2 Os elementos dissemelhantes na conceitualização da cultura e a própria
3 variedade cultural, a datar das narrativas e de estudos da Antiguidade, dispuseram de 4 enfoque patente na edificação literária, pelos historiadores, e no cerne do imaginário do 5 homem, acompanhando a trajetória e o reconhecimento da Antropologia enquanto 6 ciência. Nesse transcurso, Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e James George 7 Frazer, principais expoentes do evolucionismo cultural no século XIX, tomam destaque 8 na definição dos fundamentos de um saber antropológico ainda difuso, partindo de suas 9 concepções individuais, mas por meio de aspectos congêneres no tocante à incipiência 10 desse campo do conhecimento. 11 A Antropologia, nesse cenário, pautada na observação descritiva do 12 desenvolvimento cultural das sociedades através do tempo, empregava o método 13 comparativo na separação e classificação hierárquica das culturas “não-européias” em 14 estágios evolutivos. Toda essa estrutura, no entanto, é abalada com a chegada do 15 rearranjo alocado pelas ideias do antropólogo polaco Bronislaw Malinowski, 16 considerado pai da Antropologia Social britânica, que introduz um método inovador no 17 exercício antropológico, fundamentado na coleta de dados pela observação 18 participante, in loco, no trabalho de pesquisa de campo. 19 Obra sua de maior repercussão, no sentido de romper com os conceitos 20 antropológicos da época, Os Argonautas do Pacífico Ocidental configura o resultado de 21 um trabalho monográfico diligente, publicado em 1922, e representa, por isso, um 22 ponto de ruptura na história da Antropologia, uma vez que articula o levantamento de 23 dados etnográficos à reflexão teórica e propõe o estudo da cultura em sua totalidade, 24 não fragmentada – isolando, quando necessário à análise, particularidades da natureza 25 humana. Nesse projeto, Malinowski intercala sua pesquisa de campo na Nova Guiné, 26 no limiar da Primeira Guerra Mundial, com estadias na Austrália, tendo como objeto de 27 estudo a verificação empírica da vida nativa em sua integridade naquelas regiões. 28 Grande parte do tempo, queda-se nas Ilhas Trobriand. 29 A necessidade de explanação da metodologia utilizada no ajuntamento do 30 material adquirido em uma dada pesquisa etnográfica é salientada pelo autor ainda na 31 introdução da obra, que reitera ser de grande relevância apresentá-la ao leitor de forma 32 clara, sem “obscuridade”, o que facilita, adiante, a compreensão do caminho 33 metodológico traçado por ele. 34 Em Argonautas, visualizamos essa colocação por meio de três disposições 35 principais: a orientação do observador com base nos critérios e normas da etnografia 36 moderna, devendo ele, portanto, conhecê-la bem, especialmente pela utilização de 37 objetivos genuinamente científicos; a providência de condições adequadas à atividade 38 do etnógrafo, sendo, portanto, necessário a este viver efetivamente entre os nativos e, 39 por conseguinte, distanciar-se do homem branco; e a própria manipulação 40 sistematizada do material registrado a partir dos métodos designados pelo investigador. 41 No que se refere à segunda indicação, Malinowski ressalva a importância do 42 estreitamento das relações de contato com os nativos, o que só pode ser feito a partir da 43 vivência cotidiana em suas instalações, especialmente considerando as dificuldades 44 iniciais que se dão nesse processo. Sua chegada na aldeia, que viria depois a culminar 45 numa relação harmoniosa e de caráter progressivo, é naturalmente concebida por 46 primeiras impressões de estranhamento mutual. 47 No seu caso, essa dificuldade foi acentuada pelo desencorajamento advindo de 48 outros homens brancos, que há muito viviam ali, tendo eles várias oportunidades de 49 interação com os nativos, mas que nada sabiam a seu respeito, e pelo próprio 50 condicionante da comunicação – por não saber, a princípio, falar a língua nativa, ele 51 dependia de traduções um tanto superficiais e de outros desdobramentos da linguagem. 52 Esses e outros exemplos são alocados no texto a medida em que o antropólogo narra o 53 seu processo de adaptação à vida tribal e enquanto se consolida uma relação de 54 confiança das tribos para com ele, na investigação de seus hábitos e costumes, crenças 55 e rituais, relações de trabalho e família, etc. 56 Nesse encadeamento, surgirá como temática de abordagem principal do livro a 57 dinâmica de funcionamento do Kula, fenômeno demonstrado pelo autor como a 58 expressão nativa de valor maior, definindo-se por um sistema de trocas intertribal que 59 ocorre num conjunto de ilhas geograficamente situadas em uma espécie de circuito de 60 navegações, e que incorpora significado material e simbólico. 61 A prática do Kula, no entanto, não é levada a fundo nessa parte introdutiva. 62 Todavia, é importante mencionar a navegação como atividade de grande atuação 63 nativa, de onde se toma referencia já no próprio título da obra. A expressão 64 “argonautas” pode remeter, a primeira vista, aos tripulantes e heróis lendários da nau 65 Argo, no tocante à mitologia grega. As técnicas de navegação, pelos trobriandeses, são 66 mantidas enquanto determinante cultural, também como símbolo de sustentação dessa 67 instituição – o Kula. 68 Retomando a discussão metodológica, aspecto que dá forma à introdução de 69 Argonautas, é interessante salientar que Malinowski sobressalta a importância da busca 70 e condução, pelo investigador, da sua “presa”, chegando, dessa forma, aos métodos 71 mais adequados e persuasivos da verificação de depoimentos etnográficos. Para tal, é 72 pertinente que o etnógrafo procure aspiração nos resultados recentes das pesquisas 73 científicas. Nesse quesito, o autor enuncia que o fato de se estar devidamente 74 atualizado e até mesmo “treinado” teoricamente não implica necessariamente em 75 carregar ideias e noções preconcebidas. 76 As concepções provenientes do senso comum, preestabelecidas de alguma 77 forma, são danosas em qualquer aplicação, especialmente na elaboração de um trabalho 78 científico. No entanto, a obra levanta o detalhe de que a presunção de problemas é, na 79 verdade, uma espécie de talento do investigador, uma vez que as adversidades se 80 revelam justamente pela instrução teórica. Malinowski diz ainda que a Etnologia 81 lançou ordem e luz num terreno de caos aparente, o que geralmente acontece quando 82 determinado setor é explorado apenas pelo interesse amador. 83 Essa reflexão, uma vez que deságua no estudo das comunidades nativas, coloca 84 em discussão o termo “selvagem”. Comumente, a referida expressão existe no 85 imaginário popular na tradução da tribo, num ambiente natural de fauna e flora em 86 destaque, vivendo de qualquer maneira e guiada pela vontade momentânea e “crenças 87 fantasmagóricas”. Isso se dá pelo fato de que a figura do selvagem, refletida no nativo, 88 é geralmente confundida com a ideia de liberdade irregular, sem nenhuma limitação. 89 Na verdade, a ciência moderna tem demonstrado que, ao contrário do que se 90 pensa, as instituições nativas são muito bem ordenadas e definidas, e que a sua 91 estrutura é condicionada por relações complexas de parentesco e de pertencimento 92 clânico, onde são alocados privilégios e deveres tribais intimamente ligados à sua 93 organização comunitária. Segundo Malinowski, o nativo desfruta também de um 94 conhecimento do mundo exterior suficientemente capaz de guiar suas atividades. 95 Adiante, é colocado que etnógrafo deve fornecer uma esquematização clara e 96 firme da constituição social do grupo estudado, interessando ressaltar as leis e normas 97 internas e os fenômenos culturais ali presentes. A vida tribal, nesse sentido, deve ser 98 pesquisada em todos os seus aspectos, em sua amplitude e dimensão. Nesse ínterim, 99 toma destaque, por exemplo, a consistência religiosa que integra boa parte dos 100 processos do cotidiano dos trobriandeses, revelada por meio da magia e dos rituais, 101 especialmente na prática do Kula, já mencionado anteriormente. É importantíssimo 102 reconhecer que cada um desses aspectos contribui significativamente para a construção 103 coesiva do todo, e que a tentativa de isolar apenas um campo de pesquisa pode 104 prejudicar seriamente o trabalho etnográfico. 105 É fundamental salientar que cada fenômeno deve ser estudado dentro da sua 106 gama de possibilidades de manifestação, pelo detalhamento de cada exemplo colocado. 107 Sintetizando, portanto, a primeira das três disposições metodológicas incitadas no 108 início do texto, os resultados obtidos aí devem ser dispostos em formato de tabela 109 sinóptica, que deve atuar como extensão do estudo íntegro da vida nativa. Analisando 110 as relações de parentesco, nessa linha de pensamento, Malinowski elucida a maneira 111 pela qual o etnógrafo deve organizar as “provas” conseguidas na pesquisa de campo – 112 nesse caso, expressando-as por meio de tabelas genealógicas. 113 No trabalho etnográfico, o pesquisador não deve coagir ou influenciar o 114 comportamento nativo sob nenhum aspecto, o que pode ocorrer, por exemplo, no caso 115 dos comerciantes e missionários, uma vez que isso torna inválido o critério imparcial e 116 objetivo da observação. Por outro lado, o acompanhamento repetitivo da forma como 117 se vive na aldeia, de seus costumes e cerimônias, permitiu a incorporação, pelo autor, 118 dos detalhes substanciais que essa experiência de campo lhe ofereceu. 119 Em cima disso, evidencia-se no texto que o etnógrafo tem a capacidade 120 trabalhística de acrescentar, nessas condições de observação, noções suas de grande 121 valor ao esboço preliminar da constituição tribal, o que acontece também pelo seu 122 esforço de “penetração na atitude mental”. A integridade da investigação abarca 123 também aspectos rotineiros daquela tribo, como é visto, por exemplo, no ato de 124 cozinhar, comer, conversar em volta da fogueira, e de expressões de amizades ou 125 tratamento hostil, o que jamais poderia ser absorvido apenas pela análise documental, 126 mas que necessita ser observado em pleno funcionamento. 127 Dando continuidade, Malinowski aponta o comportamento como um fato 128 revelante e que pode ser registrado. Negligenciar os fenômenos sociológicos que 129 constituem toda essa classe comportamental seria, portanto, um ato de insensatez. O 130 observador, por conseguinte, deve deixar os fatos falarem por si só. Nesse processo, 131 porém, ele pode incluir um acontecimento na rotina da tribo e deixar que a reação dos 132 nativos demonstre como isso os afeta, e se afeta, implicando em alterações no seu 133 comportamento, ou não. 134 Diante disso, é colocado que o nosso comportamento carrega marcas de cunho 135 específico, sendo estereotipado pelas instituições em que vivemos. É levantado, a esse 136 respeito, o questionamento seguinte: será que é possível registrar, pela observação, e 137 sistematizar estados subjetivos, mesmo partindo do princípio de que as pessoas pensam 138 e sentem de acordo com a imposição dos costumes? Observamos aí a síntese da 139 terceira prescrição metodológica presente na introdução de Argonautas: o etnógrafo 140 deverá identificar o comportamento de uma dada comunidade a partir de suas 141 instituições e aspectos culturais, e formular os resultados da forma mais convincente. 142 No seu caso, Malinowski aprendeu a língua nativa e passou a utilizá-la como 143 instrumento de pesquisa. 144 Os Argonautas do Pacífico Ocidental, nas disposições finais de sua introdução, 145 evidencia que o objetivo principal dessa atividade etnográfica, é compreender o ponto 146 de vista do nativo com relação à sua vida e visão de mundo, e contar a sua história a 147 partir da sua perspectiva. A essa altura, exprime-se claramente o caráter revolucionário 148 do trabalho de campo malinowskiano, justamente porque ele conseguiu levantar um 149 repertório intrépido, sendo pioneiro naquilo que outras personalidades da época 150 também tentavam elaborar. Doravante, o antropólogo passa a realizar também o 151 trabalho etnográfico – além da atividade etnológica, típica dos evolucionistas da 152 chamada “antropologia de gabinete”. 153 Finalmente, Malinowski notabiliza que, nas diferentes sociedades, os homens 154 possuem, por conseguinte, diferentes costumes e interesses, e isso os move, cada um a 155 sua maneira, em busca da felicidade. Essa observação em muito me remete às 156 colocações do filósofo francês André Comte-Sponville, em “A Felicidade, 157 Desesperadamente”, de 2000, que por sua vez reflete a “felicidade em ato”, a partir da 158 qual deveríamos aprender a desejar aquilo que já possuímos. Isso seria a felicidade pela 159 sabedoria. 160 Pelo que se pode perceber na sua introdução, a leitura de Argonautas é facilitada 161 pela fluidez do linguajar utilizado, sendo esse um dos aspectos que corroboram 162 fortemente para a compreensão dos fundamentos da Antropologia no estudo inicial de 163 quem procura imergir, ao menos teoricamente, nesse universo das Ciências Sociais pela 164 análise antropológica de Malinowski. - cuja Teoria Geral do Trabalho de Campo nos 165 lega até os dias atuais. Vale salientar o seu desejo final, de que nos solidarizemos com 166 as diligências e ambições desses nativos, cuja natureza humana se exprime de forma 167 tão distante e estranha pra nós, para que ela, exatamente pelo contraste, possa acender 168 alguma luz sobre a nossa.