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C U L T m o v i e S

Vantoem Pereira Junior/Divulgação

C i n e m A
C i n e m

O eterno retorno do
emos desde o mês passado tação, mas sim releitura, reinterpre- tido e destituída de realizações. É o

T a volta aos nossos olhos –


em transcriação, das pági-
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nas impressas para a tela,
feita pela cineasta André Klotzel – do
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tação.
Como se pode notar pelo parágrafo
n e
acima há muitas questões dissimuladas
nessas águas machadianas. A primeira
que anuncia o autor em seu prólogo,
na conhecida afirmação de que escre-
m A
veu sua obra de finado “com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia”, e
mais importante “romance” da litera- delas é a relação entre literatura e rea- também no amargo capítulo final,
tura brasileira, as Memórias póstumas de lidade ou, em outras palavras, entre “Das negativas”:
C
Brás Cubas. Com o filme, o cinema
nacional empreende de forma bem-
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cinema e sociedade ou, ainda, entre
e
ficção e história. A leitura realizada pelo
m A
Não alcancei a celebridade do em-
plastro, não fui ministro, não fui califa,
sucedida uma busca, na literatura do ótimo filme de Klotzel (chamá-lo de não conheci o casamento. Verdade é que,
país, de uma história que ao mesmo adaptação seria diminuí-lo) promove, ao lado dessas faltas, coube-me a boa
tempo toque as feridas de nosso por meio de um roteiro enxuto e da fortuna de não comprar o pão com o suor do

C i n e m A processo histórico e nos envolva, de


forma a fazer com que o expectador
se sinta parte dessa história – aqui,
austeridade de linguagem, uma inten-
sificação do sentido histórico-social do
livro de Machado.
meu rosto.
Do início – a anunciação do tom
de galhofa – ao final que tudo conser-
um caso tragicômico de adultério O que se narra é a fracassada traje- va, assistimos à história de um mem-
brasileiro. Nesse retorno filmado da tória do bem-nascido Brás Cubas. Tra- bro da alta sociedade do Rio de Janeiro
obra machadiana, como o retorno do jetória bruta e risível, trágica e idiota, de meados do século XIX, que se
defunto que conta a própria história, escandalosa e patética. Em uma pala- limita a assistir às intempéries sociais
não há exatamente revisão ou adap- vra, estúpida, porque alienada de sen- segundo a sua conveniência:
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BRUNO ZENI

Valéria Simões/Divulgação
A releitura pelo cineasta André
Klotzel de MemóriasCpóstumas i n e m A
de Brás Cubas promove uma
intensificação do sentido
histórico-social do livro de C i n e m
Machado de Assis, atribuindo
m A
contornos mais definidos ao Reginaldo Faria interpretando Brás Cubas no filme de André Klotzel.
Na página oposta, o ator encena o delírio do protagonista de

ataque machadiano à elite c


Memórias Póstumas.
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escravocrata
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defunto Brás Cubas


Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da onisciência. Ele é tão-somente o Brás fala, mas de si mesmo e de sua condi-
injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a que pode, conhecedor do todo de sua ção de classe. A miséria é a do parasi-
explicá-la, a classificá-la por partes, a
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entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas i n
própria história, narrar o pífio desen-
rolar dos acontecimentos de que par- e m
tismo da elite brasileira do século XIX,
que nunca precisou ganhar o pão com A
ao sabor das circunstâncias e lugares. ticipou. Dessa constatação decorre o suor do próprio rosto. O filme dá
Uma das idéias centrais do livro, uma conclusão assustadora, bem ao contornos mais definidos ao ataque
muito bem sublinhada pelas imagens gosto dos que advogam o pessimismo machadiano à elite escravocrata.

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do filme, é a de que “o menino é pai
do homem”, premissa essa que dá no-
me a um capítulo das Memórias, e que
como uma das mais fortes caracterís-
ticas machadianas: nem a morte salva.
Muito menos consola ou ilumina.
Em meados do oitocentos, o defun-
to machadiano recusava-se a morrer.
Em 2001, Klotzel nos diz, ele conti-
é chave para a compreensão da obra. A interpretação que Brás Cubas nua vivo. O cineasta não deixou esca-
O autor nos impele a tomar a infância dá à sua vida é, então, trágica. Da par a sutileza das intersecções entre
de seu personagem narrador como glória da invenção do “divino emplas- infância, maturidade, indivíduo, classe
tempo fundador de sua personalidade tro”, que lhe daria “o primeiro lugar e persistência da lógica do interesse e
e desdobrador de seu comportamento. c
entre os homens, acima da ciência e i n e m
do salvacionismo: faz o pequeno Brás A
Mais que isso, parece natural concluir da riqueza”, o defunto cai à derra- Cubas montar em seu escravo Prudên-
que o menino é não só pai do homem deira negativa: “Não tive filhos, não cio, cavalgando o negrinho como a um
como também pai do morto, pai do transmiti a nenhuma criatura o legado burro de carga, na base do chicote (o
nosso defunto autor: o Brás Cubas da nossa miséria”. Não nos engane- menino é pai do homem), dá relevo ao
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que narra não adquiriu poderes de
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mos: não é da humanidade que Cubas
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mal-estar do encontro com o mendigo

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Valéria Simões/Divulgação
Vantoem Pereira Junior/Divulgação

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Petrônio Gontijo (à esquerda) e Otávio Müller
nos papéis de Brás Cubas quando jovem
e do político Lobo Neves, respectivamente
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Sonia Braga em cena de Memórias póstumas,
representando a cortesã Marcela, primeiro amor
de Brás Cubas
A
Quincas Borba e ao futuro reatamento manter as incongruências de raça e de Klotzel parece ter optado por subverter
da amizade com o Quincas aristocrata, classe em segundo plano, condizente a estrutura formal do livro, paradoxal-
encena com ironia a pequenez da vida com a miopia e a sandice do protago- mente realizando um filme austero em
política brasileira, prolonga a temática
do filme até nossos dias na colagem
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nista e autor Brás Cubas, mas não do
autor Machado de Assis, que é quem
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sua forma. A simples presença de um
narrador falastrão, que inúmeras vezes
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de embalagens e propagandas do em- lhes dá forma. se dirige diretamente à câmera, de certo
plastro (precursor dos nossos atuais Outra das principais discussões que já é subversão formal suficiente para o
psicotrópicos, como prozacs, lexotans envolvem a obra de Machado é a sua cinema brasileiro atual – e condiz com o
e ecstasys) e nas imagens de obras classificação como “romance”. De certo, caráter satírico a que o protagonista é
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modernistas, como Operários, de Tar-
A Machado não é um romancista realista submetido. Outro ponto forte do filme
sila do Amaral. como Balzac, Flaubert, nem mesmo são as encenações dos desvarios de Brás
Se buscarmos uma correspondên- como Stendhal, autor tão caro a ele pró- Cubas: seu delírio de morte montado em
cia para o filme na recepção crítica da prio e ao seu defunto autor. O realismo um hipopótamo, viajando até o começo
obra de Machado, podemos dizer que machadiano, nas Memórias, é híbrido de dos séculos, sua pequena fantasia sobre

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essa leitura de Klotzel segue uma inter-
pretação sociológica da obra macha-
diana, análoga à de Roberto Schwarz
i n
investigação psicológica e vanguardismo
formal, cimentado na ironia – a tão
falada ironia machadiana, que em Memó-
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a nudez e a necessidade da roupa –
fantasia social – para o bom funciona-
mento das relações humanas, suas ações
A
em Um mestre na periferia do capitalismo. rias póstumas é arma de amarga sátira à filantrópicas na Ordem Terceira. Episó-
Da incisividade de cenas como a do sua própria personagem, representante dios esses centrais para a compreensão
menino Brás cavalgando o seu escravo da aristocracia brasileira. É Brás Cubas, da obra, ainda que para não alongá-la
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(no filme, mas também no livro), sur-
preende que Machado de Assis tenha
n e
em ótima interpretação de Reginaldom
Farias, o principal alvo da ironia de
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demais o cineasta tenha suprimido passa-
gens importantes do livro, como o capí-
sido considerado por tanto tempo um Machado, que faz rir das elocubrações tulo “O almocreve” e as relações tumul-
autor apolítico ou desinteressado da filosóficas do protagonista. E não são tuadas de Brás Cubas com a irmã Sabina
história do país. poucas as suas “teorias”: imagina que e o cunhado Cotrim, cujos interesses nos
Parece aqui um caso de confusão “as botas apertadas são uma das maiores negócios escravistas batiam com os posi-
entre autor e personagem, outra das venturas da terra”, afirma que “a contem- cionamentos políticos volúveis de Brás
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questões tão bem dissimuladas nesta i n
plação do nariz constitui o equilíbrio das e Cubas. m A
obra do autor. Sem dúvida, o perso- sociedades”, infere a lei da equivalência Resta comentar a excelente inter-
nagem Brás Cubas, parte da elite das janelas, concebe a filosofia dos epitá- pretação de Viétia Rocha como Virgília
brasileira do século XIX, está com- fios e, por fim, a culminância das sandi- – essa personagem tão ou mais dissi-
pletamente alheado do processo histó- ces, adere ao Humanitismo de Quincas mulada que Capitu –, que também,
C i n e m A rico, apesar de seus intermitentes e
narcísicos sonhos de carreira política.
Borba, que Machado usa para satirizar
o positivismo e o darwinismo social que
como a mulher de Bentinho, só conhe-
cemos a partir das palavras do homem
No filme de Klotzel, a bem cuidada contavam com enorme prestígio na época. que a amou, e a quem a atriz conferiu
reconstituição do Rio de Janeiro da Na forma fragmentada de seus ambigüidade, dissimulação e traiçoeiro
época colonial a todo momento indica, capítulos e no estilo de narrar descontínuo encanto.
como pano de fundo, a presença ser- e digressivo reside a força da prosa de
Bruno Zeni
vil do negro, as relações de interesse Machado, que a mantém em um patamar jornalista, mestrando em Teoria Literária na FFLCH-USP e escritor,
e de paternalismo. Recurso esse, de c i
de atualidade absoluto. Quanto a isso, n e m A
autor de O fluxo silencioso das máquinas (Ateliê Editorial), no prelo

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