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VIGILÂNCIA SANITÁRIA E DEMOCRACIA

LUIZ FELIPE MOREIRA LIMA


CEBES -DIVULGAÇÃO Em Saúde Para Debate nº 7 - MAIO 92

precisa como concepção ideológica, equilibrar-se

O
s seres vivos em seu estado natural, frente à desigualdade biológica, que predispõe ao
inclusive da mesma espécie, não são iguais. individualismo.
Diante das adversidades do meio ambiente, Pelas suas evidentes vantagens à sobrevivência
da concorrência de outras espécies pelo alimento e da espécie, a cooperação e o consequente
do ataque dos predadores, alguns indivíduos são igualitarismo exigirá dos homens um
capazes de superá-las e transmitir tais habilidades à comportamento mais condescendente com o
sua descendência. A seleçâo natural favorecerá ao anonimato, surgindo desde logo uma tensão entre a
melhor adaptado, sendo a desigualdade entre os igualdade ideológica e individualismo. A
seres a mola propulsora da evolução das espécies. radicalização destas duas tendências pode levar
O aspecto da diversidade está refletido no próprio tanto à perda das vantagens intrínsecas inerentes a
cada uma delas como à soma das desvantagens,
genoma dos seres vivos e tem como apanágio a
gerando a ineficácia destas qualidades ontogênicas.
reprodução sexuada. Portanto, devemos à A igualdade a todo custo sufoca o individualismo e
desigualdade biológica, ou diversidade, o estágio leva à tirania; o individualismo extremado, à
atual da espécie humana no seu sentido alienação.
filogenético. Em qualquer dos dois casos torna-se inviável a
ajuda mútua. A ajuda mútua gera o trabalho
O Homo sapiens tem na razão uma das ferramentas
organizado, a regra social e a educação. O
mais eficazes de seu sucesso em adaptar-se ao individualismo pressupõe a liberdade para agir, a
meio ambiente. A razão, e sua consequência açâo direta e se opõe, em um sentido, à regra
natural, o conhecimento e a cultura, sobrepujaram social.
de maneira extraordinária as outras forças A produtividade excepcional do trabalho
evolucionárias tanto concorrentes quanto organizado gera a riqueza, e a necessidade da
antagônicas. Outrossim, fruto desta mesma razão, repartição e especialização do trabalho gera a
os humanos tornaram-se ainda mais bem sucedidos hierarquia; riqueza e hierarquia são as sementes do
em função da solidariedade de seus indivíduos e da poder.
ajuda mútua. Apesar de encontrarmos na natureza Ocorre que, o cooperativismo, quando perde de
outras espécies ditas sociais, o que difere o homem vista o seu conteúdo individualista, se
descaracteriza, exaltando o poder, o domínio da
destas é de sua percepção racional da
riqueza, gerando a servidão social e a escravidão.
solidariedade, para além do determinismo genético, Em oposição, o individualismo extremado leva ao
embora, "in limine", isto seja também uma herança isolamento e à ruptura da produção coletiva,
gênica. gerando a alienação. Em consequência, servidão e
A ajuda mútua racional, pela sua flexibilidade e alienação são subprodutos dos arranjos possíveis
possibilidade adaptativa, é muito mais vantajosa do entre razão, liberdade, individualismo e igualdade.
que o solidarismo instintivo, pois aproveita da cada As vantagens evolutivas de algumas destas
um o que melhor possui em favor do grupo. A configurações pressupõe a ideia básica da regra
consequência imediata do cooperativismo é a social dos direitos iguais para todos os "seres
organização do esforço na obtenção de alimentos, racionais". O homem organiza-se, neste caso, no
na confecção de ferramentas e na transmissão sentido do bem estar da espécie e de sua
destes conhecimentos, ou seja, o trabalho e a adaptação ao meio em que vive. As suas criações
educação, que se incorporam à cultura do grupo. mais maravilhosas, e que lhe permitem manipular
Surge da organização da produção a percepção as forças naturais em seu favor são, sem dúvida, a
das desigualdades dos indivíduos, característica ciência e o engenho. O monumento à razão e sua
das vocações singulares. No entanto, a ajuda mútua utilidade evolutiva poderá ser uma ferramenta, a pá,
só se otimiza se forem respeitadas tais que construiu as pirâmides. Estas, seriam
individualidades ou talentos, e que não haja homenagens ao desperdício e à inutilidade.
restrições ao usufruto da produção por Ora, as mesmas forças que geram riquezas
consequência destas aptidões particulares. Esta podem gerar tanto a justiça social quanto a
ideia pressupõe que todos são iguais para usurpação. Não há servidão e injustiça que, com o
receberem os benefícios da cooperação, mas tempo, não resultem em revolta e ruptura do pacto
diferentes para arcarem com os encargos. O social. No entanto, cabe considerar que a
conceito de igualdade decorrente é portanto capacidade do homem de sobreviver à opressão de
inteiramente cultural, superando a condicionante seus semelhantes é notável. A origem provável
evolutiva da desigualdade. A diversidade continua desta aparente passividade tem a mesma raiz da
sendo o vetor principal da seleção natural, mas revolta, o medo de que a desorganização social
agora canaliza para o bem comum, transformando faça o grupo enfraquecer-se e perecer. É tão forte
em vantagens o que poderiam ser forças este sentimento que a guerra - o extremo da
antagónicas à adaptação. inutilidade em termos de organização do esforço
A igualdade racional, no entanto, é um artifício e
humano - é, ainda, uma "opção justa" para William Godwin, em 1793, em seu ensaio,
resolverem-se pendengas entre grupos humanos. "Enquiry Conceming Political Justice", escreveu:
Analisando-se mais acuradamente este paradoxo,
percebe-se que o verdadeiro motivo do belicismo é "Dois dos maiores abusos relativos à política
a usurpação, e o conformismo com a violência é interna das nações, os quais nestes tempos
uma manipulação dos usurpadores sobre as prevalecem no mundo, consiste na transferência
massas temerosas de perderem o que, por fim, irregular da propriedade, em primeiro lugar pela
acabam mesmo perdendo, a paz e prosperidade. O violência, ou secundariamente pela fraude. "
individualismo é soterrado pelas alusões à
identidade étnica, cultural, económica, religiosa e, Godwin aponta a desigualdade da propriedade, a
por fim, recusar-se a exterminar o semelhante é opulência fútil dos ricos, a insolência das classes
caracterizado como a mais abjeta traição. dominantes, decorrentes da certeza da impunidade
O gênio humano foi capaz de estabelecer, como pois a justiça é dominada por elas, e a consequente
base de sua organização, a igualdade e a justiça usurpação sistemática, como causa das
social, e para administrá-las, a democracia, cujo infelicidades percebidas.
fundamento é a vontade dos indivíduos repartirem
equitativamente o fruto do trabalho. Não há, "A consciência destes fatos faz com que o
portanto, democracia sem riqueza comum. Os rico tenha pouca cautela em prejudicar o pobre
participantes deste pacto têm nas mãos o próprio quando com este transaciona e o inspira um
destino, de sucesso ou fracasso. carâter insuportável, ditatorial e tirânico ... Os
A injustiça reside na apropriação do resultado do ricos são, todos estes países, direta ou
trabalho mútuo em prejuízo da distribuição
equitativa: é a usurpação. Até certo ponto a indiretamente, os legisladores do estado; e por
desigualdade da acumulação individual da riqueza consequência estão perpetuamente
pode estar sancionada socialmente como transformando a opressão em um sistema, e
reconhecimento do talento, competência e privando o pobre desta pequena riqueza comum
perseverança de cada ser racional. Os limites desta da natureza a qual de outra forma ainda
complacência dependem das características permaneceria com ele.”
ideológicas e políticas prevalentes em determinado
grupo humano. No entanto, a ameaça, de extinção Pierre Joseph Proudhon, em 1840, em seu
ou aniquilamento rompe o pacto social e leva as ensaio, "O que é a propriedade?" afirma que o
comunidades à fuga e à revolta. De qualquer forma consentimento universal não justifica a propriedade:
o autoritarismo e a usurpação levam à destruição da
sociedade. ".... poderiam os homens legitimar a pro-
Cabe considerar que a cultura e o tempo são priedade por seu mútuo consentimento? O
dimensões importantes no rumo das relações nego. (....) O Homem não pode renunciar ao
sociais. A educação como característica da espécie trabalho nem à liberdade, portanto, reconhecer o
permite que a cultura, consequente à transmissão direito de propriedade territorial é renúncia ao
do saber, aumente o sentido da temporalidade no trabalho, posto que é rejeitar o meio de realizá-
género humano, para além de sua sobrevivência lo, é transigir sobre um direito natural e
como indivíduo. O homem planeja transpondo a sua despojar-se da qualidade de homem.”
morte, que sabe inexorável, e isto se deve à
percepção de que não pode haver interrupção na (Supondo-se que tenha havido tal
cooperação sem por em risco a espécie. Mas, tanto consentimento)
quanto a riqueza material, o saber pode ser
igualmente usurpado. Será mesmo a usurpação do "... Qual seria seu resultado? Aparentemente
saber que antecederá à usurpação material. que as renúncias deveriam ser recíprocas: não
A principal virtude democrática, a justiça, é de se abandona um direito sem obter, em troca,
fato uma forma de distribuição equitativa do saber. outro equivalente. Caímos outra vez na
A ascendência de um indivíduo sobre outros, o igualdade, condição "sine qua non" de toda
poder, dá-se mais pela usurpação do saber e das apropriação: de modo que, depois de haver
ferramentas oriundas deste estado cultural, que justificado a propriedade pelo consentimento
importam na produção, do que pela força, e mesmo universal, quer dizer, pela igualdade, há que
esta é mais eficaz quanto mais se sabe usá-la. justificar a desigualdade de condição pela
Os efeitos deletérios propiciados pela ignorância propriedade. É impossível sair deste dilema.
só podem ser evitados pela solidariedade, que Com efeito, se, segundo os termos do pacto
distribuirá o saber e a riqueza sem ferir a liberdade social, a propriedade ter por condição a
individual. Toda propriedade, portanto, é uma igualdade, a partir do momento que esta
apropriação desigual de parte do todo, consentida igualdade não existe o pacto toma-se infringido
ou não. e toda propriedade é uma usurpação."
Uma das formas de usurpar riquezas, usando a As sociedades modernas vêm tentando, por
ignorância como instrumento, é através da fraude. A meios pacíficos ou não, conciliar estas tensões
propriedade pode ser roubo, como diz Proudhon, resultantes das formas de produção e distribuição
mas a apropriação pela fraude é certamente roubo. de riquezas.
Os conflitos oriundos da usurpação sistemática arruinando-se, a revolta, a fuga e a ruptura social
dos benefícios do trabalho coletivo serão maiores são inevitáveis. Nos últimos séculos o mundo veio
ou menores em função da capacidade de se tornando mais integrado e interdependente ao
organização dos indivíduos e do seu grau de ponto de não haver mais possibilidade de
conhecimento da realidade, em suma, do nível de isolamento cultural. Uma forma de se proteger
consciência coletiva da causa das desigualdades contra a usurpação das riquezas é aumentar e
existentes. As coletividades tendem a aceitar pactos difundir o conhecimento, de resto uma das
sociais que lhes tragam algun tipo de vantagem em reivindicações populares fundamentais. O processo
relação à situação anterior; o parâmetro de um povo de integração cultural das comunidades a nível
é a sua própria história.A história do homem é em mundial vem ao encontro destas aspirações,
grande parte determinada pelo vínculo à terra, ou mesmo com as grandes oligarquias tentando
seja, o tempo e a geografia moldaram o caráter da controlar e retardar o processo de massificaçâo do
espécie e, antes de abandonar o berço de sua saber.
criação, o Homo sapiens já possuía todas as Essa tendência contemporânea parece ter feito
potencialidades que lhe permitiram ocupar o com que houvesse uma certa unanimidade entre os
planeta, adaptando-se aos mais diferentes nichos povos de diferentes nações, até mesmo aquelas
ecológicos. De fato, a virtude do género humano foi, ideologicamente muito divergentes, em buscar a
através de engenhos, manter suas características reforma social sem romper o pacto existente, via
genéticas reproduzindo o seu meio original aonde reforma das legislações atuais - democracia
estivesse. Durante dezenas de milhares de anos os representativa parlamentar e ação direta. Mesmo os
povos desenvolveram suas histórias de maneira conflitos armados atuais, quando resolvidos pela
isolada, sem perderem quaisquer daquelas vitória de um ou outro contendor, terminam em uma
características primevas; mas produziu uma imensa reorganização das formas de representação
diversidade de culturas. O exemplo mais exuberante democrática, às vezes vantajosas, outras não.
desta fato é a multiplicidade linguística. De um jeito ou de outro o belicismo vem
Não é de estranhar, portanto, que no momento perdendo eficácia como forma de domínio social,
em que o homem foi capaz de mover-se rapidamen- coincidentemente com a maior acessibilidade dos
te pelo planeta, como consequência de sua povos à cultura universal.
inventividade, se surpreendesse com tal diversidade A açâo direta das massas populares parece
de culturas existentes. criarum sinergismo em escala mundial colocando
Vive-se ainda hoje o impacto deste fato, em discussão valores sociais aparentemente
bastando para tanto a leitura diária dos jornais que sólidos, como a própria ideia de nação,
noticiam, lado a lado, os dramas do índios representação política e propriedade.
amazônicos e os feitos dos tripulantes espaciais. A justa distribuição de riquezas é atualmente a
Ora, as concepções adrede referidas, de razão, pauta permanente das conferências intemacionais
igualdade, liberdade e individualismo, por força das que tentam resolver os contenciosos mundiais.
condições peculiares de cada um destes grupos, A ordem jurídica estabelecida passou a ser
não se desenvolveram sincronicamente embora se analisada menos pela sua precisão filosófica e mais
perceba um substrato comum em todas as culturas - pelos resultados práticos advindos. Vale lembrar P.
o que fadiitou, pela dissonância cultural o domínio Kropotkin que no início do século XX escreveu:
de unspoucos sobre tantos outros. Sem nenhuma
dúvida o conhedimento e a tecnologia favoreceram "Vimos como a lei nasceu dos costumes e
aos conquistadores. usos estabelecidos e como representava
Passaram-se alguns milénios para que as desde o princípio uma mistura hábil de
sociedades percebessem a falada do argumento costumes sociais, necessários à preservação
das diferenças culturais como justificativa da da raça humana, com outros costumes,
impostos pelos que se serviam em proveito
opressão estabelecida. A escravidão como modelo
próprio das superstições populares e do
de produção partia do princípio prático de que os direito do mais forte. Este duplo caráter da lei
escravos não faziam parte dos "seres racionais" e determina o seu desenvolvimento ulterior nos
que, portanto, não teriam direito à igualdade. No povos que vão cada vez atingindo um maior
balanço final deste período histórico, para a espécie grau de civilização. Mas, ao passo que o
comoum todo, a exploração escravagista só trouxe núcleo de costumes sociais inscrito na lei não
prejuízos. Os sistemas produtivos hodiernos ainda sofre senão uma modificação insignificante e
carecem da capacidade de distribuírem com muito lenta no decorrer dos séculos, é a outra
equanimidade os bens produzidos por toda a parte. parte da lei que se transforma e desenvolve,
Mas, aqui e ali, os homens foram impondo me- sempre em benefício das classes dominantes,
lhorias nestas relações iníquas, conseguindo e sempre em prejuízo das classes oprimidas.
Só com muita dificuldade é que de tempos em
pequenas vitórias contra a violência e a fraude
tempos as classes dominantes deixam que
oficializadas. lhes arranquem uma lei qualquer que
Em suma, quando uma situação de fato obriga represente, ou pareça representar, uma
uma comunidade a ver-se, diante de sua história, garantia para os deserdados. Mas nesses
casos essa lei não será mais do que uma na sociedade.
revogação de uma lei anterior feita em favor
das classes dominantes. "As melhores leis, (...) Em primeiro lugar, relativamente aos
dizia Buckle, "foram as que revogaram leis chamados "crimes", aos atentados contra as
anteriores". Mas quantos esforços pessoas, sabe-se que as duas terças partes e
incalculáveis não se tiveram de empregar, por vezes mesmo as três quartas partes de
quantas ondas de sangue não tiveram de todos estes crimes são inspirados pelo desejo
correr de cada vez que se tratava de revogar de se apoderarem das riquezas que pertencem
uma dessas instituições que servem para a alguém
aprisionar o povo11.
(...) Há porém, uma coisa hoje já
"...Se se estudam os milhões de leis que estabelecida: a severidade das punições não
redoma humanidade, vê-se logo que podem diminui o número dos "crimes". Enforquem,
dividir-se em três grandes categorias: esquartejem, se assim vocês entendem, os
proteçâo da propriedade, proteção do governo assassinos e o número de assassinatos não
e proteção das pessoas. E, Analisando-se diminuirá. Pelo contrário, se se abolir a pena
essas três categorias chega-se a respeito de de marte não haverá um assassinato a mais.
cada uma delas a esta conclusão lógica Os estatísticos e o legistas sabem que nunca
necessária' inutilidade e nocividade da lei. a diminuição da severidade, no código penal,
trouxe um aumento de atentados contra a vida
(...)As leis sobre a propriedade não são dos cidadãos. Por outro lado, se a colheita é
feitas para garantir nem ao indivíduo, nem à boa, se o pão é barato, se o tempo é bom, o
sociedade, o gozo dos produtos de seu número de assassinatos diminui logo. Prova-
trabalho. São feitas, pelo contrário, para que se pela estatística que o número de crimes
se possa roubar do produtor uma parte do que aumenta e diminui em proporção do preço dos
ele produz e para garantir a alguns a parte dos géneros alimentícios e do bom ou mau tempo.
produtos que eles roubaram, ou aos Isto não quer dizer que todos os assassinatos
produtores ou à sociedade inteira" sejam inspirados pela f orne. Nada disso; mas
quando a colheita é boa e os géneros
"... A metade das nossas leis - os códigos alimentícios estão a um preço acessível, os
civis de todos os países - não tem outro fim homens, bem dispostos, menos miseráveis do
que não seja o de manterem esta expropria- que o costume, não se deixam absorver pelas
ção, este monopólio, em beneficio de alguns sombrias paixões e não cravam uma faca no
contra a humanidade inteira. As três quartas peito de um dos seus semelhantes por
partes das questões julgadas pelos tribunais motivos fúteis."
são entre monopolizadores: dois ladrões
disputando entre si o produto do saque. E
Passadas quase nove décadas desde que tais
uma boa parte das nossas leis penais têm
ainda o mesmo fim, pois têm por objetivo assertivas foram feitas, os governos constituídos,
manter o operário numa posição subordinada com todos os belos códigos legais existentes, não
ao patrão, a fim de garantir a este a conseguiram evitar duas guerras mundiais, outras
exploração daquele." centenas locais e uma corrida armamentista que
"... O que acabamos de dizer sobre as leis exauriu a riqueza de boa parte da humanidade na
relativas à propriedade aplica-se inteiramente construção de um arsenal bélico tétrico e inútil. Tais
à segunda categoria de leis - as leis que realidades colocam à prova os atuais sistemas
servem para manter o governo ou as leis representativos de governo, considerados
constitucionais. (...) Um bom terço das nossas democráticos e avançados. Surge então a pergunta
leis - as leis "fundamentais", leis sobre os que Errico Malatesta se fez em 1924, no limiar da
impostos, sobre as alfândegas, sobre a grande depressão econômica mundial e às
a
organização dos ministérios e das suas vésperas da II grande guerra, ao repudiar a
chancelarias, sobre o exército, a polícia, a democracia parlamentar:
Igreja, etc. - , e há algumas dezenas de
milhares em cada país, não têm outro fim "Para mim, não há dúvida de que a pior das
democracias é sempre preferível à melhor das
senão manter, consertar e desenvolvera má-
ditaduras, pelo menos de um ponto de vista
quina governamental, que serve, por sua vez, educativo. Certo, a democracia - o pretenso
quase inteiramente para proteger os governo do povo - é uma mentira, mas a mentira
privilégios das classes possuidoras.fï acorrenta sempre um pouco o mentiroso e limita
seu bei-prazer. O "povo soberano" é um
"...Resta-nos a terceira categoria de leis, a soberano de teatro, um escravo com uma coroa
mais importante, pois é a ela que se ligam e um cetro de papelão;
mais os preconceitos: as leis relativas à mas pensar que se é livre, mesmo que não seja
proteção das pessoas, à punição e à verdade, é melhor do que aceitar a escravidão
prevenção dos "crimes". De fato, esta como uma coisa justa e inevitável"
categoria é a mais importante porque, se a lei
goza de certa consideração, é de se acreditar "Mas, substituí-la pelo quê?
que esse gênero de leis é absolutamente
indispensável para a segurança do indivíduo
"... Governo do povo, não, porque isto gar-se-á ao livre acordo de um modo ou de
suporia o que não acontece jamais, a saber, a outro, porque sem acordo, livre enforcado,
unanimidade das vontades de todos os não é possível viver.
indivíduos que compõem o povo. Entretanto, mesmo o livre acordo será mais
Aproximar-se-á, pois, muito mais da vantajoso para aqueles que estiverem melhor
verdade ao falar "Governo da maioria do preparados, intelectual e tecnicamente; e é por
povo". Isto já significa anunciar uma minoria isso que recomendamos a nossos amigos, e
que deverá se revoltar ou se submeter à àqueles que querem realmente o bem de
vontade alheia. todos, estudar os problemas mais urgentes,
Mas, que esses que a maioria do povo que exigirão uma solução prática no mesmo
colocou no poder sejam todos da mesma dia em que o povo tiver sacudido o jugo que o
opinião sobre todos os problemas, isto não oprime."
acontece jamais. É preciso então recorrer de
novo ao sistema da maioria e é por isso que Resta portanto o que ao cidadâo, diante de um
nós nos aproximaríamos ainda mais da emaranhado legal em que esta enredado, e do culto
verdade ao falar “ Governo da maioria dos à ignorância e à alienação, promovidos pelas
eleitos péla maioria dos eleitores". O que classes dominantes?
começa realmente a parecer muito com um Antes de se tentar responder esta questão deve-
governo dominaria. se atentar para alguns exemplos que corroboram o
Enfim se se considera o modo como as que se discorreu até o momento.
eleições são feitas, o modo como os partidos
políticos e os grupos parlamentares se As mais importantes criações da humanidade, a
formam, o modo como as leis são elaboradas, ciência e a tecnologia, que indiscutivelmente
votadas e aplicadas, compreende-se sem constituem a via possível para a redenção da
dificuldade o que a experiência universal espécie na sua utopia racional de igualdade,
demonstrou, a saber, que mesmo na mais mudando o próprio rumo da natureza, ainda
democrática das democracias, é sempre uma permanece submetida ao controle das grandes
pequena minoria que domina e impõe pela corporações, servindo ao complexo industrial militar,
força sua vontade e seus interesses. em conluio com os governos destas potências
Assina desejar realmente o "Governo do internacionais.
povo" no sentido que cada um possa fazer Toda retórica enganadora dos governos centrais
valer sua própria vontade, suas próprias sobre o desarmamento não impediram que estas
ideias, sueis próprias necessidades, é fazer
com que ninguém, maioria ou minoria, possa mesmas potências armassem até os dentes as dita-
dominar os outros; dito de outra forma, é duras mais cruéis surgidas neste século. Por outro
querer necessariamente a abolição do lado, a difusão dos inventos tecnológicos úteis à
governo, isto é, de toda organização humanidade foram retardados ou permanecem
coercitiva, para substituí-la pela livre inaccessíveis devido às razões de "segurança
organização daqueles que têm interesses e nacional" ou simplesmente protegidos pelo direito
dbjetivos em comum ao "segredo industrial".
Seria extremamente simples se cada grupo Uma vez que estas justificativas vêm caindo por
ou cada indivíduo pudesse se isolar e viver terra diante da pressão social pelo progresso, os
por si próprio, ao seu modo, responsabilizan- governos centrais propagandeiam a privatização da
do-se, independentemente dos outros, por pesquisa científica como a panaceia redentora das
suas necessidades materiais e morais.
Mas é impossível; e mesmo que fosse pos- sociedades, fazendo nada menos do que a tentativa
sível, não seria desejável, porque isso signifi- de continuar usando o saber como instrumento de
caria a decadência da humanidade, que cairia usurpação quando estes mesmos governos
na barbárie ou no estado selvagem começam a ter dificuldades em garantir os
É preciso que, ao mesmo tempo em que interesses das classes dominantes.
está decidido a defender sua própria Pois então, voltando à questão anterior - sobre o
autonomia, sua própria liberdade, cada um - que pode e deve fazer o cidadão para proteger e
indivíduo ou grupo - compreenda os elos de garantir sua liberdade - a resposta surge da
solidariedade que o une a toda humanidade, e observação da própria dinâmica social em curso:
que seu sentido de simpatia e do amor por - Através da ação direta das comunidades sobre
seus semelhantes seja bastante desenvolvido os rumos da vida pública.
para que ele saiba se impor voluntariamente
todos os sacrifícios necessários para uma Tem sido assim que a humanidade tem
vida social que garanta a todos os maiores protegido, impulsionada pelo mais forte sentimento
benefícios possíveis num dado momento. inerente a género humano, a liberdade.
Mas é preciso, antes de tudo, tornar Oscar Wilde, sobre este assunto escreveu, em
impossível, que pela força material, um peque- 1896, em sua obra "De profundis":
no número domine a massa - de onde provém,
por sinal, esta força material que serve ao "... Algumas virtudes dos pobres sào pron-
dominador. tamente aceiteis, e há muitas a lamentar.
Eliminemos afigura do policial, isto é, do Frequentemente ouvimos dizer que os pobres
homem armado a serviço do déspota e che- são gratos pela caridade. Decerto alguns são
gratos, mas nunca os melhores dentre eles. são tão necessários. Sem eles, em nosso
São ingratos, insatisfeitos, desobedientes e Estado imperfeito, não haveria nenhum
rebeldes. Têm toda razão em o serem Para avanço rumo à civilização."
eles, a caridade é uma força ridícula e
inadequada de restituição parcial, ou esmola A liberdade individual e coletiva está constante-
piedosa, em geral acompanhada de alguma mente ameaçada pela cobiça e prepotência dos
tentativa por parte da alma apiedada de poderes usurpadores,estimulados pelo sucesso
tiranizar suas vidas. Por que deveriam ser material destas violências. A ação direta, individual
gratos pelas migalhas que caem da mesa do ou coletiva, só será eficaz se seus efeitos puderem
homem nco? Deveriam é estar sentados à ela,
e já começam a se dar conta disto. Quanto à ser multiplicados na mesma escala com que os
insatisfação, aquele que não se sentisse sistemas oligárquicos conseguem se organizar e
insatisfeito com essa condição inferior de impor sua regras. A solidão da indignação
vida, seria um perfeito estúpido. A desobe- individual, que acontece pelo sentimento de
diência é, aos olhos de qualquer estudioso da impotência e desânimo diante de flagrantes
história, a virtude original do homem É através injustiças, aparentemente insuperáveis, pode ser
da desobediência que se faz o prógresso substituída pela esperança, que alimenta a fé em
através da desobediência e da rebelião, às dias melhores e faz o homem preservar, na mesma
vezes elogiam-se os pobres por serem medida e tanto quanto for possível a apropriação do
parcimoniosos. Mas recomendar-lhes saber em escala mundial;
parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É o conhecimento que liberta o homem do homem.
É como aconselhar a um homem que esteja
passando forne, que coma menos. Que um A organização das comunidades em torno dos
trabalhador do campo ou da cidade usasse de ideais de liberdade e igualdade, e sua vocação in-
parcimônia, seria absolutamente imoral. Um ternacionalista, que vem se tornando realidade
homem não deveria estar pronto a mostrar-se palpável principalmente pelo progresso tecnológico
capaz de viver mal alimentado. Deveria nas comunicações, tem permitido que a denúncia
recusar-se a viver assim, e deveria ou roubar das iniqüidades propicie o desencadeamento de
ou viver às expensas do Estado, o que muitos ações eficazes de resistência à exploração
consideram uma forma de roubo. Quanto a económica, às ditaduras e à abolição de leis
pedir esmoleis, é mais seguro pedir do que infames.
tomar, mas é bem mais digno tomar do que Depois de tantas considerações teóricas o leitor
pedir. Não: um homem pobre que seja ingrato deverá estar se perguntando:
perdulário insatisfeito e rebelde possuí
decerto uma personalidade plena e verdadeira
Constituir de qualquer forma, um protesto
sadio. Quanto aos pobres tortuosos, é natural
E a vigilância sanitária, onde
que deles se tenha piedade, mas não fica nisso tudo ?
admiração. Fizeram um acordo secreto com o
inimigo e venderam seus direitos inatos em
troca de um péssimo prato de comida. Devem Pois, a vigilância sanitária é um exemplo concre-
também ser muito tolos. Posso compreender to dos assuntos já tratados.
que um homem aceite as leis que protegem a Antes de mais nada deve-se buscar a origem desta
propriedade privada e admita sua acumulação, atividade de saúde pública.
desde que nessas circunstâncias de próprio Nas sociedades onde a produção de bens de
seja capaz de atingir alguma forma de consumo é limitada ao atendimento de suas
existência harmoniosa e intelectual. Parece- necessidades básicas, a verificação da qualidade
me, porém, quase inacreditável que um destes bens e de sua eficácia se dá por conta do
homem cuja existência se perdeu e abrutalhou
usuário. A insatisfação com determinado item de
por força dessas mesmas leis, possa vir a
concordar com a sua vigência produção é comunicada diretamente ao produtor,
Mas não é muito difícil encontrar a explicação sendo por esta via resolvida a questão. Nessas
disso. Está simplesmente no fato de que as circunstâncias, a especialização na feitura dos
desgraças da pobreza são degradantes ao produtos é pequena, confundindo-se muitas vezes o
extremo e exercem de tal forma um efeito papel do produtor e do comsumidor.
paralisador sobre a natureza humana, que Quando não há produção em escala que gere
classe alguma tem consciência de seu próprio excedentes significativos, a tecnologia de produção,
sofrimento. A outros cabe dar-lhe essa o aspecto e a utilidade de muitos produtos são
conciência, no que são quase sempre determinados pela cultura local, valorizando
desacreditados. É a pura verdade o que os características bem peculiares do modo de viver e
empregadores de mão-de-obra criticam nos pensar daquele grupo. A alimentação, o vestuário,
agitadores. Estes são um grupo de pessoas as ferramentas, a técnica agrícola, os remédios, os
que se infiltra e interfere em uma determinada enfeites para o corpo, os móveis, a arquitetura,
classe social que se encontre perfeitamente enfim, quase todos os aspectos do estilo de vida
satisfeita. para nelas lançarem as sementes da existente na comunidade são avaliados e aceitos
insatisfação. Eis a razão porque os agitadores para o uso pelos próprios componentes do grupo. À
medida que estas comunidades ampliam suas ao parâmetro aceitável para consumo.
capacidades de produção e transacionam bens e Por este exemplo, conclui-se que o critério de
serviços com outras comunidades diferentes e dis- qualidade e eficácia de um produto não pode ser
tantes surge um problema: como adequar um tipo entendido da mesma forma pelo consumidor comum
de produto característico de uma cultura, à outra? e pelo especialista. Como decidir qual a opinião que
São inúmeros os exemplos de situações como deve prevalecer?
esta, tanto em sociedades cujas trocas são de pro- Aparentemente o parecer técnico é definitivo,
dutos relativamente simples, quanto entre nações pois apesar da aparência adequada, o consumo do
que comercializam tecnologia de alta complexidade. produto exemplificado acima poderia redundar em
O caminho percorrido para solucionar o problema - danos à saúde.
desde a simples troca de objetos entre dois Vejamos outro exemplo. Em 1987 a Secretaria
artesãos, de comunidades diferentes e pouco Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da
sofisticadas, até o intrincado sistema comercial Saúde interditou a produção de gelatinas por
moderno, tem sido estabelecer, de comum acordo, excesso de resíduo de cromo. No s caso, as
regras de comportamento comercial e códigos de empresas fizeram ampla campanha para convencer
qualidade dos produtos que tomem viável o a população de que tais índices de conservantes e
comerão entre nações distantes e assegurem a contaminantes eram "aceitáveis". Inclusive chega-
eficácia e inocuidade dos produtos à população ram a afirmar que o cromo encontrado em excesso
consumidora. Hoje, qualquer item de produção tem ao que determina a legislação era até
seu padrão de referenda e qualidade. recomendável! Tais assertivas vinham corroboradas
Por conta deste aumento quase incomensurável por pareceres técnicos e laboratoriais de
das formas de produção, o consumidor vem especialistas da mesma competência técnica dos
perdendo, gradativamente, a capacidade de avaliar que decidiram pela interdição. No exemplo há
a qualidade e eficácia dos produtos que consome. claramente um conflito de opiniões decorrente de
Deve-se entender que estas duas dimensões, interesses comerciais. Os técnicos especialistas
qualidade e eficácia dos produtos, do ponto de vista afirmaram, dependendo de sua fonte pagadora, que
do consumidor, são avaliadas de uma forma bem aqueles produtos eram maléficos ou
diferente da que faz o especialista na produção de recomendáveis. A questão que se põe, portanto, é
cada um deles. Para um consumidor tais conceitos decidir quem arbitrará os direitos dos diferentes
dizem respeito à aparência, durabilidade, preço, atores na relação complexa de trocas de
função e utilidade do produto, em relação ao seu mercadorias e bens em geral, no que diz respeito à
uso imediato e tem como parâmentro aferidor a sua proteção à saúde do consumidor e ao interesse
própria experiência. Para o especialista, tais comercial envolvido.
conceitos só podem ser mensurados em função de A norma técnica de qualidade define na prática,
um método analítico e um padrão de referenda e o os limites desses direitos, portanto, é também
conhecimento científico passa a ser a referenda essencial saber quem estabelece a norma. São
dessas dimensões. Enquanto a avaliação do duas dimensões complementares, o direito e a
consumidor comum é marcadamente subjetiva, a do norma. É possível que se estabeleçam normas
especialista é técnico-científica. técnicas por consenso entre aqueles que negociam
Um simples exemplo pode elucidar a questão. ou entre aqueles que concorrem, isto é, entre o
Alguém que escolhe em um mercado verduras que consumidor e o produtor e entre os produtores. Sem
pretende comprar, buscará deddir se elas estão estes códigos a concorrência comercial, torna-se
adequadas ou não para o consumo,por sua predatória e inviabiliza a produção regular e a
aparência e seu preço. Sua experiênda lhe dirá qual comercialização de marcas tradicionais, pois a base
a durabilidade da verdura escolhida e, das vendas é a credibilidade do consumidor do
portanto,quanto terá de comprar para ser produto fornecido, isto é, o aspecto relacionado ao
consumido antes de sua deterioração. A função e a que já se referiu como "cultura" do consumidor.
utilidade do alimento são conhecimentos culturais, Mas, as normas compactuadas entre os produtores
que antecipadamente já possui. Feita a compra, o podem ser conflitantes com o direito do consumidor,
consumidor estará satisfeito com a qualidade do quando se considera a possibilidade de formação
produto adquirido. de cartéis, oligopólios e monopólios entre
Suponhamos que ele deseje a opinião de um fabricantes. Considerando-se o direito do
especialista. Este profissional fará avaliações consumidor, os códigos devem atender aos
técnicas dos conteúdos nutricionais das verduras e princípios da saúde pública, e garantir a inocuidade
dos possíveis aditivos usados para a sua produção do produto, sua qualidade e eficácia.
e conservação. Talvez, após tais observações A credibilidade aludida é em geral avalizada pelo
conclua que, contrariamente à opinião do poder público, que aparece nos Estados modernos
consumidor, aquele alimento não é de boa como juiz final e incontestável do direito. Ocorre que
qualidade, apesar da aparência. A existência de os ordenamentos jurídicos entre países, e mesmo
resíduos pesticidas, aditivos conservantes, entre regiões de um mesmo país, podem ser
corantes, flavorizantes e outros, pode ter excedido diferentes como decorrência do grau de
desenvolvimento económico, social, político e entanto, o sucesso de tal ação depende do
cultural da população a eles submetidos. O conhecimento disponível sobre o assunto, da
conhecimento científico e o desenvolvimento difusão deste saber pela população e da vontade
tecnológico são essenciais para o estabelecimento política de utilizá-lo. Nenhuma sociedade está
de normas técnicas, e estão distribuídos imune a erros técnicos, administrativos e à fraude.
desigualmente entre as nações, o que faz com que Significa que, pelo menos, em l6 anos de vigência
as mesmas limitações que o consumidor da legislação mais recente, o poder público não
individualmente tem para reconhecer a qualidade, dispõe de nenhuma informação técnica ou
utilidade e eficácia de um produto, ocorram, "mutatis estatística de sua produtividade neste campo, ou
mutandis" ao nível das organizações sociais seja, não é possível sequer avaliar a eficiência dos
públicas e privadas. Esta desigualdade entre o órgãos governamentais competentes. A vigilância
saber dos centros produtores e a ignorância dos sanitária não tem como justificar sua existência. Em
centros consumidores, aliada às práticas de outras palavras, a lei foi feita para não ser cumprida.
aliciamento político pelos interesses comerciais, No entanto, a parte cartonai, necessária a garantir a
levam à ocorrência de fraudes não mais em escala propriedade das marcas registradas das empresas -
individual e sim coletivas. principalmente as grandes corporações - é a única
Logo, para que o direito do consumidor parte visível do funcionamento destes órgãos,
prevaleça, precisam estar no mesmo nível de porém igualmente inconsintente.
autuação: a estrutura legal, o conhecimento técnico- A indigência organizacional e técnica é de tal ordem
científico e a organização do poder. que acabou por comprometer até mesmo a função
Na situação ideal, estas três dimensões estão de proteger a propriedade industrial da fraude.
equilibradas e interagem fazendo com que a A fraude hoje, no país, assumiu caráter permanente
proteção à saúde do consumidor signifique uma e em expansão. E esta é a forma mais aviltante de
expressão da cidadania plena. No caso de usurpação que existe. A diversidade de fraudes é
desarmonia entre estas três áreas descritas, ter-se- imensa, mas seguem, todas elas, o mesmo padrão.
á sempre um prejuízo ao consumidor, tanto pela Para se entender o processo tome-se um exemplo
negligência com a sua saúde quanto pelo não rotineiro do conhecimento cotidiano daqueles que
usufruto de benfeitorias à segurança dos produtos trabalham nesta atividade, a fraude nos produtos de
consumidos. Tais benfeitorias podem significar a consumo corrente, medicamentos, alimentos e
inclusão no consumo geral de bens até então outros.
escassos, por dificuldades de produção, Suponha-se que alguém necessite de algum
conservação ou preço excessivo. produto numa certa quantidade que lhe trará um
A organização espontânea dos consumidores não benefício mensurável, um remédio, um alimento, um
vinculada ao Poder Público, tem sido a forma cosmético ou outro produto qualquer assemelhado.
encontrada para enfrentar os problemas Ora, paga-se um preço determinado para aquisição
decorrentes da desarmonia entre as dimensões deste bem Tal preço representa troca de trabalho
políticas, jurídicas, técnico-científicas e culturais por trabalho, aqui representado pelo padrão
existentes. Tenta-se desta forma pressionar o Poder monetário corrente. Será justa a troca se o benefício
Público, a justiça e as organizações técnicas a obtido for eficiente, ou seja, produz o efeito
trabalharem em consonância com a população, esperado. Mas, no caso da fraude, o produto não é
impedindo que o capital industrial, comercial ou eficiente, porque não contém o que preconiza ou
financeiro oriente os assuntos somente de acordo está contaminado por resíduos indesejáveis e
com seus interesses. prejudiciais. Na melhor das hipóteses, o consumidor
A organização da população, tendo em vista tais terá seu trabalho usurpado pelo fabricante. Além
questões, pode - além de pressionar o Poder disso,
Público a assumir o seu papel democrático - servir Analisando-se a situação passada e atual da
como uma fonte de poder alternativo à organização vigilância sanitária em nosso país, a condição lógica
formal da sociedade. a que se chega é que o objetivo proposto nas
Esse tipo de atuação política caracteriza a açâo dezenas de leis e decretos existentes, a defesa do
direta das populações sobre a organização consumidor, nunca foi logrado.
produtiva. O consumidor pode deixar de consumir Teria sido tal fato fruto de alguma excepcionalidade,
itens que considera inadequadamente qualificados, que impediu o poder constituído de exercer o seu
obrigando, pela via econômica, que os produtores papel?
se submetam às suas exigências. Não poderá fazê- Em absoluto, nada há a indicar que qualquer
lo o tempo todo, para todos os produtos, ou para empecilho tenha se interposto entre a obrigação do
itens essenciais à sobrevivência e à vida social. poder público e sua real consecussâo. Portanto,
Assim, além do boicote espontâneo ou organizado, propositadamente nada foi feito. E o que significa o
a ação direta exige que formas mais complexas de prejuízo pode ser maior se a vítima for obrigada a
organização social sejam desenvolvidas. É dispender recursos financeiros adicionais para
necessário que a comunidade exija qualidade, corrigir um malefício advindo do produto
fiscalize e polemize as situações vigentes. No corrompido. Levado tal exemplo em escala de
consumo de centenas de milhares de unidades tentes uma posição a respeito, em confronto com
pode-se ter uma ideia do nível de usurpação uma sólida argumentação.
atingido. Este "novo saber" popular deve se desdobrar em
O consumidor, em que pese qualquer perfeição da ações em juízo, interditórias e indenizatórias, e
legislação, não tem, até o momento, como acreditar justificar, inclusive transcendendo a formalidade
no sistema vigente de vigilância sanitária e legal, a obstrução ao consumo promovida pelas
deve portanto, se quiser mudar a situação a seu comunidades sob risco. Os mercados locais terão
favor, intervir diretamente no problema. de se subordinar gradualmente ao "saber
O fundamental desta opção de agir diretamente comunitário" pois a intervenção direta, pela
sobre o assunto é resgatar o equilíbrio da relação denúncia e censura pública, é eficaz para impedir as
de produção e consumo. O consumidor, por sua práticas comerciais de cartéis, monopólios ou
própria iniciativa, volta a ter como aferir a qualidade, oligopólios pois estes baseam seus poderes na
utilidade e necessidade de qualquer tipo de produto sonegação de informações ao público, na corrupção
ou serviço. Através de organizações comunitárias dos governos e na desorganização das
independentes proceder-se-á à penda técnica comunidades.
destes produtos e difundir-se-á este conhecimento A recusa ao consumo e a denúncia pública de
em escala planetária, posto que isto é viável pelos produtos ou serviços danosos à saúde, baseadas
meios de comunicação modernos, facultando às na verdade científica, são as melhores armas contra
comunidades a compreensão dos parâmetros de a usurpação, além, é claro, da abolição da
qualidade, durabilidade, preço, função e inocuida- propriedade e do governo.
de. Isto permitirá exigir aos órgãos públicos compe-

Obras Consultadas:
WILLIAM GODWIN - ENQUIRY CONCERNING POLITICAL JUSTICE (CAPÍTULO III – Spirit of political
institution) PENGUIN BOOKS, GRÂ-BRETANHA, 1985.
PETER A. KROPOTKIN - A LEI E A AUTORIDADE, in "KROPOTKIN -Textos escolhidos" - L & PM Editora.
SÃO PAULO. 1987.
LUIZ F.M. LIMA - SAÚDE: AÇÃO DIRETA DO CONSUMIDOR. in "HUMANIDADES" ï^ 15 - EDITORA DA
UnB, BRASÍLIA-DF, 1988.
ERRICO MALATESTA - DEMOCRACIA E ANARQUISMO - In "A ANARQUIA e outros escritos" - NOVOS
TEMPOS EDITORA. BRASÍLIA-DF, 1987.
CAROLINA GOMES. LF.M.LIMA. ANA L. MELLO, MARIA L.O. MOURA, ANA MUSSOI, MARIA E.P. PAZ -
VIGILÂNCIA SANITÁRIA DE MEDICAMENTOS - QUALITYMARK, 1992.
PIERRE-JOSEPH PROUDHON - QUE ÉS LA PROPRIEDAD? -TUSQUETS EDITOR, BARCELONA. 1977.
OSCAR WILDE - A ALMA DO HOMEM SOB O SOCIALISMO - (excerto do livro De Profundis) - L&PM
EDITORA. SÃO PAULO, 1983.

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