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Verso e Reverso, XXVII(66):236-242, setembro-dezembro 2013

© 2013 by Unisinos – doi: 10.4013/ver.2013.27.66.10


ISSN 1806-6925

Onde o jornalismo mostra e reflete sobre seu fazer:


o caso do documentário contemporâneo1

Where the journalism shows and reflects on its doing:


the case of contemporary documentary

Fabiana Piccinin
Universidade de Santa Cruz do Sul
Av. Independência, 2293, 96815-900, Santa Cruz do Sul, RS, Brasil
fabi@unisc.br

Resumo. A ficcionalização é inerente à narrativa no Abstract. The fictionalization is inherent to the doc-
documentário, ainda que se coloque como um gêne- umentary narrative, even if it puts as a genre com-
ro comprometido com o jornalismo e, portanto, com mitted to journalism and therefore the real. For this
o real. Por conta desse compromisso com a referen- commitment to referentiality, the marks of fiction
cialidade, as marcas da ficção sempre foram razão have always been a reason for its concealment ef-
de um esforço por seu encobrimento. A discussão fort. The discussion that updates the debate, how-
que atualiza o debate, no entanto, diz respeito a ever, concerns a trend present in contemporary
uma tendência presente na produção audiovisual audiovisual production to abolish this concern, ex-
contemporânea no sentido de abolir esta preocu- plaining the processes of production and assembly.
pação, explicitando os processos de produção e More than showing, documentaries want, in this
montagem. Mais do que mostrar, os documentários process, discuss the impossibility of making aseptic
querem, neste processo, discutir o próprio fazer e a real record, promoting new formats, positioning it
impossibilidade do registro asséptico do real, pro- somewhere between the journalistic and artistic.
movendo novos formatos, posicionando-o num lu-
gar entre o jornalístico e artístico.

Palavras-chave: documentário, ficção, realidade, Key words: documentary, fiction, reality, new tech-
novas tecnologias. nologies

A ficção documental exploração do recurso da trucagem2, abrindo


as fronteiras de dois caminhos narrativos no
Foi a partir de registros das situações mais cinema: a ficção e a não ficção.
cotidianas que o cinema se apresentou em Assim, o cinema começa por suas preten-
sua origem, no desejo justamente de reve- sões documentais e, em que pese a impossibili-
lar o mundo nos fins do séc. XIX. Enquanto dade estrita dessa divisão, como se vê ao longo
os irmãos Lumière se dedicavam à tarefa de da história e da experiência cinematográfi-
registrar este real, George Meliés investiu na ca, coube aos documentários ocuparem-se

1
Este artigo foi apresentado, sem alterações, no 9º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo promovido pela
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo em uma Comunicação Coordenada sobre Telejornalismo
na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de 2011.
2
É trucagem toda manipulação na produção de um filme que acaba mostrando na tela alguma coisa que não existiu na
realidade. (Aumont e Marie, 2003, p .293).
Onde o jornalismo mostra e reflete sobre seu fazer: o caso do documentário contemporâneo

das chamadas narrativas não ficcionais. Ain- cios de realidade, posto que a câmera põe em
da que, como diz Aumont (2009) todo filme registro o ausente que não está lá. É a conjun-
seja um filme de ficção, ou segundo Nichols ção da realidade do movimento e da aparência
(2008), todo filme seja um documentário, po- das formas que motiva o sentimento da vida
de-se dizer que há um sentido mínimo de res- concreta e a percepção da realidade objetiva.
peito à indexação entre a produção ficcional e Então, mesmo comprometido com a arte de
a não ficcional. documentar um certo real - enquanto jornalís-
Pela perspectiva de Nichols (2008), há os tico – o documentário se utiliza dos recursos
documentários de satisfação de desejos e do- da ficção para tornar-se verossímil. E nem as
cumentários de representação social. Nestes imagens como réplicas do real são suficientes
últimos estariam classificados os documentá- para garantir o registro objetivo.
rios que lidam com a informação referencial – Para Amado (2005), “(...) fatos e ações são
não ficcionais portanto –, enquanto o primeiro verdadeiros no documentário porque são
modelo é entendido como os filmes de ficção. existentes. Não são imaginados. Mas ocor-
E ainda assim são tomados como documentá- re que são submetidos a arranjos e jogos de
rios porque tratam de histórias ficcionais que verossimilhanças que, ao menos, comovem
se dão e estão inseridas num certo contexto no seu afã de autenticidade e evidência” (p.
histórico e social. 226). Ou seja, o documentário, enquanto ex-
No que diz respeito aos documentários de pressão de conduta e enquanto formato jor-
representação, que são os que aqui nos inte- nalístico, lança mão de operações e estraté-
ressam, estas narrativas audiovisuais buscam gias que provocam a crença de quem assiste,
mostrar o mundo a partir de um engajamento posto que oferece a veracidade que o público
do diretor. É na defesa de um ponto de vista e reconhece no que veicula. Ou por outra, é do
na interpretação de provas que o documentá- seu valor ou de sua tradição a capacidade de
rio se engaja (Nichols, 2008), associando des- transmitir uma impressão de autenticidade.
crições, argumentos ou evocações que permi- (Nichols, 2008).
tam ver o mundo de uma nova maneira. Tradicionalmente, o discurso jornalísti-
Por conta desse olhar, pode-se dizer que co tem a verdade e o real como referentes e
o documentário representa o interesse de um utiliza-se de recursos que legitimam as regras
coletivo, na medida em que documentaristas de um jogo na produção de um efeito de real.
assumem o papel de representantes públicos, Essa subjetividade do discurso faz com que se
apontando para o que há de jornalístico em dispense atenção ao que é mostrado. “É isso
sua forma de ser. Os documentários falam em o que fazemos com a câmera: “preste atenção
favor dos interesses dos outros, nesse sentido. nisso”. A literatura faz isso descrevendo.” (Xa-
No entanto, essa busca por algo do real para vier, 2005, p. 140).
que seja evidenciado ao público se dá pelo Neste sentido, pode-se pensar que é carac-
tratamento criativo da realidade, e o que, jus- terística própria do documentário - e que, por-
tamente o torna diferente das outras formas tanto, o coloca em um lugar outro que não a
de audiovisuais de não ficção. (Wiston, 2005, ficção, em que pese sua condição narrativa - o
p. 21). É na retórica eficaz do discurso que o fato de que trabalha no investimento da cren-
documentário assenta sua força, a capacidade ça. E assim, o documentário pode assumir jun-
de fazer crer apostando em fazer parecer real to com a ficção realista este lugar de fazer com
uma certa ficção, forçosamente fruto da esteti- que o espectador, na impossibilidade de viver
zação da narrativa. o real, vivencie este que está lhe sendo ofere-
Se “representa” uma realidade, o docu- cido, com tudo que possa ter de polissêmico e
mentário assume a ideia da impossibilidade ambíguo conforme apontam Lima e Alvaren-
de acessar esse real – o real nem mesmo existe, ga (2010) ao evocar a interpretação de Bazin
apenas sua interpretação – numa busca pela (1991) sobre a polissemia da imagem.
maior proximidade, mesmo sabendo da im- Lembremos, como diz Giacomini (2009),
possibilidade do grau zero de recriação em que para Vertov ontem – e para os documen-
relação à narração desta realidade. Como bem taristas hoje –, o revolucionário no documen-
proposto pela mimeses aristotélica, trata-se tário foi e tem sido a forma de captar a “vida
sempre de uma cópia da realidade. como ela é” e a forma de organizar esses tre-
Para Metz (1972, p. 20), mesmo com o apelo chos da vida real para revelar o que o olho hu-
convincente de real da imagem, tratamos no mano não consegue ver no cotidiano. Vertov,
cinema da impressão de realidade ou de indí- que fez a defesa do que convencionou chamar

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de “cine-olho”3, declarou guerra aos procedi- crua do real. Essas fases e ênfases permanecem
mentos de roteirização dos documentários e ao longo do século XX e XXI, em diversas pro-
de representação dos atores. duções que mantinham a mesma preocupação,
Por isso, o discurso do documentário em- ainda que convivessem com diferentes percep-
presta “realidade” a nosso sentimento no mun- ções no que diz respeito ao entendimento da
do ao mesmo tempo em que organiza os acon- posição da câmera frente a esse real.
tecimentos para o espectador. Imprime-lhe Enquanto o modo observativo pressupu-
por isso sentido, atendendo à função primeira nha a distância com o filmado, novas formas
da narrativa de organizar a experiência e de narrativas foram surgindo no movimento in-
registrar a memória da história dado o fato de verso a isso e que, da mesma maneira tiveram
que o faz oferecendo-se como verdade. grande expressão ao longo da história do do-
cumentário. Tomamos como exemplo disso
Formatos híbridos e explícitos: os modos participativo, reflexivo e os mocku-
mentaries5, a partir dos anos 70 até a contem-
A discussão sobre a narrativa do docu- poraneidade, que se colocam em linha contrá-
mentário e sua inerente ficcionalidade impor- ria à assepsia com o registrado. E mais do que
ta aqui porque na perseguição ao objetivo de não encobrir os processos que deram origem à
produzir o efeito de real, tanto o cinema de história, esses modos de registro tem apresen-
ficção clássico quanto os documentários cons- tado como novidade o desejo de mostrá-los e,
truídos pelos princípios da gramática ficcio- sobretudo, problematizá-los.
nal, como diz Giacomini (2009 p. 262), primam Os documentários participativos, por
pelo escamoteamento dos procedimentos que exemplo, já vem deixando clara essa idéia de
levaram a história à tela. “O “por trás das câ- interação com o real e, portanto, de subjetiva-
meras” jamais aparece, a quarta parede não ção da narrativa desde os anos 80. Esses filmes
pode ser quebrada, a câmera não existe”. E por documentários vivem essa tensão de docu-
isso, até então, o efeito de real pressupunha a mentários desejos de ficção e de uma ficção
não explicitação de seus meios em função de com desejos de realidade, tomando a classifi-
seus fins, não abrindo espaço, limitando as re- cação de Nichols (2008). São filmes extrema-
lativizações do que se entende por ficção e por mente ricos justamente por isso, e que, nesse
não ficção. sentido, expressam uma subjetividade tal
De fato, a discussão sobre os limites da fic- como muitos de nós vivenciamos atualmente
ção narrativa e do jornalismo lutando pela as- (Bernardet, 2005).
sepsia de suas balizas orientadoras da objetivi- Filmes como os de Michael Moore como
dade e da imparcialidade é sem fim. A partir da Roger e Eu (1989) e Eduardo Coutinho em Ca-
classificação de Nichols (2008)4, pode-se dizer bra Marcado para Morrer (1964/1984) e Santo
que o cinema documentário defende com mais Forte (1997) são bons exemplos deste movi-
intensidade essa idéia de distanciamento com mento do diretor que apresenta e se apresenta
relação ao registro do real em fases como a do interagindo na ação. Nessa linha, mas agindo
Free Cinema inglês nos anos 50 e do cinema di- de maneira um pouco mais ousada, podemos
reto americano dos anos 60 com o modo obser- dizer, estão os documentários performáticos
vativo de fazer documentário. A câmera discre- ou, segundo alguns autores, entendidos como
ta, metaforizada pela idéia da mosca na parede um tipo particular de documentário participa-
pregava o olhar novo sobre o real e sem embele- tivo: o de busca.
zamento. Uma dinâmica que recuperava a orto- São produções marcadas por mostrar seus
doxia do cine-olho de Vertov, na década de 30, processos de operacionalização, propondo
que por sua vez, defendia a representação nua e nisso seminalmente uma discussão sobre o

3
Segundo Vertov, o cinema é um instrumento de mostração. Mas mostrar (que supõe montar) só pode se fazer com
base em uma visão correta: não se organiza o real visível se ele não for realmente visto. Essa visão é trabalho da câmera
cinematográfica, descrita como um super-olho. E esta é o conceito de cine-olho do autor. (Aumont e Marie, 2003, p. 297).
4
Segundo Nichols (2008), existem seis modos de documentários: o modo poético, expositivo, observativo, participativo,
reflexivo e performático.
5
Mockumentaries são os falsos documentários ou pseudodocumentários segundo Nichols (2008, p. 51). O filme tem um
tipo de estrutura institucional que se apresenta de maneira maliciosa como documentário para então revelar-se uma
fabricação ou simulação de documentário. Muito de seu impacto irôncio depende da habilidade com que, pelo menos
parcialmente, nos induzem a crer que assistimos a um documentário simplesmente porque nos disseram que aquilo que
vemos é documentário.

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próprio fazer. São filmes experimentais, pes- espectador todos os dilemas que envolvem as
soais e de vanguarda, com ênfase no impac- decisões de filmagem, de organização do ma-
to emocional e social (Nichols, 2008). É o caso terial filmado, de montagem e de perspectiva a
de 33 (2003) de Kiko Goifman e de Passaporte ser dada à narrativa. Tanto que o diretor sente-
Húngaro (2003) de Sandra Knougt. No primei- se forçado a abandonar a produção para voltar
ro, o diretor, que é filho adotivo, ao completar a ela anos mais tarde.
33 anos, resolve fazer um documentário so- Nesta perspectiva, para Nichols, no modo
bre sua busca pela mãe biológica, registrando reflexivo de fazer documentários o saber não
num diário on line a investigação. Já Sandra, é apenas localizado, mas ele mesmo sujeito a
por meio da busca do passaporte húngaro, questionamento “(...) em relação com questões
desvenda a história da própria família, dividi- fundamentais sobre a natureza do mundo, a
da entre dois mundos e dois exílios. estrutura e a função da linguagem, a auten-
Os dois diretores, para caracterizar seu ticidade do som e da imagem documentais,
projeto de busca e o seu andamento em ter- as dificuldades da verificação e o estatuto da
mos de filmagem, usam a palavra “jogo” no evidência empírica na cultura ocidental”. (Ni-
fazer documentário. Para Sandra, a filmagem chols, in Da Rin, 2006, p. 192)
é o jogo de uma filmagem”, a mise-en-scène e o A tendência à explicitação dos processos
jogo é a própria encenação: de produção que resultaram na história tem
sido tão notória que, para alguns autores,
Na verdade, acredito que quanto mais explícita essa problematização se tornou a própria
for a mise-en-scène, mais naturais as situações marca do cinema documentário contempo-
podem ser, porque fica claro para ambos, tanto râneo de maneira geral. Ou, por outras pala-
para mim quanto para as pessoas que estou fil- vras, os diretores assumem a construção das
mando , que estamos num filme. Quanto mais
realidades no documentário na medida em
clara a nossa posição, mais fácil estar ali. Então,
que este se propõe a refletir sobre seu fazer
é o contrário da câmera escondida. É, na verdade,
uma câmera super-presente – tão presente que tornando-se exatamente a grande questão da
ela faz parte da essência mesma da minha relação narrativa. Para Vieira essa necessidade de re-
com as pessoas. (Bernardet, 2005, p. 145). velar as modificações:

Com os documentários performáticos tem- (...) que o equipamento e a equipe técnica produ-
se a explicitude do processo de produção na zem sobre os eventos, a invasão da privacidade, a
diferença entre a expectativa da objetividade e a
medida em que a busca ou o fazer das filma-
visão subjetiva do realizador, as implicações ide-
gens constitui-se no próprio documentário. Há ológicas do documentário e a responsabilidade do
uma pré-roteirização mínima, uma vez que cineasta frente ao público faz com que os filmes
não se sabe o que irá acontecer, qual o desfe- se tornem Auto-Reflexivos. (Vieira, 2006, p. 6).
cho da história, e muito do documentário se
delineia nas filmagens e na subseqüente mon- Além do modo reflexivo, também os mo-
tagem que por sua vez está condicionada ao ckumentaries, ao ironizar essa representação
resultado imprevisível. E é por essa razão que fiel e engajada dos fatos a que se propõem os
se pode dizer que a busca é a própria história documentários – ainda que o formato irônico
que está ali para, em última análise, discutir não comprometa a mensagem que quer passar
o próprio fazer, a documentação audiovisual. – relativizam as verdades apresentadas. Na
Além deste modo, também o formato refle- verdade, pela proposta do ridículo, o sentido
xivo põe-se como uma maneira mais explícita do mockumentary acaba por ser reafirmado.
da intenção de documentar ao mesmo tem- Recife Frio (2011) é um exemplo disso. O filme
po em que discute o trabalho e a obra docu- narra a história da capital de Pernambuco ví-
mentário. Assumindo os dilemas da narrativa tima de uma estranha mudança climática que
documental em seus limites ficcionais ou não traz uma onda de frio à cidade. E faz das altas
e em todas as decisões afeitas ao processo, o temperaturas coisa do passado. A ironia não
documentário propõe a dúvida epistemoló- está só na surrealidade do tema, mas também
gica sobre o tanto de realidade que se altera no fato de que a narrativa é apresentada no
somente mediante a presença do equipamento filme pelo registro de um documentário fei-
e o quanto essa alteração cresce na sequência to por uma Tv estrangeira que dá conta dos
dos procedimentos de filmagem. acontecimentos.
Um bom exemplo deste modo é Santiago Assim, o mockumentary alinha-se à idéia
(2007) de João Moreira Salles, que expõe ao de propor a explicitação do fazer documentá-

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rio e à conseqüente relativização da idéia da (...) nota-se uma desmesura na relação do real com
verdade totalizadora como pretenderiam os o ficcional, (...), numa perspectiva mais radical,
documentários em seus formatos mais orto- um completo desaparecimento da representação
doxos, buscando o registro do real. Nesse sen- e do próprio real. Essa é, por exemplo, a opinião
de Baudrillard e também de Žižek, para ambos o
tido, é preciso concordar com Vieira quando
real se tornou um visitante incômodo e indeseja-
diz que o que se documenta é a maneira de do. Para Baudrillard, ele perdeu seu caráter refe-
documentar porque o espectador percebe as rencial e foi lentamente dissolvido numa relação
regras do jogo e como a história é construída. sígnica que já não se preocupa nem mesmo em se
“O cineasta é refém da linguagem cinemato- referir aos objetos, existe apenas uma proliferação
gráfica que utiliza e, com isso, acaba condu- de signos curto-circuitantes. Sob esta perspecti-
zindo o documentário para a comprovação va, ele declara a greve dos acontecimentos e des-
daquilo que pensa em relação ao tema aborda- taca a irrealidade de um mundo simulado e preso
do.” (Vieira, 2006, p. 6). em sua simulação. Para Žižek, o Real já não pode
ser absorvido e quando ele ousa mostrar-se, pre-
Portanto, se os limites imprecisos da fic-
cisamos nos defender irrealizando-o, precisamos
ção e da não ficção deixaram de ser motivos
dar-lhe uma capa de irreal espectro de pesadelo.
de acobertamento de seus processos e, mais A experiência de real, nesse caso, talvez possa ser
do que isso, passaram a ser incorporados à descrita nos termos kafkianos, como uma espécie
narrativa, convertendo-se na própria história de enjôo em terra firme. (Costa, 2010, p. 1).
do documentário, importa pensar o que exa-
tamente vem disparando este processo. O que Assim, as narrativas contemporâneas que
mudou na percepção dos documentaristas e se propõem a interpretar seu tempo sofrem
sua proposta estética. Na impossibilidade do a interferência da relativização dos conceitos,
registro do real, apresenta-se a própria limi- ao mesmo tempo em que a narrativa se as-
tação como temática e fio condutor das histó- sume nessa impossibilidade de registro e de
rias narradas, assumindo a limitação também acesso a uma verdade que continuamente se
da referencialidade jornalística. E tendo desta apresenta pulverizando-se ou não existindo
forma, menos um problema e mais uma es- a partir desse real difuso. E no caso do docu-
tratégia; a de abandonar a promessa do que mentário, vemos a necessidade, em tempos de
parece ser impossível oferecer e, ao mesmo limites pouco claros que ante à categorização
tempo, a de convocar o espectador a se intei- convencional das narrativas, exige-se outros
rar das “regras do jogo” como bem pontua padrões de compreensão pela reinvenção das
Vieira (2006). mesmas. Novos formatos surgem do imbrica-
mento completo e explícito das ficções e não
As razões do imbricamento e da ficções. E assim, como diz Gutfreind (2006, p.
suspensão do encombrimento 6), “(... ) o documentário não é mais considera-
do como pertencendo a um gueto, engessado
A discussão sobre os limites tênues entre a em um gênero bem definido, cujo certificado
ficção e a não ficção tornou-se tema ascenden- de autenticidade se sustenta na verdade”.
te entre as narrativas literárias, jornalísticas e Para a autora, é possível encontrar filmes
audiovisuais contemporâneas na medida em em plena evolução sem necessariamente uma
que é entendida como um sintoma da fluidez unidade ou uma definição e cuja inspiração
e da fugacidade das relações e interpretações continua sendo a realidade. Forçosamente esse
de conceitos contemporâneos. fenômeno, diz ela, leva a identificar a plurali-
A perda de um referente capaz de garantir dade e o entusiasmo no processo criativo nos
as epistemologias com a superação da estéti- quais a ficção deixa a desejar, ao mesmo tempo
ca racionalista moderna produziu uma ero- em que força o documentário a encontrar sua
são das metanarrativas, instaurando um novo essência e sua característica que o torna inca-
tempo de limites difusos. Para Costa (2010), paz de ser comparável com outros gêneros
essa falta de segurança com relação ao real Num sentido mais largo, essa idéia que se
perpassa todas as manifestações contemporâ- manifesta enquanto estética contemporânea
neas e especialmente as representações audio- nos documentários se revela como conseqüên-
visuais. E este fenômeno pode ser percebido cia de um tempo em que o real radiografado,
justamente na discussão sobre o estatuto da dissecado e mostrado continuamente, tende
ficção e da não ficção e no que chama de dis- para a sua própria estetização. O que se pro-
puta pela melhor representação realista diante blematiza aqui é o contexto de intenso uso
da “ausência do próprio real”: das novas tecnologias e da popularização do

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Onde o jornalismo mostra e reflete sobre seu fazer: o caso do documentário contemporâneo

acesso às imagens que vai, enquanto imagem, mera não passa de um grande estúdio cheio de
substituir o concreto e produzir um efeito de pessoas ávidas em mostrar sua experiência pes-
ficcionalização deste real. Ou, no dizer de Mar- soal para que essa lhe renda alguma celebridade,
tins, da ficcionalização do próprio dia a dia: como nos reality shows, e, de outro lado, ainda é
possível encontrar um mundo externo e intocável
onde ainda é permitido aceder com uma câmera
A onipresente necessidade de visualização cria,
cinematográfica. Diante desse impasse, o docu-
na vida cotidiana, um efeito de ficcionalização.
mentário usa estratégias para cativar o público,
A realização efusiva de imagens por aparelhos
dando ao formato procedimentos do entreteni-
eletrônicos e digitais implica numa crescente
mento (...). (Gutfreind, 2006. p. 7).
sensação de perda da concretude: tudo se torna
ficção! Como estar em uma festa quando dezenas
de câmeras digitais com seus flashes constran- Neste sentido é que as novas formas de
gem o comportamento de tudo e de todos? O que documentar encontram o ambiente propício
pensar dos telefones móveis, que cada vez mais para sua emergência no cenário contemporâ-
virtualizam nossa inserção espacial e temporal? neo. A partir da realidade ficcionalizada, as
(Martins, 2009, p. 8). produções audiovisuais lançam mão de todas
as estratégias de convencimento no desejo
Martins (2009) aponta para os realities sho- de tornar mais real o que está sendo mostra-
ws como uma expressão de forte evidencia do, coincidindo com esse desejo de revelar o
disso, bem como dos próprios documentários, mundo do cinema (Costa, 2010). E o mais real
mostrando que a realidade espetacularizada que o real é também a tentativa de explicitude
vai ganhando força na contemporaneidade e dos processos de encombrimento do fazer no
cada vez mais confundindo os lugares da fic- documentário. É a promessa da transparência
ção e da não ficção porque se apresenta como e de autenticidade dos fatos que, por sua vez,
a tradução mais próxima desse real ficcionali- tratam do que marca a narrativa documental.
zado a partir da profusão das câmeras e subse- Num movimento dialético de trânsito entre
qüentes registros imagéticos. Ou seja, a reali- a não ficção e a ficção, as representações se
dade está sendo continuamente ficcionalizada, mostram sem “cortes”, estrategicamente bus-
o que justificaria a ascendência da oferta de cando seduzir o espectador e prometendo
narrativas formatadas a partir da estética rea- esse despir como quem oferece as verdades,
lista em que as “imagens reais intensificadas” ainda que estas estejam no âmbito do inaces-
se afirmam na oferta de produtos audiovisuais sível. E o que há de jornalístico no documen-
como mais autênticas que a própria realidade. tário, paradoxalmente, parece ganhar força
Por isso “(...) há um número cada vez maior
nesse descortinamento, por fazer crer que
de obras cinematográficas “baseadas em fatos
este gênero pode, mais que outros, oferecer o
reais”, e, neste mesmo campo, percebe-se a re-
real em sua plenitude.
descoberta do interesse no documentário, que
passou a compartilhar com os blockbusters as
salas de exibição nos shoppings”. (Martins, Referências
2009, p. 6).
AMADO, A. 2005. Michael Moore e uma narrativa
Pela mesma razão também Gutfreind do Mal. In: M.D. MOURÃO; A. LABAKI (orgs.).
(2006) evidencia a busca pelo real apresentada O cinema do real. São Paulo, CosacNaify, 284 p.
pelo documentário como resultado do fenô- AUMONT, J. 2009. A Estética do Filme. 7ed. São Pau-
meno que chama de telerealidade que acabou lo, Papirus, 304 p.
por tomar o lugar do cinema como lócus de AUMONT, J.; MARIE, M. 2003. Dicionário teórico e
veiculação das experiências dos sujeitos e de crítico de cinema. Campinas, São Paulo, 335 p.
suas performances ao longo da História. O BAZIN, A. 1991. O cinema: ensaios. São Paulo, Bra-
siliense, 164 p.
documentário aproveita-se da realidade fic-
BERNARDET, J.C. 2005. Documentários de busca:
cionalizada para oferecer-se ao seu espectador 33 e Passaporte Húngaro. In: M.D. MOURÃO; A.
acesso a este caminho: LABAKI (orgs.). O cinema do real. São Paulo, Co-
sacNaify, 284 p.
(...) hoje essa situação mudou, devido, especial- COSTA, B. 2010. Paixão e nostalgia pelo real. In: COM-
mente, à grande penetração de câmeras na vida PÓS. Trabalho apresentado ao Grupo de Traba-
privada e o triunfo da tele-realidade como per- lho “Cultura das Mídias”, do XIX Encontro da
versão para o pacto documentário. Ou seja, o Compós, na PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ, em jun
documentário se encontra, atualmente, no limiar 2010. Disponível em: http://www.compos.org.
entre sucesso e o fracasso, pois, de um lado, o br/pagina.php?menu=8&mmenu=&ordem=2&
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