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SENSO INCOMUM
Eis o “fator Julia Roberts”: dizer/sustentar que o Tribunal Maior (ou qualquer SENSO INCOMUM
outro tribunal) cometeu um equívoco. Esse “fator” ou “efeito Júlia Senso Incomum: O Direito AM-DM
Roberts”[1], lamentavelmente, muito pouco vinga em terrae brasilis, onde a (antes e depois do mensalão)
doutrina-cada-vez- doutrina-menos. Dia a dia, a doutrina se “entrega” aos
que os tribunais decidem. Sobre isso muito já falei. SENSO INCOMUM
Senso Incomum: O triste fim da
Explicitado isso, sigo. ciência jurídica em terrae brasilis
As presunções e o inquisitivo
Esta é a ideia do presente texto: demonstrar que o STF erra. Por exemplo, Facebook Twitter
nossa Suprema Corte errou (pelo menos parcela dela) quando capturou a
tese de Malatesta no sentido de que “o ordinário se presume; só o Linkedin RSS Feed
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28/07/2019 ConJur Senso Incomum: O fator Julia Roberts ou quando o Supremo erra
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28/07/2019 ConJur Senso Incomum: O fator Julia Roberts ou quando o Supremo erra
Criminal? Claro que os tempos eram outros. O mundo vivia, por assim dizer,
a primeira fase do Constitucionalismo. O Brasil fizera uma opção esdrúxula,
baseada no modelo francês, sem controle jurisdicional. Além disso, a
Constituição “não se aplicava aos escravos”, que eram considerados “coisas”.
Logo, o que quer que se colocasse na lei valeria tanto ou mais do que a
Constituição, diferentemente do que já acontecera em 1803, nos EUA, com o
caso Marbury v. Madison. Mas hoje já não é assim e não pode ser assim.
As “fontes” e a “circulariocracia”
Mas, o que quero dizer com isso? O que isso tem a ver com o STF e o
mensalão? Explico. Trata-se de um problema ainda crônico no Brasil. Uma
portaria, uma circular ou uma resolução pode valer mais do que uma lei ou
a Constituição. Quantas portarias do INSS valem mais do que a CF? No
Ministério da Educação existem até “pareceres normativos” que “alteram” a
Constituição. Trata-se do império de uma “portariocracia”, uma
“circulariocracia”, configurando um imaginário “pequeno legislativo”.
Com efeito, tenho me insurgido, por exemplo, contra o valor da Portaria 75, Ad
do Ministério da Fazenda, que “introduz” um novo conceito de
insignificância para determinados delitos (claro que isso não serve para
furtos, porque estes são cometidos pela choldra, se entendem o meu
sarcasmo). A Portaria é tão inconstitucional que, seguramente, o porteiro do
STF assim a declararia (peguei-me repetindo essa frase... mas faço-o de
forma deliberada ou por chatice epistemológica).
Pois não é que uma Circular (sic) emitida pelo Banco Central serviu de base
para desconsiderar o crime de evasão de divisas imputada a dois acusados
na AP 470? Como se sabe, a acusação era de que dois dos 37 réus receberam
R$ 11,2 milhões do valerioduto e enviaram a maior parte do dinheiro — R$
10,8 milhões — para uma conta do Bank of Boston em Miami, de uma
empresa aberta pelo publicitário no paraíso fiscal das Bahamas. Coisa
chique. Nada de Panamericano ou Banco Santos. Pois ampla maioria do STF
entendeu que, in casu, não se configurou o crime de evasão de divisas. A
argumentação de quem absolveu foi a de que uma circular do Banco Central
prevê a comunicação de depósitos acima de US$ 100 mil no exterior apenas no
fim do ano fiscal, em 31 de dezembro. Logo, a Circular do BC, por assim dizer,
“descriminalizou” a conduta.
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A prova do demônio
Corretos os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. A
Portaria cria a “prova do demônio”. E torna inaplicável a Lei Federal
respectiva. Incrível. O Ministério Público jamais conseguirá provar a evasão,
porque basta que no dia 31 de dezembro o agente retire o dinheiro da conta
e recoloque no dia 2 de janeiro. E mantendo-se esse entendimento, admite-
se que uma reles Circular tenha o poder de, primeiro, alterar uma Lei,
transformando um tipo penal em norma penal em branco e, em seguida,
torná-la ineficaz! Elementar. E simples.[2]
Fiquei pensando: não pode ser tão simples assim. Li dois acórdãos do TRF-4
pelo qual se considerou inepta a denúncia do Ministério Público porque ele
não colocou o valor da evasão da malsinada data de 31 de dezembro...
Pudera. Como poderia ter colocado o valor de 31 de dezembro se o agente
havia retirado a grana da conta? Lembro aqui das ordálias: atiro o sujeito
com as mãos amarradas na água e com um peso pendurado pescoço... Se ele
flutuar, é inocente. Se afundar, é culpado. Fácil, não?
A Circular “despenalizadora”
O que quero dizer é: se a Lei Federal (art. 22 da Lei 7.492/86) diz que uma
conduta X é crime; se uma Circular diz que, em agindo de determinado
modo, a referida conduta não é mais criminosa (em outras palavras, é claro),
então é porque a Circular em tela valeu mais do que a Lei ou, no mínimo,
alterou-a, porque passou a ser lida do seguinte modo:
Para ser mais explícito e não deixar dúvidas: relendo a nova norma
exsurgida da “combinação da Lei com a Circular, tem-se que: Se, na data de
31 de dezembro, o agente informar o valor remetido (objeto do delito de
evasão), não se aplica a previsão criminal do art. 22”.
Por tudo isso, a resposta é simples: o Banco Central “legislou”. E, com essa
legislação, alterou a tipificação de parte da Lei 7.492. Consequentemente, é
inconstitucional a Circular, devendo ser assim levantada preliminarmente a
questão pelo STF. Trata-se de uma questão prejudicial: ou a constatação da
existência de antinomia entre a Circular e a Lei Federal ou a
inconstitucionalidade da Circular diante do dispositivo que estabelece a
competência do Congresso Nacional em legislar sobre Direito Penal.
O ministro Marco Aurélio quase chegou lá. Vejamos: o ministro afirmou que
pelas regras do Banco Central, os acusados não teriam cometido evasão de
divisas. Para ele, no entanto, “não é o BC que decide o que é crime, mas sim o
Congresso Nacional. Uma regra do Banco Central afirma que é preciso
declarar o que está na conta no dia 31 de dezembro”. Disse, ainda: “Há uma
regra de hermenêutica na qual a lei não distingue. Não cabe ao julgador
distinguir, sob o risco de ser um legislador.[...] Por que 31 de dezembro? Qual
a razão daqueles valores lançados, se o dispositivo legal não distingue. Quem
insere ou afasta do cenário jurídico certa prática criminosa é o Congresso
Nacional, não o Banco Central.”
O STF errou
Está correto o ministro. Mas, então, por que não inquinar de nulidade a tal
Circular? Ao não fazê-lo, a Suprema Corte errou ao absolver os acusados
pelo crime de evasão de divisas; e assim o fez, porque considerou válida
uma Circular incompatível parametricamente com a Lei Federal e a
Constituição. Daí o “fator Julia Roberts”: A doutrina deve poder dizer que a
Suprema Corte erra. Aliás, a doutrina tem o dever de assim proceder.
Sim, o STF disse ser válido um ato normativo de hierarquia inferior e, neste
caso, em face de seus efeitos, deveria inquina-lo de inconstitucional por
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O ordinário se presume?
Se houvesse controle jurisdicional de constitucionalidade na década de 30
do século XIX, o dispositivo do Código Criminal teria sido considerado
inconstitucional e milhares de escravos teriam sido poupados das penas de
chicoteamento e não teríamos as ridículas discussões do tipo “se o escravo
desmaia no segundo dia de chibatadas, recomeça-se do grau zero de
chicotadas ou os látegos são suspensivos, continuando do número em que o
escravo perdeu os sentidos”? Sim, essa foi uma questão hermenêutica
“relevante” naqueles dias.
Aliás, melhor dizendo: como o pessoal do Banco Central domina bem essa
matéria (tem expertise), presume-se (Malatesta) que deveriam saber o
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[1] Esse “fator Júlia Roberts” é utilizado há mais de 15 anos por mim e pelo
prof. Sérgio Cademartori. Em Verdade e Consenso, trasmudo essa pequena
metáfora para o contexto de um necessário “constrangimento
epistemológico”, como forma de accountabillity das decisões judiciais.
[2] Vou explicar isso: Qualquer um pode ter dinheiro no exterior, desde que
licitamente. Eu posso mandar quanto quiser para fora, desde que tenha
origem. E sem pagar um tostão de imposto para mandar. Mas quem recebe
lá fora e não declara a razão é simples: falta de origem. Caso indiscutível da
AP 470. Ora, a finalidade da incriminação é ter o dinheiro depositado,
independentemente da data. Razão? A qualquer momento eu posso querer
trazer o dinheiro para o Brasil, e o Brasil precisa ter a previsão de
contrapartida de recursos para permitir a internalização (lastro). Claro, se
eu recebi lá fora licitamente, devo pagar imposto ao entrar. Mas o Brasil
deve ter este lastro para a contrapartida. Onde está o truque? Simples:
Tenho dinheiro até 30 de dezembro. Por “precaução”, transfiro para outra
conta dia 30. Dia 2 de janeiro do ano seguinte, retorno o dinheiro para a
conta. E não cometi crime... graças a uma Circular que dispõe de forma
diferente daquilo que consta em Lei Federal.
[3] Isso é muito antigo, mas relembro aqui, para homenagear Bobbio, que,
nos termos por ele propostos, as antinomias podem ser de tipo insolúvel ou
de tipo solúvel. Há dois casos em que as antinomias se apresentam como
insolúveis: 1) quando não se pode aplicar nenhuma das regras disponíveis
para solucionar a antinomia em caso; 2) quando se podem aplicar, ao
mesmo tempo, duas ou mais estratégias de solução. Já as antinomias
solúveis, também chamadas de aparentes, são aquelas que podem ser
resolvidas pela aplicação das tradicionais regras de solução de conflito (Cf.
Norberto Bobbio. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 238-
254). Neste caso, o intérprete pode optar por aplicar as seguintes estratégias:
a) O critério cronológico – a norma posterior derroga a anterior; b) O critério
hierárquico – diante de um conflito entre normas de diferentes estratos
hierárquicos, prevalece aquela que se encontra no estrato superior; c) O
critério da especialidade – em caso de conflito entre normas que tratam de
uma mesma relação jurídica, prevalece aquela com regras mais específicas
para a situação. Por fim, calha registrar que, todo esse discurso em torno do
problema das antinomias reivindica algo que é nomeado por Bobbio de
“dever de coerência”. Esse dever de coerência pode ser analisado na
dimensão legislativa ou na dimensão judicial.
[4] Permito-me, ainda, acrescentar três coisas, aqui em rodapé, no lugar que
ninguém lerá : a) a Circular do BC é muito estranha, pois não?; b) como é
possível que, depois de tantas denúncias do MP terem sido consideradas
ineptas pelos Tribunais, a tal Circular do BC não tenha tido a sua nulidade
e/ou incompatibilidade com a Lei n. 9.492 suscitadas junto ao STF?; c) a
grande derrotada desse processo do mensalão foi a dogmática jurídica, tanto
é que a única vitória efetiva da defesa – sem tirar o brilho inegável da
atuação do Dr. Luciano Feldens (professor, mestre e doutor em direito, meu
orientando de mestrado e parceiro em livro sobre Investigação do
Ministério Público, onde, por sinal, invocamos o “fator Julia Roberts” para
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criticar uma decisão do STF nos anos 90) – deveu-se, conforme expus, a um
erro de interpretação do STF. A doutrina penal-processual-penal terá que se
reciclar. E muito. Veja-se que o principal jurista citado no mensalão foi
Nelson Hungria, cuja obra é da década de 50 do século passado e que sequer
conheceu os tipos penais postos em questão, pois faleceu em 1969. Por isso, o
Brasil é AM-DM.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em
Direito. Assine o Facebook.
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COMENTÁRIOS DE LEITORES
29 comentários
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AGRADECIMENTOS
R. Canan (Advogado Associado a Escritório)
31 de outubro de 2012, 9h21
Primeiro ao Prof. Lênio, que semana a semana nos brinda com excelentes colunas.
Segundo a "FNeto", que nos comentários apresenta notícia interessantíssima, sobre
considerar-se inconstitucional uma norma votada com "orientação mensaleira".
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