostrar crédula, é exacerbada pelo implícito normativismo
caracterizador das formulações metodológicas pioneiras da filosofia moderna
[grifo nosso].20

20

Alberto OLIVA (1990) continua seu raciocínio com a seguinte argumentação: “Afinal,

nesse período, o que é normativo tende a passar por descritivo em razão de, estando a ciência em seus

primeiros passos de desenvolvimento, não poder ser a história da ciência invocada como fonte de

evidências a favor dessa ou daquela perspectiva epistemológica. (...) A observação e a indução,

pretensamente definidoras da racionalidade científica, são também consideradas contituidoras da

racionalidade metacientífica. (...) Observamos meticulosamente e generalizamos criteriosamente

quando fazemos ciência; observamos o que se passa em processos exemplares de fazer pesquisa e

universalizamos essas ‘condutas’ como cânones máximos de investigação. Desse modo, estamos

condenados a estritamente observar e generalizar tanto no nível científico quanto no nível

metacientífico.”
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2.2.1 “Os ídolos” e as “tábuas de investigação”21

...[Em que consiste] o ideal de ciência inaugurado por Francis Bacon? No


Novum Organum, encontramos, já de saída, o empenho no sentido de confeccionar um
sistema de regras de investigação capaz de proporcionar uma modalidade de
conhecimento provedora do controle instrumental sobre as realidades [grifo
nosso]. À diferença das concepções anteriores de conhecimento, que não se
preocupavam diretamente em traduzir seus aparatos interpretativos em dispositivos
praxiológicos de submissão das forças da natureza, o empirismo baconiano entende
que a efetiva compreensão da realidade desemboca necessariamente na
descoberta de mecanismos de transformação prática daquilo que investiga [grifo
nosso]. Apregoa Bacon que o homem pode tanto quanto sabe, que “conhecimento
e poder humano são sinônimos” [grifo nosso]. Por essa ótica, a ação intelectual de
identificar a racionalidade intrínseca aos fenômenos investigados propicia o virtual
poder de controlar suas formas de manifestação e ocorrência [grifo nosso]. Daí afirmar
Bacon que “a natureza só a dominamos quando a ela nos submetemos.”
...Por mais que Bacon fosse o arauto da Revolução Industrial e o
epistemólogo da cosmovisão burguesa, não podia deixar de se colocar a questão
relativa a como estabelecer linhas divisórias entre as pretensamente improfícuas
antecipações metafísicas e as explicações científicas. Como a vocação praxiológica da
ciência [da prática do fazer científico] era, no essencial, creditada ao fato de produzir
efetivo conhecimento sobre as realidades estudadas [grifo nosso], era necessário
demonstrar como se poderia obtê-lo e como se poderia diferenciá-lo das vazias
especulações antecipadoras. Segundo Karl POPPER22, “a epistemologia tradicional e a
historiografia tradicional da ciência são profundamente influenciadas pelo mito

21 As partes do texto que se referem à descrição dos ídolos baconianos foram extraídas de
BACON, 1979, p. XV-XVIII e OLIVA, 1990, 22-23. As partes do texto que se referem “tábuas de

investigação”, foram extraídas de BACON, 1979, p. XVIII-XXI.

22 K. POPPER. Congetture e Confutazioni. Bolonha: Il Mulino, 1972, p. 237.


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baconiano segundo o qual a ciência parte da observação e só, em seguida,


procedendo cautelosamente, chega às teorias.”
Bacon, no aforismo 36 do Novum organum, atribui tanto a superioridade
explicativa da ciência quanto sua eficácia praxiológica ao fato de se devotar a
cuidadosas e rigorosas observações dos fenômenos: “Resta-nos um único e simples
método de emitirmos nossas opiniões: levar os homens aos particulares e às suas séries
e ordens regulares a fim de que os homens se sintam obrigados a renunciar às suas
noções e comecem a adquirir familiaridade com as coisas.”
A observação desponta, assim, como a garantia de que não se projeta
uma racionalidade que não pertence à ordem de inteligibilidade própria aos
fenômenos sob investigação [grifo nosso]. A indução, outro traço da cientificidade,
vai possibilitar a determinação das características gerais dos fatos constituidores
dos objetos estudados [grifo nosso]. A observação - vista como único antídoto ao
especulativismo fatualmente vazio - surge em Bacon como respaldadora da
autenticidade do conhecimento e como condição de possibilidade da vocação
praxiológica da ciência [grifo nosso]. [Bacon] supõe que não seria possível
transformar a racionalidade funcional de alguma coisa sem que dispuséssemos de um
conhecimento calçado na observação de suas “condutas”. Observar é, em
conseqüência, tanto um procedimento garantidor da genuinidade epistêmica quanto
uma atividade rastreadora que vai dar embasamento ao projeto praxiológico de
controle instrumentalizador da natureza.
[Por outro lado], Bacon sabia que muitos são os obstáculos que se podem
formar ao longo da via que nos deve levar à rigorosa observação rastreadora do que
desejamos investigar. [Segundo ele], não podemos deixar de reconhecer que nossas
caracterizações dos “fatos” costumam ser prejudicadas por falhas no nível da
percepção (...) e por preconceitos em nós profundamente arraigados que nos levam a
ter visões deformadas até daquilo que mais corriqueiramente registramos. Por essa
razão, Bacon se dedica à identificação de quatro fontes tipológicas de ilusão
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cognitiva capazes de impedir o fidedigno exercício das atividades observacionais


[grifo nosso], as quais denominou “ídolos”.
2.2.1.1 Os “ídolos”

“Filósofo da idade industrial”, “filósofo da ciência planificada”, (...) Bacon


ressalta constantemente o fato de que, até a sua época, os filósofos e sábios não
trilharam o caminho de uma ciência operativa, em benefício do homem. Por essa
razão, propôs, como uma das tarefas preliminares de seu projeto, examinar
tecnicamente as causas desse erro. Em outros termos, para se conseguir o
conhecimento correto da natureza e descobrir os meios de torná-lo eficaz, seria
necessário ao investigador libertar-se daquilo que Bacon chama “ídolos” e falsas
noções.
...A palavra “ídolo” é empregada por Bacon a partir da noção vulgar de
imagem de um falso deus, da idéia de idolatria, e revela o gosto do autor por metáforas
religiosas. Para Bacon, os ídolos são de quatro tipos: “da tribo”, “da caverna”, “do
foro” e “do teatro”.

Os “ídolos da tribo” têm a ver com as prenoções e os desvios interpretativos


típicos da espécie humana (aforismos 41, 45, 46 e 52). O tipo de concepção que
tendemos a construir das coisas por sermos prisioneiros da condição humana tende a
gerar distorções antropomorfizadoras. NossaS apreensões da realidade incorrem
comumente numa modalidade de pré-juízo projetador através do qual conferimos aos
fenômenos “racionalidades” que não lhe pertencem.23
Já os “ídolos da caverna” (aforismos 42, 49, 53 e 58) concernem à natureza
singular de cada um, às idiossincrasias, aos acidentes vivenciais típicos de cada
história de vida, aos defeitos peculiares a cada indivíduo, ao impacto sobre cada um

23 Há, por exemplo, a forte tendência a acreditarmos no que desejamos que as “coisas”
sejam, (...) nos fazendo atribuir regularidades não constatadas; a supor, por exemplo, que se um sonho

se tornou realidade, todos os sonhos são proféticos, fechando nossos olhos a eventuais casos contrários

etc.
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dos padrões de educação socialmente transmitidos, gerando modos singulares de sentir


e apreender a realidade. O pequeno mundo do qual cada um de nós está enclausurado
aparece-nos como o Mundo, o que faz com que manifestemos propensão a dar
destaque ao que nos proporciona satisfação.
Os “ídolos do foro” são gerados pelos diferentes processos interativos
(aforismos 43, 59 e 60). Como os homens se associam primacialmente através das
palavras, muitos dos equívocos comunicativos repousam no mau uso das línguas. Os
homens se acreditam senhores das tramas expressivas a que recorrem, quando as
línguas têm uma lógica própria que, em inúmeros casos, foge ao controle de seus
usuários. As solenes disputas filosóficas não passam, o mais das vezes, de
controvérsias decorrentes do uso logicamente problemático das palavras ou da simples
falta de substrato empírico para o que se afirma. Daí a necessidade de buscarmos
definições claramente veiculadas por mais que tenhamos, a partir de determinado
ponto, de recorrer aos “fatos” particulares com vistas a controlarmos o valor
expressivo de nossas definições. (...) Os “ídolos do foro” só serão efetivamente
rechaçados se deixarmos de discorrer sobre nomes de coisas inexistentes, e se não
apelarmos a nomes de coisas existentes mas confusamente expressas, mal definidos e
irregularmente abstraídos das coisas...
Os “ídolos do teatro” (aforismos 44,61, 62, 95 e 100) são dogmas gerados
por sistemas filosóficos que se insinuam no intelecto humano como verdades
indisputáveis sem que se mostrem efetivamente capazes de proporcionar uma
descrição do real tal qual é. Bacon enumera três tipos de falsas filosofias: a sofística, a
empírica e a supersticiosa. Os filósofos metafísicos tradicionais são vistos como
aranhas: forjam teias de grande engenhosidade e perfeição formal a partir de seus
próprios corpos, deixando de manter contato com o real. Já os alquimistas e
“empíricos rústicos”, que se dedicam à coleta de grande quantidade de fatos casuais
sem jamais alcançarem uma estrutura interpretativa coerente e apreendedora da efetiva
racionalidade dos fenômenos, são como formigas que reúnem materiais empíricos sem
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seleção, amontoando-os sem unidade. [Para Bacon], o verdadeiro filósofo científico


[deve empenhar-se na] (...) coleta de dados, judiciosa classificação, generalização
atenta, sobretudo à possibilidade de se manifestarem casos contrários que tem se
configurado como regularidade constatada [grifo nosso].
Uma vez identificadas e neutralizadas as matrizes geradora das prenoções,
feita a catarse dos erros modelares, pode o cientista dedicar-se à mais pura atividade de
observação e de inferência indutiva imbuído da certeza de que fará o registro
estritamente decalcador da racionalidade embutida nos fenômenos formadores de seu
domínio de investigação. Se debelamos a eventual ação perniciosa dos “ídolos”,
passamos a estar em condições de capturar a inteligibilidade própria aos fenômenos
sem a interferência de fatores antropomorfizadores, idiossincráticos, geradores de
equívocos expressivos e de distorções filosóficas...

2.2.1.2 As “tábuas de investigação”

A teoria dos “ídolos”, por sua riqueza e profundidade, subsiste como um dos
aspectos mais fascinantes da filosofia baconiana. (...) Contudo, dentro do projeto
grandioso elaborado por Bacon, essa teoria ocupa uma posição preliminar e constitui a
“parte destrutiva” [de sua metaciência]. A “parte construtiva” começa com a
formulação de um método de investigação da natureza, que permitiria um correto
conhecimento dos fenômenos: partindo-se dos fatos concretos, tais como se dão na
experiência, ascende-se às formas gerais, que constituem suas leis e causas. Esse
procedimento chama-se método indutivo.
A teoria da indução, tal como exposta no Novum organum, distingue
inicialmente experiência vaga e experiência escriturada. A primeira compreende o
conjunto de noções recolhidas pelo observador quando opera ao acaso. A segunda
abrange o conjunto de noções acumuladas pelo investigador quando, tendo sido posto
de sobreaviso por determinado motivo, observa metodicamente e faz experimentos.
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Este último tipo constitui o mais importante e o ponto de partida para a constituição
das tábuas de investigação, núcleo de todo o método baconiano.
A primeira tábua de investigação é a de presença ou de afirmação [ou
“verificação das ocorrências positivas”]. Nela são colocadas todas instâncias de um
fenômeno que concordem por apresentar as mesmas características...
[A segunda tábua consiste na verificação daqueles] casos em que o
fenômeno não ocorre. Constrói-se, assim, a tábua das ausências ou da negação...
A terceira tábua é a das graduações ou comparações, que consiste na
anotação dos diferentes graus de variação ocorridos no fenômeno em questão, a fim de
se descobrirem possíveis correlações entre as modificações...

...Segundo vários intérpretes, Bacon aproxima-se (...) daquilo que outros


filósofos posteriores (Locke, por exemplo) chamariam de propriedades primárias da
matéria, por oposição às qualidades secundárias. As propriedades primárias seriam a
extensão, a figura, o número e a impenetrabilidade. Bacon não chega a formular tal
teoria, mas fica bem claro em seus textos (...) que [ele] pensara naquelas propriedades
essenciais dos objetos, sem as quais eles deixariam de ser objetos.
Admitindo-se como válida essa aproximação entre Bacon e alguns filósofos
posteriores, chegar-se-ia a uma interpretação de sua filosofia como expressão de um
mecanicismo e de um materialismo. Não é por acaso que Bacon manifesta grande
admiração por Demócrito, o criador do mecanicismo antigo, chegando a colocá-lo
muito acima de Platão e Aristóteles. Mais importante, contudo, que o mecanicismo –
comum à maior parte das filosofias do século XVII - é o seu naturalismo, ou seja, a
idéia de que as qualidades naturais são estabelecidas por via empírica e
experimental, e não por via especulativa, com os pressupostos da metafísica
tradicional.

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