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Resumo: Neste artigo discuto o exercício da atenção enquanto elemento indispensável para a
realização da prática deliberada, no âmbito da performance musical, demonstrando a função
substancial desempenhada pela memória, bem como a influência da motivação nesse processo. É
crescente, em pesquisas acadêmicas da área de música no Brasil, o interesse pelos temas aqui
relacionados, possivelmente pelas claras contribuições que estes conhecimentos podem oferecer,
sobretudo para o músico de performance. No entanto, durante o trabalho de revisão sobre a
literatura relacionada às pesquisas acadêmicas das áreas de prática deliberada e performance
musical verifiquei a necessidade de abordar a questão da atenção com maior profundidade. Neste
artigo pretendo discutir as origens psicológico-cognitivas da atenção e sua relevância para o bom
desempenho em prática deliberada, de modo a oferecer uma contribuição teórica para pesquisas
neste campo. Para a realização deste trabalho, realizei uma revisão de literatura cotejando teorias
da música, da psicologia, da educação e das ciências da mente, em geral, visando à fundamentação
de uma teoria da atenção na prática deliberada em performance musical. Como resultado,
apresento uma hipotética estrutura que fundamenta o papel da atenção na prática deliberada.
Introdução
O conceito de prática deliberada introduzido por Ericsson, Krampe e Tesch-Römer
(1993), desde a sua assimilação vem adquirindo projeção em diversos domínios do
conhecimento. Particularmente no campo das pesquisas acadêmicas da área de música esse
conceito tem sido objeto de análise presente em pesquisas estrangeiras (Ruthsatz et al, 2007;
Krampe & Ericsson, 1996; Kenny & Gellrich, 2002) e nacionais (Alves & Freire, 2014;
Galvão, 2006; Souza, 2014; Quintério & Gloeden, 2016; Santiago, 2006; Zorzal, 2015; e
outros) dedicadas aos mais variados assuntos, como por exemplo para conhecimento e
apreciação da assim chamada performance expert, no contexto da performance musical, e
outros temas afins. Nota-se que os trabalhos que abordam a prática deliberada em particular
invariavelmente têm assinalado que atenção e/ou concentração mental são fatores
determinantes para a qualidade desta prática, sem se aprofundar, no entanto, no conhecimento
científico relativo a estes temas, nem tampouco discutir os meios para sua obtenção.
Em primeiro lugar, é necessário que se esclareça a distinção entre atenção e
concentração mental. De acordo com Castle e Buckler (2009) a atenção pode ser dividida em
“seletiva” e “dividida”. O primeiro caso estaria relacionado à “atenção focada”, ou em outras
palavras, a concentração sobre determinado objeto. No segundo, quando “dividida” e
desfocada ou desconcentrada, portanto, os autores entendem ser possível a um indivíduo
atender a determinada demanda, ainda que desconcentrado. Partindo desse pressuposto, o
presente estudo aborda o conceito de atenção, termo abrangente e difícil de delimitar,
conforme Styles (2006), e o papel desta função cognitiva para o bom desempenho do
indivíduo na prática deliberada.
A atenção vem sendo estudada por especialistas ao menos desde o final do século XIX,
tendo em William James (1890) um de seus pioneiros. Desde então, diversos autores
buscaram definir este conceito — grosso modo entendido como uma habilidade do indivíduo
de selecionar, atender e/ou responder a determinados estímulos e ignorar, voluntariamente (ou
não), outros (Styles, 2006; Broadbent, 1958; Pashler, 1998; Eysenck & Keane, 2010; Lima,
2005; Castle & Buckler, 2009) —, bem como compreender suas estruturas, limitações e
soluções para viabilizar seu melhor desempenho.
Alguns pesquisadores têm discutido a íntima relação que a atenção guarda com o
funcionamento da memória (Helene & Xavier, 2003; Cowan, 1997; Styles, 2005; Underwood,
1979), fato que ainda tem sido relativamente pouco debatido, muito embora a memória seja
indiscutivelmente imprescindível para a realização de quaisquer funções cognitivas
elementares, conforme ilustra Baddeley (1999) — este afirma que a melhor forma de entender
a importância da memória é imaginar como seria a vida sem memória. No âmbito das
pesquisas acadêmicas de música, a memória, particularmente, tem sido estudada com um
pouco mais de profundidade, ainda que não abordando a questão da atenção, por exemplo, em
trabalhos como os de Snyder (2001), Gerber (2012) ou Chaffin, Logan & Begosh (2012),
dentre outros.
Nas seções seguintes, primeiramente esclarecerei as questões referentes à prática
deliberada. Então, discutirei as origens da atenção e sua relevância para o bom desempenho
em prática deliberada. No terceiro e último tópico, destaco a importância da motivação para a
obtenção e a manutenção da atenção, além das consequentes influências sobre todo o
processo.
Prática deliberada
Definida por Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (1993), esta prática foi inicialmente
caracterizada por um conjunto de atividades práticas orientadas através do intermédio de
alguém — um professor, treinador, orientador — cuja finalidade é aperfeiçoar o desempenho
de habilidades específicas. Os autores afirmam ainda que esta atividade “requer esforço e não
é inerentemente agradável” e que “os indivíduos são motivados a praticar, porque a prática
melhora a performance”(p. 368), revelando, portanto, a importância da motivação para o
estudo deliberado e, consequentemente, para a performance musical.
Em relação ao uso do termo performance, é definida por Goldberg (1979/2006) como
uma forma de manifestação artística caracterizada pela “realização em ação”, quando o
performer se apropria de quaisquer recursos artísticos e suportes, numa relação direta com o
público. Assumindo-se esta compreensão, notória para o músico, entende-se que a música,
por sua natureza, é uma arte de performance.
Quanto à qualificação desta realização, alega-se haver um padrão de performance
caracterizado pela excelência, denominada performance expert. Por definição, a expertise
refere-se a um “desempenho superior consistente sobre um conjunto específico de tarefas
representativas para um domínio” (Ericsson & Lehman, 1996, p. 277). Alguns exemplos de
pesquisas da área de música (ou relacionados a ela) que têm abordado a expertise musical
com interesse podem ser conhecidos nos trabalhos de Krampe e Ericsson (1996), onde os
autores investigam a prática deliberada na manutenção de habilidades cognitivo-motoras em
pianistas experts e em pianistas amadores; em Santiago (2006), discute-se a integração entre
prática deliberada e o aprendizado informal da música; em Galvão (2006), que trata das
consequências da atividade musical para o desenvolvimento cognitivo e emocional das
pessoas, também em Alves e Freire (2014), interessados em discutir a performance expert de
clarinetistas, e ainda em Zorzal (2015), que propõe uma reflexão sobre a prática musical e os
aspectos práticos da preparação da performance musical, enfocando a autonomia do estudante
de instrumento—dentre outros trabalhos.
O cerne do presente trabalho encontra-se na frase sustentada pelo consagrado trabalho
de Ericsson e colegas (1993, p. 370): “é necessário manter total atenção durante o período da
prática deliberada”1, argumento presente também nos trabalhos de Souza (2014), Alves e
Freire (2014) e Galvão (2006). O que chama atenção para a centralidade do tema da atenção
na prática deliberada é, conforme observei inicialmente, a singularidade do trabalho seminal
de Ericsson e colegas, referência e denominador comum nos trabalhos que abordam, com
algum destaque, a prática deliberada. Isso revela a consistência dessa concepção, mas que, no
entanto, não aborda de forma mais substancial as origens e a manutenção da atenção, como
também, as formas como este recurso cognitivo pode ser viabilizado.
1
Tradução de: “Is necessary to maintain full attention during the entire period of deliberate practice”.
resultado pretendido e possibilitem ao indivíduo direcionar sua atenção, selecionando as
informações que serão processadas. Essa posição representa um pensamento revolucionário e
fundamental para o estudo deliberado, pois admite a possibilidade de prever a atenção, tal
como observá-la de forma consciente (meta-atenção2). Helene e Xavier defendem que
“processos controlados” ou “processos voluntários de direcionamento da atenção” (p. 16), em
oposição a processos automatizados de captação atencional, por serem processos conscientes
são utilizados em casos excepcionais de tarefas complexas, que envolvem planejamento e
demandam tempo para sua execução por grau de complexidade e/ou desafio. Por fim,
sugerem que através de um processo de automatização de tarefas complexas, como os
desafios impostos à prática deliberada — fazendo um paralelo —, poderiam aliviar a carga
atencional, melhorando a qualidade do desempenho da atividade proposta, e, por conseguinte,
da performance.
O papel da motivação
A motivação caracteriza-se como um elemento psicológico que proporciona ao
indivíduo energia para realizar determinada ação (Reeve, 2006; Ryan & Deci, 2000). Araújo
(2015) considera a motivação “fundamental para quem vivencia a experiência musical e (...) o
elemento que garante a qualidade do envolvimento no processo” e, ainda, que “o que nos leva
a agir (...) são motivos gerados no contexto da nossa vida cotidiana, (...) sejam de ordem
subjetiva ou objetiva” (p. 45). Alves e Freire (2014) defendem que é a motivação o elemento
que garante o foco atencional durante a prática deliberada, sem a qual seria improvável a
realização e a sustentação desta atividade. Para esses autores, “a prática requer muita
concentração, e a manutenção do foco no estudo é uma atividade considerada como não
prazerosa, por isso a motivação é elemento fundamental para manter o foco e sustentar os
esforços que a prática musical exige a longo prazo” (p. 79) — argumento corroborado por
outros autores (Ericsson et al., 1993; Feltovich, Prietula & Ericsson, 2006; Gomes, 2008).
De acordo com Csikszentmihaly (1997), quanto mais distante as afinidades
motivacionais e emotivas de uma pessoa para com uma situação ou objeto, mais difícil é a
capacidade de concentrar a atenção do indivíduo. Ao contrário, quando alguém gosta da
atividade que desempenha e é motivada para superar suas dificuldades, mais fluentemente a
concentração ocorre. Para esse autor, controlar a atenção significa “controlar a experiência”;
“a informação atinge a consciência somente quando atendemos a ela” e o “estresse que
2
Sobre meta-atenção, ver Loper, A. & Hallahan, D. (1982). Meta-attention: The development pf awareness of
the attentional process. The journal of general psychology, 106, p. 27-33.
experimentamos depende mais do quão bem controlamos nossa atenção, do que o que
acontece conosco” (p. 128). Csikszentmihaly consagrou-se por ter desenvolvido uma teoria
motivacional denominada “Teoria do fluxo”, segundo a qual, quando sob condições onde as
habilidades do indivíduo e os desafios impostos a este se encontram em equilíbrio, o
indivíduo atingiria um “estado de fluxo”, quando então seria possível experimentar um
intenso estado de prazer e concentração. Ele sustenta que “o fluxo é uma fonte de energia
psíquica que foca a atenção e motiva a ação” (p. 140).
Considerações finais
A prática deliberada é caracterizada pela composição de vários fatores, dentre os quais
se atribui à atenção uma importante função nesse processo, de acordo com os argumentos
evidenciados neste trabalho. É natural, portanto, que se conclua que o estudo deliberado é um
processo significativo para a construção da performance musical, e indispensável quando se
trata da performance expert.
Uma revisão de literatura em torno dos conceitos acima discutidos possibilita-nos
estruturar a fundamentação do papel da atenção na prática deliberada da seguinte forma: a
prática deliberada envolve o exercício da atenção de forma decisiva; é inconcebível entender
prática deliberada sem atenção; o processo atencional, por sua vez, está condicionado pelo da
memória, que em maior ou menor proporção determina o grau de direcionamento da atenção e
o desenvolvimento de intencionalidades na seleção de informações; a atenção, no entanto, é
apoiada pela motivação, processo que garante a manutenção e a continuidade do exercício da
ação a qual o indivíduo é submetido, revelando o complexo ciclo de ação direta da motivação
sobre a atenção, esta, sobre a prática deliberada, e, consequentemente, sobre a performance.
Referências