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Gustavo Corção

Testemunho
Júlio Fleichman

Não me foi possível escrever o Editorial deste número limitando-me a dizer alguma coisa a
respeito de Gustavo Corção somente na perspectiva da nossa PERMANÊNCIA. Com uma vida
de tal modo entrelaçada com a dele — mais do que uma honra, uma graça recebida com plena
consciência disso — não poderia deixar de incluir neste número especial a ele dedicado,
alguma coisa em meu nome a respeito do grande paladino da Igreja, instrumento de Deus,
amigo e pai.

Muitos já falaram do escritor, do estilista, do combatente, tanto amigos como inimigos


inclusive — o que talvez seja o pior — inimigos que minimizam o valor daquilo que
fundamentalmente os separava. Raros dizem de Gustavo Corção alguma coisa sem se
lembrarem de São Paulo e de suas palavras, “bonum certamen certavi...”. Todos associam a
nobreza clássica de seu estilo a Machado de Assis. Uns lembram com razão a espantosa
convergência, na mesma pessoa, de um raro e penetrante espírito científico e um ainda mais
raro dom de verdadeiro poeta. Os amigos, estes sabem o quanto a fina sensibilidade de
Gustavo Corção fazia-o notar delicadas nuances na complexa trama de relacionamentos
pessoais. Direi eu também, espero, alguma coisa disso. Finalmente, alguns provaram a ponta
de sua espada e dentre estes, houve quem dissesse dele: “um homem mau”.

Do ponto de vista que mais me impressionou quando, já há muito seu companheiro de


trabalho, tomei consciência disso, gostaria de submeter à atenção de quem, por acaso, leia
este artigo, que se dê conta da linhagem espiritual a que pertence Gustavo Corção, linhagem
que atesta a presença de Deus ao longo da história, digamos, espiritual do Brasil. Este pobre
grande povo que ainda é, em sua simplicidade fiel, mantém a seu modo uma fundamental
atitude de piedade religiosa que as organizações episcopais se esforçam por erradicar ou
transformar em algo parecido com as reivindicações sindicais. Nunca nos faltou algum
representante dessa raça de soldado católico cuja fundamental característica é uma decidida
atitude de servidor da Verdade e cuja qualidade fundamental é a força com que Deus o dotou,
instrumento adequado para combater em favor desta Dama. Se o Brasil tem em seu passado
grandes vultos de homens religiosos ligados, de algum modo, à Igreja e à fé — bispos,
pregadores, escritores, músicos — não é nesses e sim em uma especial dinastia de
combatentes católicos dotados de fina acuidade que me parece haver antepassados espirituais
e antecedentes históricos de uma influência do gênero da que exerceu Gustavo Corção.

Penso, em um Visconde de Cairú e sua atuação na Assembléia de 1823. Lembro-me da


agradável surpresa com que ouvi, em conferência pronunciada por notável historiador, como se
distinguiu e como se elevou acima das posições pouco inteligentes dos liberais tipo “Andradas” 
e dos conservadores tio “catolicões”, o bom senso e a energia de Cairú. Esta surpresa foi tanto
mais agradável quanto mais pude notar que o próprio conferencista, liberal de esquerda, ficou
irritado ao descobrir que havia, involuntariamente e pela própria lógica de sua exposição,
assinalado como um homem superior aquele que, para seu horror, defendia na Constituinte por
exemplo, que só católicos podiam ter a liberdade de culto público segundo a tradicional e
imutável posição da Igreja.

Não nos faltou, ao Brasil, um Carlos de Laet e sua alegre esgrima de bom polemista e sua bela
linguagem de grande escritor.

Tivemos Jackson de Figueiredo cuja influência pessoal marcante se impôs a católicos mais ou
menos medíocres (embora em posições destacadas). Arregimentando-os, conseguiu deles que
fizessem obra digna de atenção e apreço, enquanto Jackson viveu.

E tivemos Gustavo Corção, o maior de todos, cujo valor intelectual, sensibilidade de artista,
pena de grande escritor, penetração aguda e familiaridade pessoal com a ciência, reuniam em
uma só e grande figura tantas notáveis qualidades a serviço da fé, do combate pela causa da
Igreja, do serviço do Cristo Jesus.
***

Dos testemunhos que ouvimos nos dias de sua morte, há dois que incluo aqui porque são
importantes e porque talvez se percam se o não fizer. De um padre ouvimos, vários dos seus
amigos, que ao receber pela primeira vez Gustavo Corção que vinha se confessar, sentou-se no
confessionário impressionado com aquele “gigante”, segundo suas palavras, que vinha
ajoelhar-se ao seu lado — “Ouvi, em seguida, uma confissão de criancinha”, disse-nos ele. E
de outro padre, este falando do púlpito, em missa por sua memória, ouvimos que atender a
Gustavo Corção que se confessava, fizera-o sentir uma grande vontade de ser melhor, de ser
mais padre.

Os novos amigos com quem convivemos hoje e aqueles que de nós se afastaram talvez não
saibam, ou se tenham esquecido, que por volta de 1949, 1950, um curioso fenômeno ocorreu.
Vindos das mais diversas origens, ricos uns, pobres outros; uns, católicos toda a vida, outros,
recém-convertidos e entre estes, um pobre judeu ainda tateando no meio de sua confusões;
uns mais moços, outros já maduros; casados ou solteiros, em suma, cerca de quinze ou vinte
pessoas se congregaram em torno das aulas de Gustavo Corção no antigo Centro Dom Vital.
Com os anos, outros apareceram e se juntaram a nós, enquanto que, por sua vez, alguns se
separavam, quer por simples razão de circunstâncias, quer por divergências que os levaram a
caminhos diferentes.

Muitas vezes conversamos entre nós, conscientes de que estávamos recebendo grandes graças
na convergência que nos unia em torno dele por causa da beleza da obra de Deus e de sua
doutrina que nos ia sendo desvendada ao longo do itinerário que seguíamos com ele, como se
fossemos peregrinos de Emaús. Muitas vezes nos perguntávamos, um pouco inquietos, o que
seria que Deus esperava de nós pois era quase evidente que Sua mão nos havia trazido e Sua
voz nos formava através de Gustavo Corção. Inquietava-nos a consciência de que nenhum de
nós parecia dotado de qualidades que fizessem esperar um continuador à altura de Gustavo
Corção. Lembro-me do alvoroço com que recebemos um dos novos membros do Centro Dom
Vital cuja graça no escrever, cuja cultura e afinidade com nosso pensamento por um instante
deu-nos a esperança de havermos encontrado um possível discípulo para o nosso mestre. Mas
a bela esperança desvaneceu-se e nosso amigo, depois de combater algum tempo a nosso
lado, esgrimindo muito bem contra os “estudantes” do “Metropolitano” — órgão esquerdista da
época — ocupou-se com outras coisas e se esqueceu, parece, não apenas de nós mas da
necessidade de atender a um combate mais alto.

Hoje sabemos, creio eu, para que o Senhor nos chamou e para que tão longamente, por quase
30 anos, preparou-nos com tal mestre. Preparou-nos como Ele mesmo se preparou no Horto
das Oliveiras para a Sua hora. Guardadas todas as proporções e feitas todas as distinções, o
Senhor Jesus preparou-nos para a Paixão da Igreja e o fez do mesmo modo pelo qual Ele
próprio se preparou para a Sua Paixão. Assim como, pelo suor de sangue abriu os poros e
exasperou a sensibilidade da pele para ser pouco depois flagelado, assim preparou nossa alma
e nossos corações através de um mestre excepcional que pôde, com fino discernimento e
admiração, transmitir a seus alunos a grandeza e a beleza, a majestade e a bondade e as
exigências da Verdade subsistente. Lembro-me bem das suas aulas e das vezes em que nós
percebíamos no orador, que se esquecia por um momento dos alunos, brilharem-lhe os olhos,
exprimir no rosto o deslumbramento e o amor que as coisas de que falava despertavam dentro
dele. Foi assim que fomos preparados. Seus ensinamentos e exemplos e conselhos, ao mesmo
tempo retificavam muitas deformações que o século, a escola, o jornal haviam introduzido em
nossa inteligência e em nossa sensibilidade e, nas nossas almas debruçadas derramava os
dons que recebera da Igreja, dos grandes santos doutores, pregadores, confessores e
mártires. Foi assim que fomos preparados para que a Paixão da Igreja nesta hora de trevas
não fosse recebida apenas por pessoas indiferentes ou meio-adormecidas que se ponham a
diminuir a gravidade imensa da tragédia que se desenrola sob seus olhos. Para tão terrível
espetáculo e para tão dramático flagelo em que vemos não só bispos e padres — quase todos
e em quase todos os lugares — mas até as próprias autoridades do Vaticano, o próprio Papa
falarem linguagem diferente daquela que a Igreja usou durante 20 séculos e evidentemente
porem a perder tantas almas, para isso, era preciso, é imprescindível que uma espécie
diferente de martírio abrasasse almas preparadas para este convite: seguir o Senhor Jesus
nesta especial seqüela de sofrimentos, carregar esta especial forma de Cruz. Nós fomos
especialmente preparados, para sofrer intensamente o sofrimento da Igreja sem que o
soubéssemos então. Agora, sim, sabemos e quem no-lo ensinou e quem mostrou-nos uma
dimensão inesperada e uma grandeza da qual não somos dignos da graça magnífica que
recebemos, foram os próprios autores deste flagelo, não nós. Fomos preparados com a
grandeza e a beleza das coisas de Deus para que nos ferisse profundamente, sim, para que se
cravassem doloridamente em nossos corações os espinhos dessa coroa que voltam a colocar
sobre a cabeça do Senhor. Espancam-nos no rosto, os Cardeais e bispos que se atrevem a
dizer o que gritam sobre os telhados. Somos traídos e abandonados com o que nos vem de
Roma.

E fomos também preparados longamente, com a voz da Mãe e Mestra, com o que nos prega e
dá há mais de 20 séculos para que nessa hora pudéssemos resistir e procurar socorrer nossos
irmãos. Fomos preparados assim para o combate que Gustavo Corção combateu.

Hoje, bem o sabemos, bem o sentimos, estamos prontos. Sobretudo sabemos chegou a nossa
hora porque morreu Gustavo Corção deixando-nos na primeira linha de combate sem suas
qualidades e sem os recursos que ele dispunha. Mas sabemos que nossa hora chegou e que
agora devemos pedir o socorro de Deus, a intercessão de Nossa Senhora, de São Miguel, São
José e dos outros nossos santos, as orações de Gustavo Corção, Alfredo Lage, Fernando
Carneiro, Fábio Alves Ribeiro, e de tantos outros companheiros não mais apenas para que
continue a ser bem feita a formação dos que ficaram mas para que seja bem recebida e
fecunda em nós a obra que a graça de Deus empreende conosco sem o auxílio direto e
presente, na Terra, dos nossos predecessores. Suplicamos, supliquemos que nosso coração
não desfaleça e que a evidente inutilidade dos servidores que sobraram, a inevitável
obscuridade de todo o nosso trabalho, não abata o nosso ânimo e não nos faça pesado o
coração.

***

Não queria terminar este artigo sem algumas referências pessoais que me parecem devidas.

Grande escritor, feroz polemista, ardente pregador Gustavo Corção não deixava, de notar,
como disse no princípio, aspectos de fina sensibilidade no seu relacionamento com os demais,
aspectos que se imaginaria não terem sido percebidos. Ele podia sentir no obscuro ouvinte de
uma aula, dos mais distantes de sua convivência pessoal, algo que lhe inspirasse uma espécie
de inclinação piedosa. Muitas vezes se dava ao trabalho de telefonar para os amigos, tomar a
iniciativa de manifestar-lhes uma amizade e um interesse de uma forma, com um calor que
surpreendiam. Houve tempo em que, sem recursos, amigos pobres eram buscados em suas
casas e levados por Corção em seu carro para a casa dele onde o gosto comum pela música
proporcionava-lhes freqüentes audições de Bach ou Mozart em magnífica instalação sonora que
o técnico e inventor Gustavo Corção se esmerara em montar. Numa dessas vezes, vindo
buscar-nos, a mim e a minha mulher, esta lhe disse, já no meio do caminho: “Hoje, Dr. Corção,
creio que vou ouvir uma música diferente na Maternidade”. Fomos diretamente para a Casa de
Saúde São José onde ficamos os dois andando, Dr. Corção e eu, pelos corredores, noite a
dentro, até que soubemos que havia nascido meu filho Gustavo, seu afilhado, para o qual o
padrinho escreveu uma bela carta, “Os Seis Gustavos”, e a dedicatória que junto a esta

publicação.1

Este combatente jamais deixou de surpreender aqueles que só o conheciam de leitura, quando
seu belo sorriso desarmava as apreensões; seu ânimo vivaz surpreendia pelo vivo interesse
por tantas coisas, mesmo no meio de aflições e doenças; seu valor, reconhecido por amigos e
inimigos, poderia tê-lo levado a um fútil desvanecimento, mas, ao contrário, mostrou-me, a
mim, muitas vezes, sua capacidade de se inclinar para quem não tinha paridade com ele e
para quem estava longe de sua altura. E inclinando-se assim, imitaria talvez a inclinação
chamada Misericórdia cuja definição, segundo os teólogos consiste precisamente no ato de
amor incompreensível pelo qual o Superior se inclina para o inferior, o Perfeito, para o
imperfeito.

Para quem o acompanhou por tantos anos como discípulo e auxiliar preciso dizer, com toda a
força de minha própria severidade, que nunca o vi desmerecer minha exigente admiração. Não
quero dizer que não tivesse defeitos. Tinha-os, conheci-os, por experiência própria e por
experiência alheia. Mas vi Gustavo Corção enfrentando situações difíceis, tanto com relação ao
risco de vida que correu mais de uma vez quanto com relação a momentos da vida que um
homem maduro sabe que em geral constrange as pessoas comuns quase inevitavelmente. Por
exemplo, fui testemunha de uma difícil entrevista com o Cardeal D. Jaime em que este,
cercado por todas as manifestações de respeito e submissão que, como leigos, então
prestamos a um verdadeiro Cardeal, dizia ao Prof. Corção, ao Prof. Gladstone Chaves de Melo e
a mim: “Sei que os senhores devem ter motivos de queixa porque eu não levei adiante o
projeto que lhes havia dito ser minha intenção promover”. Qualquer pessoa na posição de
Gustavo Corção, com seu renome e sua responsabilidade, teria dito uma dessas frases de
conveniência que tais situações sugerem ainda mais naquela época em que, parece, só assim
se falava a Cardeais. Mas o Dr. Corção respondeu: “Senhor Cardeal, não creio que o Sr.
preferisse que nós começássemos esta entrevista mentindo. Por isso vejo-me forçado a lhe
confessar que, efetivamente, o senhor nos deixou desapontados”. Como poderia eu impedir
que crescesse minha admiração? 

(Revista Permanência, N° 116 a 119, Ano XI)

1. [N. da P.] Eis a tocante dedicatória a que alude Júlio Fleichman: “Meu querido afilhado,
Seus pais escolheram para você um velho padrinho com idade de avô e saúde de bisavô.
Sendo pouco provável que eu possa conversar com você nos dias difíceis das primeiras
crises, quando aos olhos do moço o mundo parece absurdo e mau, ou quando o sopro das
idéias passageiras puser em risco a chama da vela do seu batismo, aqui fico a esperar por
você meu caro Gustavo, neste livrinho, ‘A Descoberta do Outro’, escrito depois das
tempestades que também atravessei. E o que o livro não puder fazer, praza a Deus que lá no
céu o velho padrinho possa conseguir para você aos pés do trono de Deus três vezes santo.
22/05/1960 Gustavo Corção”.

Bibliografia comentada
Como não existem reedições dos livros de Gustavo Corção, apresentamos abaixo uma
bibliografia comentada. Caso o leitor encontre nos sebos estes livros, poderá saber do
que se trata. Mas gostaria de sublinhar o fato que o pensamento político de Gustavo
Corção, muito influenciado pela obra do filósofo francês Jacques Maritain, até os anos
60, foi corrigido em seu último livro, pelas retratações feitas pelo autor na Introdução.
Assim, ao reler hoje páginas antigas deste mestre da língua portuguesa no Brasil, que
o leitor se lembre do que Corção escreveu no início do seu Século do Nada, que cito
agora, para iniciar esta bibliografia:
«Nestas páginas de introdução, tentarei dar ao leitor algumas explicações pessoais
sobre posições tomadas, que hoje me obrigam às retratações e me estimulam à busca
das causas. O tom será aqui e ali pessoal, evocativo e afetivo, porque na verdade vou
reabrir feridas, ou ferir-me onde me julgava ileso. Deixarei correr a memória sem
preocupação de método e de sistematização, mas depois desse desabafo no ombro
imaginário de um leitor imaginariamente amigo, levantarei vôo para as terras onde
todo o drama deste século se iniciou e se desenrolou, e então tratarei de esquecer-me
de mim e do leitor, para entregar-me de corpo e alma à observação  do registro dos
fatos que nos trouxeram  tão inimagináveis calamidades.(...) Terei de fazer várias
retificações, várias retratações, mas agora acode-me a idéia de uma omissão que
implica uma série de recolocações e pela qual eu estremeceria de vergonha e tristeza
se, no momento de dizer o nunc dimittis, me viesse à mente o relâmpago do negrume
de tão espantosa omissão. Qual? A de nunca ter escrito em minha longa vida de
escritor, entre tantas páginas de louvor e de admiração, de entusiasmo e de apologia,
estas poucas palavras exigidas pela mais clara verdade e pela mais límpida justiça;
sim, estas poucas palavras que já deviam ter transbordado de meu coração
agradecido e deslumbrado:
Honra e glória à Espanha católica de 1936
Honra e glória a Dom José Moscardó Ituarte, defensor do Alcazar, a seu filho Luis
Moscardó, a Queipo de Llano e a José Antônio Primo de Rivera.
España libre, España bella
Con roquetés y Falanges
Con el tercio muy valiente..."
Honra e glória aos doze bispos mártires e aos quinze mil padres, frades e religiosas
"verdadeiros mártires em todo o sagrado e glorioso significado da palavra" (Pio XI).
Honra e glória a todos os que morreram testemunhando com sangre: "Viva Cristo
Rey"!»
(O Século do Nada, introdução)
Pois foi justamente este novo posicionamento de Gustavo Corção que abriu-lhe
caminho para compreender a grande crise que começava a se abater sobre a Igreja. A
partir daí, Corção torna-se o mais completo pensador que o Brasil já conheceu. Vem
reforçar esta tese o fato dele ter sido completamente marginalizado, esquecido,
enterrado. Façam uma busca nas livrarias e  nos sites de antologia da língua
portuguesa. Uma única leve menção a Lições de Abismo, e só. Esta grande injustiça
nacional será aqui em parte reparada, pela modesta homenagem que queremos lhe
prestar.
1- A Descoberta do Outro, Agir, 1944. 10ª edição, 2000. Traduzido em inglês, espanhol
e francês.
Numa primeira abordagem, o primeiro livro de Gustavo Corção aparece como uma
espécie de autobiografia espiritual. O autor descreve os passos de sua conversão, ou
se preferirem, de sua volta ao catolicismo. Porém, uma leitura mais atenta nos mostra
que este livro se situa num plano mais profundo e sério. Depois de descrever diversas
situações que marcaram seu itinerário em direção à fé, Corção analisa, com uma
inteligência aguda e particular, os meandros da alma na busca da verdade. Mostra ao
leitor o quanto vivemos mergulhados em vícios intelectuais que nos impedem de
sermos verdadeiros e objetivos; o quanto somos apegados às nossas próprias
opiniões, e o quanto isto nos cega diante da grande realidade que é a Cruz de Nosso
Senhor Jesus Cristo e seu amor por nós. O autor procura nos ajudar a harmonizar
nossa vida racional para que estejamos aptos a alcançar de Deus a harmonia
sobrenatural, divina.
De certa forma este livro estará presente em toda a obra literária de Gustavo Corção.
Ele é uma espécie de marco inicial, mas já carregado de genialidade literária e de
grande sabedoria espiritual. «Quando este escritor veio à tona, – escreve Josué
Montelo em artigo de 1987 – não precisou aprender o seu ofício diante do público. Já
trazia um estilo, um cabedal de idéias, uma visão do mundo que de pronto ajustou à
singularidade de sua prosa muito pessoal. Não se parecia com ninguém. Era ele
mesmo, sem deixar de ajustar-se à índole e à tradição da língua portuguesa».
A propósito da última edição, publicada no ano 2000, pela Agir, devo fazer alguns
reparos.
- Tiveram a ousadia de corrigir o texto, não por erros de tipografia, mas no estilo. Ora,
Corção era considerado um mestre da lingua portuguesa. O autor destas fraudes deve
ser, no mínimo, um gênio da literatura universal.
Na orelha da capa, a biografia e a bibliografia de Gustavo Corção vieram alteradas:
- Corção não nasceu em 1898, e sim em 1896, no dia 17 de dezembro, ou seja, há
cento e quatro anos exatamente.
- na lista de jornais onde Corção escrevia não aparece O Globo. Curiosa omissão. A
mais importante tribuna deste arauto da verdade, tribuna onde escreveu durante dez
anos, duas vezes por semana, desaparece como por encanto. Mais de duzentos
artigos, muitos deles obras-primas, não pesam, para eles, na obra de Gustavo Corção.
- na lista de livros editados, não aparecem os dois últimos livros, justamente os mais
importantes de sua carreira literária. Se a omissão fosse apenas de "O Século do
Nada" (1973), poderíamos achar que, sendo uma edição da Record, a Agir não quis
mencioná-lo. Mas "Dois Amores Duas Cidades" (1967) foi publicado na própria Agir, e
também está ausente da lista. Ora, esses dois livros juntos formam talvez a mais
importante obra de análise da civilização moderna escrito entre nós, digna de grandes
filósofos e pensadores estrangeiros.
Não posso deixar de pensar que essas três omissões, abrangendo todas elas a mesma
época, ou seja, os dez últimos anos de vida do pensador, tenham algo de proposital. É
a época do Corção mais lúcido, mais combativo, defensor da Tradição Católica,
defensor da Santa Igreja.
Sinto pena deles. Se soubessem avaliar as coisas sem a coação das idéias
dominantes, saberiam que é justamente nesta época que manifestou-se a mais
brilhante inteligência das nossas letras e da nossa fé.
2- Três Alqueires e Uma Vaca, Agir, 1946.  6ª edição, 1973. Traduzido em espanhol
É com certa nostalgia que se lê este ensaio de Gustavo Corção sobre a obra e o
pensamento de Chesterton. De um lado estamos diante de uma análise de alto nível
sobre o grande escritor inglês, feita por um autor que dele herdou  todo um
posicionamento espiritual. Por outro lado, vemos alguns enganos próprios à época,
onde Corção enaltece as convicções democráticas de Chesterton. Na verdade, basta
uma leitura para descobrir que esta palavra "democracia", no pensamento destes dois
autores, nada tem a ver com o que vivemos hoje, com este vocábulo que brota
espontaneamente da mente deturpada de políticos, educadores, padres da novidade e
arruaceiros. Para os antigos, democracia era sinônimo de vida saudável,  de
moralidade, da liberdade de educar seus filhos, de andar nas ruas, de pensar. Era,
principalmente, oposição à escravidão socialista. Mais tarde Corção descobrirá que o
que ele chamava de democracia não existia nos políticos de qualquer partido que
fosse.
3- Lições de Abismo, Agir, 1950. 13ª edição. Traduzido em inglês, italiano, holandês,
polonês e alemão.
Este romance, premiado pela Unesco em 1954, o único da carreira de Corção, conta a
volta à fé de um professor com leucemia. Nos últimos meses de vida José Maria
escreve num diário suas reflexões sobre a alma, a verdade, o absoluto e termina
reencontrando a vida da graça. O tradutor de Corção para o francês, Hugues Kéraly,
assim definia, numa carta, o que pensava de Lições de Abismo:  «O senhor tem razão.
Li e reli. Literariamente, dramaticamente, liricamente, psicologicamente e até
espiritualmente, Lições de Abismo é sua obra mais tocante, mais acabada».
4- As Fronteiras da Técnica, Agir, 1954. 5ª edição, 1963
É uma reunião de várias conferências e aulas, tratando com simplicidade temas
profundos e difíceis: O tecnicismo - O fazer e o agir - Política e técnica - A técnica de
Deus, sua arte e seu amor - Patriotismo e nacionalismo - A missão da mulher - O valor
da vida. A riqueza e a arte do português de Gustavo Corção brilham aqui como nos
outros livros. Aqui no site apresentamos boa parte do capítulo A Missão da Mulher que
termina por um comentário das Bodas de Caná, surpreendente e profundo. Algumas
posições políticas, como as comentadas no Três Alqueires e Uma Vaca serão motivo de
retratações em seu último livro, O Século do Nada. Mas mesmo assim, é com muita
profundidade e inteligência que o autor trata desses assuntos.
5- Dez Anos, Agir, 1956, 2ª edição, 1958.
Coletânea de artigos publicados nos jornais ao longo de dez anos.
6- Claro Escuro, Agir, 1958. 3ª edição, 1963.
Ensaio sobre a família, casamento, divórcio.
7- Machado de Assis, Agir, 1959. 2ª edição, 1965
Apresentação, comentários e notas sobre os romances de Machado de Assis (1839-
1908).
8- Patriotismo e Nacionalismo, Ed. Presença, 1960
Artigos e conferências sobre política.
9- O Desconcerto do Mundo, Agir, 1965 Leia a carta de Manuel Bandeira, propondo
Corção para Prêmio Nobel por este livro.
Um livro que nos fala sobre a alma humana, suas capacidades racionais, o pecado
original e suas conseqüências, tudo isso e mais ainda através da visão dos poetas,
romancistas e pintores. Assim é construído O Desconcerto do Mundo.
Corção parte de uma estrofe de Camões para analisar as razões dos líricos queixumes.
De início exige de si mesmo um questionamento sério e verdadeiro: «Não, não pode
ser convencional, nem pode deixar de ser verdadeiro esse recado de mágoa que vem
de longe, e que parece ser uma dor do Universo expressa por boca humana; sim, que
parece ser uma dor primeira que remonta às origens do mundo». Em seguida procura
no pensamento dos poetas e pensadores o porque dessa aflição: Chesterton, Pascal,
Camus, Hugo. E em todas as religiões do mundo, a mesma dor, a mesma confusão. A
análise do problema do mal continua com o Eclesiastes e o livro de Jó, elevando-se a
considerações de ordem sobrenatural com a teologia das bem-aventuranças.
A segunda parte deste grande livro é uma análise da obra de Machado de Assis,
mostrando alguns aspectos importantes, como a genialidade que vem se somar ao
talento, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que há de verdadeiro por
detrás do propalado pessimismo do grande escritor, a presença do sábio do
Eclesiastes na obra de Machado. Corção mostra a grandeza dos personagens de
Machado para, em seguida, mostrar outro grande romancista, Eça de Queirós, cujos
personagens são pobres, mas que encontra toda sua arte na contemplação de certas
descrições lentas e aparentemente monótonas. Em suma, uma aula sobre o valor de
um romance, seu conteúdo mais misterioso e elevado, que ilumina a alma do escritor.
Enfim, na terceira parte, Corção muda de ambiente sem mudar de tom. É já nas artes
plásticas dos grandes pintores que nos ensinará a enxergar por detrás das tintas e das
molduras, buscando o pensamento, a elevação, a razão formal da arte.
Em três momentos distintos, poesia, romance e pintura, nosso autor nos faz ver além
da superficialidade comum dos eruditos, destilando para nós um ensinamento de
verdadeira cultura, de vida, de sabedoria.
10- Dois Amores Duas Cidades, Agir, 1967
Talvez não exista no Brasil uma análise tão profunda e verdadeira da chamada
Civilização Moderna. Em dois volumes, mais de 700 páginas, Corção mostra que esta
nova Civilização é, na verdade, um novo posicionamento do homem, que perde seu
eixo sobrenatural para centralizar-se em si mesmo, no seu orgulho. Corção mantém
neste livro suas posições herdadas de Maritain, mas compreende, ao terminá-lo que
algo não está bem explicado. Escreve assim sua Inconclusão, analisando a crise que
começa a flagelar a Igreja. Com isso, ao terminar este livro de modo tão incômodo,
Gustavo Corção recomeça seu estudo buscando as fontes desta crise, o que o leva a
escrever uma longa conclusão, que será seu último livro, O Século do Nada (ver
adiante)
Por causa disso, este livro possui um contexto todo especial, e resolvemos deixar ao
próprio Corção, no artigo Cristianismo e Humanismo, as explicações que se tornam
necessárias.
11- O Século do Nada, Record, 1973. 2ª edição. Traduzido em francês.
Uma vez entendido o fundo da questão, todo o século XX merece ser revisto nas
causas dos seus principais acontecimentos. Quem poderia pensar, aqui no Brasil, que
uma crise no governo francês, o Affaire Dreyfus, tivesse importância para o século que
começava? Corção vê estas causas e descreve como a política geralmente ensinada e
propalada está cheia de enganos e erros. Assim também para a condenação da Action
Française, de Charles Maurras, o papel de Franco na salvação da Espanha e todos os
demais acontecimentos do século XX. Termina com um pungente capítulo sobre a
Igreja, sobre o Concílio Vaticano II, que abre as portas aos progressistas, dando início
ao que Corção chamou de pecado terminal.
12- A Tempo e Contra-tempo, Permanência, 1969   
Coletânea de artigos sobre a crise da Igreja.
13- Progresso e Progressismo, Agir, 1970
Coletânea de textos de diversos autores sobre o tema. A parte II é de Gustavo Corção.
14- As Descontinuidades da Criação, Permanência, 1992
A Editora Permanência publica neste volume as conferências que Corção fez em seu
auditório sobre Filosofia da Natureza e Evolucionismo. Refuta o erro do evolucionismo
na visão do físico-matemático, na visão do filósofo e na visão do teólogo. Queria levar
adiante seu estudo mostrando que nada, na natureza humana, previa que Deus a
elevaria à vida divina pela graça. Infelizmente não teve tempo de terminar, o que nos
leva a publicar só a primeira parte.
***
Tendo iniciado esta bibliografia citando a Introdução de O Século do Nada, gostaria de
terminá-la com sua Conclusão. Se em Dois Amores Duas Cidades, Corção achou-se
mal acomodado para concluir, neste é com a pluma transformada em espada de
guerreiro e santo que nos lega suas últimas palavras publicadas em livro. Continuará
escrevendo seus artigos até sua morte, e deixará inacabado um esboço de livro,
escrito em francês, entitulado Petit Traité sur l'Amour Propre (Pequeno Tratado sobre o
Amor-próprio).
«Em nome de um otimismo confiante nos recursos humanos, na ida à Lua e nos
transplantes de corações logo rejeitados, em nome de um novo humanismo que ousa
dar o qualificativo de novo ao capricho inconstante dos homens, em nome do nada e
da vaidade das vaidades, perseguição de vento, o caudal de erros se alargou neste
estuário de disparates que inunda o mundo e produz na Igreja devastações
incalculáveis. Que nome daremos ao mal deste século?
Este: desesperança
Ei-lo, o mal de nosso tormentoso e turbulento século que ousou horizontalizar as
promessas de Deus transformadas em promessas humanas. Que ousou tentar a
secularização do Reino de Deus que não é deste mundo. Ei-los os escavadores do
nada a construir em baixo-relevo, en creux, a nova torre de Babel. Esperantes às
avessas, eles querem fazer revoluções niilistas, querem voltar ao zero, querem
destruir, querem contestar, rejeitar, querem niilizar. E se chamam "progressistas".
No século anterior as agressões e traições convergiram contra a Fé, como se viu na
crise modernista que São Pio X represou. Tremo de pensar que o próximo século será o
do desamor. Perguntando ao mar, às árvores, ao vento, o que querem esses homens
que se agitam e meditam coisas vãs, parece-me ouvir uma resposta de pesadelo. Eles
querem produzir uma sinarquia, uma espécie de unanimidade, uma espécie terrível de
paz e bem-estar. Qual?
Querem chegar ao pecado terminal
(...)
Que fazer? Lutar. Combater. Clamar. Guerrear. Mas lutar sabendo que lutamos não
somente contra a carne e o mundo, mas contra o principado das trevas. É preciso
gritar por cima dos telhados que, se o cristianismo se diluir, se a Igreja tiver ainda
menos visível o ouro de sua santa visibilidade, se seu brilho se empanar pela
estupidez e pela perversidade de seus levitas, o mundo se tornará por um milênio
espantosamente, inacreditavelmente, inimaginavelmente estúpido e cruel.
Roguemos pois a Deus, com todas as forças; desfaçamo-nos em lágrimas de rogo e
gritemos a súplica que nos estala o coração: enviai-nos, Senhor, ainda neste século,
um reforço de grandes santos, de grandes soldados que queiram dar a vida, no
sangue ou na mortificação de cada dia, pela honra e glória de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Compadecei-vos, Senhor, de nossa extrema miséria, e sacudi os homens para
que eles saibam quem é o Senhor!
É preciso lutar; e sobretudo não desanimar quando nos disserem que o inimigo cerca a
Cidade de Deus com cavalos e carros de combate. Ouçamos Eliseu: "Não tenhais
medo porque os que estão conosco são muito mais fortes do que os que estão contra
nós". E elevando a voz Eliseu exclamou: "Senhor, abri-lhes os olhos para que eles
vejam. E abrindo-lhes os olhos o Senhor, eles viram, em torno de Eliseu, a montanha
coberta com cavalos de guerra e carros de fogo". (II Reis, VI,16)
E para bem encerrar estas páginas tão sofridas, ouçamos depois do Profeta a voz do
grande santo Papa que pusemos no frontispício desta obra. Ouçamos a voz de São Pio
X, que desde o princípio deste século de desesperança clamou para despertar as
indiferenças, quebrar os orgulhos e pelo santo temor preparar o caminho da Salvação:
"Qual seja o desenlace desse combate contra Deus empreendido por fracos mortais,
nenhum espírito sensato poderá duvidar. É certamente fácil, para o homem que quer
abusar da liberdade, violar os direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao
Criador caberá sempre a vitória. Digamos mais: a derrota se aproxima do homem
justamente quando mais audaciosamente se ergue certo do triunfo. E é disto que
Deus mesmo nos adverte: "Ele fecha os olhos para os pecados dos homens" como que
esquecido de seu poder e de sua majestade, mas logo depois desse aparente recuo,
despertando como um homem cuja força a embriaguez aumentara, ele esmagará a
cabeça de seus inimigos, a fim de que todos saibam "que o Rei da terra inteira é
Deus" e que os povos compreendam que não são senão homens". »
(O Século do Nada, Conclusão)
Deus marcou encontro conosco
   
O texto de Gustavo Corção que publicamos aqui é parte
de um ciclo de conferências realizadas em Belo
Horizonte na década de 1950. Apesar de não estar
completo, não deixa de ser um exemplar importante das
atividades do grande escritor católico, numa época em
que Corção era requisitado para constantes palestras,
entrevistas e artigos. Depois o mundo girou, os polos
foram deslocados, os homens tornaram-se cúmplices da
Revolução num mundo evolutivo e estagnado no nada. Já
não lhes interessava a firmeza da verdade e da fé que Gustavo Corção guardou e ensinou até a
morte.
Editora Permanência
 
 
DEUS MARCOU ENCONTRO CONOSCO                 
VI Conferência de Belo Horizonte
 
Como ninguém aqui ignora, creio eu, a Igreja preceitua que os seus filhos, ao menos uma vez por
ano, confessem e comunguem, isto é, que ao menos um dia em trezentos e sessenta e cinco dias se
lembrem de usar o Sangue de Cristo, derramado para a nossa salvação. Esta é a condição, é o
mínimo que Deus, por sua igreja, exige de nós, para que sejamos contados entre os membros vivos
do Corpo Místico do Cristo.
Para quem está habituado à vista da Igreja, e usa de seus bens com assiduidade, esse mínimo se
afigura esquisito. Como é possível amar a Deus e somente uma vez, em trezentos e sessenta e cinco
dias, procurar o socorro de seus sacramentos? Como é possível amar de tão longe, e com tão
descuidado dever? E, sobretudo, como é possível agüentar a pressão do mundo, a atração das
pompas, a sedução do pecado sem o socorro particularmente eficaz da Penitência e da Eucaristia?
Na verdade, se me perguntarem, eu direi que não acho possível tão extraordinário equilíbrio.
Atrevo-me a dizer que esse mínimo me parece insuficiente, e que eu tremeria pela sorte de minha
alma se deixasse correr tamanha distância entre mim e o meu Salvador. Mas como se explica então
esse empenho que todos nós, em obediência à Igreja, temos de conquistar mais um irmão para esse
mínimo que nos parece insuficiente e até temerário?
A essa dificuldade responderemos de três modos. Em primeiro lugar, diremos que atrás dessa
pequena exigência todos nós escondemos — segredo de polichinelo! — a malícia de uma
esperança: o mínimo poderá frutificar em generosidade, e o fiel que viveu distraído, embora ainda
fiel, poderá neste encontro que hoje preparamos, render-se à centelha divina, e tornar-se mais
assíduo e mais amigo de seu grande Amigo do Céu. 
Em segundo lugar, com uma esperança ainda maior, nós pensamos que esse mínimo, para muitos,
seja uma reconciliação, uma conversão, um renascimento para a vida cristã: e nesse caso já não
admira que o passo seja mínimo porque tudo o que nasce, nasce pequenino. O próprio Jesus nasceu
pequenino; e como cresceu nos braços de Maria poderá crescer também nos vossos corações. E
neste caso, alegrem-se os que renascem, exultem os que se reconciliam, porque haverá maior
alegria no céu por essa primeira confissão, por essa primeira comunhão, do que pelas nossas
trezentas e sessenta e cinco.
Em terceiro lugar eu direi que esse mínimo é um máximo, uma espécie de máximo. Mas para bem
entenderem esse paradoxo nós vamos começar por torná-lo ainda mais forte.
Diz-nos o Evangelho que nós devemos amar a Deus de toda a alma, de todo o entendimento, de
todo o coração. Diz-nos também o Cristo que nós devemos ser perfeitos como nosso Pai celestial é
perfeito. Como conciliar então estes preceitos tremendos com aquela pequenina exigência da
Igreja? Como entender que, fazendo tão pouco, já estaremos cumprindo aqueles enormes
mandamentos?
Tentarei explicar-lhes isto por meio de uma definição e de uma figura. A Sagrada Doutrina nos
ensina que o pecado mortal é aversão a Deus e conversão aos bens do mundo. Estar em pecado
mortal é, portanto, o mesmo que estar de costas para Deus. É uma atitude total, que marca uma
preferência e uma aversão. Converter-se, ao contrário, é voltar-se para Deus, e é começar a
caminhar nesta nova direção que aponta para o pólo da vida.
Há portanto, na vida religiosa, esse primeiro ato, essa primeira escolha de uma direção, esse
primeiro passo que é mínimo como avanço, mas que já tem em si um máximo de resolução, de
revolução, de orientação, de escolha. E é nesse sentido que eu lhes dizia há pouco que a comunhão
do preceito, sendo um mínimo, já era de certo modo um máximo. 
Mas não termina aqui, nessa reviravolta, o problema da vida religiosa. O pecado mortal foi vencido
por essa mudança radical de atitude, por esse infinito de escolha que depende de um pequeno gesto
humilde. Amanhã ou depois, se ficarmos parados, teremos novas distrações e novas seduções. É
preciso caminhar na boa direção escolhida, e é preciso caminhar depressa e com firmeza. Já temos a
direção, mas o caminho está cheio de obstáculos, e nós mesmos, às vezes, voluntariamente
retardamos os passos; e voluntariamente procuramos um obstáculo que nos atrase. Estamos então
fugindo de Deus por retardamento consciente e voluntário, embora sem voltar-lhe as costas. E é
nisto que consiste o pecado venial, essencialmente diverso do pecado mortal, mas infelizmente, e
quase sempre, o seu introdutor e preparador.
Hoje, porém, eu quero aqui encarecer a importância infinita dessa pequena reviravolta de amor que
Deus espera dos que se afastaram de seus sacramentos. E torno a dizer — amigos — que quase
invejo esse grande e perigoso privilégio que fará de vós os festejados recém-nascidos do céu.
Deus marcou encontro conosco. Já muitas vezes vos disse que os homens usam sinais para os
encontros aprazados. Nós costumamos dizer assim: estarei à sua espera na esquina da Ouvidor com
a Avenida, às tantas horas. E observem que as coordenadas humanas são geralmente marcadas num
cruzamento, isto é, num lugar que tem a marca da cruz. Deus também espera por nós na sua grande
encruzilhada, isto é, nos sinais derivados da cruz. Ele está à nossa espera, no lugar e na hora da
Igreja. E chega sempre primeiro. E espera que nós nos dignemos a voltar o rosto, a girar o coração e
converter a alma.
Ele espera por nós, no seu banquete, na sua festa, mas primeiro nos adverte que estejamos vestidos
com a túnica branca da sua graça. E é Ele mesmo, ainda Ele, que nos espera para os preparativos do
perdão.
Deus marcou encontro conosco no sacramento do perdão. Pensai um pouco nesse primeiro convite.
Quem haverá por aí, tão duro de coração, que não tenha fome e sede de perdão? Quem haverá por
aí, tão certo de si mesmo, que possa viver sem a necessidade do perdão? Ah! A nossa vida... Nós
vamos andando, andando, e deixamos para trás nossas faltas. Assim como as vamos esquecendo,
elas nos parecem menores. Mas por quê? Se eu hoje matar um homem, e amanhã esquecer, estarei
perdoado? Nós vamos andando, e enterramos as nossas faltas. Mas hoje vos pergunto, como há
doze anos a mim mesmo perguntei: de que me vale o enterro de minhas culpas? Nem o famoso
cemitério de Genova, com seus magníficos mausoléus, seria bastante espaçoso para o luxo funerário
de minhas faltas. Onde iria eu buscar a paz, se trazia um monturo em mim mesmo arquivado?
Esquecendo? Mas a memória brinca dentro de nós: quando a buscamos é nuvem; quando a
evitamos é pedra. A memória é um quisto. E eu andava com o fibroma na alma?
Não vou aqui contar-vos meus desconcertos, não vos assusteis. Imaginai que estou apenas
explicando ou falando de um outro. E torno a vos perguntar quem me aliviará desse peso, do que
fiz, do que não fiz? Quem me livrará das sombras que me perseguem chorando? E aquele pobre
homem que num certo dia, num certo lugar, eu devia ter ajudado e abraçado, quem mos devolverá,
o dia, o lugar, o pobre? E aquela velhinha dormindo enroscada como um bicho, no chão, na rua, e
que eu não levantei, e que eu não socorri, porque não era a minha mãe, embora pelos cabelos
brancos parecesse, sim, pelos cabelos brancos espalhados nos trapos? E aquele menino Jesus que
um dia eu vi passar no colo de uma mendiga, imagem suja, miserável, e que me olhou, a mim!, com
os olhos de abismo, e que me sorriu, para mim!, lá do fundo, do fundo da sua inocência? Quem me
devolverá esse menino, quem me dará a força de um São Cristovão, para carregá-lo no meio das
águas?
Grande coisa essa paz de consciência de quem toma juízo e se aposenta na carne! Fresca
tranqüilidade esta que está mais na caiação do que no conteúdo do sepulcro! Há gente que diz
assim: eu faço isto e aquilo, pago minhas dívidas, cumpro meus compromissos, para andar de
cabeça erguida. E a velha? E o pobre? E o menino Jesus? E a coleção de horrores em que nem me
atrevo a tocar?
Quem? Quem me desembaraçará deste corpo de morte? A quem hei de chamar, do fundo do
despenhadeiro, para dizer que meus ossos me consomem, que não há nada na minha carne que não
doa, que meus dias fogem como sombras que se alongam, que caem cinzas no que como e no que
eu bebo? A quem pedir a pureza que perdi e a brancura de neve que manchei? Quem poderá entre os
vivos dizer-me palavras de alegria que me penetrem a medula dos ossos doloridos? Quero um
auxílio, um auxílio para me levantar, e tenho pressa, pressa da mão estendida, da face atenta, do
hissopo que lava, da palavra de perdão e de alegria...
Os homens também perdoam. Eu deveria então sair por aí afora pedindo perdão dos transeuntes
espantados, na esperança de encontrar os ofendidos por mim. Mas o perdão dos homens, que já é
uma grande coisa, não dissolve as pedras que eu carrego. Quando muito apago neles o
ressentimento, o rancor, o que já é uma grande coisa; mas não destrói a culpa, não penetra, não lava,
não queima. E na maior parte das vezes o pedido de perdão se perde no deserto, ou ecoa nas paredes
do quarto. E se nós sairmos por aí, com essas brasas na mão, quem quererá recebê-las? Quem
quererá pagar por nós, a fundo, até o sangue, até a morte?
Ora, Deus marcou encontro conosco no Sacramento do perdão, que corre diretamente da Cruz e do
Sangue do Salvador. O que é mais fácil, dizer a um paralítico “levanta-te e anda” ou dizer
“perdoados são os teus pecados”? Nosso Senhor respondeu a essa pergunta mandando o paralítico
levantar-se, provando assim como é fácil, para Ele, o perdão dos pecados. Realmente fácil.
Extraordinariamente fácil. Divinamente fácil. Porque a misericórdia, segundo Santo Tomás, é o que
há de mais divino em Deus. Poderíamos talvez dizer que a misericórdia é o lado exterior, voltado
para nós, do que há de mais interiormente divino em Deus — e que é a Sua alegria. “Há mais
alegria no céu para um pecador que se converte do que para noventa e nove justos que perseveram”.
O perdão de Deus é a fonte escondida de nossa alegria, dessa alegria cristã, dessa alegria guardada,
dessa alegria profunda que ninguém nos pode roubar. E assim fica provado que aquele pontual
indivíduo que faz da cabeça erguida uma norma está enganado; o grande mistério, de vida, de
alegria, é justamente o da cabeça curvada.
O perdão de Deus é efetivo, enquanto o dos homens é somente afetivo. É penetrante. É calcinante.
É dissolvente. Basta um gemido sincero. Basta uma disposição mínima, para que o padre trace em
nossas cabeças o mais fácil dos gestos, e Deus opera em nós a mais fácil de suas obras.
Já no Batismo recebemos o perdão da água. Recebamos agora no confessionário o perdão das
lágrimas e do sangue, para que não nos fique somente — na melhor das hipóteses — o perdão do
fogo no purgatório.
*
Vou falar-vos da morte. E porque não? Falei-vos da tristeza e da alegria, porque não falarei também
do temor. Nossa alma tem paixões que nos são próprias, que fazem parte da riqueza de nosso ser.
Não podemos viver sem paixões. Por mais que façam os inventores de um novo paraíso terrestre
feito de prazeres, nós não podemos viver sem tristezas, sem temores, sem cóleras. Essas paixões,
em si mesmas são neutras, moralmente neutras. Há boa e má alegria. Boa e má tristeza. E assim
como há um temor degradante — que se chama covardia — há também um temor bom, um temor
salutar, que é o princípio da sabedoria. 
Para educar, para aconselhar, para servir, nós devemos apelar, em justa medida e em momento
oportuno, para as paixões da alma.
Vou, pois, falar-vos da morte, esse fato trivial e terrível. Freqüentemente esquecemos que somos
mortais. De tal modo vivemos divididos de nós mesmos, exteriorizados, distraídos, que chega a ser
preciso um dom de Deus para despertar em nós a idéia da morte.
E, no entanto, não passa mês, ou semana, ou dia que não se veja passar na rua o triste e ridículo
aparato funerário. Agora mesmo, enquanto aqui estamos, há milhares de agonias pelo mundo. Em
cada palavra que pronunciamos morre um homem. Morreu um. Outro. Outro. Se pudéssemos ver
numa janela essa goteira de corpos tombados, um por um, monotonamente, teríamos talvez uma
impressão mais viva de nossa fragilidade. Conhecem talvez a história que aconteceu com S. João
Bosco. Estava ele pregando a diversas pessoas, de todas as idades e condições, quando de repente
parou de falar, e após um silêncio recolhido explicou: “Nosso Senhor acaba de me dizer que um de
nós morrerá hoje”. E morreu, efetivamente, o mais moço. 
Não vou anunciar-vos o mesmo. Não recebi nenhum aviso de Nosso Senhor. Mas quem nos garante,
ao contrário, que todos nós aqui presentes estaremos vivos amanhã.
A morte chega de repente. Às vezes dá um prazo mais ou menos longo. Mas às vezes não concede
um segundo. E o corpo que ia andando cheio de projetos de futuro cai como um fardo. E então? E
então nós nos queixamos, se ao menos temos um segundo para nos queixarmos. Queixamo-nos que
fomos pegos desprevenidos para esse encontro com a morte. E teremos, ai de nós, a amargura de
pensar que a justiça divina foi pérfida conosco, esquecendo que foi longa a paciência da divina
misericórdia. Ele chega de repente como Juiz, é verdade; mas não é verdade também que esperou a
vida inteira como amigo?
Deus marcou encontro conosco. Vamos pois ao encontro da misericórdia que está à nossa espera, no
lugar e na hora marcada, no santo tribunal do fácil perdão.
Quando a justiça chega de repente poderá alguém queixar-se? Não. Não poderá, porque a presteza e
a rapidez são próprias da justiça. Nós mesmos somos os primeiros a reclamar quando ela tarda, nos
casos em que nos parece que ela nos seja favorável. Como então estranhar que seja súbita e
inesperada a justiça divina, se é tão demorada a misericórdia?

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